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ANA MARIA STRAUBE DE ASSIS MOURA BRASIL DE FATO: TRAJETÓRIA, CONTRADIÇÕES E PERSPECTIVAS DE UM JORNAL POPULAR ALTERNATIVO Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social São Bernardo do Campo – SP, 2009

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ANA MARIA STRAUBE DE ASSIS MOURA

BRASIL DE FATO: TRAJETÓRIA, CONTRADIÇÕES

E PERSPECTIVAS DE UM JORNAL

POPULAR ALTERNATIVO

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2009

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ANA MARIA STRAUBE DE ASSIS MOURA

BRASIL DE FATO: TRAJETÓRIA, CONTRADIÇÕES

E PERSPECTIVAS DE UM JORNAL

POPULAR ALTERNATIVO

Dissertação apresentada em cumprimento às

exigências do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação Social da Universidade Metodista de

São Paulo, para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Profa: Cicília Maria Krohling Peruzzo

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo – SP, 2009

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FOLHA DE APROVAÇÃO

A dissertação de mestrado sob o título “Brasil de Fato: trajetória, contradições e perspectivas

de um jornal popular-alternativo”, elaborada por Ana Maria Straube de Assis Moura, foi

defendida e aprovada no dia 31 de março de 2009, perante a banca examinadora composta por

Cicília Maria Kröhling Peruzzo, Edgar Rebouças e José Salvador Faro.

Declaro que a autora incorporou as modificações sugeridas pela banca examinadora, sob a

minha anuência enquanto orientadora, nos termos do Art. 34 do Regulamento dos Cursos de

Pós-Graduação.

Assinatura da orientadora: ______________________________________

Nome da orientadora: Cicília Maria Kröhling Peruzzo

São Bernardo do Campo, 10 de agosto de 2009

Visto do Coordenador do Programa de Pós-Graduação: _______________

Área de concentração: Processos Comunicacionais

Linha de pesquisa: Processos Comunicacionais Midiáticos

Projeto temático: Comunicação popular e alternativa

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Dedico este trabalho à memória de meu pai, João Paulo Rocha de Assis Moura

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It isn't at all a matter of being optimistic, but rather of continuing to have faith in the ongoing

and literally unending process of emancipation and enlightenment that, in my opinion, frames

and gives direction to the intellectual vocation.

Edward Said, em Orientalism, edição de 25°aniversário

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Profa. Cicília Peruzzo, pela paciência e dedicação com

a realização deste trabalho quando tudo parecia perdido.

Aos entrevistados José Arbex Júnior, Miguel Stedile, Nilton Viana e Ricardo Gebrim,

pela disponibilidade em responder minhas perguntas.

A João Pedro Stedile, Nilton Viana e José Arbex Júnior, pela confiança em cederem

seus documentos pessoais sobre o jorna l Brasil de Fato.

À amiga Mariana Pires, pela ajuda com a tradução do resumo.

Aos meus pais, Ida e João Paulo, pelo amor e apoio incondicionais.

E ao Rodrigo, por tudo.

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SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................................11

Capítulo I – MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL.........................................................17

1. O que são movimentos sociais?..........................................................................................17

2. Organizações populares e movimentos sociais no Brasil...............................................23

2.1 Período 1964-1974.............................................................................................................23

2.2 Movimentos sociais emergentes, período 1975-1989..................................................25

2.2.1 As Comunidades Eclesiais de Base..............................................................................26

2.2.2 Movimento Contra a Carestia......................................................................................29

2.2.3 Outros movimentos do período....................................................................................30

2.2.4 Diretas Já, fim da ditadura, e Constituinte..................................................................32

2.3 Desmobilização dos movimentos sociais após 1989...................................................34

3. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)..........................................39

3.1 Histórico e formação..........................................................................................................39

3.2 Desafios atuais do MST.....................................................................................................44

Capítulo II – COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA.............................................50

1. Imprensa no capitalismo......................................................................................................50

2. O papel do jornal nas organizações de esquerda.............................................................52

3. Comunicação popular e alternativa no Brasil..................................................................55

Capítulo III – O SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST..................................................69

1. Movimentos sociais e meios de comunicação de massa...............................................70

2. O MST e a grande mídia......................................................................................................73

3. Os meios de comunicação do MST...................................................................................78

3.1 Jornal Sem Terra................................................................................................................79

3.2 Revista Sem Terra...............................................................................................................81

3.3 Página do MST na internet...............................................................................................81

3.4 Rádio...................................................................................................................................82

3.5 Audiovisual.........................................................................................................................83

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Capítulo IV - NASCIMENTO E FORMAÇÃO DE UM JORNAL DE ESQUERDA NO

BRASIL...................................................................................................................................84

1. Formação do grupo político em torno do projeto do jornal.........................................85

2. Projeto editorial e político do "jornal de esquerda"........................................................95

3. Funcionamento e sustentabilidade..................................................................................103

4. Comitês de apoio................................................................................................................110

5. Lançamento do jornal Brasil de Fato................................................................................114

Capítulo V - O JORNAL BRASIL DE FATO EM SEIS ANOS DE EXISTÊNCIA,

TRAJETÓRIA, DIFICULDADES, DESAFIOS...................................................................118

1. Primeiro ano: 2003..............................................................................................................119

2. Anos de crise: 2004, 2005 e 2006.....................................................................................127

3. Consolidação: 2007 e 2008...............................................................................................130

4. Temas das manchetes do Brasil de Fato em seis anos de vida...................................142

5. O jornal Brasil de Fato e governo Lula............................................................................146

Capítulo VI - RELAÇÃO ENTRE ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS NO JORNAL

BRASIL DE FATO................................................................................................................154

1. Brasil de Fato: leninista ou gramsciano?.......................................................................154

2. Popular e alternativo...........................................................................................................159

CONCLUSÃO........................................................................................................................163

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................169

ANEXO 1- Temas gerais das manchetes do jornal Brasil de Fato em 304 edições (2003-2008)

ANEXO 2 – Síntese do documento "Um Projeto Popular para o Brasil"

ANEXO 3 - Capas do Brasil de Fato cujas manchetes fazem referência direta e indireta ao

governo Lula

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Resumo

Pesquisa sobre o semanário de esquerda Brasil de Fato, construído por um coletivo de

dirigentes de movimentos sociais e representantes de organizações da sociedade civil,

jornalistas, advogados e artistas, identificados politicamente e reunidos a partir de uma

proposta apresentada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Lançado em

janeiro de 2003, com a perspectiva de se tornar um meio de comunicação de massas,

completou seis anos de existência resistindo às adversidades. O objetivo central é analisar o

processo de construção e consolidação deste jornal popular-alternativo desde a formulação de

seu projeto. São resgatados os caminhos percorridos para compreender não só as dificuldades

inerentes à manutenção de um projeto com este perfil, mas também para analisar as

contradições internas e externas que causaram as transformações em sua proposta original. A

metodologia utilizada para este fim consistiu em pesquisa bibliográfica, entrevistas semi-

estruturadas com lideranças e análise de conteúdo. Concluiu-se que, apesar de o jornal ter

enfrentado uma série de condições adversas que justificam o não cumprimento de sua

proposta original, o caráter de jornal de movimentos sociais já estava presente no Brasil de

Fato desde a sua formação, principalmente no que tange as concepções do MST para o jornal.

Palavras-chave: Comunicação alternativa, comunicação popular, movimentos sociais,

jornalismo alternativo, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

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Resumen

Investigación acerca del semanario de izquierda Brasil de Fato, construido por un colectivo

de dirigentes de movimientos sociales y representantes de organizaciones de la sociedad civil,

periodistas, abogados y artistas, identificados políticamente y reunidos a partir de una

propuesta presentada por el Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra (MST).

Lanzado en enero de 2003, con perspectiva de volverse un medio de comunicación de masas,

ha cumplido seis años de existencia resistiendo a las adversidades. El objetivo central es

analizar el proceso de construcción y consolidación de este periódico popular-alternativo

desde su proyecto inicial. Son rescatados los caminos recorridos a fin de comprender no solo

las dificultades inherentes a la manutención de un proyecto con este perfil, sino que también

para analizar las contradicciones internas y externas que han causado las transformaciones en

su propuesta original. La metodología utilizada para este fin ha consistido en investigación

bibliográfica, entrevistas semi-estructuradas con líderes y análisis de contenido. Se ha

concluido que, a pesar de que el periódico haya afrontado una serie de condiciones adversas

que justifican el no cumplimiento de su propuesta original, el carácter de periódico de

movimientos sociales ya estaba presente en Brasil de Fato desde su formación,

principalmente en lo que toca las concepciones de MST para el periódico.

Palabras-clave: Comunicación alternativa, comunicación popular, movimientos sociales,

periodismo alternativo, Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra.

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Abstract

Investigation on the left-wing weekly newspaper Brasil de Fato, built by a group of leaders of

social movements and representatives of civil society organizations, journalists, lawyers,

artists, politically identified and joint to discuss a proposal submitted by the Landless Rural

Workers Movement. Brasil de Fato was launched in January 2003 with the prospect of

becoming a mass vehicle and completed six years of existence resisting adversities. The

central objective is to analyze the process of construction and consolidation of this popular

alternative newspaper since its design. Its trajectory is recovered in order to understanding not

only the difficulties of maintaining a project with this profile, but also to analyze the internal

and external contradictions that caused the changes in its original proposal. The methodology

used for this purpose was bibliography research, semi-structured interviews with leaders and

analysis of content. It was concluded that while the newspaper has faced a series of adverse

conditions that justify the failure of its original proposal, but the characteristics of a social

movement newspaper was already present in Brasil de Fato since its formation, especially

regarding Landless Movement's conceptions for the newspaper.

Key-words: Alternative media, popular media, social movements, alternative press, Landless Rural Workers Movement.

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INTRODUÇÃO

Em junho de 2002, um grupo amplo e heterogêneo formado por dirigentes de

movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil, jornalistas, advogados, artistas,

se reúne a partir de uma convocação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o

MST, para discutir a proposta de criar um jornal de esquerda, de circulação nacional no

Brasil.

A idéia nasce da constatação de que naquele momento histórico, a grande mídia

comercial, identificada como porta-voz de grupos sociais dominantes e interesses corporativos

e econômicos, colocava em prática mais uma ofensiva contra o MST e demais movimentos

sociais, em consonância com uma política de repressão detonada pelo Estado, na figura do

presidente Fernando Henrique Cardoso. Fortalecia-se dentro do MST e dos demais

movimentos envolvidos com a construção de um programa político chamado de “Projeto

Popular para o Brasil”, a compreensão de que era necessário construir um meio de

comunicação próprio, de massas, que atingisse a sociedade de forma ampla e fosse um canal

aberto para os movimentos sociais colocarem suas reivindicações, além de fazer a disputa de

hegemonia ao promover a elevação do nível de consciência da população.

Assim, a partir desta proposta ambiciosa e de um projeto pré-formulado pela direção

nacional do MST, o grupo heterogêneo se divide em comissões que passam a pensar todos os

aspectos de funcionamento e composição de um jornal popular-alternativo, ainda sem nome,

chamado por eles de "Jornal de Esquerda".

Chega-se a conclusão de o jornal deve nascer semanal, com a perspectiva de se tornar

diário em um curto espaço de tempo, ter vocação de massas, grandes tiragens, distribuição

nacional e reportagens que mostrem um Brasil desconhecido do grande público.

Politicamente, sua linha seguiria as bases do documento “Um Projeto Popular para o Brasil” e

não seria vinculado a nenhum grupo político, partido, movimento ou tendência. Deveria

orientar-se por valores de esquerda e defender o antiimperialismo e o socialismo, mas não

deveria tornar-se um panfleto ou um canal de transmissão de discurso ideológico. Ao

contrário, precisaria agregar um grande número de pessoas, ao redor de todo o país, que

mandassem sugestões de pauta, apurassem informações e organizassem-se em comitês

regionais de discussão e divulgação para que o jornal não ficasse preso ao eixo Rio - São

Paulo - Brasília.

Após um período de discussões chegou-se a um acordo sobre o nome do jornal de

esquerda, Brasil de Fato, e sobre os principais aspectos de seu projeto editorial. O ato de

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lançamento da edição zero do Brasil de Fato aconteceu no dia 25 de janeiro de 2003, em

Porto Alegre, Rio Grande do Sul, reunindo personalidades da esquerda brasileira e mundial, e

aglutinando oito mil pessoas. A partir da edição número 1, que saiu em 8 de março de 2003, o

Brasil de Fato começa a enfrentar dificuldades de toda ordem, que contribuem aos poucos

para o abandono de sua proposta inicial e para a sua conversão em um jornal de movimentos,

feito para eles, por eles sustentado e direcionado para suas bases.

O caminho a ser percorrido por esta pesquisa é reconstituição da trajetória do jornal

popular-alternativo Brasil de Fato desde a formulação de sua primeira proposta até a

publicação de sua edição de número 304, em dezembro de 2008 (não fazem parte desta

análise as edições publicadas em 2009). Nessa perspectiva, o problema de pesquisa que

direciona a investigação pode ser sintetizado nas perguntas: “Por que é tão difícil construir um

meio de comunicação de massas que siga uma linha contra-hegemônica e faça o contraponto à

grande imprensa no Brasil?”, seguida por outra que nos direciona ao objeto: “Por que o Brasil

de Fato, apesar de ter sido pensado para este fim, não conseguiu atingir este objetivo?”.

A hipótese norteadora da investigação aponta para a incapacidade do Brasil de Fato

cumprir seu objetivo principal por estar vinculado desde a formulação de seu projeto, ao

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que, por mais que propusesse a construção

de um meio plural e de interesse das massas, aberto à participação de colaboradores de todas

as origens, imprimiu ao jornal sua visão de tomar os meios de comunicação como

transmissores de posicionamentos ideológicos e políticos, fazendo com que desde o início sua

finalidade fosse a propaganda do “Projeto Popular para o Brasil”, restringindo assim sua

possibilidade de crescimento entre as camadas da sociedade não identificadas diretamente

com esse projeto.

Esta hipótese não descarta as dificuldades conjunturais e materiais enfrentadas pelo

jornal, desde a fragmentação das esquerdas a partir de avaliações distintas sobre a natureza do

governo de Luiz Inácio Lula da Silva, até o boicote das grandes empresas de distribuição, mas

coloca esses fatores como adjacentes no processo de transformação do projeto do Brasil de

Fato em direção a um jornal de movimentos.

O objetivo central desta pesquisa é conhecer em profundidade as dificuldades de

construção e consolidação do jornal Brasil de Fato enquanto meio de comunicação contra-

hegemônico.

Em relação aos objetivos específicos, esta investigação pretende: 1. Refletir sobre o

papel e as características do jornal Brasil de Fato; 2. Identificar as concepções teóricas sobre

o papel que um jornal de esquerda deve cumprir dentro da formulação do projeto editorial do

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Brasil de Fato; 3. Analisar a trajetória do Brasil de Fato em seus seis anos de existência,

fazendo o resgate da documentação de seu processo de criação e de depoimentos dos

participantes da formulação de seu projeto; 4. Entender as transformações pelas quais passou

o projeto editorial do jornal Brasil de Fato, analisando as opções feitas em termos

administrativos e políticos, principalmente sua postura na cobertura do governo de Luis Inácio

Lula da Silva; 5. Verificar o desinteresse dos demais movimentos sociais em relação ao

projeto e 6. Entender por que o Brasil de Fato não conseguiu preencher a lacuna existente por

um meio de comunicação contra-hegemônico de circulação nacional.

A escolha do jornal Brasil de Fato como objeto de pesquisa se justifica pela

necessidade de análise e desenvolvimento de projetos de comunicação alternativa aos grandes

meios comerciais. Esta demanda existe e tem sido sistematicamente discutida por aqueles que

perceberam que o campo da comunicação brasileira precisa passar por um processo de

desconcentração, passo importantíssimo para a consolidação de nossa democracia.

A partir dessa realidade, pensar em projetos que possam contribuir para o processo de

democratização da comunicação no Brasil torna-se um desafio importante. Faz parte dessa

perspectiva a construção e consolidação de meios de comunicação alternativos, comunitários

e populares.

A escolha pela análise da experiência do jornal Brasil de Fato permite a busca por

respostas para as dificuldades de consolidação de um meio de comunicação alternativo no

Brasil atual, além da tentativa de contribuir para o avanço da comunicação alternativa e

contra-hegemônica no país.

A metodologia utilizada para o alcance dos objetivos colocados para esta pesquisa

parte de uma abordagem qualitativa, ao entender que ela se propõe a desenvolver uma

investigação sobre uma realidade peculiar e específica, dentro de um contexto sociopolítico

que também deverá ser descrito. A estratégia escolhida é o estudo de caso único, por se tratar

de um objeto em desenvolvimento a ser estudado dentro do contexto onde foi criado e está

inserido. Segundo Robert Yin (2001, p.32), a estratégia do estudo de caso pode ser definida

como: “uma inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um

contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente

evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas”.

A porção teórica da pesquisa utiliza dados e conceitos obtidos a partir da análise de

bibliografia sobre os temas: movimentos sociais, comunicação popular e alternativa,

comunicação nos movimentos sociais e papel dos meios de comunicação dentro de

organizações políticas de esquerda. Trabalhamos também com dados empíricos por meio de

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análise de documentos e realização de entrevistas com a finalidade de resgatar a trajetória do

jornal Brasil de Fato desde o início das discussões sobre sua formação até o seu estágio de

desenvolvimento atual. Entre os documentos coletados estão textos de mensagens eletrônicas

entre o grupo fundador do jornal, atas de reuniões de pauta (semanais), do conselho editorial

(mensais), do conselho político (anuais) e dos comitês estaduais, as diversas versões dos

projetos editorial e político, textos teóricos escritos por membros da equipe e conselhos e

chamamentos das campanhas de assinatura, ajuda ao jornal, cartas de adesão e comunicados

em geral. Estes documentos nos foram cedidos por membros do grupo idealizador do Brasil

de Fato, destacando a colaboração de José Arbex Júnior, jornalista e ex-editor chefe do jornal

e João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST.

A partir da pesquisa documental foram realizadas entrevistas em profundidade, semi-

estruturadas, com quatro atores de diferentes origens que participaram efetivamente do

processo de construção do Brasil de Fato e contribuíram ou contribuem para seu

desenvolvimento. São eles: 1. José Arbex Júnior, jornalista, editor-especial da revista

alternativa Caros Amigos, professor do curso de jornalismo da PUC-SP e ex-editor do jornal

Brasil de Fato. Após deixar o cargo no jornal, Arbex passou a viajar pelo país para divulgar

seu projeto e contribuir na formação dos comitês regionais. Foi membro do conselho editorial

do jornal até setembro de 2006, quando se retirou após discordar da linha de apoio à

candidatura de Luis Inácio Lula da Silva à reeleição presidencial. Mesmo após o episódio,

segue participando de atividades esporádicas ligadas ao Brasil de Fato; 2. Miguel Stedile,

filho de João Pedro Stedile, historiador e membro do setor de comunicação do MST há doze

anos, sendo atualmente um de seus dirigentes nacionais. Participou das discussões sobre a

formulação do projeto editorial do jornal, aproveitando o acúmulo gerado por sua experiência

no setor de comunicação do MST. Foi membro do comitê regional de sustentação do jornal

em Porto Alegre; 3. Nilton Viana, jornalista, ex-membro contratado do setor de comunicação

do MST, onde contribui na edição do Jornal Sem Terra. Participou das primeiras discussões

sobre o Brasil de Fato, ocupando o cargo de editor-chefe após a saída de Arbex, função que

desempenha atualmente e 4. Ricardo Gebrim, advogado, dirigente do movimento Consulta

Popular e apoiador histórico do MST. É um dos membros mais atuantes do conselho editorial

do jornal, participando de suas reuniões desde o início do projeto, quando também integrou as

comissões que definiram os aspectos do Brasil de Fato. As entrevistas estão disponíveis em

áudio, nos CDs anexados nesta dissertação. É importante ressaltar que a realização das

entrevistas foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Metodista de São Paulo.

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Por fim, será feita análise de conteúdo das manchetes do jornal que, em seis anos de

circulação, abordaram questões relacionadas ao governo Lula. A unidade de análise serão as

manchetes em que haja referências textuais ao governo de Luis Inácio Lula da Silva, a partir

das palavras “Lula” e “governo” (desde que a palavra governo esteja relacionada ao

presidente brasileiro) e também as que trazem referências indiretas como citações de

ministros, de programas do governo como “Bolsa Família”, ou termos como “reeleição”, que

dizem respeito ao governo. Estas manchetes serão analisadas dentro das categorias: 1. Crítica

ao governo; 2. Reivindicações ao governo; 3. Sugestões ao governo e 4. Apoio/ elogios ao

governo. Dessa forma é possível verificar quantas manchetes do jornal Brasil de Fato fazem

referência ao governo Lula em seis anos, qual o seu teor, e de que forma essas manchetes

estão em consonância com os posicionamentos políticos dos movimentos sociais que

integraram o Brasil de Fato em diferentes momentos históricos e políticos. A escolha pelas

manchetes que fazem referência ao governo Lula se justifica por ser esse um ponto

importante, não só para o esclarecimento dos posicionamentos políticos do jornal em relação

ao governo, ponto muito abordado durante o trabalho, como também para verificar se elas

espelham os mesmos posicionamentos do MST.

A dissertação está estruturada em seis capítulos. O primeiro, “Movimentos Sociais no

Brasil” traz um apanhado teórico sobre os conceitos de movimentos sociais e resgata uma

parte de sua história no Brasil a partir da descrição de seu ressurgimento nas décadas de 1970

e 1980. O último item do capítulo 1 é dedicado ao MST, seu surgimento, formação, áreas de

atuação e importância.

O segundo capítulo, cujo título é “Comunicação contra-hegemônica”, é voltado ao

estudo desta modalidade como um todo. Nele são citadas as teorias de Vladimir Lênin e

Antonio Gramsci para o papel dos meios de comunicação nas organizações de esquerda, além

de uma tentativa de delinear aspectos teóricos que caracterizem os conceitos de comunicação

popular a alternativa no Brasil.

O terceiro capítulo, “A comunicação no MST”, aborda a relação do movimento com o

campo da comunicação, a partir de uma análise do comportamento do movimento frente à

mídia de massas, passando pela descrição de seus meios, como o Jornal Sem Terra, a revista

Sem Terra, suas iniciativas dentro do campo da radiodifusão e sua apropriação das novas

tecnologias a partir do uso da internet.

A quarta parte, cujo título é “Nascimento e formação de um jornal de esquerda no

Brasil”, é voltada para a análise do processo de construção do Brasil de Fato antes de seu

lançamento, retomando o início das discussões em 2002 e trazendo documentos que jogam

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luz sobre esse período pré-jornal. Aqui são utilizados os dados fornecidos nos depoimentos de

nossos entrevistados e documentos como atas de reunião, circulares e textos teóricos.

O quinto capítulo, “O jornal Brasil de Fato em seis anos de existência, trajetória,

dificuldades, desafios”, pretende dar conta da trajetória do Brasil de Fato em seis anos,

período que compreende os anos de 2003 a 2008, dividindo seu percurso em três fases: 1.

Primeiro ano de vida, 2003; 2. Período de crise, 2004 a 2006; e 3. Consolidação, entre os anos

de 2007 e 2008. Este capítulo traz também uma breve análise de conteúdo das manchetes que

fazem referência direta e indireta ao governo Lula, tornando possível a verificação de seu teor

e relacionando-as à conjuntura dos períodos.

Finalmente, o sexto capítulo, chamado de “Relação entre aspectos teóricos e práticos

no jornal Brasil de Fato" , traz um esforço de amarração, que relaciona a parte teórica do

trabalho com os resultados obtidos na pesquisa de campo, além de fazer uma reflexão sobre

esses resultados.

O texto conta com três anexos: 1. A síntese do documento “Um Projeto Popular para o

Brasil”; 2. Temas das manchetes do jornal Brasil de Fato em 304 edições (2003-2008) e 3.

Reproduções das capas do Brasil de Fato cujas manchetes fazem referência direta e indireta

ao governo Lula, utilizadas na análise de conteúdo. No final do volume, está disponível um

CD com os áudios integrais das entrevistas.

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Capítulo I – MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL

1. O que são movimentos sociais?

Um dos pontos recorrentes levantados por autores que se dedicam ao estudo dos

movimentos sociais diz respeito à dificuldade em encontrar uma definição precisa deste

fenômeno. Esta dificuldade pode ser explicada pela diversidade de formas de organização

social, em constante mudança, e das múltiplas interpretações que elas permitem. Entre os

principais equívocos, estão o tratamento semelhante dado a manifestações de naturezas

distintas e a difícil separação entre movimentos sociais e ações coletivas. Além disso, muitas

teorias foram formuladas a partir de uma realidade específica observada pelo pesquisador,

criando confusões entre o que seriam tendências gerais e especificidades locais.

Esta pesquisa não pretende encontrar uma definição única sobre o fenômeno dos

movimentos sociais. Mas, como tem entre seus pilares a análise da relação entre um

movimento social e meios de comunicação, consideramos fundamental elencar algumas

características levantadas por autores de cuja concepção de movimentos sociais

compartilhamos.

Vale ressaltar que a maioria das definições aqui colocadas diz respeito a estudos

formulados a partir dos anos 1970, quando a erupção de uma série de organizações sociais,

principalmente na América Latina, despertou o interesse das ciências sociais pelo estudo das

manifestações que surgiam principalmente nas áreas urbanas.

Segundo Maria Célia Paoli (1995, p.27), o termo movimentos sociais passou a ser

utilizado para referência aos grupos organizados que não se enquadravam nas estruturas

institucionais de poder e não pertenciam às representações políticas clássicas, como sindicatos

e partidos políticos, e complementa:

Sua originalidade residia no fato de organizarem-se para expressar o desejo de integrar-se a outra esfera de poder, aquela que pertence à ordem da cidadania e dos direitos e que é regida, portanto, por aquilo que hoje, anos mais tarde, está sendo enunciado como própria da esfera de uma sociedade civil revitalizada.

Christa Berger (2003, p. 86), em Campos em confronto, a terra e o texto, descreve os

movimentos sociais como:

Formas de organização e mobilização, inscritos como elos ativos entre os processos de reprodução social e a esfera política. Desta maneira, os movimentos sociais

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articulam-se tanto aos processos de construção da sociabilidade quanto ao campo político em seus conflitos.

