16
 BÓSNIA-HERZEGOVINA: A VITÓRIA DA POLÍTICA DO MEDO 1  Omar Ribeiro Thomaz RESUMO Este texto introdutório ao Dossiê Bósnia-Herzegovina trata do conflito que sacudiu a região nos últimos anos. Destacam-se os processos pelos quais as manifestações culturais e o jogo de diferenças étnicas, religiosas e lingüísticas da região ganharam peso político fundamental na definição dos rumos da guerra e foram manipulados ao longo do conflito armado. Assim, analisam-se alguns aspectos da história da formação da moderna Iugoslávia e os fatos ocorridos na última década, que criaram um estado de temor permanente ou latente entre as distintas comunidades balcânicas.  Palavras-chave: Bósnia-Herzegovina; Iugoslávia; guerra civil; conflitos interétnicos; comuni- dades na Bósnia. SUMMARY As an introduction to the Bosnia Dossier, this article discusses the conflict that has shaken the region over the last few years. The author underscores the processes whereby cultural manifestations and the interplay between ethnic, religious and linguistic differences gained a fundamental political importance in the region, defining directions the war was to take, while also becoming subject to manipulation during the armed conflict. The article provides an analysis of certain historical aspects of the formation of modern Yugoslavia along with a discussion of the events of the last decade, which have created a permanent or latent state of fear among the different Balkan communities.  Keywords: Bosnia-Herzegovi na; Yugoslavia; civil war; interethnic strife; communities in  Bosnia.   Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, parecer uma infeliz exceção a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto às vítimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal. Para ambos, esse cinismo parecia sabedoria em relação às coisas do mundo, mas na verdade todos estavam mais perplexos e, portanto, mais ignorantes do que nunca. Hannah Arendt,  As origens do totalitarismo. (1) Agradeço o apoio e as leitu- ras críticas de Alvaro Comin, Vera Silva Telles, Pedro Punto- ni e Kazuo Nakano. Pouco sabemos, de fato, sobre os acontecimentos que sacudiram o território bósnio nos últimos anos. Talvez, por sermos vítimas da mesma perplexidade apontada por Hannah Arendt quando se defrontou com o nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn MARÇO DE 1997 3  

bosnia 1

Embed Size (px)

Citation preview

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO1

    Omar Ribeiro Thomaz

    RESUMO Este texto introdutrio ao Dossi Bsnia-Herzegovina trata do conflito que sacudiu a regio nos ltimos anos. Destacam-se os processos pelos quais as manifestaes culturais e o jogo de diferenas tnicas, religiosas e lingsticas da regio ganharam peso poltico fundamental na definio dos rumos da guerra e foram manipulados ao longo do conflito armado. Assim, analisam-se alguns aspectos da histria da formao da moderna Iugoslvia e os fatos ocorridos na ltima dcada, que criaram um estado de temor permanente ou latente entre as distintas comunidades balcnicas. Palavras-chave: Bsnia-Herzegovina; Iugoslvia; guerra civil; conflitos intertnicos; comuni- dades na Bsnia.

    SUMMARY As an introduction to the Bosnia Dossier, this article discusses the conflict that has shaken the region over the last few years. The author underscores the processes whereby cultural manifestations and the interplay between ethnic, religious and linguistic differences gained a fundamental political importance in the region, defining directions the war was to take, while also becoming subject to manipulation during the armed conflict. The article provides an analysis of certain historical aspects of the formation of modern Yugoslavia along with a discussion of the events of the last decade, which have created a permanent or latent state of fear among the different Balkan communities. Keywords: Bosnia-Herzegovina; Yugoslavia; civil war; interethnic strife; communities in Bosnia.

    Era precisamente a aparente estabilidade do mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, parecer uma infeliz exceo a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo tanto s vtimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal. Para ambos, esse cinismo parecia sabedoria em relao s coisas do mundo, mas na verdade todos estavam mais perplexos e, portanto, mais ignorantes do que nunca. Hannah Arendt, As origens do totalitarismo.

    (1) Agradeo o apoio e as leitu- ras crticas de Alvaro Comin, Vera Silva Telles, Pedro Punto- ni e Kazuo Nakano.

    Pouco sabemos, de fato, sobre os acontecimentos que sacudiram o territrio bsnio nos ltimos anos. Talvez, por sermos vtimas da mesma perplexidade apontada por Hannah Arendt quando se defrontou com o nnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn

    MARO DE 1997 3

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    destino funesto dos "refugos da terra" que povoaram o continente europeu no entre-guerras. Pudemos, sim, acompanhar a exploso de violncia que envolveu diferentes comunidades definidas em funo de sua "origem nacional", "etnia" ou "confisso". Havia ainda outros personagens na tragdia que assolou este pequeno pas balcnico: o exrcito iugoslavo, milcias srvias, croatas ou bsnias e inmeras organizaes internacionais. Destas ltimas, a ONU possua o mandato de proteger a populao civil e fazer cumprir um conjunto de resolues, tais como a proibio da venda de armas na regio; outras "grupos de contato", chefes de estado etc. procuravam equacionar inmeros tratados de paz (continuamente desrespeitados); e por fim houve a entrada em cena da Otan, cujo propsito, a partir de um determinado momento, foi o de deter milcias que atormentavam cidades inteiras. Podamos seguir via satlite o calvrio de uma populao civil exposta a uma violncia que, acreditava-se, no voltaria a assolar a geografia europia: campos de concentrao, deportaes em massa, assassinatos, cercos a cidades, civis vtimas de franco-atiradores e ataques do exrcito federal iugoslavo ou de milcias. Isto diante da impotncia dos organismos internacionais, dos Estados Unidos, da Unio Europia...

    A cidade de Sarajevo rapidamente se transformou no smbolo de resistncia de uma populao acossada ao longo de anos por um cerco cruel. Como lembra o escritor bsnio Pedrag Matvejevic, a capital da Bsnia-Herzegovina bateu o triste recorde de Leningrado, superando os novecentos dias em que a cidade russa foi assediada pelo cerco nazista2. Franco-atiradores transformaram ruas e bairros inteiros em retratos fantas- magricos do que haviam sido; nos rigorosos invernos que se sucederam, os habitantes de Sarajevo se viram desprovidos do mnimo necessrio para garantir sua sobrevivncia. A cidade, que no incio da dcada anterior sediara os jogos olmpicos de inverno e era conhecida por seus monumen- tos arquitetnicos e pelo cosmopolitismo, fruto do encontro de diferentes civilizaes, do Oriente e do Ocidente, via-se agora fraturada, partida3. Nos dias de aparente calma, a populao saa s ruas e ocupava as mesas dos poucos cafs que abriam suas portas e terraos, ia ao mercado e, quando l faltavam produtos, tinha que percorrer os meandros do mercado negro. Os bondes j no circulavam por causa dos franco-atiradores e a calma podia ser interrompida a qualquer momento por um ataque fulminante da artilharia servia, que ocupava os subrbios da cidade. Escolas, teatros, cinemas e bibliotecas estavam fechados ou haviam sido destrudos; ainda assim, saltimbancos ou orquestras atuavam quando possvel, sobretudo quando havia a espessa neblina que obstrua a mira dos sitiadores4; e sabemos da determinao de seus habitantes, que se obstinavam em manter vivos festivais de teatro e msica, e para isso convidaram intelectuais do mundo inteiro (Susan Sontag e Juan Goytisolo, entre outros, compareceram).

    Bogdan Bogdanovic, arquiteto e antigo prefeito de Belgrado, atual- mente residindo em Viena, fala do cerco de Sarajevo como algo mais do que o assdio aos seus habitantes:

    (2) Matvejevic, Pedrag. "Guer- ra e memria". In: Sarajevo. Milano: FedericoMotta Editore, 1995, p. v.

    (3) Matvejevic (ibidem) afirma: "... creio conhecer aquela cida- de onde o Ocidente e Oriente se davam as mos" (p. viii). (4) A referncia aos dias de neblina em Sarajevo encontra- mos no belo filme do diretor grego Theo Angelopoulos, Le regard d'Ulysse (1995), o qual comentaremos mais adiante.

    (5) Bogdanovic, Bogdan. "L'homme-Sarajevo". Esprit, n 211, maio de 1995, p- 91. Susan Sontag, que visitou a cidade inmeras vezes ao longo da guerra, tambm deixou regis- tros da tenacidade dos seus habitantes na defesa daquilo que consideravam ser os sm- bolos de Sarajevo. Cf. "A indi- ferena aqui e os pesadelos l". Folha de S. Paulo, 17/03/96, caderno Mais!, p. 7.

