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1 Bordar: masculino, feminino. Jean-Yves Durand Embora de maneira variável, todos os domínios da vida social fornecem um campo de observação das várias modalidades de relacionamento entre homens e mulheres. E as actividades ligadas à costura, e mais especificamente ao bordar, não escapam à força das determinações sociais e culturais que pesam sobre a definição das competências - e, portanto, da autonomia e da liberdade - dos membros dessas duas categorias. Isso aparece claramente a quem observa, hoje em dia, a produção de lenços de namorados no Minho. Sabe-se que o processo de estudo, preservação e promoção dessas peças artesanais bordadas tem vindo a ser dinamizado nos últimos anos pela Câmara de Vila Verde, em colaboração com várias outras entidades. Entre outras iniciativas foi pedido a uma equipa de observadores externos a realização de um "Estudo aprofundado sobre os lenços de namorados", apoiado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e enquadrado num protocolo entre a Câmara de Vila Verde e a Universidade do Minho, nomeadamente a Secção de Antropologia. É no âmbito deste conjunto de acções que a Aliança Artesanal organizou em Fevereiro de 2006 um encontro acerca da igualdade de género, onde foi apresentada a comunicação que deu origem a este texto. Trata-se agora de apresentar a um público que poderá não dispor dos rudimentos da antropologia algumas observações acerca das relações entre homens e mulheres tal como se encontram traduzidas em vários aspectos da actividade de bordar, e em particular na produção dos lenços no passado (como pode hoje ser conhecido ou pelo menos imaginado) e no presente. E dessas considerações podem também ser tiradas algumas conjecturas quanto à evolução desta actividade no futuro.

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    Bordar: masculino, feminino. Jean-Yves Durand

    Embora de maneira varivel, todos os domnios da vida social fornecem um campo de

    observao das vrias modalidades de relacionamento entre homens e mulheres. E as

    actividades ligadas costura, e mais especificamente ao bordar, no escapam fora das

    determinaes sociais e culturais que pesam sobre a definio das competncias - e, portanto,

    da autonomia e da liberdade - dos membros dessas duas categorias. Isso aparece claramente a

    quem observa, hoje em dia, a produo de lenos de namorados no Minho. Sabe-se que o

    processo de estudo, preservao e promoo dessas peas artesanais bordadas tem vindo a ser

    dinamizado nos ltimos anos pela Cmara de Vila Verde, em colaborao com vrias outras

    entidades. Entre outras iniciativas foi pedido a uma equipa de observadores externos a

    realizao de um "Estudo aprofundado sobre os lenos de namorados", apoiado pela

    Comisso de Coordenao e Desenvolvimento Regional do Norte e enquadrado num

    protocolo entre a Cmara de Vila Verde e a Universidade do Minho, nomeadamente a Seco

    de Antropologia.

    no mbito deste conjunto de aces que a Aliana Artesanal organizou em

    Fevereiro de 2006 um encontro acerca da igualdade de gnero, onde foi apresentada a

    comunicao que deu origem a este texto. Trata-se agora de apresentar a um pblico que

    poder no dispor dos rudimentos da antropologia algumas observaes acerca das relaes

    entre homens e mulheres tal como se encontram traduzidas em vrios aspectos da actividade

    de bordar, e em particular na produo dos lenos no passado (como pode hoje ser conhecido

    ou pelo menos imaginado) e no presente. E dessas consideraes podem tambm ser tiradas

    algumas conjecturas quanto evoluo desta actividade no futuro.

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    Bordadeiras e bordadeiros

    Quando Europeus pensam hoje na actividade de"bordar", pensam no universo

    feminino: a ideia mais comum que se trata exclusivamente de uma actividade de mulheres.

    Alis, apesar de ter comeado a observar as bordadeiras minhotas h mais ou menos dois

    anos, nunca tentei bordar. Por um lado, verdade que a observao etnogrfica no passa

    necessariamente pela prtica, por parte do investigador, das actividades tcnicas das pessoas

    que observa. no entanto uma atitude bastante habitual em etnotecnologia, sobretudo quando

    se trata de estudar uma operao tcnica relativamente simples e cuja boa execuo exige a

    aprendizagem e a aplicao de um saber corporal especfico ou inusitado: posturas, gestos,

    sensorialidade... E o facto que, aquando de outras investigaes, pareceu-me importante

    experimentar a manipulao das ferramentas que estavam a ser usadas minha frente.

    Mesmo quando era inteiramente incapaz de atingir o mnimo resultado concreto, seja por

    "falta de jeito", por uma absoluta falta de familiaridade com o tipo de movimentos requeridos

    ou por no partilhar as vises do mundo que constituem o enquadramento explicativo da

    "eficcia" de certas tcnicas, parecia-me normal tentar aproximar-me assim da experincia

    sensorial dos meus interlocutores. Estes concordaram sempre, por vezes adiantavam-se ao

    meu pedido, e sempre se prestaram a todas as demonstraes necessrias, inclusive no caso

    de ferramentas to pouco comuns como a vara forcada ou o pndulo dos vedores da gua.

    Mas at agora nenhuma bordadeira me perguntou se estaria interessado em pegar numa

    agulha.

    Alm disso, j me aconteceu vrias vezes ouvir comentrios indicando mais ou menos

    abertamente alguma surpresa pelo facto de um homem se interessar por "aquilo" e, at, dirigir

    uma investigao sobre o bordado. Mesmo quando falo com colegas antroplogos, -me por

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    vezes preciso mostrar como e porque que este objecto de estudo to digno de interesse

    como qualquer outro e permite tecer consideraes acerca de uma variedade de problemticas

    clssicas da disciplina nas reas, entre outras, da tcnica, da esttica, da economia, das

    dinmicas culturais no tempo da "patrimonializao" dos produtos tradicionais e, como est a

    ser o caso aqui, das relaes de gnero, por acaso um dos temas na ribalta em antropologia.