Aqui, a autora nos dá uma pista sobre as esferas de atuação dos movimentos sociais,

mas necessitamos de algo que precise a origem das mobilizações.

Parece claro que os movimentos são formados por grupo de pessoas que possuem

determinadas carências por bens materiais ou simbólicos, sendo que tais carências passam a

ser traduzidas em demandas que, posteriormente, se tornam reivindicações. Os movimentos

sociais são compostos por segmentos sociais em luta, definição mais abrangente do que as

tradicionais classes sociais, que a partir de algum momento passam a se organizar para

defender seus interesses e buscar a solução de seus problemas. Para isso, os movimentos

mobilizam bases e articulam redes de colaboração nas várias esferas da sociedade.

Historicamente, os setores subordinados da sociedade produziram uma maior

quantidade de mobilizações, mas a composição dos movimentos abarca indivíduos

provenientes de várias esferas ao estabelecer articulações com as mais diversas forças sociais.

Entre os atores externos pode haver quem se identifique com o movimento em termos da

demanda ou compartilhe do desejo de transformação. Para Maria da Glória Gohn (2007, p.

252), em Teorias dos movimentos sociais, paradigmas clássicos e contemporâneos:

Os movimentos aglutinam bases demandatárias, assessores e lideranças, e têm estreitas relações com uma série de entidades sociopolíticas, como partidos e facções políticas – legais ou clandestinas -, Igrejas, sindicatos, ONGs – nacionais e internacionais -, setores da mídia e atores sociais formadores de opinião pública, universidades, parlamentares em âmbito municipal, estadual e federal, setores da administração governamental, pequenos e médios empresários etc., articulados em redes sociais com interesses comuns.

Para Berger (2003, p.85):

Os movimentos sociais existem em razão da distribuição desigual dos bens produzidos socialmente, que demanda um tipo de organização cujo objetivo é reivindicar. No seu interior configura-se a expressão cultural da desigualdade social. A cultura dos movimentos sociais é a do conflito e da solidariedade; da carência, da escassez e da falta, e é ela quem subsidia a possibilidade da reunião e a capacidade da rebelião.

Em Comunicação popular e alternativa no Brasil, Regina Festa (FESTA, 1986, p.11)

nos dá uma definição semelhante para a razão de existir dos movimentos sociais:

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Os movimentos sociais não ocorrem por acaso. Eles têm origem nas contradições sociais que levam parcelas ou toda uma população a buscar formas de conquistar ou reconquistar espaços democráticos negados pela classe no poder

Tais contradições, segundo ela, geram processos que provocam respostas distintas dos

movimentos, como resistências em momentos de repressão, convergência em momentos de

acumulação de forças ou mesmo desarticulação em momentos desfavoráveis à organização

popular. Movimentos sociais aparecem em sociedades permeadas por conflitos entre classes

sociais, "estruturando-se de acordo com a conjuntura, com interesses de grupos específicos,

classes ou extrações de classe e em torno de projetos alternativos de sociedade." (p.11)

Alguns autores procuraram explicitar diferenças que permitam categorizar os

movimentos de acordo com suas demandas e objetivos. Em seu Dicionário de política,

Norberto Bobbio descreve os movimentos como tentativas de definição de formas de ação

social, com o objetivo de influir na sociedade (BOBBIO, 2004, p.787). Os movimentos se

distinguem dos comportamentos coletivos pelo grau de mudança que pretendem imprimir.

Segundo o autor (2004, p. 791), existem diferenças entre "movimentos reivindicativos,

movimentos políticos e movimentos de classe, baseadas nos objetivos perseguidos", que

respectivamente propõem mudanças na distribuição de recursos, acesso aos canais de

participação política e finalmente subversão da ordem social a partir da transformação do

modo de produção e das relações de classe.

Mas, movimentos sociais precisam de mais do que interesses comuns para se

caracterizar. Para Gohn, é preciso que haja identidade entre os membros do grupo. A

identidade é criada a partir das ações que desenvolvem processos políticos, sociais e culturais

(2007, p.245). Em suas palavras (2007, p. 251):

Movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos, pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socieconômica e política de um país, criando um campo político na sociedade civil. As ações se estruturam a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em conflitos, litígios e disputas vivenciadas pelo grupo na sociedade. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em comum. Esta identidade é amalgamada pela força do princípio da solidariedade e construída a partir da base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, em espaços coletivos não institucionalizados.

Mas quais são os passos para a consolidação de um movimento, sua dinâmica de

atuação? Para Paul Singer, em São Paulo: o povo em movimento, os movimentos sociais

começam a se formar a partir da tomada de consciência das contradições existentes por parte

de um pequeno grupo. A partir da reunião de um número suficiente de pessoas, passa-se ao

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estágio da formulação de reivindicações, que emanam das carências e necessidades da

categoria social que se formou (SINGER; BRANT, 1983, p.215-216). Segundo o autor: "as

reivindicações (...) são formuladas em termos de um discurso ideológico, que é o patrimônio

comum do grupo que tomou a iniciativa e, geralmente, retém a liderança do movimento."

O crescimento de um movimento social está ligado ao desdobramento das lutas

organizadas a partir das reivindicações, fator que aumenta o número de seus participantes. É

fundamental para sua continuidade que pequenas ou parciais vitórias sejam conquistadas, sob

risco de desmobilização. Singer coloca que, à medida que o movimento torna-se expressivo

no cenário político, passa a existir a perspectiva de institucionalização. Este fator tanto pode

ser visto como risco à autonomia do movimento, a partir de tentativas de cooptação de

lideranças por forças da situação em troca de pequenas concessões, como pode ser encarado

como um passo necessário à ampliação de sua esfera de atuação por meio de articulação com

forças institucionalizadas da sociedade para a criação de redes. Para Singer, ao mesmo tempo

em que o reconhecimento de alguns movimentos pelo Estado a partir de seus êxitos permitiu

conquistas concretas, causou o atrelamento de membros às instituições que representam os

interesses das classes dominantes.

Outro fator importante para a caracterização dos movimentos sociais é a análise de sua

composição, de seus agentes. Já concluímos que os movimentos são majoritariamente

formados por representantes das classes subalternas que, a partir da percepção das

contradições sociais que os cercam, organizam grupos em torno de reivindicações. Mas,

movimentos sociais não surgem espontaneamente a partir de contradições, segundo Singer

(1983, p. 224):

Um movimento social das classes exploradas é sempre resultado de um esforço deliberado, de uma 'iniciativa', que é tomada por pessoas, pertencentes ou não a estas classes, geralmente motivadas não apenas pela contradição específica, mas por ideologias.

Mas como os movimentos se organizam internamente, qual a distinção de papéis entre

os agentes organizadores e os mobilizados, conhecidos como base? Para Bobbio (2004, p.

791), os agentes que iniciam movimentos normalmente não são os marginalizados, estes

podem vir a constituir bases importantes, mas a liderança é constituída por indivíduos

centrais. Segundo Singer (1983, p.224), a principal diferença entre as pessoas que tomam

iniciativas em relação à organização de movimentos, diz respeito à concepção de vida, voltada

para a rejeição da ordem social que permite o florescimento de desigualdades, sendo que na

maior parte dos casos, não há vínculo orgânico. Para o autor (1983, p. 224-225):

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Entre os propósitos específicos de cada movimento social e os que tomam a iniciativa de sua organização. Esta vinculação é, o mais das vezes, circunstancial: o lugar de residência, a relação de emprego ou o exercício profissional pode criá-la. Isso não quer dizer que estas circunstâncias sejam fortuitas.

Tal afirmação significa que não é necessário que o organizador sofra na pele as

contradições ou seja motivado unicamente por elas. Além de estar ligado de alguma forma às

questões, sendo filiado ao sindicato em que organizará a oposição ou morador do bairro em

que liderará o movimento, o agente organizador é motivado pela ideologia. Os membros da

base de um movimento social em geral não têm concepções muito bem articuladas de vida,

diferença entre eles e os agentes organizadores, segundo Singer (1983, p.225). Em alguns

casos, representantes da base são atingidos pela transmissão ideológica e ascendem para

posições de liderança. Por outro lado, a grande maioria permanecerá ligada ao movimento

apenas por conta de suas necessidades imediatas, participando das mobilizações de forma

essencialmente passiva (SINGER, 1983, p. 226).

Esta realidade pressupõe alguns riscos para o movimento, como a reprodução da

divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual existente na sociedade capitalista ou o

apelo ao "basismo", crença de que somente a consulta às bases pode definir qualquer tomada

de posição do movimento. A barreira entre lideranças e base tende a se intensificar a partir do

momento em que o movimento cresce e vê seus objetivos diversificados e quando passa a

compreender o conjunto de contradições que o cerca e opta por formular um programa mais

abrangente de atuação. Quando isso acontece, os movimentos normalmente passam a contar

com uma série de agentes externos, que assumem demandas organizativas e burocráticas,

inclusive profissionalmente. A constituição de "aparelhos ideológicos" externos ao

movimento, mas ligados à sua estratégia, pode ser positiva em si, mas também costuma

aprofundar o abismo entre organizadores e base, podendo causar a deturpação do movimento.

(SINGER, 1983, p.229)

Há também muita controvérsia sobre o real potencial dos movimentos sociais na

transformação da realidade e construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Enquanto

alguns estudiosos compreendem os movimentos como forças democratizantes, capazes de

articular mobilizações plurais, revelando o caráter também plural das formas de opressão

(PAOLI, 1995, p. 49), outros consideram que seu papel de denunciar as desigualdades sociais

foi cumprido e se esgota a partir do momento em que a democracia se consolida. Para Paoli, a

segunda concepção pressupõe que a democracia deve ser exercida apenas através de

representantes eleitos ou no máximo em espaços controlados de participação (1995, p.49).

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Há ainda quem destaque o caráter provisório dos movimentos sociais, que tenderiam a

se extinguir a partir do momento em que suas reivindicações fossem atendidas. Outros

colocam que as estruturas de mobilização dos movimentos só poderiam funcionar em pequena

escala, apontam para o despreparo da maioria dos participantes, para a dificuldade em

formular programas amplos que sigam além das reivindicações pontuais e para a submissão

dos movimentos às formas de luta de maior potencial transformador, como os sindicatos e

partidos. Por outro lado, há quem enxergue o papel dos movimentos em abrir espaços não

cobertos por partidos ou sindicatos, contribuindo para a democratização da sociedade civil.

(PERUZZO, 2004, p. 33)

Singer (1983, p. 220) destaca que, ao estender sua esfera de atuação e compreensão

das questões estruturais que cercam suas demandas, muitos movimentos passam a enxergar

limites em sua atuação impostos pelo próprio sistema capitalista.

Trata-se em última análise de compreender que, numa economia capitalista, há possibilidades de conquistar direitos formais e melhorias materiais para os pobres e discriminados, mas estes direitos e melhorias se mostram efêmeros face às tendências de concentração do poder e da riqueza inerentes a esse tipo de economia. (...) Conclui-se, pois, que movimentos que lutam por estes objetivos precisam examinar sua própria história e, a partir desta experiência e da experiência histórica geral, procurar verificar se seus fins últimos são alcançáveis nos limites do capitalismo.

Dessa forma, é preciso evitar que, a partir da compreensão de que certos objetivos só

serão alcançados com a tomada de poder, haja uma separação profunda entre objetivos

próximo e fins últimos. Em alguns casos, esse tipo de compreensão pode desembocar na

adoção de políticas em que "os fins justificam os meios". Sendo a "tomada de poder" algo

distante da realidade, opta-se por uma prática de barganha por concessões imediatas. Assim,

apesar do discurso revolucionário, as práticas do dia a dia reforçam as estruturas que o

movimento se organiza para combater.

Para Singer (1983, p. 221), os movimentos sociais são espaços nos quais a classe

trabalhadora, ao lutar por possibilidades de participação, quebra a lógica de dominação e

passividade, que imobiliza ao difundir a crença de que a resolução dos problemas está nas

mãos dos "de cima". Mas, para que isso realmente funcione, é preciso que os próprios

movimentos se constituam como espaços de participação, sem reproduzir os vícios

autoritários das instâncias da sociedade. Segundo o autor (1983, p. 221):

Cada vez que trabalhadores fazem greve, cada vez que mães de famílias operárias ocupam um escritório da prefeitura, cada vez que uma demonstração de massas

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irrompe o trânsito, a hegemonia da classe dominante é posta em questão e membros da classe dominada tentam tomar seu próprio destino nas mãos. É este o sentido mais profundo dos movimentos sociais das chamadas 'classes subordinadas ': a recusa à subordinação. Mas, quando a distância entre cúpula dirigente e bases se alonga, quando as decisões quanto à linha de ação são tomadas pelos dirigentes e depois 'baixadas' às bases, quando estas são educadas a alimentar fé cega nas direções, ao mesmo tempo em que as inevitáveis divergências entre dirigentes são resolvidas 'entre quatro paredes', sem que as bases tomem conhecimento e tenham a palavra final sobre elas, esta mesma subordinação, que é recusada no plano social mais amplo, é reproduzida no próprio movimento de insubordinação.

Singer (1983, p. 230) ressalta também a importância da busca pela construção de

formas próprias de representação no plano político ou ligação a correntes políticas

policlassistas para que seus objetivos possam ser plenamente alcançados.

Além disso, existe a sempre conflituosa relação dos movimentos com o Estado. A

partir do momento em que deixam de enxergar a instituição como inimiga, os movimentos

passam a ter que lidar com tentativas de cooptação de lideranças e acordos propostos por

agentes do Estado, muitas vezes com a finalidade de desmobilizar e dividir as organizações. O

dilema está colocado, pois ao mesmo tempo em que a relação é arriscada, os movimentos não

podem se furtar a negociar participações em conselhos e a ocupar espaços de participação,

pelos quais eles mesmos lutaram.

2. Organizações populares e movimentos sociais no Brasil

2.1 Período 1964-1974

Entre os anos de 1964 e 1985, o Brasil viveu sob a repressão e o arbítrio de uma

ditadura militar. O golpe de 31 de março de 1964 foi articulado entre setores dominantes da

sociedade brasileira, militares, governo dos Estados Unidos, e apoiado por grande parte da

classe média, assustada com a perspectiva de um "avanço comunista", representado na época

pelas reformas de base do presidente João Goulart e pelos sindicatos e movimentos

organizados que as deram suporte.

Assim, após a implantação do regime militar, os movimentos sociais e populares,

organizados no campo e nas cidades, foram reprimidos até que praticamente deixassem de

existir. Na área rural, as Ligas Camponesas, organizadas no Nordeste do Brasil para lutar por

acesso à terra e melhores condições de vida para os lavradores foram desmanteladas. Nas

cidades, as passeatas e protestos organizados pelo movimento estudantil foram realizados até

o decreto do Ato Institucional n. 5, em 1968. A repressão aos sindicatos impediu qualquer

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possibilidade de participação crítica dos trabalhadores e mesmo não deixando de existir,

foram tomados por "pelegos", trabalhadores ligados ou alinhados com o regime.

Algumas organizações de esquerda, principalmente a partir do endurecimento do

regime após o decreto do AI-5, optaram pela luta armada, com o objetivo de instalar focos

guerrilheiros no campo e nas cidades e assim, derrubar a ditadura militar. Mas, uma série de

fatores levou ao desmantelamento violento dessas organizações, com a prisão de boa parte de

seus membros, tortura, assassinatos e "desaparecimentos". Entre eles estão a

profissionalização da repressão, que passa atuar de forma coordenada em todo o país após

1969 e a total ausência de apoio popular à guerrilha. O início da década de 1970, durante o

governo do general Emilio Garrastazu Médici, foi o período de maior violência imposto aos

membros das organizações clandestinas e seus apoiadores, em que a ditadura empreendeu

uma verdadeira caçada para prender e eliminar seus oponentes mais radicalizados.

No campo partidário, a oposição institucional consentida pela ditadura, o Movimento

Democrático Brasileiro (MDB), estava neutralizado. (HELLMANN, 1995, p.14). Poucos

enxergavam nele algum potencial real de combate ao regime militar.

Assim, a sociedade brasileira viveu anos em que a simples perspectiva de organização

de reivindicações parecia impossível. Afinal, o chamado "milagre brasileiro", período entre os

anos 1968 e 1973, em que taxas de inflação baixas, crescimento do produto interno bruto e

forte expansão econômica foram combinados com grande repressão política (HELLMANN,

1995, p. 13), desanimava qualquer iniciativa de mobilização popular.

Mas, a partir de 1974 a situação começou a se transformar. Os efeitos do "milagre

econômico" mostraram-se pouco duradouros e consistentes. A expansão industrial, um dos

pilares do "milagre" causou profundos impactos nas áreas econômicas e sociais,

intensificando a urbanização das cidades e a migração de enormes contingentes de pessoas

para suas periferias. Ironicamente, o desenvolvimento e os efeitos do "milagre" provocaram a

desconstrução da política da ditadura, levando a um processo de rompimento das relações

entre o Estado e a sociedade (HELLMANN, 1995, p. 14).

A degradação das condições de vida começou a gerar percepções sobre a precariedade

e as privações a que estavam submetidas as populações mais pobres. A compreensão da

necessidade da ação coletiva para interferir e participar das decisões do poder público

fomentou movimentações no interior de bairros e áreas periféricas das cidades. Além disso,

alguns fatores começavam a demonstrar que estava em curso uma abertura política relativa,

com um início de rearticulação das instituições da sociedade civil que posteriormente dariam

apoio aos novos movimentos. (PERUZZO, 2004, p. 31)

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O cenário eleitoral também revelava algumas surpresas. Em 1974, a crise mundial

causada pela elevação dos preços do petróleo repercutiu no Brasil de forma imediata,

evidenciando as limitações da auto-suficiência interna. O fim do crescimento forjado pelo

"milagre" e a falta de abertura política fizeram com que o governo militar perdesse

legitimidade. O resultado foi uma votação expressiva no MDB nas eleições para as

assembléias estaduais e congresso federal. O único partido de oposição consentido pela

primeira vez recebeu uma grande quantidade de votos como forma de protesto contra o

governo militar (HELLMANN, 1995, p. 15).

Tais fatores e outros que veremos adiante permitiram que a população pobre

começasse se organizar em movimentos e mobilizações populares. As primeiras iniciativas

surgiram nos bairros de periferia, de forma tímida, fragmentada, baseadas em relações de

confiança entre vizinhos e parentes, resultado de anos de repressão política imposta pela

ditadura militar (BRANT, 1983, p. 13). Surgiram também a partir de operários que lentamente

voltaram a formar grupos relativamente independentes em seus sindicatos e organizar

mobilizações em seus locais de trabalho (PAOLI, 1995, p.30).

Os grupos compostos por atores até então marginalizados e excluídos da vida social e

política do país, a população pobre, operários e moradores das periferias, começaram a, nas

palavras de Micaela Hellmann (1995, p. 12), "colocar na ordem política do dia 'novos'

conflitos sociais ou 'velhos' conteúdos com um novo foco", exigindo diretos que lhes tinham

sido negados tanto durante a ditadura como nos governos anteriores, inclusive os

democráticos (1995, p. 13). Assim, foram capazes de transformar carências em reivindicações

urbanas, lutaram contra a violência, a despolitização e o Estado (SILVA, 1995, p. 57)

2.2 Movimentos sociais emergentes, período 1975-1989

Segundo Vinícius Caldeira Brant (1995, p.13) em São Paulo: o povo em movimento,

os movimentos sociais que surgiram durante a década de 1970, ainda sob o julgo da ditadura

militar, foram organizados de forma defensiva. Afinal, após a destruição dos movimentos pelo

regime, o governo passou a imprimir forte vigilância sobre as tentativas de mobilização

popular. A repressão atuava principalmente disseminando o terror entre os opositores da

ditadura e dificultando a articulação necessária aos grupos populares.

Por conta dessas especificidades, os movimentos se formaram a partir de núcleos de

pessoas que, nos bairros e locais de trabalho, passaram a se juntar para encontrar alternativas

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ao aumento do custo de vida, lutar por creches, moradia e outros bens públicos, formar

comissões de fábrica, regularizar os loteamentos clandestinos, brigar pelos direitos humanos.

Muitos se desenvolveram a partir da reunião de vizinhos, fomentados pela Igreja e por outras

instituições civis que deram apoio e criaram o clima necessário para que as organizações de

base pudessem se manifestar de forma aberta (BRANT, 1995, p.14). Além da Igreja, podemos

listar o movimento estudantil e o próprio MDB, que apesar de não manter vínculos muito

próximos aos movimentos emergentes, mantinha suas reivindicações em seu programa

(BRANT, 1995, p.16).

Os movimentos surgidos neste período partilharam alguns valores em comum,

independentemente dos objetos de reivindicação. Um exemplo é o entendimento de que as

decisões deveriam ser tomadas pela base, coletivamente. Outro é a desconfiança com que

enxergavam a aproximação das pessoas "de fora". Apesar de apoiados pelo movimento

estudantil, as lideranças dos novos movimentos viam com cautela e a presença dos estudantes,

pois temiam que, a partir de seu discurso politicamente articulado, provocassem a

desarticulação das bases, mobilizadas mais pelas questões imediatas (BRANT, 1995, p. 17).

Havia também repúdio às formas tradicionais de fazer política e uma profunda

desconfiança em relação às instituições e ao Estado. Entre os princípios mais arraigados

estavam: a defesa da autonomia, da auto-organização pela base e da democracia direta

(SILVA, 1995, p. 57). A busca pela autonomia conferiu legitimidade aos movimentos, ao

impedir que práticas condenáveis como troca de favores os desmobilizassem, além disso,

contribuiu para o sentimento de confiança na própria atuação.

O papel da Igreja foi fundamental para a articulação e formação de núcleos de pessoas

que deram origens aos movimentos propriamente ditos. As Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs) contribuíram para a reunião e conscientização de pessoas. Dada a sua importância

para os movimentos emergentes, vamos dedicar alguns parágrafos à história e explicação de

sua forma de atuação.

2.2.1 As Comunidades Eclesiais de Base

A partir do Concílio Vaticano II, a Igreja católica, principalmente através de alguns de

seus membros e espaços na América Latina, passou a atuar voltada para a população mais

pobre. Essa diretiva deu origem ao movimento conhecido como Teologia da Libertação, que

defendia a construção de uma Igreja pobre, ao lado dos pobres, que se preocupasse com as

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camadas desprivilegiadas da sociedade e de alguma forma contribuísse para sua emancipação

(CAMARGO; SOUZA; PIERUCCI, 1983, p. 59). Para os autores Camargo, Souza e Pierucci,

em artigo presente no livro São Paulo: o povo em movimento:

Nesta direção, elaborou-se na América Latina um novo pensamento teológico que procura se fundamentar na análise sociológica da realidade social e na releitura dos Evangelhos. Sobretudo neste pensamento articula-se a reorganização dos intelectuais católicos que buscam um relacionamento orgânico com as classes populares.

A partir do golpe militar de 1964, setores progressistas da Igreja passam a colaborar

com a sociedade civil de duas maneiras principais: apoiando organizações não confessionais,

principalmente ao oferecer abrigo a indivíduos perseguidos politicamente pelo regime e

fomentando a formação de grupos religiosos para a discussão de questões sociais, como as

CEBs (p. 60).

É difícil precisar o momento exato de surgimento das CEBs, assim como construir

uma definição fechada de sua estrutura e forma de atuação. Sabe-se que começaram a

aparecer no Brasil durante os anos 1960, mas apenas a partir da segunda metade desta década

há documentos que falam especificamente em comunidades (p. 62). Alguns creditam a

expansão de outros credos religiosos calcados em maior vivência comunitária como estímulo

para que a Igreja católica apostasse na formação de núcleos com essas características, sendo

que as iniciativas de descentralização das paróquias e aumento da participação dos leigos

podem ser vistas como esboços das CEBs (p. 64-65).

Já em 1976, o 1° Plano Bienal de Pastoral da Arquidiocese de São Paulo elegeu as

CEBs como uma das quatro prioridades do período (p. 68). Por intermédio de cursos de

evangelização, a Igreja católica preparava os leigos para que cumprissem papéis de liderança

dentro das comunidades. Os cursos pretendiam despertar a consciência crítica e estimular a

associação para discussão e resolução de problemas coletivos. Essas experiências foram

fundamentais para o desenvolvimento das CEBs ( p. 68).

As comunidades de base não obedeciam a nenhum modelo pré-estabelecido de

organização e nem funcionavam todas da mesma forma. Seu ideal comum era construir

grupos ligados por relações de fraternidade e solidariedade, permitindo uma participação

maior dos leigos em relação a outros espaços religiosos (p. 69). Ao propor a construção de

relações características do mundo rural e a vida em comunidade, constituíram uma forma de

organização popular que fez frente às condições precárias de vida encaradas pelos pobres.

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Em termos estruturais, eram formadas nos bairros, compostas por grupos de até

cinqüenta pessoas (raramente havia grupos maiores), homens e mulheres, de idades

diferentes, que se reuniam em suas casas ou na própria Igreja. Todos os membros do grupo

deveriam participar das discussões.

Os grupos começavam a se reunir em torno de alguns fiéis, a partir do estímulo de

agentes de pastoral (padres, freiras) e propunham atividades como a leitura da Bíblia e

posterior discussão sobre o conteúdo da mensagem e sua aplicação nos dias atuais (p. 72). A

partir dessas reflexões havia a tomada de consciência acerca dos problemas coletivos e partia-

se para a busca de soluções comuns. A desigualdade social passou a ser percebida de forma

mais crítica e condenada a partir da leitura das escrituras e vem daí sua inovação. Segundo

Camargo, Souza e Pierucci (1983, p. 62):

Sua importância está no fato de constituírem uma promissora trama de experimentação e exercícios sistemáticos de formas novas de associação popular para a discussão e busca de soluções dos problemas vitais que, no campo e nas periferias das grandes cidades, afligem as classes trabalhadoras.

Muitas CEBs se transformaram em pólos de organização de atividades como, por

exemplo, as chamadas compras em comum – aquisição de artigos de primeira necessidade em

maior quantidade para diminuir custos – e executar outros trabalhos (p. 73), enquanto outras

se limitavam às orações. Em ambos os casos, constituíam redes de solidariedade onde os

membros se ajudavam em caso de doença ou desemprego. Outro ponto comum era a tomada

das decisões, exercitando a prática do voto e a responsabilidade na divisão de tarefas. Durante

a execução das atividades, havia a preocupação em realizar reuniões periódicas para avaliar

dificuldades e repercussão das ações (p. 73).

