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8/19/2019 Bom ou mal http://slidepdf.com/reader/full/bom-ou-mal 1/5 Terceira lição “Bom” ou “mal” O ponto de partida consiste na indagação a respeito do real significado de “bom” ou “mau”, sendo necessário para respondê-la investigar o emprego dessas palavras. Observa-se, primeiramente, que, de um modo geral, o emprego da palavra “bom” denota uma posição favorável. Alm disso, atenta-se para o fato de que referido termo, em quase todos os seus usos, implica uma pretensão ob!etiva, universalmente válida. "esse caso, utili#a-se critrios ob!etivos e um !u$#o baseado no bin%mio correto-incorreto. &sto posto, a palavra “bom” empregada sem caráter ob!etivo e'cepcionalmente, especialmente em dois casos, a saber, quando algum a emprega no sentido de di#er “agrada- me” (inserção em um conte'to lingu$stico sub!etivo) ou quando usada isoladamente como resposta positiva a um convite. *iferentemente, o vocábulo entendido ob!etivamente nos empregos que e'pressam normas racionais (onde bom sin%nimo de racional), bem como nos diversos empregos atributivos (em que representa uma qualidade de algum ob!eto +'. bom relgio, bom violinista). Outro importante aspecto inerente a todos os empregos de “bom”, inclusive os sub!etivos, o de que se trata de uma escola, o que, por sua ve#, pressup/e a e'istência de uma escala que vai de “pior” a melor” e segundo a qual se ordenam possibilidades, uma escala de preferências. Assim, “melor” seria o que prefer$vel de modo fundamentado. &ndaga-se ainda se fundamentos ob!etivos são necessariamente fundamentos racionais. 0ara 1ant, a resposta afirmativa. + ele fundamenta sua posição com o argumento de que seguir pontos de vista ob!etivamente fundamentados se identificaria com o agir racional. 0or esta ra#ão, o filsofo tambm entendia que o emprego absoluto de “bom” está relacionado com a fundamentação racional absoluta. 2odavia, quando se considera que o emprego de “bom” está atrelado 3 questão da  preferência, a ob!etividade fala ou contempla outros fatores alm da racionalidade. +sta noção !á apontada pelos empregos atributivos de “bom”, os quais sempre tratam da classificação de ob!etos de acordo com uma escala de preferência.  "esse conte'to, 4on 5rigt destaca dois empregos que na tradição aristotlica eram considerados indistintamente como “e'celência”, a saber, o emprego instrumental 6 segundo o qual !ulga-se a e'celência do ob!eto por sua utilidade +'. o relgio e sua função 6 e a

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Terceira lição

“Bom” ou “mal”

O ponto de partida consiste na indagação a respeito do real significado de “bom” ou

“mau”, sendo necessário para respondê-la investigar o emprego dessas palavras.

Observa-se, primeiramente, que, de um modo geral, o emprego da palavra “bom”

denota uma posição favorável. Alm disso, atenta-se para o fato de que referido termo, em

quase todos os seus usos, implica uma pretensão ob!etiva, universalmente válida. "esse caso,

utili#a-se critrios ob!etivos e um !u$#o baseado no bin%mio correto-incorreto.

&sto posto, a palavra “bom” empregada sem caráter ob!etivo e'cepcionalmente,

especialmente em dois casos, a saber, quando algum a emprega no sentido de di#er “agrada-

me” (inserção em um conte'to lingu$stico sub!etivo) ou quando usada isoladamente como

resposta positiva a um convite.

*iferentemente, o vocábulo entendido ob!etivamente nos empregos que e'pressam

normas racionais (onde bom sin%nimo de racional), bem como nos diversos empregos

atributivos (em que representa uma qualidade de algum ob!eto +'. bom relgio, bom

violinista).

Outro importante aspecto inerente a todos os empregos de “bom”, inclusive ossub!etivos, o de que se trata de uma escola, o que, por sua ve#, pressup/e a e'istência de

uma escala que vai de “pior” a melor” e segundo a qual se ordenam possibilidades, uma

escala de preferências. Assim, “melor” seria o que prefer$vel de modo fundamentado.

&ndaga-se ainda se fundamentos ob!etivos são necessariamente fundamentos racionais.

0ara 1ant, a resposta afirmativa. + ele fundamenta sua posição com o argumento de

que seguir pontos de vista ob!etivamente fundamentados se identificaria com o agir racional.

0or esta ra#ão, o filsofo tambm entendia que o emprego absoluto de “bom” está relacionadocom a fundamentação racional absoluta.

2odavia, quando se considera que o emprego de “bom” está atrelado 3 questão da

 preferência, a ob!etividade fala ou contempla outros fatores alm da racionalidade. +sta

noção !á apontada pelos empregos atributivos de “bom”, os quais sempre tratam da

classificação de ob!etos de acordo com uma escala de preferência.

 "esse conte'to, 4on 5rigt destaca dois empregos que na tradição aristotlica eram

considerados indistintamente como “e'celência”, a saber, o emprego instrumental 6 segundo

o qual !ulga-se a e'celência do ob!eto por sua utilidade +'. o relgio e sua função 6 e a

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e'celência tcnica 6 prpria das e'celências umanas, cu!a aferição envolve a noção grega

antiga de “tcnica” no sentido de arte +'. como a de um esquiador ou de um m7sico.

