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Boletim Malala n.3 v.1 2014

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Boletim de artigos e resenhas de livros e filmes sobre o oriente Médio e o Mundo Muçulmano

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    Malala n.3 v.1 dez. 2014

    boletim do Grupo de Trabalho Oriente Mdio e Mundo Muulmano (GTOMMM)

    Laboratrio de Estudos da sia (LEA)

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH)

    Universidade de So Paulo (USP)

    Comisso editorial

    Ariel Finguerut

    Cila Lima

    Danilo Guiral Bassi

    Natlia Nahas Carneiro Maia Calfat

    Coordenao

    Peter Robert Demant

    Capa

    Garotos em Hebron/al-Khalil

    foto cedida por Danilo Guiral Bassi

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    Malala Yousafzai no dia 12 de julho de 2013, ao completar dezesseis anos, falou no plenrio das Naes Unidas sobre educao, luta e coragem, declarando, logo no incio, que no sabe ao certo o que as pessoas esperam dela.

    Malala desperta desconfianas e tambm expectativas. Com seus 16 anos recm-completos, ela pode ainda mudar de opinio, de postura ou at mesmo pode rever suas bandeiras e relao com o isl. Portanto sabemos dos riscos que estamos aceitando ao escolher Malala como nome de nosso boletim eletrnico.

    Sua trajetria, de menina paquistanesa que, no dia 9 de outubro de 2012, foi alvejada no rosto, em ataque assumido pelo grupo extremista Talib, em resposta sua luta por educao, tanto pela internet como em dimenso internacional, com divulgao pela grande mdia, at seu discurso na ONU em comemorao aos seus 16 anos e recuperada do atentado desperta grande comoo. O mundo conheceu a luta dessa jovem muulmana por educao, igualdade e contra o extremismo religioso. Sem se deixar vencer ou silenciar (j que se salvou do ataque), nem se colocando como vtima, nem prometendo vingana ou declarando guerra, Malala mostrou a fora de suas (delicadas, mas assertivas) palavras, declarando na ONU que ela, Malala, uma garota entre muitas.

    Para ns, Malala mais do que um smbolo poltico uma inspirao acadmica. Ela nos leva a pensar que podemos transcender e vencer preconceitos, superar esteretipos e criar um espao para discusso e troca de ideias sem medo, com pluralidade, coragem e abertura, sem abrir mo de textos claros, de pesquisas srias e de debates com ideias que muitas vezes podem ser conflitantes sobre Oriente Mdio e Mundo Muulmano.

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    Os artigos publicados so de inteira responsabilidade de seus autores. As opinies neles emitidas no exprimem, necessariamente, o ponto de vista do boletim Malala

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    SUMRIO

    O MXIMO QUE ISRAEL EST DISPOSTO A OFERECER NO CHEGA AO MNIMO QUE OS PALESTINOS ESTO

    DISPOSTOS A ACEITAR E VICE-VERSA ENTREVISTA DO PROF. DR. SAMUEL FELDBERG

    (UNIVERSIDADE DE SO PAULO) AO BOLETIM MALALA 3

    IMPERIALISMO E GUERRA CIVIL NO MUNDO RABE: A TRAGDIA SRIA APORIAS E CONSEQUNCIAS DA

    FALTA DE INTERVIR (PETER DEMANT UNIVERSIDADE DE SO PAULO) 17

    BETWEEN THE TWO WORLDS, PALESTINIANS IN ISRAEL (ALCINDO GABRIEL FRANCISCO

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO) 45

    CONTRA A LIMPEZA TNICA E O ESQUECIMENTO (SORAYA MISLEH UNIVERSIDADE DE

    SO PAULO) 61

    A RESPONSABILIDADE DE PROTEGER EM SITUAO DE OCUPAO ESTRANGEIRA: PALESTINA DEBAIXO

    DO JUGO DE ISRAEL (PABLO ZAMORA PONTIFCIA UNIVERSIDADE DO PERU) 69

    DESENHANDO O CONFLITO ISRAEL-PALESTINA: NARRATIVAS E REPRESENTAES EM HQS (PATRCIA

    RANGEL UNIVERSIDADE DE SO PAULO) 77

    QALNDIA: MURO FECHADO (MAIT LAMESA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA) 109

    O CONFLITO ENTRE ISRAEL E PALESTINA EM 2014: A SOLIDARIEDADE BASTA? (LUCIANA SAAB

    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA PROGRAMA SANTIAGO DANTAS) 119

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    FROM EXCLUSIVITY TO EXCLUSION: THE CONSTANT INTERPLAY OF THE ISRAELI-PALESTINIAN POLITICS

    (SOTIRIS S. LIVAS IONIAN UNIVERSITY) 125

    RESENHA: WITH GOD ON OUR SIDE, DE PORTER SPEAKMAN JR. (MAGNO PAGANELLI UNIVERSIDADE

    PRESBITERIANA MACKENZIE) 129

    RESENHA: MY PROMISED LAND: THE TRIUMPH AND TRAGEDY OF ISRAEL, DE ARI SHAVIT (DANIELLA

    KOHNEN ABRAMOVAY NEW YORK UNIVERSITY) 137

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    O MXIMO QUE ISRAEL EST DISPOSTO A OFERECER NO

    CHEGA AO MNIMO QUE OS PALESTINOS ESTO

    DISPOSTOS A ACEITAR E VICE-VERSA

    Entrevista do Prof. Dr. Samuel Feldberg ao boletim Malala1

    Boletim Malala: Geralmente um ponto de partida de nossas entrevistas falarmos da

    formao de nosso entrevistado. O senhor estudou em Israel?

    Samuel Feldberg: Eu estudei em Israel, minha graduao foi na Universidade de Tel

    Aviv. Eu morava no Brasil e consegui uma bolsa para estudar em Israel e como eu j

    estudava numa escola judaica aqui em So Paulo eu j falava e escrevia em hebraico

    ento foi um processo relativamente simples de adaptao. A graduao foi em Israel,

    em Cincia Poltica e Histria, depois, em 1979, eu voltei ao Brasil, no auge do Regime

    Militar. Descobri que no era muito vivel ser cientista poltico no Brasil, naquela poca,

    ento, como eu falava ingls fluente, eu fui trabalhar na rea de exportao da

    Companhia Suzano. E depois quando eu fiz 40 anos eu decidi voltar faculdade e fazer o

    mestrado e o doutorado na USP. Nesse momento, ao voltar para a faculdade eu sabia

    exatamente o que eu queria fazer. E eu sempre pensei no Oriente Mdio, sempre fui um

    realista e por conhecer a regio e falar a lngua, eu me especializei nesta regio.

    B.M.: A sua imagem sobre o Oriente Mdio mudou depois da experincia de morar em

    Israel?

    S.F.: Ah, sim, claro. Todo mundo projeta uma imagem. Mas de fato a imagem que eu tinha

    naquela poca no mudou muito porque eu vivi numa poca relativamente benigna. Em

    1 Entrevista realizada no dia 3 de junho de 2014 por Cila Lima e Ariel Finguerut.

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    comparao aos dias de hoje. Naquela poca um atentado terrorista era o sequestro de

    um nibus (ningum explodia nibus) e a presena israelense nos territrios era muito

    amena, frequenta-se e podia se fazer compras nos territrios ocupados e os palestinos

    trabalhavam em Israel. Voc no entrava num restaurante ou oficina mecnica ou

    marcenaria, que no tivesse palestinos trabalhando. Era muito corriqueiro a presena da

    populao palestina.

    B.M.: Sobre sua atuao como pesquisador e professor, o senhor atua no PPG

    Diversidades Intolerncias e Conflitos? Qual a proposta do programa, que tipo de

    pesquisadores pretende formar?

    S.F.: O programa interdisciplinar ento a nossa inovao est na forma como as aulas

    so ministradas. Todas as aulas so ministradas por um professor com a participao de

    outros dois professores de duas outras reas. Cada professor d 1/3 das aulas do curso

    com a participao dos outros 2 colegas de outras disciplinas. Esta a inovao. Ns

    proporcionamos de fato uma abordagem interdisciplinar. Ento nos reunimos

    professores de diferentes reas, cientista poltico, socilogo, psiclogo, linguista e de

    outras reas fazendo combinaes das mais variadas. Sempre com o enfoque na

    diversidade. O direcionamento das pesquisas variado, depende da perspectiva do

    curso e da pesquisa que o candidato est promovendo. Quando eu participo, h

    geralmente o tema dos conflitos envolvido, que minha especialidade, mas os trabalhos

    dialogam com outras reas, como por exemplo, tem professores que trabalham com

    gnero. Agora no segundo semestre eu vou propor uma pesquisa voltada para os

    instrumentos de ensino em Israel, na Autoridade Palestina e no Brasil tentando

    entender como visto o outro (ou, talvez, como no visto o outro) nos instrumentos

    de ensino. Ento poderemos discutir, por exemplo, a figura do Palestino na bibliografia

    escolar israelense. A figura do judeu na bibliografia palestina e a figura do negro na

    bibliografia brasileira.

    B.M.: Falemos agora mais diretamente dos desafios e do conflito entre Israel e Palestina.

    Na sua perspectiva, faz sentido falarmos em negociaes de paz? Quais seriam as

    precondies? Quanto distante estamos de uma paz possvel e permanente?

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    S.F.: No momento com certeza no. Se olharmos no exatamente para os governos, mas

    para os dois grupos que representam os dois lados e como eles esto articulados,

    certamente no h sentido nenhum em desperdiar recursos e esforos numa

    negociao. Est claro que no haver nenhum resultado.

    B.M.: Podemos dizer que no h um denominador comum mnimo?

    S.F.: Exatamente, a frase que caracteriza melhor o problema destas negociaes

    sempre: o mximo que Israel est disposto a oferecer, no chega ao mnimo que os

    Palestinos esto dispostos a aceitar e vice-versa. Ento se Israel no inclui a questo dos

    refugiados, desagrada o lado palestino e se os palestinos cedem na questo dos

    refugiados - Mahmud Abbas perde a legitimidade sob o argumento de que ele est

    somente representando os palestinos da Cisjordnia e da Faixa de Gaza e no a Dispora

    Palestina. Ento, isso de partida j elimina a negociao, no momento que voc define

    quais so os itens que vo ser negociados ou no negociados.

    B.M.: Quais so esses itens negociveis e no negociveis?

    S.F.: Basicamente as negociaes devem ser construdas sobre um nmero de pilares. A

    questo dos refugiados. O esgotamento da questo de 1947. A negociao precisa

    esgotar a questo de 1947, no se est discutindo se Israel tem ou no o direito de

    existir na regio e sim quais sero as fronteiras de um Estado judeu ao lado de um

    Estado palestino. Esse o teor das negociaes. A aceitao por parte dos palestinos de

    Israel como o lar nacional do povo judeu prcondio do lado israelense, pois eles no

    esto dispostos a reabrir a questo de 1947 (se Israel deveria ou no deveria ser criado).