Algumas CEBs chegaram a se inserir no quadro de mudanças que estava em curso na

sociedade durante aquele período. Outras foram embriões de organizações populares

reivindicativas. A partir da ampliação da consciência e capacidade de organização, alguns

grupos passaram a agir conjuntamente com outras organizações e sentiram a necessidade de

trocar experiências com outras comunidades.

Uma série de grupos chegou a esboçar certa organicidade e a fazer reivindicações

diretamente às autoridades, em nome dos valores cristãos. Por outro lado, muitos deles

sofriam com a falta de consistência de objetivos, espontaneísmo na participação dos membros

e leitura restrita das possibilidades de participar efetivamente da transformação do processo

histórico. Nas palavras de Camargo, Souza e Pierucci (1983, p. 78):

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[as CEBs] enfrentam dificuldades radicais em relação à própria sociedade que pretendem alterar. Sofrem limitações oriundas da inércia da tradição eclesiástica. E, como tantas associações da sociedade civil, debatem-se entre projetos alternativos sem um modelo claro de postura ética e ação política.

O passo adiante a ser dado pelas CEBs como um todo seria a conquista de um espaço

de participação efetivo na sociedade civil, contribuindo para a reestruturação do cenário

político e partidário, condição necessária para a transformação social (p. 81). Veremos adiante

que a desmobilização sofrida ao longo dos anos 1980 e 1990 pelas CEBs atingiu outros

movimentos populares, surgidos no mesmo período e sob as mesmas bases. Os motivos para a

desarticulação dos movimentos sociais e popula res surgidos no final da ditadura militar serão

colocados a seguir, mas é importante dizer que a cultura política das CEBs deu frutos e

inspirou movimentos organizados nos períodos posteriores a sua florescência, em específico o

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tema do item 3 deste capítulo.

2.2.2 Movimento Contra a Carestia

Além das CEBs e a partir delas, outros movimentos sociais surgiram no mesmo

período, principalmente nas áreas urbanas. Alguns tinham características semelhantes por

terem se formado a partir de grupos nos bairros de periferia. Eles se agregavam em torno de

uma demanda concreta como a construção de uma creche, a regularização de lotes ocupados,

a organização de compras em comum etc. A Igreja esteve presente em muitos desses

movimentos, mesmo como instituição apoiadora, principalmente dos movimentos de moradia.

Algumas mobilizações cresceram ao ponto de conquistarem abrangência nacional,

caso do Movimento do Custo de Vida, posteriormente chamado de Movimento Contra a

Carestia, também surgido a partir das CEBs, na cidade de São Paulo. A partir de 1973,

mulheres integrantes de clubes de mães da periferia, assustadas com o aumento do preço dos

gêneros alimentares, resolveram se manifestar. Escreveram uma carta às autoridades

denunciando os aumentos e relatando as dificuldades de suas famílias. Posteriormente,

organizaram uma pesquisa para apontar as conseqüências da elevação do custo de vida para as

populações mais pobres (SINGER, 1983, p. 98).

Em 1976, uma assembléia reuniu cerca de quatro mil pessoas que tinham participado

das consultas, mas o movimento não deslanchou. Por falta de objetivos mais concretos e

idéias de continuidade, as pessoas se desmobilizaram. Mas, em 1977, uma nova reunião entre

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representantes de 18 bairros paulistanos e membros da Igreja deu um novo empurrão ao

movimento. Foi eleita uma coordenação e o passo dado a seguir foi a coleta de assinaturas

para um grande abaixo-assinado. Decidiu-se também realizar reuniões setoriais e organizar

uma grande assembléia. O Movimento do Custo de Vida atingiu assim outras cidades do

estado de São Paulo e de outros estados, como Belo Horizonte, Vitória e Salvador. Segundo

Singer, o grande mérito do Movimento do Custo de Vida foi "mobilizar amplas camadas da

população, cujo nível de consciência é ainda relativamente baixo. Trata-se, no fundo, de um

movimento de educação política, que se desenvolve ao redor de uma questão: por que sobe o

custo de vida e por que os salários não acompanham essa elevação" (SINGER, 1983, p. 98-

99).

O Movimento do Custo de Vida tinha como estratégia o apelo às autoridades para que

adotassem medidas concretas contra o problema. Dessa forma, pretendia agregar aqueles que

acreditavam que a solução poderia estar unicamente nas mãos do governo. Em 1978, uma

manifestação na Praça da Sé, em São Paulo, reuniu uma multidão para a entrega do abaixo

assinado com um milhão e trezentas mil assinaturas coletadas. Mostrando que o país

continuava sob uma ditadura militar, as autoridades foram representadas por fo rte aparato

repressivo. Um ano depois, um encontro nacional mudou o nome do MCV para Movimento

Contra a Carestia (p.99). Paul Singer observa que, ao limitar seu trabalho a reivindicações

puramente econômicas, o MCC restringiu seu espaço de atuação, apesar de ter o mérito de ter

despertado na população "a vontade de fazer algo" (p. 100). O MCC conseguiu atingir uma

grande quantidade de pessoas a partir da adoção de uma pedagogia extremamente eficiente,

desenvolvendo grupos de teatro, jograis, junto a jovens, senhoras e comissões de fábrica (p.

100). Por outro lado, sofreu as conseqüências do esgotamento de suas formas de ação, tendo

um destino semelhante ao de outros movimentos surgidos no mesmo período.

2.2.3 Outros movimentos do período

Além dos movimentos descritos acima, o período entre 1975 e 1989 viu florescer

muitas outras formas de mobilização popular. Além dos já citados movimentos localizados

nos bairros, fomentados pela Igreja por meio das CEBs ou não, houve o crescimento de

organizações específicas, formadas por mulheres e negros.

A participação política das mulheres começou a aumentar a partir de seu engajamento

nas CEBs, no Movimento Contra a Carestia, e nos clubes de mães, que agregavam

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principalmente as mulheres que trabalhavam em casa. A distinção entre esse tipo de

participação e os movimentos feministas deve ser feita, já que os últimos historicamente

congregaram mulheres de classe média, profissionalizadas, e de nível universitário, em

organizações que surgiram principalmente durante a década de 1960. Os chamados

movimentos feministas questionam o modo com a mulher está inserida em todos os níveis da

sociedade machista. Já os femininos reúnem mulheres e levantam reivindicações específicas,

como a construção de creches. Mesmo as mulheres operárias, acostumadas a participar de

mobilizações, faziam-no a partir de reivindicações gerais, partilhadas com os homens

(SINGER, 1983, p. 111).

A partir do final dos anos 1979, os movimentos de mulheres passaram a buscar a união

entre as organizações femininas e feministas, permitindo que as últimas saíssem de seu

confinamento e passassem a interagir com as mulheres da classe trabalhadora. Para Singer

(1983, p. 141) a principal contribuição dos movimentos específicos, formados por mulheres

ou negros, é propor uma reflexão que impeça a permanência de condutas autoritárias e

preconceituosas dentro dos movimentos gerais de luta pela transformação social.

Paralelamente, crescem também as chamadas oposições sindicais. Para Maria Célia

Paoli (1995, p.30), a organização de mobilizações nos sindicatos por grupos de operários das

oposições foi, junto aos movimentos de bairro, a grande responsável pela ascensão dos

movimentos sociais durante a década de 1970. As greves de São Bernardo, em 1978, foram o

momento de superação de uma prática sindical tutelada e controlada pelo Estado, em voga

desde muito antes do regime militar. A partir delas, os trabalhadores puderam se constituir

enquanto sujeitos capazes de se mover politicamente de formas inovadoras e baseadas em

suas próprias experiências. Dessa forma, deixavam de ser presas fáceis para as redes

institucionais (1995, p.31). Em suas palavras:

A década de 80 confirmaria – não sem conflitos internos e externos – esta nova imagem da classe operária fabril e urbana em direção a sua autonomia. Esta luta deixara de se limitar aos modos tradicionais de enfrentar uma ossificada burocracia que impedia o exercício real de uma política operária. Em seu lugar, esta política começou a ser exercida de fato através de lutas diferentemente organizadas no chão da fábrica, freqüentemente independentes de sindicatos e também dos constrangimentos da lei, que proibia o reconhecimento legal de comissões internas nos locais de trabalho como espaços de negociação e representação.

A autora coloca que o surgimento das oposições sindicais conferiu tanta legitimidade

aos operários que se tornou praticamente impossível organizar o processo de trabalho nas

fábricas sem entender-se com elas (1995, p. 31).

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2.2.4 Diretas Já, fim da ditadura, e Constituinte

A contribuição dos movimentos sociais e populares surgidos na segunda metade da

década de 1975 para o final da ditadura militar é inquestionável. Afinal, tendo ou não

avançado em seus objetivos específicos, os movimentos certamente contribuíram para o

processo de redemocratização do Brasil, ao inserir no cenário político atores que até aquele

momento permaneciam alijados do mesmo.

A partir de 1983, as organizações populares passam a participar do maior movimento

cívico da história do Brasil, as Diretas Já, que, a partir de uma campanha deflagrada pelo

MDB, mobilizaram milhões de manifestantes (HELLMANN, 1995, p.17).

Apesar da gigantesca adesão ao movimento das Diretas, em 1985 o colégio eleitoral

elegeu Tancredo Neves para a presidência da República. Após sua morte, sem ter sequer

tomado posse, a presidência é assumida por seu vice, José Sarney. A posse de Sarney, político

historicamente comprometido com as oligarquias mais retrógradas da região nordeste do

Brasil, e aliado político do regime militar (foi presidente da ARENA, partido do governo

militar), marcou o fim da ditadura como sistema político (HELLMANN, 1995, p.17). Mas, o

período de transição, iniciado pelo processo de abertura política no fim do regime militar,

durante o governo Figueiredo, e continuado pelos presidentes civis após 1985, apesar de

longo, pouco significou em termos de mudanças reais nos quadros dirigentes da sociedade

brasileira. Nas palavras de Micaela Hellmann (1995, p. 14):

A influência preponderante dos militares e do capital fez com que se abrisse um caminho que levou do governo antigo (militar) ao novo e que se tornou realidade pela continuidade do passado no presente e em virtude de concessões e compromissos pactuados com aquelas forças políticas que queriam continuar no poder.

Alguns movimentos, como o sindical, reivindicaram a mudança do modelo econômico

adotado pela ditadura militar, dependente e gerador de desigualdades, subordinado ao capital

nacional e estrangeiro. Segundo Hellmann (1995, p. 17):

Enquanto os generais estiveram no poder, os tradicionais latifundiários puderam afirmar o seu poder e industriais e banqueiros nacionais e multinacionais conseguiram adquirir imensas áreas de terras. Desta maneira, o Brasil de destacava também com suas formas ultrapassadas de distribuição de terra, e, apesar das muitas promessas, nunca chegou a ser executada uma verdadeira reforma agrária por causa da pressão da oligarquia rural e da imprensa conservadora.

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Em suma, finda a ditadura, permanecem no poder as mesmas figuras que a deram

suporte, situação possibilitada pelo já descrito processo de transição pactuada. Mas, durante a

década de 1980, a ebulição causada pelo surgimento de inúmeros movimentos sociais e

organizações populares começou a dar resultados significativos.

Um deles é com certeza a fundação do Partido dos Trabalhadores, o PT, em 1980

(HELLMANN, 1995, p. 16). Formado por uma mistura heterogênea de intelectuais de

inspiração marxista – muitos deles retornando do exílio após a Anistia, em 1979, membros e

lideranças dos movimentos sociais surgidos na década anterior – CEBs, organizações de

bairro, e sindicalistas responsáveis pelas grandes greves do final da década de 1970, o partido

representou uma grande tentativa de unificação das forças progressistas em um instrumento

capaz de imprimir mudanças reais à sociedade brasileira.

Em 1983 é fundada a Central Única dos Trabalhadores, a CUT, na cidade de São

Bernardo do Campo, São Paulo, durante o 1º Congresso Nacional da Classe Trabalhadora

(CONCLAT), onde estiveram presentes mais de cinco mil pessoas1. No ano seguinte, 1984,

trabalhadores rurais resolvem fundar um movimento que seja capaz de lutar pela reforma

agrária em nível nacional. Nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST,

cuja história e análise são os temas do item 3 deste capítulo.

A derrota da campanha pelas Diretas, o governo Sarney e o início da adoção de

políticas neoliberais começa a causar impacto na capacidade de mobilização dos movimentos

sociais. Mesmo assim, duas grandes lutas ainda seriam empreendidas pelo conjunto dos

movimentos até o momento em que começa a ocorrer sua desarticulação.

A primeira delas diz respeito às discussões e a instalação da Constituinte, em março de

1987. Houve grande mobilização para que os movimentos construíssem propostas que

contemplassem suas reivindicações. Uma rede de organizações rodou o país promovendo

discussões e ações que reuniram doze milhões de assinaturas para a apresentação de 122

propostas (HELLMANN, 1995, p. 20). Mesmo com grande oposição, foi possível incluir no

texto da Constituição garantias importantes de direitos sociais, a maioria nunca implementada.

Outro aspecto positivo foi o contato travado entre intelectuais, juristas e professores com

lideranças das mais diversas organizações populares (HELLMANN, 1995, p. 20).

Mas, as conquistas das forças progressistas em relação à Constituição foram

rapidamente abafadas pelo início da campanha presidencial. Segundo a análise de Hellmann

1 Informação retirada do documento História da CUT, disponível na página da CUT na internet no

endereço www.cut.org.br

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(1995, p.45), a pressão coletiva que deveria ter acontecido para garantir que os direitos

presentes na nova Constituição fossem regulamentados não aconteceu, dadas as mobilizações

para a campanha presidencial. As primeiras eleições diretas para presidente aconteceriam em

1989, depois de mais de 20 anos de ditadura militar.

O candidato do PT, o sindicalista e então metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva,

recebeu apoio maciço dos movimentos e organizações populares e chegou ao segundo turno

das eleições, disputando com Fernando Collor de Mello, representante direto da elite antiga e

conservadora.

A derrota de Lula causou um grande desencanto aos movimentos e organizações

populares, e representou, juntamente com o processo de transição conservadora empreendido

no final da ditadura, a derrota do projeto político implícito nos movimentos sociais do fim da

década de 70 (SILVA, 1995, p. 57). Para Hellmann (1995, p. 45):

O desencanto com o espaço institucional da política, e, não menos, com a pouca extensão do raio de ação dos movimentos sociais organizados foi muito grande. Estes iniciaram um período de perplexidade, relativo fechamento de objetivos e queda no ritmo e na extensão das mobilizações – aquilo que a literatura apressou-se a decretar como o 'fim dos movimentos sociais', um tema que 'saiu da moda’.

Além da grande decepção que a derrota de Lula nas eleições de 1989 causou aos

movimentos, a entrada de Fernando Collor de Mello na presidência da República se mostrará

decisiva para o período de refluxo em que os movimentos parecem entrar a partir do início da

década de 1990. Entre os fatores responsáveis está a desagregação social causada pela adoção

integral de um modelo neoliberal para o país, além de mudanças no perfil político e

ideológico das instituições apoiadoras dos movimentos. Essas e outras questões serão

discutidas no próximo item deste capítulo.

2.3 Desmobilização dos movimentos sociais após 1989

Neste trecho, listaremos alguns dos fatores que explicam a queda no ritmo de

mobilizações dos movimentos sociais durante a década de 1990. A escolha por marcar esse

período a partir de 1989, ano da eleição de Fernando Collor de Mello à presidência da

República, se justifica pelo caráter simbólico que representou para as organizações populares,

pilares de um projeto político derrotado junto com seu candidato, Luis Inácio Lula da Silva.

Apesar do marco, é preciso ressaltar que as políticas neoliberais já tinham começado a

ser implantadas pelo governo anterior, de José Sarney, e pelos presidentes militares durante a

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ditadura. O mandato de Fernando Collor (1990-1992)2 as intensificou, causando danos

irreparáveis às bases dos movimentos, aprofundando as desigualdades sociais e o desemprego.

O governo Collor também ficou conhecido pela repressão que imprimiu aos movimentos

sociais mais radicalizados, como veremos quando tratarmos do Movimento Sem Terra.

O sociólogo Francisco de Oliveira, em artigo publicado no livro Nova hegemonia

mundial, resume com propriedade a seqüência de adoção de medidas desastrosas para a

organização dos trabalhadores no Brasil e América Latina, a partir do crescimento da onda

neoliberal, após a euforia da democratização causada pelo fim das ditaduras:

Talvez na verdade houvéssemos subestimado o 'trabalho sujo' das ditaduras, os estragos produzidos na estrutura social, no aumento das desigualdades, na capacidade estatal de regulação dos conflitos, na identidade entre projeto nacional para as classes dominantes e projeto nacional para as classes dominadas. Uma espécie de assincronia, para dizer o mínimo, tinha-se produzido: as burguesias renunciavam a um projeto nacional, e o espaço da política era, assim, transformado em um confinamento para as classes dominadas. A onda de democratização foi engolfada pela globalização, com todas as suas conseqüências: as ditaduras haviam inserido definitivamente as economias da América Latina na financeirização do capital, o que esterilizava em grau extremado o poder do Estado nessa nova e original democratização. (OLIVEIRA, 2004, p. 113)

Micaela Hellmann observa que após as eleições de 1989, os movimentos passaram a

perder parte de sua importância, decorrência da quase extinção das formas tradicionais de

mobilização e as poucas manifestações organizadas. A autora ressalta que as dificuldades se

acentuaram a partir das mudanças econômicas realizadas pelo governo Collor, o que mexeu

significativamente com a influência dos movimentos (HELLMANN, 1995, p. 22). A autora

explica um dos fatores que pode ter relação com a queda nas mobilizações:

É necessário não perder de vista que a maior parte dos movimentos sociais, especialmente daqueles presentes nas camadas de menor renda e nas favelas, é sustentada pelas mulheres que, por sua vez, sofreram com mais intensidade os efeitos do declínio das atividades econômicas e da pobreza crescente, de modo que as solicitações constantes da luta pela sobrevivência já não lhes permitem o engajamento político. Além disso, existe o fator segurança: a violência crescente nas ruas desaconselha até mesmo a simples participação de mulheres em reuniões.

Além disso, Hellmann cita fatores como a corrupção, a ineficiência das instituições, a

tradicional cultura política de autoritarismo, o crescimento da violência, pobreza e

desigualdades, todos eles afetam intensamente a capacidade de mobilização dos movimentos.

2 O presidente Fernando Collor permaneceu apenas dois anos no poder. A partir de processos

instaurados para apurar casos de corrupção envolvendo seu nome, Collor renunciou para evitar o impeachment. Mesmo assim, teve seus direitos políticos cassados por oito anos.

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Para ela, seria preciso haver um aumento na disposição das classes mais baixas em abandonar

o que chama de "atitude passiva", que somente espera que as soluções venham de um

aparelho estatal ineficiente (1995, p. 23)

Apesar dos fatores acima listados e da real queda nas mobilizações, devemos citar que,

no ano de 1992, alguns setores da população, principalmente estudantes universitários e

secundaristas organizados por entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) – que

cumpriu papel importantíssimo de resistência durante o período da ditadura militar, e a União

Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), ambas sob a influência do Partido

Comunista do Brasil (PCdoB), voltaram a se mobilizar pelo impeachment do presidente

Fernando Collor de Mello. Envolvido em uma série de escândalos de corrupção e sem o

fundamental apoio da mídia comercial para continuar no cargo, Collor renunciou para evitar a

cassação em 1992, mas teve seus direitos políticos suspensos por oito anos.

As manifestações de rua pelo impeachment de Collor de Mello mobilizaram milhares

de pessoas, especialmente jovens, mas é difícil dizer em que ponto não se tratou de algo

relativamente espontaneísta. Diferente de outros períodos em que os meios de comunicação

comerciais optaram por abafar ou simplesmente ignorar as mobilizações populares, no

episódio do impeachment as manifestações foram intensamente cobertas e "aprovadas" pelos

grandes meios de comunicação, o que pode ter contribuído para a adesão. Após o desfecho do

caso Collor e sua renúncia, não foi possível verificar se as mobilizações renderam frutos para

os movimentos em termos de aumento de base ou área de influência.

Além do reflexo que as mudanças sociais trazidas pelo neoliberalismo tiveram na

desintegração dos valores e práticas defendidos pelos movimentos sociais nas décadas

anteriores, colocamos duas outras questões que podem explicar a baixa nas mobilizações,

apesar da intensificação de necessidades e desigualdades sofridas pela população mais pobre.

Ambas estão relacionadas à adoção sem reservas de um modelo neoliberal na economia e na

forma de gerir o Estado, enxugando sua estrutura e reduzindo drasticamente sua presença em

setores estratégicos para o desenvolvimento do país, sendo um dos exemplos a política

desenfreada de privatizações, adotada particularmente pelo governo Fernando Henrique

Cardoso (1995-2002). A proliferação de Organizações Não-Governamentais (ONGs),

algumas inclusive de perfil conservador, e a nova postura do Estado em relação aos

movimentos estão ligadas e mexeram com as estruturas dos movimentos.

Vale ressaltar ainda que, com a queda dos níveis de emprego formal a partir da década

de 1990, os sindicatos passaram a ter muito mais dificuldade de atuação, afinal organizam os

trabalhadores por categorias estabelecidas e precisam de uma estrutura concreta para fazê- lo.

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O desemprego fez com que milhões de pessoas passassem a sobreviver desenvolvendo

atividades informais, sem registro em carteira, direitos trabalhistas ou mesmo local

determinado de trabalho, o que dificulta sobremaneira a aproximação dos sindicatos. Por

outro lado, quem está empregado faz de tudo para se manter trabalhando e evita o

envolvimento em reivindicações que possam ameaçar suas colocações. Para Maria da Glória

Gohn, no livro Teorias dos movimentos sociais, há uma retirada do Estado da esfera social e

os trabalhadores passam a lutar individualmente pela manutenção de seus empregos, fazendo

com que as relações de trabalho saiam do foco da luta. As longas jornadas de trabalho

impostas pelo mercado informal roubam os trabalhadores das mobilizações. (GOHN, 2007,

p.297)

O neoliberalismo contribuiu também para a fragmentação e especialização das

categorias de trabalho, outro fator a dificultar a organização sindical. Afinal, se cada

trabalhador exerce uma função diferente, a junção em categorias torna-se mais complicada.

Segundo Jair Pinheiro (2006, p. 133), os governos neoliberais adotaram políticas

extremamente funcionais para lidar com os movimentos a partir da década de 1990. Para o

autor:

Na medida em que neutralizam o potencial contestador da bandeira da participação, do final dos anos 1980, tornando-a política de Estado executada por agências estatais responsáveis pelas políticas sociais, e pelas ONGs a elas ligadas, com isso controlando os mo vimentos cuja base social é cliente dessas políticas e, por outro lado, àqueles movimentos acima referidos (classistas), os governos reservaram uma forte repressão policial e a criminalização jurídica, além de fazerem 'ouvidos de mercadores' às denúncias contra a ação de forças paramilitares .

A partir do momento em que o processo de redemocratização do país é colocado em

curso, os movimentos são convidados a compor conselhos e conseqüentemente obrigados a

repensar questões como autonomia e relação com o Estado (GOHN, 2007, p.310). Essa seria a

primeira questão a ser explorada. A autonomia em relação ao Estado foi uma das bandeiras

mais constantes defendidas pelos movimentos emergentes nas décadas de 1970 e 1980. A

abertura de brechas para os movimentos "participarem" de forma institucionalizada de órgãos

e conselhos geridos pelo Estado causou um profundo dilema. Afinal, como não aproveitar o

espaço para colocar suas reivindicações para aqueles que poderiam propor alguma forma de

solução e ao mesmo tempo, como garantir que essa participação não significaria adesão e

cooptação dos movimentos e sua gradual incorporação pelo Estado? Para Ana Amélia Silva,

em Movimentos sociais e democracia no Brasil, "o Estado passa, de forma crescente, a

incorporar as demandas dos movimentos em políticas públicas que visavam, via de regra, à

sua fragmentação e dispersão" (1995, p. 57).

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Em relação às ONGs, podemos dizer que sua expansão foi interpretada por muitos

como a derrota das classes trabalhadoras e seus movimento sociais (PINHEIRO, 2006, p.

132). Elas representam uma forma distinta de organização, calcada na profissionalização dos

militantes e voltadas para preocupações como a construção de espaços de cidadania. As

ONGs passam também a receber e gerir recursos, muitos deles provenientes de organismos

que, nas décadas anteriores, auxiliaram os movimentos sociais. A escassez de financiamento

internacional e retirada gradual do apoio da Igreja Católica foram aspectos importantes para

esse processo (GOHN,2007, p. 296).

As ONGs passam a ganhar proeminência junto à gestão de recursos, obtidos através de

parcerias com os setores público e privado. Algumas de suas ações, organizadas

majoritariamente no formato de campanhas, chegam a mobilizar grande contingente de

pessoas, mas normalmente a partir de chamamentos à consciência individual.

Alguns avaliam que o modelo neoliberal enfrenta atualmente uma grande crise. O

fracasso de sua política e o aprofundamento das diferenças que, por um momento, deixaram

perplexos e estagnados os movimentos sociais, agora podem se transformar em motor de

novas mobilizações. Para fazer essa análise, se baseiam nos momentos políticos que vivem

países latino-americanos como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, que a partir da eleição de

presidentes assumidamente comprometidos com a diminuição ou extinção das políticas

neoliberais, assistem à retomada do papel dos movimentos sociais em seus cenários. Para Jair

Pinheiro, há o ressurgimento de uma grande variedade de movimentos sociais que, a partir da

contestação dos que afirmaram a morte dos movimentos e sobrevida das ONGs, tem retomado

as bandeiras de classe (2006, p. 132).

No Brasil, uma série de movimentos resiste em um cenário que demanda uma análise

mais cautelosa. A eleição de Luis Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, em

2002 e sua reeleição em 2006 trouxeram aspectos contraditórios para a organização popular.

Ao mesmo tempo em que não rompeu integralmente com o ideário neoliberal, o governo Lula

passa a apostar em maior integração com os países latino-americanos, barra a implantação de

algumas medidas pilares do neoliberalismo, como a Área de Livre Comércio das Américas

(ALCA) e adota políticas sociais vistas por alguns como emergenciais e por outros como

assistencialistas e desmobilizadoras, como, por exemplo, o programa social "Bolsa Família".

Grosso modo, a não ruptura com o modelo vigente, a não efetivação de promessas históricas

do Partido dos Trabalhadores, como a reforma agrária, e uma política de inserção dos

movimentos na esfera do governo, como podemos verificar no caso da Central Única dos

Trabalhadores (CUT), causou uma profunda divisão entre as forças progressistas de esquerda.

