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BRANQUEAMENTO (DE CAPITAIS): A OUTRA FACE DO CRIME ORGANIZADO 1 MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE O branqueamento (de capitais) foi, é e será um dos lados obscuros do crime organizado e estruturado. Sumário: 1. Enquadramento do tema; 2. Nascimento e evolução da censurabilidade jurídico-criminal do branqueamento (um pouco de história); 3. Possíveis sistemas jurídico-criminais para o branqueamento; 4. Consciência universal da «lesão»; 5. caracterização – olhar a «árvore inserida na floresta»; 6. Considerações finais 1. Enquadramento do tema i. A ocultação bens advindos de condutas ilícitas e a sua conversão em bens lícitos são, sem dúvida, preocupações dos que se dedicam à obtenção de proventos avultados de modo rápido e ilícito. Preocupação aliciante que se escreve na própria história da humanidade 2 : os saques (furtos) em nome do rei convertiam-se automaticamente em bens lícitos com a aceitação daquele, i. e., a cobiça, subtracção ilícita (furto ou roubo) e apropriação dos bens do próximo legitimava-se com a benção do rei 3 ; ou, p. e., «em 1662, a Inglaterra ofereceu aos piratas, que renunciassem a essa actividade, o perdão total e o direito de conservarem os produtos das suas actividades criminosas anteriormente desenvolvidas, naquilo que será, afinal, uma verdadeira antecipação ao que os actuais 1 Conferência proferida no Auditório do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, no dia 22 de Outubro de 2004. 2 No Séc. XVII, os piratas utilizavam «portos de abrigo» – situados em cidades marítimas –, onde gastavam o que saqueavam e cujos responsáveis por essas cidades procuravam que aqueles ali atracassem para que gastassem os bens obtidos na sua labuta criminosa. Assim como existem registos de que determinados piratas procuravam obter perdões régios com os proveitos ilícitos, podendo desta feita voltar ao seu país de origem e instalarem-se. Vide JORGE DIAS DUARTE, Branqueamento de Capitais – O regime do D. L. 15/93, de 22 de Janeiro, e a Norma Internacional, PUC, Porto, 2002, p. 16. 3 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 16 e n. 5.

Branqueamento (de Capitais) a Outra Face Do Crime Organizado

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BRANQUEAMENTO (DE CAPITAIS):

A OUTRA FACE DO CRIME ORGANIZADO1

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

O branqueamento (de capitais) foi, é e será um

dos lados obscuros do crime organizado e

estruturado.

Sumário: 1. Enquadramento do tema; 2. Nascimento e evolução da censurabilidade

jurídico-criminal do branqueamento (um pouco de história); 3. Possíveis sistemas

jurídico-criminais para o branqueamento; 4. Consciência universal da «lesão»; 5.

caracterização – olhar a «árvore inserida na floresta»; 6. Considerações finais

1. Enquadramento do tema

i. A ocultação bens advindos de condutas ilícitas e a sua conversão em bens lícitos

são, sem dúvida, preocupações dos que se dedicam à obtenção de proventos avultados de

modo rápido e ilícito. Preocupação aliciante que se escreve na própria história da

humanidade2: os saques (furtos) em nome do rei convertiam-se automaticamente em bens

lícitos com a aceitação daquele, i. e., a cobiça, subtracção ilícita (furto ou roubo) e

apropriação dos bens do próximo legitimava-se com a benção do rei3; ou, p. e., «em 1662, a

Inglaterra ofereceu aos piratas, que renunciassem a essa actividade, o perdão total e o

direito de conservarem os produtos das suas actividades criminosas anteriormente

desenvolvidas, naquilo que será, afinal, uma verdadeira antecipação ao que os actuais

1 Conferência proferida no Auditório do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, no

dia 22 de Outubro de 2004. 2 No Séc. XVII, os piratas utilizavam «portos de abrigo» – situados em cidades marítimas –,

onde gastavam o que saqueavam e cujos responsáveis por essas cidades procuravam que aqueles ali atracassem para que gastassem os bens obtidos na sua labuta criminosa. Assim como existem registos de que determinados piratas procuravam obter perdões régios com os proveitos ilícitos, podendo desta feita voltar ao seu país de origem e instalarem-se. Vide JORGE DIAS DUARTE, Branqueamento de Capitais – O regime do D. L. 15/93, de 22 de Janeiro, e a Norma Internacional, PUC, Porto, 2002, p. 16.

3 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 16 e n. 5.

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«barões da droga» se propõem ou propuseram fazer»4 ou, ainda, PABLO ESCOBAR que

se propôs pagar a divida externa da Colômbia em detrimento da sua impunidade ou de

garantia de não extradição para os Estados Unidos da América5.

O branqueamento (de capitais)6, hoje mais do que algum dia, afecta-nos

directamente por seres que vivem e sentem em conjunto e em uma aldeia global. A ideia de

que o acto do «eu» não interfere com o «outro» ou que interfere unicamente com o «outro»

lesado directamente não se coaduna com a ideia de contemporâneo e de globalização das

ideias, das pessoas, da economia, das condutas criminosas. Seja facto isolado ou facto

comunitário deverá existir, ao menos, a sensação de que a sua afectação se reflecte em um

universo mais amplo – comunitário ou colectivo – do que sobre a «vítima» directa e visível.

Fenómeno criminógeno tipo que afecta toda a comunidade – o «eu», o «outro» e o

«nós», i. e., “seres com-os-outros vividos em liberdade”7 –, o branqueamento (de capitais)

impõe que se encarne como objecto de discussão do social ao jurídico em um quadro

“hiperdinâmico” de modificações “com que se confronta hoje o intérprete”8, por se

apresentar como a face mais «límpida» do crime organizado e estruturado e, por

consequentemente, afectar o mundo do sócio, do económico, do literário. Mundos que se

cruzam e interagem e que devem contribuir para a concepção de “uma nova ética, uma

nova racionalidade, uma nova política”, pois em causa está “a própria sobrevivência da vida

do planeta e é preciso, (...), que a humanidade se torne em sujeito da responsabilidade pela

vida”, recaindo sobre “os agentes económicos e sociais a necessidade – (...) – de se auto-

organizarem e auto-limitarem”9.

ii. A discussão sobre a concepção de «branqueamento» (de capitais) é inesgotável:

α. para JORGE GODINHO branqueamento (de capitais) compreende “um

processo destinado a um certo fim, a ocultação ou dissimulação de um

conjunto de características de bens de origem ilícita (origem, localização,

4 Ibidem. 5 Ibidem. 6 Para um melhor aprofundamento do tema o nosso “BRANQUEAMENTO (DE

CAPITAIS) - Da metáfora à legitimidade da incriminação (que tutela jurídico-criminal?)!”, Relatório de Mestrado em Ciências Jurídico Criminais, no âmbito da cadeira de Direito Penal, ministrada pelo Professor Catedrático JOSÉ DE FARIA COSTA, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no ano lectivo 2003/04.