    Essa questo est ligada tambm a questo dos refugiados, pois dependendo da soluo

    para os refugiados essa questo que voc est reabrindo. A questo das fronteiras, a

    definio de fronteiras. At hoje Israel o nico pas do mundo que no tem fronteiras

    definidas, elas so baseadas nos armistcios de 1949. A questo dos locais sagrados. No

    s em Jerusalm, normalmente se fala s de Jerusalm, mas h uma seria de locais que

    so considerados sagrados por Israel, que esto na Cisjordnia, que o local onde os

    judeus veem a sua origem como nao. Como vai ser esse acesso, por exemplo, Hebron,

    os stios relacionados a personagens bblicos, so questes complicadas de serem

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    definidas e resolvidas, porque elas tm um componente abstrato muito grande. Se esse

    poo de gua ficar deste lado ou daquele da fronteira fcil de resolver, eventualmente

    at uma questo financeira, pode-se pagar uma planta de dessalinizao e pode ficar

    com o poo. Agora os problemas menos tangveis so os mais difceis de serem

    resolvidos.

    B.M.: Poderia haver alguma negociao direta? Por exemplo, os palestinos poderiam

    negociar o acesso aos locais considerados sagrados por Israel e Israel poderia negociar o

    freio expanso das colnias?

    S.F.: Sem dvida! Isso tudo parte de uma negociao que precisa ser feita de boa f e

    com a percepo, de ambos os lados, que ela ir vingar no futuro. O que eu vejo nesse

    processo um circulo vicioso. Ambos os lados tm receio de ceder na negociao,

    porque acreditam que a negociao no dar certo e a prxima etapa das negociaes

    vai partir do ponto que j foi cedido. Esta a crtica que vem recebendo os negociadores

    do perodo Ehud Olmert.

    B.M.: Ento podemos dizer que o fator confiana seja decisivo?

    S.F.: Sem dvida nenhuma! No h possibilidade de negociao sem uma base mnima

    de confiana mutua. Que o que ns vemos que aconteceu na Jordnia, onde essa

    confiana de certa forma j existia, pois sempre foi um pas menos hostil, que mais tinha

    em comum com os israelenses, inimigo palestino comum etc. E o que aconteceu com o

    Egito. Quando foi que se rompeu esse estigma? A ida de Sadat Jerusalm e mesmo

    assim isso precisou de uma enorme presso americana para concretizar os acordos.

    B.M.: Como o senhor citou de passagem os EUA, como mediador, hoje em dia como o

    senhor v o papel dos EUA nestas negociaes?

    S.F.: O governo Obama est pagando hoje o preo de uma combinao do fracasso da era

    Clinton, que traz o questionamento de porque se envolver num processo to espinhoso

    quanto esse? Se o Clinton que tinha tantas possibilidades de chegar num acordo e no

    conseguiu chegar. Ento para que o esforo? Alm disso, Obama paga o preo do apoio

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    incondicional as polticas israelenses da era Bush. Ao mesmo tempo se tem o

    desincentivo causado pelo fracasso da era Clinton e a necessidade de desmantelar uma

    srie de elementos criados ao longo de dois mandatos de apoio praticamente

    incondicional a Israel. Ento da mesma forma que os Palestinos querem partir das bases

    das ofertas que o Olmert fez, o Netanyahu quer partir das bases de todo respaldo que ele

    recebeu do Bush. Porque ele iria abrir mo das cartas trocadas, as questes dos

    assentamentos, do reconhecimento da provvel incluso dos assentamentos em

    qualquer fronteira definida entre Israel e os palestinos. Os israelenses j tm isso como

    um dado, isso j est garantido, eles no querem colocar isso em discusso.

    B.M.: O senhor no acha que Israel j est definindo suas fronteiras? Principalmente,

    considerando a construo do muro e agora com aplicao, por parte do governo de

    Israel, em concorrncia e investimentos para construo de mais assentamentos?

    S.F.: Sem dvida, as fronteiras de Israel esto sendo definidas desde 1967. O Muro de

    certa forma uma iluso. Ele extremamente controverso. Se voc for a regio ao sul da

    montanha de Hebron, parte sul da rea das colinas onde Hebron foi construda, envolve

    toda a zona do assentamento, no sei se vocs conhecem a histria? Tinha uma rea

    assentada ao sul de Hebron antes de 1947 e a populao judaica que vivia l foi morta ou

    expulsa durante a guerra de 1948. Quando os israelenses reconquistam esta rea em

    1967, os filhos daqueles que foram mortos voltaram para as casas que eles

    consideravam que tinham sido expulsos um espelho da histria dos refugiados

    palestinos. Eles recriam os assentamentos, uma enorme rea de populao judaica e

    nessa rea o muro no foi construdo. O muro vem descendo desde o norte, passa por

    Jerusalm, chega at Belm, tumba de Raquel, separa o que tem que ser separado em

    Hebron e ai ele para. Por qu? Porque esses colonos, que em muitos casos so muito

    radicais, eles veem o muro como um empecilho expanso de suas colnias. Ento o

    que no norte eles dizem que o muro uma barreira para impedir a entrada de

    terroristas palestinos, ali, ao Sul, eles dizem: deixa que a gente lida com os terroristas

    palestinos, o que ns no queremos um muro que nos diga que essa fronteira no

    podemos ir mais alm. Ento a histria do Muro muito simplificada, na maior parte

    dos lugares no um muro uma cerca, mas fotografar o muro para fazer toda a

    propaganda muito mais sex, aparece muito melhor na foto o muro do que a cerca.

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    Agora, onde o Muro foi construdo na maior parte da extenso da fronteira realmente

    no limite dos grandes assentamentos que foram construdos. So os parmetros

    formulados e aceitos por George W. Bush. Os grandes assentamentos vo ser includos

    dentro da linha verde do lado israelense quando eventualmente um acordo for assinado.

    A lgica aqui que se Israel efetivamente incorpora os grandes assentamentos, nos

    estamos falando de em torno de 90% da populao da Cisjordnia e em torno de 5% do

    territrio. E essa a proposta que mais avanou nas negociaes de troca equitativa de

    territrios, ento se incorpora os assentamentos, retira da Cisjordnia a maior parte da

    populao, deixa somente os assentamentos isolados, que so tambm os mais radicais.

    Que de qualquer forma teriam que ser retirados, porque seno se perpetua o problema e

    voc troca por reas equivalentes em outros pontos da fronteira. Em princpio a questo

    da fronteira a mais fcil de ser resolvida a no ser em alguns pontos muitos espinhosos

    e especficos, que precisa de uma soluo especfica para cada um deles. Mas a grosso

    modo a ideia de trocar a maior parte dos assentamentos por outros territrios e com

    isso retirar a maior parte da populao judaica da Cisjordnia resolve o problema das

    fronteiras.

    B.M.: Muitos crticos de Israel costumam comparar a situao do conflito IP como o

    Apartheid da frica do Sul (1948 a 1994). Neste sentido h iniciativas que propem

    boicotar e tentar isolar se no Israel mas algumas colnias e responder economicamente

    a expanso dos territrios. Como o senhor avalia possveis boicotes Israel?

    S.F.: Eu acho que um aspecto importante a desproporcionalidade que o tema tem na

    mdia. Se olharmos para o nmero de mortos no conflito israel-palestina, se somarmos

    todos os mortos, militares e civis desde 1947 voc tem o equivalente h 1/3 do nmero

    de mortos nos ltimos trs anos no conflito na Sria. E mais ou menos o mesmo nmero

    de pessoas assassinadas no Brasil no ltimo ano. Brasil e Sria tem nmeros

    equivalentes de assassinatos/ano. Ns estamos falando de mortos palestinos e

    israelenses nos ltimos 67 anos equivale ao nmero de mortos na Sria em 1 ano de

    conflito. Sem lembrar de Ruanda, Congo, no faltam exemplos de conflitos que so muito

    mais violentos e com um nmero muito maior de mortos. Na Sria j temos 9 milhes de

    refugiados (internos e externos). Em 1948/49 o nmero de deslocados civis foi de 700

    mil. Hoje um contingente 7x maior por causa da perpetuidade do conflito. O ponto

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    central notarmos como a exposio do conflito na mdia completamente defasada.

    Chega a ser um mistrio do porqu dessa exposio? O outro aspecto a capacidade de

    exposio dos eventos. As comunidades judaicas ao redor do mundo, de alguma forma,

    esto sempre vinculadas, no obrigatoriamente de apoio Israel. Hoje em dia,

    principalmente entre os jovens da comunidade judaica ao redor do mundo, h uma

    crtica muito grande s polticas do governo israelense. Isso no os transformam em

    antissionistas, mas muitas vezes so muito crticos s determinadas polticas

    israelenses. E os representantes rabes ao redor do mundo, principalmente os pases

    ricos em petrleo, tem muita capacidade de articulao. Ento o que temos uma

    grande capacidade de articulao muito grande que tornam desproporcional o interesse

    sobre a questo Israel Palestina.

    B.M.: Em torno dos fatores domsticos, recentemente o Hamas e o Fatah declararam um

    governo de unio e formaram uma coalizo para um governo de unidade. Quais as

    consequncias desta unidade para as negociaes com Israel? Como o senhor avalia essa

    articulao?

    S.F.: Num primeiro momento no vai haver nenhuma consequncia por que as

    negociaes j tinham sido interrompidas. Esse acordo entre o Hamas e o Fatah foi

    usado como o ltimo instrumento de legitimao para encerrar as negociaes. Porque

    elas no iam para lugar nenhum, ento melhor interromper as negociaes com uma

    boa desculpa. Mas no foi isso que levou ao final das negociaes ou ao seu fracasso. As

    negociaes fracassaram porque nenhum dos dois lados esta interessado em avanar.

    Na perspectiva israelense a unio FatahHamas motivo para legitimar o fracasso das

    negociaes. O que antes Israel dizia que no adiantaria fazer um acordo com o Fatah

    por que o Hamas no iria respeitar o acordo, agora isso mais reforado ainda porque o

    argumento agora que no adianta negociar com um governo que tem como membro

    uma organizao terrorista.

    B.M.: No seria possvel acreditar que o Hamas pode se transformar em um partido

    poltico? Ou uma vez grupo terrorista sempre grupo terrorista?

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    S.F.: No, veja o que aconteceu com o IRA na Irlanda ou mesmo o caso colombiano. No

    caso da Colmbia mesmo as negociaes ocorrendo o exercito segue enfrentando e

    lidando com aes de terrorismo. Ontem mesmo o exrcito colombiano atacou um

    reduto das FARC matando 7 membros terroristas ou no - e outros tantos foram

    presos. Nisso h um paralelo com aquilo que Israel vem fazendo. Quando h negociao

    se continua negociando, mas sem abrir mo daquilo que eles consideram como um

    direito que combater os grupos terroristas. Se o Hamas abandonar a prtica do

    terrorismo eles deixam de ser um grupo terrorista, mas isso precisa ser feito

    formalmente e isso pesaria na legitimidade do grupo uma vez que o Hamas se diferencia

    de outros grupos palestinos especialmente do Fatah, pela sua postura anticonciliatria.