    (6) Matvejevic, Pedrag, op. cit., p. x.

    (7) A 7 de abril de 1992, ano seguinte declarao de inde- pendncia da Bsnia-Herzego- vina, aprovada no parlamento de Sarajevo (15/10/91), auto- proclamada a "Repblica Sr- via da Bsnia-Herzegovina", com capital em Pale e que jamais gozou de reconhecimen- to internacional. Cf. Bougarel, Xavier. Bosnie: anatomie d'un conflit. Paris: La Dcouverte, 1996, p. 163.

    (8) Cf. Nahoum-Grappe, Vro- nique. "Srebrenica: il y a un an". Esprit, n 223, jul. 1996, pp. 5-14.

    (9) Embora em Sarajevo repre- sentantes de partidos croatas (catlicos) e muulmanos te- nham se contraposto queles do partido srvio (ortodoxos), as relaes entre aquelas duas comunidades nem sempre fo- ram pacficas. Por um lado, pesa a desconfiana de um pacto secreto entre Trujman, lder da Crocia independente, e Milosevic, lder srvio da nova Iugoslvia; por outro, no dia 3 de julho de 1992 grupos croa- tas autoproclamaram a "Comu- nidade Croata da Herceg-Bos- na", com pretenses ora de anexao Crocia, ora de uma possvel independncia. Cf. Bougarel, Xavier, op. cit.

    4 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    ...os defensores de Sarajevo no defendiam somente sua cidade, mas a cidade em geral, o princpio de urbanidade e o cidado que existe em todos os homens que eles se obstinaram em viver em razo desta urbanidade e do civismo. Desde o incio, a defesa de Sarajevo foi a defesa da idia de cidade, a defesa da cidade-idia5.

    Qual cidade-idia? Aquela que havia se constitudo, modernamente, como a capital de todos os povos da Bsnia-Herzegovina, fossem estes muulmanos, croatas (catlicos), srvios (ortodoxos) ou judeus. Aquela que traduzia o espao da cidade no espao da troca entre os diferentes, no espao do conflito que se traduz em poltica, no espao da cidadania, da civilidade, da urbanidade. Da o orgulho que sentiam seus habitantes pela Biblioteca Nacional, de estilo neomourisco, smbolo do poder austro- hngaro nos Blcs, que guardava preciosos documentos orientais, rabes, otomanos e eslavos6 ora destruda. Da tambm o desejo de continuar promovendo seus festivais de inverno, de cinema e de teatro, suas exposies. Sarajevo representava tudo isto diante do assdio de milcias srvias sob as ordens de Pale, o beneplcito de Belgrado e a indiferena internacional. Pale tornou-se, assim, smbolo triste do seu reverso: a idia de cidade se desfaz aqui naquele espao homogneo que nega a troca e as reciprocidades entre os grupos. Traduz um outro projeto: o de uma Bsnia servia, depurada daqueles habitantes indesejveis7.

    Sarajevo, contudo, foi apenas um dos centros urbanos cujos habitantes fo- ram massacrados pelo isolamento do cerco: Srebrenika, Zepa, Gorazde, entre outros enclaves muulmanos criados com o objetivo de proteger a populao civil, se viram sitiados e ameaados8. Mostar foi literalmente partida em duas, quando a ponte romnica que ligava os lados muulmano e catlico da cidade foi atingida por um morteiro. Tal ponte no representava apenas um monumento da humanidade que foi definitivamente pelos ares: representava uma convi- vncia secular possvel, ainda que difcil; da o absurdo da sua destruio. As relaes entre estas duas comunidades mostraram-se ainda mais frgeis que a ponte, e aps os tratados de paz Mostar no alcanou ainda sua unificao9.

    Atribuir a violncia desagregao do estado iugoslavo foi uma das ex- plicaes recorrentes para a guerra civil na Bsnia ou o conflito entre a nova Iugoslvia (Srvia e Montenegro) e as recm-fundadas repblicas da Eslovnia e da Crocia: trata-se do dado mais evidente a partir do qual se tende a estabele- cer uma relao imediata de causalidade entre um fenmeno e outro. No en- tanto, parece-nos uma explicao limitada explica algo, mas no tudo , pois o mesmo no ocorreu com o fim da Tchecoslovquia10 e nem se estendeu por toda a geografia das repblicas da antiga Unio Sovitica ou, da mesma for- ma, por todas as ex-repblicas iugoslavas11. Evidentemente, h relao entre a desmontagem do estado e embates que reabrem problemas de territrios e fron- teiras. Deparamo-nos com um conflito que reatualiza, em termos dramticos e absurdos, o que esteve historicamente no projeto original da formao dos mo- dernos estados nacionais: a definio poltica e territorial da nao, uma comu-nnnnnnnn

    (10) Vaclav Havel definiu a revoluo antitotalitria de Pra- ga como a "transio de velu- do" (apud Semprun, Jorge. Saudaes de Federico San- chez. So Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 96). Semprun, em seu depoimento sobre sua passa- gem pelo executivo espanhol como ministro da Cultura do governo socialista de Felipe Gonzalez entre 1988 e 1991, recupera esta expresso para referir-se transio espanhola e aos acordos logrados entre diferentes setores da socieda- de, partidos, sindicatos e as nacionalidades basca e catal. A experincia espanhola ser retomada como contraponto aos acontecimentos na ex-Iu- goslvia por Robin Blackburn, um dos autores deste dossi.

    (11) importante salientar al- gumas particularidades da guerra da Bsnia em face dos conflitos que a antecederam nas fronteiras eslovenas e na Crocia, onde estados recm- fundados enfrentaram as estru- turas blicas do estado do qual faziam parte. No primeiro caso, a guerra contraps o exrcito federal iugoslavo defesa terri- torial eslovena entre 27 e 30 de junho de 1991 (a proclamao das independncias da Eslov- nia e da Crocia fora no dia 25, cf. Bougarel, Xavier, op. cit., p. 163). Algumas semanas depois, o exrcito federal se retirou e a Presidncia iugoslava afirmou a "pouca importncia" da Eslo- vnia em funo da "insignifi- cante" minoria de origem ser- via (Kaldor, Mary. "Yugoslavia and the new nationalism". New Left Review, nQ 197, jan./fev. 1993, p. 100). A Crocia se viu ao longo de meses num confli- to aberto com a Srvia (ressal- te-se que o exrcito iugoslavo havia sido previamente depu- rado de elementos no-srvios) (cf. Kaldor, Mary, ibidem; Nahoum-Grappe, Vronique, op. cit.), justificado por Belgra- do pela importante minoria ser- via ameaada pelo novo regi- me de Zagreb. Na regio litigi- osa de Krajina, chegou-se a proclamar-se uma "Repblica Srvia" que jamais alcanou o reconhecimento internacional. Os ataques do exrcito federal a Vukover e Dubrovnik choca- ram profundamente a opinio pblica internacional. Em am- bos os casos no tivemos, con- tudo, a sobreposio de uma agresso exterior a uma guerra civil total.

    MARO DE 1997 5

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    nidade de sentido, cultural e linguisticamente homognea, unida por uma his- tria e por um destino comuns.

    Na antiga Iugoslvia o conflito ter sido tanto mais violento ali onde no se encontravam maiorias "tnicas" ou "nacionais" claramente defini- das12. Donde outra explicao corriqueira, e sobre a qual nos deteremos um pouco mais: o ciclo de violncia na Bsnia-Herzegovina seria conseqncia direta de "dios ancestrais" entre os distintos grupos "tnicos" da regio. Trata-se de uma interpretao que tende a "naturalizar" no apenas os grupos que compem o territrio bsnio, mas o suposto "dio" que cultivariam entre si. A guerra, ento, seria explicada pela impossibilidade de convivncia entre os diferentes grupos "tnicos", definidos, no caso da Bsnia, a partir de sua adscrio "nacional" "Muulmanos", "Croatas" e "Srvios" ou religiosa muulmanos, catlicos e ortodoxos. Saliente-se que tal procedimento traz consigo o perigo da "naturalizao" da prpria guerra algo, por outro lado, recorrente em outros conflitos blicos atuais, como os de Ruanda e Burundi, na regio dos Grandes Lagos africanos, ou a guerra da Tchetchnia, no Cucaso. As conseqncias podem ser terrveis, como, por exemplo, o ceticismo diante da ao internacional de organismos que tm como mandato a proteo da populao civil em determinadas circunstncias, a indiferena diante da evidncia de que o material blico indispensvel para guerras de tal magnitude no produzido nos locais de conflito ou o cinismo decorrente do distanciamento em face de massacres, torturas e deportaes. Tal explicao ignora ainda imensos perodos da histria nos quais estas comunidades conviveram, se no harmonicamente, regulando os seus conflitos a partir de um conjunto de reciprocidades que criavam verdadeiros laos sociais entre elas.