    Mas parece sempre difcil ultrapassar a fortssima menorizao social a que tm sido

    submetidos os "trabalhos de agulha".

    Alis, entre a minoria de homens presentes na sala no dia do encontro, nenhum

    reconheceu praticar o bordado. E ser que o Presidente da Cmara borda? Se for o caso,

    nunca parece ter sido reivindicado em pblico, embora se trate de uma actividade novamente

    muito viva em Vila Verde, ao ponto de ter mesmo passado a ser emblemtica do Concelho,

    sendo-lhe muito mais especfica do que, por exemplo, tocar concertina. O Sr. Presidente fez

    no entanto questo de manifestar publicamente a capacidade de praticar esta ltima

    actividade aquando do gigantesco encontro de centenas de tocadores que foi organizado em

    Vila Verde em 2005 com o objectivo de alcanar um recorde do Guinness Book. E se formos

    ver as fotografias do evento, as caras de tocadoras so difceis de encontrar num mar de

    rostos masculinos.

    Como bvio, no nenhuma novidade, todas as culturas atribuem

    preferencialmente, ou mesmo obrigatoriamente, certas actividades a um sexo. No cabe aqui

    analisar as razes desta repartio, nem os critrios que regem a sua variabilidade ao longo

    do tempo, entre as culturas e entre os grupos sociais, assuntos sobre os quais existe um sem

    fim de investigao em cincias sociais. O que certo que, no que diz respeito ao bordar,

    no mundo ocidental estamos hoje em dia nitidamente na esfera feminina.

    No entanto, nem sempre a actividade de bordar foi, na Europa, to exclusivamente

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    feminina como hoje. Na Encyclopdie de Diderot et D'Alembert, publicada na segunda

    metade do sculo XVIII e que uma extraordinria fonte de informao acerca das artes e

    tcnicas do passado, inclusive nas suas dimenses sociais e culturais, no encontramos a

    entrada brodeuse, "bordadeira", mas unicamente brodeur, no masculino. Esta ltima palavra

    soa hoje, para um ouvido francs, de maneira to estranha ou pelo menos surpreendente

    como "bordadeiro" para um ouvido portugus (os programas de processamento de texto

    desconhecem a palavra): ao contrrio da Encyclopdie, em muitos dicionrios

    contemporneos s se encontra a forma feminina (em textos antigos encontra-se a palavra

    "bordadores"). No quer dizer, como bvio, que as mulheres no bordavam. Foi o

    desempenho profissional dessa actividade que, durante sculos, ficou reservado aos homens.

    E embora o texto fale no masculino, o facto que as ilustraes acerca do bordado mostram

    duas mulheres e nenhum homem. Existe a este respeito um pormenor significativo no que a

    Encyclopdie diz acerca do bordar no linge (a palavra francesa que designa as peas de tecido

    com um uso domstico - toalhas, lenis - e, por outro lado, a roupa interior): era na altura

    uma actividade reservada s mulheres, que eram de certo remuneradas mas que no podiam

    pertencer a nenhuma corporao e que, portanto, no beneficiavam de um real

    reconhecimento enquanto profissionais, enquanto participantes activas na vida econmica. S

    possvel falar aqui de uma maneira excessivamente esquemtica acerca de um perodo de

    vrios sculos, ainda por cima com variaes entre os diversos pases, mas possvel dizer

    que, no incio da poca moderna, o bordar visvel, pblico, espectacular, ostentatrio, caro

    (no s em termos de mo de obra, mas tambm em razo do uso de materiais raros como os

    fios de ouro ou de seda), noutras palavras simblica e economicamente muito valorizado, era

    produzido por homens e destinava-se decorao das vestes das elites sociais e religiosas ou

    de acessrios txteis usados em cerimnias polticas ou litrgicas. Tambm as mulheres das

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    elites no s podiam como, numa certa medida, deviam entregar-se a esta actividade

    considerada como um sinal de alta moralidade, mas a sua produo no integrava o circuito

    econmico. Em contrapartida, a elaborao do bordado destinado a um uso domstico,

    ntimo, escondido ou reservado a acontecimentos do foro familiar (como baptizados),

    testemunho prximo dos mecanismos dos corpos e das paixes, pertencia s mulheres.

    Esta situao encontra-se documentada no que diz respeito a Portugal duzentos e

    cinquenta anos antes da publicao da Encyclopdie. Em 1517, o primeiro documento

    conhecido a regular a produo de bordados em Lisboa refere-se a "bordadores", no

    masculino. Da mesma maneira fala Duarte Nunes de Leo em 1572 no "Regimento dos

    brosladores" [bordadores] integrado no Livro dos Regimentos Officiaes Mecanicos

    (documentos citados em Pires 2003b: 7). A maneira pouco linear como se produziu a

    progressiva feminizao no s do bordado mas de todos os trabalhos de agulha na Europa,

    entre os sculos XVI e XVIII, encontra-se apresentada e analisada num artigo muito

    documentado da historiadora Nicole Pellegrin (1999)1.

    1 O mais aprofundado e estimulante estudo de histria crtica do bordado enquanto

    instrumento de definio do papel social das mulheres encontra-se na obra de Roszika Parker (1996), que dedica todavia uma ateno menos completa s dimenses contemporneas desta actividade.