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Enquanto parte deste contingente político prefere enxergar o lado positivo das políticas

sociais e baseia suas análises na ótima avaliação que o governo tem recebido em pesquisas de

opinião, há forças que acusam o PT e o presidente de traição de seus ideais e cooptação de

movimentos. A dificuldade dos movimentos em se posicionar claramente diante das enormes

contradições que o governo Lula encerra pode ter influenciado sua capacidade de mobilização

nos anos recentes. Procuraremos aprofundar a discussão sobre as reações a essas contradições

ao longo deste trabalho, em momentos em que a análise do fracionamento das forças

progressistas após a eleição de Lula se fará extremamente necessária para a compreensão do

objeto de estudo, o jornal Brasil de Fato.

No próximo item analisaremos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), sua criação e inserção na trajetória dos movimentos sociais surgidos na segunda

metade da década de 1970. Veremos que há muitos paralelos entre as dificuldades de

mobilização do MST e dos demais movimentos acima citados, apesar desses serem

majoritariamente urbanos. Por outro lado, ao incorporar muitos aspectos desenvolvidos pelos

movimentos anteriores, e ao fazê- lo de forma crítica, o MST conseguiu se projetar de forma

mais contundente no cenário político brasileiro, principalmente durante a segunda metade da

década de 1990, período em que as mobilizações enfrentaram intensas dificuldades.

3. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) 3.1 Histórico e formação

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, conhecido pela sigla MST, foi

oficialmente fundado no I Encontro Nacional do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem

Terra, que aconteceu de 21 a 24 de janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, na região oeste do

estado do Paraná. Este encontro reuniu 80 representantes de trabalhadores rurais de 13 estados

brasileiros.

Mas, as condições para a criação e organização de um movimento de luta pela reforma

agrária de caráter nacional começaram a ser gestadas pelo menos cinco anos antes de sua

oficialização. Em 1978, mil e duzentas famílias de pequenos agricultores que viviam dentro

de uma reserva indígena no município de Nonoai, Rio Grande do Sul, foram expulsas da área

pelos índios Kaigangs. Desalojadas, as famílias acamparam na beira da estrada e alguns meses

depois foram convidadas pelo governo estadual a se transferirem para lotes no estado do Mato

Grosso.

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O economista gaúcho João Pedro Stedile, um dos fundadores do MST e atualmente

membro de sua direção nacional, conta em uma entrevista ao geógrafo Bernardo Mançano

Fernandes, que compõe o livro Brava gente (1999), que o episódio de Nonoai pode ser

considerado como uma experiência de organização de famílias sem-terra precursora do

movimento. Afinal, algumas dessas famílias não aceitaram a transferência para a região

centro-oeste do país e decidiram permanecer no Rio Grande do Sul. Segundo Stedile, o

trabalho de organização dessas famílias começou com a identificação daquelas que estavam

dispostas a lutar para conseguir terras e permanecer em seu estado de origem (1999, p. 25 e 26) :

Meu primeiro trabalho foi identificar onde é que elas estavam. Identifiquei um núcleo no município de Planalto, outro próximo à cidade de Nonoai e o terceiro em Três Palmeiras. [...] Pelo nível de consciência que tinham, colocavam toda a culpa nos índios. Meu primeiro trabalho, junto com Ivaldo Gehlen e com Fladimir Araújo, foi mudar essa visão. Dizíamos: 'Esqueçam os índios. Essa aí é a terra deles. Agora, não significa que no Brasil não tenha mais terra. Tem sim. Como o governo quis levar vocês para Mato Grosso, vocês não quiseram e decidiram ficar no Rio Grande, vamos procurar terra aqui.

Auxiliadas por Stedile, que na época era funcionário da Secretaria da Agricultura do

Rio Grande do Sul, as famílias descobriram que uma fazenda da região, conhecida como

Macali, era terra pública e havia tido seus documentos falsificados, sendo, portanto, grilada.

Em sete de setembro de 1979, a fazenda Macali foi ocupada e a partir dela, outras ocupações

foram organizadas no Rio Grande do Sul, e os primeiros assentamentos conquistados.

Outras famílias sem-terra passaram a freqüentar reuniões em igrejas e sindicatos no

Rio Grande do Sul, contando com o apoio da Comissão Pastoral da Terra, fundada em 1975

por padres e bispos progressistas, um dos embriões do MST. O perfil das famílias era

semelhante, pequenos agricultores desalojados de seus minifúndios por conta de dívidas e

outros problemas. Estava em curso o período mais rápido e intenso de mecanização da

lavoura brasileira. Jan Rocha e Sue Brandford autoras de Rompendo a cerca, explicam no

trecho abaixo a situação das famílias sem-terra (2004, p.24):

Algumas eram desalojadas a fim de se abrir caminho às fazendas enormes e mecanizadas para o cultivo da soja, o novo grão milagroso, capaz de render ao Brasil milhões de dólares em divisas de exportação. Outras tinham as dívidas executadas pelos bancos, após uma série de colheitas fracassadas. Outras ainda haviam-se tornado diaristas nas grandes fazendas.

Um encontro organizado na cidade de Cascavel, Paraná, foi a forma encontrada para

reunir trabalhadores que estavam se mobilizando para lutar por terra em todo o país, trocar

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experiências e tentar organizar um movimento único, de caráter e projeção nacional. João

Pedro Stedile, que novamente aparece como um dos organizadores do espaço, tinha em mente

as palavras do sociólogo José de Souza Martins, na época assessor da CPT. Segundo ele, um

movimento único de luta pela reforma agrária só seria bem sucedido se conseguisse se

expandir para todos os cantos do país e principalmente agregar os trabalhadores sem-terra do

Nordeste.

O primeiro consenso a que os trabalhadores ali reunidos chegaram foi a necessidade de

criação de um movimento nacional autônomo, até mesmo em relação à Igreja, e aberto à

participação de todos. Jan Rocha e Sue Brandford descrevem o momento da criação dos

demais princípios do novo movimento (p. 42):

Após três dias de intenso debate, estabeleceram-se os princípios do novo movimento: ser conduzido pelos próprios trabalhadores sem-terra, independentemente da Igreja, dos sindicatos e dos partidos políticos; ser aberto a toda a família; e ser um movimento de massa. E foram definidos quatro objetivos: lutar pela reforma agrária; lutar por uma sociedade justa, fraternal e pelo fim do capitalismo; incluir os trabalhadores rurais, arrendatários, meeiros e pequenos agricultores na categoria de trabalhador sem terra; e garantir que a terra seja de quem nela trabalha e dela viva.

O MST surge assim em uma época de grande agitação social. Os movimentos pela

redemocratização e eleições diretas atuavam com força nas cidades, aproveitando o momento

de bancarrota do governo militar. Surgem na mesma época duas entidades que se tornariam

históricas e que logo optaram por dar apoio ao novo movimento, o Partido dos Trabalhadores

(PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Apesar do clima de euforia, o MST enxerga com cautela as perspectivas para a

transformação social que parecem surgir com a Nova República e a eleição indireta de José

Sarney. Em uma avaliação acertada, percebem que não poderiam esperar do novo governo a

realização da reforma agrária – ela só se concretizaria com pressão popular – e ao invés de

esperar pelas mudanças, passam a organizar mais ocupações de terra.

Paralelamente, os sem-terra começam a esboçar a estrutura de sua organização. Optam

pela não criação de cargos individuais, preocupados em garantir a democracia interna e

também em não transformar as lideranças em alvos fáceis para pistoleiros.3 Tudo deveria ser

gerido de forma coletiva, com uma administração descentralizada. Foi formado um comitê de

3 Muitos fazendeiros contratavam (e ainda contratam) jagunços armados para garantir que os sem-terra

se mantivessem longe de suas fazendas. Nesse contexto de violência, um movimento organizado em cargos, como os sindicatos, transformaria seus dirigentes em alvos.

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coordenação nacional, composto por representantes dos 12 estados onde o movimento estava

organizado. Os princípios gerais norteariam a atuação do MST, mas as políticas específicas

deveriam ser discutidas em cada região.

A bandeira da educação esteve presente desde o início do MST, sendo uma das formas

encontradas para sua a expansão, superar a ignorância imposta ao povo pobre do campo por

séculos. Posteriormente, o MST seria reconhecido inclusive internacionalmente pela

organização e formulações de seu setor de educação. Outra estratégia adotada para crescer foi

a organização de ocupações de terra de grande porte, por questão de segurança e por ser a

forma de luta que agregava mais gente. A partir da segunda metade da década de 1980, o

MST começa a avançar em direção ao norte.

O fim do governo de José Sarney e a posse de Fernando Collor de Melo representaram

o primeiro grande desafio ao MST. Collor não estava disposto a permitir a expansão do

movimento e usou todo o aparato disponível para reprimir suas ações. Apesar das

dificuldades, no início da década de 1990, o movimento se encontra em franca expansão,

principalmente em São Paulo, onde começa a organizar grande número de ocupações na

região do Pontal do Paranapanema, área de grande quantidade de terras devolutas4, no

extremo oeste do estado.

A chegada do MST ao Pontal do Paranapanema marca o momento em que o MST

conquista visibilidade nacional, o que contribui para sua expansão para outras regiões. Nesse

mesmo período, Collor renuncia à presidência para evitar sua cassação. Itamar Franco, o vice,

assume o lugar de Collor e surpreendentemente não adota uma política repressiva em relação

ao MST. Durante sua gestão, que durou um ano, cerca de seis mil famílias foram assentadas

no Pontal. Apesar do momento favorável, os trabalhadores rurais organizados seguiam

sofrendo ameaças de jagunços e pistoleiros contratados por latifundiários, que muitas vezes se

concretizavam em assassinatos. O Estado fechava os olhos para essa violência e raramente

investigava ou punia os responsáveis (ROCHA, 2004, p.84)

Ao longo da década de 1990, o MST ganha projeção nacional e legitimidade para sua

luta. A população das cidades passa a ter contato com suas idéias sobre reforma agrária e os

sem-terra viram até personagem de novela 5. A grande mídia ainda não tinha iniciado sua

4 Terras públicas, pertencentes aos estados ou à União.

5 Na novela O rei do gado, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, exibida pela TV Globo em 1996, havia um grupo de personagens sem-terra, ligados ao MST, que organizavam ocupações de terra na região do Pontal do Paranapanema. Apesar de alguns estereótipos, os sem-terra eram retratados como agentes de uma luta justa e legítima.

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campanha sistemática de criminalização do movimento e cobria suas ações com relativa

objetividade.

Esse cenário começa a mudar durante o segundo mandato do presidente Fernando

Henrique Cardoso (1999-2002). O episódio que ficou conhecido como o massacre de

Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996, onde 19 sem-terra foram executados pela polícia

durante uma operação de desocupação de uma rodovia, alcançou grande repercussão,

principalmente internacional, e desgastou a imagem de Fernando Henrique. No ano seguinte,

o MST organiza uma marcha de três meses saindo de vários pontos do país e caminhando até

Brasília, para cobrar do governo a realização da reforma agrária e protestar contra a

impunidade dos responsáveis pelo massacre de Eldorado dos Carajás. Na chegada à capital, a

Marcha reúne 100 mil pessoas e o MST mostra sua força. A partir daí, o governo investe

pesado na repressão ao movimento e toca a reforma agrária a passos lentos.

A perspectiva muda a partir da eleição de Luis Inácio Lula da Silva à presidência, em

2003. Cheias de expectativa em relação ao novo governo e à sua promessa de assentar um

milhão de famílias em quatro anos, as bases do movimento enxergam em Lula a salvação. Os

dirigentes, mais cautelosos, se esforçam para manter os pés no chão, mas também sonham

alto.

A decepção com Lula e sua falta de prioridade em assentar as famílias sem-terra criam

um impasse ao movimento. O governo opta por estabelecer pactos que assegurem sua

governabilidade e é levado a fazer alianças com setores contrários à reforma agrária. Apesar

disso, os sem-terra não rompem com Lula, afinal, conseguem alguns avanços pontuais no que

se refere ao atendimento de outras demandas, secundárias em relação à conquista da terra,

mas também importantes para o desenvolvimento do movimento, como os convênios com

universidades públicas, programas de doação de cestas básicas etc. Existe a compreensão de

que há mais espaço de diálogo e negociação com os órgãos federais sob a administração Lula,

embora essa questão também possa ser vista como uma forma de enrolar o movimento.

Ao mesmo tempo, a ofensiva da grande mídia comercial contra o MST se intensifica e

suas ações passam a ser cobertas como atos de vandalismo, como poderemos ver com mais

detalhes no capítulo III.

Paralelamente, o movimento começa a enfrentar um inimigo diferente dos

latifundiários e seus jagunços, o agronegócio, que disputa as mesmas terras que a reforma

agrária e apresenta uma face externa muito mais moderna e convincente do que o latifúndio.

Neste período, o MST se volta para dentro para enfrentar a nova conjuntura da agricultura e se

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planejar diante das posturas adotadas pelo governo Lula. Os desafios do movimento nesta

nova fase serão abordados no item a seguir.

3.2 Desafios atuais do MST

O MST é um dos poucos movimentos sociais no Brasil que conseguiu alcançar graus

de projeção e organização tão elevados. Sua preocupação em dividir seus militantes para que

atuem em áreas como educação, saúde, formação, frente de massas, produção e comunicação,

a partir da organização desses setores em todos os espaços e níveis do movimento, permitiu a

conquista de um alto padrão de organicidade e fez com que o movimento percebesse a

necessidade de atuar em várias frentes para atingir conquistas que vão além dos lotes da

reforma agrária. O movimento foi capaz de perceber que avanços mais significativos só serão

atingidos em contextos mais profundos de transformação social, por isso, tem optado por

cumprir um papel de articulação entre redes de movimentos do campo e da cidade na

formulação de um projeto mais abrangente de mudanças.

Mas, ao mesmo tempo em que expande suas perspectivas políticas, o MST tem

enfrentado inúmeras dificuldades nos últimos cinco anos, aspectos novos e distintos das

experiências de conflito anteriores. Em relação ao governo Lula, que privilegiou o

relacionamento com o setor chamado de agronegócio em detrimento dos pequenos

agricultores, há um dilema. A base do movimento ainda enxerga em Lula um aliado, enquanto

os dirigentes entenderam que não podem esperar muito além de concessões pontuais do

governo.

Neste cenário, o MST adotou uma postura crítica em relação às políticas do governo,

mas procura poupar a figura de Lula de ataques pessoais, diferentemente de outra parte da

esquerda, que acusa o presidente de traição de seus ideais. Em artigo publicado no jornal Le

Monde Diplomatique Brasil, sob o título Uma outra matriz produtiva, João Pedro Stedile

resume as políticas do governo em relação à agricultura, incompatíveis com a realização da

reforma agrária, distintas das defendidas historicamente pelo MST (2009, p. 9):

Em nosso país, o modelo agroexportador resultou também no bloqueio da reforma agrária, agora sob a responsabilidade do presidente Lula. A democratização do acesso à terra esbarra na transformação dos recursos naturais em reserva de expansão do agronegócio. O governo dá prioridade à produção de monoculturas destinadas à exportação, sob controle das empresas transnacionais e do capital financeiro, para sustentar a política econômica neoliberal herdada de FHC. Nesse contexto, não há espaço para os camponeses, para a reforma agrária e para um

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modelo agrícola baseado em pequenas e médias propriedades, voltado para a produção de alimentos para o povo brasileiro.

Em nosso ponto de vista, a opção por não entrar em confronto aberto com o governo,

significou para o MST a perda de alguns aliados. Apesar de respeitar o movimento, um dos

mais importantes da América Latina, algumas forças cobram uma postura mais dura em

relação a Lula, enquanto outras consideram as críticas do MST muito radicais. O fato é que,

apesar de afirmar que não se pautar pelas atitudes do governo, durante os dois mandatos de

Lula, o MST tem encontrado dificuldades para fazer mobilizações, principalmente ocupações

de terra, motores do movimento e uma de suas principais estratégias de reivindicação. Uma

reportagem do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 18 de janeiro de 2009, por ocasião do

aniversário de 25 anos do MST, mostra que o número de famílias em ocupações de terra caiu

de 65.552 em 2003 para 49.158 em 2007. O número de novas famílias acampadas foi de

59.082 para 6.299, ou seja, menos 89,43%, no mesmo período. Na mesma reportagem, o

bispo de Goiás, Dom Tomás Balduíno, fundador da CPT e apoiador histórico do MST,

responsabiliza as políticas sociais de Lula pela apatia popular: "O pessoal, tendo pequenas

ajudas, como a do 'Bolsa Família', não vai se inscrever nos batalhões de luta pela terra".

(2009, p. A4).

Efetivamente, o governo Lula não tem dado atenção à reforma agrária, e de uma

maneira surpreendente, conseguiu tirar essa demanda da agenda de prioridades da sociedade

como um todo. São tantas contradições que podemos afirmar que um governo do Partido dos

Trabalhadores conseguiu passar à sociedade a idéia de que a reforma agrária não é mais

necessária, apesar dos dados de concentração de terras no Brasil permanecerem

assustadoramente altos. Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo sobre concentração

fundiária, a partir de dados obtidos no censo agropecuário divulgado pelo Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE), em 1992 existiam 2,9 milhões de propriedades rurais com

mais de dois mil hectares, número que cresceu para 4,2 milhões de propriedades em 2003, ou

seja, um aumento de 73% (2009, p. A9). Enquanto isso, as metas de assentamento não são

cumpridas e o governo apela para a manipulação dos números, contabilizando processos

antigos de regularização de assentamentos como novos, conforme artigo de João Pedro

Stedile (LE MONDE DIPLIMATIQUE BRASIL, n. 18, janeiro de 2009, p. 9):

O resultado geral do cenário descrito acima é lamentável: temos hoje os menores índices de desapropriação e assentamentos da história do Brasil. Em 2008, das 18.630 famílias oficialmente assentadas pelo governo federal, apenas 2.366 são novas, enquanto o restante são ainda regularizações de projetos de assentamentos dos anos

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anteriores. É uma vergonha para aqueles que tinham um compromisso histórico com a reforma agrária.

Outro fator da dificuldade de mobilização do MST pode ser creditado à ofensiva da

mídia comercial. Essa ofensiva tem ficado clara com a tentativa de criminalização imposta

pelos grandes meios de comunicação ao movimento, principalmente depois que o MST

passou a desenvolver outras formas de manifestação além da ocupação de latifúndios

improdutivos6.

Ao perceber a ofensiva das grandes corporações e a chegada de uma nova forma de

dominação no campo, representada pela aliança entre os grandes proprietários e o capital

internacional que compõe o agronegócio, o MST passa a organizar ações de visibilidade,

como ocupações temporárias de áreas industriais ou lavouras pertencentes às grandes

empresas. Pretendem com isso evidenciar irregularidades de toda sorte (ambientais,

trabalhistas), cometidas pelas corporações que utilizam áreas imensas, antes dedicadas à

produção de alimentos, para a monocultura de cana – visando lucro com o aumento da

produção de etanol (de soja, muitas vezes transgênica, que assusta o movimento), e para a

criação de gado para exportação. Um dos exemplos dessa nova perspectiva de luta foi a

ocupação e destruição de um viveiro de mudas de eucalipto da multinacional Aracruz, no Rio

Grande do Sul. A ação, empreendida por mulheres ligadas à Via Campesina, rede

internacional de movimentos camponeses da qual o MST faz parte, foi duramente atacada

pela mídia. O objetivo dos sem-terra com ela foi chamar a atenção da sociedade para a

problemática do avanço do cultivo de eucalipto para a produção de papel, que além de tomar

o espaço da lavoura de alimentos, traz uma série de prejuízos para o meio ambiente. João

Pedro Stedile lista como novos inimigos do MST as corporações multinacionais do

agronegócio, que têm influência tanto nas decisões judiciais como na mídia empresarial, já

que boa parte dos anúncios que sustentam os meios vem deste setor. Para ele (2009, p. 9):

Esse avanço das empresas transnacionais na agricultura segue combinado a uma ofensiva de repressão dos movimentos sociais, articulada por parte do Poder Judiciário, da imprensa empresarial e do Estado. Um exemplo recente ocorreu no Rio Grande do Sul, onde o Ministério Público Estadual e a governadora Yeda Crusius determinaram oficialmente a "eliminação" do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

6 O MST tem desenvolvido ações de denúncia contra a atuação das empresas transnacionais na

agricultura, ocupando suas sedes, fábricas e indústrias e interrompendo sua produção por algumas horas.

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Diante deste quadro, o MST teve de atualizar seus conceitos para continuar na briga.

Hoje o movimento fala de soberania alimentar, evidencia os problemas ligados ao consumo e

utilização de transgênicos nas lavouras e enfrenta o aparato das grandes corporações, como

podemos verificar nos assuntos abordados pelos textos de sua página na internet7, por

exemplo.

O desafio é enorme, até porque o movimento não tem espaço nos meios de

comunicação para colocar suas posições, objetivos e nem explicar seu plano para o

desenvolvimento de uma agricultura camponesa sustentável para o campo brasileiro, que

levou anos para formular. As ações radicais contra o patrimônio de empresas são pouco

compreendidas pela sociedade em geral e atacadas pela mídia. Apesar de sua projeção e

importância, o MST perde espaço por não encontrar as mesmas condições políticas da época

em que mais cresceu. Veremos mais detalhes sobre a relação do MST com a grande mídia

comercial no capítulo III.

Em relação à trajetória dos demais movimentos sociais, podemos afirmar que o MST

difere em alguns pontos, que podem explicar de certa forma a projeção alcançada nacional e

internacionalmente pelo movimento, única na história do país. Em primeiro lugar, seu período

de crescimento se dá na segunda metade dos anos 1990, quando os demais movimentos,

principalmente urbanos, se encontravam em decadência. Essa expansão se deu

majoritariamente pela inovação nas formas de luta, que fez com que o governo Fernando

Henrique tivesse de prestar atenção às suas reivindicações, inclusive alçando o movimento à

categoria de seu principal adversário. O MST conseguiu, ao longo da década de 1990,

angariar forte apoio para a luta pela reforma agrária, a colocando na agenda da sociedade e

provocando discussões sobre o tema. Paralelamente, ganhou apoio de uma série de

intelectuais e personalidades políticas e sociais. O tratamento da mídia não era tão

desfavorável e permitia certos debates sobre a questão que hoje parecem impossíveis. Como

colocado acima, a política neoliberal na agricultura, representada pelas transnacionais, passa a

se expandir de forma mais agressiva no final da década de 1990.

Outro aspecto importante é a percepção do MST sobre a amplitude de seus problemas.

No início, o movimento reivindicava somente o acesso à terra. Aos poucos, começou a

perceber que a reforma agrária não acontecia por uma série de fatores que iam além de

simples falta de vontade política dos governantes. O movimento percebeu que sua luta teria

que estar inserida em um contexto mais amplo de questionamento do sistema capitalista e

7 O endereço da página do MST na internet é www.mst.org.br

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suas políticas, especialmente a partir do avanço do neoliberalismo, se quisesse seguir em

direção às conquistas.

Percebeu também que de nada adiantaria questionar o sistema se não houvesse

formulação e proposição de alternativas. Neste sentido, o MST, a partir da segunda metade da

década de 1990, toma para si a responsabilidade de aglutinar forças progressistas de todos os

níveis para a formulação de um projeto alternativo de sociedade, algo concreto que pudesse

ser defendido não só pelo próprio MST, mas pelo conjunto dos movimentos que deveria se

unir em torno dele. A partir dessa percepção, o MST e outras forças passam a formular o que

chamam de “Projeto Popular para o Brasil”, uma série de propostas em todos os campos que

deveriam ser debatidas com a sociedade e implementadas para a diminuição das

desigualdades sociais e retomada do crescimento econômico. Voltaremos a falar sobre o

“Projeto Popular” mais adiante, em outros capítulos deste trabalho. Por enquanto, é

importante colocar que, por conta de divergências e do fracionamento e divisão da esquerda a

partir de discordâncias de avaliação sobre a natureza do governo Lula, hoje o MST não

consegue agregar a quantidade de elementos como movimentos, partidos e organizações em

torno da formulação e defesa das propostas do “Projeto Popular”.

O MST parte também para duas estratégias descritas por Maria da Glória Gohn (2007,

p.304) como fundamentais para o avanço dos movimentos sociais ao ampliar sua rede de

articulação tanto em nível nacional como internacional. Aos poucos o MST tem se

aproximado de alguns movimentos sociais urbanos para discutir principalmente a atuação da

juventude nas mobilizações. Algumas ações do MST, em parceria com o movimento

estudantil, movimento negro e outros, têm acontecido nos grandes centros urbanos, como as

ocupações de universidades para lutar pelo acesso ao ensino público. Trata-se de uma

percepção de que não existe mais possibilidade de empreender uma luta das proporções da

colocada pelo MST, que além da reforma agrária defende uma transformação social profunda,

sem contar com parceiros fortalecidos.

Em nível internacional, o movimento sentiu o baque da gradual retirada de apoio

financeiro de organizações e entidades estrangeiras, que segundo o processo descrito por

Gohn (2007, p. 313), hoje preferem destinar seus recursos às ONGs e movimentos de outros

países, principalmente na África e Ásia. Uma resposta a isso foi a articulação da Via

Campesina, organização internacional que agrega movimentos sociais camponeses de todo o

mundo. No Brasil fazem parte dela além do MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens

(MAB), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e o Movimento de Mulheres

Camponesas (MMC). O objetivo da Via é, além de trocar experiências sobre a luta pela terra

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ao redor do mundo, que apesar de conter aspectos diferentes enfrenta problemas semelhantes,

é articular uma rede internacional de apoio a esses movimentos e suas ações, uma forma de

unir esforços para fazer frente aos gigantes desafios colocados para os movimentos sociais no

começo do século XXI.

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Capítulo II – COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA 1. Imprensa no capitalismo

Nesta parte do trabalho, procuraremos especificar os conceitos de comunicação

popular e alternativa. Não se trata de tarefa simples, pois não há limites claros e bem

determinados que identifiquem os dois conceitos. Pelo contrário. Os autores que se

debruçaram sobre o tema, cujos estudos basearam nossas reflexões, expressam visões distintas

e em alguns momentos contrastantes sobre os termos, por vezes enxergando a comunicação

popular como manifestações que fazem parte de um conceito mais amplo de comunicação

alternativa, ou vice-versa. De qualquer forma, antes de colocar os elementos que nos ajudarão

a caracterizar as duas modalidades, trataremos brevemente da questão da comunicação de

massa, com a qual, de algumas maneiras, tanto a comunicação popular quanto a alternativa se

contrapõem.

