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O ACIDENTE de Bosco Brasil Mírian, ELA, 33 anos, trabalha no departamento de pessoal em uma grande companhia de seguros Mário, ELE, 36 anos, é funcionário na mesma firma onde Mírian trabalha. Vozes gravadas e voz do vizinho. Tudo se passa em um minúsculo apartamento em Pinheiros, São Paulo, tomado por livros, muitos livros - excessivamente. A porta de entrada, a porta do banheiro e uma janela (dependendo do palco escolhido, pode ocupar a boca de cena) fazem a circulação. A secretária eletrônica está ligada todo o tempo. A cena está vazia. Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Dispara a secretária eletrônica. ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe seu recado depois do bip. Ele liga em seguida. Soa o bip. VOZ 1 (Voz gravada) Mário? (Tempo ) Mário? (Tempo) Hoje é 21 de junho, sexta- feira. Seu aniversário. São... oito e trinta... cinco. Seis! Estou ligando porque eu queria... queria... Não consigo falar com essas coisas. Depois eu ligo. Soa um sinal sonoro. Silêncio. Tempo. Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Dispara a secretária. Neste mesmo instante, Mário entra - sem pressa. Vem carregando pacotes de supermercado. Pára um instante olhando na direção do aparelho de telefone. ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

Bosco Brasil - O Acidente

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Page 1: Bosco Brasil - O Acidente

O ACIDENTE

de Bosco Brasil

Mírian, ELA, 33 anos, trabalha no departamento de pessoal em uma grande companhia de seguros

Mário, ELE, 36 anos, é funcionário na mesma firma onde Mírian trabalha.

Vozes gravadas e voz do vizinho.

Tudo se passa em um minúsculo apartamento em Pinheiros, São Paulo, tomado por livros, muitos livros - excessivamente. A porta de entrada, a porta do banheiro e uma janela (dependendo do palco escolhido, pode ocupar a boca de cena) fazem a circulação. A secretária eletrônica está ligada todo o tempo.

A cena está vazia.

Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Dispara a secretária eletrônica.

ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

Soa o bip.

VOZ 1 (Voz gravada) Mário? (Tempo ) Mário? (Tempo) Hoje é 21 de junho, sexta-feira. Seu aniversário. São... oito e trinta... cinco. Seis! Estou ligando porque

eu queria... queria... Não consigo falar com essas coisas. Depois eu ligo.

Soa um sinal sonoro. Silêncio.

Tempo.

Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Dispara a secretária. Neste mesmo instante, Mário entra - sem pressa. Vem carregando pacotes de supermercado. Pára um instante olhando na direção do aparelho de telefone.

ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

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Soa o bip. Mas, dessa vez, ninguém deixa recado. Ouve-se um estridente sinal de ocupado por um certo tempo. Ele larga os pacotes, volta a fita da secretária-eletrônica para ouvir os recados e vai cuidar da sua «roupa de festa». Mário é meticuloso, apanha com cuidado a calça e a camisa, procura fios soltos, confere o vinco e assim por diante.

Mário mantém a expressão impassível e continua se vestindo, indiferente aos recados deixados na secretária-eletrônica.

VOZ 2 (Voz gravada) Alô? (Longo tempo) Parabéns. (Tempo) Não deu p’reu ir. (Tempo) Segunda eu explico. (Longo silêncio) Parabéns. (Tempo).

Tempo. Soa o bip.

VOZ 3 (Voz gravada) Meu querido, felicidades! É a Cida, desejando tudo de bom. (Baixo) Na segunda eu levo sua lembrancinha.

Soa o bip. Sinal de ocupado. Novamente o bip.

Ouve-se um recado quase inaudível - ao fundo, os ruídos de um bar cheio.

VOZ 4 (Voz gravada) Marião! Escuta, a gente tá no velório... (Ri) A gente vai ficar a noite toda. Sabe como é velório.

VOZ 5 (Voz gravada) Mas como tem uma velas acesas, a gente vai comemorar o seu aniversário aqui mesmo.

A campainha da porta de entrada toca exatamente neste momento, mas Mario não reage.

VOZ 6 (Voz gravada) Vamos apagar as velinhas por você.

Vozes cantam «Parabéns a você», de modo desencontrado. Soa o bip.

VOZ 1 (Voz gravada) Mário? (Tempo) Mário! (Tempo) Hoje é 21 de junho, sexta-feira. Seu aniversário. São... oito e trinta e cinco. Seis!

Mário não deixa o recado continuar.

Silêncio.

A campainha da porta da rua toca novamente. Tempo.

ELE (Baixo) Quem é? (Alto) Quem é?

ELA Eu.

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ELE (Tempo) Mírian?

ELA Eu.

Mário vai abrir a porta, mas pára para confirmar pelo olho-mágico.

Pausa.

Mário se volta rapidamente para as paredes do apartamento. Confere as prateleiras, um instante. Abre a porta. Mírian surge na soleira.

ELA (Tempo) Ninguém chegou?

ELE Não.

ELA Nem Abigaíl?

ELE Biga?

ELA Não?

ELE Ninguém.

ELA Cheguei cedo.

ELE Não.

ELA O porteiro disse para eu subir. Não quis me anunciar pelo interfone.

ELE Deixei avisado que ia chegar muita gente.

ELA Fez bem.

Silêncio.

ELA Os outros devem estar chegando.

Longo silêncio.

ELA Ainda é cedo.

ELE Você não quer (interrompe-se)...

Mário tenta pegar no braço de Mírian, mas ela recua bruscamente.

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ELA Meu braço não... Por favor. (Exasperada) Desculpe.

Silêncio.

ELE Eu queria fechar a porta.

ELA (Tempo) Claro. (Pausa) Vou entrar.

Mírian entra. Mário fecha a porta e a tranca.

Longo silêncio. Mírian observa a decoração do apartamento.

ELE Eu estava arrumado umas coisas.

ELA Pode arrumar.

ELE Um segundo.

ELA Estou bem.

Mário hesita um instante. Sai para o banheiro. Mírian fica sozinha.

Mírian olha os livros com uma certa aflição. Aproxima-se de uma prateleira e a examina. Testa sua firmeza, e uns livros caem em seu braços. Ela confere se Mário notou o acidente. Nada. Coloca os livros de volta na prateleira de qualquer maneira, sem cuidado.

Mário volta, mais ou menos penteado e perfumado.

ELE (Tempo) Vamos beber.

ELA Vamos. É o seu aniversário.

Mário apanha uma garrafa do saco de supermercado. Deste momento em diante, Mário enche seu copo e o copo de Mírian, sem oferecer ou pedir licença.

ELE É o meu aniversário.

Mário serve Mírian, sem silêncio.

ELE (Tempo) Pensei que você não vinha. (Tempo) Depois da festa de fim de ano da firma.

ELA (Sinalizando na direção do copo) Assim já está bem.

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Silêncio.

ELA É bom festejar o aniversário.

ELE Com os amigos.

ELA Eu nunca mais festejei meu aniversário, desde que vim pra São Paulo.

ELE Não?!

ELA Não.

ELE É a primeira vez que eu faço uma festa.

Silêncio.

ELE Você me ajuda?

ELA (Tempo) Com o quê?

ELE Com a festa?

ELA Não tenho jeito pra cozinha.

ELE Está tudo pronto.

ELA Então?..

ELE As bexigas.

ELA Não entendi.

ELE Bexigas, chapeuzinhos, língua-de-sogra. Meu aniversário.

Mário vira um saco no chão: uma porção de enfeites de festa de criança.

ELE Minha primeira festa de aniversário.

ELA Você já bebeu hoje?

ELE Meu aniversário.

ELA Eu quase não vinha.

ELE (Pausa) Quem sabe não é melhor você ir embora?

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Mírian se levanta e vai mexer nos outros sacos de supermercado.

ELE (Aflito) O que você está fazendo?

ELA A festa...

ELE Não tem mais nada aí. Aqui. No chão. Por favor.

Mário apanha uns pacotinhos com enfeites.

ELE Qual você prefere?

ELA Me passe os chapeuzinhos.

Deste momento em diante, Mário e Mírian vão montando os enfeites de festa, enquanto conversam. Durante toda a peça, intermitentemente.

ELA Quantos?

ELE O pessoal da Firma.

ELA Quem?

ELE O Reynaldo não vem.

ELA Não?

ELE Avisou logo de manhã.

ELA Sandra?

ELE Também não.

ELE Já falou com todos?

ELE Deixaram recado. O dia inteiro. Eu lembrava de alguma coisa que estava faltando para a festa e saía. Quando voltava tinha um recado - desmarcando, uma desculpa qualquer. O dia inteiro. Gozado: ninguém conseguiu me pegar em casa.