7 Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, “O Direito Penal e o Tempo”, in Op. Cit., p. 1143. 8 Idem, p. 1148. 9 Vide JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “O papel do direito penal na protecção das

gerações futuras”, in Volume Comemorativo do 75.º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito (BFD) da Universidade de Coimbra, 2003, pp.1124 e 1125.

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disposição, movimentação, propriedade)”10, ou mais propriamente,

compreende “o processo pelo qual se procura «distanciar» um bem da sua

origem ilícita, conferindo-lhe uma aparência lícita ou, por outras palavras,

dissimulando a sua origem ilícita”11;

β. já NUNO BRANDÃO considera o branqueamento (de capitais) como “a

actividade pela qual se procura dissimular a origem criminosa de bens ou

produtos, procurando dar-lhes uma aparência legal”12;

γ. conquanto J. DIAS DUARTE apresenta-nos uma concepção ampla e interactiva

com as organizações criminosas que “necessitam, todavia, de introduzir os

respectivos proveitos na economia legal, o que as leva a procurar os mais

diversos meios de alcançar tal desiderato, meios esses que, necessariamente,

passam pelo recurso a sofisticadíssimas formas de comunicação e de gestão

financeira”, sendo desta feita “aliciados profissionais da área financeira,

económica e jurídica – regra geral, bem cotados socialmente e pagos a peso de

ouro –, que zelam pela integração dos fluxos monetários obtidos na economia

legítima”13.

A concepção esta próxima da apresentada pelas NAÇÕES UNIDAS que considera

que «o branqueamento de dinheiro é um processo dinâmico, constituído por três etapas, que

supõe, primeiramente, a dissociação dos proveitos económicos da infracção de cuja prática

resultam, em segundo lugar, o apagar do respectivo rasto para iludir as investigações, e,

finalmente, a sua recuperação pelo criminoso, já após ter sido dissimulada a sua origem

económica e geográfica”14, ou seja, o branqueamento pode comprender trÊs fases15:

α. a fase de colocação – placement stage –, que se verifica apenas quando existe

papel-moeda16 – numerário –, visa colocar os capitais de proveniência ilícita no

10 Vide JORGE GODINHO, Do Crime de «Branqueamento» de Capitais – Introdução e Tipicidade,

Almedina, Coimbra, 2001, p. 13. 11 Idem, p. 38. 12 Vide NUNO BRANDÃO, Branqueamento de Capitais: O Sistema Comunitário de Prevenção,

Coimbra Editora, Col. Argumentum 11, 2002, p. 15. 13 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 18. 14 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 35. 15 Quanto à análise e estudo das fases do branqueamento de capitais por todos, JORGE

DIAS DUARTE, Op. Cit., pp. 16 Como escreve JORGE GODINHO, esta fase apenas faz sentido se os bens ilícitos

estiverem em numerário – como acontece com o tráfico de droga, cuja transação se processa na troca directa de papel moeda e a dose a adquirir – apesar de em muitas situações a troca se basear por parte do comprador na entrega de objectos de valor, p. e., ouro, prata, telemóveis, televisões (etc.) –, cujos depósitos bancários permitirão efectuar placement stage. Vide JORGE GODINHO, Op. Cit., p. 40.

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sistema financeiro – instituições financeiras tradicionais e de outra índole17 – ou

em outras actividades lícitas – como a compra de bens imóveis e móveis18 – de

modo que o branqueador se desfaça do «papel-moeda» e o converta em um mais

fácil manuseamento;

β. a fase de transformação ou circulação – layering stage – consiste em proceder às

operações necessárias que permitam a ocultação da proveniência ilícita dos

proveitos, i. e., promover as operações necessárias para dissociar os proveitos da

origem – p. e., várias transferências de fundos19 de contas para contas anónimas

ou com nomes de pessoas que já faleceram ou que desconhecem que têm contas

com avultadas quantias [como na Itália em que uma senhora com mais de 90

anos movimentava milhões de dólares por dia20], cujo acesso só é efectuado pelos

detentores dos códigos, ou contas criptadas [o caso do Banco Bilbao Vizcaya

Argentaria – BBVA – de Espanha de 2002], movimentações que limitam o acesso

à origem por parte das autoridades judiciais e policiais21 – socorrendo-se de

estruturas sobrepostas ou de «camadas» – layers – de transações financeiras que

ocultem ou apaguem o rasto da origem dos bens;

γ. e, por último, a fase da introdução – integration stage – que consiste em

reintroduzir o dinheiro lavado já com aparência de proveitos lícita e legalmente

obtidos no circuito económico legal e pode processar-se através do recurso a

empréstimos sob garantia – p. e., “a celebração de um contrato de mútuo em que

se hipoteca um imóvel adquirido com os proveitos do tráfico de estupefacientes,

e propositadamente não se liquida aquele empréstimo para que o banco execute a

17 Procedem-se a depósitos bancários de pequenas quantias em várias dependências do

mesmo banco ou em contas de bancos diferentes para que nenhum desses depósitos ultrapasse os limites que impõem à entidade financeira a obrigação de comunicação do movimento suspeito, ex vi do art. 7.º, conjugado com o art.18.º da Lei n.º 11/2004, de 27 de Março, e/ou à aquisição de aplicações financeiras em casas de câmbio, sociedades correctoras, bolsa, serviços financeiros postais – p. e., títulos de aforro – investem em casinos, promovendo uma «mistura de negócios lícitos com negócios ilícitos». Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 36 e n. 59 e 60.

18 Hoc sensu JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., pp. 36 e 37. 19 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 37 e JORGE GODINHO, Op. Cit., p. 41. 20 Informação recolhida no encontro no âmbito do programa Grotius II, em Roma, nos dias

27 e 28 de Junho de 2002, promovido pela Universidade Torvegata, ao longo da prelação de um alto responsável do Ministério Público de Itália.