    Mas o ponto de vista antropolgico adoptado neste texto, embora devidamente

    informado pelo que possvel saber do passado, aplica-se ao presente. E quem conhece um

    pouco o universo do bordar minhoto contemporneo sabe que possvel encontrar alguns

    homens que bordam. Ou, melhor, na maior parte dos casos, possvel ouvir falar deles, em

    geral por uma bordadeira explicando que, perante o sucesso comercial e o aumento da

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    procura, teve que adoptar um sistema de subcontratao (para a realizao repetitiva e

    morosa de pormenores ou de acabamentos: crivos, remates a ponto de recorte, etc.) de

    maneira a aumentar a sua produo. Em geral so outras bordadeiras, mais jovens ou menos

    afamadas, que so contratadas para tal, mas pode-se dar o caso de o marido ou um irmo

    saber bordar o suficiente para assumir essa funo. Produz-se assim uma inverso da

    estrutura antiga que restringia as mulheres posio subalterna de operria numa oficina cujo

    mestre era um homem, em geral o seu pai ou marido. Mas tem que se precisar que, na

    realidade, em quase dois anos de observao atenta em todo o Minho, s conseguimos

    localizar (mas nem sempre identificar com toda a clareza) cinco situaes deste tipo,

    nenhuma envolvendo homens jovens. H em Vila Verde quem se lembre que o Dr. Machado

    Vilela bordava, mas era um intelectual, portanto algum por parte de quem no so de todo

    inesperados comportamentos mais ou menos surpreendentes ou mesmo fugindo francamente

    a certas normas sociais secundrias. Conta-se tambm, alis, que lhe acontecia falar com as

    flores. Mas nas famlias camponesas, a costura era, e , uma actividade exclusivamente

    feminina. E o Sr. Gonzaga, exmio bordadeiro de Terras de Bouro, que abandonou

    recentemente a sua actividade em razo da idade, representa o nico caso contemporneo que

    conseguimos encontrar de um homem assumindo publicamente o estatuto de bordadeiro

    profissional. Quanto aos poucos jovens, por vezes crianas ou adolescentes, que aprenderam

    a bordar na companhia da me ou da av, a sua motivao limita-se em geral descontraco

    ou, em dois casos que encontrmos, releva de uma atitude de revindicao deliberada de

    identidade cultural.

    A costura enquanto elemento da "natureza feminina".

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    Um filme de fico francs recente, Brodeuses, realizado por lonore Faucher e que

    alcanou um certo sucesso e um reconhecimento pela crtica, no desprovido de um certo

    valor documental acerca da produo de bordados sofisticados, em oficinas artesanais

    independentes, para as casas de alta costura parisienses. Como sabido, e apesar de uma

    lenta feminizao da profisso, a larga maioria dos criadores de moda de grande renome

    continua a ser masculina. Por contraste, o bordado que alguns deles apreciam na criao das

    peas que lhes trazem fama e fortuna concebido e produzido por mulheres que permanecem

    annimas, remetidas para uma posio profissionalmente subalterna e socialmente invisvel.

    Na terminologia francesa da hierarquia profissional da alta costura, podem chegar a ser

    "petites mains" ou "premires mains": so as mos, e nada mais, apesar de desempenharem

    um papel essencial que os criadores esto longe de negar (ver por exemplo as declaraes de

    Karl Lagerfeld num artigo recente do New York Times, Hayt 2006). Este pormenor chega

    para indicar que no possvel falar das relaes de gnero no que diz respeito ao bordar sem

    alargar o olhar a toda a realidade da costura, nas suas dimenses tanto profissionais como de

    auto-consumo domstico.

    Foi, de facto, possvel constatar que no havia nenhum bordadeiro na assistncia do

    encontro em Vila Verde. Mas tambm no havia muito mais homens que praticavam a

    costura. Uma sociloga francesa fez um inqurito que mostrou que, no oeste da Frana, quase

    uma mulher em cada trs possui uma mquina de costura e todas tm uma caixa de costura.

    Ao contrrio, entre os homens, mais de um quarto no possui sequer uma agulha e um pouco

    de linha em casa. E nenhum dono de uma mquina (Denfle 1995). Continua portanto a ter

    uma grande fora a conotao feminina do uso domstico da agulha ( alis toda a gesto da

    roupa que, nas sociedades ocidentais, continua a ser atribuda pelos casais jovens de maneira

    largamente preferencial s mulheres, como tem mostrado a investigao sociolgica

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    publicada em 1992 por Jean-Claude Kaufmann). Esta repartio sexual das competncias,

    como bvio, no tem nada de recente. Na mitologia, a imagem feminina por excelncia a

    dupla figura da fiadeira e da tecel, muitas vezes equiparada a uma aranha bastante

    ambgua... (Weigle 1982). Mas possvel pensar tambm em exemplos oriundos tanto da

    pintura clssica como da literatura, popular ou erudita (Pellegrin 1999: 750-753; Zylberberg-

    Hocquard 2003: 173-174), do sculo XIX e pelo menos da primeira metade do sculo XX

    nos quais a bordadeira a representao por excelncia da rapariga virtuosa. Quando se quer

    dar a imagem de uma vida familiar harmoniosa, a figura preferida a mulher cosendo. a

    sua habilidade como costureira, conjugada com as suas virtudes de poupana e o seu

    engenho, que permite me fazer com que a roupa de toda uma famlia pobre no apresente

    um aspecto descuidado. A costura um dos instrumentos da boa aparncia, da dignidade, da

    expresso de uma forma de respeito pela ordem estabelecida.

    No portanto de estranhar a insistncia colocada pelo ensino tanto laico como

    religioso na aprendizagem feminina da costura, qual era atribudo um alcance moral e

    social: "A rapariga torna-se uma verdadeira mulher pela costura, a costura faz a mulher pelo

    desenvolvimento da potencialidade das suas qualidades femininas" (Zylberberg-Hocquard

    2003: 179). A agulha aparece neste contexto como o instrumento por excelncia de afirmao

    de uma suposta "natureza feminina". Passando por uma estrita disciplina do corpo e da

    ateno necessria para a boa realizao de pontos minsculos, de motivos regulares, a

    costura instalava tambm as mulheres no seu papel social e restringia-as a ele. E fcil

    reparar que hoje o acesso das mulheres ao trabalho assalariado se acompanha por uma cada

    vez maior diluio de algumas das suas competncias tcnicas tradicionais, entre as quais a

    costura. Existem vrios estudos (por ex. Verdier 1979) acerca da importncia da simblica da

    agulha e da costura na definio da mais profunda, enraizada e supostamente indiscutvel,

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    "natural", identidade feminina.