Segundo Ciro Marcondes Filho em Imprensa e capitalismo (1984, p. 13), o

aparecimento da circulação de notícias está ligado ao desenvolvimento do capitalismo em sua

fase mercantilista, no momento em que passam a existir não só a circulação de mercadorias,

mas também as primeiras feiras e mercados. As notícias se desenvolvem em conexão com a

necessidade de circulação de bens, fazendo com que começassem a ser encaradas como

mercadorias. Para o autor, isso explica que "a reportagem, produzida de forma empresarial,

está sujeita por isso às mesmas leis do mercado, a cujo surgimento ela deve sua própria

existência".

Posteriormente, o jornalismo aparecerá como forma de expressão política da

burguesia, nova classe que se forma, junto com os processos de urbanização e

industrialização. Ele deixará de servir apenas para a transmissão de notícias e troca de

informações sobre a atividade econômica em geral (mercadorias, bolsas, chegada de navios) e

passará a fornecer retaguarda social e ideológica para a mudança de rumos que os novos

capitalistas desejam imprimir ao mundo. Surge assim a imprensa (p. 15).

Num primeiro estágio, a informação comercializada como notícia vai deixando de ser

manuscrita ou impressa de forma artesanal e passa a ser organizada em edições regulares que

contém "relatos econômicos permeados de pinceladas sobre curiosidades, dados climáticos e

outras coisas pitorescas". A atividade passa a ser considerada jornalismo quando o veículo

impresso, produzido de forma empresarial, passa a ser utilizado com fins, "além de

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econômicos, políticos e ideológicos". Segundo ele (p. 16): "no momento em que a imprensa

passa a funcionar como instrumento de classe é que ela assume seu caráter rigorosamente

jornalístico".

Durante o período de implantação da ordem burguesa, o jornalismo aparecia vinculado

aos interesses da esfera pública em formação: intelectuais, políticos e industriais. Havia então

uma diversidade de opiniões que, para o autor (p.17-18), "tirava da imprensa o caráter

classista, que passou a ser tão marcante a partir do último quartel do século XIX". Para

Marcondes Filho, a ruptura se dá a partir da transformação do jornalismo em atividade

industrial, com o surgimento da imprensa de massa, no final do século XIX. A partir daí, o

autor identifica (p. 18) que os interesses de cada empresário, ou de forma mais ampla, do

capital, passam a ser difundidos como se fossem de todos os cidadãos, subvertendo o conceito

de esfera pública, que passa a existir no capitalismo somente em caráter privado. Explica (p.

16):

A utilização da imprensa na sociedade de classes não pode ser vista, portanto, separada de sua 'função capitalista'. A imprensa e, mais especificamente, a sua bandeira "liberdade de imprensa" são a expressão real dos detentores do poder econômico no modo de produção capitalista. O jornalismo organizado nos moldes da forma privada de produção é [...] o pressuposto para a liberdade de imprensa. O caráter privado, assim, garante a liberdade. Esta não está, portanto, no direito constitucional do cidadão, de se manifestar como, quando, onde e da forma como bem desejar. Aqui, ao contrário, ela se baseia pura e simplesmente no caráter privado: este caráter é o que deve garantir a livre manifestação e não o direito constitucional.

Apesar de ser um instrumento de classe, a imprensa permite manifestações

discordantes, garantindo uma margem possível de atuação de grupos oposicionistas, atitude

que casa com seu discurso liberal. Ao apresentarem posições conflitantes, a imprensa toma

para si o papel de ser "palco da luta de classes", desde que os interesses empresariais do

veículo não sejam prejudicados. Ciro Marcondes Filho (p.22) coloca que, uma das formas de

assegurar a produção em série de mensagens conformistas é a contratação de profissionais

minimamente alinhados com as posturas ideológicas da empresa. Não há possibilidade um

jornal contar com uma grande quantidade de jornalistas que não coadunem com sua linha

ideológica. Mesmo assim, não podemos dizer que a postura conformista dos jornais de massa

venha da imposição de editores ou se dê somente a partir da atuação de jornalistas. "Não há

imposição arbitrária ou totalitária (pelo menos nos moldes tradicionais). Há, isso sim, a

manutenção do estado de coisas reinante por força de mecanismos não apreensíveis

diretamente pela observação". Para o autor (p. 20):

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Não está, portanto, na ação individualizada, programada de agentes, o reforço diário da ideologia, que se impõe de uma forma pretensamente consensual sobre a sociedade. Há processos que atuam em conjunto e promovem a reprodução das relações sociais dominantes e que são, via de regra, alimentados cotidianamente – quase de forma automática – pelos agentes envolvidos neles.

Ao observarmos a forma de surgimento da notícia como produto, concomitante ao

surgimento da própria mercadoria, fica claro porque ela não pode ser separada dos demais

produtos da sociedade industrial capitalista. Para Marcondes Filho (p. 22):

Ela, [a notícia], além de funcionar como fruto de todo um processo de produção, que aspira à satisfação econômica, à sua realização como mercadoria e como valor de troca, portanto, à sua venda, é utilizada como arma política no combate ideológico. A imprensa atua diretamente na vida política e, via de regra, na conservação cotidiana da ideologia (daí ser ela, como emp resa privada, imprescindível à ordem burguesa) por manter mais ou menos seguros os elos estruturais, organizados em forma de sistema, no modo de produção capitalista.

Entendemos assim que imprensa e capitalismo andam juntos, pois a atividade

jornalística nasceu no núcleo e dentro da lógica de produção deste sistema. Seguindo a

orientação político- ideológica dos veículos, a informação transformada em mercadoria é

"transfigurada, alterada e mutilada" em nome de interesses empresariais, segundo Marcondes

Filho (p. 22). Por outro lado, a imprensa é capaz de, na medida em que enfatiza o lado

informativo, contribuir para as discussões políticas. Deixando o modelo do jornalismo

comercial, as modalidades de jornalismo contra-hegemônico, que podem aparecer em

diversos modelos e denominações como popular, sindical, alternativo, entre outros, buscam a

transmissão de informações não alinhadas à lógica dominante. As características dessas

formas de comunicação, que podemos chamar de contra-hegemônicas, por se pautarem por

interesses diversos dos meios empresariais e corporativos, são nosso próximo objeto de

discussão. Mas, antes de abordá- los, achamos conveniente dedicar algumas linhas à

explicação das teorias de Vladimir Lênin e Antonio Gramsci sobre o papel da comunicação na

construção de alternativas à hegemonia das classes dominantes.

2. O papel do jornal nas organizações de esquerda

Os pensadores de esquerda Vladimir Lênin (1870-1924) e Antonio Gramsci (1891-

1937) dedicaram parte de suas obras à formulação de teorias sobre o papel da comunicação na

disputa de hegemonia, dando continuidade ao pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels na

construção de um sistema alternativo ao capitalismo, o comunismo. Ambos se preocuparam

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em encontrar formas de operar transformações profundas nas sociedades em que viviam, a

partir da superação do modelo capitalista e implantação de um sistema em que as classes

populares não fossem mais subjugadas aos interesses de uma elite que detinha o poder

político e econômico. Lênin foi um dos principais teóricos e líderes da Revolução Russa de

1917 e Antonio Gramsci, por conta de sua luta contra a ascensão do fascismo na Itália, ficou

preso por oito anos.

Consideramos que o exame das teorias de ambos os pensadores podem nos ajudar a

compreender os fenômenos da comunicação popular e alternativa por duas razões principais.

Primeiro, porque ambos consideravam que a comunicação era um fator importante em seus

projetos de transformação e disputa de hegemonia. E, tanto a comunicação popular quanto a

alternativa, ao questionar as formas como os meios de comunicação de massa transmitem

informações e consolidam a hegemonia das classes dominantes, cumprem esse papel de

disputa. Em segundo lugar, porque as concepções de comunicação formuladas por Lênin e

Gramsci pautam até hoje as discussões sobre como organizar e gerir um meio de comunicação

contra-hegemônico, direcionando escolhas que determinam a forma de ação desses meios e

seus objetivos. Veremos adiante de que forma essas concepções interferem na organização

dos meios ao falar tanto sobre os jornais alternativos de resistência à ditadura militar, como do

jornal Brasil de Fato.

Em sua obra Que fazer?, publicada pela primeira vez em 1902, Lênin estabelece as

bases do que seria um partido político capaz de derrubar o regime czarista e fazer uma

revolução proletária na Rússia. Em 1900, Lênin funda o Iskra, primeira publicação marxista

clandestina da Rússia, cuja redação tinha sede em Munique, na Alemanha, de onde escreveria

seus artigos (BORÓN, 2006, p. 23). Segundo Atílio Borón, no estudo introdutório publicado

na mais recente reedição brasileira de Que fazer?, o objetivo principal do livro era formular as

bases para a construção de um partido clandestino que pudesse levar adiante um projeto

revolucionário. A organização de partidos e sindicatos era proibida na Rússia czarista e a

perseguição política aos opositores do regime era norma, o que só tornava a tarefa mais

complexa (p. 33).

Dentro de seu projeto de partido, a função do jornal estava muito cla ra. Lênin

discordava das idéias que diziam que as massas de trabalhadores possuem uma consciência

inata de sua opressão, que em algum momento será despertada para a luta. Para ele, as massas

não têm consciência espontânea, e precisam ser despertadas para sua situação, ou seja, devem

ser estimuladas à luta. Nesta perspectiva, um dos papéis de um jornal que sirva aos interesses

do partido revolucionário é a conscientização dos trabalhadores (p. 42). Para Borón (p. 67), a

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insistência de Lênin na importância do jornal como instrumento antecipa a enorme influência

que os meios de comunicação produzidos em escala industrial sob o controle da burguesia

teriam nos mecanismos de controle ideológico e na neutralização das tentativas de

conscientização promovidas pela esquerda com o passar do século XX. Na visão de Borón (p.

67):

Alguém pode acreditar seriamente que essa humanidade, bombardeada 24 horas por dia pelos meios de comunicação de massas – cuja esmagadora maioria é controlada por grandes monopólios capitalistas -, e com centenas de milhões de analfabetos e bilhões de analfabetos funcionais, pode elevar-se ao nível de reflexão e consciência exigidos para enfim virar essa página da história?

O segundo papel do jornal de partido para Lênin também tem a ver com a questão da

conscientização. Para o autor (p.100), um periódico é a única forma de manter uma agitação

sistemática em torno do tema do socialismo. O jornal teria assim, um papel importante na

propaganda das idéias socialistas que poderiam, a partir de sua implantação através de uma

revolução capitaneada pelo partido, resolver as necessidades da massa de trabalhadores

pobres. Este jornal deveria ter circulação nacional e manter uma regularidade para atingir seus

objetivos. Para Lênin (p. 100): "enquanto não conseguirmos unificar nossa influência sobre o

povo e sobre o governo por meio da palavra impressa, continuará a ser uma utopia a

unificação de outras formas de influência, mais complexas, mais difíceis, mas também mais

decisivas". Ou seja, o jornal era um primeiro passo para unificar os movimentos

revolucionários de toda a Rússia.

O terceiro papel do jornal seria o de organizador político. Segundo Lênin (p. 102):

O papel do jornal não se restringe à difusão de idéias, à educação política e à conquista de aliados políticos. O jornal é mais do que um propagandista e um agitador coletivo, é também um organizador coletivo. [...] Com a ajuda do jornal e em relação a ele, aos poucos se construirá a organização permanente, que cuidará não apenas do trabalho local, mas também do trabalho geral e regular, que habituará seus membros a acompanhar os acontecimentos políticos com atenção, a avaliar seu significado e sua influência sobre os vários setores da população, a elaborar os métodos adequados que permitam ao partido revolucionário interferir nesses acontecimentos. Já a simples tarefa técnica, de garantir o abastecimento material do jornal e sua devida distribuição, obrigará a criar uma rede de agentes locais de um partido único, que manterão entre si um contato vivo, que conhecerão o estado geral das coisas, que se acostumarão a exercer regularmente funções parciais dentro do trabalho geral de toda a Rússia, que irão provando suas forças na organização de diversas ações revolucionárias.

Podemos observar que, para Lênin, o jornal cumpre um papel fundamental dentro de

um partido que almeja construir uma revolução. Afinal, além de instrumento de

conscientização e propaganda de idéias socialistas, o jornal tem a função de organizar a massa

em torno de si, para que essa massa venha a compor o partido. Essa concepção de jornal como

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organizador coletivo será retomada diversas vezes nos projetos de imprensa alternativa e

popular que estudaremos a seguir.

Já o pensamento de Antonio Gramsci coloca uma perspectiva um pouco diversa para

os meios de comunicação. A obra de Gramsci, escrita durante os tempos em que esteve preso,

possui uma característica de fragmentação. Em parte do livro Os intelectuais e a organização

da cultura, o pensador se debruça sobre diversos modelos de jornalismo e seus papéis na

disputa de hegemonia. Grosso modo, Gramsci não elege um formato único de publicação e

nem atrela sua existência a outros organismos sociais como os partidos políticos, como faz

Lênin. Gramsci enxergava os jornais como entidades autônomas, cujo papel principal era

contribuir para a formação de uma consciência crítica nacional e contra-hegemônica, atuando

paralelamente a outros mecanismos sociais. Para o autor (1995, p. 161-169), o chamado

"jornalismo integral" cumpre a função dialética de informar seu público, satisfazendo assim

suas necessidades, ao mesmo tempo em que cria e desenvolve essas necessidades, ampliando

assim seu público e área de influência. Segundo Gramsci, os diversos formatos de meios de

comunicação devem procurar atingir públicos diferentes, mas com a perspectiva em comum

de elevar o senso comum ao "pensamento coerente e sistemático".

3. Comunicação popular e alternativa no Brasil

Como dito anteriormente, existe uma dificuldade em precisar os conceitos de

comunicação alternativa e popular. A palavra alternativa pressupõe uma opção em relação a

algo, neste caso específico, à comunicação de massa. Mas, segundo esse critério, poderíamos

abrigar a comunicação produzida pelo povo dentro de guarda-chuva que é o conceito de

comunicação alternativa. Da mesma forma, podemos dizer que dentro do espectro da

comunicação popular se encaixam algumas das experiências da imprensa alternativa de

resistência à ditadura.

Diante das diferentes visões expressas por autores que se debruçaram sobre este tema

como Bernardo Kucinski, Regina Festa, Cicília Peruzzo, Carlos Eduardo Lins da Silva, entre

outros, procuraremos colocar uma série de características que nos ajudarão a definir, não de

maneira fechada e esquemática, as semelhanças e diferenças entre as duas modalidades.

Posteriormente, essas características nos auxiliarão a entender e precisar onde se encaixa o

jornal Brasil de Fato, objeto desta pesquisa, a partir das pistas aqui encontradas.

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Cicília Peruzzo, em sua obra Comunicação nos movimentos populares (1998, p. 113),

coloca que os estudos sobre comunicação popular, apesar desta não ser um fenômeno recente,

se intensificaram a partir dos anos 1970 e 1980. Este período coincide com a criação e o

ressurgimento de uma série de movimentos sociais populares, eminentemente urbanos, que

certamente procuraram desenvolver meios de comunicação como forma de auxílio e

divulgação de suas mobilizações. No artigo A pesquisa em comunicação popular e

alternativa, Christa Berger chega à mesma conclusão, ao observar que a partir do surgimento

de experiências alternativas na década de 1970, a universidade passa a se interessar em

pesquisá- las (1995, p. 15).

Berger observa também (p.16) a imprecisão dos conceitos utilizados para a

classificação das pesquisas sobre o tema, o que confirma a dificuldade de delimitação do

campo da comunicação popular. Em sua busca por esses estudos, encontrou classificações

como: "comunicação alternativa, comunicação das classes subalternas, comunicação

participativa, comunicação marginal, comunicação emancipadora, comunicação libertadora,

imprensa alternativa, imprensa nanica, imprensa popular, leitura crítica da comunicação".

Citando José Marques de Melo (1995, p. 16):

O principal desafio para a organização desta bibliografia foi a delimitação do campo da comunicação popular. Trata-se de um fenômeno que não é novo, mas que constitui novidade pela configuração assumida na conjuntura latino-americana dos anos 80. Revisando o espectro de instituições que atuam no setor da comunicação popular praticando, pesquisando ou estimulando verificamos que os matizes são bastante diferenciados. Donde se conclui que o conceito de comunicação popular mostra-se ainda impreciso, ambíguo, contraditório.

Segundo Christa Berger, a pesquisa em comunicação popular no Brasil é orientada por

quatro "linhas mestras". Consideramos importante listá- las aqui, pois nos dão pistas sobre os

espaços em que essa modalidade de comunicação se encontra (p. 17).

a. A que tem a imprensa como ponto de part ida. São pesquisas descritivas sobre jornais de operários, sindicais, populares e alternativos. b. A que busca uma referência teórica para descrever a comunicação popular. Trabalha conceitos de classes subalternas, hegemonia, contra-hegemonia e contra-informação, referenciados, principalmente, em Antonio Gramsci. c. A que trabalha a recepção das mensagens na perspectiva popular. d. A que relaciona a comunicação com os movimentos sociais.

A partir daí, podemos tirar algumas referências sobre o conceito de comunicação

popular. Para começar, podemos deduzir que se trata de algo que tem a ver com povo.

Entendemos por povo, a partir das definições de movimentos populares colocadas no primeiro

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capítulo deste trabalho, os representantes das classes subalternas, submetidos à dominação

econômica e política infringida pelas classes dirigentes. Por outro lado, Cicília Peruzzo nos

chama a atenção para o fato de que, em alguns momentos da conjuntura em que há uma

disputa que envolva muitas pessoas, como no já citado caso das "Diretas Já", o conceito de

povo abarca não só as classes subalternas, mas algo muito mais amplo, "quase toda a nação",

diz. "Povo, nesse sentido, é todo um conjunto lutando contra algo e a favor de algo, com

vistas ao interesse da maioria" (1998, p. 117).

Em relação aos estudos sobre comunicação popular, Peruzzo destaca três formas

distintas de enxergar o conceito de popular: o popular- folclórico, relacionado às "expressões

culturais tradicionais e genuínas do 'povo'”, o popular-massivo, circunscrito ao universo da

indústria cultural, inclusive trabalhos que tratam da questão das produções conhecidas como

"popularescas", e por último, a corrente que encaixa o popular dentro do universo dos

movimentos sociais, que se ocupa da comunicação "vinculada 'à luta do povo'" (p. 118-119).

Dentro desta última definição, que nos parece a mais acertada e que será utilizada em

nossa argumentação, a autora identifica duas visões sobre o potencial da comunicação

popular, que podem coexistir. A primeira concebe a comunicação popular como (p. 119):

Libertadora, revolucionária, portadora de conteúdos críticos e reivindicativos capazes de conduzir à transformação social; ela se concretizaria pelos meios 'alternativos', como contracomunicação da cultura subalterna, colocada em antagonismo com a comunicação de massa.

Já a segunda, mais flexível, enxerga que (p. 119):

A comunicação popular pode inferir modificações em nível de cultura e contribuir para a democratização dos meios comunicacionais e da sociedade, a cuja transformação imediata ela não consegue levar, por suas limitações e contradições e sua inserção numa grande diversidade cultural; e por concretizar-se em espaço próprio, ela não se contrapõe à comunicação massiva.

Um dos aspectos mais importantes para a definição da comunicação popular é o

entendimento de seu contexto, tanto em relação ao aparecimento das manifestações como

acerca dos espaços sociais e políticos que ocupa. Para Pedro Gilberto Gomes, em O

jornalismo alternativo no projeto popular (1990, p. 15), o que caracteriza a comunicação

popular é a sua "inserção num contexto alternativo que luta por transformações sociais",

sendo ela uma parte desse contexto, que pode ajudar a modificá-lo. O autor frisa que a

comunicação popular não tem um fim em si mesma, mas afirma que deve estar vinculada à

luta pela conscientização e emancipação das classes subalternas (p. 39).

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No caso brasileiro, as manifestações de comunicação popular começam a aparecer em

um momento histórico de dupla insatisfação social, primeiro em relação à precarização das

condições de vida de boa parte da população, a partir de elementos analisados no primeiro

capítulo deste trabalho, e segundo, em relação às restrições impostas pela ditadura militar à

liberdade de expressão, representada no campo da comunicação pelas diversas formas de

censura que tomaram conta dos meios de massa. Dessa forma, segundo Peruzzo (p. 115):

Criaram-se instrumentos 'alternativos' dos setores populares, não sujeitos ao controle governamental ou empresarial direto. Era uma comunicação vinculada à prática de movimentos coletivos, retratando momentos de um processo democrático inerente aos tipos, às formas e aos conteúdos dos veículos, diferentes daquela estrutura então dominante da chamada 'grande imprensa'. Nesse patamar, a 'nova' comunicação representou um grito, antes sufocado de denúncia e reivindicação por transformações, exteriorizado, sobretudo em pequenos jornais, boletins, alto-falantes, teatro, folhetos, volantes, vídeos audiovisuais, faixas, cartazes, pôsteres, cartilhas etc.

Podemos tirar daí que a comunicação popular se dá em concomitância à luta do povo,

obedecendo aos picos e refluxos dos movimentos populares que estimulam o seu

desenvolvimento, expressando assim, um contexto de luta e, diferencialmente da mídia de

massa, não encobrindo os conflitos sociais. Especificamente nos contextos brasileiro e latino-

americano, a comunicação popular se desenrola num espaço de disputa da população por

melhores condições de vida e fim da opressão, apresentando-se com uma forma de, segundo

Cicília Peruzzo (p. 125):

Corresponder às necessidades de expressão e organização desse movimento de negação e, ao mesmo tempo, de construção de uma sociedade nova. Está articulada a um processo de conscientização-organização-ação mais amplo de setores de classes subalternas.

Assim, a comunicação popular cumpre um papel não só de expressão, mas também de

reivindicação e denúncia, além de contribuir para a mobilização do povo, para a elevação de

seu nível de consciência sobre as causas das más condições de vida. Isso acontece por meio

do acesso à informação contextualizada, já entrando na questão do conteúdo, intimamente

ligada ao contexto onde a comunicação popular se insere.

A comunicação popular é vinculada aos interesses das classes subalternas,

representando uma iniciativa democratizante ao dar voz aos segmentos sociais que não

encontravam espaço de expressão nos grandes meios de massa. Segundo Cicília Peruzzo (p.

126), é democrática também por "transmitir informações a partir das bases, ser constituída

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pelo ambiente onde se situa e ajudar a constituí- lo; participar na manifestação dos conflitos

entre as classes sociais nos campos dos interesses e da hegemonia"

É preciso não perder de vista que o conceito de comunicação popular compreende

processos variados, com diferentes características. Envolvem desde pequenos meios a grandes

iniciativas, que não obedecem a uma metodologia uniforme e, apesar de estarem muitas vezes

ligadas aos movimentos sociais, não pertencem somente ao seu universo, afinal, nem todo o

povo se encontra organizados em movimentos. (PERUZZO, 1998, p. 122). Em relação a essa

questão, Pedro Gilberto Gomes ressalta que não são os meios técnicos que definem as

iniciativas de comunicação como populares, nem somente os conteúdos, mas sim o conjunto

de seu "processo de produção, circulação e uso das mensagens" (1990, p. 41).

Carlos Eduardo Lins da Silva (1981, p. 63) identifica dois fatores determinantes para a

conceituação da comunicação popular: a divisão da sociedade em classes sociais e a utilização

de um meio periódico que defenda os interesses das classes trabalhadoras. Em relação à

produção, o autor isola três formas distintas. A primeira diz respeito às publicações que

defendem os interesses das classes trabalhadoras, mas não são produzidas por elas e nem a

elas se destinam. A segunda forma é a produção de publicações que defendem as classes

trabalhadoras, e, apesar de não serem produzidas por elas, são a elas destinadas. E a terceira

compreende publicações feitas e consumidas pelas classes trabalhadoras, sendo obviamente

porta-vozes de seus interesses. Apesar das diferenças, o fator que as une é a linha editorial

voltada para as necessidades e os interesses das classes subalternas.

O povo é protagonista da comunicação popular, mas tanto as produções que se dão no

âmbito das classes subalternas, como as que se dirigem a elas e são feitas por outros

segmentos sociais, "quebram a lógica da dominação e se dão não a partir de cima, mas a partir

do povo, compartilhando dentro do possível seus códigos" (PERUZZO, 1998, p. 127).

Entre os aspectos positivos da comunicação popular, encontramos: a socialização de

conhecimentos que se dá entre os profissionais especializados que se propõem a trabalha r com

essa forma de comunicação; a conquista de espaços, tanto para os movimentos nos meios

massivos como a consolidação de seus próprios instrumentos; o desenvolvimento de um

conteúdo crítico que prima pela descrição abrangente e contextualizada da realidade, evitando

assim a fragmentação e contribuindo para a mobilização do povo por mudanças; a

manutenção de uma autonomia em relação às instituições públicas e privadas; a reelaboração

de valores e a busca da igualdade entre emissor e receptor; sua constituição como serviço de

interesse público; a descoberta de identidades mais próximas do povo, sem apelar para a

espetacularização das informações; o registro da história das mobilizações das classes

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subalternas; a democratização dos meios de comunicação e finalmente, a conquista da

cidadania. Logicamente a comunicação popular não está sozinha na tarefa de proporcionar a

efetivação de todas as questões colocadas acima, mas é capaz de contribuir uma vez que

esteja inserida num contexto mais amplo formado pelos movimentos sociais (p. 158).

Uma das premissas da comunicação popular é a manutenção ao menos de uma

perspectiva de igualdade entre emissor e receptor. Peruzzo (p. 142) coloca que a participação

popular na comunicação pode compreender vários níveis distintos de envolvimento, desde a

transmissão de mensagens até a definição da linha política, do planejamento, chegando ao

compartilhamento de todo o processo de gestão do meio.

Sabemos que na prática isso nem sempre ocorre, pois como vimos acima,

comunicação popular não é sinônimo de participação. Apesar de existir em diversos casos

concretos, a autora observa que em boa parte dos meios a participação do povo ainda é restrita

à transmissão de mensagens, como depoimentos e entrevistas, e não efetivada em todos os

níveis do processo. Um risco dessa conduta é a reprodução das estruturas autoritárias

existentes na sociedade de classes, quando, por exemplo, um grupo toma para si a tarefa de

produzir e interpretar as necessidades de informação dos receptores. Essa prática é encontrada

inclusive em alguns movimentos sociais (p. 141).