21 Após a colocação – placement stage –, esta fase é frutífera em aplicações financeiras ou obrigações, em investimento em seguros, conversão dos depósitos em cartas de crédito ou em cheques de viagem para posterior revenda dos bens adquiridos. Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 37 e JORGE PATRÍCIO PAÚL apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 37, notas 61, 62 e 63.

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hipoteca, assim se tornando o mutuário «legítimo» titular da quantia mutuada”22,

ou compra de metais preciosos –, a “créditos documentários, falsa facturação,

realização de mais-valias mobiliárias e imobiliárias”23.

Todavia, surgem-nos dois apontamentos que devemos ter em conta: por um lado,

JORGE GODINHO considera que, rigorosamente, a fase da integração – integration stage –

“não é uma questão de branqueamento de capitais porque, repita-se, não está já em causa a

dissimulação da origem”24; e por outro, para RODRIGO SANTIAGO, que além de

considerar que o termo digno será «reciclagem» e não «branqueamento»25, defende que o

branqueamento de capitais compreende ou pode compreender duas fases: a do money

laundering - «constitui o núcleo essencial do branqueamento», consistindo em libertar os

proveitos de origem ilícita dos seus vestígios, colocando-os no circuito económico legal,

dissimulando-os e cortando-lhes o cordão umbilical de identificação com o crime

subjacente ou primário –, ou seja, preenche a fase da colocação (placement stage) e a fase do

recycling – que, quando se realiza, “se concretiza em operações ou «manipulações» através

das quais os incrementos referidos , já previamente «lavados», vão ser objecto de

«tratamentos» de forma a que ganhem a aparência de se tratar de objectos de proveniência

lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico”26 –, i. e.,

compreende a fase da circulação (layering stage).

Quanto a este assunto, somos da opinião de que, apesar da fase da integração –

integration stage – não ser, sumo rigore, branqueamento de capitais, ela é parte integrante de

um processo dinâmico ou, permitam-nos, «hiper-dinâmico» que se transformou, como nos

ensina NUNO BRANDÃO, em “o lado negro do processo da globalização, da liberalização

das trocas internacionais e dos movimentos de capitais, da abertura dos mercados

financeiros, da maciça informatização e do comércio electrónico”27. Esta fase – a

integração –, que se apresenta para RODRIGO SANTIAGO como uma consequência da

recycling e não pertencente ao conceito de branqueamento, é como que o fechar da porta da

regeneração.

22 Vide JORGE PATRÍCIO PAÚL apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 38, nota 64. 23 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 38. 24 Vide JORGE GODINHO, Op. Cit., p. 41. 25 Vide RODRIGO SANTIAGO, “O «Branqueamento» de Capitais e Outros Produtos do

Crime”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 4, Fasc. 4.º, Out./Dez., 1994, p. 497, n. 1.

26 Idem, pp. 501 e 502. 27 Vide NUNO BRANDÃO, Op. Cit., p. 16.

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Em suma, podemos afirmar que o «branqueamento» ou a reciclagem de

capitais ou de bens é o processo hiper-dinâmico destinado a metamorfosear o

ilícito em lícito, i. e., o processo que visa colocar no circuito económico legal os

bens ou capitais de proveniência de condutas criminosas – crimes primários ou

subjacentes –, fazendo-os circular através de operações e movimentações

sucessivas e densas – capazes de dificultar a sua detectação pelas autoridades

judiciais e policiais – dissimulando-os para que possam integrar licitamente o

circuito económico.

2. Nascimento e evolução da censurabilidade jurídico-criminal do

branqueamento (um pouco de história)

A influência nefasta do «branqueamento» de capitais, que se sente no sector

económico e se estende, por sua vez, ao sector político e social, verifica-se quer em termos

de macroeconomia – podendo provocar uma irracionalidade das políticas dos sistemas

financeiros, afectando a estabilidade das economias mais vulneráveis; uma instabilidade

monetária devido às influências negativas que impendem sobre as taxas de juro e de

câmbio, promovendo distorções no mercado e colocando em risco o desenvolvimento

económico; uma descredibilização da praça financeira, pois este tipo de operações afasta

quem investe com “transparência e respeito pelas regras e códigos de conduta

estabelecidos”28 – quer em termos de microeconomia – em que o branqueamento de capitais

tem um efeito “extremamente negativo, originando situações de concorrência desleal e

perturbando a circulação dos bens no mercado”29, pois o fluxo de fundos económicos é

elevado, o que proporciona aos actores um desafogo financeiro, permitindo-lhes colocar os

bens a um preço muito mais baixo e empreender políticas comerciais de difícil execução

para a concorrência.

No preâmbulo da Convenção de Viena30 pode ler-se que os Estados Partes

tinham consciência «de que o tráfico ilícito é fonte de rendimentos e fortunas consideráveis que

permitem às organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do 28 Vide NUNO BRANDÃO, Op. Cit., p. 21. 29 Idem, p. 22. Como afirma JUANA DEL CARPIO DELGADO, a licitude dos bens que

circulam no mercado é um dos pressupostos essenciais ao seu bom funcionamento e à ordem socio-económica. Apud NUNO BRANDÃO, Op. Cit., p. 22, nota 22.

30 Adoptada na 6.ª Sessão Plenária da Conferência da Nações Unidas em 9 de Dezembro de 1988, aprovada para ratificação pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/91, de 20 de Junho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91, de 12 de Agosto, publicada no Diário da República, I – Série A, de 6 de Setembro de 1991. Itálico nosso.

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Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus

níveis».

O valor negativo, cuja supra-individualidade do bem jurídico é indiscutível31, tem-

se, essencialmente, vertido em uma visão do mundo económico – até pelas avultadas

quantias de dinheiro que o tráfico de droga gera, apesar de, hoje, não se centralizar por

exclusividade este fenómeno criminológico neste plano32 –, o que tem induzido a que se

ancore o «branqueamento de capitais» no direito penal económico, sendo, hoje, difícil

levantar a âncora desse enfileiramento.

A criminalização do «branqueamento de capitais» “está geneticamente ligado ao

tráfico de droga”33 34 que, por sua vez, se conexiona cognitiva e materialmente com a

«criminalidade organizada», sem que nos olvidemos de que a necessidade de

«branqueamento de capitais» se estende a outro tipo de criminalidade – muito referenciada

com a criminalidade organizada – que, por natureza, produz avultadas somas de «dinheiro

sujo»: tráfico de armas, jogo clandestino, tráfico se seres humanos, prostituição, extorsão35.

