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s questões afetas aos afro-descententes figuram ainda de forma quase invisível quando se tra- ta de políticas públicas, apesar de o país ser uma das maiores nações negras do mundo. O orçamento federal espelha o esquecimento com esta imensa parcela, que corresponde à metade da população brasileira. A recente criação da Secretaria de Promoção da Igual- dade Racial, pelo atual governo, não deixa de ser um sinal de que algo começa a mudar, mas certamente, para resgatar a enorme dí- vida social com os afro-descendentes, há um caminho longo a percorrer. Os negros estão entre os mais pobres, com menor escolaridade e condições de vida mais difíceis. As crianças pardas e negras são maioria nas Febens e no trabalho infantil. Não existem recursos específicos no orçamento, e para se conhecer os programas que contemplam os negros é preciso buscar aqueles voltados aos segmentos mais carentes e em situação de risco social. Falta, portanto, investimento para ações afirmativas e de combate à discriminação e ao racismo. Falta admitir a amplitude do problema para enfrentá-lo de maneira adequada. Para transformar a situação de desigualdade e exclusão social que atinge os negros, e que torna as crianças afro-descententes especialmente mais fragilizadas em relação às demais, é fundamental elaborar políticas públicas estruturantes e garantir recursos orçamentários para sua implementação. Só assim estaremos nos aproximando da garantia de direitos básicos e constitucionais, de forma integral e universal. A E D I T O R I A L A desigualdade entre as raças Falar sobre direitos da criança e do adolescente, políticas públicas e igualdade entre as raças remete- nos a uma frase da “Carta de uma menina escrava”, publicada no Caderno da Abong “Outros 500”: “Eu sou Dandara, que na língua afro-negra significa Li- berdade”. Essa liberdade é a tradução de uma vida plena de direitos e, no Brasil, é preciso perguntar: criança negra é diferente de criança branca? A lei diz que não. Segundo a Constituição brasileira, todos são iguais perante a lei e “a prática do racismo cons- titui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”. O Estatuto da Criança e do Ado- lescente, em seu artigo 5°, diz que “nenhuma crian- ça ou adolescente será objeto de qualquer forma de Uma dívida social Ano IV • nº 15 • setembro de 2003 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc 15 Regivan Araújo - MNMMR

Boletim DCA 15

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s questões afetas aos afro-descententes figuramainda de forma quase invisível quando se tra-ta de políticas públicas, apesar de o país seruma das maiores nações negras do mundo.O orçamento federal espelha o esquecimentocom esta imensa parcela, que corresponde àmetade da população brasileira. A recentecriação da Secretaria de Promoção da Igual-dade Racial, pelo atual governo, não deixade ser um sinal de que algo começa a mudar,mas certamente, para resgatar a enorme dí-vida social com os afro-descendentes, há umcaminho longo a percorrer.

Os negros estão entre os mais pobres, commenor escolaridade e condições de vida maisdifíceis. As crianças pardas e negras sãomaioria nas Febens e no trabalho infantil.

Não existem recursos específicos noorçamento, e para se conhecer os programasque contemplam os negros é preciso buscaraqueles voltados aos segmentos mais carentese em situação de risco social. Falta, portanto,investimento para ações afirmativas e decombate à discriminação e ao racismo. Faltaadmitir a amplitude do problema paraenfrentá-lo de maneira adequada.

Para transformar a situação dedesigualdade e exclusão social que atinge osnegros, e que torna as crianças afro-descententesespecialmente mais fragilizadas em relação àsdemais, é fundamental elaborar políticaspúblicas estruturantes e garantir recursosorçamentários para sua implementação. Sóassim estaremos nos aproximando da garantiade direitos básicos e constitucionais, de formaintegral e universal.

AE D I T O R I A L A desigualdade entre

as raças

Falar sobre direitos da criança e do adolescente,políticas públicas e igualdade entre as raças remete-nos a uma frase da “Carta de uma menina escrava”,publicada no Caderno da Abong “Outros 500”: “Eusou Dandara, que na língua afro-negra significa Li-berdade”. Essa liberdade é a tradução de uma vidaplena de direitos e, no Brasil, é preciso perguntar:criança negra é diferente de criança branca? A lei dizque não. Segundo a Constituição brasileira, todossão iguais perante a lei e “a prática do racismo cons-titui crime inafiançável e imprescritível, sujeito àpena de reclusão”. O Estatuto da Criança e do Ado-lescente, em seu artigo 5°, diz que “nenhuma crian-ça ou adolescente será objeto de qualquer forma de

Uma dívida social

Ano IV • nº 15 • setembro de 2003 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc

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Regivan Araújo - MNMMR

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2 setembro de 2003

O IDH dos negrosbrasileiros é

equivalente ao IDHque fica entre El

Salvador e China, na107ª posição. Já os

brancos apresentamum IDH equivalente

ao do Kuwait: 46ªposição

1 www.observatorioafrobrasileiro.org , UFRJ- IPDH, Notas de Estudo 01/2003

negligência, discriminação, exploração, violência,crueldade e opressão, punido na forma da leiqualquer atentado, por ação ou omissão, aos seusdireitos fundamentais”.

No entanto, a realidade vivida por milhões de crian-ças e adolescentes negros e negras e todos os seus famili-ares demonstra que existe diferença sim. E não é muitodifícil localizar essa diferen-ça; basta percorrer algunsdados levantados por insti-tuições como o Programadas Nações Unidas para oDesenvolvimento –PNUD, o Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada– Ipea e a Datafolha paraidentificarmos com muitafacilidade a conivência dasociedade brasileira com oracismo e a incapacidade de enfrentamento do Estadoatravés das políticas públicas.