    O caso da Bsnia em particular, e da Iugoslvia de maneira geral, merece ateno especial. A internacionalizao do espao bsnio como objeto de interesse dos antigos imprios que dominaram a parte centro- oriental da Europa at a ecloso da I Guerra Mundial austro-hngaro, otomano e russo e a violncia local com que se manifestou esta disputa de interesses conferem-lhe uma densidade histrica sem precedentes. O carter do conflito blico nos Blcs ao longo da II Guerra13 e a particula- ridade do estado iugoslavo sob a liderana de Tito nas dcadas marcadas pela Guerra Fria, do ponto de vista tanto econmico quanto poltico e social, sugerem que nos deparamos com um fenmeno de mltiplas facetas14. Por fim, o uso da "histria" no sentido de conferir legitimidade guerra e ao extermnio que leva ao que j foi chamado de "confisco da memria"15 delineia um quadro complexo, de difcil compreenso.

    (12) A Eslovnia constitui uma repblica bastante homognea, com 90% da populao de ori- gem eslovena; a Crocia possui um importante contingente po- pulacional de origem srvia; quanto Bsnia, os dados de 1991 so os seguintes: de um total de 4.364.574 habitantes, 43,7% (1.905.829) so muul- manos, 31,4% (1.369.258) sr- vios e 17,3% (755.895) croatas, enquanto 5,5% (239.845) se classificavam como "iugosla- vos" e 2,1% pertenciam a ou- tras categorias "tnicas" (Bou- garel, Xavier, op. cit., p. 141). (13) O fato de o estado iugosla- vo no entre-guerras ter sido claramente dominado por uma "etnia de estado" (os srvios) gerou uma situao de extrema violncia, sobretudo entre os srvios e os croatas, e a exis- tncia do estado croata "fanto- che" do nazismo alemo, res- ponsvel pelo massacre de sr- vios, judeus e mesmo muul- manos da Bsnia, foi continua- mente lembrada e apropriada nos ltimos anos no sentido de estimular a violncia. Para maiores informaes sobre as conflituosas relaes entre sr- vios e croatas ver: Rapacka, Joanna. "L'arrirre-plan cultu- rel et historique du conflit ser- bo-croate". Le Dbat, n 76, set./ out. 1993.

    (14) Entre os pases do bloco socialista, a Iugoslvia sempre se configurou como um caso particular. "Seu sistema totalit- rio foi um pouco liberalizado economicamente atravs da experincia, malograda, de au- togesto, e culturalmente abriu- se progressivamente um espa- o para o debate intelectual" (Morin, Edgar. Les fratrici- des: Yougoslavie-Bosnie 1991- 1995. Paris: Arla, 1995). Cabe lembrar tambm que, apesar de a capital da federao, Bel- grado, situar-se na Srvia e de os srvios dominarem postos- chaves na administrao, ao longo dos anos as distintas re- pblicas lograram um conside- rvel grau de autonomia e o estado iugoslavo jamais igno- rou a existncia de uma multi- plicidade etnolingustica no in- terior de suas fronteiras. Um bom exemplo deste ltimo ponto o florescimento da lite- ratura moderna iugoslava em distintas lnguas, sobretudo em srvio-croata, esloveno e ma- cednio.

    O perodo do final da dcada de 80 e incio dos anos 90 nos surpreendeu com mudanas inusitadas no Leste europeu, que no podiam deixar de ter pro-

    6 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    fundo impacto numa Iugoslvia j assolada por sucessivas crises econmicas e conflitos sociais16. Como ficar claro no artigo de Robin Blackburn publicado neste Dossi que analisa mais de perto os processos que antecederam a des- montagem do estado e suas conseqncias no que concerne natureza da guerra , o conflito blico iugoslavo veio precedido de uma diviso do pas nos as- pectos econmico e poltico. Desigualdades econmicas entre as distintas re- pblicas e regies criaram imensas disparidades entre as mais "ricas" mais "prximas" da Europa ocidental17 e as mais "pobres". A Eslovnia e a Crocia ostentavam melhores ndices de emprego e qualidade de vida, enquanto a Ma- cednia e, sobretudo, a provncia de Kossovo de maioria albanesa regis- travam ndices que as aproximavam dos pases do Terceiro Mundo.

    A crescente abertura para o Ocidente ocorreu num contexto de profunda crise econmica, mas no s: a Constituio iugoslava de 1974 havia concedido maior autonomia s repblicas, aos seus corpos burocr- ticos e mesmo aos quadros do partido. A morte do marechal Tito, em maio de 1980, e a efetivao da Presidncia colegiada, que alternava lideranas polticas das distintas repblicas e provncias autnomas, pareciam configu- rar o auge do processo de autonomia almejado por boa parte da populao. A Iugoslvia da dcada de 80, particularmente a Bsnia, traduziu a oscilao que caracterizou a sua formao como estado socialista no-alinhado, como descreveu Xavier Bougarel18: ao lema titista de "fraternidade e unidade" contrapunham-se continuamente o fortalecimento e a redefinio das estruturas comunitrias. No caso da Bsnia, comunidades "confessionais" sobretudo a partir da Constituio de 1974, com o reconhecimento dos "Muulmanos" como "nao" afirmaram-se como "nacionais" ou "tni- cas": "Muulmanos", "Srvios" e "Croatas"19.

    O processo inicial de democratizao na Bsnia e a opo pelo multipartidarismo ocorreram num movimento paradoxal de, por um lado, afirmao de partidos de carter nacionalista e, por outro, surgimento dos partidos "cidados". Os primeiros predominariam sobretudo em regies etnicamente homogneas ou rurais, enquanto os ltimos teriam fora expressiva entre as elites intelectuais urbanas e o operariado grupos cujo crescimento e fortalecimento se deu com a modernizao do estado iugoslavo e cujas reivindicaes democrticas ou sindicais ultrapassavam as fronteiras comunitrias. As primeiras eleies livres de 18 de novembro de 1990 para o parlamento bsnio delinearam o seguinte quadro: o Partido da Ao Democrtica (SDA) muulmano conquistou 30,4% do total de votos; o Partido Democrtico Srvio (SDS), 25,2%; Comunidade Democr- tica Croata (HDZ), 15,5%; e os partidos "cidados", 28,9%20. Portanto, ao lado de uma expressiva maioria que reafirmava politicamente sua fidelidade sua comunidade "tnica", um nmero significativo de indivduos expres- sava sua vontade por meio do voto "cidado". O quadro no era simples, mas a liderana muulmana era clara, e foi confirmado Izetbegovic como primeiro a ocupar a Presidncia coletiva bsnia.

    No queremos sugerir aqui que o voto em partidos que se colocavam como representantes de comunidades especficas representa algum tipo de nnnnn

    (15) Cf. Ugresic, Dubravka. "The confiscation of memory". New Left Review, n2 218, jul./ ago. 1996. O "confisco da me- mria" seria o reescrever uma histria mtica formada por mrtires e heris, algo bastante freqente em crculos naciona- listas, sobretudo na atual Sr- via, que utilizam a idia da existncia de uma "Srvia Ce- lestial", constantemente objeto de agresso por parte dos mu- ulmanos, o que justificaria a sua ao beligerante na Bs- nia. Cf. tambm Nahoum-Gra- ppe, Vronique, op. cit., p. 13.

    (16) Recentemente, a revista Estudos Avanados (vol. 10, na 28, set./dez. 1996) organizou um importante dossi que pro- cura dar conta das transforma- es sistmicas que caracteri- zaram a Europa do Leste. Como chama a ateno Lenina Pome- ranz, uma das autoras desse dossi, o processo de transfor- mao se desenvolve de ma- neira bastante desigual e pos- sui amplitude, profundidade e ritmos prprios em cada um dos pases (p. 9). Podemos afir- mar aqui que, no caso das antigas repblicas iugoslavas, a compreenso da natureza da transformao passa necessari- amente pela guerra.

    (17) A proximidade com a "Eu- ropa" faz referncia evidente histria destas distintas rep- blicas. Enquanto a Eslovnia e a Crocia estiveram por longos perodos sob o domnio austro- hngaro, as demais regies fo- ram territrios objeto da ex- panso otomana na Europa centro-meridional.