    A plataforma do Hamas o que est na Carta do Hamas a substituio de Israel por

    um Estado Palestino. Eles no falam de um Estado palestino para conviver ao lado de

    Israel, por isso eu comecei dizendo que nas negociaes o que os israelenses exigem

    que no seja reaberta a questo de 1947 ou seja, Israel no est negociando com os

    palestinos o direito ou no da existncia de um Estado judeu. O ponto a ser negociado

    onde o estado Palestino ser criado ao lado do estado israelense. Quando se inclu o

    Hamas na discusso o que se refere o direito de existncia de Israel. O mesmo vale

    para o Hezbollah no Lbano.

    B.M.: O Hamas precisa de tempo para acreditar na luta poltica?

    S.F.: Eu diria que o que falta uma boa dose do efeito de 1967 no qual o principal efeito

    geopoltico da guerra foi o reconhecimento por parte dos pases rabes de que Israel no

    podia ser eliminado. Levou 20 anos para que os pases rabes reconhecessem que Israel

    no podia ser eliminado. Na guerra do Yom Kippur em 1973 foi, na viso do Sadat, uma

    tentativa de modificar o status quo e no de destruir o Estado israelense. Na relao com

    os palestinos, pelo menos com relao a esses grupos como o Hamas ou a jihad islmica

    ou o Hezbollah ainda falta este componente. Falta este componente reconhecerem que o

    estado israelense no pode ser destrudo. Enquanto elementos deste conflito

    acreditarem que o tempo est a seu favor eles podem achar que no conseguem

    destruir Israel em 10, 20 ou 50 anos, mas em 100 anos isso vai acontecer isso faz com

    que estes grupos no tenham razo para aceitar a presena de Israel na regio, por isso

    eles propem uma trgua de longo prazo e no um acordo de paz.

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    B.M.: Alguns dizem que esses grupos no so terroristas... Mas, o fato que a cada

    negativa aos acordos de paz, o povo palestino est perdendo (perdendo vidas, fronteiras

    e legitimidade). Israel est se fortalecendo, formando suas fronteiras, protegendo-se

    contra os terroristas, ento a populao de Israel est mais confortvel hoje,

    principalmente com a construo de muro e aplicao financeira do governo de Israel

    pelo aumento e solidificao dos assentamentos. O senhor acha possvel que esses

    grupos terroristas, Hamas e Hezbollah, tomem conscincia dessa necessidade do acordo

    de paz?

    S.F.: Ns voltamos para a questo da identidade desses grupos. Se esses grupos se

    identificam atravs da luta, se isso que diferencia esses grupos de outros grupos que

    aceitaram negociar, eles no vo ter nunca uma motivao para abandonar a luta,

    porque isso desqualifica o grupo e elimina a principal base da sua existncia. Qual a

    diferena entre o Hamas e o Fatah no momento em que os dois esto na autoridade

    palestina, se transformam em governo, tem que administrar o territrio e no pregam

    mais a luta armada contra um inimigo que era o horizonte. Eles se diluem dentro de uma

    estrutura administrativa e poltica. Crticos de Arafat dizem que ele (Arafat) nunca

    poderia ter feito um acordo com Israel, pois a legitimidade dele vinha da disposio para

    o conflito contra Israel. Ele perderia grande parte da legitimidade sobre a qual ele se

    construiu, se ele abrisse mo do conflito, seria visto como traidor da causa palestina.

    Agora, eu quase te interrompi com relao a denominao dos grupos como terroristas,

    porque isso no depende de quem diz ou quem no diz, terrorismo uma definio

    amplamente aceita e o que se discute a motivao para o grupo atuar como um grupo

    terrorista ou utilizar o terrorismo como instrumento. Agora se o grupo terrorista ou

    no, ou se ele um grupo terrorista e mais alguma coisa, isso uma discusso

    semntica. Um grupo que ataca civis com determinado objetivo poltico utilizando da

    violncia um grupo que pratica o terrorismo. Sobre isso no tem discusso, se um

    grupo de libertao nacional ou se um grupo de criminosos ou se um grupo de

    traficantes ou qualquer outro tipo de classificao, no faz diferena. A frase o terrorista

    de um o freedom fighter do outro no faz referncia definio de terrorismo, faz

    referncia a motivao pela qual o terrorismo utilizado.

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    B.M.: Se olharmos tambm para o lado da poltica domstica israelense interessante

    como em pouco tempo o jogo de foras mudou. Quando o senhor foi para Israel nos anos

    70, a esquerda era hegemnica...

    S.F.: No tinha direita, eu fui para Israel antes do Likud subir ao poder pela primeira vez,

    a esquerda j vinha sofrendo os impactos da guerra de 1973, quando eu fui para Israel

    em 1975 o Rabin se tornou primeiro ministro e os trabalhistas j estavam enfraquecidos

    por causa do resultado da guerra de 73.

    B.M.: Foi no governo de Ariel Sharon que a configurao mudou um pouco, ele formou

    um bloco de centro direita...

    S.F.: Na verdade ns temos primeiro a consolidao do Likud, depois a ascenso do

    Sharon com a segunda intifada, ainda no marco do Likud e com a proposta de retirada

    unilateral da faixa de gaza, a criao, o fortalecimento e o desaparecimento do Kadima.

    B.M.: Nos ltimos dez anos, alguns atores nacionalistas colocam Israel como hostil aos

    vizinhos, mas esse discurso se desgasta, surgindo ento atores de centro que tentam de

    novo uma plataforma de emprego, de bem estar... Ento gostaria que o senhor

    comentasse um pouco essa geografia do voto. Tem os assentamentos que reverberam

    esse discurso nacionalista, mas temos tambm as grandes cidades, Tel Aviv...

    interessante notar como Israel tem um dado poltico com uma diversidade de atores.

    S.F.: Isso vai ao encontro um pouco ao que ela estava dizendo em relao forma como a

    populao consegue conduzir a sua vida sem se relacionar com o conflito, se olharmos

    por exemplo para os resultados das ltimas eleies parlamentares em Israel. Eu estava

    l o ano passado durante as eleies e no perodo anterior s eleies, eu lembro como

    isso me marcou. No tinha nenhum candidato falando da questo Palestina. Toda a

    discusso das plataformas eleitorais era reflexo das manifestaes sociais do ano

    anterior. O Yair Lapid que surgiu como a grande surpresa das eleies, no tinha

    plataforma de poltica externa, no falava de poltica externa nos seus discursos, as

    propostas eram em relao aos problemas do dia-dia da vida do cidado israelense.

    Naftali Bennett que hoje ministro da economia, chefe do partido (vamos chamar de)

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    nacionalista religioso, esse o representante da populao dos assentamentos. Ento

    temos hoje um governo de centro direita, onde a esquerda praticamente desapareceu,

    no tem peso nenhum. Ento se teve uma transio da direita para o centro. Que estava

    lastreada no sucesso do Sharon. Alguns dizem que no pode haver mais direita que o

    Sharon, mas ele j tinha feito essa transio. E quando ele desaparece do cenrio, todo

    esse apoio vai por gua abaixo.

    B.M.: Mas agora, as foras mais nacionalistas, ligadas aos assentamentos, parece que

    esto crescendo, no esto?

    S.F.: Eles no esto crescendo... Esse governo poderia ter sido formado com o Lapid, a

    esquerda e os religiosos, ou da forma como ele foi formado, com o Lapid e os nacionais

    religiosos, s tinha duas formas de estruturar esse governo depois das ltimas eleies.

    A presso (ou a opo) do Lapid, de centro, pela excluso dos ortodoxos, foi o que

    definiu que os nacionalistas religiosos participassem do governo. mais complicado do

    que soa, pois quando se fala de religiosos em Israel, ns no temos um grupo religioso

    monoltico. Tem-se uma srie de faces religiosas onde os nacionalistas religiosos so

    to hostis aos ortodoxos, quanto os de centro esquerda, porque eles praticam a religio

    de forma completamente diferente. Eles praticam sua insero na sociedade de forma

    completamente diferente. Tem os ortodoxos e os nacionalistas religiosos, alm de ter

    faces dentro dos ortodoxos. Os conflitos religiosos no so s entre os ortodoxos, mas

    principalmente entre os ortodoxos e os nacionalistas religiosos.

    B.M.: Foi uma escolha de uma coaliso a partir de um fator decisivo para a balana de

    governabilidade...

    S.F.: Eu diria que foi a partir de uma opo por deixar os ortodoxos fora da coaliso, para

    atender uma demanda importante da sociedade laica em Israel. A sociedade laica em

    Israel chegou num ponto em que no queria mais ver os ortodoxos isentos do servio

    militar, fora do mercado de trabalho, recebendo subsdios. As manifestaes do ano

    anterior tinham sido a gota dagua nesse processo de pagamento pela participao dos

    ortodoxos no governo.

  • 14

    B.M.: Isso um ponto que eu acho bastante interessante. No caso dos Estados Unidos se

    fala muito no conceito de guerra cultural, que a ideia da sociedade dividida entre

    foras seculares e religiosas, duas culturas, dois governos. No caso de Israel o senhor

    acha que podemos falar em guerra cultural?

    S.F.: Se brinca em Israel que se a Repblica de Tel Aviv pudesse se separaria do Estado.

    Tem uma proposta de uma guerra de secesso. Porque a populao de Tel Aviv no tem

    absolutamente nada em comum com a populao ortodoxa em Jerusalm e

    especialmente nos assentamentos. Tem uma separao total. Eu, por exemplo, que sou

    um judeu laico me sinto discriminado, sinto que os ortodoxos so antissemitas. Porque

    aos olhos deles eu no sou judeu o suficiente, porque eu no sigo as regras da forma

    como eles acreditam que elas devem ser seguidas. Isso vale para a populao laica de

    Israel, que v seu vnculo ao povo judeu pelas tradies e pelos costumes e no pela

    religio. Eu diria que a maioria da populao laica de Israel ateia, do ponto de vista

    religioso realmente estrito.

    B.M.: Ser que a esquerda israelense pode se reencontrar entre os laicos?

    S.F.: Eu no sou especialista em poltica interna israelense, mas se olharmos para o

    histrico, se tem ciclos. Tem a esquerda substituindo a direita, depois a direita se

    fortalecendo, muitas vezes depende de insumos externos. Quando tem uma onda de

    atentados, por exemplo, derruba o governo, faz com que um Sharon seja eleito, mais do

    que compreensvel. Agora, com o nvel de demanda social que houve em Israel nos

    ltimos anos, combinado com essa percepo de calma, de conteno do problema da

    segurana, do terrorismo. O que talvez se tenha uma ascenso desproporcional das

    questes internas e a talvez os trabalhistas tenham mais a oferecer do que a direita neo-

    liberal. Mas depende do quanto a situao eventualmente se deteriora para uma parcela

    significativa da classe mdia israelense. Eles vivem um fenmeno parecido com o que

    ns estamos vivendo aqui, de ascenso de uma determinada parcela da populao, que

    depois se v frustrada nas suas expectativas. Em Israel, por exemplo, tem uma enorme

    parcela de populao que vive abaixo da linha da pobreza. Obviamente, o que eles

    consideram pobreza parmetro por eles, principalmente se olharmos com os nmeros

    do Oriente Mdio. Tem uma porcentagem significativa de crianas que vivem abaixo da

  • 15

    linha da pobreza, nenhuma delas passa fome, mas esto abaixo da linha da pobreza.