O PNUD divulga anualmente o Relatório deDesenvolvimento Humano de 175 países. No re-latório desse ano o país melhorou em termos doÍndice de Desenvolvimento Humano - IDH, pas-sando da 69ª colocação para a 65ª. O IDH medea qualidade de vida de uma população combi-nando três tipos de indicadores: rendimento percapita, escolaridade (taxa de escolaridade e de al-fabetização) e esperança de vida ao nascer. Se-gundo o professor Marcelo Paixão, da UFRJ, “a

evolução positiva não foi gerada somente pelamelhoria dos indicadores sociais da população.Na verdade, desde o ano passado, o PNUD, aoinvés de calcular o índice combinado de escola-ridade bruta da população, passou a aceitar osdados produzidos pelos governos (...) Antes usa-va-se a taxa de freqüência aos três níveis princi-pais de ensino de toda a população e dividia-seeste número pelo total de pessoas situadas na fai-xa etária entre 7 e 22 anos. Nos dias atuais, a novafonte de dados passou a ser a taxa de matrículaescolar da população (...) Não se tratou de umamudança de metodologia de cálculo, mas sim deuso de fonte de dados. Isto fez com que o nossopaís tivesse experimentado um crescimento tãoexpressivo em termos de IDH em um espaço tãocurto de tempo" 1.

Na avaliação do professor Marcelo Paixão, essanova forma de calcular a variável escolaridade difi-culta a desagregação do IDH entre cores/raças, umavez que nos registros do Ministério da Educação nãoconstam informações sobre cor/raça dos alunos e alu-nas matriculados. O Observatório Afro-brasileiro ela-borou o IDH por raça e usou, para o cálculo no anode 2001, exclusivamente as fontes do IBGE.

O IDH dos negros brasileiros é equivalente aoIDH que fica entre El Salvador e China, na 107ªposição, entre 175 nações. Já os brancos apresentamum IDH equivalente ao Kuwait: 46ª posição. É im-portante salientar que, no Censo 2000 do IBGE, umtotal de 40,4% da população brasileira se declarou

Orçamento & Política da Criança e do Adolescente: uma publicação do INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos,em parceria com o Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Tiragem: 3 mil exemplares - End: SCS - Qd, 08, BlB-50 - Salas 431/441 Ed. Venâncio 2000 - CEP. 70.333-970 - Brasília/DF - Brasil - Fone: (61) 212 0200 - Fax: (61) 2120216 - E-mail: [email protected] - Site: www.inesc.org.br - Conselho Diretor: Jackson Machado, RonaldoGarcia, Elisabeth Barros, Gilda Cabral, Gisela Alencar, Nathali Beghin, Paulo Calmon, Pe. José Ernani - Colegiado degestão: José Antônio Moroni, Iara Pietricovsky - Assessoria Técnica: Denise Rocha, Edélcio Vigna, Jair Barbosa Júnior,Jussara de Goiás, Luciana Costa, Márcio Pontual, Ricardo Verdum, Selene Nunes - Jornalista responsável: Luciana Costa -Projeto gráfico: DataCerta Comunicação – Impressão: Vangraf

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setembro de 2003 3

Em 2001, orendimento dasfamílias brancas

chegava a ser 2,3vezes superior aodas famílias afro-

descendentes. Cercade 47% dos negros

no Brasil eramenquadrados como

pobres e 21,2%,indigentes

parda e somente 5,6% preta; “Se a metade da popu-lação de um país não gosta de ser como é; e a outrametade não gosta de estar com negros e índios, o quese pode esperar desse país?”2.

O Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alertapara a elaboração de políticas”, da Rede Femi-nista de Saúde3, elaborado pela pesquisadoraWânia Sant’Anna e recentemente lançado emBrasília, alerta para a elaboração de políticas pú-blicas e mostra a exclusão a que estão submetidosnegros e negras no país, com dados alarmantes:

• Em 2001, o rendimento das famílias brancaschegava a ser 2,3 vezes superior (R$ 481,6)ao das famíliasafro-descendentes(R$ 205,4);

• Em 2001, cerca de47% dos negros noBrasil eram enqua-drados como pobrese 21,2%, indigentes4.No caso da popula-ção branca, ospercentuais são22,4% de pobres e 8,4% de indigentes.

Não se pode negar que existem tentativas paramudar a realidade. Muitas foram as pressões e ma-nifestações de segmentos organizados. A década de90 foi marcada pela luta dos afro-brasileiros contrao racismo e a discriminação. Foi um marco históri-co a “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racis-mo, pela Cidadania e a Vida” realizada em 20 denovembro de 1995, em homenagem aotricentenário da morte de Zumbi que, indiscutivel-mente, vem impulsionando essas mudanças.

As ações afirmativas trazem uma nova reflexão,contida na carta da Marcha Zumbi dos Palmares,que desenvolve o princípio da promoção de igualda-de de oportunidade: “primeiramente, capacitar, enum segundo momento, flexibilizar, facilitar a en-trada, facilitar o acesso para que o negro possa dispu-tar em igualdade de condições e dar à sociedade bra-sileira um caráter de maior justiça”.5 Outros exem-plos podem ser citados, como a criação do Grupo deTrabalho Interministerial para Valorização da Popu-lação Negra (1996). Nesse mesmo ano foi lançado oI Programa Nacional de Direitos Humanos, que con-tém item específico sobre a população negra.

A partir de 2000, o debate contra o racismo seintensifica, com vistas à participação do Brasil na “IIIConferência Mundial contra o Racismo, a Discrimi-nação Racial, a Xenofobia e a Discriminação”, emDurbin, na África do Sul, que resulta na realizaçãoda I Conferência Nacional contra o Racismo e a In-tolerância, em 2001. Em 2002, a criação do Progra-ma Nacional de Ações Afirmativas, na Secretaria deEstado de Direitos Humanos do Ministério da Justi-ça; a criação de ações e projetos nos Ministérios doDesenvolvimento Agrário, do Trabalho, da Cultura,da Justiça e da Educação; e o início da titulação deterras de remanescentes de quilombos, etc6 , são ini-ciativas que absorvem o ideário de promoção da igual-dade de oportunidades em contraposição à igualda-de formal, a igualdade de direitos.