    (18) Bougarel, Xavier, op. cit., pp. 39-47.

    (19) Como fica claro no traba- lho do historiador turco Aydin Babuna ("The emergence of the first Muslim Party in Bos- nia-Hercegovina". East Europe- an Quartely, vol. XXX, n 2, jun. 1996), a associao de uma comunidade confessional "muulmanos" noo de "nacionalidade" muito antiga, datando, pelo menos, do pe- rodo austro-hngaro da Bs- nia (que ser detalhado no arti- go de Jean Brenger deste Dos- si). A Constituio de 1974 no faria mais que reconhecer "de fato" uma "nacionalidade" que j se expressaria nas rela- es sociais existentes entre os distintos grupos na Bsnia.

    (20) Bougarel, Xavier, op. cit., p. 46.

    MARO DE 1997 7

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    "arcasmo" e o voto em partidos "cidados", qualquer sorte de "modernida- de". evidente que o primeiro s pode ser compreendido se temos em conta a histria da regio e, portanto, sua tradio comunitria, e o segundo, se nos atemos a perodos recentes da Iugoslvia e ao surgimento de novos grupos urbanos, aspecto detalhado no artigo de Ivan Ivekovic neste Dossi. Este mesmo autor nos oferece uma instigante discusso em torno da impossibilidade de se estabelecer uma relao de causa e efeito entre "comunidades tnicas" ou "religiosas" e a guerra. Segundo seu argumento, as identidades sociais na Bsnia-Herzegovina ou alhures so constru- das e continuamente reinventadas, e no algo "congelado" que tende a se reproduzir continuamente e do qual os indivduos no podem se desvenci- lhar. A questo por que, neste contexto especfico, a idia de "identidade" foi capaz de mobilizar partes significativas da populao, embora provocas- se perplexidade em grupos no pouco expressivos da sociedade da ex- Iugoslvia. Entretanto, devemos nos questionar sobre a idia repetida ad nauseam pelos meios de comunicao e por personalidades polticas internacionais de que se tratava de grupos "tnicos" que no podiam conviver entre si, e que portanto a guerra era inevitvel e a democracia, impossvel. Ivan Ivekovic mostra que justamente no espao iugoslavo talvez com exceo dos albaneses de Kossovo e dos magiares da Voivodnia nos deparamos com um conjunto de "diferenas" mnimas, que podem, portanto, ser usadas tanto no sentido de promover a "unificao" como de exacerbar a fragmentao21.

    A democratizao interna na Bsnia-Herzegovina se deu par a par com processos semelhantes na Eslovnia, Crocia e Macednia, e em todas estas repblicas o desenrolar poltico caminhou para enfrentamentos com Belgrado e para a secesso. A independncia do poder central foi precedida, em geral, por referendos22. No entanto, parcelas considerveis da popula- o receavam por seu futuro nas novas estruturas polticas que se fundavam, sobretudo nos casos da Crocia e da Srvia, onde os princpios de cidadania passavam crescentemente a coincidir com os de "nacionalidade" ou "etnia". Srvios na Crocia e na Bsnia, albaneses na Macednia e mesmo comuni- dades croatas na Bsnia conformavam minorias nacionais que viam com suspeita e temor os novos regimes; para alguns destes grupos, como as comunidades srvias alhures, o poder de Belgrado representava uma mnima segurana diante de um futuro nebuloso. Esta insegurana se manifestava mesmo onde o carter "multitnico" do novo estado era afirmado, caso da Bsnia. Para isto contribua o passado do primeiro titular da Presidncia colegiada, Alija Izetbegovic, que em 1970 escrevera a "Declarao islmica", na qual clamava por uma unidade da comunidade islmica do Marrocos Indonsia o que lhe valeu algum tempo na priso. Embora venha declarando continuamente sua mudana de ponto de vista e com isto afirmando o carter multitnico da Bsnia-Herzegovina, muitos dos seus opositores se apoiam nesta passagem de sua biografia para pr em questo sua legitimidade23, bem como na tendncia de seu governo a privilegiar muulmanos nos cargos de confiana.

    (21) Peter Gay parte da mesma idia freudiana do "narcisismo das pequenas diferenas" ex- plorada por Ivan Ivekovic para o caso iugoslavo contempor- neo, na sua instigante anlise sobre o "clima" que antecedeu a I Guerra, a "histeria naciona- lista" que tomou conta de inte- lectuais, burgueses, estadistas e da massa, salientando que a maioria dos "mercadores do dio" ignorava as caractersti- cas da guerra moderna (Gay, Peter: O cultivo do dio: a expe- rincia burguesa da rainha Vi- tria a Freud. So Paulo: Com- panhia das Letras, 1995: pp. 515-528). (22) Em quase todos os refe- rendos (com exceo da Eslo- vnia), minorias significativas manifestaram sua rejeio se- cesso, boicotando o chamado das urnas. No caso da Bsnia, o boicote foi promovido pela co- munidade srvia, e dos 64% dos votantes que comparece- ram s urnas em 29 de feverei- ro de 1992, 99% optaram pelo "sim". No que se refere ao reconhecimento internacional, a Unio Europia foi precedida pela Alemanha, que reconhe- ceu em 23 de dezembro de 1991 as independncias da Cro- cia e da Eslovnia. O processo de reconhecimento da Bsnia e da Macednia teve incio no ano seguinte, esta ltima com imensas dificuldades diante da firme oposio grega, temero- sa de um expansionismo de Skopje em relao provncia grega da Macednia. Cf. Bou- garel, Xavier, op. cit., pp. 162- 165.

    (23) Cf. Kaldor, Mary, op. cit., p. 104.

    8 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    A que se deve este temor? Apenas crise econmica, que propicia o af de se procurar "bodes expiatrios"? Ao "dio natural" entre estas distintas comunidades, tambm "naturalmente" distintas? importante lembrar aqui o papel da noo de "comunidade", "etnia" ou "nao" no contexto iugoslavo. Diz respeito a um conjunto de diferenas ora lingsticas e culturais, ora religiosas que, de alguma forma, nortearam suas relaes historicamente. Ivan Ivekovic nos lembra porm que as "diferenas" devem ser relativizadas, tanto no que se refere aos aspectos lingustico-culturais quanto aos religiosos. Neste fim de sculo, estas "diferenas" as quais constituem experincias reais que dizem respeito forma como os indiv- duos articulam sua vida cotidiana no teriam necessariamente que levar a um conflito de tal magnitude.

    Aleksandar Jovanovic recorda que, embora os eslavos do Sul tenham estado politicamente divididos por longos perodos da histria, a idia da existncia de uma "comunidade de destino" possvel para estes povos antecede em muito a construo da Iugoslvia. Isto fica claro nos estudos que nos apresenta este autor sobre aqueles intelectuais que ao longo do sculo XIX se debatiam em torno das lnguas, variantes dialetais e alfabetos a partir dos quais poder-se-ia criar uma "norma culta" e impulsionar uma literatura na regio diferente da eclesistica24. Tais estudos nos sugerem que, longe das disputas polticas e dos conflitos que, evidentemente, existiram na regio, a forma de equacionar as distintas identidades tnicas de srvios, croatas, muulmanos, macednios etc. no foi marcada sempre por conflitos de sangue. Entre vendetas e lutas pela terra, um universo cultural extremamente rico configurou-se nos Blcs. Aqueles que "usam e abusam" da histria preferiram, contudo, enfatizar outras histrias, criando a iluso de um conflito de sangue, se no permanente, latente.

    Ao longo da dcada de 80, conflitos reais ou imaginrios conformaram parte do objeto privilegiado de um servio de propaganda crescentemente dominado pelo poder srvio de Belgrado. No podemos esquecer que os massacres de albaneses de Kossovo em abril de 1981 deixaram uma amarga lembrana que alimentava a ansiedade de uma populao cada vez mais oprimida pelo desemprego e pela crise econmica. Esta provncia autno- ma da Srvia merece ateno especial, por configurar-se como uma das mais explosivas da antiga e da atual Iugoslvia. Por um lado, ao longo do perodo titista Kossovo jamais gozou do estatuto de "repblica federada", mas de "provncia autnoma" da Srvia (malgrado a maioria esmagadora de albaneses na regio); por outro, a tendncia da dcada de 80 (sobretudo a partir de 1989, quando lhe foi praticamente suprimida a autonomia provincial) foi de uma represso poltica brutal do poder srvio na provncia, a mais deprimida economicamente. Do ponto de vista legal, nem os albaneses de Kossovo nem os magiares da Voivodnia poderiam constituir sua prpria repblica no interior da Iugoslvia e, assim, ser considerados uma "nacionalidade", em funo da existncia dos estados nacionais albans e hngaro. So assim legalmente considerados "minorias nacionais", ao lado de ciganos, judeus, romenos da Macednia etc.