ELA (Tempo) Eu não liguei.

ELE Não. Eu reparei. Estava esperando. Achei que ia ouvir sua voz agora, quando voltei, essa última vez...

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ELA Achou que eu não vinha.

ELE Achei que você ia ser a primeira a desmarcar.

Silêncio.

ELA Abigaíl?

ELE Veio por causa da Biga.

ELA Ligou?

ELE Ainda não.

Silêncio.

ELA Não estamos esquecendo de mais alguém?

ELE Veio por causa da Biga?

ELA Já bebeu hoje?

Silêncio.

ELE Não é melhor você ir embora?

ELA Abigaíl me prometeu uma carona pra casa.

Silêncio.

ELE Quer se sentar?

ELA Está bom? O chapéu?

ELE Ótimo.

ELA Quantos eu faço?

Silêncio.

ELE Quantos vêm no pacote?

ELA Quer que eu faça todos?

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ELE Queria saber qual é o mínimo para se ter uma festa.

ELA (Tempo) Uns doze. Uma dúzia de convidados, é bom?

ELE Quorum mínimo?

ELA Não diz nada no rótulo.

ELE Doze é razoável. Não acha doze razoável? Convidei doze. Achei que isso era o que se pode chamar de festa. O que você acha?

ELA Não sei. Nunca pensei a respeito.

ELE De fato, é a mesma diferença entre a bermuda e o shorts. Você nunca pensa a respeito, mas quando barram você num ônibus, e você ( interrompe-se)...

Tempo.

ELE Enfim. É a mesma diferença. Ou quase.

ELA Duas pessoas juntas, o que é?

ELE Levamos em conta que é meu aniversário?

ELA Indiferente.

ELE Isso deve ser uma categoria, não tenho tanta certeza.

ELA Se uma delas faz anos...

ELE Uma festa furada.

ELA Se isso não tem importância?

ELE Então... São duas pessoas conversando sobre... livros?

ELA Livros? A noite inteira conversando sobre livros?

ELE Parte. Parte da noite.

Tempo.

ELE (Olhando em volta) Tem alguma coisa estranha aqui.

ELA É.

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ELE Fora do lugar.

ELA Você acha?

ELE Não?

ELA Parece tudo no lugar. Não é esquisito?

Silêncio.

ELE Você está se sentindo à vontade, não está? Espere aí, seu copo está vazio. Use a poltrona inteira pra se sentar, essa posição deve ser incômoda.

Silêncio.

ELE Está se sentindo à vontade?

ELA Não, obrigada. Quer dizer, não tem importância se a gente não se sente à vontade em uma festa. Sempre tem alguém que não se sente à vontade em um festa. Nas festas da Firma é sempre assim. (Tempo) Estou acostumada. Não quero atrapalhar. Você deve estar querendo comemorar. Vim mesmo por que a Abigaíl (interrompe-se)... Que demora! (Tempo) Estou atrapalhando?

ELE (Tempo) Pra dizer a verdade: não sei.

ELA Melhor assim.

Longo silêncio.

ELA A Abigail está demorando. Estava esperando uma carona dela.

ELA Quem sabe não é melhor você ir embora. Eu chamo um taxi. Pelo telefone.

ELA Vou terminar estes chapeuzinhos.

Silêncio.

ELE Você e a Biga são bem amigas, não é?

ELA Não.

Silêncio.

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ELE Os rapazes falam bastante da Biga.

ELA Mesmo?

ELE Quando a Firma está vazia, eles falam.

ELA Da Abigaíl?

ELE Tomam café e falam.

ELA O que é que eles falam?

ELE Se a Firma está vazia.

ELA (Insiste) O que é que eles dizem?

ELE Biga não parece certa, igual, percebe?

ELA Não parece?

ELE Olha o rapazes de frente.

ELA Mmm.

ELE Não é de sair com nenhum dos rapazes.

ELA Não?

ELE Sozinha, percebe?

ELA É...

ELE Sempre bebe mais que os outros.

ELA Mesmo?

ELE Dizem que ela é meio estranha.

ELA Deve ser.

ELE Vocês duas passam muito tempo juntas.

Silêncio.

ELA Quanto tempo?

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ELE Os rapazes falam, percebe?

ELA Claro.

ELE Você está esperando uma carona da Biga.

Silencio.

ELA Biga mora a duas quadras da minha casa. Um bairro onde falta luz duas vezes por semana. Quase sempre no domingo e na quinta. Ela tem 36 anos, é

divorciada, tem duas meninas e está processando o ex-marido. Ela assina Abigaíl S. Moniz. O S. é de Souza. Há alguns documentos em que ela ainda está com o nome de casada. O número do Pis (interrompe-se)... Interessa?

Silêncio.

ELA Trabalhar no departamento de pessoal muda a gente. Eu antes não guardava nem o numero do meu RG. Sei até a data do seu aniversário. Desde que você foi admitido.

ELE (Pausa) Foi você.

ELA (Tempo) O quê?

ELE Você contou pra todo mundo na Firma. Ninguém nunca lembrou do meu aniversário antes.

Toca o telefone.

ELE (Tempo) Meu primeiro aniversario.

Telefone toca outras vezes, Mírian e Mário entreolham-se em silêncio. Dispara a secretária.

ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe o seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

Soa o bip.

VOZ 7 (Voz gravada) Mário? (Tempo) Você não está em casa?! (Tempo) É a Biga. Eu entendi que hoje ia ser a sua festa de aniversário. Será que eu...

Mário desliga a secretária e atende o telefone.

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ELE Alô! (Ouve) É. Eu esqueci ligada. (Ouve) Ainda não chegaram. (Ouve) Sei. São assim mesmo. (Ri. Ouve, rindo) Isso mesmo. (Ouve. Ri) Verdade... (Ouve) Claro. (Ouve) Claro, eu entendo. Crianças. (Ouve) Com certeza. No próximo. (Ouve) Estimo as melhoras. (Ouve) O quê? (Ouve. Tempo) Já chegou, sim. Vou passar pra ela.(Ouve) Obrigado. Muito gentil da sua parte.

Mário passa o telefone para Mírian.

ELE Biga.

ELA Pronto. (Ouve) Tudo bem. (Ouve) Entendi. (Ouve) Tudo bem. (Ouve) Explico. (Ouve) Mmm. (Ouve) Tudo. (Ouve) Pode deixar. Precisa de ajuda? (Ouve) Mmm. (Ouve) Está bem. (Ouve) Outro.

Mírian desliga.

ELA Um probleminha.

Silêncio.

ELA Abigaíl pediu pra explicar. A gente tinha comprado um presente pra você. Um livro. Mas como foi ela que foi comprar... Segunda ela entrega. Saiu um pouco mais caro, sabe, foi idéia dela. Ela acha que você vai gostar. Ela pediu pra não contar o que é.

Silêncio.

ELA Abigail gosta muito de você.

ELE Verdade?

ELA Acha que você não é como os outros rapazes da Firma. É sensível, delicado. Diferente.

ELE Eu não sou diferente. (Tempo) Não era melhor você ir embora? Biga não vem, ninguém vem, você vai ter de voltar sozinha, quer dizer, se vier

alguém, pode vir alguém, eu não vou poder acompanhar você, você vai ter de ir sozinha. Pode vir alguém.

ELA Quem mais?

ELE De qualquer maneira você vai ter de voltar sozinha. Biga não vem - um brinde.

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ELA Estamos bebendo como nas festas de fim de ano da Firma.

ELE (Olhando para a estante de livros) Tem alguma coisa fora do lugar.

ELA Como os rapazes bebem nas festas de fim de ano da Firma!

ELE Não sei o que é...

ELA Você nunca bebeu como nessa última festa de fim de ano da Firma.

ELE Você não disse nada sobre os livros.

ELA Os rapazes parecem esperar o ano inteiro a festa de fim de ano da Firma.

ELE Me preocupei com qualidade, você percebeu, não é? São muitos, é verdade, mas são os meus preferidos. Meus preferidos. Você não disse nada sobre os livros.

ELA Você não está bebendo demais?

ELE Você também.

ELA Mas eu sou mais forte. Pra bebidas.

Pausa.

ELE Isso é que eu quero ver.

Mário apanha o copo de Mírian e o enche até a boca.

ELA O que você está fazendo?

ELE Vamos brindar.

Mário enche até a borda o seu copo também.

ELE Pra valer.

ELA De uma vez só?

ELE De uma vez.

ELA Tapando o nariz.

ELE Senão não vale.

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ELA Como nas festas de fim de ano da Firma.

ELE Um, dois e...

ELA Espera!

Os dois viram a bebida goela abaixo, sem respirar, tapando o nariz. Sérios.