    Tem um problema gritante com creches em Israel, a maioria das mulheres na populao

    laica trabalha e no tem com quem deixar as crianas, pois as creches so privadas e

    custam uma fortuna, muitas mulheres fazem a conta, se tiverem que deixar as crianas

    nas creches, sai mais barato ficar em casa do que trabalhar para pagar a creche. Tem

    problemas srios, estruturais, que eventualmente, numa nova eleio que no tenha um

    componente externo importante esses elementos se tornam to significativos que levam

    uma maioria automtica dos centro-esquerda ao poder.

    B.M.: Um ltimo tpico a questo do antissemitismo. Ns tivemos eleies europeias

    para o parlamento europeu, recentemente o atentado ao museu em Bruxelas e tambm,

    no h muito tempo, um atentado nos Estados Unidos, num centro de convivncia

    cultural judaico. Como o senhor avalia o antissemitismo no contexto de hoje? Como o

    senhor explica o aumento dessas manifestaes?

    S.F.: A crise econmica um propulsor do fortalecimento da direita, isso no de hoje,

    historicamente, quando se tem crise econmica, tem fechamento da sociedade, aumento

    da xenofobia e automaticamente produz antissemitismo. No caso da Europa no s o

    antissemitismo, essa guinada para a direita, na verdade deveria levar uma aproximao

    da populao muulmana com a populao judaica, porque so as vtimas comuns desse

    processo. Mas tem o componente, vamos chamar de, nacional nessa disputa, que tornam

    os dois lados que so vtimas dos movimentos de direita, adversrios por causa da

    questo nacional no Oriente Mdio. O outro aspecto que eu acho importante, quando se

    olha para o recrudescimento do antissemitismo a confuso que, muitas vezes, ocorre

    entre a definio de antissemitismo e crticas s polticas do Estado de Israel. Muitas

    vezes aqueles que defendem o Estado de Israel vo acusar de anti-semitismo o que

    simplesmente uma crtica a determinadas polticas. A eu sempre me resguardo o

    direito de no concordar com essa associao. Por que voc pode fazer crticas

    pertinentes e legtimas ao Estado israelense, s determinadas polticas do governo

    israelense sem incorrer a nenhum aspecto de antissemitismo. Se bem que, muitas vezes,

    posturas anti-israelenses so reflexos de polticas antissemitas. Mas no pode ser

    sinnimo, no pode ser sempre enquadrado dessa forma. Os casos precisam ser

    analisados na raiz de sua crtica. Sem dvida existem crticas Israel que refletem o

  • 16

    antissemitismo e existem crticas que so rotuladas como antissemitas simplesmente

    tentar esvazi-las.

  • 17

    IMPERIALISMO E GUERRA CIVIL NO MUNDO RABE:

    A TRAGDIA SRIA APORIAS E CONSEQUNCIAS

    DA FALTA DE INTERVIR

    Peter Demant

    Resumo: Segunda parte do artigo analisando a crise sria no contexto internacional, lida com a situao desde o levante popular anti-Assad e a decorrente guerra civil de 2011 at o comeo de 2014, defendendo a posio de que apenas uma postura internacional muito mais pr-ativa poderia frear a violncia e colocar as bases de um debate abrangente para repensar a convivncia das vrias comunidades, etnias e religies. Entre os fatores que tornaram esta convivncia mais complicada na Sria Lbano e Iraque - do que em outras sociedades mdio-orientais esto questes no-resolvidas de identidade coletiva. Uma ditadura modernizadora, essencialmente unipartidria de uma comunidade (alawita) sobre as demais, resultado das contradies internas entre as diversas comunidades, provocou, por fim, as demonstraes de 2011. Apesar das reivindicaes para democratizar a estrutura poltica, a extrema heterogeneidade da sociedade sria no permitiu a unificao das oposies. Estas, fracas para comear, receberam pouco apoio externo (ocidental em particular), enquanto o regime se beneficiou da ajuda de Hizbullah, Ir, Rssia e de outros aliados. Paradoxalmente o uso de ADMs do regime de Assad contra civis srios sepultou a possibilidade de uma interveno internacional e acabou enfraquecendo as foras democrticas e/ou liberais a favor dos interesses do eixo xiita e de jihadistas sunitas. Em consequncia a partir do fim de 2013, o carter do conflito comeou a se transformar de guerra civil em guerra aberta por proxy entre interesses sauditas, turcos e iranianos, entre outros. O artigo argumenta que o conflito no pode se resolver pelas prprias foras internas; tenta relativizar o papel do Estado numa soluo; esboa alguns elementos de uma nova constituio democrtica com fortes garantias para minorias; discute o dilema do papel do isl nela; e explica porque a soluo do conflito srio est vinculada soluo de outros conflitos no Oriente Mdio. Abstract: Second part of an article analyzing the Syrian crisis within an international context, dealing with the situation in Syria from the popular anti-regime revolt and consecutive civil war from 2011 to the onset of 2014. It defends the position that only a much more proactive international posture has a chance to curb the violence and lay the bases for a wide-ranging debate to rethink coexistence of the various communities, ethnical and religious groups. Among factors that made such coexistence more problematic in Syria (as well as in Lebanon and Iraq) than elsewhere in the Middle East are unresolved questions of collective identity. The outcome of the communitarian clash was a largely one-party modernizing dictatorship of one community (the Alawite) over the others; its contradictions eventually sparked the 2011 demonstrations. Despite calls to democratize Syrias political structure, the extreme heterogeneity of its society did not allow unification of the oppositions. The latter, weak to start with, received little aid from abroad, while the regime enjoyed help of Hizbullah, Iran, Russia and other allies. Paradoxically the Assad regimes use of WMD against Syrian civilians buried the possibility of international intervention, and in the end weakened democratic and/or liberal forces even more, and strengthened the Shiite axis

  • 18

    and Sunni jihadists. As a result, as of late 2013, what had been an internal civil war started to mutate more and more into an open war of proxies for Saudi, Turkish, Iranian and other interests. The article argues that the conflict cannot be resolved solely by internal factors, relativizes the role of the State in its future solution, and outlines elements of a new democratic constitution with ample guarantees for minorities; discusses the dilemmas surrounding the role of Islam; and explains why resolving the Syrian conflict is linked to a solution of other Mideast conflicts.

    Prefcio

    Os desenvolvimentos no Oriente Mdio se sucedem to rapidamente que mesmo

    escritos recentes podem ser amplamente ultrapassados pelos eventos, dando a

    impresso de um artefato quase arqueolgico. O intervalo entre escrita e publicao

    particularmente gritante em revistas cientficas, impondo um distanciamento entre o

    evento e sua anlise objetiva. O intervalo no s cronolgico mas constitui tambm

    uma brecha metodolgica, por vezes, saudvel - mas nem sempre. Tal tambm a sorte

    desta segunda e ltima parte do artigo sobre a tragdia sria, cuja primeira metade foi

    publicada no Malala 2.

    No incio de 2014 a guerra civil sria se caracterizava pelo enfraquecimento da

    oposio secular-pluralista anti-Assad, consequncia da fraqueza ocidental frente s

    macias violaes de direitos humanos e ao uso pelo regime de Assad de armas qumicas

    contra sua prpria populao civil. Analisamos ento como a derrota da alternativa

    democrtica estava jogando cada vez mais srios nas mos de oposies islamistas (de

    radicalidade varivel).

    No entanto, o ano de 2014 tem testemunhado uma reviravolta imprevista, com

    gravssimas repercusses globais: o fortalecimento das milcias islamistas, j em

    andamento, ganhou um mpeto sem precedentes com a fulgurante expanso do grupo

    Da`ash ou ISIS (Estado Islmico no Iraque e no Levante), ramo dissidente de al-Qaeda,

    que em meados de 2014 se transformou no califado Estado Islmico (EI) controlando

    num territrio contiguo um tero do Iraque e da Sria. Entre as facetas mais notrias

    desta recente evoluo apontamos as seguintes:

    (1) Combinando estratgias de terrorismo e de guerrilha com guerra clssica

    por exrcitos, Da`ash conquistou um territrio muito maior do que qualquer

    outra oposio anti-Assad;

  • 19

    (2) ao juntar territrios de vrios Estados e rejeitar as fronteiras internacionais

    decorrentes do arranjo imperialista ps-Primeira Guerra Mundial, EI faz vacilar

    todo o sistema de Estados no Oriente Mdio;

    (3) EI combina um programa de destruir os governos iraquiano e srio e

    substitui-los por um novo Estado islamista, com ideologia e prticas jihadistas

    antimodernas e antiocidentais, prometendo levar a cabo mundialmente uma

    guerra sem fim contra todos os no-muulmanos e todos os muulmanos

    herticos;

    (4) onde estende seu poderio o EI impe com extrema violncia um regime

    fundamentalista sobre as populaes conquistadas, usando como instrumentos

    de intimidao perseguies a minorias e grupos especficos (cristos, yazidis,

    xiitas...), execues sumrias, massacres, mutilaes, escravido de mulheres e

    crianas, e uma gama de controles comportamentais e de doutrinao tiradas do

    repertrio dos taleb afegos e paquistaneses; tudo devidamente justificado por

    referncia s fontes escriturais islmicas, segundo sua peculiar leitura destas;

    (5) apesar de (ou talvez por causa de) seus atos e propagandas cruis, EI

    consegue atrair um apoio significativo, localmente (entre sunitas discriminados e

    populaes mentalmente quebradas e exaustas pelos incessantes deslocamentos

    e derramamento de sangue) e internacionalmente: jovens enraivecidos do

    mundo muulmano inteiro mas tambm muulmanos alienados da Europa,

    Rssia, China, e alhures, atrados por seu programa universalista;

    (6) a violncia expansionista do EI se refora pela mobilizao de milhares de

    muulmanos simpatizantes (e.o. recm convertidos): estes contestam os sistemas

    polticos e culturais nos quais esto imersos e se deixam inspirar pelo EI para

    atacar alvos nos pases onde vivem; e/ou se deslocam para o prprio territrio

    do EI. Este fenmeno tem se tornado um pesadelo securitrio para Estados to

    diferentes quanto os EUA, Arbia Saudita, Jordnia, Egito, Israel, Lbano, Ir,

    Paquisto, Nigria, China e Rssia, alm de quase todos os Estados europeus.

    Levou os EUA a gradualmente abandonar sua politica de neutralidade de fato na

    Sria em favor de um novo intervencionismo velado (por enquanto bastante

    limitado e de eficcia desconhecida). Os EUA lideram uma coalizo curiosa onde a

    Turquia exerce o papel do spoiler e o Ir o de coadjuvante do ocidente.

  • 20

    (7) Alm destas caractersticas do prprio EI, tem sido notvel em 2014 (e

    tampouco previsvel) a sobrecarga do sistema internacional, devido emergncia

    simultnea de novas crises, ou exacerbao de algumas j existentes (p.ex.