31 Quanto à indiscutibilidade e relevância dos bens jurídicos colectivos ou supra-individuais,

JOSÉ DE FARIA COSTA, Direito Penal Económico, pp. 38 a 44 e JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “O papel do Direito Penal ...”, in Op. Cit., pp. 1131 e ss..

32 Nos finais dos anos 90, em Lisboa, fora desmantelado um grupo de 22 jovens que se dedicavam ao furto de bens de grande valor por encomenda – p. e., vinho de determinadas marcas – cujos valores, por cada encomenda, situavam-se entre os €20 000, 00 (vinte mil euros) e os €30 000, 00 (trinta mil euros), que de imediato depositados em uma determinada conta e que circulava por várias contas de modo que se apagasse o rasto do dinheiro – pecunia non olet. Pois, o chefe do grupo era empregado bancário, que fazia circular os depósitos e fazia com que o dinheiro entrasse no mercado económico regenerado.

33 Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 36. Acrescenta ainda, em outro estudo, que “é claro que o fenómeno do branqueamento de capitais está conexionado, primacialmente, com o tráfico de droga, porquanto esta actividade ilícita é uma das que mais lucros proporcionam, como aquela que, por razões de desgaste e perturbações sociais, mais impacto traz ou provoca na opinião pública”. Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, “O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS (Algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal)”, in BFD , Vol. LXVIII, 1992, p. 66, n. 15.

34 MUÑOZ CONDE e AUNION ACOSTA relembram-nos o efeito perverso da proibição ou das políticas penais repressivas da droga, «pois quanto maior é o nível de repressão mais alto é o preço da droga e maiores são as margens comerciais e os lucros que geram”, além de que a “ilegalidade converteu o tráfico de drogas no maior dos negócios existentes, (maior que o tráfico de armas e o contrabando), no mais rentável dos negócios, sejam legais ou ilegais”, provocando “a aparição de grandes traficantes que, com um poderio económico sem igual, corrompem as instituições mais sólidas do Estado e iludem facilmente a perseguição penal”. Apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 19, n. 14.

35 Ibidem. Extensão que a Directiva n.º 91/308/CE deixou «à mercê» dos Estados-Membros, que, em Portugal, o nosso ordenamento jurídico efectuou com o DL n.º 325/95, de 2 de Dezembro, e que a Directiva n.º 2001/500/CE impôs aos Estados-Membros, cuja transposição se operou com a Lei n.º 11/2004, de 27 de Março.

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A globalização económica – permitindo a circulação de capitais, de bens e de

pessoas de forma livre – não só impulsionou a globalização da criminalidade – pois os

caminhos encontram-se mais permeáveis –, como, sensatamente, a própria consciência de

que a prevenção de certos tipo de crimes – dos quais se destacam o tráfico de droga, o

tráfico de armas, o jogo clandestino, o tráfico de seres humanos, a prostituição – não se

alcança isoladamente, mas de forma cooperativa e com a implementação de instrumentos

normativos internacionais que vinculem os Estados a incrementar, nos seus ordenamentos

jurídicos internos, não só a proibição do branqueamento – a título de crime ou de ilícito de

mera ordenação social –, mas também meios processuais idóneos e adequados a prevenir

este tipo de criminalidade.

O assassinato de ALDO MORO, pelas Brigadas Vermelhas, a 9 de Maio de 1978,

levou a que fosse aditado ao Código Penal italiano o art. 648 bis, que prevê e pune quem

substituir dinheiro ou valores provenientes dos crimes de roubo agravado, extorsão

agravada e sequestro36. Mas, o fenómeno do «branqueamento» (de capitais) conhece a sua

criminalização autónoma por influência norte-americana – os Estados Unidos da América,

em 1986, na era REAGAN, tomaram a iniciativa da sua criminalização –, vertendo-se esta

veia criminalizadora na Convenção de Viena – Convenção das Nações Unidas Contra o

Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas –, onerando os Estados

Partes a tomar medidas necessárias para tipificar como infracção penal tão vil conduta –

conforme se retira do art. 3.º da Convenção.

Vinculação a que o Estado Português se onerou, tendo aprovado e ratificado a

Convenção de Viena. Pois, o DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, seguindo o desígnio da

necessidade de «privar as pessoas que se dedicam ao tráfico ilícito dos produtos das suas

actividades criminosas»37 e de «eliminar assim o seu principal incentivo para tal

actividade»38, para que se evite que «a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas

permita a organizações criminosas internacionais invadir, contaminar e corromper as

estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos

os níveis»39, prescreveu o crime «branqueamento» como crime autónomo – art. 23.º sob a

epígrafe conversão, transferência ou dissimulação de bens e produtos.

36 Vide FABIÁN CAPARRÓS, “El Blanqueo de Capitales”, in El Sistema Penal Frente a los

Retos de la Nueva Sociedad, (coord. Maria Rosario Díaz-Santos e de Fabián Caparrós), Colex, XV Congreso de Alumnos de Derecho Penal, Universidad de Salamanca, 2003, P. 172.

37 Preâmbulo da Convenção de Viena. 38 Ibidem. 39 Preâmbulo do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

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Questão que nos tem acompanhado e nos perturba – mais do que a imposição de

normativo internacional – é a de saber se o recurso à criminalização de

«branqueamento» não é uma confissão antecipada da incapacidade de prevenir e

‘combater’ o crime primário ou subjacente e, consequentemente, uma fuga à

exigência de legitimidade do ius puniendi de que a comunidade dota o Estado ou

se, contrariamente, a comunidade sente, nos nossos dias, que as ofensas a bens

jurídicos, mesmo que individuais, reflectem e refraccionam-se em bens jurídicos

supra-individuais ou comunitários, que beliscam severamente o desenvolvimento

de toda a comunidade democraticamente organizada. Questão a que procuraremos

indicar caminhos.

O lucro desmedido ilegal é o fundamento de actividades que preenchem tipologias

autonomizadas, previstas e punidas criminalmente, o que nos induz a interrogarmo-nos

porque criminalizar a conduta de reciclar ou regenerar bens ilícitos se há um crime primário

e se, descoberto e investigado este, os bens patrimoniais que advém dessa actividade ilícita

– mesmo os já branqueados – poderão ser apreendidos e declarados perdidos a favor do

Estado. Será que estamos perante um tipo de crime que é a alavanca ou a catapulta para se

prevenir e ‘combater’ um outro tipo de crime40? Ou seja, será que o crime de

branqueamento é uma norma substantiva carregada de teor adjectivo criminal? Desde já,

permitam-nos, ousamos afirmar que, face a um fenómeno de dimensão preocupante e

estrondosa no plano global, não podemos optar por uma visão liliputiana.