ELE Outra vez.

Mário enche os copos até a borda, rapidamente.

ELA Outra vez?

ELE Um, dois e...

ELA ...três.

Os dois bebem. De repente, Mário engasga e começa a tossir compulsivamente. Mírian o ajuda, dá tapinhas em suas costas.

ELA Levanta os braços que ajuda.

Mário levanta os braços. Aos poucos vai-se acalmando.

ELE (Tempo) Avisou todo mundo?

ELA (Tempo) Do seu aniversário?

ELE Não esqueceu ninguém?

ELA Todo mundo ligou desmarcando?

ELE Foi muito gentil da sua parte.

ELA Não sabia que era a sua primeira festa de aniversário.

ELE Não está sentindo que está faltando alguém?

ELA Comemorar o aniversário é coisa pessoal.

ELE Gozado.

ELE Eu disse isso pra Biga.

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Longo silêncio. Mário tem a testa franzida.

ELE (De repente, quase gritando) Seu Alonso.

ELA Seu Alonso!

ELE Seu Alonso ainda não ligou. Era ele!

ELA Era.

ELE Sabia que faltava alguém.

ELA Seu Alonso...

Mário ri.

ELE Você já reparou como a barba dele é cerrada?

ELA Já.

ELE Do nariz para baixo ele tem o rosto cinza.

ELA É desagradável.

ELE Grandalhão.

ELA Olha sempre para o calcanhar da gente.

ELE Está sempre suando de baixo do nariz.

ELA É um tipo de quem se pode esperar qualquer coisa.

ELE Um esquisitão.

ELA Diferente.

ELE (Tempo) É. É um tipo diferente. Mas a gente tem de convidar.

ELA Você tem razão.

ELE Sabe que os rapazes dizem que a descrição do "Gasparzinho" bate com o Alonso.

ELA "Gasparzinho"?

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ELE Você não leu, sai todo dia mais uma, não?

ELA Uma, o quê?

ELE O "Gasparzinho" ataca as estudantes na Cidade Universitária, à noite. Os rapazes estão acompanhando. Todo dia sai uma notícia nova. O "Gasparzinho" rouba a calcinha das moças e foge.

Mário ri, nervoso. Mírian permanece séria.

ELE Mas é só isso que ele faz, percebe?

Silêncio.

ELE Como as moças explicam o roubo é que é gozado.

Silêncio.

ELA "Gasparzinho".

ELE O apelido dele. Foi o jornal que deu. "O fantasminha camarada".

Silêncio.

ELA Os rapazes acham isso engraçado, não é?

ELE (Tímido) Acham.

ELA Eu sei. Eu ouço as gargalhadas deles. O tempo todo. Mesmo quando não estou perto. Mesmo quando eu não posso ouvir eu ouço a gargalhada deles - eu posso ver os rapazes rindo; eles dão gargalhadas e sacodem o peito feito a tecla de maiúscula da máquina de escrever.

Míriam está ofegante.

ELA Eu posso ouvir as gargalhadas dos rapazes.

Mário está atónito.

ELA (Tempo. Controlada) A Cidade Universitária fica perto daqui, não é mesmo?

ELE É um bairro muito bom, tem tudo à mão.

Longo silencio.

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ELA Não ia gostar de morar aqui.

Silêncio.

ELA Muita umidade.

Silêncio.

ELA O rio. Fica muito perto. É uma região úmida. Tem neblina?

ELE De vez em quando.

ELA Não ia gostar de morar aqui.

ELE Achei que você estava falando do apartamento.

ELA O apartamento é quente.

ELE Gosta?

ELA Um pouco abafado. Muitos livros.

ELE Você notou?

ELA É. (Tempo) Não foi logo que eu entrei. Muitos.

ELE Não são tantos assim.

ELA Não. Já vi mais, juntos.

ELE (Tempo) Claro. Ainda estou formando a minha biblioteca.

ELA Bom ter uma coleção.

ELE Não! Eu leio!

ELA Todos?

ELE Estou lendo, estou lendo.

ELA Não coleciona?

ELE Também. É, também. Tenho todos os John Le Carré.

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ELA Todos o quê?

ELE Todos os livros do John Le Carré.

Silêncio.

ELE John Le Carré: "O espião que saiu do frio"; não leu?!

ELA Não.

ELE "O espião que saiu do frio"?!

ELA Nunca ouvi falar.

Longo silêncio.

ELA É melhor eu ir embora.

ELE É.

Silêncio.

ELE Olha, eu também tenho uma edição rara de Jorge de Lima, não quer ver?

ELA Preciso ir.

ELE Vai sair com esse frio?

ELA Esfriou lá fora?

ELE Acho que sim. A vidraça da janela está suando.

ELA Verdade.

Longo silêncio.

ELE Você escreve seu nome com acento?

ELA Com acento.

ELE "N" no final?

ELA "N" no final.

ELE Dá pra escrever seu nome na vidraça.

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ELA Não! Por favor! Não faça isso!

ELE Por quê?

ELA Por... que eu achava que você ia fazer isso. Por que seu apartamento é como eu achava que era. E ficou frio lá fora como eu achava que ia ficar. Isso... me incomoda. Eu... quero ir embora. (Balbucia) E ter medo da neblina como eu acho que vou ter.

ELE E se não estiver mesmo fazendo frio lá fora?

Mário pega o aparelho de telefone, e confere uma tabelinha ao lado.

ELE Você conhece o lig-tempo? Boletins novos de quinze em quinze minutos. (Procurando) Lig-tempo, lig-tempo... Tem lig-dólar para o câmbio,

lig- doutor para emergências médicas, lig-futuro para horóscopo. Estão atendendo, você vai ver...

Silêncio. A expressão de Mário desmorona. Pousa o fone no gancho.

ELE Está frio lá fora.

Pausa.

ELE Você vai mesmo então.

ELA Vou. (Tempo longo) Parabéns.

ELE Obrigado. Foi o melhor aniversário da minha vida.

ELA Não! Você falou o que eu achava que ia falar! Você fez tudo que eu achava que ia fazer.

ELE Mas você não. Por que é que você veio depois.... depois da festa de fim de ano da Firma?

ELA Você acabou perguntando o que eu achava que ia me perguntar. Mário, eu tenho confiança em você.

ELE Tem? Você respondeu o que eu não achava que ia responder.

ELA Na festa de fim de ano da Firma...

ELE (Interrompendo) O que eu fiz? Eu não me lembro.

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ELA Nós dois estávamos sozinhos.

ELE Como agora.

ELA Me apertou forte o tronco.

ELE Então?

Silêncio.

ELA Você agiu decentemente comigo.

ELE Mesmo?! (Tempo. Sincero) Eu não me lembro.

ELA Você é uma pessoa decente. Uma pessoa decente.

ELE Eu não me lembro...

ELA Delicado, sensível.

ELE ....mesmo...

ELA Você ia se dar bem com a Abigaíl.

ELE O quê?

ELA Seu apartamento, seus livros.

ELE Você reparou.

ELA São muitos livros.

ELE Eu sou assim, eu sou assim...

ELA Você é mesmo como eu imagino. Você não sabe como isso me incomoda.

ELE Incomoda?!

ELA Não sei o que é...

ELE (Para si) Eu sou assim.

ELA Me incomoda.

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ELE Me desculpe, por favor. Me desculpe.

ELA Não peça desculpas!

ELE (Tempo) Você achava que ia pedir desculpas?

ELA Achava. (Tempo) Eu peço desculpas. Tenho umas coisas para explicar. Eu não gosto de conhecer as pessoas.

ELE As pessoas, quem?

ELA As pessoas, todo mundo, você.

ELE Eu?!

ELA Só gosto dos desconhecidos. Os desconhecidos da rua, por aí, no banco.

ELE Não tem medo deles?

ELA Não. Não tenho mais medo deles. Eu já sei exatamente o que esperar dos desconhecidos.

ELE O quê?

ELA (Tempo) Eu não gosto de conhecer ninguém.

ELE Você me conhece agora.

ELA Não.

ELE Você já me conhecia antes.

ELA Claro que não!

ELE Melhor do que eu mesmo.

ELA Não!! Por que você está me dizendo isso?

ELE Qual é o meu Pis?

ELA 8687456323-33.

ELE Então.

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ELA Isso é diferente. Enquanto você é um prontuário você não pode me decepcionar.

ELE Mmm?

ELA É horrível, você não sente?

ELE Os prontuários?