    Crimeia e Ucrnia e a nova tenso entre Rssia e o ocidente, entre outras)

    paralisando ainda mais o j afetado potencial de reao da comunidade

    internacional.

    Como resultado dos fatores supracitados, o quadro poltico na Sria e a percepo

    internacional dele se modificaram fortemente: a partilha territorial de fato no cessou

    mas, no olhar de muitos, o regime mortfero de Damasco, antes um obstculo a ser

    eliminado na rota da tirania para a autodeterminao, parece doravante um mal

    menor. Especula-se em voz alta sobre a possibilidade ou necessidade de pactuar com o

    diabo que conhecemos contra um EI demonizado como mal absoluto. Ora, fazer isto

    sacrificaria a ltima esperana das vrias populaes srias de reescrever seu contrato

    social, tal como sugerimos na primeira parte deste artigo. Uma realidade j ameaadora

    se tornou ainda mais perigosa. Uma soluo possvel que j foi utopia, agora no mais

    que uma miragem que se desmancha. Mas no por isto menos imprescindvel...

    A despeito destes caveats decidimos publicar a segunda parte do texto mais ou

    menos tal qual, como modesta contribuio ao debate sobre as responsabilidades da

    comunidade internacional pelo destino da Sria, cujas populaes continuam pagando o

    preo da nossa iseno.

    O impasse srio ilustra as contradies da poltica estadunidense em particular, mas

    tambm dos demais atores da comunidade internacional: intervir tem tido resultados to

    ruins que novas intervenes so hoje politicamente arriscadas. No intervir e ficar na

    postura do observador externo que, no mximo, faz esforos paliativos para minimizar o

    sofrimento humano, parece tambm exacerbar uma situao que a cada momento

    arrisca atravessar o limiar de uma crise internacional. Para entender o conflito srio, o

    primeiro fator a se ter em mente que embora ele seja externamente mantido e

    impulsionado, suas causas so internas. Como consequncia, nenhuma intromisso

    externa pode resolv-lo, sem mexer com as causas estruturais.

    Defendo nesta Parte II a tese de que apenas uma interveno poderia garantir

    uma pausa na violncia ampla o bastante para permitir que se inicie um processo de se

  • 21

    reinventar a Sria de reescrever seu contrato social. Na impotncia das perspectivas

    para uma soluo interna (e descartando a hiptese de uma derrota iminente e

    definitiva de um dos lados no conflito), alm do atual crescimento do EI, apenas uma

    interveno internacional poder frear o derramamento de sangue - e ainda apenas se

    esta dispuser de suficiente fora e carregar uma alternativa poltica suficientemente

    clara, atraente, e legtima. Para explicar esta posio mister lembrar antes as linhas

    matrizes contraditrias da sociedade sria, que tornaro entendvel porque a guerra civil

    atual improvvel de ser resolvida internamente.

    Pano de fundo srio: a simbiose entre heterogeneidade, modernizao e ditadura

    Enquanto as revoltas na Tunsia, Lbia e Egito conseguiram depor com relativa

    facilidade os tiranos daqueles pases, o levante srio contra o ditador Bashar al-Assad

    desaguou numa monstruosa guerra aberta entre comunidades e ideologias. Uma

    desgraa que pde acontecer porque a crise sria , antes de mais nada, um embate

    entre identidades que se sobrepem, se odeiam e simultaneamente precisam

    umas das outras. O tirano de um o protetor do outro. A Sria como conceito existe

    desde a antiguidade. A Sria como Estado existe apenas desde os anos 1920. Mas, a Sria

    como ideologia apenas uma opo entre um leque de identificaes contrastantes e

    incompatveis, que concorrem pelo corao dos srios.

    Apesar da presena na antiguidade de altas civilizaes na regio que hoje

    constitui a Sria, da memria de Damasco como sede do califado omada (670-750), e de

    ideologias nacionalistas que desde o sculo 19 afirmam a perenidade da nao sria, os

    traos determinantes da sociedade sria tm na realidade razes bem mais recentes.

    Muitas dessas so, alis, comuns a outras sociedades do Mashriq.2

    A Sria emergiu do imprio otomano j como sociedade extremamente

    heterognea. At agora ela fragmentada entre comunidades cujas relaes se definem

    por preconceitos mtuos, memrias de difcil coexistncia, e medo. Pelo menos 80 % da

    populao sunita, mas esta maioria convive com alawitas, drusos e outras seitas xiitas,

    2 mashriq/maghrib Aqui se fala em Mashriq como oriente (leste) em oposio ao Maghrib como ocidente (oeste)

    do mundo rabe.

  • 22

    com cristos subdivididos em inmeras igrejas em competio entre si e, at a

    independncia de Israel, com disporas judaicas. til lembrar que se trata de

    identificaes comunais, rtulos mais do que religiosidades individuais. As origens

    longnquas deste estado de coisas, no muito diferente do que se observa hoje em outros

    pases rabes, deixaremos em aberto. O que certo que as potncias coloniais usaram

    a fragmentao interna que elas encontraram para sua poltica de dividir para

    imperar. A Frana, potncia mandatria sobre a Sria pela Liga das Naes aps a

    Primeira Guerra, para controlar a maioria, privilegiou os alawitas, seita anteriormente

    pobre e desprezada, armando-os e tornando-os o ncleo das foras armadas srias.

    Quando em 1943 a Sria se tornou independente, nunca se estabeleceu uma democracia

    baseada na coexistncia livremente negociada entre as varias partes da populao. Ao

    invs disto o pas caiu sob o controle de grupos armados. Eventualmente o partido pan-

    rabe Ba'th ("Renascimento") tomou o poder. Ainda o tem. Apesar de sua ideologia

    secularista e universalista, escondem-se atrs das bandeiras do partido, cls armados,

    principalmente dos alawitas. Estes tm mantido a hegemonia de um conglomerado de

    minorias sobre a maioria sunita pela violncia e pelo cooptao embora uma parcela

    da burguesia sunita seja aliada de Assad.

    Esta situao de uma convivncia controlada de comunidades desiguais, em

    ltima instncia, pelas foras armadas, se perpetua desde que a Sria obteve sua

    independncia. O pas nunca desenvolveu uma unidade nacional enraizada, e pelo

    menos trs ideias sobre sua identidade continuam se enfrentando:

    (1) Wataniyya ou patriotismo baseado no territrio: h quem enfatize a

    unidade histrica do Levante (Sham), da qual o territrio atual srio seria o

    ncleo, mas que engloba tambm o Lbano, a Palestina e zonas afins.

    Particularmente complicada a relao com o Lbano. Este pas possui uma

    identidade coletiva no menos contraditria do que a Sria; uma parte esteve sob

    protetorado francs desde o sculo 19; outra foi descolada do corpo da Sria nos

    anos 1920 por clculos polticos um desmembramento nunca aceito pelos

    nacionalistas srios (nem por uma parte dos libaneses).

    (2) Qawmiyya ou nacionalismo pan-rabe, baseado na lngua ou etnia,

    ideologia que busca estabelecer um Estado nico para todos os rabes, do

    Atlntico at o Golfo. No surpreende que grupos minoritrios tais como os

    cristos rabes estivessem entre os primeiros ativistas destes dois tipos de

  • 23

    nacionalismo secular, que prometia igualdade de dignidade e de oportunidade

    para todos os habitantes independentemente da sua religio - bem diferente do

    sistema poltico otomano que se baseava na primazia poltica, religiosa e militar

    do isl (embora proporcionasse liberdade religiosa e boas oportunidades

    econmicas s comunidades "protegidas" no-muulmanas). A referncia

    histrica do pan-arabismo o califado rabe, numa chave de leitura que associa

    isl arabidade, enfatizando o isl no como religio universal, mas como

    expresso do gnio nacional rabe. Hoje o mesmo pan-arabismo, moribundo

    enquanto projeto poltico, continua sendo a ideologia oficial de um regime que

    realiter representa os interesses no dos rabes, mas de certas seitas.

    (3) islamiyya ou islamismo: sempre existiram os nostlgicos do califado

    otomano. A diviso da umma (comunidade dos fiis) em naes separadas no

    condiz com o sonho de unidade e com a reivindicao da predominncia mundial

    do isl. Eventualmente surgiram grupos islamistas (muulmanos

    fundamentalistas) que propem a restaurao de uma sociedade pautada pela

    religio e de um Estado regido pela lei religiosa, o xaria. Na Sria, como tambm

    no Egito, na Palestina e alhures, o movimento islamista mais forte era o da

    Irmandade Muulmana, que buscou a transformao do Estado atravs de uma

    militncia social gradualista e logo se colocou como a principal oposio aos

    nacionalistas da esquerda do Ba`th. A destruio desta oposio pelos ba`thistas

    nos anos 80 abriu a porta para uma radicalizao jihadista.

    Obviamente possvel combinar identidades. Algum pode falar rabe, seguir o

    isl, e ainda se definir em primeiro lugar como srio. Pesquisa anterior primavera

    rabe aponta que a religio islmica o primeiro item da auto identificao para o maior

    grupo em muitos pases rabes, seguida pela identificao com o Estado; de modo que a

    identificao rabe estaria em declnio. razovel que a situao ideolgica na Sria

    corresponda a essa diviso.

    Quando as polticas coloniais francesas de dividir para imperar fracassaram, o

    resultado das resistncias anticoloniais e o denominador comum das vrias ideologias

    em competio foi uma Sria independente, mas no democrtica, e extremamente

    instvel, onde golpes militares se sucederam. Na luta mortfera entre as ideologias

    contrastantes o Ba`th se imps na Sria como predominante em 1963. Na luta interna

  • 24

    dentro do Ba'th emergiu o cl dos Assad em 1970. Hafez al-Assad governou de 1970 at

    sua morte em 2000 e seu filho Bashar lhe sucedeu desde ento. Tambm neste sentido a

    evoluo da Sria tem paralelos, no caso com o Iraque, pas no menos heterogneo,

    onde um outro ramo do partido Ba'th chegara ao poder. Tambm ali um cl, no caso os

    Tikiritis ao qual pertencia Saddam Hussein, monopolizou o poder. H outras

    semelhanas: ambos os regimes so ditaduras modernizadoras (industrializao,

    educao, obras, emancipao da mulher...) mantendo a preponderncia de uma minoria

    contra a maioria, eliminando todas as oposies - at sobrar apenas aquela que se

    organiza na mesquita. Em ambos os Estados o contrato social implcito garantido pela

    ditadura se baseava numa troca desigual, mas passivamente aceita pela maioria da

    populao: o regime mantm a segurana das demais minorias contra os radicalismos da

    maioria (sunita na Sria; xiita no Iraque); garante a liberdade religiosa e um mnimo de

    liberdades econmicas para todos; em contrapartida, reprime quaisquer demandas de

    liberdade poltica, e impe (com tanta violncia quanto necessrio) a permanncia de

    seus prprios privilgios.