    No entanto, existe tambm o outro lado da moeda: como j foi indicado, os grandes

    costureiros so quase todos homens. E os alfaiates constituam tambm um corpo profissional

    masculino. O fenmeno exactamente semelhante ao que acontece na rea da culinria, onde

    tambm as posies profissionais e os lugares de grande prestgio ficam reservados a quem,

    na vida domstica, no cozinha. Trata-se de outro fenmeno j bem estudado: quando uma

    rea tcnico-econmica adquire mais visibilidade e protagonismo, ou simplesmente quando

    passa a ser mais imediatamente proveitosa, os homens no s ficam interessados como sabem

    fazer com que as mulheres sejam excludas de certas actividades, por vezes de uma maneira

    bastante radical (Tabet 1979). Numa regio da Nova Guin, por exemplo, numa dessas

    sociedades exticas que a antropologia estudava preferencialmente antes de comear a olhar

    tambm para o mundo ocidental, cortava-se um dedo s raparigas com menos de seis anos

    quando falecia um homem na famlia. Praticamente todas as mulheres tinham quatro a seis

    dedos a menos, o que obviamente lhes impedia a prtica de inmeras actividades produtivas

    ou o uso de armas importantes, como o arco (Heider 1962). Nada de to drstico hoje em dia

    entre ns, mas sabido que as convenes sociais dispem em geral de uma potncia que

    torna desnecessrio o uso da fora fsica.

    Pode-se notar tambm que apesar de ser um dos instrumentos desenvolvidos h mais

    tempo pela humanidade, como sabemos graas a numerosas descobertas arqueolgicas, a

    agulha no entanto dos que menos e mais lentamente evoluram ao longo do tempo.

    Houve melhoramentos de pormenor (grossura, solidez), do osso passou-se para o metal, mas

    a forma e o princpio de funcionamento deste objecto tcnico simplssimo ficaram

    exactamente iguais desde que foi inventado h milhares de anos2. Ora precisamente quando

    2 Assinala-se que precisamente a abundncia de agulhas em muitos stios

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    tem lugar um considervel avano tcnico, com o aperfeioamento da mquina de costura na

    segunda metade do sculo XIX, que se afirma a relao entre as mulheres e a costura tal

    como continua a ser hegemnica hoje.

    Tinha pouco a pouco sido levantada a maior parte das restries que limitavam o

    exerccio da profisso de costureira, por vezes a partir do argumento de que era mais

    conveniente as mulheres serem vestidas por pessoas do mesmo sexo. E, de facto, enquanto os

    alfaiates podiam ter uma clientela mista, s as crianas e as mulheres eram vestidas pelas

    costureiras. Algumas, no sculo XIX, alcanaram uma certa fama mas a mecanizao

    crescente da confeco veio ajudar a remasculinizar o topo da profisso. A vasta maioria das

    mulheres que trabalhavam ento na confeco tinha um emprego extremamente

    desvalorizado de operria secundria, seja numa fbrica ou em casa. Neste ltimo caso,

    correspondendo a um modo de produo que nunca chegou a alcanar em Portugal a

    importncia que teve no Reino Unido ou nalgumas regies francesas, uma parte do

    rendimento destinava-se por vezes antes de mais a pagar a compra da mquina. A

    repetitividade extrema das tarefas e as cadncias inimaginveis que eram ento exigidas,

    sobretudo aps a motorizao das mquinas, so patentes no facto de a sua limitao ter sido

    imposta pelo risco do aquecimento excessivo da agulha queimar o tecido (Zylberberg-

    Hocquard 2003: 185). Essas operrias eram mera fora de trabalho: parece muito

    significativo o facto de o seu papel ser hoje em dia muitas vezes preenchido por essas figuras

    contemporneas do escravo que so os imigrantes ilegais ou as crianas trabalhando nas

    arqueolgicos que levou o grande arquelogo e etnotecnlogo Andr Leroi-Gourhan (1936) a pr em causa o clich dos homens pr-histricos vestidos apenas com peles grosseiramente unidas: o facto de terem perdido tantas agulhas indica que, a partir de uma certa altura, a costura tinha passado a ser uma actividade importante para eles e a notvel finura das suas agulhas de osso s se justificava para a realizao de uma costura fina sobre peas de roupa relativamente sofisticadas.

  • 11

    sweat shops de grandes cidades ocidentais ou de certas regies do terceiro mundo3. E a forte

    especializao das operaes inerente produo em srie no proporcionava um fcil

    alargamento de competncias tcnicas, a aprendizagem de uma verdadeira profisso. E

    patente at que ponto a costureira e o engenheiro correspondem a dois tipos de socializao

    profissional (Rollet 2002). certo que continuaram a existir costureiras independentes que

    tinham o seu prprio atelier, mas estava ento instalada a ideia de que uma mulher que cose

    no faz nada alm de realizar plenamente as suas potencialidades naturais, enquanto que um

    homem revela a originalidade de um criador. A idade industrial reproduziu e consolidou

    portanto a situao que lhe era anterior.

    S para mulheres?