No governo Lula, a partir de 2003, registra-se comoavanço o decreto n° 4.738, de 12 de junho de 2003,que promulga a Declaração Facultativa prevista no arti-go 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminaçãode Todas as Formas de Discriminação Racial, reconhe-cendo a competência do Comitê Internacional para aEliminação da Discriminação Racial para receber e ana-

2 Caderno Outros 500 - Sugestões para o trabalho com grupos sobre a questão da raça negra, indígena e criança e adolescente, ABONG Amazônia e associadas - ComitêOutros 500, PA, jun/2000

3 A Rede Feminista de Saúde, fundada em 1991, é uma articulação do movimento de mulheres que reúne cerca de 180 instituições. A secretaria executiva da RFS estásediada em Belo Horizonte.

4 PELIANO, Anna Maria Medeiros (coord.) - O mapa da fome: subsídios à formulação de uma política de segurança alimentar - Brasília : IPEA, 1993. Classifica comoindigentes aqueles que vivem abaixo da linha de pobreza ou seja, até meio salário mínimo.

5 SANTOS, H. Ações afirmativas para a valorização da população negra, In Sardenberg e Santos. Parcerias Estratégicas, vol 1, n°4, dez/1997.6 JACCOUD, L.B. e BEGHIN, N.B. IPEA, 2002.

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4 setembro de 2003

7 Caderno Outros 500, ABONG Amazônia e associadas - Comitê Outros 500, PA, jun/2000

lisar denúncias de violação dos direitos humanos cober-tos na mencionada Convenção. Tivemos ainda a cria-ção da Secretaria Especial de Promoção da IgualdadeRacial e a inclusão do Programa Cultura Afro-Brasilei-ra no Projeto de Lei Orçamentária de 2004.

No entanto, o que o Brasil tem é uma igualdadeformal que convive com um racismo perverso, vis-to que escamoteia a realidade a ponto de parecernormal. Por exemplo, em milhares de salas de aulanas universidades, sejam públicas ou privadas, nãose vê nenhuma pessoa negra e também não se per-gunta o porquê. Vários outros fatos do nosso coti-diano podem ser citados, embora não sejam sufici-entes para despertar nossa indignação, como porexemplo, freqüentar teatros, palestras, restaurantesou exposições de arte sem encontrar pessoas negras.

Segundo Hélio Santos, do Grupo de TrabalhoInterministerial – GTI - para Valorização da Popula-ção Negra, a pobreza brasileira tem cor e, mesmo queessa população supere a discriminação social atravésda melhoria da renda, terá que enfrentar a discrimi-nação de cor. O fato é que ainda estamos muito longede alcançar a cidadania para todos e todas. Essa dis-tância só será diminuída se o Brasil assumir que a me-tade da população é negra, vítima das desigualdadessociais e de cor, para então enfrentar essa problemáti-ca com políticas públicas estruturantes e passíveis decontrole social, como o monitoramento do PlanoPlurianual 2004/ 2007 e da alocação de recursos es-pecíficos na Lei Orçamentária Anual. O que se podeafirmar até agora é que, em 2003, a execução orça-mentária do primeiro semestre, mesmo não constan-do o recorte de cor, não pode ser tomada como exem-plo para identificar transformações sociais positivas.

A desigualdade no acesso àeducação e à saúde

O papel da educação como instrumento de trans-formação é indiscutível. É urgente repensarmos a po-lítica educacional de modo que ela possa efetivamente

servir como agente transformador. O fato de apenas5,6% da população se declarar preta deixa explícitoque foi absorvida a “superioridade” da raça branca.Isso vem sendo historicamente repassado e contribuipara a continuidade de uma baixa estima de metadeda população. Um povo negro que não gosta de sernegro fortalece a permanência da prática de racismo.

A educação potencialmente pode acelerar o pro-cesso de formação de uma nova consciência social,mas não basta dizer que ela é para todos. Esse é odireito formal. Há que se definir, também na educa-ção, estratégias de inclusão social e racial; investir naformação de professores brancos e negros, de modoa instrumentá-los para uma postura permanente con-tra o racismo. Professores muitas vezes, mesmo sen-do negros ou negras, elaboram manuais e textos uti-lizando conceitos velhos, racistas e carregados de pre-conceitos. A figura da professora que tem preferên-cia pela criança loirinha que lhe leva uma flor aindaé uma realidade. As crianças negras sofrem de rejei-ção dos colegas e dos professores e isso só aprofundao sentimento de inferioridade e baixa estima.

Há que se investir na formulação de novos con-teúdos nos livros infanto-juvenis e didáticos, para quecontem a verdadeira história do Brasil, na qual deveconstar a resistência do povo negro, seus heróis e he-roínas7 ; resgatando o respeito à sua cultura e religio-sidade. É a história de um povo que lhe dá funda-mentação para se sentir orgulhoso de seu país e de simesmo e esse sentimento está diretamente ligado àauto-estima. Segundo Immaculada Lopez, em “Mar-cas profundas de racismo e discriminação precisamser combatidas se o Brasil quiser superar suas desi-gualdades”, o fato de não valorizarmos a participa-ção dos negros em nossa formação social e culturaltem contribuído para que nosso povo se sinta aindaeuropeu, ou seja, nega nossa base cultural africana eindígena, negando, dessa forma, a nós mesmos.

A educação como instrumento de transformaçãodeve oportunizar o desenvolvimento do potencial de

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setembro de 2003 5

T abela 1

todas as crianças e adolescentes independente da raça,crença, etnia, origem, sexo ou orientação sexual; a es-cola tem que trabalhar diariamente combatendo este-reótipos e valorizando uma visão positiva de homens emulheres, negros, negras e indígenas. A política educa-cional tem que considerar o fato de que 44% da popu-lação afro-brasileira, ou seja, 74 milhões de pessoas seencontram em estado de semi-analfabetismo; que nonível médio apenas 14% dos negros têm de 5 a 11 anosde estudo, contra 25% dos brancos e 41% dos amare-los; que 71% dos negros têm no máximo o primeirograu; e que apenas 4% concluem um curso superior,contra 13% dos brancos8 . Em 2001, a taxa de analfa-betismo para meninas afro-descendentes entre 10 e 14anos era de 4,5% e para as meninas brancas, 1,3 %9.