3. Possíveis sistemas jurídico-criminais para o branqueamento

Historicamente e seguindo a idealização de ISIDORO BLANCO CORDERO41,

poder-se-á apontar três sistemas que previnem e permitem ‘combater’ a reciclagem ou

branqueamento de bens e capitais:

α. a concepção como um dos tipos criminais de receptação – como se prescrevia na

Bélgica e na Itália – inserido no crimes contra o património;

β. a concepção como um dos tipos criminais de favorecimento – como se prescrevia

na Suíça e na Alemanha – inserido nos crimes contra a administração da justiça –

40 Criticando estas posições político-legislativas e contrariando a posição de PECORELLA,

JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 76. 41 Vide I. B. CORDERO, El Blanqueo..., pp. 319 e ss. e 546, apud MIGUEL PEDROSA

MACHADO, comentário à decisão do Tribunal de Círculo de Coimbra, Proc. n.º 25/95, de 14 de Novembro de 1995, in Decisões de Tribunais de 1.ª Instância – 1996 – Comentários, PCM-GPCCD, 1998, p. 145, n. 10.

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Portugal com a aprovação da lei n.º 11/2004, de 27 de Março, que aditou o art.

368.º-A ao CP, enquadrando-o, sistematicamente, o crime de branqueamento no

capítulo que estipula os crimes contra a realização da justiça, evoluindo para o

sistema que considera o crime de branqueamento como um crime tipo de

favorecimento;

γ. e, ainda, a concepção como um tipo de crime autónomo e independente – como nos

Estados Unidos da América e em Portugal42.

4. Consciência universal da «lesão»

i. PINO ARLACHI43, consciente desta visão evolutiva e da danosidade social elevada

projectada pelo branqueamento no seio da comunidade nacional e internacional, elucidava-

nos, nos fins de 1997, que diariamente se introduzia/transferia electronicamente, através

dos mercados financeiros mundiais, um bilião de dólares de origem criminosa.

O GAFI – GRUPO DE ACÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL44 –, já em

1991, estimava que cerca de 50% a 70% dos montantes transaccionados provenientes do

tráfico de heroína, cocaína e canábis nos Estados Unidos da América e na Europa – que se

estimavam em 112 biliões de dólares por ano –, ou seja, de 66 a 80 biliões de dólares, se

destinavam ao branqueamento de capitais. Face a quantias astronómicas, não é de estranhar

a expressão «follow the money» adoptada pelo Drug Enforcement Administration – DEA – e

pelo Federal Bureau of Investigation – FBI.

42 Todavia, há acrescentar que, em Portugal, no âmbito das decisões judiciais verificou-se e

verifica-se incerteza no enquadramento jurídico-criminal do «branqueamento» de capitais, sendo confundido e enquadrado como crime de tráfico de droga - Vide Ac. da 4.ª Vara Criminal do Círculo do Porto e respectivo comentário de MIGUEL PEDROSA MACHADO, Comentário à decisão da 4.ª vara Criminal do Círculo do Porto, Proc. n.º 166/96, in Decisões de Tribunais de 1.ª Instância – 1996 – Comentários, PCM-GPCCD, 1998, pp. 219 e ss. -, como crime de receptação - Ibidem e JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., pp. 72 e ss.. Quanto ao prof. FARIA COSTA, há a referir que escreveu em um momento anterior à entrada em vigor do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro - ou como crime de favorecimento - Ibidem e idem, p. 79, n. 1.

43 PINO ARLACHI era o Director Executivo do Gabinete das Nações Unidas para o

Controlo das Drogas e Prevenção do Crime. Apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 18.

44 Instituído na CIMEIRA DE PARIS DOS SETE PAÍSES MAIS DESENVOLVIDOS, de julho de 1989 – EUA, Japão, RFA, França, Inglaterra, Itália, Canadá e a Presidência da Comissão das Comunidades Europeias, que também é conhecido por Finantial Action Task Force – FATF.

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11

No X CONGRESSO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A PREVENÇÃO DO

CRIME45, novamente, PINO ARLACHI afirmou que “o FMI calcula que o

branqueamento de dinheiro implica já entre dois a cinco por cento do PIB mundial, ou

seja, 600 mil milhões de dólares por ano”46, acrescentando que «o sistema SWIFT

(responsável pelas transacções interbancárias), opera já mil milhões de mensagens

interbancárias por ano», cujo «volume diário da transferência de fundos representava cinco

triliões de dólares» – 5 000 000 000 000 –, além de que os criminosos, como peritos que

demonstram ser, « calculam os riscos antes de procederem à transferência dos seus

ganhos», e acrescentava que «o branqueamento de dinheiro russo no Banco de Nova

Iorque se elevou em 1999 ao montante de dez milhões de dólares»47.

Quanto aos países ou locais mais referenciados como potenciais instâncias de

branqueamento há a referir a Suíça – de 1 374 milhares de francos Suíços em 1999 para 656

milhões de francos Suíços em 200048 –, o Reino Unido (Londres), a Alemanha, o Japão e

os EUA: em 1995, o Director do Gabinete de Assessoria Tecnológica do Congresso dos

Estados Unidos da América, ROGER C. HERDMANN, estimava que fossem,

anualmente, branqueados 300 biliões de USD, cuja origem e titularidade eram ocultadas na

sua passagem pelas instituições financeiras e nas bolsas nacionais para que as autoridades

judiciárias e policiais não conseguissem «cheirar» o dinheiro49.

No ano de 1997, nas Ilhas Caiman, as leis antibranqueamento apenas se aplicavam

a 17 bancos – os que detinham presença física territorial – dos quinhentos e cinquenta

bancos existentes50, tendo presente que, naquela ilha se estimava, em 1994, a existência de

depósitos bancários de 430 biliões de dólares. Certamente não oriundos das poupanças dos

seus habitantes. Quanto ao Liechtenstein, referência de local ideal para branquear o

«dinheiro sujo», há a relembrar que, já na década de 70, com apenas 24 000 habitantes,

detinha 30 000 firmas, na maioria fictícias – Briefkastenfirmen –, e que foi o primeiro país do

45 Que se realizou em Abril de 200, em Viena. 46 Apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 20. 47 Idem, p. 22. 48 MROS – Bureau de Communication en matière de blanchiment d’argent – Troisième

Rapport d’ Activité – Année 2000, Berne, Office Fédéral de la Police, Juillet 2001, apud NOCOLAS QUELOZ, «Les défis para la criminalité économique et financière en Suisse», (Col. F. GISLER), in La Criminalité Économique et Financière en Europe, Logiques Sociales, L’Harmattan – Déviance et Société, 2002, p.132.