    Parece pertinente colocar aqui uma questo formulada por Anglica Lima Cruz no

    fim de um pequeno artigo acerca do figurado de Galegos, do nome da freguesia do concelho

    de Barcelos onde so produzidos esses bonecos de barro hoje bem conhecidos: "O figurado

    no tinha prestgio porque era feito por mulheres, ou era feito por mulheres porque no tinha

    prestgio?" (Lima Cruz 2003: 26-27). A fabricao do figurado, que no exige o uso

    prestigiante da roda, era uma produo marginal, um complemento tolerado na medida em

    que permitia aproveitar algum espao deixado no forno pela louca. E, no perodo anterior

    afirmao de um interesse por parte da clientela urbana, as peas no eram assinadas. Mas a

    3 Pode-se notar que, depois de ter sido um dos sectores produtivos em que primeiro e

    mais completamente se produziu a integrao no sistema capitalista (Goody 1982), o txtil constitui uma actividade em que possvel encontrar casos de permanncia de modos de produo h muito substitudos noutras reas e, ao mesmo tempo, experimentaes com cooperativas de produo ou com novas estruturas de distribuio. Embora representando uma parte reduzida da produo global, essas formas atpicas (as mais retrgradas como as mais experimentais) parecem passar neste momento por uma fase de crescimento.

  • 12

    autora observa que a produo de figurados est agora a ser cada vez mais assumida por

    homens, precisamente quando se afirma o seu reconhecimento enquanto artesanato com valor

    artstico e comercial.

    A situao do bordado, e mais especificamente dos "lenos de namorados", apresenta

    algumas diferenas importantes. Trata-se de uma produo menos especializada, cujos

    rudimentos tcnicos so largamente partilhados por uma fraco importante da sociedade (o

    que nitidamente no o caso da olaria), que no exige a mobilizao de um dispositivo

    tcnico relativamente pesado (em todos os sentidos do termo: a roda, o forno), que pode

    numa certa medida ser realizada num modo ambulatrio enquanto se aproveita o tempo

    morto de outras actividades (numa sala de espera, no comboio, atrs da vaca...). Alm disso,

    o leque de temas tratados no figurado virtualmente ilimitado. Tambm pode em teoria ser o

    caso com o bordado, claro. No entanto, a decorao de peas de pano utilitrias (o que

    passou a ser agora chamado de "txtil-lar"), mesmo quando tende a ser figurativa, em geral

    com motivos vegetais, no costuma remeter para um discurso explcito (alm da ocasional

    indicao das iniciais de um nome), ao contrrio do que acontece com os "lenos de

    namorados". E o nome hoje generalizado destas peas - apesar de, ao que tudo indica, no

    terem sido designadas assim no passado de uma maneira to monoltica como agora - aponta

    para a sua funo no mbito do dilogo amoroso e, em consequncia, para a limitao

    temtica da sua simblica e dos seus textos.

    O facto , por exemplo, que entre as centenas de lenos antigos que chegmos a

    examinar no decorrer do inqurito, um nico tem uma aluso poltica4. Quanto presena

    contnua da coroa da monarquia em inmeros lenos, ainda hoje, no mais do que a

    4 "Viva arepublica" (sic), no leno n AQ 047 do Museu Nacional de Etnologia; de

    realizao tosca, integrado numa srie de peas parecidas, parece incerta a sua natureza de "leno de namorados".

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    sobrevivncia de um signo grfico cuja significao h muito se diluiu por completo. Trata-

    se, para usar o vocabulrio tcnico da lingustica e da semitica, de um caso de

    "desmotivao", em que o significado (a coroa) perdeu neste contexto qualquer ligao ao

    seu referente inicial, o significado (a monarquia). Longe de indicar um qualquer apego

    poltico, a sua presena agora muitas vezes justificada meramente pelo facto de ser

    inevitvel numa rplica que se quer fiel ao seu modelo ou porque "os clientes gostam" de um

    motivo que "d um ar antigo". Segundo outras explicaes menos prosaicas a propsito de

    lenos concebidos recentemente, a coroa, juntamente com o escudo que encima, representa

    Portugal e visa portanto manifestar um "natural" amor camisola nacional. um exemplo da

    tendncia para o alargamento temtico que observvel em peas contemporneas, cuja

    limitao ao registo das relaes amorosas se vai esbatendo5 - das relaes amorosas mas

    tambm muitas vezes dos afectos familiares, razo pela qual seria provavelmente prefervel

    usar o nome mais abrangente de "lenos de Amor".

    Mas mesmo quando em vez do "amor", no sentido estrito, as quadras falam por

    exemplo de um acontecimento cultural e da cidade que o acolheu (leno dito "da Porto

    2001", criao colectiva numa oficina do projecto "Namorar a cidade"; Aliana Artesanal

    2002: 121) ou de uma formao profissional universitria (criao de Estela Fernandes a

    propsito do seu curso em turismo; leno certificado n 1538, stio internet da Adere Minho:

    http://www.adereminho.pt/lencos/pt/index.htm), sempre se trata de expressar publicamente

    sentimentos, algo que continua a ser muito mais facilmente aceite por parte das mulheres do

    que dos homens, mesmo se as coisas comearam a mudar: rapazes no choram... Conjugada

    5 Das relaes amorosas mas tambm muitas vezes dos afectos familiares; possvel

    lembrar aqui que em Buenos Aires as "mes da Praa de Maio" usam, entre outros suportes para as suas reivindicaes de justia, lenos bordados com os nomes dos seus familiares desaparecidos durante os anos de ditadura.

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    com a imagem hoje em dia muito pouco masculina da costura, como j vimos, esta

    especializao temtica no domnio das emoes deve contribuir para limitar as investidas de

    muitos homens numa rea que ultimamente lhes tem escapado.

    Esses reparos apontam para a pertinncia de uma questo, especialmente no quadro de

    uma comunicao apresentada num encontro dedicado promoo da igualdade de gnero.