ELA Não, os prontuários são encardidos e esfarelam nas mãos, mas isso não é horrível. É só desagradável. Os prontuários continuam lá, nas pastas suspensas, dentro dos armários de ferro, nos arquivos mortos, horas depois que o expedienta acaba, a noite inteira. De manhã, nas primeiras horas da

tarde. Se eu jogo um documento novo na pasta suspensa, ou no arquivo morto, depressa ele fica encardido e começa a esfarelar nas mãos. Eu estou falando das pessoas, das pessoas que você conhece... Você não sente? É só você conhecer uma pessoa pra se decepcionar com ela.

ELE Quem?!

ELA Todas as pessoas.

ELE Todas?!

ELA Você não sente?!

ELE (Olhando para as estantes de livros) Eu também?.. Eu também decepcionei você?

ELA Eu preferia não ter vindo aqui. Eu preferia não conhecer você.

ELE (Pausa) Você não me conhece.

ELA Eu sei o que você sofreu.

ELE Não sabe.

ELA Quando a gente tem alguma coisa de diferente, todo mundo percebe que a gente tem alguma coisa de diferente.

ELE Eu não sou diferente.

ELA Abigaíl sempre me fala de você.

ELE Eu não sou diferente!

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ELA Eu sei como é. No primeiro dia você sabe que não vai dar certo. Por que tem gente que não percebe que você é diferente. E te chamam pra você jogar queimada. E de repente as bolas vão todas pra cima de você, todo mundo atira a bola pra cima de você, todo mundo só acerta a bola em você. E ninguém disse nada, combinou nada. Nem se olharam. E você já é diferente.

Tempo.

ELE Não estou me sentindo bem.

ELA É gozado, quando a bola bate na gente... Você já ouviu? Um barulho oco. Parece que sai da gente, o barulho.

ELE Vou abrir outra garrafa.

Mário abre outra garrafa, enquanto fala.

ELE Você não entendeu. Eu não sou diferente. Olhe só. Estou bebendo. Gente diferente não bebe, percebe? Estou bebendo muito. Bebendo como os rapazes. Os rapazes não tem nada de diferente. Na festa de fim de ano da Firma bebi mais que os rapazes.

ELA Você foi decente comigo.

ELE Não diga que eu fui decente com você. Eu não sei do que você está falando. Eu não lembro de nada disso, percebe? Mais um copo? Eu não posso ter sido diferente, percebe? Eu passo o dia inteiro ligando para o ligue-namoro. E

falo palavrões pesados, pesados mesmo, para as meninas do ligue-namoro. De verdade. Eu desbloqueei a linha. Os rapazes descobriram como

desbloquear o 0900, eu já falei? O dia inteiro! Ligue-pânico, ligue-vestibular, ligue-piada. A gente ri o dia inteiro.

Mário ri, nervoso.

ELE A gente ri o dia inteiro! Eu e os rapazes! Eu não sou diferente! Eu jogo coisas - ovo, garrafa, gelo, coisas - pela janela. Está vendo? Está vendo só? Eu não sou diferente. Você não acredita? Não acredita? Sabe a do ceguinho?

ELA Ceguinho?

ELE Decisão do vôlei. Todo mundo na frente da TV. Um ceguinho chegou no guichê. Eu detesto cego. Era fim de expediente. Foi logo pedindo o que queria, se virou e foi embora. Mas alguma coisa aconteceu, ou não aconteceu

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como deveria, não sei. Ele perdeu o rumo. Você sabe como é ali embaixo, aquela escadinha, aqueles degraus de mármore e...

ELA (Interrompendo) Não é uma piada?!

ELE Presta atenção. (Ri, nervoso) O ceguinho se viu - na medida que um cego pode se ver - perdido naquela sala enorme.

ELA Não é uma piada?

ELE O ceguinho se virou, e eu percebi: estava perdido. Vacilou um tempo antes de perguntar - você sabe como é cego, é bicho orgulhoso, não gosta da ajuda de ninguém. Vacilou. Vacilou, mas perguntou... "Estou perto da escada?"

Não respondi. Foi mais de tédio. O ceguinho esperou a resposta um tempo. Quando eu vi que ele estava esperando a resposta, aí que eu não respondi mesmo. Mais: fui diminuindo minha respiração, diminuindo. Pra ele pensar que não tinha mais ninguém na sala. O ceguinho insistiu: "Estou perto da escada?" E eu: nada. Nem respirava. O ceguinho agitava a bengala, mas aquele salão é enorme. O ceguinho foi ficando nervoso, nervoso... Até que perguntou: “Tem alguém aí?” Ele estava perto da escada. Aliás, de costas pra escada. (Ri) Um passo pra trás e o ceguinho rolava pela escada. Não disse nada. O ceguinho estava ali, agitando a bengala, à beira da escadaria, quase caindo. Quando chegou alguém. Não sei bem, qualquer um, mais um. (Tempo) O ceguinho se empertigou. Se virou, e desceu sozinho a escada, batucando degrau a degrau. Até ir embora, o cego.

Silêncio.

ELA Não é possível...

ELE Eu disse que você não me conhecia.

ELA Eu também detesto cego!

ELE O quê?!

ELA Detesto cego. Sempre detestei.

ELE E... E você não tem vergonha de dizer uma coisa dessas?

ELA Tenho. E você?

ELE Tenho... Você é a única pessoa pra quem eu já contei essa história.

ELA Nem os rapazes sabem?

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ELE Nem os rapazes. Comecei a contar uma vez. Mas acabei dizendo que era piada porque eles não gostaram nada.

ELA Nós somos parecidos.

ELE Você acha?

ELA Esquisito.

ELE Parecidos? Mesmo?

ELA Não esperava por isso.

ELE Não estou me sentindo bem.

ELA Também não.

ELE Acho que foi alguma coisa que comi.

ELA Preciso beber mais um pouco.

ELE É. Isso aquece.

ELA Aquece.

ELE Não estou me sentindo bem. Não estou me sentindo nada bem.

ELA Nada bem.

ELE Nada.

ELA Escuta aqui, você joga mesmo coisas pela janela, liga da Firma, essas coisas todas?

ELE Quer ver? Quer ver?

Mário atira uma garrafa pela janela. Ouve-se a vidraça estilhaçando e o ruído da garrafa caindo lá em baixo.

ELE Está vendo? Está vendo?! Eu não sou diferente!

Mário apanha uma pedra de gelo e a atira pela janela.

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ELE Você sabia que uma pedra dessas chega lá em baixo com o triplo do peso. Pode matar alguém. É a Física.

De repente, Mírian também apanha uma pedra de gelo e também a atira pela janela.

ELA É a Física.

Os dois começam a atirar pedras de gelo pela janela. Até que se ouve uma voz, vinda de baixo.

VOZ 8 Aí seus putinhos! Deixa eu descobrir de onde vem...

E segue xingando. Mírian e Mário se agacham e abafam seus risos. Tempo.

ELA Esfriou aqui dentro.

ELE A vidraça.

ELA A vidraça.

Longo silêncio.

Mírian esfrega os braços, de frio.

ELE Um casaco?

ELA Não... Está frio, mas está bom. Eu gosto de sentir frio.

ELE Eu também.

Pausa.

ELA Eu vou embora.

ELE Embora?!

ELA (Enquanto se prepara para sair) São seis minutos daqui até a Teodoro. Lá eu acho um taxi. Vi uma porção deles subindo e descendo quando cheguei. Uma porção. O ônibus me deixou no ponto, e eu vi uma porção. Vazios, tomados. A gente pode ver de longe: duas cabecinhas, ou uma só do lado direito. Fica divertido quando o passageiro vai atrás porque (interrompe-se com o gesto brusco de Mário)...

Mário se atira sobre o telefone e disca um número.

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ELE Qual é o seu signo?

ELA Eu vou embora.

ELE Seu signo.

ELA Não.

ELE Estão vem ouvir o meu.

ELA Não!

Mário se aproxima bruscamente, para encostar o fone no ouvido de Mírian.

ELA Não chegue perto

ELE Calma...

ELA Eu vou embora, eu vou embora!

ELE Fica! Por favor. Vou parar de beber. Vou fazer um bule de café amargo e beber inteiro todo o café amargo. Nem vou chegar perto de você. Só que eu queria... você aqui... um pouco mais...

ELA Eu sei que você vai ser decente comigo.

ELE (Tempo) Vou?

ELA Na festa de fim de ano da Firma...

ELE Eu fui decente, não fui?

ELA Foi.

ELE (Quase para si) Não sei por quê... Não sei por quê.

ELA Você já reparou como é silenciosa a festa de fim de ano da Firma? No meio daquela barulheira toda, é silenciosa. É um ruído forte, uma música, um discurso, e um silêncio. E o silêncio é um silêncio mais fundo do que em qualquer outro dia. Você e eu estávamos conversando na janela. Não: contando os carros que iam pela avenida. O salão de festas fica tão alto, e

isso é tão bom. Você inventava uma história para cada carro que passava.