    A Sria nas relaes internacionais

    Em ambos os casos, srio e iraquiano, o regime tambm precisava de inimigos e

    de conflitos externos para sustentar a artificial unidade nacional e a mobilizao interna.

    No caso do Iraque, os curdos, o Ir, e o Kuwait preencheram este papel. Israel e uma

    variedade de inimigos no Lbano (maronitas, sunitas, drusos, e palestinos ligados

    OLP...) apresentaram oportunidades semelhantes para o regime srio. Nos anos 80,

    quando o Egito e a Jordnia buscaram uma pacificao baseada em solues de meio-

    termo, a Sria que ainda tem parte de seu territrio (as Colinas do Gol) ocupado por

    Israel, se colocou como fulcro da oposio rejeicionista que em nome do nacionalismo

    pan-rabe se ops a qualquer acomodao com Israel. Desde ento a Sria lidera uma

    "Frente de Resistncia" que engloba radicais palestinos e os xiitas libaneses do

    Hizbullah, alm do Ir.

    Internamente, o dilema srio semelhante ao da Rssia, China, Ir, Coria do

    Norte e outras ditaduras que mantm o poder de suas elites minoritrias por meio de

    violaes s vezes macias dos direitos humanos e polticos de seus sditos:

  • 25

    politicamente florescem no poro de um submundo inacessvel; economicamente, no

    entanto, no podem sobreviver no isolamento. Num mundo cada vez mais globalizado,

    precisam de uma economia mais competitiva para se manter; mas, como demonstra o

    caso chins, difcil modernizar a economia sem modernizar a sociedade, modernizao

    esta que mais cedo ou mais tarde acarreta demandas por reformas polticas que

    ameaariam os privilgios da minoria no poder. Certas autocracias ricas em recursos

    naturais podem usar p.ex. sua renda petrolfera para subornar a populao e desta

    maneira adiar o momento das reivindicaes, mas a Sria no pode se dar este luxo. Ela

    possui, por outro lado, um "recurso" negativo interno, advindo de sua extrema

    heterogeneidade, do dio e medo entre as comunidades, o que proporciona ao regime

    uma alavanca para cooptar partes da oposio (cristos, drusos...) e manter a oposio

    dividida. Estes fatores ajudam a explicar a longevidade e paradoxal "popularidade" desta

    ditadura sangrenta - aqueles que o apoiam temem o dia do acerto de contas com os

    grupos oprimidos. impossvel calcular, mas no seria surpresa se at um tero ou mais

    dos srios se sentissem mais protegidos pelas cmaras de tortura do carrasco de

    Damasco do que sem elas...

    No entanto, mesmo num quadro que combina a opresso da maioria sunita com o

    aval passivo de minorias, o regime de Bashar provavelmente no sobreviveria sem a

    ajuda de amigos externos. Hoje a Sria pode contar com dois grupos de entusiastas

    externos: os resqucios da velha esquerda pr sovitica, e o eixo xiita. Ideologicamente

    as duas vertentes no poderiam ser mais diferentes entre si. A primeira remete Guerra

    Fria. Apesar do clima pouco favorvel ao comunismo no mundo muulmano, existia at

    os anos 70 uma proximidade historicamente crescida entre o nacionalismo rabe

    antiocidental e progressista (o chamado socialismo rabe) e a URSS. Quando o Egito,

    Arglia, Iraque, a OLP e outros ex-satlites do bloco comunista se voltaram para os EUA

    ou para a Frana, a Sria manteve seu link com a URSS, e aps a virada pr dois Estados

    da OLP, com os cismas palestinos mais radicais. At recentemente, inclusive, apos a

    diviso dos palestinos em dois regimes, Damasco abrigava a liderana "externa" do

    Hamas. A "amizade" com Ir e Hizbullah revestida, por outro lado, de um carter

    mutuamente instrumental. A relao da Sria com o Lbano se pauta por algumas

    questes contraditrias: a primeira o fato da Sria dificilmente reconhecer a soberania

    do pequeno irmo, cujo territrio foi artificialmente constitudo pela Frana por pedaos

    anteriormente srios no intuito de produzir um contrapeso predominncia

  • 26

    demogrfica crist no Monte Lbano, amputao territorial nunca reconhecida pelos

    srios. Para os seguidores do patriotismo regional gro-srio, o Lbano faz parte da Sria.

    Existe, portanto, o desejo de reintegrar o Lbano na Gr-Sria. Mas, por outro lado, o

    Lbano mais moderno e cosmopolita do que seu vizinho - da a infiltrao do territrio

    libans por servios de inteligncia srios e as intervenes militares que, paralelamente

    luta anti-israelense, so feitas para evitar que os srios sejam "infectados" pela

    tendncia crtica que vigora em Beirute.

    Por outro lado, h o fator xiita internacional. Apesar da impreciso do termo,

    legitimo falar de um eixo xiita que vai de Teer e Damasco at Hizbullah no Lbano. A

    hegemonia e at a sobrevivncia do movimento xiita no Lbano dependem do influxo de

    armas e outras formas de apoio iraniano: trfico vivel j que apenas atravessa o

    territrio do Iraque e da Sria. O regime srio usa seu controle das rotas vitais para o

    Hizbullah, aliado do Ir no Lbano, para extorquir concesses polticas e militares de seu

    compadre em Teer.

    A posio sria aproveitou uma crise existencial do Hizbullah: este, na verdade,

    est numa posio problemtica desde a retirada unilateral de Israel de territrio

    libans em 2000. Uma vez que o exrcito israelense foi embora, a posio do Hizbullah

    como "frente" anti-Israel se tornou mais fraca. Manter a retrica (e ocasionalmente

    alguma prtica militar) antissionista , portanto, fundamental para o Hizbullah, pois

    dela que deriva boa parte de sua legitimidade e a justificativa para manter suas milcias

    e sua proeminncia na convoluta paisagem poltica do Lbano. Ora, novamente, a aliana

    triangular Sria-Hizbullah-Ir proporciona vantagens propagandsticas a todas as partes.

    Do ponto de vista iraniano, o lao srio abre um canal para posicionar armas e

    eventualmente tropas, mais perto do inimigo sionista, comprando assim influncia na

    Sria. Para o Hizbullah, o fluxo armamentista pr-condio para sobreviver. Mas o

    regime de Assad, por sua vez, tambm se beneficia do apoio de seus dois aliados xiitas.

    Desde que eclodiu a revolta em 2011, tanto o Ir quanto o Hizbullah proporcionam

    ajuda militar e poltica a Assad.

    Apesar das aparncias os trs parceiros so todos xiitas e enfrentam inimigos

    comuns: Israel, EUA, sunitas - em termos ideolgicos no existe proximidade. O regime

    em Damasco teoricamente nacionalista secular, praticamente um conglomerado de

    mfias sectrias pouco ideolgicas. Por outro lado, tanto o regime em Teer quanto o

    Hizbullah se inspiram do khomeinismo. So foras polticas com ideologia religiosa, que

  • 27

    consideram a Sria como uma base de apoio, um n fundamental no eixo anti-EUA e anti-

    Israel, mas no como amigo religioso.3

    A Sria da Primavera rabe Guerra Civil

    Os movimentos reformistas e as demonstraes pr-reformistas da Primavera

    rabe que eclodiram nos primeiros meses de 2011 evoluram de maneira diferenciada

    em vrios pases. Na Sria, Assad respondeu s demonstraes populares, inicialmente

    pacficas, que reivindicavam respeito aos direitos humanos e abertura poltica, com

    brutal represso e logo massacres. Fechado o caminho poltico, a resistncia se

    transformou de poltica em militar. Uma tal transio quase sempre sinal de desespero,

    pois normalmente um regime consolidado dispe de muito mais recursos militares para

    reprimir a oposio do que uma oposio possui para derrubar o regime. Na verdade, o

    regime de Assad reagiu com excessiva brutalidade, torturas, desaparecimentos,

    punies coletivas e massacres, que alcanaram um triste auge em agosto de 2013 com

    os ataques de gs txico que quase provocaram uma interveno armada ocidental. Os

    ataques, inicialmente dispersos, se transformaram numa guerra civil que at 2014

    vitimou mais de 130.000 pessoas, metade delas civis.4 Mesmo assim, o mero fato da

    guerra perdurar durante dois anos e meio j demonstra o surpreendente poder de

    resistncia da oposio. Esta no conseguiu estabelecer regies inteiramente libertadas,

    mas localmente desalojou as foras de ordem do regime, provocando repetidas batalhas

    de reconquista por parte do governo, com resultados variados.

    Aps trs anos de conflito se desenham as seguintes concluses provisrias:

    (1) A extrema heterogeneidade poltica e religiosa no deixou na Sria uma base social

    forte e coesa o bastante para derrotar o regime de Assad. (2) A oposio, fraca para

    comear, sofreu ainda pelo frouxo apoio externo. (3) A ajuda russa e iraniana a Assad,

    contra a reticncia ocidental, em apoiar a oposio permitiram uma conjuntura onde o

    3 Os alawitas so uma seita heterodoxa e at recentemente no reconhecida do xiismo, enquanto a maioria dos

    xiitas libaneses e iranianos pertence ao ramo majoritrio, o dos duodcimos. O reconhecimento do alawismo

    como xiitas autnticos pelo regime iraniano no passa de truque propagandstico.

    4 Em agosto 2014, a ONU avaliou em mais de 191.000 o nmero de mortos:

    http://edition.cnn.com/2014/08/22/world/meast/syria-conflict/index.html?hpt=imi_c2

  • 28

    uso de ADMs (Armas de Destruio em Massa) pelo regime srio, ao invs de provocar

    uma interveno, conduziu a um acordo internacional de neutralizao das armas

    qumicas que fortaleceu o regime. (4) Por outro lado grupos jihadistas na oposio anti-

    Assad, quase inexistentes h dois anos, so hoje o fator predominante em vrios lugares.

    Na verdade estas milcias sunitas extremistas so o outro vencedor: conquistaram um

    ponto de apoio em territrio srio, e esto preenchendo o vazio de poder em Estados

    limtrofes, gerando o espectro de uma internacionalizao do conflito.

    Detalhemos essas afirmaes:

    1. A fragmentao da oposio tem sido um bnus para o regime de Assad. O

    desequilbrio de foras entre o regime (ainda apoiado pela Rssia, Ir, Hizbullah etc.) e

    as milcias da oposio, muito mais fracas e profundamente divididas entre si, levou

    essas ltimas a pedirem ajuda s potncias ocidentais e sunitas. A evidente falta de

    vontade dos EUA e da maioria dos Estados da Unio Europeia, resultado das frustraes

    de intervenes anteriores no Oriente Mdio, deixaram as faces da resistncia

    dependentes da ajuda da Arbia Saudita, Qatar, Turquia - e de voluntrios jihadistas

    irregulares, muitos deles simpatizantes ou ligados a al-Qaeda. A evoluo dos ltimos

    trs anos aprofundou a fragmentao da oposio e reforou as correntes mais

    extremistas, sectrias, antiocidentais e totalitrias. Localmente grupos tais como a

    Frente Nusra ou ISIS (Da`ash, ou Estado Islmico do Iraque e do Levante) estabeleceram

    micro-Estadinhos intolerantes e opressivos lembrando o dos Taleb no Afeganisto.5

    Por outro lado, grupos relativamente liberais ou secularistas da Coalizo Nacional Sria

    tm perdido apoio e terreno.