Uma postura política em favor da cidadania de me-tade da nossa população implicaria também em umainclusão de novas rubricas orçamentárias para a alocaçãodos recursos destinados à educação, de modo a con-templar uma demanda diferenciada da que lá está. Osinstrumentos legais que asseguram o processo orçamen-tário teriam que absorver novos direcionamentos de re-cursos para a realização de ações afirmativas e continua-das visando ao combate ao racismo e à discriminação.

Não é o caso do orçamento em execução no anode 2003. Essa lei orçamentária teve seus programase projetos criados a partir do Plano Plurianual –PPA-do governo passado, que ainda está em vigor e quenão foi capaz de absorver as especificidades dos seg-mentos discriminados. Os recursos destinados aoMinistério da Educação para programas que atin-gem diretamente crianças e adolescentes chegarama R$ 5,6 bilhões, distribuídos em 7 programas e 47projetos que teriam um impacto direto na realidadecaso fossem executados com maior rigor para o cum-primento dos objetivos. Dos 47 projetos, citamos ape-nas 9, relativos a 6 programas, a título de exemplo.Os projetos, tal como estão colocados hoje, não per-mitem identificar o impacto sobre a população ne-gra beneficiada e possuem baixo percentual de exe-cução, conforme pode ser visto na tabela I.

Percebe-se que apenas algumas rubricas tiveramexecução acima de 20%: são projetos que obrigato-riamente têm que ser executados, como o Fundef,Fundescola, renda mínima e merenda escolar, querecebem repasse direto.

Outra política essencial é a da saúde, que estádiretamente ligada às condições humanas de de-

8 SILVA, Benedita - A Questão Racial no Brasil, Senado Federal, Brasília, 1998.9 Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas”, da Rede Feminista de Saúde

Ministério da Educação - Orçamento 2003PROGRAMA ALOCADOS EXECUTADOS %

(em R$ milhões) (em R$ mil) EXECUTADO

TODA CRIANÇA NA ESCOLA

Bolsa-Escola - gerenciamento 161,7 383,9 0,24

ESCOLA DE QUALIDADE PARA TODOS

Capacitação/Formação 16,4 500 3,05

DESENVOLVIMENTO DO ENSINO MÉDIO

Expansão e Melhoria da Rede de Ensino Médio 5 - 0

Acesso à Universidade de Grupos Socialmente Desfavorecidos 5 28,2 0,56

DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL

Aquisição, Produção e Distribuição de Material Especializado 2,9 211,9 7,29

Capacitação de Profissionais

para Educação Especial 4,3 364,9 8,44

ATENÇÃO À CRIANÇA

Aquisição e Distribuição de Material Didático para Educação Infantil 5,3 - 0

Formação Continuada de Professores da Educação Infantil para

Implementação dos Referenciais Curriculares Nacionais 12 - 0

PAZ NAS ESCOLAS

Enfrentamento da Violência nas Escolas 1,4 - 0

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6 setembro de 20036

abela 2

Negro/Preta 235 23,22

Parda 521 51,48

Branca 221 21,84

Amarela 24 2,37

Indígena 11 1,09

Total 1012 100,00Lumen - Fumarc -/PUC Minas

RAÇA/COR FREQ. %

T

senvolvimento, ou seja, ao acesso à alimentação,trabalho, moradia e educação, principalmente.Não se pode falar de condições humanas de vidaquando se observa como vive a população negrano Brasil. De cada 100 afro-brasileiros que tra-balham, 33% vivem com um salário mínimo. Adesigualdade se agrava ainda mais quando se tratada mulher e da criança e adolescente negras.

A mulher negra tem salários mais baixos que ohomem e a mulher brancos e que o homem negro.Ela é alvo, de forma mais cruel, da desigualdade noacesso ao trabalho, à saúde, à educação, etc., alémda desqualificação estética da raça. As meninas ne-gras e pardas ingressam muito cedo no trabalho in-fantil doméstico, o que significa uma continuidadeda exploração do trabalho da mulher negra escravaque servia aos senhores de engenho. No ingresso aomercado de trabalho, crianças brancas de 10 a 14anos somam 14,9% e as negras, 20,5%.

A Organização Internacional do Trabalho10 rea-lizou uma pesquisa nas cidades de Belém, BeloHorizonte e Recife, com um universo de 1.029 cri-anças e adolescentes. Desses, 92,71% eram meni-nas e 7,29%, meninos. Havia 5,29% crianças nafaixa etária de 5 a 11 anos; e 53,28% na faixa de 12a 15 anos. Adolescentes com idade entre 16 e 17anos somaram 41,43%, e desses 58,57% estavamtrabalhando ilegalmente segundo a legislação emvigor. O recorte de raça/cor foi também pesquisadoe o resultado apenas confirma o que os nossos olhosacostumaram-se a ver como natural:

As meninas trabalhadoras domésticas, quandoestudam, deixam a escola muito cedo. Do totalpesquisado, 58,06% estudou até o ensino funda-mental II e apenas 9,87% até o ensino médio. Masos problemas que atingem nossas crianças e ado-lescentes afro-brasileiros não param por aí. Tam-bém são negros e negras adolescentes quesuperlotam as Febems; são elas a maioria das assas-sinadas nos grandes centros urbanos vítimas da vi-olência policial, justiceiros ou grupos de extermí-nio. Morrem também na guerra do narcotráficoporque são elas que habitam as favelas e periferiasonde a polícia entra sem pedir licença, “procuran-do bandidos” e atirando porque “parece óbvio”que é lá que eles moram. São negras as crianças eadolescentes explorados sexualmente. É alta a taxade mortalidade infantil entre crianças negras - atécinco anos, 76,1 mortes a cada mil crianças, con-tra 45,7 por mil (um número tambémpreocupante) de crianças brancas11.