ELE (Quase para si) Não lembro.

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ELA Sua preferência era para aqueles que tinham lanterna traseira queimada porque a gente podia seguir até bem mais longe. A gente não confunde com os outros, nem perde logo de vista. E podia contar uma história mais cumprida, como as histórias de verdade. O congestionamento era enorme - Natal - as luzezinhas vermelhas tinham jeito de gelatina de cereja porque caia uma chuva fina, que deixava tudo mais abafado. Como foi abafada a festa de fim de ano da firma! Você não achou?

ELE (Quase para si) Não sei...

ELA A última história que você contou só desapareceu quando dobrou a direita, já depois do arvoredo do Ibirapuera, atrás da Bienal. Eu já nem prestava mais atenção. Estava pensando que, na verdade, é fácil consertar uma lanterna traseira. Deve ser fusível. Fácil trocar. Vêm em dois, num envelopinho lacrado, juntinhos.

Silêncio.

ELA Estava tentando lembrar quanto custava um par de fusíveis para automóvel, quando percebi o silêncio. Você tinha parado de falar, e acho que todo mundo na sala do lado também. Você estava mais perto de mim, eu já estava sentindo os dois ventinhos da sua respiração no meu ombro e...

ELE (Interrompendo, ao lembrar-se) Eu queria vomitar! Eu queria vomitar!

Silêncio.

ELE Eu lembro. Eu saí correndo. Eu queria vomitar.

Silêncio.

ELE Foi o salpicão da Biga. Não posso comer essas coisas.

Silêncio.

ELE Eu queria vomitar. Eu lembro.

Silêncio.

ELE A sala girava e eu fazia força pra fixar o seu rosto. Foi quando eu reparei que você tem a rosto de um lutador de boxe no auge da carreira.

Silêncio.

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ELE Eu ia dizer isso quando tive de sair correndo.

Silêncio.

ELE Está vendo como eu sou?

ELA Estou.

ELE Eu não fui decente. Estava passando mal.

ELA É melhor eu ir embora, então.

ELE É. Você tem razão.

Mírian estende a mão. Ele hesita, mas responde o cumprimento.

ELE Você vai encontrar fácil um taxi.

ELA Acho que vou.

Silêncio. Nenhum dos dois se mexe.

ELA Não está tão frio assim.

ELE Não. A sensação térmica.

ELA A sensação térmica.

Silêncio. Mírian hesita. Mário hesita.

ELE Aqui, dentro do apartamento, deve estar mais frio. O vento.

Silêncio. Nenhum dos dois se mexe.

ELA Você pode pegar um resfriado. Essa corrente de vento é perigosa.

ELE Segunda mesmo procuro um vidraceiro.

Silêncio. Mírian hesita. E sai na direção da porta da rua. A porta está trancada. Tempo. Mário vai até a porta e a destrava.

ELA Conheço um vidraceiro muito bom. Mas fica do outro lado da cidade. Pena.

ELE Pena.

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Tempo. Mírian sai. Tempo. Mário fecha a porta. Tempo. Está frio. Mário vai trancar a porta, mas estaca.

Pausa.

Repentinamente, Mário abre a porta e sai para o corredor , desesperado por apanhar Mírian antes do elevador.

ELE Sabe o que eu lembrei?

ELA (De fora) O quê?

ELE (Tempo) Você ainda está aí, então.

ELA (De fora) Estou.

ELE Esse elevador demora.

ELA (De fora) Demora.

Silêncio.

ELE Prédio antigo.

ELA (DE FORA) Mmm.

Um ruído indica que o elevador chegou.

ELA (De fora, após um tempo) Chegou.

ELE É.

ELA (De fora, após um tempo) Do que foi que você lembrou?

ELE Do que foi que eu lembrei?

ELA (De fora) Não lembrou de nada?

ELE Eu lembrei, sim.

ELA (De fora, após um tempo) Então?

ELE (Tempo) Você reparou uma coisa? A festa acabou. Quer dizer, oficialmente a festa acabou. O último convidado acaba de sair pela porta. Então... Eu queria convidar você para conhecer a minha casa. Conhecer meus livros. Por que

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você não vem me fazer uma visita? A gente pode gastar a noite juntos, contando histórias. Iguais àquelas das lanternas dos carros. O que você acha?

ELA (De fora) Mas aqui não fica tão alto quanto o salão de festas.

ELE Nem passam tantos carros.

ELA Então?

ELE Melhor. Se a gente não segue as lanternas, a gente não precisa parar de contar a história quando o carro some.

ELA (De fora, após uma pausa) Acho... que eu ia gostar de fazer uma visita para você.

Vagarosamente, Mírian se aproxima pelo corredor. Quando Mírian surge sob o umbral, ainda pára um instante. Um ruído indica que o elevador foi chamado a outro andar.

ELE Não vai entrar?

Mírian entra. Mário fecha a porta. E a tranca.

ELA Quantos livros!

ELE Gostou?

ELA E a vidraça da janela?

ELE O que tem?

ELA Quebrou.

ELE Um acidente.

Mírian estremece à última fala de Mário. Quase volta a sair. Mas acaba se controlando.

ELA (Pausa)Eu conheço um bom vidraceiro, mas fica do outro lado da cidade. Pena.

ELE Pena.

Mírian esfrega os braços, demonstrando estar com frio.

ELE Quer beber alguma coisa?

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ELA Pra espantar o frio.

Mário serve uma bebida a Mírian. Deste ponto em diante, eles voltam a se servir de bebida enquanto falam e manuseiam os livros.

ELE (Servindo) Enquanto o “seu” vidraceiro não vem.

ELA (Tempo) Enquanto "o seo vidraceiro" não vem.

Brindam.

ELA Você vai me contar todas as histórias que estão nesses livros todos?

ELE Não. Eu vou fazer um resumo de cada história que cada um desses livros conta. Depois, você vai escolher um, e eu vou contar essa história do começo ao fim.

ELA Você já leu todos?

ELE Vamos começar?

ELA Vamos...

ELE Você escolhe o primeiro.

ELA Comece pela letra "A".

ELE Pela letra "A"?!

ELA Não?

ELE Não sei qual dos meus livros é o primeiro, quer dizer, começando, "abcd", ordem alfabética, essas coisas... (Tempo) Sei qual foi o primeiro que eu comprei.

ELA Comece por onde você quiser.

ELE Deixa eu ver, então...

Mário circunda a sala com o olhar. Repentinamente pára, como se algo o incomodasse.

ELE (Intrigado) Quem fez isso?

Vai até a prateleira e ajeita o grupo de livros que Mírian tirou do lugar no começo da peça - estavam de cabeça para baixo.

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ELE (Irritado) Quem fez isso?

Mário está com o cenho franzido.

ELE Deve ter sidpo a faxineira. Só pode ter sido a faxineira!

Mário mostra-se cada vez mais agressivo. Mírian sente-e insegura.

ELE E ela sabe ler. É preguiça. Me dá... Me dá... me dá vontade de...

Pega então um livro, olha bem a lombada, a capa, passa a mão de leve sobre a lombada. E se acalma.

ELE (Sorrindo) Você vai gostar deste. É uma aventura do Maigret. Certa manhã um barqueiro - daqueles que cruzam Paris pelos canais - tenta dar a partida ao motor do seu barco e descobre que há alguma coisa engatada à hélice. É um pacote. Um braço amputado e embrulhado em jornal trava o motor...

ELA (Interrompendo) É policial?

ELE Claro. É uma aventura do Maigret, percebe?

ELA Quem?

ELE O comissário Maigret!

ELA Não sei quem é.

ELE Nunca leu uma aventura do Comissário Maigret?!

ELA Não gosto de histórias policias.

Silêncio.

ELA As pessoas estão sempre preocupadas em esconder um cadáver.

ELE (Tempo) Claro que você não gosta.

ELA Outro.

ELE O primeiro livro que eu comprei, então?

ELA Você escolhe.

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Mário passa mão sobre a lombada dos livros, olhando para Mírian, na direção oposta.

ELE Vou escolher alguma coisa... do seu gosto.

Sua mão pára sobre uma lombada. E sorri. Cuidadosamente tira o livro da prateleira. Acaricia-o.

ELE Não é bonito?

ELA E o que é?

ELE A "Ética".

ELA Ah... A "Ética".

ELE De Espinoza!

ELA E que história conta?

Silêncio.

ELE Você não leu, também?

ELA Não.

Silêncio.

ELE Bem... não conta... num certo sentido... Espinoza conta, por exemplo, que Deus não ama nem odeia ninguém...