Partindo para a análise da prática da comunicação popular, verificaremos a seguir

algumas das limitações e dificuldades enfrentadas por suas experiências, apontadas por Cicília

Peruzzo (p. 122) e que se reproduzem também nas iniciativas atuais. A primeira delas é, com

certeza, a abrangência. Os meios atingem parcelas muito restritas da população, normalmente

aqueles que já estão organizados em movimentos ou ao menos conscientizados acerca dos

problemas que afligem as classes trabalhadoras. Vários aspectos podem explicar essa

dificuldade dos meios populares em chegar a parcelas mais amplas da sociedade, entre elas

temos a tiragem reduzida, freqüentemente por conta dos custos, a inadequação dos meios, ou

seja, a opção por determinado tipo de veículo sem a reflexão sobre sua pertinência para os

objetivos que se quer alcançar e por último aquele que é listado entre boa parte dos autores

com o "gargalo" da comunicação popular, a distribuição. Veremos como isso ocorre de forma

mais detalhada.

Em relação à inadequação na escolha do veículo mais apropriado para cada realidade,

Cicília Peruzzo coloca que (p. 149):

É comum a utilização de algum tipo de veículo de comunicação sem maiores preocupações com sua apropriação ao público alvo. Chega-se às vezes ao absurdo de se produzir um jornal impresso destinado a uma população de maioria analfabeta ou

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a decidir-se por ele quando as condições materiais e de mobilização participativa são mais favoráveis ao jornal mural ou a um sistema de auto-falantes.

Da mesma forma, muitas vezes por escassez de recursos, um meio importante de

comunicação é subutilizado ou não utilizado. A autora observa (p. 150) que "boletins,

panfletos, cartazes e cartas são bastante explorados", enquanto os instrumentos que

demandam elaboração técnica, como os auto-falantes, por exemplo, são menos utilizados.

A carência de recursos financeiros parece ser uma constante nas experiências de

comunicação popular. Em muitos casos a população não tem dinheiro para adquirir os

veículos, ou nem mesmo para se deslocar ao encontro do grupo que produz um jornal popular.

A questão da auto-sustentação da comunicação popular é um ponto muito discutido, pois em

muitos casos mostra-se fator determinante para o insucesso de uma série de iniciativas.

Sabemos que é complicado manter as produções somente com contribuições do grupo ou

comunidade que está ao seu redor. Para Peruzzo (p. 153), "a saída costuma estar em conseguir

verbas mediante projetos apresentados a instituições financiadoras ou na arrecadação de

fundos com anúncios comerciais, festas populares, donativos". O cerne dessa questão é a

contradição que existe entre a tentativa de manter produções que fujam às regras mercantis da

comunicação de massa, mas que ao mesmo tempo necessitem de dinheiro para subsistir.

Não podemos esquecer-nos das diversas tentativas de uso das experiências de

comunicação popular para fins eleitoreiros e/ou particulares. Cicília Peruzzo observa um

crescimento dessa tendência (p. 154).

Em relação ao conteúdo, a autora também constata (p. 151) que comunicação popular

apresenta uma série de limitações. Uma crítica constante é o fato de suas produções serem, em

alguns casos, extremamente doutrinárias, abusando de uma linguagem não natural,

panfletária, repleta de chavões, buscando a conscientização do povo a qualquer custo. Existe

um abuso de temas políticos, insistência pela abordagem dos mesmos assuntos e pouco ou

nenhum espaço para o entretenimento. Muitas vezes, a adoção de uma linguagem pesada e

distante da realidade do receptor, demonstra a tentativa de instrumentalização da comunicação

popular negando em parte suas características mais profundas de ligação com o povo. A

comunicação popular é vista somente como um meio de conscientização e transformação da

sociedade, sem a devida atenção à riqueza do processo, sua produção.

Muitos colocam que a insistência de parte dos veículos da comunicação popular na

adoção de uma linguagem restritiva e a não abertura de espaço para aspectos importantes da

vida do povo, como o futebol, reforçam a demanda pelas produções da mídia de massa. Trata-

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se de certa forma de uma tentativa de diferenciação dos veículos populares em relação aos

massivos. Para Peruzzo (p. 132), a "tendência a repudiar a mídia de massa", pode ter

contribuído para a opção por uma comunicação popular pouco "atraente", que praticamente

ignora aspectos como o "entretenimento, lazer, amenidades, humor", fatores que integram "o

dia-a-dia e os anseios humanos e das massas". Existe inclusive uma tendência, observada

tanto nos estudos que contrapõem a comunicação popular à massiva, quanto no discurso dos

próprios produtores, que tende a enxergar a comunicação popular como pura, ligada às

genuínas manifestações da cultura do povo (p. 128), horizontal, democrática e plural,

enquanto as produções massivas são despolitizadoras, desmobilizadoras, estimuladoras do

consumo e desvirtuadoras da realidade. Não se trata de invalidar essas colocações, mas

avaliamos que a caracterização demanda um maior aprofundamento. Concordamos com a

autora que aponta a interligação dos dois fenômenos, ambos mediados pela cultura, e por isso,

impossíveis de ser avaliados como opostos ou isolados (p. 135). Além disso, para o receptor

comum, não existe esse antagonismo (p. 128).

Para Peruzzo, "os meios de comunicação popular, apesar de sua importância e de seu

significado político, não chegam a se colocar como forças superadoras dos meios massivos".

Os meios da comunicação de massa cumprem um papel distinto no campo do entretenimento

e velocidade de informação, enquanto os populares exploram caminhos em que os meios de

massa não conseguem penetrar, principalmente se tratando de movimentos sociais (p. 131).

Em suma, possuem funções diferentes.

Por outro lado, não se trata de fechar aos olhos aos problemas e circunstâncias que

fazem parte dos meios de comunicação massiva. Segundo Peruzzo (p. 131):

Há que se reconhecer o grande poder da mídia e sua manipulação, prioritariamente, a serviço dos interesses das classes dominantes, mas nem por isso ela deixa de dar sua contribuição ao conjunto da sociedade. Quando quer, divulga campanhas e programas educativos e outros de elevado interesse público. Por outro lado, ao informar, instantaneamente, sobre fatos que ocorrem em qualquer parte do mundo, também propicia entretenimento, preenchendo, assim, necessidades que os meios populares não se propõem e nem conseguem satisfazer. Temos que levar em conta que ela vem sendo aceita tal como é pela maioria da população, o que inclui as classes subalternas. Seu conteúdo, seus formatos e sua linguagem têm muito a ver com o universo cultural de segmentos receptores.

Veremos adiante, ao falarmos sobre a comunicação alternativa, que no contexto

específico de construção de meios de resistência à ditadura militar, essa tentativa de

contraponto aos meios da comunicação de massa efetivamente aconteceu.

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Como colocamos no início do capítulo, muitos autores têm descrito a comunicação

popular como alternativa. O termo comunicação alternativa pode causar alguma confusão por

compreender elementos como a "imprensa operária, sindical, partidária e popular"

(PERUZZO, 1998, p. 19). Apesar de pertencer ao campo da comunicação alternativa, por não

funcionar em todos os aspectos da mesma forma que a comunicação massiva – representando

assim uma opção – o termo comunicação alternativa é correntemente utilizado de outra

maneira. Cicília Peruzzo nos explica que (1998, p. 120):

No Brasil, a expressão "imprensa alternativa" tem recebido conotação específica, entendendo-se por ela não o jornalismo popular, de circulação restrita, mas os periódicos que se tornaram uma opção de leitura crítica, em relação à grande imprensa, editorialmente enquadrada nas regras da censura imposta pelo regime militar, mas confortavelmente assentada na condição de monopólio informativo. Também chamada de "nanica", foi lançada no mercado a partir da década de sessenta, para tornar-se mais freqüente e variada nos anos setenta.

Para Bernardo Kucinski, jornalista egresso de várias experiências da imprensa

alternativa e autor de um relevante trabalho de pesquisa sobre o tema, o livro Jornalistas e

revolucionários, o termo imprensa alternativa mostra-se mais adequado do que "nanica", que

em sua opinião expressa "uma pequenez atribuída [aos meios] pelo sis tema a partir de sua

escala de valores e não dos valores intrínsecos à imprensa alternativa" (2003, p. 13). Segundo

o autor:

O radical de alternativa contém quatro dos significados essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 1960 e 1970, de protagonizar as transformações sociais que pregavam.

Sérgio Caparelli, em seu livro Comunicação de massa sem massa, concorda com

Kucinski (1986, p 43-45) ao analisar os diferentes nomes que a comunicação de resistência à

ditadura militar recebeu. Para ele, o termo "nanica" é insuficiente, pois não indica o contexto

de surgimento dessa imprensa, além de causar confusão ao remeter a algo pequeno. Para o

autor, jornais do interior do Brasil e de capitais fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Brasília

poderiam receber a mesma alcunha, apesar de funcionar dentro da mesma lógica dos grandes

meios empresariais. Tanto o termo "imprensa política" como "jornalismo opinativo" também

não solucionam a questão, pois escamoteiam o fato de que todo produto jornalístico é político

e opinativo. O fundamental nesse raciocínio é demonstrar que, ao classificar a imprensa

alternativa de política e ou opinativa, a ideologia dominante nada mais faz do que tentar

naturalizar suas posições, como se essas fossem neutras e as outras, opositoras, fossem as

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ideológicas. Ou seja, ao caracterizar seu contraponto – a imprensa alternativa – dessa forma,

os grandes meios tentam reforçar sua posição de isenção, objetividade e imparcialidade,

elementos que não existem da forma como tentam fazer com que o público acredite. Por fim,

Caparelli demonstra que alternativo é o termo mais apropriado, pois "indica uma relação com

o outro", no caso, a imprensa massiva.

Seguindo esse raciocínio, encontramos um primeiro aspecto importante na

diferenciação de perspectivas entre a comunicação popular e a alternativa. A segunda

colocou-se efetivamente como um contraponto à comunicação massiva. Esse contraponto

pode ser analisado a partir de diversos aspectos, como o contexto de seu surgimento, sua

forma de organização e produção, a propriedade, o conteúdo diferenciado, a forma de

comercialização e distribuição, a relação com o leitor, a origem de seus atores, a composição

social de seus grupos produtores, seu público alvo, a relação com o Estado, suas formas de

financiamento, suas bandeiras e os interesses que representa. A partir do detalhamento dessas

características, poderemos enxergar com mais clareza de que forma a comunicação alternativa

se diferencia da popular e lógico, seus pontos em comum.

O primeiro ponto é a observação feita por Christa Berger (2003, p. 18) de que as

manifestações da imprensa alternativa mereceram mais estudos do que as outras vertentes do

que podemos chamar de forma mais ampla, de comunicação contra-hegemônica.

Ironicamente, o primeiro estudo que procurou sistematizar as características da imprensa

alternativa no Brasil foi elaborado pelo Centro de Informações do Exército, CIEX, durante a

ditadura militar. Citada tanto por Christa Berger no artigo A pesquisa em comunicação

popular e alternativa, como por Sérgio Caparelli em seu livro, Comunicação de massa sem

massa, a pesquisa chegou à conclusão de que a imprensa alternativa preencheu o vazio de

conteúdo deixado pela grande imprensa sob censura, enfatizando em suas produções a crítica,

análise e denúncia. Sua formação se deu a partir de grupos de jornalistas que, descontentes ou

impossibilitados de trabalhar nos grandes meios de comunicação, procuraram montar

pequenos jornais, alguns em forma de cooperativa, onde pudessem exercer a contestação ao

regime militar (CAPARELLI, 1986, p. 46).

Em relação ao contexto de seu surgimento, Sérgio Caparelli destaca que, apesar de ter

aparecido revitalizada durante a ditadura militar, ou seja, no momento em que havia um

bloqueio maior de informação por parte do poder, o fenômeno da comunicação alternativa

não se restringe ao período após o golpe de 1964 (p. 47). Jornais com características

semelhantes aos alternativos da década de 1970 eram comuns no período anterior à

transformação da imprensa em atividade industrial, quando os custos de produção

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aumentaram, favorecendo o crescimento dos empreendimentos de maior porte e dos

monopólios (p. 53). Porém, a maior parte das produções surgiu mesmo durante o regime

militar, experimentando seu auge durante um dos períodos mais repressivos da história do

Brasil, o governo do general Emilio Garrastazu Médici entre 1970 e 1974 (p.47). Assim,

podemos verificar que as manifestações da imprensa alternativa surgem em um contexto de

restrição das liberdades e direitos individuais, em que o poder estabelece um controle direto

sobre o sistema de comunicação, causando o recrudescimento das atividades da grande

imprensa, que funcionava sob censura imposta diretamente ou autocensura. Para Sérgio

Caparelli (p. 47), a imprensa alternativa "significou a criação de canais de informação para

expressão de segmentos da classe média e para ela, visto que os canais de expressão do

trabalhador brasileiro, que não lê jornais, permaneceram interrompidos" Para Kucinski (2003,

p. 16):

A imprensa alternativa surgiu da articulação de duas forças igualmente compulsivas: o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos à grande imprensa e à universidade. É na dupla oposição ao sistema representado pelo regime militar e às limitações à produção intelectual-jornalística sob o autoritarismo que se encontra o nexo dessa articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos.

Partindo do contexto, vamos explicitar um pouco mais um aspecto já tocado pelas

citações acima, a origem e formação dos protagonistas da comunicação alternativa, assim

como de seu público leitor. Sabemos que as articulações em torno dos meios se davam na

forma de frentes, que uniram jornalistas, intelectuais e representantes de movimentos sociais e

partidos clandestinos, freqüentemente os dirigentes, em torno da perspectiva de construir

canais de informação e denúncia diante do autoritarismo da ditadura militar. Ou seja, os meios

de comunicação alternativos eram formados eminentemente por membros das classes médias

da sociedade e acabavam se dirigindo a um público parecido com seus produtores. Segundo

Sérgio Caparelli, o público da imprensa alternativa se concentrava nas capitais, reproduzindo

a situação da grande imprensa, e normalmente eram pessoas já expostas a outros canais de

informação. Nesse aspecto, a imprensa alternativa diverge sensivelmente da popular, que,

pode até ter entre seus quadros profissionais egressos das camadas médias, mas se dirige

basicamente às classes subalternas.

O desafio custou caro aos que se propuseram a enfrentar as arbitrariedades e a

violência cometidas pelo aparelho repressivo. Veremos mais adiante, ao comentar um pouco

da história desses meios, que tanto seu patrimônio físico como seus participantes foram

vítimas de uma série de tentativas de calar a imprensa alternativa. Por enquanto, vamos nos

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limitar a comentar que a censura, que atingia os grandes meios de comunicação, sendo que

boa parte deles se colocou a favor do golpe militar e não agia no sentido de propor mudanças

na estrutura da sociedade (CAPARELLI, 1986, p. 45), foi ainda mais implacável com os

meios alternativos. Nas palavras de Kucinski (2003, p. 14): "O aparelho militar distinguia os

jornais alternativos dos demais, perseguindo-os e submetendo os que julgava mais

importantes a um regime especial, draconiano, de censura prévia".

Se a censura era um aspecto extremamente restritivo aos órgãos de comunicação

massiva, o que dizer de seu impacto nos empreendimentos de menor porte? A estrutura e a

organização não eram exatamente pontos fortes das produções alternativas. A primeira

questão que se coloca é a do financiamento, dificuldade que seus meios dividem com as

expressões da comunicação popular. Sabemos que os grandes meios tiram seu sustento

majoritariamente da venda de espaços publicitários, os anúncios. Também é ponto pacífico

que os meios empresariais têm compreensões ideológicas próximas às de seus anunciantes,

dividindo interesses e visões de mundo. Para Sérgio Caparelli (1986, p. 64), a dificuldade de

um meio alternativo conseguir anúncios reside no fato de ao procurar trazer ao público "os

mecanismos do poder, através da crítica ou da denúncia, simplesmente passam a não receber

inversões publicitárias".

A venda dos jornais alternativos em bancas era muito prejudicada pelos esquemas

vigentes de distribuição. Segundo Kucinski (2003, p. 18), poucas produções conseguiram

atingir tiragens grandes o suficiente para cobrir as despesas da distribuição em bancas,

atividade monopolizada desde então por grandes distribuidoras. Dois outros aspectos devem

ser ressaltados em relação à sustentação financeira da imprensa alternativa. A censura

contribuiu de maneira importante para o fracasso de alguns projetos, já que em alguns casos

números inteiros chegaram a ser apreendidos, quando não eram retalhados pela censura prévia

e tinham que ter suas reportagens substituídas às pressas, com prejuízo da qualidade. O

segundo aspecto advém da mentalidade dos próprios jornalistas que participavam dessas

experiências, que tinham poucas noções de administração de custos e manutenção de

empresas. Segundo Kucinski (2003 p. 18), os grupos se constituíam em "coletivos informais,

cooperativas, ou em sociedades por cotas, freqüentemente sem definição precisa das cotas".

As questões de administração e viabilidade econômica dos projetos eram em geral pouco

discutidas (2003, p. 18). Muitas vezes os jornais eram apoiados financeiramente por

jornalistas que continuavam trabalhando na grande imprensa e por artistas, "que organizavam

shows para angariar recursos" (2003, p. 20).

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Se por um lado primavam pela desorganização administrativa, por outro, as

experiências de comunicação alternativa defendiam propósitos democráticos, como decisões

tomadas em assembléias, horizontalidade, formação de conselhos amplos para a discussão de

propostas, e autonomia dos meios em relação a partidos e demais organizações. Nesse

sentido, possuíam aspirações semelhantes às dos meios populares. Apesar disso, em ambos os

casos as tentativas de dirigismo e aparelhamento eram relativamente comuns. Para Kucinski

(2003, p. 19), os jornais alternativos eram constantes alvos de disputas entre grupos e partidos

clandestinos que lutavam entre si pela hegemonia das publicações. Isso aconteceu inclusive

com projetos que nasceram tendo a questão da autonomia como pilar.

Para o autor, o que estava em jogo com essas disputas era a concepção do papel do

jornal, vista de uma forma pelos jornalistas que se envolviam nos projetos com o objetivo de

construir publicações autônomas, e de maneira distinta pelos dirigentes dos partidos que se

aproximavam dos mesmos para instrumentalizá- los e voltá- los para suas lutas específicas.

Trata-se de um antagonismo de visões que encontramos na obra de pensadores de esquerda

que se debruçaram sobre o papel do meio de comunicação na disputa de hegemonia na

sociedade, como Antonio Gramsci e Vladimir Lênin. Para Bernardo Kucinski (2003, p. 19-

20):

Havia entre as concepções vigentes uma forte inspiração gramsciana, entendendo os jornais como entidades autônomas, com o principal propósito de contribuir para a formação de uma consciência crítica nacional. [...] Todos os principais jornais procuravam montar um conselho editorial composto por personalidades de prestígio com a finalidade de legitimar a linha editorial, ampliar a base de sustentação dos jornais ante as investidas da repressão e identificá-lo com correntes expressivas de opinião.

Em contrapartida, a visão leninista muitas vezes suplantou a inspiração gramsciana e

direcionou os meios para outros caminhos. Segundo Kucinski (2003, p. 20):

O organismo deliberativo dos jornais era em geral estabelecido segundo o princípio da frente jornalística, reunindo jornalistas intelectuais e ativistas de vários partidos clandestinos em torno de uma plataforma comum. Mas na cultura política de cada partido ainda predominava a concepção leninista que entendia o jornal como instrumento de partido. E cada grupo procurava ganhar posições na frente jornalística, para fazer dele o seu instrumento de poder, mesmo ao atropelo dos mecanismos pré-estabelecidos. Era como se houvesse um consciente gramsciano, expresso nos programas e estatutos, compartilhado principalmente por jornalistas independentes e intelectuais, e um inconsciente leninista trazido pelo ativismo político, que acabava se impondo.

Em seu livro Jornalistas e revolucionários, Kucinski dá ênfase à questão da

aproximação de grupos políticos e da partidarização de jornais que se reivindicavam

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autônomos. Trata-se de aspecto tão relevante para sua reflexão, que o autor atribui o

fechamento de grande parte das iniciativas de imprensa alternativa às disputas e rachas que a

imposição de uma visão leninista sobre o papel do jornal proporcionou.

Por fim, há a questão do conteúdo e dos interesses. Cada iniciativa procurou seus

meios específicos e formas de abordagem para os temas escolhidos. Kucinski identifica duas

tendências principais, os de cunho mais "político" se serviam dos ideais de valorização dos

aspectos nacionais e populares, tendo como base "o marxismo vulgarizado dos me ios

estudantis nos anos de 1960". Apesar de dogmáticos – crítica semelhante aos conteúdos dos

meios populares – foram os únicos a perceber alguns aspectos menos evidentes das políticas

da ditadura militar, como o endividamento externo progressivo e o aprofundamento das

desigualdades sociais. Procuravam mostrar as múltiplas faces do Brasil e estamparam em suas

páginas bóias-frias e membros de movimentos populares. Entre as discussões recorrentes

estavam os temas clássicos da esquerda e os caminhos da oposição, ou seja, temática menos

localizada e mais elitizada que a dos meios populares (p. 14). A segunda leva de jornais tinha

seu mote voltado para a questão comportamental, inspirados pelos movimentos de contra-

cultura norte-americanos. Eram tão ou mais questionadores da ordem vigente que os

"políticos", pois causavam a ira do regime ao desafiar padrões de comportamento e moral

estabelecidos (p. 14-15). Para Caparelli (1986, p. 47), “o estilo, o rebuscamento das

expressões, os assuntos, o conteúdo, enfim, faziam da imprensa alternativa de intelectuais, ou

atingindo apenas a vanguarda dos movimentos sociais”.

Com a ditadura caminhando para o fim, a abertura política e a ascensão dos

movimentos sociais a partir do final dos anos 1970, acontece o refluxo da imprensa

alternativa. Para Sérgio Caparelli (p. 47), a abertura de brechas no regime e a reorganização

dos movimentos fazem a comunicação popular, dos trabalhadores, vir à tona, enquanto a

alternativa reflui. Simultaneamente, a abertura para a atuação das oposições sindicais e dos

grupos e partidos clandestinos fez com que florescessem iniciativas de comunicação partidária

e sindical, hoje vistas como herdeiras da comunicação alternativa praticada no Brasil durante

os anos 1970 (PERUZZO, 2003, p. 121).

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CAPÍTULO III – O SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

Nesta parte do trabalho, abordaremos alguns aspectos históricos e operacionais do

setor de comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Observamos no

capítulo I que o MST alcançou um grau elevado de organização, sendo hoje um movimento

de abrangência nacional. Vimos também que uma das formas encontradas para qualificar a

luta do movimento e preparar seus quadros em várias direções foi dividir a atuação interna do

MST em setores. Assim, os militantes do movimento se organizam internamente por áreas

que cuidam das áreas de educação, formação, mobilização, saúde, finanças, relações

internacionais, produção e claro, comunicação.

A dedicação deste capítulo à atuação do setor de comunicação do MST se justifica,

pois a experiência acumulada pelos militantes que cuidam de seu funcionamento foi utilizada

durante o processo de gestação do projeto do jornal Brasil de Fato, cuja trajetória será

analisada. Grosso modo, com o crescimento da atuação do setor, o MST passou a refletir

sobre o papel da comunicação em sua estrutura organizativa, além de criar um departamento

para lidar com os meios de comunicação de massa. Embora ainda carregue traços da visão da

comunicação como instrumento secundário de auxílio às lutas, muitas vezes ignorando o

potencial de mobilização que esta carrega e a enxergando somente como ferramenta de

formação e propaganda, o MST tem fortalecido suas convicções acerca da importânc ia da

comunicação na disputa de poder dentro da sociedade.

Este item sobre o setor de comunicação do MST tratará fundamentalmente de três

temas. Primeiro, discorreremos sobre a relação dos movimentos sociais com a grande mídia

de forma mais ampla. Este debate introduzirá o histórico que faremos sobre a relação

específica entre o MST e os meios de comunicação de massa brasileiros e a tentativa do

movimento de encontrar brechas para tornar públicas as suas reivindicações na grande mídia,

por meio do fortalecimento de um trabalho de assessoria de imprensa. Em terceiro lugar,

falaremos sobre o funcionamento do setor propriamente dito, e do esforço de construção de

meios próprios de comunicação sigam os interesses e divulguem as ações do movimento.

Consideramos importante colocar que as observações contidas neste item decorrem de

minha atuação como militante e, posteriormente, como jornalista contratada dentro do setor

de comunicação do MST. Algumas informações foram obtidas por meio do estudo de

documentos e mais especificamente, de textos de formação técnica e política elaborados pelo

próprio movimento para municiar as discussões do setor. É necessário ressaltar que muitas

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vezes esses textos não trazem datas ou referências sobre seus autores, dificultando um

trabalho mais completo de citação.

1. Movimentos sociais e meios de comunicação de massa

Pudemos verificar no capítulo II que, assim como os meios de comunicação popular e

alternativa possuem interesses, defendem visões de mundo e contribuem para a discussão de

projetos de sociedade, o mesmo acontece com os meios massivos. Apesar de procurarem

manter uma aura de objetividade e imparcialidade, seus interesses e compromissos estão

voltados para a manutenção dos sistemas de dominação perpetuados pelo capitalismo,

inclusive participando ativamente desse sistema como empresas geradoras de lucro através da

venda de informação-mercadoria.

Antonio Gramsci caracterizou os meios de comunicação hegemônicos como aparelhos

de dominação do Estado, ou seja, instrumentos criados para a manutenção do status quo.

Esses instrumentos tiveram seu poder de influência na sociedade aumentado nas últimas

décadas, a partir de processos levados a cabo mundialmente pela expansão do capitalismo

com a globalização e a adoção de um conjunto de medidas econômicas e políticas conhecido

como neoliberalismo. Nos países periféricos, essas medidas foram em grande parte

responsáveis pelo refluxo dos movimentos sociais reivindicatórios da década de 1990, como

pudemos observar no capítulo I. Indo além da análise localizada, podemos afirmar que os

efeitos da expansão do neoliberalismo puderam ser sentidos em todos os países do globo, a

partir da redução de gastos estatais com políticas sociais (nos locais em que chegaram a ser

implantadas), aumento dos índices de desemprego e violência urbana.