49 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 22. 50 Idem, p. 20.

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mundo a prescrever no ordenamento jurídico a figura do «património personalizado», em

que o nome do titular é conservado em segredo51.

O branqueamento de capitais transformou-se em um fenómeno do mundo

contemporâneo ou pós-moderno – inserido na badalada “sociedade de risco”

(Risikogesellschaft), que, segundo o Prof. FARIA COSTA, na linha de pensamento de

ULRICH BECH, «consiste na afirmação e defesa de que o nosso tempo se caracteriza pelo

facto de os “lados sombrios” do progresso determinarem, cada vez mais, a dinâmica

social»52 – e em uma doença, cuja cura está muito longe do horizonte alcançável e, como

todas as enfermidades criminais, não passará por uma exclusiva intervenção do direito

penal.

ii. A dimensão internacional do fenómeno, que dificulta e cria obstáculos na consequente

e eficaz prevenção e repressão deste tipo de crime, impôs não só uma cooperação material

entre os vários actores formais competentes na prevenção e repressão deste «cancro», mas

também a harmonização legislações internacional e nacional, por meio dos instrumentos

jurídicos internacionais53:

α. a Declaração de Princípios de Basileia, de 12 de Dezembro de 1988, do Comité para

as Regulamentações Bancárias e as Práticas de Vigilância de Basileia – que

compreende os representantes dos Bancos Centrais e Órgãos de Supervisão dos

10 países mais desenvolvidos (G10: Alemanha, Bélgica, Canadá, EUA, França,

Itália, Japão, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido, Suécia e Suíça e Comunidade

Europeia) –, que, sem carácter vinculativo, considera que a salvaguarda contra o

branqueamento reside «na integridade dos responsáveis dos bancos e na sua

vigilante determinação para evitar que as próprias instituições se encontrem

associadas a criminosos ou sejam utilizadas como meio para o próprio

branqueamento», e que, respeitando sempre a confidencialidade, indica como

medidas «a identificação dos respectivos clientes, o respeito pela regulamentação

51 Vide RODRIGO SANTIAGO, Op. Cit., p. 503. Vejam-se os financiamentos da AL

QAEDA de milhões e milhões de dólares para acções criminosas de grande vulto, muitos dos quais branqueados pelo método do hawala. Vide FIÃES FERNADES, “Terrorismo: dependência e simbiose com a criminalidade organizada transnacional”, in Politeia, Ano I, n.º 1, Janeiro/Junho de 2003, pp. 31 e ss..

52 Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., pp. 62 e 63, n. 8. 53 Quanto a este assunto TIZIANA TREVISSONI LUPACCHINI, “Strumenti internazionale

per il contrasto del riciclaggio di capitali”, in La Giustizia Penale – Rivista mensile di Dottrina, Giurisprudenza e Legislazione, Anno CVII (XLIII della 7ª Serie), Aprile 2002, Fasc. IV, pp. 193-216.

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sobre operações financeiras e a recusa em cooperar em operações suspeitas de

ligação com o branqueamento, sendo recomendada também a cooperação com as

autoridades de investigação»54;

β. a Convenção de Viena - Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de

Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas – adoptada na 6.ª Sessão Plenária da

Conferência das Nações Unidas, em 19 de Dezembro de 1988, em Viena –

aprovada para ratificação pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/91, de

20 de Junho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91, de

12 de Agosto55 –, em que cada Estado parte se obrigou a punir como infracções

penais as condutas que se consignam o branqueamento ou lavagem de dinheiro –

previstas na al. b), i) ii) e na al. c), i) do n.º 1 do art. 3.º.

γ. a Convenção de Estrasburgo – Convenção sobre Branqueamento, Detecção,

Apreensão e Perda dos Produtos do Crime – que, após aprovação do Conselho

da Europa, foi aberto à assinatura em Estrasburgo, tendo Portugal assinado em 8

de Novembro de 1990 –, em que no decurso da 15.ª Conferência dos Ministros

Europeus da Justiça, que decorreu entre 17 e 19 de Junho de 1986, em Oslo, se

discutiu a premência de lutar contra o tráfico de droga através da apreensão e

declaração de perda dos proveitos gerados, tendo em conta que a luta contra a

criminalidade grave deve subjugar-se aos métodos modernos e eficazes como

privar o delinquente dos produtos do crime – sentido vertido no art. 6.º da

Convenção56;

δ. as Recomendações do GAFI – grupo criado com o escopo de monitorizar os

resultados da cooperação existente no âmbito da prevenção dos sistemas

bancário e financeiro do branqueamento de capitais e de estudar outras medidas

preventivas que se possam incluir neste domínio, principalmente no que concerne

à harmonização dos sistemas legais e à cooperação judiciária –, em 1990,

apresenta um relatório com quarenta recomendações que se podem sintetizar em

três áreas cruciais:

a. os Estados devem harmonizar o direito penal no que respeita às

definições de crime de branqueamento de capitais para que se possa

54 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., pp.43 e 44. 55 Vide Diário da República, I – Série A, de 6 de Setembro de 1991. 56 Quanto à enumeração e análise deste preceito da Convenção, JORGE DIAS DUARTE,

Op. Cit., pp. 49 a 51.

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fomentar uma melhor cooperação judiciária internacional –

Recomendações 4 a 7;

b. os estados devem aperfeiçoar o sistema financeiro e bancário –

obrigações de identificação dos clientes, deveres de cuidado quanto

a operações anormais e de injustificação económica ou de objecto

lícito aparente – Recomendações 8 a 29;

c. reforçar a cooperação internacional – troca de informação entre as

autoridades competentes – Recomendações 30 a 40.