ELA Isso explica muita coisa. Tem sentido.

ELE Tem sentido.

ELA Deve ser triste.

ELE Não! Não... Espinoza conta que Deus não sente tristeza nem alegria.

ELA Então Ele nunca riu, nem nunca chorou!

ELE (Tempo) Não sei. (Tempo) Mas olhe como é bonita a encadernação.

ELA Como é que termina essa história?

ELA Mmm? Ah... A "Ética" não é uma história; é Filosofia.

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ELE Quer dizer que não tem fim? Então porque você começou a me contar essa "Ética"?

ELA Eu não comecei a contar nada. Eu estava querendo mostrar o livro.

ELA Então?

ELE A encadernação do livro: a capa, a lombada, as folhas... o cheiro. Eu adoro os cheiros dos livros. O cheiro da "Ética” é dos meus preferidos.

Mário aspira o aroma do livro.

ELA Deixa eu ver.

Mário passa o livro para Mírian. Mírian aspira fundo, de uma vez. E espirra. Vai falar alguma coisa, mas espirra outra vez, outra, várias vezes. Até parar.

Silêncio.

ELA Foi a corrente de ar.

ELE Foi. Deixa eu arrumar alguma coisa pra tapar o buraco.

ELA Não precisa.

ELE Então é melhor sair da frente da janela.

Mário estende a mão na direção do braço de Mírian. Mírian recua sobressaltada.

ELA Por favor!

Mário estaca.

ELE Eu não ia fazer nada. Só queria tirar você da corrente de vento.

ELA Eu não quero sair do vento. Eu gosto do vento.

ELE Mas eu só quero ser...

ELA (Interrompendo) Não ponha as mãos em mim.

ELE Qual o...

ELA (Interrompendo) Não quero que botem as mãos em mim.

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ELE Está bem! Está bem.

ELA Eu não gosto de conhecer melhor ninguém, já disse.

ELE Está bem...

ELA (Exasperada) Estou magoando você?

ELE Não.

ELA Fique onde está.

Tempo. Mário toma vários copos em seguida, sem respirar. Não sabe o que fazer.

ELE Você quer ir embora?

Pausa.

ELA Você quer me tocar?

ELE Não! Quero que você fique.

ELA Estou perguntando que se você quer me tocar... quer tocar meu braço...

ELE (Pausa) Quero.

Silêncio.

ELA (Pausa. Fala quase para si) Como é que eu começo a contar uma coisa dessas pra você?

ELE Seu braço é tão bonito...

ELA (Segura) Você precisa prestar atenção. Precisa me ouvir.

ELE Tem uma pele que parece papel alexandrino...

ELA Me ouvir me ouvindo, entende?

ELE No verão você fica mais de braço de fora...

ELA Tem um dia na minha vida...

ELE ...fico imaginando a rugosidade, percebe?

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ELA ...pra você, os rapazes darem risada.

ELE Passe o dedo sobre a "Ética"...

ELA Depois me disseram que era mesmo como um acidente de carro, que eu tinha de esquecer.

ELE ...e você vai entender do que eu estou falando.

ELA Lembro de tudo. Lembro daquele homem me agarrando os braços...

ELE Do que é que você está falando?!

ELA ...forçando para separar minhas pernas...

ELE Que história é essa?

ELA ...e eu só conseguia me preocupar com os arranhões nos joelhos, não é gozado?

ELE Sou eu quem conta histórias aqui!

ELA Deu pra escutar o barulho oco da barriga dele...

ELE Eu, percebe?!

ELA ...batendo contra a minha barriga.

ELE Você disse que ia me ouvir.

ELA Eu não escutava mais nada...

ELE Eu ia fazer o resumo de todas...

ELA ...e eu estava quase do lado da Marginal.

ELE ...as histórias.

ELA Os caminhões não paravam de passar.

ELE De todas!

Silêncio.

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ELE De todas...

Longo silêncio. Mário bebe vários copos em seguida, quase sem respirar.

ELA (Tempo. Distante) Alí do chão, deu pra reconhecer as Três Marias no céu.

Silêncio. Mário bebe sem respirar.

ELA Estupro. Delito inscrito no Código Penal sob o número 123. Eu era a vítima. O delegado me explicou tudo direitinho, com calma, voz baixa - parecia mesmo que estava sussurrando. Me explicou tudinho que era pra eu ter certeza se queria dar queixa de verdade. Delito sério, não dá pra saír por aí acusando qualquer um. Gozado... Agora a voz do delegado está clara, mas enquanto ele falava eu tinha de esticar o pescoço um pouco na direção dele. E isso doía: eu tinha machucado a base do crâneo - o legista me disse depois. A mesa do delegado ficava longe: tinha uma cerquinha de madeira entre eu e a mesa dele, um metro, um metro e meio. Eu estava de pé, apoiada sobre a perna menos dolorida. Será que o delegado estava rouco aquele dia? Quando me encaminharam para o escrivão, eu já estava tão cansada que nem me preocupava mais em esconder meu colo com a mão - minha camiseta estava rasgada. Acho que foi por isso que o escrivão me emprestou a jaqueta dele. Tinha um cheiro forte de loção de barba e cigarro, a jaqueta, e ele me pediu desculpas. Vi o amarelo dos dentes dele de leve, por baixo do bigode. Ele

começou a me fazer perguntas e a datilografar minhas respostas num formulário amarelo como os dentes dele. Era muito rápido com as

teclas, nem estava olhando pra mim quando me perguntou se eu era a vítima do acidente com o passat bordeaux... Desde que eu disse que não, que um homem tinha me estuprado, o escrivão não se virou mais pra mim. Olhava direto para o teclado. Foi desse jeito mesmo, olhando para o teclado que ele me disse que era melhor eu encarar o que tinha acontecido comigo como um acidente de passat. (Tempo) Aquele escrivão era mesmo rápido. Não dava nem pra ver direito a tecla de maiúscula descendo e subindo.

Longo silêncio. Mário apanha outro livro da prateleira.

ELE Está bem. Cada um conta uma história, já entendi. Minha vez, então. Uma das minhas preferidas.

ELA Eu quero ir embora.

ELE Um aventureiro russo é preso pelos índios no norte gelado. Pouco a pouco ele vai vendo seus companheiros -

ELA (Interrompendo) Eu quero ir embora.

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ELE Outra.

Mário apanha outro livro da prateleira.

ELE Um pacato coronel inglês é vítima de situações inexplicáveis, e um pouco absurdas, que -

ELA (Interrompendo) Eu quero ir embora.

Mário apanha outro livro, enquanto Mírian corre para a saída.

ELE "Chamai-me Ismael"! "Chamai-me Ismael"!

ELA O que deu em você?

ELE Claro que você já leu isso.

Mário apanha outro livro e a cerca.

ELE "Chinelas turcas"?

ELA Eu quero ir embora!

Silêncio.

ELE Tem certeza que você não leu nunca nenhuma aventura do Maigret?

ELA (Tempo) Eu vou embora.

Mírian quer sair. Mário não deixa.

ELE E a "Volta do parafuso"? Leu, não foi?

ELA (Desanimada) Não sei do que você está falando.

ELE (Murmura) Foi o que me deu mais trabalho.

ELA Eu não sou muito de ler.

Silêncio.

ELE (Tempo) Como assim, não é muito de ler?

Sem responder, Mírian força a passagem. Ainda sem tocá-la, Mário a cerca, cada vez mais irritado.

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ELE O que você quer dizer com isso?

ELA Não tenho concentração.

ELE Ler é bom para quem precisa de concentração.

ELA Muitas letras.

ELE Claro que são!

ELA Me deixa passar.

ELE Você não entende... Você não entende, percebe?

ELA Fique calmo!

ELE O que você tem contra as letras?

ELA Fique calmo.

ELE (Controlando-se) Está bem.

Mírian consegue chegar até a porta. Está trancada.

ELA Está trancada.

ELE (Pausa) Hoje é meu aniversário.

ELA (Tempo) Seu aniversário já acabou.

ELE Estou comemorando o do ano que vem.

ELA (Pausa) O que você quer?

ELE Por que você diz isso, que não gosta de ler? Você gosta de ler. Ler é bom. Eu fico aqui, e fico lendo. Você sabe do que eu estou falando. Os rapazes

não entendem. Dizem que eu fico enchendo a cabeça de arquivos mortos. Eles não podem entender. Dizem que eu gasto o tempo com fantasmas - fantasmas eles querem dizer as personagens, eu acho.

Mário ri.

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ELE (Ri) Está vendo? Eles não entenderam. São as palavras! São as palavras. Eu não tenho tanta imaginação para ver os fantasmas. Eu ouço o que leio, percebe?