    Um dos problemas principais que enfrenta quem est envolvido na elaborao de cadernos de

    especificaes para a certificao de produtos artesanais tem a ver sobretudo com a tenso

    entre tradio e inovao (Durand 2005). Uma falha bastante comum nos projectos de

    certificao ser provavelmente o facto de os seus promotores ficarem obnubilados pela

    materialidade dos bens visados pelo processo de proteco, em detrimento de uma ateno

    mnima ao contexto em que se desenvolve a sua vida social, uma atitude que a nossa equipa

    tem tentado evitar na sua abordagem dos lenos de namorados: define-se e regulamenta-se os

    processos tcnicos (incluindo por vezes as fontes de energia e o tamanho da unidade

    produtora), as matrias primas, as constantes estticas ou estsicas (no caso de produtos

    alimentares; Brard e Marchenay 2004), deixando de lado as condies sociais e culturais da

    produo e, nomeadamente, a repartio sexual das tarefas. De facto, ningum se preocupa

    em saber se um boi barroso ou um queijo da Serra foram mimados por um homem ou uma

    mulher antes de serem consumidos. E, obviamente, e embora j se esteja a (tentar) classificar

    o "patrimnio imaterial", como sabido, parece mais fcil regulamentar as origens genticas

    de um bovino ou a quantidade e o tipo de leite necessrio para a fabricao de um queijo do

    que os comportamentos laborais dos seus produtores, informados pela mais ancorada

    ideologia e, ao mesmo tempo, permeveis a rpidos processos de adaptao a novas

    condies scio-econmicas.

    Mas o que fazer quando o conhecimento que temos de uma "cultura tradicional"

  • 15

    indica sem a mnima sombra de dvida que, por razes que podem por exemplo ter razes

    cosmolgicas participando da justificao e da reproduo da ordem social local, um certo

    produto, agora pago a preo de ouro pelas multinacionais farmacuticas, pode ser elaborado

    exclusivamente por, digamos, os homens do grupo e que um tabu define as severas punies

    reservadas s mulheres que se atreveriam a desrespeitar a proibio? Ser desejvel um

    "projecto de ajuda ao desenvolvimento local" que, fornecendo mquinas e construindo

    estradas que permitiro aumentar em muito a produo, participar na reproduo e no

    reforo da dominao masculina nesta sociedade, descurando toda e qualquer promoo da

    igualdade de gnero? Por outro lado o crescimento do bem-estar material geral da populao

    poder ser palpvel e mesmo talvez facilitar a escolarizao das raparigas, muitas vezes um

    passo que facilita, embora sem a garantir, a sua emancipao. Tal evoluo, por seu turno,

    pode revelar-se um incentivo contestao da ordem social estabelecida e, portanto, resultar

    na destruio de uma "cultura tradicional", isto , noutras palavras, de parte do hoje to

    prezado "patrimnio imaterial" da humanidade... de propsito que este exemplo hipottico

    caricatural, embora no impossvel.

    Felizmente, no caso dos lenos, como temos visto, a situao no to claramente

    definida. A conotao desses produtos com a esfera feminina resulta hoje em dia, em boa

    parte, de uma viso deformada do passado - o que, importa dizer, no lhe tira validade ou

    eficcia social - que no resiste a um mnimo esforo de documentao histrica e de trabalho

    de campo. J foi referido que no por serem hoje praticamente invisveis que nunca houve

    homens que bordaram. E j ficou indicado que os lenos nunca se destinaram em exclusivo

    ao namorado, sendo por vezes oferecidos a um familiar particularmente querido (uma neta,

    etc.). Acresce que se encontra documentada, mais ou menos um sculo atrs, a

    comercializao nas feiras e nos mercados de lenos bordados ou mesmo de peas industriais

  • 16

    estampadas (por exemplo Leite de Vasconcellos 1882; Pessanha 1916). Parece bvio que

    nem todas as raparigas bordavam o "seu" leno. Os mais conhecidos dos textos dos

    etngrafos (por exemplo Lapa Carneiro 1963, Mota Leite 1965) que se interessaram no

    assunto repetem todavia, por razes que sero analisadas no relatrio final do projecto, que

    "as raparigas bordavam e ofereciam ao namorado", etc. Esta ladainha encontra-se agora

    reproduzida a papel qumico (o mesmo que se usa para decalcar os "riscos" do bordado) nos

    trabalhos de estudantes universitrios e nos artigos que florescem na imprensa por altura do

    dia 14 de Fevereiro. J que se trata de uma das ideias agora mais instaladas e inquestionveis

    acerca desses bordados, tratando-se portanto da verdade hoje socialmente partilhada, ser que

    um caderno de especificaes deveria indicar a norma seguinte: "para ser certificado, um

    leno de namorados tem que ter sido concebido e realizado por uma mulher"?

    Pode no parecer primeira vista, mas toca-se aqui na complicadssima articulao

    entre a universalidade (isto , segundo a cultura ocidental) dos direitos humanos tais como

    formulados a partir do Iluminismo e, por outro lado, a particularidade das culturas locais,

    minoritrias, ou que contestam as ideias ocidentais. E o assunto complica-se ainda mais pelo

    facto de ter a ver com o estatuto social das mulheres. O problema na realidade muito bicudo

    e, no fundo, remete para a mesma problemtica do que, por exemplo, a questo das quotas

    nas listas eleitorais. Ser excessivo tecer tamanhas consideraes a partir do caso dos lenos

    de namorados, ao fim e ao cabo bastante mais trivial e envolvendo muito menos gente do que

    a violncia domstica, a exciso, ou a representao e participao poltica das mulheres?

    Vejamos.