+m relação 3 primeira, entende-se que poss$vel classificar os ob!etos em uma escala

de e'celência ob!etiva, desde que se fi'e uma perspectiva (um critrio espec$fico para tanto,

como a e'atidão ou a intensidade do ru$do de um relgio). 8ontudo, a análise da e'celência

das diferentes perspectivas poss$veis tem um caráter sub!etivo irredut$vel.

0or outro lado, no que di# respeito 3 e'celência tcnica, a despeito de se admitir a

influência de fatores ob!etivos, inegável seu caráter eminentemente sub!etivo, 3 semelança

do que ocorre com os !u$#os estticos. A respeito destes 7ltimos, o prprio 1ant afirma que

são universalmente válidos, a despeito de não serem fundamentáveis, sendo a

fundamentabilidade, neste caso, substitu$da pela igualdade de preferência dos su!eitos. "esse sentido, no dom$nio esttico, para ele, aquele que !ulga tem a pretensão de que

todos deveriam !ulgar igualmente, o que significa que todos têm uma receptividade, a

 princ$pio igual, para o esteticamente satisfatrio.

*ito isto, não obstante permaneça comple'a a questão, vislumbra-se a possibilidade de

uma e'celência válida em geral que não se apoie em ra#/es, a qual, contudo, não

 perfeitamente aplicável aos !u$#os morais como o para os dom$nios tcnico e esttico.

  Assim, entende-se que o significado que 1ant oferece para o emprego absoluto de“bom” deve-se ser re!eitado, na medida em que a fundamentação absoluta incompat$vel com

os sentidos de racionalidade e de e'celência. *esse modo, deve-se admitir que a palavra

“bom”, enquanto mero predicado não relativo, não tem um sentido claro.

Ainda na tentativa de se alcançar o sentido do emprego gramaticalmente absoluto de

“bom”, destacam-se duas concepç/es.

9ume afirma que “bom” o que todos os omens de fato preferem e nesta medida

aprovam. 2odavia, sua proposta encontra ob!eç/es, como a identificação de que veicula umafalácia naturalista (o !u$#o tico seria fruto de uma constatação do que ocorre no mundo

natural) e o argumento de que seu recurso ao !ulgamento sub!etivo insuficiente, na medida

em que se entende que !u$#os morais são necessariamente fundamentáveis e têm conte7do

ob!etivo.

2ais consideraç/es levam 3 conclusão de que preciso um conceito moral formal que

admita diferentes conceitos como conte7do e não e'iste um significado para o emprego

gramaticalmente absoluto de “bom” pass$vel de ser compreendido diretamente, mas sim uma

espcie de emprego atributivo preeminente segundo o qual algum tido como bom enquanto

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omem ou membro da sociedade. Assim, o sentido de “bom” estaria relacionado

 precipuamente a aç/es, não a pessoas.

+sta concepção coincide com o conceito moral de “bom” para Aristteles. 8om efeito,

ele permite um esclarecimento efetivo da valoração gramaticalmente absoluta, ao afirmar que

uma ação boa a ação de um omem bom. *istintamente de 9ume, ele fornece um ponto de

vista de fundamentação para aprovar e censurar, o qual tambm suficientemente formal para

estar aberto a diferentes conceitos de moral.

0or se tratar de um emprego atributivo de “bom”, a concepção aristotlica insere-se no

conte'to dos empregos atributivos relacionados 3s capacidades umanas, isto , das

e'celências tcnicas de 4on 5rigt.

 "esse sentido, ressalta-se que grande parte da sociali#ação de uma criança consiste noincentivo ao desenvolvimento de um con!unto de capacidades aferidas segundo escalas de

 preferência, tais como capacidades corporais, capacidade instrumentais de produ#ir coisas,

capacidade tcnicas e papeis, de modo que o bom desempeno destas importante, sobretudo,

 para a vida adulta.

+m igual sentido, o desenvolvimento de capacidades particulares tambm pode ser 

importante. 0ara tanto, deve-se observar se tais qualidades são especialmente importantes para

a pessoa, isto , se ser bom nesta capacidade fa# parte do seu sentimento de autoestima. :eeste for o caso, se algum demonstra ser mau em uma capacidade que le importante, a

reação a vergona, a qual consiste em um sentimento de perda de autoestima aos (poss$veis)

olos aleios.

*e outra sorte, diferentemente destas capacidades especiais, e'iste uma capacidade

central para sociali#ação, a qual consiste na capacidade de ser um ente socialmente tratável,

cooperador, ou mesmo de corresponder ao padrão para ser membro de determinada sociedade,

e as normas morais de uma sociedade são !ustamente as que se prestam a estabelecer estes padr/es.

 "esse conte'to, a vergona tambm a reação emocional diante de um fracasso

moral. Ocorre que a vergona moral, a despeito de ser estar no mesmo grupo da vergona por 

outros fracassos, distingue-se da vergona não moral. A distinção especialmente evidenciada

quando se analisa a reação emocional das outras pessoas nas duas situaç/es.