    (24) Cf., entre outros textos, "A renovao da lngua servo-cro- ata"; "Macednio a 'ltima' lngua literria eslava"; "Apon- tamentos sobre as influncias persas, rabes e turcas no lxi- co do servo-croata e maced- nio modernos". In: Jovanovic, Aleksandar. sombra do quar- to crescente: notas sobre hist- ria e cultura da Europa centro- oriental. So Paulo: Hucitec, 1995.

    MARO DE 1997 9

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    A situao de Kossovo especial, pois ali os albaneses conformam, na atualidade, mais de 80% da populao e um tero do total de albaneses existentes no mundo, espalhados entre a Albnia, Kossovo, Srvia, Monte- negro, Macednia, Grcia e aqueles da "dispora" (pases da Europa ocidental principalmente Itlia , Estados Unidos, Austrlia etc.). Sobretudo desde 1989, os albaneses tnicos de Kossovo vm sofrendo intenso assdio policial e militar, represso brutal no que se refere s instituies de ensino, obstruo ao acesso a determinados cargos pblicos etc. Kossovo constitui-se ainda em objeto privilegiado da propaganda srvia por ser considerada a "ptria original" dos srvios, tema bastante freqente na literatura nacionalista. A idia de Kossovo como "ptria original" lhe confere quase que um carter mitolgico, o que contribui para uma profunda animosidade diante da maioria albanesa, considerada e tratada muitas vezes como "estrangeira" ou "invasora", e desfavorece as reivindica- es de maior autonomia25.

    As repblicas ricas do Norte acusavam continuamente as pobres ou empobrecidas do Centro-sul de malversarem os fundos pblicos. A popula- o se viu em meio a crescentes rumores que as enchiam de temor, e determinadas comunidades passaram a se sentir desprotegidas ora diante de setores majoritrios da populao, ora diante de um poder poltico e policial pouco preocupado em zelar pelo bem comum. Podemos afirmar que o clima que antecedeu a formao dos partidos nacionalistas e as sucessivas independncias da Eslovnia, Crocia, Macednia e Bsnia-Herzegovina era de temor diante da violncia que se aproximava26. A dcada de 90 assiste, assim, ao incio da constituio de instituies democrticas na Bsnia, as quais, no entanto, so rapidamente solapadas pela vitria da poltica do medo.

    Compreender a eficcia da poltica do medo e do dio nos lana diretamente no corao da crise iugoslava e por que no dizer? na demncia que se apossou de determinadas lideranas polticas ou elites locais27. Leva-nos, contudo, histria bastante complexa de uma regio que, neste sculo, foi sacudida por, pelo menos, trs guerras fratricidas. Em todas, o fantasma das anteriores parece ter ressuscitado para dar sentido ao conflito em curso.

    A Bsnia-Herzegovina assim como outras regies da antiga Iugos- lvia constitui historicamente o que podemos chamar de "regio de fronteira". No caso, fronteira entre Oriente e Ocidente. "Ser fronteira" sugere mltiplas metforas, nem sempre cmodas. No caso, no nos deparamos com uma metfora embora tambm o seja , mas com uma fronteira real, aquela que foi objeto de disputa entre poderosos imprios o austro- hngaro, o russo e o otomano. Muito da "confuso tnica" do mapa

    (25) No que se refere situao atual de Kossovo, ver, de autor annimo, "Kosova, the quiet siege". Cultural survival. "Nationalism in Eastern Euro- pe, nations, states, and minori- ties". Cambridge, MA, vol. 19, 1995 (no divulgado o nome do autor, segundo a revista, a pedido do prprio, certamente para evitar perseguies); Jo- vanovic, Aleksandar. "A bata- lha de Kossovo na literatura srvia". In: sombra do quarto crescente..., op. cit.

    (26) No podemos esquecer que ao longo deste perodo corriam notcias sobre arbitrariedades cometidas con- tra minorias em outros pases vizinhos, como as minorias tur- ca e cigana na Bulgria, hnga- ra na Transilvnia romena ou grega na Albnia. Poder-se-ia afirmar, no entanto, que partes considerveis das populaes de grandes centros como Sara- jevo estavam alheias ao ciclo de violncia que se anunciava, apostando claramente num processo de democratizao que o evitaria. Para um balano geral da situao das minorias na Europa oriental, ver nmero especial de Cultural Survival, op. cit.

    (27) Novamente, bastante ilustrativa a anlise de Peter Gay (op. cit.) sobre a atuao das elites nacionais nos anos que antecederam a I Guerra, em estrita consonncia com a anlise de Ivekovic.

    10 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    balcnico se deve ao fato de ser "terra de fronteira" no apenas geogrfica, mas tambm humana. A presena de amplos contingentes muulmanos na Bsnia deve-se converso de parcelas significativas de eslavos que se viram privilegiadas quando da ocupao do territrio pelos otomanos tanto no aspecto do controle da terra como no da ocupao de cargos burocrticos , e no a uma migrao "turca" em massa para a regio. No caso de Kossovo, o estabelecimento de albaneses ali h muito islamiza- dos deveu-se a uma poltica deliberada de Istambul de garantir o seu poder numa regio tradicionalmente srvia. Tanto em um caso como em outro, a atribuio "turco" por parte da propaganda srvia apelou ora para uma "traio" ocorrida h mais de quinhentos anos, ora para o estatuto "estrangeiro" da populao.

    O artigo de Jean Brenger apresentado neste Dossi nos revela um complexo quadro dos interesses que se entrecruzaram na regio dos Blcs nas ltimas dcadas do sculo XIX e no incio do sculo XX, a partir de uma pormenorizada histria diplomtica. L se enfrentavam a Monar- quia Dual, o imprio otomano e o imprio russo poca vigilante quanto ao destino das populaes eslavas do Sul, sobretudo aquelas de f ortodoxa, e com interesses de expanso no Mediterrneo. Vrios congres- sos se realizavam ento, reunindo monarcas, polticos e diplomatas, com o objetivo de melhor administrar a "partilha" do mundo entre as potncias coloniais. O Reino Unido e a Frana seriam, neste processo, agraciados com imensos territrios na frica e no Oriente, mas o mesmo no ocorreria com a ustria-Hungria, que passou a ver os Blcs como um territrio de expanso "colonial". A Bsnia-Herzegovina foi, ento, "desajeitadamente" incorporada, em 1878, como um "protetorado" s terras do imperador de Viena, o que, como ficar claro no artigo de Brenger, provocaria proble- mas tanto internos como externos ao Imprio.

    Se a incorporao poltica ao imprio centro-europeu sugeria uma aproximao da Bsnia s potncias ocidentais, seu estatuto de "protetora- do" introduzia um desequilbrio no j complexo quadro de relaes entre os distintos grupos nacionais sditos da Monarquia Catlica28, muitos dos quais inquietos com o sbito crescimento de eslavos nas terras do Imprio e com possveis conflitos com a Sublime Porta. "Situao colonial", neste contexto, significava que o territrio teria uma administrao especfica, na qual parte dos quadros burocrticos seria ocupada pelos homens de Viena, os quais elaboraram uma gesto diferenciada dos investimentos para o "protetora- do", considerando-o territrio de consumo dos produtos industrializados produzidos nas regies desenvolvidas do Imprio. A anexao do territrio em 1908 no conseguiu evitar as contradies inerentes ao sistema colonial, e a Bsnia-Herzegovina era j objeto dos "irredentistas"29 srvios, que expressavam seus desejos secessionistas com a elaborao de uma ideolo- gia nacional. Como j foi detalhado pelo historiador turco Aydin Babuna, a incorporao da Bsnia ao imprio austro-hngaro que levaria emergn- cia de grupos muulmanos articulados politicamente de forma "nacional" em torno de um partido30.

    (28) Brenger, em outros tra- balhos (El imperio austro-hn- garo 1273-1918. Barcelona: Crtica, 1991; LAutriche-Hon- grie 1815-1918. Paris: Armand Colin, 1994), desenha um inte- ressante quadro da Monarquia Dual no que se refere ao esta- tuto das distintas nacionalida- des sditas do imperador cat- lico. A expanso do sistema de ensino na segunda metade do sculo XIX, por exemplo, ocor- reu com um relativo respeito s lnguas locais, embora, eviden- temente, o alemo se configu- rasse como lngua de elite. A noo de "protetorado" intro- duziu um qualificativo poltico que fez da Bsnia-Herzegovi- na uma regio conquistada e subjugada por meio de acor- dos exteriores a ela. Neste pe- rodo teve incio a emigrao em direo Turquia dos qua- dros turcos da administrao local, e muitas famlias muul- manas comeam a abandonar a Bsnia.