Em uma situação de desigualdade tão explícitacomo a nossa, o Brasil não pode mais continuar aignorar que “é a segunda maior nação negra domundo, que recebeu 4 milhões de escravos e foi oúltimo a abolir a escravidão”, como afirma HélioSantos, do GTI para Valorização da População Ne-gra. “O Brasil se permite ignorar a população ne-gra”, diz Edna Roland, presidente da Fala Preta,uma organização de mulheres negras que desen-volve projetos principalmente na área de saúde.Não temos, por exemplo, dados sistemáticos so-bre as razões de morte e doença dos diferentes gru-pos da população. Segundo Immaculada Lopez,“o quesito cor só foi incluído na declaração denascimento e de óbito em 1997, e os primeirosdados ainda não foram processados. Seria essenci-al que o quesito também fosse incluído nos prontu-ários médicos. Pois só podemos combater os pro-blemas se os conhecermos”.

10 Organização Internacional do Trabalho/ HAAS, Francisco - O Trabalho Infantil Doméstico nas cidades de Belém, Recife e Belo Horizonte: um diagnóstico rápido, OIT, Brasília, DF, 2003.

11 Dossiê “Assimetrias Raciais no Brasil: alerta para a elaboração de políticas”, da Rede Feminista de Saúde

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setembro de 2003 7

(em R$ milhões)

A questão da saúdese agrava quando se

trata da anemiafacilforme. A doençaafeta especialmentea população negra ea estimativa oficial éde 8 mil doentes e 2

milhões deportadores

PROGRAMA ALOCADOS EXECUTADOS %

EXECUTADO

SAÚDE DA FAMÍLIA

Saúde da Família 3,6 1,8 50,8

Ações de Saúde da Família 71,8 24,2 33,7

ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL

Alimentação Saudável e Nutrição 365,3 184,6 50,5

SAÚDE DO JOVEM

Saúde do(a) Adolescente e do(a) Jovem 2,8 0 0

Publicidade de Utilidade Pública 3,5 0 0

SAÚDE DA CRIANÇA E ALEITAMENTO MATERNO

Aleitamento e Banco de Leite 2,8 0 0

Multivacinação 25 14 56,3

Publicidade de Utilidade Pública 10,3 3,8 37,6

E a questão da saúde se agrava quando se tra-ta da anemia falciforme “causada por uma alte-ração nos glóbulos sangüíneos vermelhos que,em vez de apresentarem a forma normal, redon-da, ganham o formato de foice. Isso faz com quese aglomerem, obstru-indo os vasos, dificul-tando a circulaçãosangüínea e provocan-do crises de dor. A ane-mia ocorre pela des-truição precoce dessesglóbulos, o que exige,em compensação, umaumento do esforçocardíaco. O baço, quefiltra o sangue, também é afetado, favorecendoinfeções. Outras complicações comuns são asrenais, cardíacas, ósseas, além dos acidentesvasculares cerebrais. Essas manifestações clíni-cas variam de pessoa para pessoa, e sua evolu-ção depende das condições socioeconômicas eda qualidade de vida do paciente.

A doença afeta especialmente a população ne-gra, e a estimativa oficial é de 8 mil doentes e 2milhões de portadores do traço falcêmico, umacaracterística genética que, quando simples, nãoprovoca a doença mas pode ser transmitida de

pai para filho. As entidades do movimento ne-gro, porém, chegam a apontar 50 mil doentes e10 milhões de portadores. Segundo o Ministé-rio da Saúde, estima-se que 80% dos doentesmorrem antes dos 30 anos de idade e que 85%das mortes por anemia falciforme não sãoregistradas como tal.

Desconhecida por quase toda a população epelos próprios profissionais de saúde, a doençaainda não conseguiu mobilizar a atenção das au-toridades. “A medida mais urgente é o diagnós-tico precoce da doença, que pode se manifestara partir dos seis meses de idade”, explica a mé-dica Sara Saad, coordenadora do Comitê Asses-sor de Hemoglobinopatias, do Ministério daSaúde. Segundo a especialista, as complicaçõesmais graves podem ser fatais, mas são estáveis. Equanto mais precoce o diagnóstico, maior achance de prevenção. Apesar de o governo fe-deral ter anunciado o Programa de AnemiaFalciforme, em 1996, o mesmo ainda não foiformalizado e não tem previsão orçamentáriaprópria. No orçamento em execução deste anoe de responsabilidade do Ministério da Saúdeestão os programas e projetos que atingem dire-tamente crianças e adolescentes.

Além da anemia falciforme, chamam a aten-ção as doenças que apresentam componentes ge-

Ministério da Saúde - Orçamento 2003T abela 3

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8 setembro de 2003

Algumas políticaspossuem projetos

que certamenteatendem à população

negra. Não porquehaja uma destinação

específica, masporque são dirigidas

à parcela maiscarente ou em

situação de riscosocial

8

néticos manifestados mais intensamente entre osnegros, como a hipertensão ou diabete. Sem fa-lar das doenças agravadas pelas condições socio-econômicas, especialmente desfavoráveis para agrande maioria da população negra. Especialis-tas e governo concordam, porém, que não é ocaso de criar um programa especial para essaparcela da população em relação a cada doen-ça. A saída é considerar as características étni-co-raciais, comportamentais e culturais no mo-mento de diagnosticar ou tratar qualquer do-ença, bem como nos programas de prevenção.“A população negra deve saber quais as doençasa que está mais sujeita,quais são os riscos e oque fazer para evitar osproblemas”, diz AmaroLuiz Alves, represen-tante do Ministério daSaúde no GTI para Va-lorização da PopulaçãoNegra. Ele reconhece,porém, que esses avan-ços não estão ocorren-do. A razão é clara: ape-sar da urgência, o de-bate da questão racial ainda não é tratado comoprioridade no país.