Paralelamente a esses processos, o mundo passou por uma revolução tecnológica a

partir da introdução dos computadores e da internet no cotidiano de um grande número de

pessoas. O crescimento do fluxo de informação e a demanda por notícias cada vez mais

velozes e em tempo real deram novo fôlego à indústria de produção de bens simbólicos – a

chamada indústria cultural, à qual pertencem as produções da comunicação massiva. O

resultado deste processo, colocado de forma resumida por Maria da Glória Gohn no livro

Mídia, terceiro setor e MST, é a ampliação de poder da mídia na sociedade, fazendo com que

ela passe a funcionar mais efetivamente como mecanismo de controle, um verdadeiro "quarto

poder" (2000, p. 9). Gohn define o termo mídia como (p. 19):

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O conjunto de instituições , negócios ou organizações que produz e transmite informações para determinados públicos [...] A mídia inclui jornais, rádio, estações de televisão (canais regulares e cabo), magazines, boletins, mídia computadorizada online, mídia interativa via computador, filmes e vídeos.

Atualmente, a mídia pode ser compreendida como campo de poder e espaço de

sociabilidade. Gohn sustenta que, a partir dos anos 1990, os meios de comunicação tomaram

um espaço muito significativo na formação da opinião pública e na influência em

acontecimentos conjunturais, exercida tradicionalmente por instituições como os partidos,

movimentos sociais, sindicatos etc. A autora acredita que a perda do enfoque crítico e a

aceitação de valores disseminados por grupos economicamente poderosos, transformaram o

papel da mídia, de contestadora para divulgadora do consenso em torno do neoliberalismo

(2000, p. 20).

Apesar de fazerem parte do "establishment econômico e financeiro", defendendo

assim interesses contrários aos dos trabalhadores organizados em movimentos populares, os

meios de comunicação cumprem um papel importante junto às organizações, contribuindo

muitas vezes para seu crescimento, a partir da divulgação de suas lutas e, em alguns casos,

para sua destruição, a partir da construção que fazem de sua imagem (GOHN, 2000, p. 22).

Muitas vezes, as representações criadas pelos meios massivos de comunicação são as

únicas formas de divulgação das mobilizações dos movimentos sociais para um público mais

amplo, já que os meios criados no âmbito desses movimentos costumam ter abrangência mais

restrita. Atualmente, podemos medir o grau de influência e expressividade de um movimento

social pelos fatos e imagens que conseguem produzir e veicular nos grandes meios de

comunicação, até porque os movimentos costumam utilizar esse "prestígio" como forma de

pressionar os órgãos estatais. Os meios comerciais, obedecendo a seus interesses de classe,

logicamente não cedem grandes espaços para que os movimentos imponham suas

reivindicações e explicitem seus objetivos. Inclusive, boa parte de suas mobilizações é

freqüentemente ignorada pelos meios massivos como estratégia para torná- los invisíveis

diante do público. Para Maria da Glória Gohn (2000, p. 23):

A mídia tem retratado os movimentos segundo certos parâmetros político-ideológicos dados pela rede de relações a que está articulada. Os interesses políticos e econômicos formatam as considerações e as análises que configuram a apresentação das informações, denotando um processo onde a notícia é construída como mensagem para formar uma opinião pública sobre o acontecimento, junto ao público consumidor, e não para informar este mesmo público.

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Christa Berger, em seu livro Campos em confronto (2003, p. 41- 42), aprofunda a

questão da manipulação exercida pelos grandes meios na cobertura de mobilizações sociais,

normalmente escamoteada atrás dos falsos princípios da imparcialidade jornalística. Coloca

também que, por outro lado, os movimentos não podem prescindir de sua relação com a mídia

massiva:

Todo leitor que acompanhou a cobertura de alguma reivindicação social na qual esteve envolvido – seja um professor em greve, um colono sem-terra, um funcionário público de instituição em vias de privatização – sabe por experiência que o jornal não foi isento. Pode até ter trazido as duas versões, mas a legenda na foto, o número de manifestantes, a palavra que designa o movimento, tomam posição. E a posição negada em nome do princípio liberal do jornalismo – a imparcialidade – é que confirma a que veio a imprensa. É consenso sabê-la arauto da perspectiva histórica da burguesia e, assim, sustentação do capitalismo. A perspectiva dialética ensina que nesta dinâmica, no entanto, existem contradições: ela é também a única possibilidade de um movimento social fazer ouvir suas queixas e a conquista da democracia passa pela sua aprovação.

Trata-se de uma contradição enfrentada diariamente pelos movimentos, pois ao

mesmo tempo em que precisam dos grandes meios para atingir um público amplo e pautar

suas reivindicações para o conjunto da sociedade, percebem que dificilmente encontrarão

espaços para a contextualização de suas lutas e divulgação de suas mobilizações do ponto de

vista de seus interesses na mídia massiva. Diante deste quadro, os movimentos possuem duas

linhas de atuação. A primeira seria a busca por brechas para expor suas demandas e

necessidades ao grande público dos meios de comunicação de massa. Essa busca significa

tanto a profissionalização e treinamento de pessoas que tentarão estabelecer relações mais

próximas com os meios e com os profissionais que neles trabalham, como a organização de

mobilizações cada vez mais "midiáticas", ou seja, mais passíveis de despertar o interesse dos

grandes meios em cobri- las. Sobre este último ponto, Christa Berger (2003, p. 43) observa

que os movimentos desenvolveram o que chama de "cultura de mídia", ou seja, "um saber

intuitivo que informa grupos (culturais e políticos) de que precisam atravessar a mídia para

obter estatuto de existência".

A segunda linha pressupõe a construção de meios próprios de comunicação, onde os

movimentos possam se expressar de maneira mais aberta, sem a preocupação com o choque

de interesses. A questão que se coloca é, mais uma vez, a abrangência desses meios populares,

que acabam atingindo apenas participantes e simpatizantes dos próprios movimentos

(BERGER, 2003, p. 24).

Veremos que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tem optado por

seguir nas duas linhas descritas acima, especializando seus quadros para que aproveitem, a

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partir de um trabalho de assessoria de imprensa, as brechas para inserir seus pontos de vista

nos meios de comunicação de massa e ao mesmo tempo, procurando desenvolver meios

próprios e diversificados, que auxiliem o movimento na tarefa de atingir públicos mais

amplos com suas reivindicações.

2. O MST e a grande mídia

Em vinte cinco anos de existência, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

estabeleceu com os meios de comunicação de massa uma relação principalmente conflituosa.

Por defender ações e interesses opostos aos das classes dominantes, proprietárias e

mantenedoras da mídia comercial, é natural supor que o movimento não encontre nas páginas

dos grandes jornais e revistas e das emissoras de rádio e televisão grande condescendência.

Excluindo alguns episódios bem específicos, podemos dizer que a grande imprensa trata o

MST com indiferença ou preconceito, dando pouco espaço à explicitação de seus objetivos,

cobrindo com sensacionalismo suas ações, descontextualizando reivindicações e

deslegitimando suas formas de luta.

Para Christa Berger (2003, p. 109), a questão da terra e a luta pela reforma agrária não

são notícia no Brasil. Segundo a autora, isso acontece primeiro porque se trata da mesma luta

há muitos anos, não correspondendo assim ao critério de novidade. Em segundo,

simplesmente porque a realização da reforma agrária é contra "os interesses daqueles que

detém o poder político e de seus representantes na mídia".

Diante disso, o MST desenvolveu o que a autora chamou de "cultura de mídia", ou

seja, aprendeu a organizar mobilizações que atraíssem o interesse e a cobertura dos grandes

meios, rompendo seu pressuposto de ignorar as mobilizações sociais para não torná- las

públicas.

Assim, começou a divulgar para a grande imprensa suas ocupações de terra, marchas,

protestos em prédios públicos, romarias, encontros, e outras atividades massivas. Num

primeiro momento, a estratégia funcionou, e as mobilizações do MST foram cobertas. Mas, na

medida em que o movimento começa seu processo de expansão pelo Brasil, a cobertura dos

grandes meios começa a ficar mais agressiva. Aparecem assim as primeiras tentativas de

amedrontar a classe média urbana a partir da criação de uma imagem "violenta" do MST. A

adoção dessa postura da mídia em relação ao movimento coincide com as medidas repressivas

utilizadas pelo governo Collor (1990-1992) contra os sem-terra.

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Este cenário começa a se modificar a partir de um triste episódio da história brasileira,

que ficou conhecido como o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de

1996. Durante uma ação de desocupação de uma rodovia estadual no sul do Pará, 19

trabalhadores rurais ligados ao MST foram assassinados pela polícia militar, sendo que outros

dois morreram dias depois em decorrência dos ferimentos. O vídeo feito por uma equipe de

televisão local mostrou que os sem-terra foram executados, com tiros à queima roupa, a

maioria na cabeça, em momentos em que as vítimas já se encontravam imobilizadas.

O acontecimento causou uma profunda repercussão negativa, tanto dent ro como fora

do Brasil, e foi exaustivamente coberto pelos meios de massa. A partir da recuperação das

imagens que mostram as execuções, a grande mídia repudiou o caso e exigiu a punição dos

responsáveis.

Um ano após o massacre, em 17 de abril de 1997, os sem-terra chegavam em marcha à

Brasília para uma grande manifestação, vindos de três pontos diferentes do país. Seu objetivo

era a reivindicação da reforma agrária e a exigência de punição aos assassinos de Eldorado

dos Carajás. Foram recebidos por milhares de militantes de outros movimentos e organizações

populares, naquela que Maria da Glória Gohn classifica como uma das maiores mobilizações

políticas da história recente do Brasil (2000, p. 137).

As proporções da Marcha forçaram a entrada do tema da reforma agrária na agenda do

governo Fernando Henrique Cardoso, assim como repercutiram largamente nos grandes

meios, ou seja, tratou-se de uma mobilização politicamente e "midiaticamente" bem-sucedida

(GOHN, 2000, p. 136). A pesquisa de Gohn comprova a grande inserção do MST nos meios

massivos durante a marcha de 1997 (2000, p. 138):

Durante o mês de abril de 1997, o MST teve 163 manchetes noticiadas em um único jornal brasileiro de circulação nacional, a Folha de S. Paulo. Ele ocupou todos os dias a primeira página do jornal e foi a manchete principal durante quase 15 dias. As manchetes dos jornais e telejornais brasileiros foram invadidas pelas notícias sobre os sem-terra. As duas principais revistas semanais, VEJA e ISTO É, dedicaram à marcha grandes reportagens e o MST foi capa das duas revistas com as chamadas: "A marcha dos radicais" (VEJA, 16/04/97), "Eles chegaram lá" (VEJA, 23/04/97) e "Governo sitiado" (ISTO É, 23/04/97).

O próprio planejamento da marcha foi pensado de forma a conseguir ampla cobertura

midiática. Além do destaque na imprensa – e provavelmente em decorrência dele – a marcha

de 1997 alcançou duas importantes conquistas: angariou grande simpatia popular para a causa

dos sem-terra e conseguiu que representantes do MST fossem recebidos pelo presidente

Fernando Henrique Cardoso para discutir suas demandas.

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Maria da Glória Gohn (2000, p. 141) observa que a transformação na forma da mídia

retratar os sem-terra foi "espantosa". Os militantes deixaram de ser vistos como baderneiros e

passaram ao status de cidadãos em luta pela reforma agrária. Sua luta passou a ser

considerada justa. A autora enxerga algumas razões para essa mudança repentina, por

exemplo, a organização e abrangência da grande marcha e a atitude do governo diante dela.

Naquele momento, o MST realmente apareceu para o governo como uma força social

importante, em meio a uma oposição esfacelada. O movimento conseguiu inclusive que este

recuasse diante de tanta popularidade.

A conjuntura também favoreceu os sem-terra em 1997. As pressões para a solução da

questão do homem do campo no Brasil cresceram internacionalmente por conta da

repercussão do episódio do massacre de Carajás, que despertou reações indignadas de

entidades de direitos humanos ao redor do mundo. Internamente, o apoio da classe média

pode ser enxergado como uma reação ao aumento da violência urbana e ao raciocínio de que a

reforma agrária seria uma forma de fixar as pessoas no campo e diminuir a pobreza nas

periferias das cidades. Pesquisas feitas à época davam conta de que a sociedade apoiava a luta

do MST, apesar de não endossar seus meios, como as ocupações de terra. O movimento

conseguiu também o apoio de artistas e personalidades para sua causa (2000, p. 143).

Mas, aos poucos, o que parecia ter sido um passo adiante dado na relação do MST

com a mídia de massa e conseqüentemente com a opinião pública, tornou-se uma armadilha.

Ao contrário do que os meios de comunicação massivos tentaram demonstrar, não houve

desagregação ou rachas internos diante das negociações e resultados da grande marcha, mas

sim uma guinada da própria mídia em relação à cobertura da luta pela terra. Em pouco tempo,

o MST voltou a ser combatido pela grande imprensa, em uma atitude que, para Gohn, se

explica pela pressão dos grupos econômicos anunciantes sobre os meios e pelos interesses da

classe dominante (p. 147).

Assim, o MST passou a ser personagem de matérias que priorizavam notícias de

bastidores e procuravam deslegitimar seus propósitos de negociação com o governo, como se

seus dirigentes tivessem sucumbido diante da "fama e do sucesso da marcha". Ao mesmo

tempo, os meios massivos deram destaque a falas descontextualizadas e vistas como super

radicais, onde os sem terra ameaçavam praticar ações de invasão não somente às propriedades

rurais, mas também a prédios públicos, supermercados etc., apavorando a classe média.

Desapareceram as notícias de caráter reflexivo e retornaram com força aquelas que se

propunham a transformar fatos em espetáculos e dar tratamento prioritário às questões

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menores. Em pouco tempo, o MST perdeu o espaço que havia conquistado, voltando a ser

combatido com manchetes negativas (p. 146). Maria da Glória Gohn explica que (p. 159):

A relação MST - mídia tem sido confusa e contraditória. Num primeiro momento, ela fo i estratégica. Por isto, as grandes ocupações de terra eram "avisadas" à imprensa, para que fossem noticiadas. Mas, à medida que elas passaram a ocupar as manchetes diárias, a exposição excessiva passou a ter efeitos negativos. E o MST passou a ser utilizado pela mídia como elemento de geração do medo e da insegurança junto à opinião pública. As manchetes dos jornais passaram a destacar apenas atos violentos ou de vandalismo, sempre atribuídos ao MST. O clima de caos social passou a ser associado na mídia ao MST, de forma que as políticas neoliberais excludentes e geradoras de desemprego passaram a ficar encobertas.

O destaque dado pelos meios de comunicação às ações subseqüentes do movimento

não pode ser comparado ao espaço conquistado durante a marcha de 1997. Em abril de 1998,

uma nova marcha lembrou o assassinato dos sem-terra em Carajás e cobrou do governo a

realização da reforma agrária. A mídia viu nessa mobilização uma clara tentativa de

prejudicar a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, que liderava as pesquisas de intenção

de voto e o MST foi acusado de oportunismo. Em relação à reforma agrária a conjuntura

também não era favorável. Na mesma época, o governo formulou um plano de aquisição de

terras por pequenos agricultores em parceria com o Banco Mundial, algo totalmente distinto

do programa do MST (p. 149)

Os sem-terra não haviam recuperado a popularidade e em 1999 o cenário político

tornou-se mais adverso. A grande mídia passou a explorar de maneira cada vez mais corrente

uma tese que reverberou muito na sociedade, a de que os sem-terra perdiam sua legitimidade

ao agregar outras lutas além da reforma agrária. Ou seja, o MST passou a ser acusado de ser

um movimento "político", que não lutava mais apenas pelo acesso dos pobres à terra, mas que

defendia transformações mais profundas no âmbito da sociedade. A tese de que o MST havia

se tornado "político", como se políticos não fossem todos os movimentos populares, ecoou

nas classes médias e contribui para a deterioração da imagem do MST nos centros urbanos.

Podemos dizer que, a partir desse momento, a cobertura negativa das ações do MST se

intensifica. Observamos que as matérias sobre o movimento seguem linhas mais ou menos

definidas, não variando muito do que descreveremos. Em primeiro lugar, os grandes meios

nunca noticiam os bons resultados da reforma agrária. É muito difícil encontrar matérias que

mostrem assentamentos produtivos ou pessoas que mudaram de vida ao conquistar seus lotes.

Normalmente pauta-se a inoperância da reforma agrária, dando destaque a projetos mal-

sucedidos de assentamentos e procurando recorrentemente exemplos de "personagens" que

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tenham negociado ilegalmente seus lotes para "ganhar dinheiro", dando aos militantes do

MST a pecha de oportunistas.

Outra linha de matérias é a cobertura das ações do MST, como ocupações de terra,

protestos em prédios públicos e marchas. Nelas, são destacadas as ações em si, em detrimento

de seus objetivos. A manifestação dificilmente é contextualizada, dando a impressão de que

os sem-terra protestam por protestar. Quando algum dano ou estrago ao patrimônio acontece

durante as mobilizações, isso se torna a questão mais importante e explorada, assim como as

marchas organizadas dentro das cidades são colocadas como "transtorno" pelos

congestionamentos que provocam. Durante as mobilizações do MST, as autoridades cobradas

são geralmente ouvidas pela grande mídia, que dá destaque à forma jocosa com que o poder

costuma tratar as reivindicações dos sem-terra. Por fim, a mídia comercial costuma dar

destaque às divergências internas entre dirigentes do movimento, tentando apontar rachas e

divisões, numa tática de enfraquecimento. Isso costuma acontecer inclusive na imprensa local,

do interior, em áreas próximas aos espaços do MST. Alguns jornalistas costumam visitar

acampamentos e assentamentos procurando por brigas, desavenças e qualquer tipo de

acontecimento negativo para noticiar. São comuns as matérias que tentam dar aos militantes a

pecha de "massa de manobra" de dirigentes corruptos e pouco comprometidos. Muitas

criticam também a forma como o setor de educação do movimento dirige suas escolas, vistas

pelos meios de comunicação hegemônicos como espaços de doutrinação.

Diante do quadro descrito acima, o MST tem procurado profissionalizar sua assessoria

de imprensa. Os assessores têm basicamente dois papéis. O primeiro é tentar "proteger" o

movimento das investidas da grande mídia. Isso significa tentar evitar a enxurrada de matérias

negativas a partir do acompanhamento de jornalistas que visitam os espaços, do preparo de

dirigentes para entrevistas e do cuidado com a elaboração de materiais e planejamento das

ações. O segundo papel é o de encontrar brechas nas estruturas dos grandes meios para a

entrada de matérias positivas sobre o MST. Aos poucos, seus assessores têm descoberto

alguns jornalistas simpáticos à causa do movimento e que, esporadicamente, fazem matérias

favoráveis à luta pela reforma agrária, ou ao menos procuram cobrir as ações de forma mais

democrática, dando a oportunidade ao MST de explicar seus propósitos. A assessoria também

procura brechas ao tentar pautar artigos opinativos de intelectuais e políticos próximos ao

movimento em grandes jornais. Vimos que os jornais abrem determinados espaços para a

expressão de opositores políticos e são essas brechas que o MST tenta ocupar a partir da

atuação sistemática da assessoria de imprensa, com o objetivo de levar suas reivindicações a

um público mais amplo.

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Por outro lado, o MST conhece os limites da atuação junto à grande imprensa e não

tem muitas ilusões neste sentido. Assim, procura desenvolver seus próprios canais de

comunicação utilizando-se de diversos instrumentos construídos a partir de diferentes

objetivos. Veremos a seguir quais são esses instrumentos.

3. Os meios de comunicação do MST

O setor de comunicação do MST está organizado nos estados em que o movimento

está presente, além de manter uma estrutura "nacional", atuando como uma espécie de

redação, que centraliza a produção de seus veículos na cidade de São Paulo. O setor é

formado tanto por jornalistas contratados, que trabalham nas secretarias do MST nos centros

urbanos, como por militantes que, a partir das mobilizações ocorridas no campo, têm a função

de repassar as informações para os produtores dos veículos. O MST tem consciência do

alcance limitado de seus meios de comunicação, mas investe em sua produção tanto no

sentido de tornar públicas as suas lutas de forma mais contextualizada, como para municiar

sua militância e seus apoios com informação e análises de conjuntura. Segundo Maria da

Glória Gohn (2000, p. 159):

A mídia alternativa desenvolvida pelo MST, com o apoio dos partidos da esquerda, ONGs, igrejas, etc. têm um alcance delimitado pelo grupo da militância e aos adeptos ou simpáticos à causa e, por razões econômicas e de boicotes políticos, não têm atingido o público das camadas médias que suportam a chamada "opinião pública nacional".

Mas, o setor de comunicação não existe somente para produzir os meios, e sim para

ajudar na formulação de uma política de comunicação para o MST. Segundo documento

citado por Christa Berger em Campos em confronto, o termo política de comunicação é

definido por "um conjunto de normas, regras e procedimentos que, harmonizados e coerentes,

contribuem para a consolidação da identidade de uma organização junto à sua base social e

com a sociedade" (2003, p. 111). Os objetivos da política de comunicação cumprem a

orientação interna de motivar a militância e a externa de divulgar as conquistas do MST. Para

Christa Berger, é clara a subordinação do setor de comunicação às diretrizes políticas do

movimento, ou seja, sua atuação é definida dentro de uma política mais ampla formulada

pelos dirigentes para o MST. A autora coloca que as principais tarefas do setor são: "a)

produzir o jornal mensal Sem Terra; b) fazer a assessoria de imprensa do Movimento; e c)

planejar a aquisição de rádios comunitárias" (2003, p. 115).

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3.1 Jornal Sem Terra

O mais importante meio de comunicação do MST é sem dúvida o Jornal Sem Terra.

Atualmente mensal, possui tiragem de 30 mil exemplares e é distribuído para a militância do

movimento. É produzido por jornalistas contratados do setor de comunicação do MST, que

discutem sua pauta em reuniões mensais com os membros da direção, responsáveis pela linha

política do jornal.

O grosso das matérias e entrevistas é produzido na "redação" em São Paulo, sendo que

o JST recebe colaborações dos jornalistas que trabalham nas secretarias do MST em outros

estados e de militantes que ajudam no fornecimento de informações sobre as mobilizações

ocorridas no campo. Recebe também poesias, desenhos e letras de música para sessões

específicas do jornal.

Anterior ao próprio movimento, o JST foi criado inicialmente como um boletim

informativo voltado para a conquista de apoio para as ocupações de terra organizadas no Rio

Grande Sul que deram origem ao MST, em 1981. A partir de 1984, com a fundação do

movimento, o Boletim Sem Terra se torna seu meio de comunicação oficial, passando a

circular nacionalmente. O formato muda para tablóide e a impressão é feita em papel jornal.

Em 1985, com a instalação de uma secretaria do MST em São Paulo, o boletim deixa de ser

produzido pelos militantes do MST no Rio Grande do Sul e passa a ser feito na capital

paulista, numa tentativa de estruturar melhor sua produção.

A linha editorial do JST sofreu mudanças ao longo de seu processo de

desenvolvimento. Até 1986, o jornal era predominantemente informativo, trazia

posicionamentos diversos sobre a luta pela terra e preocupava-se mais em descrever a

conjuntura política do que interpretá- la a partir da visão do MST. Isso se deve ao momento de

consolidação do próprio movimento, que não tinha um projeto político elaborado como possui

hoje.

A partir de 1986, a direção do MST passou a dar mais importância para o jornal e

acompanhá- lo de perto. O público alvo do jornal passa a ser o militante do movimento, que

deveria utilizar o JST como fonte de estudo e formação, e não mais o público externo. Com

isso, ele se torna mais analítico e se concentra em dar notícias sobre o movimento, suas lutas e

conquistas. Já na década de 1990, o JST começa a abordar, além das questões relacionadas

diretamente ao MST, as lutas de outros movimentos sociais rurais e urbanos.

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Por limitações de tiragem, o JST não chega a toda a base do MST, que hoje é calculada

pelo próprio movimento em aproximadamente um milhão de pessoas. Parte dos exemplares

mensais do JST é distribuída gratuitamente entre as secretarias estaduais do MST, que ficam

responsáveis por encaminhá-los aos acampamentos, assentamentos, escolas e centros de

formação. A outra parcela é destinada às assinaturas. Essas são vendidas majoritariamente a

apoiadores e simpatizantes do movimento nos centros urbanos, professores, estudantes

universitários etc. Mas, por conta do caráter extremamente voltado para o público interno e

também pela desorganização na gerência e envio, as assinaturas são poucas.

O Jornal Sem Terra serve como ferramenta de formação. Para tal, suas edições trazem

sempre uma seção denominada "estudo", onde um professor ou especialista de determinada

área, escreve um artigo didático sobre um assunto importante para o movimento como, por

exemplo, soberania alimentar, questão da água, sementes transgênicas etc. Em todas as

edições há uma entrevista em formato ping-pong que pode tanto contar com um (a) dirigente

do MST como com um intelectual ou professor que defenda posicionamentos de esquerda. A

página mais concorrida é a que traz notícias sobre as atividades organizadas nos estados. A

seção chamada de "realidade brasileira" destrincha algum tema relacionado à luta pela terra,

além de trazer notícias sobre mobilizações de caráter nacional em que o MST se envolve. Na

editoria "internacional" são abordados assuntos relacionados à política externa brasileira ou a

temas internacionais cuja abordagem o movimento julga importante, como a guerra no Iraque,

a presença de tropas brasileiras no Haiti ou a situação de Cuba. Já em "lutadores do povo", um

homem ou mulher que tenha se dedicado à luta por transformações sociais no Brasil ou no

mundo é homenageado (a) e tem sua história contada. A seção "balaio" fecha o jornal com

poesias (que podem ser enviadas pela militância), fotos e uma espécie de agenda cultural com

indicação de filmes ou livros relacionados às causas do MST.

As questões abordadas pelo JST não são pauta nos meios de comunicação da imprensa

comercial. O jornal tenta cumprir a tarefa de colocar sua militância para discut i- las a partir da

sua leitura. Da mesma forma, o MST sente a necessidade de ampliar sua esfera de discussão

para outros setores da sociedade que possam se somar a ela e apoiá- la. Mas, o movimento não

parece ter a disposição de tornar o JST o veículo que ultrapasse as fronteiras e chegue a

sindicatos e movimentos urbanos, e intensifica cada vez mais seu caráter interno. Essa escolha

pode ser observada tanto na opção pelas pautas, quanto na forma de abordagem, linguagem

etc. O JST é simples e didático e pouco intelectualizado.