    Na sua comunicao no encontro, Adriano Basto falou, a propsito das quadras

    inscritas nos lenos, no que chamou de "feminismo", embora com o indispensvel cuidado de

    salientar que era um feminismo bastante diludo. verdade que se tratava, com os lenos, de

  • 17

    pr em prtica talvez no uma rebeldia mas uma certa liberdade em matria de escolha do

    parceiro. As mulheres minhotas tinham uma posio social "diferente da de outras regies do

    pas" (Pina Cabral 1989: 113), mais independente, gozando de uma alguma autonomia

    econmica e tambm da faculdade de atitudes activas no namoro. Mas importante salientar

    que, embora mais comum e elaborada no Minho (como, alis, vrias outras manifestaes

    estticas), a poesia dos lenos existe tambm noutras regies. E abusivo falar de

    matriarcado, como fizeram alguns autores, no que diz respeito sociedade minhota do sculo

    XIX. Dentro de casa as mulheres eram as "patroas", como ainda hoje se diz, em parte porque

    a ausncia masculina devida emigrao permitiu uma afirmao da autoridade feminina.

    Mas, fora da esfera domstica, na sociedade considerada na sua globalidade, o real poder, a

    real dominao eram masculinos. Basta ler as prprias quadras que podem at um certo ponto

    passar por feministas: quem que se oferece, quem d, quem toma, quem chora? De facto, na

    maior parte do tempo, quem d ou deve dar so as mulheres, seja bens materiais, afectos ou

    disponibilidade: a presena feminina por exemplo maioritria no voluntariado. Do ponto de

    vista de certas feministas, esta ligao preferencial que a cultura ocidental (entre outras)

    estabelece entre as mulheres e a ddiva, isto , a sua relativa marginalizao no sistema

    laboral e comercial, mais uma forma de explorao. Por outro lado, dar no tem que

    significar perder. Consciente e deliberada, a ddiva pode ser uma crtica da lgica utilitarista

    inerente ao sistema econmico e consumista dominante, e um factor de realizao pessoal

    (sobre esses pontos, ver Godbout 1992: 54-59).

    A mudana por que estava a passar a realidade scio-cultural descrita por Pina Cabral

    nos anos 1980 no parou. A produo agrcola de subsistncia perdeu ainda mais relevncia

    e, em contrapartida, cresceu a actividade assalariada. Em rigor, seria a este respeito preciso

    tentar distinguir entre o Baixo e o Alto Minho (e o litoral, como indica Pina Cabral 1989:

  • 18

    112), zonas que no sempre fcil delimitar na prtica, como se v bem no caso do concelho

    de Vila Verde, sendo o Baixo Minho mais, e desde mais tempo, integrado na economia

    capitalista com uma profunda inter-penetrao, bem visvel na paisagem, das actividades

    agrcolas e industriais. Mas em geral verdade que a diminuio da importncia estrutural da

    emigrao tem tambm contribudo para o aumento da procura de uma actividade assalariada.

    "As casas baseiam cada vez mais a sua economia no dinheiro obtido, principalmente por

    homens, atravs da produo orientada para o mercado ou de actividades no agrcolas" e,

    sendo "maior o envolvimento dos homens no sector capitalista da economia", so eles que,

    "enquanto grupo, beneficiam mais com o progressivo declnio da importncia do sector da

    subsistncia" e vem assim a sua dominao reforada (Pina Cabral 1989: 112-113).

    S um estudo pormenorizado permitiria de afirm-lo com certeza, mas parece no

    entanto que os rendimentos femininos tendem no Minho a ser vistos como menos "opcionais"

    (Narotzky 1988), mais essenciais e menos complementares do que noutros contextos rurais,

    talvez em razo do antiga posio central das mulheres no controlo da agricultura de

    subsistncia, em tempos a actividade principal das casas6. Todavia, a subordinao feminina

    transparece, mais uma vez, no facto de serem as mulheres que constituem o maior

    contingente da chamada "economia informal". No que diz respeito ao bordado, segundo

    estatsticas comunicadas pela Adere Minho, entre as mais de 80 bordadeiras individuais (fora

    as unidades produtoras) que at agora tm pedido a certificao de pelo menos um leno, s

    aproximadamente 20 % so colectadas. Tradicionalmente ligada agricultura, a pluri-

    actividade adopta agora outros moldes (Silva 1998: 159-170). Bordar nas margens, por assim

    dizer, de facto a nica estratgia de adaptao, para no dizer de sobrevivncia, para uma

    6 Encarnacin Aguilar Criado (2001) apresenta um caso de produo artesanal

    feminina de bordado em Andalusia com contornos scio-econmicos diferentes da situao no noroeste portugus, com uma secundarizao mais vincada dos rendimentos femininos.

  • 19

    bordadeira que tem que complementar rendimentos muito baixos num contexto econmico

    incerto.

    A nova dimenso "feminista" dos lenos parece portanto clara. Trata-se de fazer deles

    os instrumentos da independncia econmica, da autonomia psicolgica e da

    responsabilidade social das bordadeiras, um objectivo que vrias instituies e associaes

    ou cooperativas j se empenharam em concretizar. Mas os lenos adquiriram uma

    visibilidade e um protagonismo que ultrapassam em muito as suas antigas presenas e

    funes sociais: como acontece com a maior parte dos produtos artesanais que ficam

    integrados numa economia de mercado alargada, so procurados menos pela sua funo do

    que pelo seu significado, sobretudo pelo seu poder de evocao de um mundo passado

    (Garca Canclini 1982: 118). Passaram agora a poder ser peas de coleco relativamente

    valiosas. Ser que no vamos ver os homens comearem a querer uma fatia do bolo? J h

    universitrios a aproveitarem-se do tema... E, em boa parte, so homens os estilistas que

    comearam a utilizar motivos dos lenos (ou do bordado em geral), reproduzindo numa certa

    medida o esquema da alta costura francesa, acima descrito, em que as bordadeiras se vem

    remetidas para um lugar marginal. Ser, portanto, que este sector de actividade tem que ser

    reservado s mulheres, no por razes de pretenso respeito tradio, que j vimos no

    serem vlidas, mas de preservao do acesso a um sector profissional?