Desigualdade social e de corAlgumas políticas possuem projetos que certamen-

te atendem à população negra. Não porque haja umadestinação específica, mas porque são dirigidas à par-cela mais carente ou em situação de risco social. Essaconclusão é possível considerando os dados já apre-sentados que demonstram serem os negros e negrasas maiores vítimas da exclusão social.

Entre eles, milhões de crianças e adolescentesvivem com suas famílias nos bolsões de pobreza.São vítimas de todas as formas de crueldade, des-de a desnutrição e a mortalidade infantil à faltade equipamentos sociais. E quem lhes socorre?

O traficante, o pai de rua, o “gato” que os levajunto com suas famílias para o trabalho escravo;o rufião, cafetão ou cafetina. Todos esses tipos cri-minosos aliciam crianças e adolescentes que, porestarem em situação permanente devulnerabilidade, terminam vítimas da crueldadehumana e social.

Essa situação, reafirmamos, vem sendo enfrenta-da através de iniciativas, tanto governamentais quan-to não-governamentais. O problema é que não con-seguimos sair do plano formal e legal, onde já avan-çamos bastante. Somos signatários de vários tratadosinternacionais de garantia dos direitos humanos,como por exemplo a Convenção 111 da Organiza-ção Internacional do Trabalho, que trata da discri-minação em matéria de emprego e profissão; a Con-venção relativa à luta contra a discriminação no cam-po do ensino; a Convenção internacional sobre a eli-minação de todas as formas de discriminação racial;a Convenção internacional dos direitos da criança edo adolescente; a Convenção 138 da OIT para aeliminação do trabalho infantil; e a Convenção 182para erradicação das piores formas de trabalho in-fantil, que especifica a erradicação da prostituiçãoinfantil; além de outros tratados que asseguram osdireitos sociais, econômicos e culturais.

Não se pode, portanto, negar que o Brasil já avan-çou no sentido de elaborar e aprovar instrumentospara combater tantas violações. A própria Consti-tuição brasileira, no artigo 3°, define como “objeti-vos fundamentais da República Federativa do Bra-sil: I) construir uma sociedade livre, justa e solidá-ria; II) garantir o desenvolvimento nacional; III)erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir asdesigualdades sociais e regionais; IV) promover obem de todos, sem preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-minação”; e, no artigo 5°, garante o direito de to-dos à igualdade perante a lei.

O Brasil também já aprovou um Plano Naci-onal de Direitos Humanos; um Plano Nacionalde Combate à Exploração Sexual de Crianças e

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Adolescente e as Diretrizes Nacionais para aErradicação do Trabalho Infantil. No governoLula, temos as Secretarias Especiais da Mulher;da Criança e do Adolescente; da Promoção daIgualdade Racial e o Ministério da AssistênciaSocial.

Toda essa mudança formal e legal refletiu-setambém no processo orçamentário e essas ques-tões foram inseridas no PPA 2000/2003, recen-temente no PPA 2004/2007, e também trans-formadas em programas e projetos na Lei Orça-mentária Anual. Sendo assim, por que a situa-ção continua tão grave? É preciso analisar a exe-cução orçamentária. A erradicação do trabalhoinfantil possui, no Ministério do Trabalho, ru-bricas orçamentárias num total de R$ 2,5 mi-lhões, mas a execução no primeiro semestre de2003 ficou em R$ 309,5 mil.

No MPAS/MAS, o valor para o mesmo obje-tivo é de R$ 509,4 milhões, com execução deR$ 179,1 milhões. O projeto geração de ocu-pações produtivas para famílias de crianças aten-didas pelo programa de erradicação do traba-lho infantil recebeu R$ 49,1 milhões, mas teveexecução zero, assim como o projeto Brasil Jo-vem, que teve R$ 1,3 milhão alocado, e o pro-jeto Implantação de Centros de Juventude, comR$ 3,9 milhões.

No Ministério da Justiça e na Presidência daRepública estão alocados 31 projetos queviabilizariam o trabalho junto a adolescentes emconflito com a lei e a defesa e garantia de direi-tos de crianças e adolescentes; todos eles tive-ram execução zero no primeiro semestre de 2003e o governador de São Paulo não pára de reafir-mar na grande imprensa que o responsável pelasituação dos internos na Febem é o Estatuto daCriança e do Adolescente, pedindo o rebaixa-mento da idade penal.

Também no Ministério dos Esportes estão loca-lizados projetos importantíssimos, como:

• Combate ao abuso e à exploração sexual decrianças e adolescentes;

• Campanha educativa de combate ao turis-mo sexual;

• Publicidade de utilidade pública;• Reinserção social do adolescente em confli-

to com a lei;• Produção de material esportivo para adoles-

centes infratores - cidadania ao menor;• Esporte solidário;• Esporte em comunidades carentes;• Capacitação de recursos humanos em esporte;• Promoção de eventos esportivos de identi-

dade cultural e criação nacional;• Implantação de infra-estrutura esportiva em

assentamentos rurais.Para o Ministério dos Esportes, a dotação or-

çamentária foi de R$ 246,7 milhões e a execuçãosemestral foi de R$ 2,06 milhões, correspon-dendo a 0,84% do total.

Uma história curta e tímidos resultadosUm olhar sobre a implementação dos direi-

tos de crianças e adolescentes no Brasil mos-tra, de forma muito clara, por que os resulta-dos no sentido de combater o racismo pare-cem não impactar a realidade. Desde o BrasilImpério, dado o sistema de escravidão, a visãonegativa sobre crianças e adolescentes afro-brasileiros se fortaleceu com as leis da aboli-ção dos escravos, particularmente a Lei do Ven-tre Livre, que fez da Roda dos Expostos12 seureduto principal.