ELA Claro!

ELE É como se as letras... ocupassem... um espaço...

ELA Claro, claro! Um espaço! Uma pasta suspensa!

ELE Você sabe do que estou falando...

ELA Aquelas pastas encardidas com os prontuários!

ELE Pode ser...

ELA As letras e os números!

ELE É... É. Os números também.

ELA Sei... Eu sinto a mesma coisa. Por isso eu adoro montar aquelas coisinhas.

ELE Coisinhas?!

ELA (Doce) Fico com a palma da mão ressecada de cola.

ELE Do que você está falando?

ELA Sabe qual eu terminei a semana passada? Um Newport 11 Scout.

ELE (Tempo) Um Newport?! Você está falando de miniaturas pra montar?!

ELA É. Essas coisinhas.

Mário bebe vários copos em seguida, sem respirar.

ELA Só montando, colando essas coisinhas é que eu consigo me concentrar. Pecinha por pecinha. A gente abre a caixa - você não sabe o que é abrir uma caixa dessas coisinhas!.. Arrancar o plástico que envolve essas caixas... A

plaquinha com as partezinhas ligadas - você dobra e pec, pec, pec, pec, pec, pec...

ELE Pare de falar desse jeito. Você leu muito. Muito!

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ELA Não, eu não li muito. Por que é que é que você está teimando? Li meia dúzia de livros na minha vida, no máximo.

ELE Não pode ser. Você sempre falava de livros na Firma!

ELA Sempre?

ELE Falava, sim. Os livros por toda a parte em sua casa, percebe?

ELA Por toda a parte?! (Tempo) Ah... Logo que você começou a trabalhar na Firma?

ELE É. É, é... Foi, foi...

ELA Um amigo meu... Tinha uma livraria. Faliu. Não tinha onde deixar os livros. Ficaram em meu apartamento. Foi um inferno. Nessa época eu bem que

tentei ler. Na Firma.

ELE E... em casa?

ELA Eu gosto de montar aquelas coisinhas.

Pausa.

ELE Você não sabe que ler é bom?

Mário agarra os pulsos de Mírian. Mírian fica paralizada de pavor, e não se mexe.

ELE Não sabe, menina?

Tempo. Mário passa a mão pelos braços de Míran.

ELE Sua pele é mais áspera que papel alexandrino.

Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Nenhum dos dois se mexe. Dispara o recado da secretária eletrônica.

ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

Bip.

VOZ 1 (Voz gravada) Aqui é o... Aqui é o Alonso. (Tempo) Pensei que ia ter festa aí. (Tempo) Você me disse que ia ter festa aí... Você me convidou... (Tempo) Eu estava indo praí.

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Mário aperta os braços de Mírian com mais força.

VOZ 1 (Voz gravada) É, eu ia, mas... deve ter acontecido alguma coisa, então... Na segunda eu levo seu presente. (Tempo) Parabéns.

Ouve-se o sinal de ocupado.

ELA Só quero pedir uma coisa. Ouve. Não me machuque. Não me machuque muito, está bem? Eu não vou reagir. Prometo. Você vai fazer o que quiser.

Mário baixa o rosto.

ELE (Balbucia) Eu amo você.

ELA Não rasgue a minha roupa, também. Por favor.

Mírian se esforça por tirar a roupa com cuidado. Mário ainda agarra os seus braços.

ELA Eu mesma tiro a roupa. Você se importa?

ELE (Débil) Pare com isso...

ELA Como é que eu vou voltar pra casa depois, não é?

ELE Pare com isso.

ELA Só um minuto. Só um minuto. Você vai fazer o que quiser!

Mário aperta ainda mais os braços de Mírian.

ELE Pare com isso!

ELA Não me machuque!

ELE (Balbucia) Eu amo você.

ELA O que foi? Prefere por trás? Prefere por trás?

Mírian tenta se virar de costas para Mário, tentando se colocar de quatro.

ELA Não me machuque muito, não me machuque muito!

ELE Eu amo você.

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ELA Não me machuque!

Mário dá um soco na nuca de Mírian. Mírian cai, inerte.

Pausa.

Mário hesita. Não sabe o que fazer. Anda de um lado para o outro. Tempo. Bebe vários copos, quase sem respirar. Tempo. Apanha a tabela do ligue-doutor.

ELE (Balbucia) ...ligue-dor de cabeça, ligue-aborto, ligue-corte, ligue...

Encontra o que procurava. Apanha o telefone e disca um número. Espera impacientemente a ligação se completar. Tempo. Presta atenção. Às vezes acena afirmativamente com a cabeça. Balbucia alguma coisa, repetindo as informações. Mário abre a boca de Mírian, verifica se a língua enrolou, tenta fazer uma respiração boca a boca.

ELE Fale mais devagar, fale mais devagar!

Mário tenta seguir as instruções, mas não consegue acompanhá-las. A ligação cai. Tempo. Disca outra vez. Novamente não consegue acompanhar as instruções.

Mário desiste.

Silêncio.

Mário se afasta do corpo da moça. Tempo. Volta. Encosta o ouvido no peito e próximo às narinas de Mírian, para confirmar se ainda respira. Tempo. Afasta-se.

Silêncio.

Mário volta. Faz novamente a respiração boca a boca. Pára. Tempo. Deita-se ao lado de Mírian.

Pausa.

Tempo. De repente, Mírian acorda. Com um fundo suspiro. Tempo. Sem pressa, Mírian tenta cobrir seu corpo com suas roupas reviradas e entreabertas. Pára. Tempo.

ELE (Tempo) Você voltou?

ELA Voltei. (Tempo) Voltei de muito longe. (Tempo) Estava sonhando com um céu escuro, um marrom sujo, de pasta suspensa de prontuário. E uma porção de pára-quedistas flutuando, feito papel picado de fim de ano. E o vento levava os pára-quedistas pra longe. E eu corria para ver os pára-quedistas

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pousarem. E os pára-quedistas eram de borracha, uns bonecos de borracha deste tamaninho.

ELE Estava frio?

ELA (Tempo) É a vidraça da janela.

Silêncio.

ELA Toda vez que garoava eu pensava que a parede ia encolher. Era um prédio alto, que parecia mais alto em dia de chuvisco. Um prédio de escritórios. Mamãe amarrava o gorro de nylon de baixo do meu queixo, bem justinho. Aquilo me deixava com o pescoço duro, só podia olhar para cima. Eu sabia que, se via o prédio alto já estava chegando em casa; já sentia o bafo da sala, e o laço de baixo do queixo afrouxando. Mas eu não queria logo. Mais demorado, mais o quentinho, mais alívio. Por isso eu sempre dizia pra mamãe: "me encontra!" Ia pra trás da parede que queria encolher. Mamãe

fingia que não me achava uns segundos. Eu ficava olhando as bolinhas de granito da parede - hoje eu sei que é granito. Iguais a isopor tingido. E são tão duras! Arranham a gente.

Silêncio.

ELA Eu morria de medo de me arranhar. Aqueles arranhões ardidos, que não fazem casca e nem saram nunca. Para mim eram piores esses arranhões.

Silêncio.

ELA Meu primo morreu de acidente de moto: as mãos dele estavam cheias de arranhões e iodo. Minha tia tentou disfarçar com as flores.

Silêncio.

ELA Quando mamãe me agarrou por trás , eu estava distraída vendo as bolinhas borradas de chuvisco. Eu virei e disse pra ela que eu queria morrer com um tiro. Mamãe encolheu de leve o nariz, como ela fazia quando ia chorar. Gritou comigo; eu não tinha nada que falar essas coisas. Eu tinha dito aquilo porque tinha assistido com papai, na televisão, um filme de guerra. E todos que morriam eram tão bonitos.

Longo silêncio.

ELA Você ficou do meu lado esse tempo todo?

ELE Fiquei.

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ELA Estava pensando como a dar sumiço no cadáver?

ELE Estava.

ELA Teve alguma idéia?

ELE Não.

ELA Histórias policiais começam assim.

ELE Nem sempre.

ELA Não sei. Não gosto de histórias policiais.

Silêncio.

ELA Podia jogar meu corpo pela janela.

ELE Suicídio?

ELA Diz que não conseguiu me segurar.

ELE Ia ter investigação, autópsia, polícia técnica. As marcas no seu braço.

ELA As marcas no meu braço.

Silêncio.

ELA Botava meu corpo numa mala. Despachava pra Tunísia.

ELE Raio X, cachorro farejador.

ELA Você já estava longe.

ELE (Pausa) Eu não ia querer estar longe. (Tempo) Eu quero estar do seu lado. (Tempo) Eu amo você.