*e fato, a reação das pessoas ao fracasso aleio em uma das capacidades especiais

tratadas alures obedece a uma lgica de aplauso ou cr$tica, ao passo que quando se está

diante de um fracasso moral, a reação a censura e;ou a indignação, a!a vista aver nesse

caso uma forte carga valorativa. &sso porque, quando se trata da capacidade central da

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sociali#ação, o comportamento submetido a um !u$#o moral que obedece a uma lgica de

aprovação ou censura.

 "essa esteira, os membros de uma sociedade e'igem uns dos outros um

comportamento moral independente das vontades individuais. + esta e'igência rec$proca, este

“ter de” incondicional está intrinsecamente ligado 3 ideia de sanção 3 ação contrária, a qual

consiste !ustamente na vergona do infrator e na correlata indignação dos demais.

Ante o e'posto, depreende-se o sentido da camada sanção interna 6 na medida em

que s poss$vel ser atingido pela indignação quando esta foi internali#ada por meio da

vergona -, a qual está intimamente ligada 3 formação da consciência moral.

Assim, a formação da consciência moral está atrelada 3 prpria vontade do indiv$duo

de querer se entender como membro de uma comunidade, o que implica o fato de que eleassume sua identidade como membro da sociedade ou parceiro cooperador e, por conseguinte,

se entende como pertencente a um grupo de pessoas que e'igem reciprocamente a

observ<ncia de determinadas normas de condutas e padr/es de valor.

+m outras palavras, necessário o dese!o de pertencimento a este mundo moral, sem o

qual não poss$vel sentir vergona diante da prpria infração das respectivas normas ou

indignação quando outros o fa#em. + dessa forma o “ter de” gramaticalmente absoluto

novamente relativi#ado.A fim de esclarecer a questão, recorre-se a conceitos freudianos. =reud denomina a

consciência moral de superego e entende que a formação deste pressup/e a formação do que

ele cama de ideal do ego. "esse sentido, somente mediante a identificação aceita-se a

inst<ncia punitiva e consequentemente a sanção internali#ada.

Assim, como fundamento do “ter de” á um “eu quero”, o qual significa que se dese!a

ser membro de um cosmos moral definido por meio de e'igências rec$procas em relação a um

conceito de “ser bom”. + somente com base nisso poss$vel querer ser bom nesta perspectiva- na medida em que mesmo aquele que age moralmente mal pertence a este mundo moral.

+m tal sentido, destaca-se ainda o fen%meno do “lac> of moral sense”, prprio da

 psiciopatologia. A este respeito, entende-se que o “não querer ser” membro de um cosmos

moral uma possibilidade sempre presente e um “eu quero” está efetivamente na base da

assunção da consciência moral.

8onsiderando que a falta de consciência moral não um acidente e que a consciência

moral o resultado de um ato de vontade, supera-se a suposição de quase todas as ticas

tradicionais, inclusive a >antiana, no sentido de que a consciência moral seria algo fi'ado em

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nossa consciência pela nature#a. + esta circunst<ncia torna mais dif$cil a questão da

fundamentação de uma consciência moral e de uma moral moderna.

*estarte, fa#-se necessário esclarecer o significado de fundamentar a moral,

 prescindindo das teorias ticas tradicionais.

:urge então uma ob!eção ao racioc$nio ora delineado uma inserção tão fundamental

da consciência em e'igências rec$procas não leva a uma compreensão conservadora da moral,

ou, antes, a uma moral da adaptação social?

A este respeito, salienta-se que perfeitamente compreens$vel a ob!eção diante da

ausência de qualquer e'plicação acerca da pretensão dos !u$#os morais de serem

ob!etivamente fundamentados. "essa esteira, em que pese a ausência de qualquer intenção em

aborda profundamente o assunto de modo imediato, fa#-se uso de dois e'emplos paraclarificar a questão.

0rimeiramente, referindo-se a @esus de "a#ar, enquanto algum que relativi#ou e

suplementou a moral então e'istente do seu povo, pontua-se que tal reforma moral não seria

 poss$vel se ele tivesse retirado a nova moral estruturalmente do social, ra#ão pela qual se

dedu# que o trabalo do reformador consiste basicamente em substituir os conte7dos cu!a

observ<ncia deve ser mutuamente e'igida.

Outrossim, no que concerne 3 tica moral, se dedu# que defender uma posição moralconsiste em e'igir que os outros façam o mesmo - nesse caso, e'igir que todos se indignem

contra quem maltrata os animais e que o façam na mesma medida, isto , que assumam o

novo conte7do em sua consciência moral. Assim, deve-se entender a moral de modo

estruturalmente social. +ste o pressuposto de uma reforma moral. &sso porque uma atitude

que não se situa na estrutura intersub!etiva da e'igência não uma atitude moral.

forçoso reconecer que o “deveria” do reformador não se identifica com o “ter de”

 prprio do !u$#o moral. 2odavia, a noção tambm não remete a outra compreensão de moraldissociada do social.