    (29) O "irredentismo" era a dou- trina poltica dos nacionalistas italianos que, depois da unifi- cao, reivindicavam a anexa- o dos territrios de lngua italiana ainda no liberados da dominao estrangeira, nota- damente austraca.

    (30) Babuna, Aydin, op. cit.

    MARO DE 1997 11

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    Nas ltimas dcadas do sculo XIX, a regio dos Blcs no permane- ceu estranha a um conjunto de movimentos nacionalistas que colocavam em xeque no apenas os imprios multinacionais centro-europeus, mas tam- bm os prprios estados da Europa ocidental. Basta olharmos para os casos da Irlanda em face do Reino Unido ou para a "Reinaxena" catal e o nascimento do nacionalismo basco de Sabino Arana, na Espanha. A contrapartida ao nacionalismo fragmentrio "cada nao, um estado" vinha dos movimentos de unificao alemo e italiano. Em ambos os movimentos, no entanto, sinais diferenciadores quanto lngua e "cultura" tornaram-se fundamentais. Podemos afirmar que a idia de um estado que agrupasse os povos eslavos do Sul se aproximava do modelo talo-germano, ao propor a possibilidade de uma comunidade poltica que reunisse povos de lnguas aparentadas e culturas eslavas.

    Foi tambm neste perodo, como mostra Hobsbawm31, que se criou a noo de "povos estatais", aos quais caberia conduzir/assimilar povos "sem histria" ou "no-estatais". Se os estados bem-estabelecidos da Europa ocidental tiveram certo "sucesso" na conduo dos problemas relativos s suas "minorias nacionais" por razes que no podemos explorar aqui , o mesmo no podemos dizer dos estados remanescentes dos grandes imprios centro-europeus. Do mesmo modo, o primeiro conflito blico mundial em muito se deveu prpria lgica do sistema imperialista: os conflitos imperiais e "nacionais" de ento e, talvez, os de agora tambm correspondiam (em grande parte) s necessidades de uma indstria blica que transformaram a dinmica da geopoltica das potncias centrais32.

    A I Guerra teve como resultado no apenas uma carnificina sem precedentes na histria europia, mas tambm a reformulao do mapa poltico da Europa, com a desintegrao dos seus trs grandes imprios multinacionais33 e a emergncia de novos estados, cujo modelo se inspirava no dos estados-naes da Europa ocidental34. Dois elementos devem ser aqui salientados: a no-aplicabilidade do modelo no caso dos territrios remanescentes dos imprios austro-hngaro e otomano35 e a criao de uma verdadeira situao "colonial" qual se viram expostos inmeros povos no interior das novas estruturas estatais, que no lhes garantiam um mnimo de representatividade. Podemos afirmar que muitos dos estados que emergi- ram do imprio austro-hngaro trataram de reproduzir no interior de suas fronteiras o mesmo tipo de relao que Viena mantivera com as distintas nacionalidades, mas sem a mesma legitimidade conferida Monarquia Catlica.

    No perodo que sucedeu a I Guerra Mundial observou-se na Europa centro-oriental a afirmao de "povos estatais" prontos a assumir as estruturas dos novos estados que se formavam que se contrapunham aos "povos sem estado" ou "sem histria". O movimento subsequente foi a formao de novos movimentos nacionalistas e o boicote das ento chamadas "minorias nacionais" aos novos estados, muitas vezes dominados por naes com quem elas no possuam o menor princpio de identidade. nnnnn

    (31) Hobsbawm, Eric J. Naes e nacionalismo desde 1780. So Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 126.

    (32) Cf. Hobsbawm, Eric J. A era dos imprios. So Paulo: Paz e Terra, 1989.

    (33) O caso russo , contudo, particular, como foi salientado por Dmtri Furman, pois o fim do Imprio no correspondeu ao fortalecimento de sua ideo- logia nacional, mas ao seu re- verso, e, diferena dos imp- rios que se desintegraram no fim da I Guerra e em meio ao processo revolucionrio, a Rs- sia restabeleceu sua integrida- de territorial. Cf. Furman, Dm- tri: "O grande estado russo uma idia-armadilha". Novos Estudos. So Paulo: Cebrap, nQ 33, jul. 1992. No mesmo nme- ro desta revista so de grande interesse para a compreenso da questo nacional na Rssia contempornea o artigo de Dmtri S. Likhachev, "A nature- za nacional da histria russa", e a entrevista de Krzystof Pomi- an a Pierre Haski e Jean Qua- tremep, "Uma antiga fratura ameaa o continente".

    (34) Cf. Hobsbawm, Eric J. Na- es e nacionalismo..., op. cit.; Era dos extremos: O breve scu- lo XX. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    (35) O modelo de moderno estado-nao traduz a idia de uma comunidade de destino homognea de um ponto de vista lingstico, tnico e reli- gioso que possa demarcar fron- teiras geogrficas. Sobre a for- mao da idia de "nao" ver, entre outros, Anderson, Bene- dict: Nao e conscincia na- cional. So Paulo: tica, 1989; Hobsbawm, Eric J., Naes e nacionalismo..., op. cit.

    12 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    As "minorias nacionais" que muitas vezes chegavam a compor mais de 50% do total da populao! viam com crescente desconfiana e temor os intuitos integracionistas dos "povos estatais", e estes se deparavam com um estado por demais frgil para conceder autonomia em qualquer nvel a estas "minorias"36. Na Europa do entre-guerras, lembra Hannah Arendt, cem milhes de indivduos passaram a conformar as "minorias nacionais", cada vez mais expostas violncia, em meio a uma crise econmica e social sem precedentes, e sem estruturas eficazes que as defendessem37.

    O princpio do estado-nao negociado ou imposto ao fim da I Guerra e a definio de "povos estatais" e "minorias" introduziram um profundo desequilbrio no conjunto de reciprocidades que regulava as relaes entre distintos grupos etnolingusticos existentes na Europa centro- oriental. O estatuto colonial ao qual se viram submetidos muitos grupos, seu afastamento de quadros burocrticos e da administrao local ou mesmo a ingerncia de um poder central em sistemas de ensino constitudos em lnguas locais, e o ensejo assimilacionista por parte dos "povos estatais" acabaram por gerar tenses e desconfianas. O carter arbitrrio das fronteiras fez com que, subitamente, muitos alemes se encontrassem sob o jugo checo ou polons, culturas s quais no sentiam o mnimo desejo de se incorporar, e o mesmo podemos afirmar com relao a inmeros grupos minoritrios que passaram a ver o seu estatuto poltico no interior dos novos estados com crescente temor38. No caso especfico da Iugoslvia, seu projeto de moderno estado-nao confundiu-se em especial no primeiro perodo, que vai de 1918 sua desagregao ao longo da II Grande Guerra com o da "Grande Srvia", o que no deixou de gerar enfrentamentos e receios entre os distintos povos que habitavam a regio.

    Temos, ento, a dissoluo deste "mundo" de certa maneira estrutura- do do qual nos faz um belo relato Elias Canetti, que passou sua infncia num pequeno povoado s margens do Danbio:

    (36) Cf. Hobsbawm, Eric J. Na- es e nacionalismo..., op. cit.; Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo. So Paulo: Com- panhia das Letras, 1990.

    (37) Cf. Arendt, Hannah, ibi- dem, pp. 300-336. Neste pero- do criaram-se inmeros povos que no viam assegurada sua integridade no interior de uma estrutura poltica. O massacre armnio perpetrado pelo regi- me dos Jovens Turcos, que viti- mou mais de um milho e meio de armnios entre 1915 e 1918, foi o primeiro etnocdio com caractersticas "modernas", ou seja, coordenado e executado cuidadosamente pelo estado a partir de uma ideologia nacio- nalista absolutamente exclu- dente e "genocidria" de mino- rias no interior de suas frontei- ras polticas. Cf. Um genocdio em julgamento: o processo de Talaat Pax na Repblica de Weimer. So Paulo: Paz e Ter- ra, 1994.

    (38) Cf. Hannah, Arendt, ibi- dern.