Mal se aguentando, Mírian se atira sobre Mário, e o soca violentamente, até arrancar sangue do nariz e da boca de Mário. Mário não reage, mas tenta se proteger. Mírian só pára quando perde as forças, e desmonta, ofegante.

ELA Nunca mais me diga isso

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ELE (Tempo) A primeira vez que vi você, foi com "O apanhador nos campos de centeio" de baixo do braço.

ELA (Tempo) Esse livro eu li.

ELE Eu também. Foi o primeiro que eu comprei. O primeiro da minha biblioteca.

ELA Demorei três meses para terminar. Não tenho concentração.

ELE Achei que era o seu livro de cabeceira Eu imaginava você lendo e relendo o “Apanhador”, sem parar, em sua casa, cheia de livros, repetindo passagens em voz alta.

Silêncio.

ELE Gozado. Quando eu leio só vejo letras.)

ELE Você era tão bonita passando pelo bebedouro do corredor da Firma. Sem falar nada. Sempre de olhar longe. Com o "Apanhador nos campos de centeio" de baixo do braço. (Tempo) Você era tão... diferente.

Silêncio.

ELE Sempre quis que você viesse aqui, conhecer meu apartamento. (Tempo) Depois que eu comprei o "Apanhador" eu descobri que era o único livro da casa. Eu pensei que se você viesse... o que é que você ia pensar de uma casa com um livro só. Comprei mais uma dúzia. Aí achei que você ia perceber

que tinha comprado os doze só pra impressionar - os livros estavam novinhos, ninguém tinha botado a mão. Joguei os livros no chão, folheei um a um, sem parar, todas as noites, a noite inteira, pra fazer orelha. Foi bom gastar as noites assim.

Silêncio.

ELE Então pensei: ela vai entrar vai olhar pras prateleiras, vai achar pouco, não vai dizer nada, vai pensar que eu não estou à altura, vai sair sem falar nada. Comecei a comprar livros, livros, logo que o salário chegava, uma pilha,

fazia amizade com os livreiros, clássicos e lançamentos. E fazendo orelhas nas páginas. Noites inteiras.

Silêncio.

ELA Há quanto tempo você compra livros?

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ELE Desde que conheci você, no Departamento de Pessoal.

Silêncio.

ELE Aprendi tudo sobre papel, encadernação, tipografia, editoração eletrônica, iluminuras, douração. Descobri que livros não deixam passar o barulho da rua, o frio. Não podia mais passar sem livros. Estão sempre com a gente. São tão... concretos. (Tempo) Como esfriou...

ELA A janela.

ELE A janela.

ELA Conheço um (interrompe-se)... Eu já disse isso.

Silêncio.

ELE Você vai me denunciar?

ELA Pra polícia?

ELE É. Me entregar.

ELA Já passei por isso antes. Não adianta. Muito esforço. Estou dolorida demais pra isso. Foi mais um acidente de passat.

Silêncio.

ELE Vai contar para os rapazes?

ELA Eles não merecem.

ELE Vai contar pra Biga?

ELA Vou.

ELE Vai?

ELA Abgaíl achava que eu devia me aproximar de você. Ela me fez contar pra todo mundo na Firma que era seu aniversário.

ELE (Tempo) Agora você me odeia.

ELA Agora você é igual aos outros homens. Agora você é igual.

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ELE Agora você me conhece.

ELA (Pausa) Não... Agora eu já sei o que esperar de você, como eu já sei o que esperar dos desconhecidos; agora... você é um desconhecido.

ELE (Tempo) Vou pedir demissão. Pra ficar longe.

ELA Vou apressar seus papéis.

ELE Não vou aparecer mais na Firma, sumir de repente. Ninguém mais vai ouvir falar de mim.

ELA Essa papelada de demissão demora. Não tenha pressa. Não é pra já. São muitos papéis, são muitas letras e números. Você não imagina em que

estado ficam esses prontuários. Se desfazem na mão da gente. As assinaturas vão desaparecendo, as letras da cópia em carbono vão desaparecendo. Isso conforta a gente, de alguma maneira. Não é esquisito?

Mário soluça.

ELA Não, por favor. Não chore. Está muito frio e eu estou toda dolorida; desculpar você vai me dar muito trabalho. Seu nome vai esfarelar, seu prontuário vai esfarelar nas mãos de alguém. Também seus livros vão esfarelar nas mãos de alguém, as letras vão esfarelar junto com o papel, e as prateleiras vão ficar vazias. Todas as prateleiras, todas as prateleiras da cidade e do mundo vão ficar vazias. Você nem vai se lembrar se eu perdoei você ou não. Por favor, não chore, estou muito cansada; estou indo embora e perdoar você vai me atrasar.

Mírian se ajeita para sair.

ELE Só uma coisa.

ELA Por favor...

ELE É rápido.

Mário apanha um saco de supermercado e tira um pacote. Trata-se de um tanque Shermann de guerra em miniatura, para montar. Passa-o para Mírian.

ELA É lindo!

ELE É um Shermann. Tem esteira de borracha.

ELA Eu sei. Você monta sobre um motorzinho à pilha e ele sai andando.

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ELE Costumava montar muitas dessas miniaturas antes... antes de... antes de começar... a comprar livros.

Mírian examina a caixa, extasiada.

ELE Presente.

ELA De quem você ganhou?

ELE Pra você. Quer dizer, tinha comprado para mim mesmo... Achei que ninguém vinha à festa, que ia ter de passar a noite sozinho. Passei na frente da

Aerobraz e...

ELA (Interrompendo) Eu não quero.

ELE Por favor.

ELA Não.

ELE Então a gente monta agora mesmo.

ELA Não.

Tempo. Mario se esforça para não chorar.

ELA Estou com sono; se começar a montar o Shermann, não termino esta noite. Gosto de montar essas coisinhas de uma vez. Meu maior prazer em montar essas coisinhas é ver a foto da miniatura pronta na tampa da caixa. É que assim eu posso ver o final, o final das coisinhas.... o final das coisas. (Sorri, amarga) Eu pensei nisso quando entrei no seu apartamento esta noite, não é esquisito? Não sei porque seu apartamento me lembrou uma tampa dessas caixas de miniaturas. Com a foto um pouco tremida. Acontece isso às vezes, sabia? Já viu como ficam essas fotos? Cheias de fantasmas coloridos - a mesma imagem em lilás, verde, amarelo e ocre - já viu? Fiquei fazendo as

contas: quantas prateleiras novas eu montaria aqui para os seus livros - não é esquisito?

ELE Quantas?

ELA Quantas?..

ELE Quantas prateleiras?

ELA Difícil. Você compraria mais livros.

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ELE Eu ia parar de comprar livros.

ELA Por quê?

ELE Você estaria comigo.

ELA (Tempo) Pensei nisso, também. Quantos livros você lê por mês? Seis, oito? Eu monto quatro aviões por mês. Um por domingo. Tanques de guerra eu não sei. Pensei nisso, sim. Você iria virar as folhas do livro com cuidado

para não me atrapalhar a concentração; e eu iria separar as pecinhas da miniatura - pec, pec, pec - abafando o barulhinho para não atrapalhar sua leitura... quantas vezes? Umas oitenta e cinco vezes numa tarde de domingo? (Tempo) Acho mesmo que refiz essas contas no guichê, no fim do expediente, enquanto fingia que não queria olhar na sua direção, estes últimos oito anos.

Mario faz menção de dizer qualquer coisa, mas Mírian se adianta.

ELA Hoje, não. Vamos deixar o Shermann para outro dia. Não quero começar nada hoje.

ELE (Tempo) Arranca só o plástico, então.

Mírian hesita, mas acaba arrancando o plástico que envolve a caixa, com grande prazer. Depois chacoalha delicadamente a caixa para ouvir o barulho das peças. Tempo. Observa atentamente o conteúdo da caixa.

Pausa.

Mírian começa a tirar as peças e se senta no chão.

ELA Vai ocupar umas cinco ou seis horas da nossa noite.

Vagarosamente, Mário vai-se sentando ao lado de Mírian, que lhe passa o tubinho de cola.

Silêncio.

Toca o telefone. Uma, duas, três vezes. Dispara a secretária eletrônica. Mírian e Mário esperam a mensagem.

ELE (Voz gravada) Você ligou para o Mário. Ele não está. O Mário nunca está. Deixe o seu recado depois do bip. Ele liga em seguida.

Bip. Tempo. Ruído de ocupado.

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Longo silêncio.

Mírian e Mário voltam ao que estavam fazendo. Aos poucos vão-se entretendo com o manual para a montagem do Shermann.

Pano.

São Paulo, fim de junho de 1994 a meados de maio de 1996.

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