No Brasil República do século XIX, a questãoda criança pobre já era entendida como proble-ma social, dadas as circunstâncias históricas da pro-clamação da República e de suas causas advindas

12 A Roda dos Expostos era um dispositivo cilíndrico rotativo, instalado numa casa e que tinha duas possibilidades, para fora ou para dentro do recinto, onde eram colocadas as crianças enjeitadas anonimamente e, a partir daí, tornavam-se tuteladas pelas Santas Casas de Misericórdia.

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13 GRACIANI, M.S.S. Pedagogia Social de Rua. In Prospectiva – Instituto Paulo Freire. São Paulo, Cortez, 1997.14 BUARQUE, Cristóvam – “Da modernidade técnica à modernidade ética: revolução nas prioridades” . Inesc, Brasília, 1993

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A proteção integral éum preceito que não

se concretiza parametade da população

brasileira, que énegra e,

comprovadamente, amais excluída dosbenefícios sociais

da abolição da escravatura e da imigração de mão-de-obra européia, dentre outras, que geravam umcontigente significativo de crianças na rua, o queera objeto de muitas críticas em jornais e crônicasque denunciavam essa situação. Por dó ou pormedo, tentavam protegê-las, controlando social-mente a situação, por meio de inúmeras institui-ções de assistência social ou da repressão.

Durante a RepúblicaVelha, predominava noescalão dirigente a men-talidade de que “proble-ma social é caso de polí-cia” 13 , conforme as pa-lavras do próprio presi-dente da República àépoca. Em 1923, foipromulgada a Lei Orça-mentária 4.242, que autorizava serviços de assis-tência e promoção à infância abandonada e delin-qüentes. Neste mesmo ano, criava-se o primeiroJuízo de Menores do Brasil e em 1927 foi institu-ído o Código de Menores, também conhecidocomo Código Melo Matos, que permaneceu todoo restante do século.

Nas décadas de 30 e 40, foram criadas inúme-ras instituições. Por exemplo , em 1938 , a Casado Pequeno Jornaleiro para crianças que trabalha-vam nas ruas; em 1940, criado o Serviço de Aten-dimento ao Menor – SAM, junto ao Ministérioda Justiça, para atuar no combate à criminalidadee na recuperação de delinqüentes. No período daditadura militar, os resultados trágicos do SAMdemonstram a sua falência mas dão origem ao nas-cimento da primeira política nacional: a “Políticade Bem-Estar do Menor”, executada nos estadospelas Febens, que ainda permanecem em algunsestados como São Paulo, coexistindo contradito-riamente com o que preconiza o Estatuto da Crian-

ça e do Adolescente - ECA . Portanto, a concepçãodo Código de Menores somente passa a ser questi-onada com a chegada dos ventos da redemo-cratização do país, nos anos 80, em prol de umaconcepção nova que se consolida no ECA como pro-teção integral.

A proteção integral é um preceito que não se con-cretiza para metade da população brasileira, que énegra e, comprovadamente, a mais excluída dos be-nefícios sociais. Um investimento social com inver-são de prioridades, como já dizia o atual ministroda educação, Cristóvam Buarque14, no sentido dagarantia dos direitos universais de crianças e adoles-centes, estaria contribuindo para alterar essa reali-dade. Somente investindo em direitos como edu-cação, saúde, moradia, trabalho e emprego (paraos pais), assistência social e reforma agrária sería-mos capazes de abalar a estrutura social injusta eexcludente de modo que milhões de afro-brasilei-ros e brasileiras, crianças e adolescentes, pudessemchegar a uma fase de juventude vivenciando a con-dição de cidadania plena.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, se emplena vigência no sentido do cumprimento de suasdeterminações, funcionaria como um instrumen-to importantíssimo e contribuiria para acelerar oprocesso de conquista da cidadania. Mas o ECAentrou em vigor em 1990 e a criação de rubricasorçamentárias com recursos para assegurar oreordenamento institucional vem tendo alocaçãoprecária. Durante toda a década de 90, o olhar doPoder Executivo sobre os direitos da criança e doadolescente, expresso nas propostas de lei orçamen-tária enviadas ao Congresso Nacional, permaneceuimpregnado pela percepção de tratar estes direitoscomo ação de assistencialismo e de justiça, e não decidadania. Essa concepção alongou-se por toda adécada nas propostas do Poder Executivo, sem queo Congresso Nacional a alterasse, respaldado na con-

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O Fundo Nacional daCriança e do

Adolescente – FNCAsó recebeu recursosem 1998, através de

uma emenda daFrente Parlamentar

pelos direitos dacriança e do

adolescente, no valorde R$ 12 milhões, e

somente 31,18%foram liberados pelo

Poder Executivo

cepção de uma nova legislação, o Estatuto da Cri-ança e do Adolescente, por ele mesmo aprovado.

Aqui também, antes de se propor a garantiade direitos, o que se fez foi priorizar as medidassocioeducativas para o trabalho com o adoles-cente autor de ato infracional e a única rubricaorçamentária que tivemos, de 1995 a 1999, vi-sava apenas à medida de internação. Nenhumarubrica havia que propiciasse o desenvolvimen-to de uma proposta pedagógica junto a esses ado-lescentes. Durante quatro anos seguidos, a pre-ocupação foi a construção de unidades de inter-nação e foram alocados recursos somente no De-partamento da Criançae do Adolescente doMinistério da Justiça.

Coexistindo com oFundo Nacional da Cri-ança e do Adolescente –FNCA, sob a gestão doConselho Nacional dosDireitos da Criança –Conanda, no qual foiaprovada a inclusão deações para a “Promoçãoe Defesa dos Direitos daCriança e do Adoles-cente” e para o “Apoioao Atendimento de Adolescentes Infratores”, asituação não foi alterada. O FNCA só recebeurecursos em 1998 através de uma emenda daFrente Parlamentar pelos direitos da criança e doadolescente, no valor R$ 12 milhões, e somente31,18% foram liberados pelo Poder Executivo.O próprio Conanda só teve recursos para seu fun-cionamento em 1999, também através de umaemenda negociada pela Frente Parlamentar, ten-do o deputado Hélio Bicudo disponibilizado R$500 mil de suas emendas pessoais.