    2. A passividade ocidental tem exacerbado a radicalizao islamista dos

    oponentes sunitas prximos al-Qaeda. Isto por si toca sinos de alarme nas capitais

    ocidentais, diminuindo ainda mais a disposio para providenciar armas, o que se torna

    um ganho para o regime de Assad, cuja tenacidade tem sido no menos surpreendente

    do que a de seus inimigos. Torna mais irreparvel a fragmentao e as tenses entre

    grupos de resistncia anti-Assad moderados e relativamente democrticos e secularistas

    5 Em julho de 2014 Da`ash oficializou o estabelecimento de um califado chamado Estado Islmico em partes

    da Sria e Iraque

  • 29

    por um lado, e os com crescente expressividade islamistas, por outro. Como

    consequncia, a frente est se fragmentando numa guerra triangular que ope o regime

    Assad tanto oposio liberal, relativamente pr-ocidental, quanto s milcias jihadistas

    sunitas, que tambm combatem umas as outras. No h claro ganhador nesse embate, e

    os especialistas especulam que em virtude do equilbrio de foras a guerra arrisca se

    prolongar por anos. Desde ca. dezembro de 2013 os EUA consideram a Sria no mais

    como problema poltico e humanitrio, mas como ameaa securitria, interromperam a

    entrega de ajuda oposio mesmo (nominalmente) pr-ocidental e comearam a

    contemplar a negociao com Assad ou grupos islamistas ou ambos.6

    3. a questo das ADMs eliminou provisoriamente o risco de interveno e

    enfraqueceu as foras democrticos e pr-ocidentais a favor dos interesses do

    eixo xiita e dos jihadistas sunitas.

    Em termos militares, locais tanto quanto internacionais, a guerra civil sria

    passou por uma virada crucial em meados de 2013.

    At a recente resoluo do Conselho de Segurana proibindo as armas qumicas

    de Assad e ordenando sua destruio, tentativas consecutivas para legitimar alguma

    forma, mesmo que modesta, de interveno internacional foram obstrudas pela Rssia

    e pela China.

    No incio de 2013 muitos observadores avaliaram a queda do regime de Assad

    como uma mera questo de tempo. Porm, na primeira metade do ano o regime no s

    demonstrou uma surpreendente resilincia como tambm comeou a reconquistar

    terreno perdido. Sem dvida o apoio mais firme por parte do Hizbullah e outros aliados

    influenciou. Mais importante era a reticncia dos torcedores ocidentais da posio sria

    para intervir a favor da oposio democrtica. Tanto o governo quanto o pblico nos

    EUA se opunham a uma interveno; na Europa, os governos da Frana e da Gr-

    Bretanha mostravam mais entusiasmo mas sem o aval de seu prprio eleitorado; e a UE

    ficou paralisada, com Alemanha e outros Estados contrrios a uma interveno. O

    ocidente entregou apenas uma modesta ajuda no-letal resistncia democrtica e

    islamista moderada. Por consequncia esta foi paulatinamente ultrapassada pelos

    6 Ver Sarah Birke, 2013, How al-Qaeda Changed the Syrian War. In: NYR - New York Review of Books.

    Disponvel em: http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2013/dec/27/how-al-qaeda-changed-syrian-

    war/?insrc=hpss&utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_term=%2AMideast%20Brief&utm_ca

    mpaign=Mideast%20Brief%201-3-2013

  • 30

    guerrilheiros islamistas radicais que no sofreram tais limitaes e se beneficiam de

    amplo apoio financeiro da Arbia Saudita, Qatar, do Gulf Cooperation Council e de

    doadores particulares no Golfo - e da entrada de milhares de voluntrios jihadistas

    estrangeiros.

    Obama colocara o uso de ADMs como linha vermelha cuja transgresso

    provocaria uma interveno. Em julho um ataque com gs letal pelo regime de Assad

    matou centenas de opositores e civis indefesos em Damasco, desencadeando uma crise

    internacional: no reagir minaria a (j afetada) credibilidade dos EUA e tiraria qualquer

    remanescente influncia ocidental sobre a oposio alm de exibir uma covardia imoral.

    Mas o governo de Obama mostrou uma patente falta de vontade para intervir. A opinio

    pblica tanto quanto o Congresso estadunidense rejeitou ainda mais qualquer reao

    militar - mesmo uma relativamente segura e pouco comprometedora como p.ex.

    atravs do uso de alguns bombardeios areos simblicos (no estilo dos ataques contra

    Belgrado em 1999). Rssia, China, Ir e outras potncias estiveram totalmente contra;

    especulou-se na mdia at o cenrio da Rssia colocar como armadilha alvos tripulados

    para dissuaso: baixas russas desencadeariam uma gravssima crise internacional.

    Antes da crise das armas qumicas alcanar este nvel, os prprios russos propuseram

    que o governo srio eliminasse voluntariamente seu arsenal no-convencional sob

    controle e com ajuda dos rgos especializados da ONU. Assad, que temeu uma

    interveno ocidental, rapidamente assinalou seu aval. Aliviados, os EUA aceitaram a

    sada honrvel, evitando uma derrota de Obama no Congresso e internacionalmente.

    No aconteceu nenhuma ao punitiva contra o regime srio.

    A partir deste ponto, a guerra civil sria, que continua sem interrupo, mudou

    de carter:

    - o regime de Assad recuperou respeitabilidade por mostrar boa vontade e se

    engajar em tratativas com a comunidade internacional, sem que por isto parea

    se enfraquecer militarmente;

    - a oposio democrtica anti-Assad se sentiu trada e perdeu folego e territrio

    contra as foras do regime - e contra milcias sunitas extremistas que no a

    reconheciam. Seguiram-se batalhas entre milcias da oposio ideologicamente

    inimigas;

    - os grupos jihadistas radicais (em particular Jubhat al-Nusra e Da`ash/ISIS, ambos

    vinculados al-Qaeda e entrando na Sria a partir da Turquia e do Iraque) se

  • 31

    fortaleceram e conseguiram implantar mini-emirados, em particular no norte e

    leste da Sria. Esto impondo localmente, com extrema brutalidade um regime

    islamista sunita radical e perseguem xiitas, cristos e outros: em consequncia a

    brutalidade de Assad parece agora menos excepcional e/ou inaceitvel;

    - A influncia dos EUA no Oriente Mdio sofreu uma eroso e o poder russo

    aumentou. O cenrio de uma interveno internacional desapareceu por

    completo.

    - O enfraquecimento da oposio moderada e a expanso de grupos jihadistas so

    vistos com crescente preocupao por Washington, como potencial nova base de

    terrorismo antiocidental. No comeo de 2013 os EUA encerraram seu apoio

    oposio, e esto reconsiderando suas opes. Contemplam p.ex. trabalhar junto

    com Assad, os russos e/ou o Ir contra os jihadistas sunitas. Isto fortalece ainda

    mais o eixo xiita apoiado pela Rssia e contra a qual as demonstraes de 2011 se

    levantaram.

    - Outros ramos dos mesmos grupos jihadistas esto estabelecendo zonas

    independentes no Iraque ocidental (Anbar) regio fronteiria com a Sria.

    Entreve-se a possibilidade de um Estado al-Qaeda unificado englobando partes

    dos dois pases. Baseado em extensa violao de direitos humanos tais como

    entendidos no ocidente, tal Estado no apenas acabaria com quaisquer

    experimentos democrticos como estabeleceria um regime fundamentalista

    sunita. Tal emirado se considerar como ncleo de um futuro califado universal e

    funcionar como plataforma de lanamento de operaes terroristas e militares

    contra alvos ocidentais, mas tambm antirussos, anti-iranianos, antichineses,

    etc.7

    4. o risco de uma exploso regional cresceu. Apesar das tentativas para cont-

    la, a guerra civil sria est, portanto, desestabilizando todo o mundo rabe. A guerra civil,

    ao invs de se limitar, est se espalhando. Isto traz dois prolongamentos regionais: uma

    crise humanitria de refugiados, e uma extenso da beligerncia alm das fronteiras.

    Um em cada trs srios fugiu de sua moradia em busca de segurana. O nmero de

    refugiados srios em Estados vizinhos alcana mais de dois milhes com previso de

    7 A previso tem se realizado ao decorrer do ano 2014.

  • 32

    chegada de muito mais.8 Este deslocamento macio desafia os meios de absoro de

    Estados acolhedores e dos rgos internacionais de ajuda emergencial, e est

    produzindo uma crise humanitria de grande envergadura.

    O que pior que, exceto a Turquia, cada um dos Estados recipientes j sofre por

    si mesmo de gravssimos problemas de coexistncia entre etnias e seitas. Semelhante a

    como a chegada de refugiados palestinos aps 1948 e 1967 produziu mortferas tenses

    comunitrias no Lbano e eventualmente constitui o estopim da guerra civil de 1975-

    1990, assim o influxo de centenas de milhares de refugiados srios das mais diversas

    comunidades arrisca romper os frgeis equilbrios comunitrios nos pases vizinhos e

    provocar ondas de violncia em srie. Os dois pases em maior risco so o Lbano e o

    Iraque. Beirute e Trpoli j vivem uma recrudescncia de violncias provocadas pela

    entrada de tropas Hizbullah na Sria ao lado de Assad: rixas sectrias e ataques

    terroristas anti-xiitas, produzindo atos de vingana anti-sunitas. No Anbar iraquiano e

    na regio predominantemente sunita do Iraque central (Falluja) a discriminao anti-

    sunita pelo governo de Maliki alimenta ressentimentos que preparam o terreno para a

    militncia de ISIS e de grupos jihadistas afins.

    No necessria muita imaginao para traar um cenrio srio que possa

    incendiar o Oriente Mdio inteiro, criando uma crise de amplitude global.

    O paradoxo da no interveno: O que necessrio fazer e porque os srios no

    podem faz-lo sozinhos

    Estamos, portanto, frente a uma situao paradoxal (embora no nica na

    histria). H dois anos, uma ajuda externa relativamente modesta (armas, treinamento,

    talvez a imposio de zonas de excluso area e de refgios) a uma populao sedenta

    para se livrar de um tirano e por estabelecer um incio de democratizao, poderia ter

    sido suficiente para encorajar as foras democrticas e progressistas e lhes outorgar a

    vitria. As democracias tinham uma oportunidade para promover, a baixo custo, uma

    8 6,5 milhes de srios so desalojados no prprio pas. De acordo com a ONU, em setembro de 2014 a Turquia

    acolheu 1 milho de refugiados e o Lbano 667.000. Outras grandes concentraes de refugiados srios buscaram

    abrigo no Iraque, na Jordnia e no Egito: http://www.reuters.com/article/2014/08/29/us-syria-crisis-refugees-

    idUSKBN0GT0AX20140829

  • 33

    mudana de regime com bvio apoio da maioria da populao. Essa uma hiptese que

    nunca mais poderemos testar. A prolongada reticncia (ou impotncia) da comunidade

    internacional em tomar uma deciso, por medo de piorar uma situao j bastante

    complexa, resultou na prpria piora que buscou evitar e tornou um conflito nacional de

    dificlima resoluo num beco sem sada com risco de internacionalizao. Hoje at uma

    interveno muito mais robusta e incluindo botas no cho, teria grande dificuldade de

    simplesmente estancar o sangramento. Hoje o preo mais elevado e o que se obtm em

    troca, menos animador.