Em 1996, o GAFI actualizou as recomendações, sendo de destacar a 4.ª

Recomendação que suscita os países a criminalizar o branqueamento de capitais

originários de infracções graves que gerem proveitos de montantes elevados, e,

em 2000, elaborou e publicou uma lista de países que se recusaram em cooperar

contra o branqueamento de capitais – Bermudas, Ilhas Caimão, Chipre, Filipinas,

Israel, Líbano, Liechtenstein, Malta, Ilhas Maurícias, Rússia, São Marino – e,

ainda, se referencia que o Luxemburgo é «lugar propício ao branqueamento de

capitais».

ε. a Directiva n.º 91/308/CEE, de 10 de Junho de 199157, que visa implementar

medidas de natureza administrativa - medidas de coordenação - e proibitivas para

prevenir o branqueamento (de capitais) através da utilização do sistema

financeiro. A Directiva, apesar de seguir a noção prescrita na Convenção de

Viena, estipula que os Estados-Membros podem estender os efeitos das medidas

de branqueamento a outras actividades criminosas que não o tráfico de droga –

como o terrorismo, o jogo clandestino, as redes de imigração ilegal. O DL n.º

313/93, de 15 de Setembro, que operou a transposição da directiva para o nosso

ordenamento jurídico interno, reconduz-se às medidas preventivas – obrigação de

identificação dos clientes, recusa de realização de operações suspeitas de

enquadrarem o branqueamento, conservação de documentação de identificação e

dos registos das operações, dever de informação de transferências suspeitas,

dever de colaboração com as autoridades judiciais e policiais e de abstenção da

operação58 – quanto à utilização do sistema financeiro para branquear dinheiro

ilícito proveniente do tráfico de droga, conquanto o DL n.º 325/95, de 2 de

57 Vide Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n.º L 166, de 28 de Junho de 1991,

pp. 77 e ss., cuja transposição para a nossa ordem jurídica interna operou-se pelo DL n.º 313/93, de 15 de Setembro.

58 Quanto a este assunto, NUNO BRANDÃO, Op. Cit., pp. 38 e ss., 44 e ss., 54 e ss..

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15

Dezembro, promoveu o alargamento da incriminação do branqueamento (de

capitais) a outras formas de criminalidade e a outras actividades enquadrantes ou promotoras

de branqueamento para além do sistema financeiro – jogo dos casinos, comércio de

bens de elevado valor: imóveis e móveis de luxo (pedras e metais preciosos,

antiguidades, obras de arte, automóveis, aeronaves, barcos de passeio –,

projectando-se uma maior harmonização dos ordenamentos jurídicos dos

Estados-Membros. A Lei n.º 10/2002, de 11 de Fevereiro, amplia ainda mais os

crimes subjacentes ao branqueamento (lista esta já ampliada pelo DL n.º 325/95,

de 2 de Dezembro) – fraude fiscal, e demais crimes punidos por lei com pena de prisão cujo

limite máximo seja superior a 5 anos – ao branqueamento de capitais aos já prescritos

pelo DL n.º 325/95, de 2 de Dezembro – terrorismo, tráfico de armas, tráfico de

produtos nucleares, extorsão de fundos, rapto, lenocínio, tráfico de pessoas,

tráfico de órgãos ou tecidos humanos, pornografia envolvendo menores, tráfico

de espécies protegidas, corrupção e demais infracções referidas no n.º 1 do artigo

1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro.

η. a Directiva n.º 2001/97/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de

Dezembro, que alterou a Directiva n.º 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, do

Conselho – transposta para o nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 11/2004,

de 27 de Março, que por sua vez revogou o art. 23.º do DL n.º 15/93, de 22 de

Janeiro, o DL n.º 313/93, de 15 de Setembro, e o DL n.º 325/95, de 2 de

Dezembro e alterou o CP aditando um art. 368-Aº sob a epígrafe branqueamento,

cuja análise se fará posteriormente – que amplia, mais uma vez e em uma

tentativa de acompanhar os interesses das organizações criminosas, cuja base de acção

pode começar por tipologias criminais punidos com penas menos gravosas ou até

tipologias criminosas não tuteladas criminalmente59, os crimes subjacentes ao

branqueamento de capitais e actualiza as medidas tendentes a uma melhor

prevenção e repressão do branqueamento de vantagens de proveniência ilícita.

5. Caracterização – olhar a «árvore inserida na floresta»

A compreensão deste tipo de crime impõe que nos debrucemos sobre a

caracterização deste «lado amargo do desenvolvimento social e económico das sociedades

59 Preocupação demonstrada por NUNO BRANDÃO, Op. Cit., p. 71.

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modernas»60, tendo em conta que estamos perante uma complexa questão e, por

conseguinte, perante um crime de complexa e especial gravidade, principalmente no que

concerne ao verdadeiro e puro branqueamento (de capitais). Pois, não somos dos que

entendem que esta tipologia se dirige ou teleologicamente se dirige ao branqueamento de

€10 000,00 – dez mil euros –, mas, sem se olvidar desta pequena mancha, direcciona-se

essencialmente às avultadas somas monetárias idóneas a «invadir, contaminar e corromper

as estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a

todos os níveis»61, ou seja, idóneas à delação da sociedade democraticamente organizada.

No que concerne ao branqueamento de capitais, tudo se prende com a ideia de

dinheiro como bem juridicamente qualificado62 que representa riqueza que sob o olhar do

direito criminal deve ser tutelada na formação, na conservação e na circulação, sendo que nos

releva “a circulação da riqueza que, por antonomásia, se pode resumir à própria circulação

do dinheiro”63. Como se depreende, não a circulação de dinheiro como manifestação de

vontade juridicamente relevante, mas, na esteira do Prof. FARIA COSTA, como operação

de «tornar límpido e comunitariamente aceitável o dinheiro como riqueza, quando

proveniente de zonas “escuras” do tecido social»64, i. e., a «capa que permite que a riqueza

apareça justificada»65. Acresce que os mesmos efeitos perversos poder-se-ão verificar, na

devida escala, com o branqueamento de outros bens – imóveis ou móveis .

A mobilidade de capitais é, como afirma o Prof. FARIA COSTA, «um contributo

do qual se não pode prescindir sob pena, entre outras coisas, de estagnação económica»66.