O mesmo se deu com outras demandas sociaispara as quais era necessário priorizar recursos eimplementar programas visando ao enfren-

tamento da pobreza como uma questão ética,como por exemplo, a luta pela erradicação do tra-balho infanto-juvenil, que só entrou no orçamen-to da União em 1997, como “Apoio ao Combateao Trabalho Infantil (bolsa-escola)”. Essa propos-ta não tinha a concepção de enfrentamento atra-vés da política de educação, mas sim da políticaassistencial, uma vez que o Bolsa-Escola perma-neceu no Ministério da Previdência e AssistênciaSocial/FNAS. A partir de 2000, a erradicação dotrabalho infanto-juvenil passou a integrar tam-bém as ações do Ministério do Trabalho, e paraos próximos quatro anos junta-se a esses a Presi-dência da República.

Outro problema grave, a exploração sexualde crianças, somente se tornou uma ação na leiorçamentária a partir de 2000, localizada noDepartamento da Criança e do Adolescente doMinistério da Justiça, no Ministério da Previ-dência e Assistência Social/SAS, no Ministériodo Turismo e no Ministério do Esporte. Nessesdois últimos, apenas a ação da Campanha deCombate ao Turismo Sexual. Para os próximosquatro anos, essa ação sai do Ministério do Es-porte e passa a integrar, além do Ministério daPrevidência e Assistência Social/SAS, o Minis-tério do Turismo, a Presidência da República eo Ministério da Educação. Mas seria importanteque também est ivesse no Ministér io daIntegração Nacional, cuja ação visa ao “desen-volvimento da faixa de fronteiras”, local identi-ficado como de alto índice de exploração sexualtanto pela pesquisa da sociedade civil nessas re-giões como pela Comissão Parlamentar Mista deInquérito - CPMI - que atualmente está investi-gando o tráfico de mulheres e crianças.

Quanto às políticas específicas para a popula-ção negra, a proposta orçamentária para 2004,que tramita no Congresso Nacional, possui umasérie de programas e ações que as organizaçõessociais como o Movimento Negro precisam co-nhecer, se apropriar e monitorar.

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Na Presidência da República/Secretaria Espe-cial de Promoção da Igualdade Racial e no Minis-tério da Assistência Social foram alocados R$ 18,9milhões para o Programa Gestão da Política de Pro-moção da Igualdade Racial, contendo 8 ações quebeneficiam diretamente aos afro-brasileiros, comoconcessão de bolsas de estudo no combate à dis-criminação, apoio a iniciativas de promoção daigualdade racial e apoio à capacitação de afro-des-cendentes em gestão pública.

No Ministério do Desenvolvimento Agráriotemos uma ação prevista para “pagamento de in-denização aos ocupantes das terras demarcadas etituladas aos remanescentes de quilombos”, no va-lor de R$ 3 milhões; e para a “promoção da igual-dade de raça, gênero e etnia no desenvolvimentorural”, com R$ 300 mil. No Ministério da MeioAmbiente encontra-se o programa “comunida-des tradicionais”, com uma alocação de R$ 800mil para “Gestão Ambiental em TerrasQuilombolas”.

No Programa Cultura Afro-Brasileira foramalocados R$ 9,7 milhões: R$1,4 milhão no Mi-nistério da Educação, para “apoio à produçãode materiais didáticos e pedagógicos para esco-las situadas nas comunidades remanescentes dequilombos” e “apoio à reestruturação de estabe-lecimentos públicos nas comunidades remanes-centes de quilombos”; e R$ 8,3 milhões no Mi-nistér io da Cultura/Fundação CulturalPalmares, para “preservação da cultura afro-bra-sileira” sendo, desses, R$ 3,3 milhões para des-pesas com pessoal.

Algumas ações gerais poderão beneficiar a po-pulação negra, muito embora isso não esteja es-pecificado. No Ministério da Educação, temos o“apoio a grupos socialmente desfavorecidos paraacesso à universidade”, com R$ 7 milhões; no Mi-nistério da Assistência Social, o “funcionamentodos núcleos de atendimento integral à família”,com R$ 820 milhões; e no Ministério da Cultu-ra, R$ 10,2 milhões para “fomento a projetos de

produção e difusão cultural em áreas habitadaspor população em situação de vulnerabilidade so-cial”. Também no Ministério do Esporte, o pro-grama “Esportes de Criação Nacional e de Iden-tidade Cultural” possui R$ 750 mil.

É importante chamar a atenção para o fato deque algumas ações importantes, como por exem-plo, o tratamento e as pesquisas sobre anemiafalciforme, não estão lá especificadas. E ainda,que a Comissão de Defesa do Consumidor, MeioAmbiente e Minorias aprovou a proposta (PLP217/01) de criação do Fundo Nacional para oDesenvolvimento de Ações Afirmativas - FNDAA,de autoria do deputado Luiz Alberto (PT-BA),que prevê a utilização do Fundo preferencialmen-te para o desenvolvimento de ações voltadas àpopulação negra, em especial os segmentos situ-ados abaixo da linha de pobreza indicada peloÍndice de Desenvolvimento Humano - IDH, eque tenham no registro de nascimento a deno-minação de pretos, negros ou pardos.

Para concluir, vale lembrar que a execução des-ses recursos exige uma mobilização permanenteda sociedade. Logo após a aprovação da lei peloCongresso, e a sanção presidencial, o Presidenteda República contingencia parte do total geralaprovado, respaldado pela Constituição, visan-do assegurar uma reserva para possíveis emergên-cias sociais. Portanto, é muito importante man-ter uma articulação forte de apoio, de modo queos grupos afro-brasileiros, em especial osquilombolas, tenham colaboração técnica paraa elaboração e apresentação de projetos queviabilizem o acesso dos recursos e a sua execução.

Jussara de GoiásAssessora de Política da Criança e do Adolescente

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