    Ruschuk, no Danbio inferior, de onde cheguei ao mundo, era uma cidade maravilhosa para uma criana, e se eu disser que fica na Bulgria, darei uma imagem incompleta dela, pois l viviam pessoas das mais diferentes origens, e num dia s podiam-se ouvir sete ou oito idiomas. Alm dos blgaros, freqentemente vindos do campo, havia muitos turcos, que viviam no seu prprio bairro, e limitando-se com este havia o bairro dos sefardins, o nosso. Havia gregos, albaneses, armnios, ciganos. Da outra margem do Danbio vinham os rome- nos; minha ama, de quem no me lembro, era romena. Havia ainda alguns russos39. (39) Canetti, Elias. A lngua ab-

    solvida. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 12.

    Em Ruschuk, distintas comunidades, definidas ora por sua confisso, ora por sua histria, lngua ou cultura, organizavam o seu universo de relaes sociais. Canetti faz um relato memorialstico do qual evidentemente nnnn

    MARO DE 1997 13

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    no nos possvel tirar concluses gerais para o conjunto da Europa centro- oriental, mas o qual nos sugere que as fronteiras entre os grupos se repunham no em um mapa geogrfico, mas nos laos que ora os aproximavam, ora os distanciavam; o monolingusmo era exceo nos mercados onde Oriente e Ocidente se encontravam. Ali, entre a gente mida e longe dos grandes fruns decisrios internacionais, a convivncia, ainda que s vezes difcil, era possvel.

    So estes acontecimentos situados to longe no tempo que dotam o conflito atual de um mnimo de inteligibilidade? Se no totalmente como j ficou claro em funo dos acontecimentos recentes , so fundamentais. Por um lado como fica claro no artigo de Brenger , o destino dos povos balcnicos veio marcado por uma contnua interferncia dos grandes centros de poder; por outro, a histria nos leva a estruturas antigas s quais modernos estados nacionais procuraram se adaptar ou eliminar.

    Tal foi o caso da Iugoslvia. Num primeiro momento, grosso modo, a unio dos eslavos do Sul ocorreu sob a evidente gide de um "povo estatal", os srvios o que teve conseqncias desastrosas ao longo da II Guerra40. A vitria dos partisans na luta contra o nazi-fascismo e a fundao do moderno estado iugoslavo sob a batuta do marechal Tito com imensa legitimidade interna e externa se fizeram, contudo, na tentativa de combinar um estado forte com as estruturas comunitrias anteriores. Poderamos dizer que a originalidade da Federao ficou patente quando, em 1974, uma adscrio at ento religiosa se transformou em "nao": "Muulmano" passou, ento, a ser escrito com "M" maisculo41 e esta comunidade a constar ao lado das demais nacionalidades que faziam parte da Federao. No entanto, a relativa liberdade da qual desfrutaram os intelectuais iugoslavos nas dcadas que sucederam o ps-guerra deu origem a um conjunto de manifestaes culturais que procuravam sua originalidade nas especificidades dos grupos que as alimentavam. Ao lado portanto de uma intelectualidade "iugoslava" havia aqueles literatos e escritores que afirmavam sua produo nas lnguas e tradies locais. Aqui, "diversidade" no se traduz em "problema", mas em riqueza. Algo muito distinto do ocorrido com os magiares da Transilvnia romena, com os "turcos" ou ciganos da Bulgria, ou com os alemes dos sudetos checos, deportados com o fim da II Guerra. Pelo menos no que se refere literatura, a moderna Iugoslava se orgulhava de possuir um sistema que se expressava em pelo menos cinco lnguas e dois alfabetos.

    No entanto, a prpria estrutura do partido nico, que procurava ser o tradutor da "poltica" e portanto dos conflitos, acabou por criar uma fico em torno da suposta "fraternidade" entre os distintos povos da regio. Aquilo que no mbito da alta cultura era visto com orgulho, e no universo nnnn

    (40) Cf., entre outros, Rapacka, Joanna, op. cit.; Bougarel, Xa- vier, op. cit.

    (41) Cf. Bougarel, Xavier, op. cit.

    14 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    das relaes midas entre os indivduos como uma "realidade" que dizia respeito a formas de vida e vises de mundo, no encontrou o seu lugar na poltica, no espao pblico. As especificidades culturais de cada grupo foram transformadas em riqueza lingstica ou, pejorativamente, em folclo- re, escamoteando disputas e interesses que encontravam na "etnia" no uma forma "arcaica" de expresso, mas aquela dotada de sentido.

    Neste contexto, a Bsnia se conformou como uma repblica sui generis em meio a entidades polticas que possuam claras maiorias tnicas, lingsticas ou religiosas. Sua populao estava classificada entre muulma- nos, srvios e croatas isto para no falar de outras minorias, como judeus e ciganos. Em face da guerra civil, no ter sido difcil para os inimigos da Bsnia acusar os muulmanos de fundamentalistas, embora uma consider- vel parte de sua populao fosse to laica quanto a maioria "catlica" da Frana. Por outro lado, ao longo do conflito blico, croatas e srvios da Bsnia contariam sempre com a referncia e com o apoio de realidades polticas bastante prximas e concretas: a Crocia e a nova Iugoslvia. No caso dos bsnios "muulmanos" uma ajuda hipottica viria do "mundo islmico" ou, quando muito, de uma Turquia tambm distante.

    Encontramos, assim, um pas marcado por um fenmeno definido por Mary Kaldor42 como "novo nacionalismo": as diferenas entre as comunida- des so, agora, irredutveis. A existncia de uma lngua comum pouco parece representar diante de entidades "tnicas" que classificam os indiv- duos como se fossem portadores de uma "marca no corpo" da qual no pudessem se desfazer. Particularidades histricas ou de cultura existentes entre os distintos grupos so "naturalizadas", e as distintas comunidades passam a ser definidas a partir dos vcios e virtudes dos seus antepassados. A formao, portanto, de partidos nacionalistas, em vez de trazer para a cena pblica a demanda de cada uma das comunidades, e assim fund-la no conflito permanente caracterstico das modernas democracias, conduziu sua fragmentao. Como ser lembrado nos artigos de Blackburn e Ivekovic, muito do ocorrido se deve miopia das elites locais, sobretudo no que tange Srvia e Crocia, que geraram a lderes nacionalistas que "reinventam" a "etnia" j no sobre a idia de uma comunidade de sentido formada pelos eslavos do Sul, mas sobre a desconfiana e o temor.

    Vronique Nahoum-Grappe43 pungente na descrio da violncia qual foram expostas as populaes de Srebrenika, Zepa, Banja Luka e Gorazde: a "limpeza tnica", to freqente nos dias que correm vide Ruanda e Burundi44 diz respeito a uma operao de terror e pilhagem com o objetivo de "limpar", exterminar ou deslocar aquela rea de populaes indesejveis. O processo prvio de depurao de no-srvios de cargos burocrticos, diplomticos e do exrcito ocorrido no fim da dcada de 80 anunciava a formao da "Grande Srvia"; a identificao das famlias e dos indivduos a serem "depurados", a pilhagem dos seus bens, a obstruo ao seu acesso aos lugares de trabalho configuravam a preme- ditao da "limpeza tnica": a deportao, o estupro de mulheres e o assassinato em massa.

    (42) Kaldor, Mary, op. cit.

    (43) Nahoum-Grappe, Vroni- que, op. cit.

    (44) Bougarel (op. cit.) procura diferenciar a violncia em Ru- anda e Burundi daquela da guerra da Bsnia. No entanto, creio que h mais fatores que as aproximam do que os que as distanciam: o nmero superior de vtimas no caso africano no suficiente para que no pen- semos em processos de geno- cdio na Bsnia-Herzegovina.

    MARO DE 1997 15

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    revelador o olhar que lana sobre a guerra um grupo de Capacetes Azuis da ONU de origem samburu (grupo tnico do Qunia) enviado Bsnia: seu olhar de horror. Vindos de uma tribo guerreira, a sua noo de guerra em muito se distancia daquela que encontraram na "civilizada" Europa, onde os morteiros so lanados no contra guerreiros, mas contra velhos, mulheres e crianas45. Nahoum-Grappe incisiva tambm quando se refere impotncia/incompetncia das organizaes internacionais com mandato de proteger as populaes civis.