Contudo, a mobilidade nem sempre se enquadra dentro do aproveitamento máximo dos

bens disponíveis, pois muitas vezes reveste natureza ilícita com o intuito de lavar a

«sujidade» do dinheiro. Esta mobilidade nacional e, principalmente, internacional dota o

fenómeno do branqueamento de uma das suas características mais marcantes: fenómeno de

60 Vide SAVONA e DEFEO apud JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 23. 61 Preâmbulo do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro. 62 Quanto ao dinheiro como bem jurídico qualificado - «al poseer una genericidad absoluta y

una ultrafungibilidade específica, al gastarse pero no consumirse, al implicar la divisibilidad abstracta de las demás cosas, bienes y servicios, y, al poder desarrollar su función de equivalencia respecto de todo otro bien o valor patrimonial», sendo assim, “un bien por excelencia de las demás relaciones patrimoniales» - , BONET CORREA apud JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 62 e n. 5..

63 Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 62. 64 Ibidem. 65 Idem, p. 64. 66 Ibidem.

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dimensão internacional67. O branqueamento de capitais não se compara com os crimes de

furto e de burla, em que se verifica a transferência ilícita de riqueza incapaz de gerar a

destruição do próprio ordenamento jurídico, mesmo quando de valores estrondosos, e em

que a intervenção do direito penal não opera a montante – no momento da transferência,

pois não evita o furto ou a burla –, mas actua sempre como «elemento frenador da

conduta a jusante»68.

Como fenómeno de dimensão internacional não pode funcionar sem uma

organização e , por conseguinte, criminosa 69– com estrutura poderosamente organizada,

anichada no seio do Estado, com hierarquia forte, com os rostos de PIGMALEÃO – que

se dedica aos mais variados sectores da actividade criminosa – tráfico de droga, tráfico de

seres humanos, tráfico de armas, prostituição, jogo clandestino, extorsão (etc.) – e que

detêm uma enorme disponibilidade de bens e de dinheiro liquida capaz de fazer «nascer desvios e

condicionamentos no mercado financeiro»70 – direccionada para a conquista de mais poder

social, económico e político e ajudada pela designada “cultura da corrupção”71.

Devemos olhar para o fenómeno do branqueamento inserido nestas valorações

para que, socorrendo-nos da imagem do Prof. FARIA COSTA, não vejamos “a árvore sem

sequer olharmos minimamente para a floresta”72. Cumpre, na esteira do ilustre Professor,

sintetizar os traços simples do fenómeno do branqueamento de capitais73:

67 Ibidem. Pensamos que se pode estender este douto entendimento à transação dos bens quer

imóveis quer móveis. 68 Ibidem, idem, p. 65. 69 Para FABIAN CAPARRÓS, a «organização criminosa é uma pessoa colectiva organizada

em função de critérios de estrita racionalidade», em que os seus membros «se integram em uma estrutura sólida», desempenhando cada um certa função especifica das suas capacidades, ou seja, identifica-se com uma «sociedade de profissionais do delito». Vide Op. Cit., p. 37. Também citado por JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., pp. 25 e 26. Para o decano FIGUEIREDO DIAS, só se pode falar de associação criminosa quando a vontade da associação – como encontro da vontade de particulares – se autonomiza, se diferencia e superioriza à vontade e interesse dos seus membros, pois como instituição complexa, formalizada e sofisticada, hierarquizada, cogente em impôr as suas normas, mas como «realidade autónoma e transcendente perante os indivíduos que a integram». Sobre a evolução do conceito de «associações criminosa», J. DE FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas” no Código Penal Português de 1982, Coimbra Editora, 1988, pp. 5 a 26. Sobre «associação criminosa», J. DE FIGUEIREDO DIAS “Art. 299.º - associações criminosas”, in Comentário Conimbricence do Código Penal – Parte Especial – Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pp. 1160 e 1161.

70 Vide JORGE DIAS DUARTE, Op. Cit., p. 23 e JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., pp. 65 e 66. Hoc sensu ALBERTO CRESPI apud JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 66, FABIAN CAPARRÓS, Op. Cit., pp. 37 e ss..

71 Vide JOSÉ DE FARIA COSTA, Op. Cit., p. 66. 72 Idem, p. 68. 73 Ibidem.

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α. perigosidade, gravidade e extensão dos fenómenos que o sustentam – como as ofertas de

prémios monetários elevados por cada morte de polícia de um determinado país,

como aconteceu com o cartel de JUAREZ, no México, que oferecia cerca de

€200 000,00 (duzentos mil euros), por cada polícia norte-americano morto74;

β. particular ressonância ao nível da opinião pública, determinando, simultaneamente,

repúdio social, mas, outrossim, amolecimento da consciência ética quando se vêem as

instâncias do poder público ficar bloqueadas ou ser, de forma absoluta,

inoperantes;

γ. racionalização e inserção sociológica dentro dos parâmetros da chamada «cultura da corrupção»

- onde o fenómeno da neutralização axiológica se verifica com frequência;

δ. dimensão tipicamente internacional;

ε. dificuldades na determinação e consequente ataque a uma fenomenalidade através dos comuns

meios jurídicos – sendo esta a razão apontada por WINFRIED HASSEMER para

se conceituar a criminalidade organizada.

6. Considerações finais

Antes de terminar, gostaríamos de ressalvar três pontos: em primeiro lugar evitar

que a harmonização dos ordenamentos jurídicos funcione – como afirma MAECHEL

LEVI75 – como auto-estradas do branqueamento; em segundo, não podemos conceber

a ideia de que a criminalização do branqueamento de vantagens pode ou deve servir de

‘muleta’ para fomentar o início de investigações criminais de crimes subjacentes76, por ser,

como nos ensina o Prof. FARIA COSTA, demasiado perverso e própria de “uma atitude

político-legislativa pouco clara”; e, em terceiro, a concepção de muleta conduz-nos à

lamentável constatação de que a criminalização do branqueamento se compagina com uma

confissão da incapacidade de prevenir a prossecução dos crimes primários, subjacentes

ou promotores das vantagens ilícitas.

Face ao exposto podemos afirmar que se, por um lado, não nos podemos olvidar

de que o branqueamento de bens – em especial de capitais – é uma das faces do crime

organizado, cujo financiamento se enraíza nos bens obtidos de forma ilícita, por outro, essa 74 Quanto a este assunto veja-se a edição de o jornal diário PÚBLICO de 15 de Fevereiro de 2000. 75 Pensamos que seja o nome correcto, pois retiramo-lo auditivamente de um programa de

televisão – canal História – em um dia e hora que, neste momento, não recordamos. 76 Como se prescreve na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 79/IX.

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face, como se depreende de todo o texto, é a mais límpida do crime organizado e

estruturado.