  • 20

    As iniciativas de introduo de quotas nas listas eleitorais so muitas vezes criticadas

    a partir do argumento de que as mulheres no devem chegar a lugares de responsabilidades

    por caridade mas unicamente em funo das suas competncias reais (alm do risco de se

    criar um precedente de que se poderia aproveitar qualquer grupo social - s que nenhum

    outro grupo est perto de ter uma existncia objectiva enquanto minoria social comparvel

    situao das mulheres). Alm de que, para tal, seria antes de mais necessrio que as tais

    capacidades sejam devidamente reconhecidas, fcil constatar que na prtica, os progressos

    so to lentos que, se o objectivo de chegar paridade for sincero, no se v como h-de

    alcan-la sem algum voluntarismo poltico. Em finais do sculo XIX criou-se nos Estados

    Unidos escolas de medicina e hospitais exclusivamente para mulheres. Quaisquer que

    tivessem sido as motivaes (talvez morais) desta deciso, o facto que havia numerosas

    mdicas no pas em 1900 quando em Paris um ano antes eram s 29, entre as quais vrias

    imigrantes russas e polacas (Rollet 2002: 196).

    S que aqui no se trata de permitir o acesso das mulheres a uma profisso masculina

    mas de valorizar, profissionalizar e rentabilizar uma actividade j conotada como feminina,

    fazer dela um factor de auto-estima entre mulheres muitas vezes desfavorecidas. Agora que

    "bordar deixou de se considerar fundamental na educao das meninas", importante

    perguntar-se quem aprende a bordar, e porqu (Pires 2003a: 3): insistir na especificidade

    feminina desta actividade apresenta o risco de voltar a encerrar as mulheres em actividades

    tidas durante muito tempo como prprias do "sexo fraco". No se pode decretar, como

    bvio, mas o reaparecimento de bordadeiros num futuro prximo seria uma maneira de

    valorizar a profisso de... bordadeira. At podiam beneficiar de um efeito de curiosidade

    simtrico ao que faz uma parte do sucesso de duas ferreiras (palavra que soa de certeza to

    estranha como "bordadeiro") instaladas na Chamusca (Pires 2003c: 13), uma delas tendo j

  • 21

    vrias lojas em funcionamento (ver em www.ferroforjado.com). Ao que parece, a antiga

    simbologia muito negra associada figura do ferreiro encontra-se ainda mais esquecida do

    que o significado poltico da coroa, e o facto que essas duas mulheres conseguiram quebrar

    os esteretipos.

    Encontramos nisso tudo a traduo de uma oposio entre duas grandes tendncias

    antagnicas que reivindicam ambas o rtulo de "feminismo". H quem prefira cultivar o que

    tem sido tradicionalmente considerado como "feminino" e reivindicar certas qualidades como

    sendo elementos essenciais do que ser mulher. de maneira implcita que esta posio

    posta em prtica na junta de freguesia de Ferreiros, no concelho de Amares, onde 45

    mulheres se renem ao domingo e tera noite para bordar sob a direco da D. Sameiro. A

    atraco exercida por esta forma de sociabilidade, de facto exclusivamente feminina,

    habilmente usada como um isco para outras modalidades do ensino recorrente pela promotora

    da aco: a Prof. Elvira Arajo pensa que as participantes so antes de mais motivadas pela

    perspectiva de se encontrarem entre mulheres, para desenvolver habilidades que lhes so

    prprias, num animadssimo "convvio" - "uma guerra civil" nas palavras do Sr. Presidente da

    Junta. A mera hiptese de ver um homem pegar numa agulha causa aqui gargalhadas

    colectivas, mesmo se conhecida a existncia, "antigamente", de alguns bordadeiros. Ou, ao

    contrrio, pode-se negar toda e qualquer diferena alm das inegveis disparidades

    fisiolgicas, vendo a identificao de qualidades e competncias especficas a um ou outro

    gnero como construes sociais desprovidas de base natural e, portanto, contestveis. O

    debate est longe de estar encerrado e, para j, a sua soluo releva de opes polticas, no

    sentido geral. Este texto s pretende apontar para a maneira como essas questes se

    encontram presentes, embora nem sempre imediatamente visveis, no campo definido pelo

    actual relanamento do bordado no Minho, supondo que todos/as os/as leitores/as partilham o

  • 22

    desejo de ver as mulheres acederem plena cidadania.

    Remate a ponto de recorte

    Pega-se numa linha de bordar de cor indiferente, objecto de total insignificncia, e

    puxa-se. So talvez no uma sociedade e uma cultura inteiras que vm tona, mas boa parte

    delas. Assim o porque o bordado uma dessas actividades, como a bricolage, o futebol, a

    caa, a msica, a bicicleta, a apanha das conquilhas... que, por razes que no possvel

    analisar aqui (embora pudessem elas tambm ter a ver com as relaes de gnero) e em

    escalas obviamente muito variveis, despertam paixes, suscitam discursos, motivam

    comportamentos individuais e colectivos reveladores de valores profundos, dos "barulhos de

    fundo" de uma sociedade (Bromberger 1998). A antropologia tem ultimamente prestado

    pouca ateno a esses "pequenos objectos" aparentemente fteis. No se trata aqui de dizer

    que a disciplina deveria abandonar o questionamento frontal de questes identificadas como

    problemas sociais e culturais prementes, mas simplesmente de indicar que h diversos

    caminhos para l chegar. O "caminho das agulhas" evocado em muitos contos de tonalidade

    inicitica, na antiga literatura oral europeia, um deles: bainhas abertas, picots, crivos e

    desfiados so janelas sobre o avesso dos bordados e, tambm, sobre os bastidores das

    relaes entre homens e mulheres.

    Jean-Yves Durand

    Seco de Antropologia, Universidade do Minho. Institut d'Ethnologie Mditerranenne et Comparative, Aix-en-Provence.

  • 23

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