    O artigo de Blackburn, escrito ainda durante o conflito, claro no que se refere s possibilidades de ao dos organismos internacionais em aliana com grupos democrticos da prpria Iugoslvia. evidente, no entanto, que a guerra sempre tem os seus "senhores", aqueles que lucram com ela, e que a Iugoslvia foi vtima do fim da Guerra Fria, entre outras coisas, por configurar-se como um promissor mercado de material blico, o que o embargo no pde impedir. Acredito que um dos elementos que tornaram isto possvel foi a vitria da poltica do medo e da acusao, que contraps comunidades antes ligadas por laos sociais, culturais, lingsticos e "de sangue"46 que mais as aproximavam do que distanciavam. A reinveno da "etnia" e da "nao" deu-se num contexto de fragmentao institucional e poltica e crise econmica, sem falar no fato da impossibilidade de "territorializar" a "nao" partindo de um mnimo de homogeneidade como nos casos da Eslovnia e das Repblicas Checa e Eslovaca. A reinveno47 das "naes" e de suas tradies ocorreu no interior de um processo de reconstruo histrica que apelava para momentos trgicos do passado ora mticos, como a "Srvia Celestial", ora reais, como os massacres da II Guerra que, na lgica da poltica do medo, se apresentavam plenos de sentido num presente e num futuro incertos. A ptria dos eslavos do Sul se despedaa e, com ela, seu microcosmos: a Bsnia-Herzegovina. A "comunidade tnica" reinventada parece ser o nico universo de sentido diante de um mundo que se desfaz rapidamente. Algo "natural", como foi "natural" a guerra com tudo aquilo que a caracterizou: violncia, massacres, operaes de limpeza. Os acordos de Dayton firmados em 1996 no fizeram mais do que transportar para o mapa a "realidade" que se inventou com a guerra: uma Bsnia dividida entre, de um lado, croatas e muulmanos numa aliana ainda frgil e, de outro, os srvios da Bsnia.

    Ainda durante o conflito, em 1995, em face da evidncia da "morte" do seu pas, o escritor bsnio Pedrag Matvejevic, nascido na cidade partida de Mostar, manifestou seu desencanto diante da "ao" da comunidade internacional:

    (45) Refiro-me a um recente documentrio apresentado na Frana no incio de janeiro de 1996. Cf. Le Monde, 13-19/01/ 96, p. 6.

    (46) Dividir a populao da Bsnia a partir de substratos culturais irredutveis j confi- gura uma operao absoluta- mente ideolgica. Fazer esta operao partindo de um pres- suposto biolgico, alm de "fora de moda", insano.

    (47) Hobsbawm, Eric. J e Ran- ger, Terence. A inveno das tradies. So Paulo: Paz e Ter- ra, 1984.

    A Bsnia-Herzegovina, plurinacional e multicultural, est mortalmen- te ferida e, com ela, a nossa f em um mundo onde o pluralismo nacio- nal e cultural deveria ser possvel. A brutalidade e a barbrie so enco- rajadas pela inrcia e pela indiferena. Os sinos dos mortos j tocam h nnn

    16 NOVOS ESTUDOS N. 47

  • OMAR RIBEIRO THOMAZ

    mais de trs anos, sem dissuadir a conscincia daqueles que deveriam decidir por ns ou em nosso nome. A Europa pediu demisso da Bsnia. Seus governos renegam sua responsabilidade ou a jogam de um para outro. Maastrich capitulou, moralmente, diante de Sarajevo48. (48) Matvejevic, Pedrag, op. cit.,

    p. vii.

    Por tudo isto, temos uma guerra que no nos deixou heris alm da prpria populao civil, que resistiu ao cerco e s sucessivas deportaes. No podemos deixar de olhar com um misto de ironia e perplexidade o fato de que as mesmas lideranas polticas que apareceram no incio do conflito Milosevic, Trujman, Izlobevic ocupam os mesmos cargos que antes, e de que poucas responsabilidades polticas foram apuradas. Vronique Nahoum-Grappe desenha um panorama bastante preocupante do quadro poltico da atual Iugoslvia, em funo da estabilidade de seu presidente. Nos ltimos tempos, no entanto, pudemos observar lderes da oposio alguns, antigos quadros do prprio establishment de Milosevic, outros, incgnitas polticas lograr trazer s ruas a populao de Belgrado e de outras cidades srvias exigindo que fossem apuradas as fraudes das ltimas eleies e que se processasse a democratizao definitiva das instituies do pas.

    A falta de heris fica patente na filmografia que, de distintas maneiras, ps em foco o conflito balcnico e sabe-se que o cinema tem evidente preferncia pela polarizao heris/verdugos. Em Le regard DUlysse(Theo Angelopoulos, Grcia, 1995), um diretor grego exilado nos Estados Unidos retorna ao seu povoado natal com o objetivo de, a partir dali, iniciar a busca das mticas pelculas dos irmos Manakis, que no incio da histria do cinema registraram as gentes e os costumes dos Blcs. Nesta viagem, reencontra uma regio marcada pelo medo e pela angstia, e depois de percorrer, como num labirinto tarkovskiano, as diversas camadas do Oriente europeu chega por fim a Sarajevo, que sofre o assdio do cerco: os carrascos so invisveis e se escondem nos montes que cercam a cidade, seus habitantes so tenazes, e nos dias de neblina passeiam pelas margens do rio e se encontram com grupos de teatro e msicos que os lembram em que cidade vivem.

    Em Before the rain (Milcho Manchevski, Macednia/Inglaterra/Frana, 1994) distintas histrias se entrecruzam, criando um crculo temporal que no se fecha, um ciclo de violncia e vendeta que no tem fim. Aps muitos anos no exlio, um fotgrafo macednio retorna ao seu povoado de origem e o encontra dividido por uma linha que separa macednios e albaneses. Tendo passado pela Bsnia, no cr que ali tais clivagens possam levar violncia e guerra. A aldeia est, contudo, dividida pelo medo e pela desconfiana entre comunidades que, nas suas lembranas, viviam pacifica- mente. A memria que detm os mais velhos desta convivncia muitas vezes reiterada parece no poder conter grupos de milcias que mantm aterrorizados seus habitantes. Neste filme magistral, os carrascos emergem do interior da prpria comunidade e o crime e o assassinato se mostram, nnn

    MARO DE 1997 17

  • BSNIA-HERZEGOVINA: A VITRIA DA POLTICA DO MEDO

    mais do nunca, fratricidas. A metfora de um "crculo que no redondo" sugere a desesperana de uma violncia em espiral, sem soluo.

    Mais complexo Underground (Emir Kusturica, Frana/Alemanha/ Hungria, 1995), que prope uma interpretao da histria recente de um pas que j no existe. Com a frase "Era uma vez um pas..." Kusturica inicia a alegoria da histria recente da Iugoslvia numa frentica fbula plena em metforas que sugere a picaresca mediterrnica, seu gosto pela vida e seu desprezo pela morte. Entre a guerra de 40 e a de 90 existiria um grande "entre-guerras" em que teriam se acumulado mentiras e tenses. Ao sair do poro a que fora confinado um dos personagens por mais de quarenta anos, a iluso da Iugoslvia se desfaz diante do absurdo da guerra. A perplexidade se manifesta quando irmos se matam entre si, quando a traio se transforma numa forma de vida: muitos sucumbem, no aos morteiros, mas loucura.

    Os acordos de Dayton de 1996 acabaram por confirmar a separao do pas entre uma federao muulmano-croata e uma regio srvia, transfor- mando, parcialmente, numa realidade territorial as conquistas blicas das milcias srvias. O futuro dos Blcs ainda nebuloso a esto as crises polticas da Bulgria, da atual Iugoslvia, a fragilidade institucional da Bsnia-Herzegovina, sem falar das explosivas situaes de Kossovo e da Albnia. Tendo em mente a complexidade da temtica, a revista Novos Estudos organizou este Dossi Bsnia-Herzegovina, cujos artigos foram parcialmente comentados nesta introduo. Salientamos que a idia do Dossi partiu de discusses internas da equipe de pesquisadores do Cebrap ao longo do conflito, bem como do debate provocado pela conferncia pronunciada pelo professor Jean Brenger em maio de 1996 nesta institui- o, publicado aqui integralmente. O Dossi conta ainda com o artigo de Robin Blackburn, parte de um conjunto mais amplo de trabalhos publicados nos ltimos anos pela New Left Review, escrito ainda durante a guerra civil, e com o trabalho indito de Ivan Ivekovic.

    Recebido para publicao em 7 de fevereiro de 1997.

    Omar Ribeiro Thomaz douto- rando em Antropologia Social na USP e pesquisador do Ce- brap. J publicou nesta revista a resenha "O espelho partido" (n 37).

    Novos Estudos CEBRAP

    N. 47, maro 1997 pp. 3-18

    18 NOVOS ESTUDOS N47