    Na realidade, a eventualidade de uma interveno, ainda discutida em meados de

    2013, est hoje praticamente enterrada. Desde a soluo vergonhosa da crise das

    armas qumicas, ningum mais seriamente a prope. Os diplomatas se esconderam atrs

    as esperanas ilusrias de um congresso de paz multilateral. Desde o fracasso

    (anunciado de antemo) do congresso Genebra II, janeiro de 2014) e sob o espectro da

    fulgurante expanso do Estado islmico em meados do ano, no mais houve iniciativas

    diplomticas srias envolvendo a prpria guerra civil sria. Talvez o adiamento da

    catstrofe inevitvel seja a nica tarefa vivel para diplomatas. Como intelectuais

    responsveis precisamos, contudo, transcender as restries de um realismo que s faz

    crculos insensatos. Precisamos refletir sobre as necessidades para resolver um conflito

    que s piora e se expande mesmo se os contornos forem, na conjuntura atual,

    improvveis. Proponho abaixo tal exerccio em utopia:

    A Sria precisa de uma nova constituio, para expressar um novo contrato social.

    Historicamente contratos sociais foram a responsabilidade exclusiva de uma

    nao um grupo habita certo territrio e, a partir de determinadas caractersticas

    coletivamente aceitas e internalizadas (lngua, costumes, religio, certos valores, a

    memria de um inimigo comum...) desenvolve e formula os princpios constitutivos de

    sua convivncia. Os franceses desenvolveram uma repblica laica centralizada, os

    ingleses um parlamentarismo baseado em representaes locais, os alemes um imprio

    autoritrio baseado numa identidade ancestral, etc. O processo podia demorar anos ou

    sculos, mas eventualmente todos expressaram sua identidade coletiva num Estado

    territorial. A frmula fez sucesso, e hoje a terra inteira est partilhada em 200 Estados

  • 34

    soberanos, que teoricamente abrigam uma nao cada. A ideologia nacionalista at hoje

    se baseia neste valor da autodeterminao, e o princpio da autodeterminao,

    transposta da nao para o Estado que (supostamente) a expressa, se tornou a ideologia

    normativa da comunidade internacional. Consequentemente a soberania do Estado a

    pedra angular da lei internacional e da ONU.

    Porm a mesma autodeterminao tambm coloca alguns limites: os critrios da

    participao poltica, a difcil coexistncia entre naes - e os Estados multi- ou no-

    nacionais.

    Por um lado, h o problema do critrio do pertencimento, da cidadania. Um

    Estado que acolhe todos os estrangeiros que assimilem sua lngua, seus valores, arrisca

    diluir sua nacionalidade e entrar numa crise de identidade. O Estado que, pelo contrrio,

    exclui a priori a entrada de novos candidatos pode se tornar um monstro de apartheid,

    de discriminao e at de genocdio.

    Por outro lado, h o problema do choque das autodeterminaes. A terra cada

    vez mais explorada, a presso sobre recursos finitos aumenta, as populaes se

    expandem, mas os territrios permanecem os mesmos. Conflitos e guerras resultaram

    da competio desordenada entre naes. A industrializao e a modernizao

    trouxeram grande prosperidade, mas igualmente tornam as massas urbanas cada vez

    mais vulnerveis. A corrida armamentista produz armas cada vez mais destruidoras. As

    guerras mundiais do sculo passado comprovaram como os Estados-nao tm se

    tornado perigosos mutuamente e, no raramente, tambm para seus prprios cidados.

    No por acaso, a Liga das Naes e a ONU, que so as primeiras tentativas srias para

    controlar o comportamento dos Estados, nasceram como remdios polticos decorrentes

    das guerras mundiais.

    Apesar de suas importantes realizaes, os experimentos para encaixar as

    tendncias agressivas de Estados contra outros Estados ou contra seus sditos, no

    avanaram o bastante. A ONU e outras estruturas supranacionais esto paralisadas pela

    tenaz resistncia dos Estados individuais que (frequentemente exortados pelas prprias

    populaes nacionalistas) insistem na sua soberania. Estamos ainda no sistema meio

    anrquico que simultaneamente produz insegurana e torna arriscado demais ceder

    soberania a uma instncia mais abrangente, que seria a nica sada do dilema da

    segurana. Portanto o prprio Estado deve ser repensado.

  • 35

    H, porm, ainda um terceiro problema: muitos Estados atuais no nasceram

    como resultado de movimentos de naes que antecederam o (seu) Estado. Muitos

    Estados so fruto de invaso, colonizao e depois descolonizao de populaes que se

    encontraram mais ou menos por acaso dentro de um mesmo territrio: a prpria luta

    contra o colonizador ento o fator que forja (bem ou mal) uma nova nao, meio

    artificial, com fronteiras arbitrarias, e travada por contradies. O resultado de tal

    heterogeneidade ps-independncia registra frequentes tenses tnicas e comunitrias:

    lembremos os casos da ndia, Indonsia, e de muitos Estados africanos. O mundo rabe

    no diferente, como vimos acima. E dentro do mundo rabe, a heterogeneidade alcana

    seus nveis mais extremos na Sria e seus vizinhos. A prpria fraqueza (ou

    multiplicidade) das identidades nacionais pode, em tais Estados, provocar, por

    compensao, um verdadeiro culto ao Estado...

    Facilmente esquece-se que tal quase-sacralizao do Estado nacional no uma

    lei da natureza, mas o resultado de lutas histricas. O Estado, como forma especfica

    para organizar sociedades, atrelou vantagens para as populaes mas a um alto preo

    humano.

    Com a globalizao, no apenas econmica, financeira e miditica, como tambm

    militar e cultural, o preo de manter a primazia do Estado soberano ameaa se tornar

    ainda mais alto. A Sria exemplifica uma conjuntura quando o respeito soberania

    (ainda amplamente incorporado lei internacional) parece acarretar maiores

    desvantagens do que sua violao. O Estado um fenmeno com um comeo no passado;

    ter tambm um fim futuro. Este fim chegar quando as populaes humanas

    conclurem que o preo da sua manuteno excede seus benefcios. Apenas ento se

    desenvolvero novas formas polticas alternativas que, idealmente, combinaro as

    vantagens da autodeterminao com as da coexistncia global.

    No podemos no mbito deste artigo detalhar o contedo de um contrato social

    desejvel para uma sociedade tal como a Sria: ultra heterognea, traumatizada, sem

    fronteiras e princpios consensuais, sem qualquer experincia histrica democrtica, e

    profundamente marcada por uma religio explicitamente universalista e antinacional: o

    isl. Se no houvesse diferenas entre etnias, religies, e naes, os Estados como os

    conhecemos nunca teriam emergido. Alm do mais, as diferenas que esto rasgando o

    corpo social da Sria no param nas suas fronteiras meio artificiais, elas ameaam

    tambm desestruturar seus vizinhos. Podemos, contudo, apontar algumas matrizes.

  • 36

    Qualquer futura base de coexistncia, para ter uma mnima viabilidade, implicaria um

    respeito a essas particularidades.

    O mnimo necessrio para enderear construtivamente a tragdia na Sria j

    constitui em si um pacote extremamente ambicioso: (1) democratizar para conter a

    fragmentao, (2) pacificar o autoritarismo violento, (3) reassentar e reabilitar a

    economia e sociedade desestruturadas, e (4) dividir os islamistas para integrar as alas

    mais moderadas:

    1. governo da maioria com garantias para as minorias. Esta precondio

    provavelmente a mais crucial, pois a Sria, como o Crescente Frtil em geral, se

    caracteriza pela fragilizao das hierarquias tradicionais entre comunidades, tais como

    estas funcionaram no imprio otomano, que precedeu a fragmentao colonial da regio

    ps-Primeira Guerra: muulmanos e no-muulmanos, sunitas e xiitas, rabes e no

    rabes, etc. (cada grupo subdividido em subgrupos com seus preconceitos mtuos s

    vezes brutais). As divises tradicionais de poder, riqueza e prestgio j estavam em

    decomposio no sculo 19. No sculo 20 nenhum princpio de ordenamento social

    conquistou uma hegemonia consensual. Pelo contrrio, os processos simultneos de

    afrouxamento e de crescente rigidez das divises comunais tm produzido insegurana,

    incertezas, e tentativas de (re)impor hegemonias. As autocracias estabelecidas no

    mundo rabe so fruto destas tentativas hegemnicas, mas a crescente educao e

    globalizao das populaes exauriram sua viabilidade. Numa tal situao a democracia

    que combina o poder da maioria com a proteo das minorias, e que assim

    combina autodeterminao com direitos humanos, parece o nico modelo vivel que

    possa garantir uma convivncia mais ou menos bem-sucedida. No por acaso a

    democratizao foi a reivindicao principal dos protestos pacficos que desencadearam

    a tragdia sria em Maro de 2011.

    No caso da Sria, a minoria alawita (mas tambm outras minorias associadas a

    eles, p.ex. os cristos) precisa ceder sua hegemonia: mesmo no cenrio mais otimista

    no o far sem garantias para sua segurana, explicitamente ameaada por milhes de

    pessoas que por dcadas sofreram as indignidades que a elite poltica-militar alawita

    lhes imps (alm do anti-xiismo visceral dos sunitas radicais). S nesta condio uma

    partilha do poder pode fazer jus heterogeneidade da sociedade sem atomiz-la.

    Tais garantias s possuiro credibilidade se as novas regras forem incorporadas em

    novas instituies autnomas do governo, p.ex. uma magistratura independente,

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    partidos, sindicatos, imprensa e organizaes religiosas livres. Nenhuma democracia

    pode funcionar sem o consentimento dos governados e sem um governo claramente

    limitado, que deixa amplo espao sociedade civil.

    2. resoluo no-violenta de conflitos. Nenhuma sociedade pode sobreviver

    num clima de permanente violncia aberta. Em muitas sociedades pr-modernas, as

    funes so atribudas e as regras mantidas pela ameaa de violncia punitiva, nunca

    longe da superfcie. As sociedades rabes no foram exceo. Apesar da existncia de

    moldes tradicionais de resoluo de conflitos por negociao e do efeito muitas vezes

    moderador da religio, suas caractersticas autoritrias e patriarcais e at tribais

    mantinham um alto grau de violncia dentro da famlia. Recentemente a populao sria

    afundou numa prolongada involuo dessas normas de convivncia de antemo j

    desiguais, tanto entre seitas quanto entre regies e classes. Os moldes autoritrios ao

    mesmo tempo inibe