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3.2 Revista Sem Terra

O MST edita também a revista Sem Terra, que cumpre uma função muito diferente do

jornal para o movimento. Apesar de sua tiragem reduzida, ela funciona – ou deveria funcionar

– como um canal de comunicação do MST com a população urbana. Impressa com grande

qualidade, em cores, a revista Sem Terra é bimestral, possui tiragem de seis mil exemplares e

tem suas matérias e artigos produzidos por colaboradores externos ao MST. Compete ao setor

de comunicação a organização e edição dessas colaborações, além do acompanhamento da

impressão da revista e sua distribuição.

A revista Sem Terra enfrenta, assim como boa parte dos meios de comunicação não

comerciais, dificuldades de comercialização e distribuição. Sua colocação em bancas é restrita

e o preço de capa é alto por conta da qualidade de impressão. Sua maior fonte de renda

deveria ser a venda de assinaturas, operacionalizada com dificuldade pelo setor de

comunicação, que não consegue sistematizar os envios e ampliar o número de assinantes.

Assim, o papel que deveria cumprir ao levar a um público urbano uma alternativa de

informação não se concretiza.

A revista Sem Terra pauta as lutas do MST, mas não se restringe ao movimento. Traz

reportagens sobre política nacional e internacional, aborda os temas mais recentes da

conjuntura, traz resenhas de filmes e livros, e conta com uma rede de articulistas formada por

economistas, sociólogos e acadêmicos reconhecidos. Por ser dirigida a um público mais

amplo, a revista Sem Terra não carrega a linguagem doutrinária e excessivamente didática

que freqüentemente aparece nas páginas do jornal. Em suma, é um meio de comunicação de

qualidade, bem produzido, que encontra dificuldades em disputar espaço com as publicações

massivas por questões financeiras e de distribuição.

3.3. Página do MST na internet

A página do MST na internet (www.mst.org.br) foi criada para a divulgação de

notícias sobre o movimento em tempo real. Seu público alvo é a população urbana que tem

acesso à rede mundial de computadores. Atualizada várias vezes por dia, a página procura

cobrir as manifestações, ações e protestos realizados pelo movimento em todo o Brasil. Dessa

forma, depende muito da colaboração dos jornalistas que atuam junto ao movimento em nível

estadual. A página possui um jornalista que atua como editor, padronizando as colaborações

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que recebe e produzindo matérias a partir de agências de notícias. Quando o movimento

organiza as chamadas jornadas de luta, em que mobilizações acontecem simultaneamente em

todo o país, a página cumpre o papel de reunir essas informações e produzir "especiais"

temáticos, com entrevistas, artigos e reportagens sobre o assunto do momento.

3.4 Rádio

A discussão sobre rádio no MST cumpre um papel importante dentro da estratégia do

movimento. Atualmente, o setor atua de duas maneiras em relação a esse tema, procurando

aproveitar as novas tecnologias que facilitaram a difusão do áudio pela internet. A primeira e

mais desenvolvida diz respeito à produção de programas de rádio que são cedidos

gratuitamente a um conjunto de rádios comunitárias, tanto nas periferias dos grandes centros

como nas cidades do interior. Esses programas, feitos por uma equipe de jornalistas, não têm

somente o MST como tema, mas discutem política, economia, trazem dicas de saúde, cultura

e logicamente, falam sobre as mobilizações dos movimentos sociais rurais e urbanos,

sindicatos etc. A segunda forma de atuação está relacionada à criação e manutenção de

emissoras de rádio comunitárias nas áreas de acampamento e assentamento. Trata-se de um

enorme desafio, já que essas emissoras necessitam de um mínimo de estrutura de

funcionamento que pressupõe espaço físico, equipamento e pessoal.

O MST não tem recursos para manter jornalistas atuando em suas rádios no campo,

por isso aposta na formação técnica e política de militantes locais, moradores de

acampamentos e assentamentos, que deveriam conduzir as rádios. Muitas vezes isso não

ocorre da forma desejada, pois é difícil manter pessoas trabalhando em torno das rádios sem

remuneração. Além disso, o processo de formação leva tempo e pressupõe custos que o

movimento nem sempre pode assumir.

Mesmo assim existem inúmeras experiências tanto de rádios transmitidas como de

rádio poste, ligadas ao MST em todo o Brasil. A dificuldade em contabilizar essas

experiências decorre de sua volatilidade. Muitas rádios funcionam bem por determinados

períodos e depois morrem por fatores como quebra ou roubo do equipamento, falta de

recursos ou mesmo a transferência dos militantes que as fazem funcionar para outras tarefas,

prática comum dento do MST. Apesar dessas questões, o avanço em relação à montagem de

rádios comunitárias voltadas tanto para o público interno como para o entorno das áreas onde

o MST se estabelece, em uma ação clara de propaganda, e a intensificação do contato com as

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rádios comunitárias já existentes é um ponto central para o setor de comunicação, discutido

permanentemente em suas instâncias.

3.5 Audiovisual

Uma última questão que gostaríamos de abordar em relação aos meios de

comunicação do MST é a produção audiovisual. O setor de comunicação do MST tem

discutido e aos poucos consolidado a formação de uma rede de militantes capacitados em

todos os passos da produção audiovisual, como a captação de imagens, entrevistas em vídeo,

fotografia, edição e tratamento de som. O movimento trabalha com a perspectiva da produção

de imagens sobre suas ações e mobilizações, sabendo que atualmente a disputa de hegemonia

no campo da comunicação se faz principalmente dessa forma. Assim, tem sido produzida uma

série de documentários em vídeo que, se apropriando das novas tecnologias, são veiculados

pela internet através de programas de compartilhamento.

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Capítulo IV - NASCIMENTO E FORMAÇÃO DE UM JORNAL DE ESQUERDA NO BRASIL

O presente capítulo trata do processo de gestação do jornal Brasil de Fato a partir do

resgate das discussões que motivaram a formação de um grupo de pessoas dispostas a pensar

seu projeto editorial e político, passando pela composição deste grupo, sua metodologia de

funcionamento, seus consensos e dive rgências. Abordaremos as fases de construção do

projeto editorial do jornal, da determinação de seu público alvo, da escolha da linguagem e de

seu nome. Falaremos também sobre as metas iniciais do jornal, o processo de discussão sobre

sua estrutura, equipe de profissionais e colaboradores, políticas de captação de recursos,

distribuição, assinaturas, formação de comitês regionais e conselhos. Nosso objetivo é compor

um quadro com os aspectos mais relevantes da fase inicial do Brasil de Fato, desde as

primeiras discussões, passando pelo processo de construção que ocorreu durante todo o ano

de 2002 e que culminou com o lançamento do número zero durante o Fórum Social Mundial

de Porto Alegre em 20038.

As informações que sustentam este capítulo foram obtidas através de entrevistas com

quatro pessoas que participaram do processo de construção do Brasil de Fato, e que, de

maneiras diferentes, estão ligadas ao jornal até hoje. São eles: Miguel Enrique Stedile,

dirigente nacional do setor de comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Terra (MST), José Arbex Júnior, jornalista, ex-editor de internacional da Folha de S. Paulo,

editor especial da revista Caros Amigos e primeiro editor do Brasil de Fato, Nilton Viana,

jornalista, ex-membro do setor de comunicação do MST e atual editor do Brasil de Fato e

Ricardo Gebrim, um dos membros mais atuantes do conselho editorial do jornal e dirigente do

movimento Consulta Popular9.

8 "O Fórum Social Mundial é um espaço de debate democrático de idéias, aprofundamento da reflexão,

formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. Após o primeiro encontro mundial, realizado em 2001, se configurou como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais." A articulação nasceu a partir de discussão de ativistas brasileiros e o país já sediou em oito anos, cinco edições do evento. Disponível em http://www.forumsocialmundial.org.br/main.php?id_menu=19&cd_language=1

9 "A Consulta Popular é a expressão orgânica da idéia da necessidade de se resgatar um Projeto Popular para o Brasil e uma proposição de que a esquerda precisa ser refundada, partindo da avaliação de que o “ciclo PT” chegara ao fim, compreendendo que não se tratava de um evento, uma sigla ou forma de luta, mas da construção de um processo necessário – a refundação da esquerda brasileira." A Consulta Popular nasce em 1997, a partir de uma conferência de militantes do MST, Comunidades Eclesiais de Base e Central dos Movimentos Populares. A

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Foram consultados também diversos documentos produzidos a partir das discussões

dos grupos e comissões que viabilizaram o projeto do Brasil de Fato, tais como atas de

reunião, mensagens eletrônicas, circulares e principalmente os projetos editorial e político.

Esses documentos nos foram cedidos por Nilton Viana, João Pedro Stedile e José Arbex

Júnior.

Vale lembrar que o nome do jornal, Brasil de Fato, só foi definido em outubro de

2002, quase seis meses após o início das discussões. Até então, seu projeto foi chamado de

várias maneiras como "jornal político", "jornal das esquerdas", até passar a ser divulgado

como "jornal de esquerda". Essa explicação é necessária, pois usaremos o termo "jornal de

esquerda" para se referir ao projeto do jornal antes da escolha de seu nome.

1. Formação do grupo político em torno do projeto do jornal

As discussões que culminaram na elaboração do projeto editorial do jornal Brasil de

Fato foram efetivamente iniciadas no primeiro semestre de 2002, por volta do mês de abril.

Para iniciá- las, o dirigente do MST e figura politicamente admirada dentro do campo da

esquerda, João Pedro Stedile, entrou em contato com militantes e ativistas de várias áreas,

organizados ou não em movimentos sociais para consultá- los sobre a viabilidade de

desenvolver um projeto do que chamou na ocasião de um jornal popular de grande alcance e

circulação nacional. O jornalista José Arbex Júnior, ex-editor da Folha de S. Paulo e editor

especial da revista alternativa Caros Amigos, foi uma das pessoas que recebeu o telefonema

de João Pedro Stedile fazendo esse questionamento. Segundo Arbex, em depoimento gravado

para essa pesquisa10:

Eu me lembro que um dia o Stedile me ligou e perguntou se eu achava possível ter um jornal nacional, popular. Eu respondi claro, é possível, mas que precisava de muito dinheiro e era muito difícil sustentar um jornal desse tipo. Mas é possível. Isso aí fazia parte de umas consultas que ele já estava fazendo com várias lideranças e amigos do MST e isso acabou desembocando num processo de reuniões bem amplo que agregava todo mundo que se interessasse por esse tipo de projeto, sem nenhuma espécie de restrição ideológica, a não ser se interessar por um projeto antiimperialista, socialista, popular.

conferência reuniu 300 militantes cujas discussões são sistematizadas no livro A Opção Brasileira . Disponível em http://www.consultapopular.org.br/sobre/quem-somos-1/quem-somos 10 Todas as falas de José Arbex foram reproduzidas a partir de entrevista concedida à autora desta pesquisa no dia 11 de fevereiro de 2009.

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As consultas de Stedile tinham como objetivo não só obter a opinião de jornalistas e

militantes próximos do MST, mas também pretendiam aglutinar pessoas que, caso se

interessassem pelo projeto, poderiam contribuir com ele.

Mas, a idéia de desenvolver um jornal nacional de cunho popular não havia acabado

de surgir. Ela foi fruto de um processo que se deu tanto a partir da experiência do MST com a

cobertura desfavorável de suas ações e reivindicações pela grande imprensa como através de

avaliações feitas junto a outros movimentos sociais sobre a necessidade de desenvolver um

projeto de meio de comunicação de grande porte que fosse capaz de aglutinar as forças da

esquerda em torno de si e proporcionar aos movimentos um novo canal de diálogo com a

sociedade. Para José Arbex, essa necessidade tornou-se evidente a partir do ano 2000:

O Brasil de Fato surgiu de uma necessidade, que foi bastante perceptível a partir de abril do ano 2000, durante a famosa comemoração dos 500 anos (do descobrimento do Brasil), quando o governo Fernando Henrique reprimiu violentamente as manifestações indígenas, de estudantes, de sem-terra, negros [...] Naquele momento da história do Brasil, que deveria ser de comemoração, ficou marcada simbolicamente a hostilidade da elite brasileira com a nação brasileira. É claro que já tinha tido o antecedente de Eldorado dos Carajás, em 1996, e a violência contra os movimentos sociais nunca tinha deixado de acontecer, mas o governo Fernando Henrique foi se tornando cada vez mais violento. E o ano 2000 foi um momento emblemático [...] você tinha uma conjuntura que estava realmente clara para quem quisesse ver, que a elite brasileira estava engrossando o caldo contra os movimentos sociais e estava sendo cada vez mais violenta. Então isso aí foi colocando o sentido de urgência, de você ter um jornal que colocasse as coisas do ponto de vista dos movimentos sociais, das lutas populares, da sociedade brasileira, que não era o ponto de vista das corporações .

Ricardo Gebrim11, advogado e dirigente do movimento Consulta Popular também foi

consultado e convidado a dar sua opinião sobre a viabilidade da idéia. Envolvido com o MST

dada a proximidade entre os dois movimentos, Gebrim havia acabado de coordenar um

grande plebiscito popular sobre a entrada do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas,

a ALCA12, que contara com a participação orgânica de 156 mil pessoas em todo o Brasil. Ele

localiza as discussões sobre o projeto de um jornal popular dentro da Consulta, movimento

que abriga também muitos militantes do próprio MST, principalmente aqueles que estão

alocados em tarefas urbanas e moram nas grandes cidades. Segundo Gebrim: 11 As falas de Ricardo Gebrim foram reproduzidas a partir de entrevista concedida à autora desta

pesquisa no dia 5 de fevereiro de 2009.

12 ALCA: Área de Livre Comércio das Américas, proposta de tratado comercial entre os países da América do Norte, Central e do Sul, criada pelos Estados Unidos para expandir o Nafta, (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, que reúne EUA, Canadá e México) aos três continentes. A proposta foi vista pelos movimentos sociais da América Latina como um risco à industrialização e desenvolvimento dos países mais pobres da região. Respaldada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, a proposta foi rechaçada pelo governo Lula e o tratado não aconteceu. Disponível em http://www.social.org.br/apresenta.htm

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Nós começamos a discutir a idéia de ter um jornal no espaço da Consulta Popular em 1999, na época inclusive chegamos até a tentar uma experiência com o Plínio de Arruda Sampaio, que ofereceu a possibilidade de usar o Correio da Cidadania , que ele editava, mas achamos que era um pouco complicando, achamos que já tinha uma cultura, um método, um jeito, e ele estava nos reservando alguns espaços. Mas havia muito essa intenção, de construir um jornal como esse veículo, a idéia, a concepção foi se construindo ao longo desses anos.

Nilton Viana 13, jornalista e militante do setor de comunicação do MST, também

aponta o governo de Fernando Henrique Cardoso como marco na discussão sobre a

viabilidade da esquerda em construir um jornal que denunciasse a violência imposta aos

movimentos sociais, principalmente durante seu segundo mandato (1999-2002). Para ele:

Na verdade nós começamos a pensar em criar um veículo de esquerda de circulação nacional, um jornal político, para se contrapor aos chamados grandes meios e que pudesse ser um instrumento da militância social a partir do segundo mandato do Fernando Henrique Cardoso. Foi um período extremamente delicado para a militância política dos movimentos sociais, em especial para o MST. O então presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo em vista que matavam sem-terra, massacravam e mesmo assim a luta pela reforma agrária continuava se intensificando [...] elegeu o MST juntamente com meia-dúzia de famílias que controlam a mídia brasileira dizendo para eles: “olha, quem enche a bola do MST são vocês, portanto, daqui pra frente é só pra dar (na imprensa) o que não tiver como não dar”.

Segundo Nilton, a grande imprensa, seguindo orientações do próprio governo, passou

a produzir matérias negativas e manipuladas com a intenção de prejudicar a imagem do MST

junto à opinião pública: "Começaram a falar que o MST fazia pedágio [...] Você se lembra do

Stedile na capa da Veja com cara de diabo? Tentaram destruir o MST moralmente, atacavam

o MST moralmente".

O processo de criminalização dos movimentos sociais imposto pela grande mídia em

sua tentativa de deslegitimação das reivindicações se intensifica, sendo mais notado quando se

trata do MST, pela visibilidade política alcançada pelo movimento. Este processo fez com que

as discussões e a idéia de construir um canal alternativo de diálogo com a sociedade

tomassem corpo e passassem a se materializar a partir do início do ano de 2002. Para Nilton

Viana:

Começamos a perceber a necessidade que tínhamos frente o cerco violento da grande mídia, esse silêncio em relação ao MST. Quando não obstante o silêncio, reportagens ou matérias para dizer que era “quadrilha”, “bando”. O MST, por ser o principal movimento, com carga moral e política muito grande, era cobrado inclusive de outras forças sociais de esquerda por não articular um instrumento capaz de dialogar com a sociedade. Começamos a fazer os primeiros experimentos,

13 Falas reproduzidas a partir de entrevista concedida à autora em 9 de fevere iro de 2009.

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que deram certo e nós percebemos que realmente precisávamos ter um instrumento político de comunicação com a sociedade. Eram as edições especiais do Jornal Sem Terra. Era algo exclusivo, voltado para a questão agrária, mas com linguagem simples e tiragens massivas, de 1,5; 2 milhões de exemplares, onde o MST procurava romper esse cerco midiático e dialogar com a sociedade.

Como pudemos verificar nos capítulos I e III, o período em que o MST sofre com uma

ofensiva da grande imprensa coincide com a tomada de consciência do movimento sobre a

necessidade de aglutinar mais forças em torno de um projeto político comum de

transformações sociais. É preciso levar em conta que no início da década de 2000, o MST

vive um momento de grande popularidade entre as forças de esquerda no Brasil e no mundo,

graças a seu potencial de mobilização e dos projetos de educação e produção alternativas que

desenvolve junto a sua base. Essa popularidade dá ao MST um caráter legítimo de proposição

e tentativa de aglutinação de outros movimentos para a formulação de um documento cujas

bases extrapolam a questão da luta pela terra e passam a propor transformações macro que

poderiam significar uma melhora das condições de vida da população ao mesmo tempo em

que proporcionariam ao Brasil uma possibilidade de desenvolver-se fora dos moldes do

neoliberalismo.

Este documento, chamado de "Projeto Popular para o Brasil", aponta para a

necessidade de união entre as forças sociais organizadas nas áreas rurais e urbanas, e

determina que um dos fatores importantes no auxílio de sua implementação seria a criação de

um meio de comunicação que servisse a seus propósitos. Para Miguel Stedile, dirigente do

setor de comunicação do MST: "a idéia de que era preciso de um jornal de amplitude nacional

que pudesse fazer o debate do projeto popular, estava intrínseca a essas discussões".

Miguel coloca que a construção de um jornal popular de massas já era discutida há

tempos dentro das instâncias de coordenação do MST, mas pontua o momento em que ela

surge com força determinante:

[a idéia surge] de forma mais pública no Encontro Nacional do MST em Minas Gerais, em 2002. Foi colocado que, entre os desafios para o próximo período, estava a construção de um jornal. Foi em Janeiro de 2002, na fala de encerramento do Encontro, feita pelo Bogo14. Não de maneira formal, como: “temos um ano para construir o jornal”, mas: “bom, nós temos que transformar a sociedade, nós precisamos avançar em várias áreas políticas e uma delas é a comunicação. Dentro da comunicação nós precisamos ter um jornal nacional de esquerda, de grande amplitude".

14 Ademar Bogo, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, é um dos pensadores

que se dedica ao estudo e à formulação das políticas do setor de cultura do MST, além de propor o debate sobre a construção de uma identidade sem-terra, a partir das manifestações culturais criadas dentro do próprio movimento

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O MST passa então a colocar em prática a idéia de capitanear um projeto de

construção de um meio de comunicação que servisse aos propósitos de seu "Projeto Popular",

criando as condições para que suas propostas fossem discutidas por uma camada mais ampla

da sociedade, ao mesmo tempo em que daria aos movimentos sociais uma oportunidade de

denúncia e diálogo acerca de suas reivindicações, impossibilitada pela grande mídia. Esse

meio de comunicação deveria aglutinar as forças de esquerda reunidas em torno da

formulação do projeto e estar aberto a outras, já que um de seus primeiros pressupostos era o

de não pertencer a determinado movimento, partido, sindicato ou organização.

As consultas de João Pedro Stedile desembocam em uma série de reuniões que passam

a atrair indivíduos e movimentos interessados em tomar parte no projeto, que a esse ponto, é

chamado de "jornal político nacional" (documento, maio de 2002). Segundo José Arbex:

[...] isso (as consultas) acabou desembocando num processo de reuniões bem amplo que agregava todo mundo que se interessasse por esse tipo de projeto, sem nenhuma espécie de restrição ideológica, a não ser se interessar por um projeto antiimperialista, socialista, popular. Não eram reuniões abertas, por exemplo, ao Antônio Ermírio de Moraes15, mas eram, ao mesmo tempo, amplas o suficiente para caber todo mundo que se considerasse antiimperialista. E a partir daí criou-se uma rotina de reuniões ao longo do ano de 2002, que começou a discutir qual seria o formato do jornal, qual seria o conteúdo dele, qual seria o nome do jornal [...]

Segundo Nilton Viana, as reuniões em torno da construção do projeto do jornal

passaram a reunir pessoas das mais variadas áreas de atuação, e era exatamente esse seu

objetivo.

Chegamos a ter assembléias com 300 pessoas. Aglutinamos militantes da área de comunicação, jornalistas, fotógrafos, estudantes, artistas, intelectuais dos mais variados setores. Porque nós fizemos um leque muito amplo. A idéia era aglutinar pessoas, independente de onde militassem ou de que corrente ideológica participassem, sendo que a pessoa deveria ter o compromisso de construir um jornal de esquerda que pudesse fazer o contraponto. Então nós passamos a fazer efetivamente, a partir de 2002, reuniões sistemáticas e tiramos comissões.

As reuniões foram guiadas por um documento chamado "Um jornal político nacional",

formulado pela direção nacional do MST baseada em São Paulo. Este documento já colocava

as bases iniciais da proposta do MST para o jornal e funcionou com uma apresentação para 15 Antonio Ermírio de Moraes é engenheiro e empresário brasileiro, presidente do grupo Votorantim,

produtor de materiais de construção, cimento, metais, papel, eletricidade, entre outros. É um dos homens de negócio mais ricos e bem-sucedidos do Brasil, que na fala de Arbex aparece como símbolo da elite brasileira. Informações retiradas de http://www.antonioermirio.com.br/

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seus potenciais colaboradores de todas as áreas. Este documento, datado de maio de 2002,

coloca alguns pressupostos políticos, editoriais e estruturais pré-definidos sobre o jornal

(alguns foram alterados ao longo das discussões) sendo o principal deles:

O MST, em consonância com outros movimentos sociais e forças políticas que representam o desejo de mudanças em nosso país, está tomando a iniciativa de propor a criação de um jornal político, de circulação nacional, que possa contribuir com o debate das idéias e análises dos fatos, do ponto de vista das necessidades de mudança social em nosso país. Será um veículo de comunicação que expresse uma linha política pluralista de esquerda, não um jornal do MST. Um jornal que se referencia no projeto político da construção de um Projeto Popular para o Brasil.

O documento listava oito princípios gerais para a publicação:

a) Expresse a visão da esquerda e promova o debate político sobre os fatos e a realidade brasileira. b) Tenha uma visão de solidariedade internacionalista c) Seja plural nas idéias, mas comprometido com o povo, com as idéias de transformação social e ruptura com a dependência externa. d) Seja independente de disputas de correntes partidárias. e) Sirva como subsídio para a informação e estudo para toda a militância social, todos os lutadores sociais do Brasil. f) Seja um estimulador da luta e da luta social e de massa g) Seja um estimulador da militância social e do engajamento políticos dos leitores h) Defenda sempre os valores socialistas e humanistas

Em relação às características e funcionamento do jornal, este documento propunha

que:

a) Formato: será um jornal no formato Germânico (padrão Le Monde) com 24 páginas b) Tiragem: cem mil exemplares c) Distribuição: a prioridade serão bancas nas maiores cidades do Brasil. Mais assinaturas. Distribuição por militantes dos movimentos sociais. E quotas por entidades. d) Equipe editorial: responsável política pelo jornal, defendendo as linhas expressas nos objetivos. A equipe se reunirá a cada 15 dias para definir a pauta. e) Equipe de jornalistas: será contratada pela Equipe Editorial, considerando o critério de competência profissional e experiência, e que respeitem as linhas políticas do jornal. f) Equipe administrativa: cuidará dos aspectos econômicos, como manutenção do jornal, assinaturas e publicidade, de forma independente da equipe de jornalistas e que se reportará diretamente ao Conselho Diretor. g) Conselho político: será formado por personalidades, intelectuais e artistas que poderão se reunir a cada seis meses para orientações e avaliação. h) No me do jornal: será feita uma ampla consulta recolhendo as sugestões. Alguns nomes já foram indicados: Luta Popular, Jornal da Esquerda, Correio do Brasil, Correio do Povo Brasileiro. i) O jornal será assumido administrativamente por uma editora a ser constituída com alguns sócios identificados com o projeto e sem fins lucrativos.

O jornal deveria ter vinte e quatro páginas e as seguintes seções:

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a) Brasil: política, economia, e grandes reportagens b) Movimentos populares (2 páginas) c) Grande entrevista (2 páginas) d) Denúncias/ direitos humanos (1 página) e) Solidariedade (1 página) f) Cultura brasileira (2 páginas) g) América Latina e internacional (2 páginas) h) Resenha de livros, publicações, filmes etc. (1 página) i) Publicidade (2 páginas) j) Capa e contracapa

Segundo o documento "Um jornal político nacional" (2002, p. 2), o esquema de

distribuição do jornal partiria de cinco eixos: 1. Venda em bancas por um preço de capa de R$

2,00. Essa distribuição seria feita por uma distribuidora em nível nacional. 2. Convênios com

movimentos sociais, sindicatos e parlamentares para aquisição de cotas fixas semanais. 3. As

duas primeiras tiragens seriam distribuídas gratuitamente em eventos e por mala direta, como

estratégia de propaganda. 4. Promoção de campanha de assinaturas entre militantes via mala

direta de movimentos sociais. 5. Vendedores militantes que ficassem com 50% do preço de

capa.

Foram listadas também quatro "modalidades" de colaborações para o conteúdo do

jornal: 1. Jornalistas e fotógrafos que colaborariam de forma militante, em geral já conhecidos

do MST. 2. Intelectuais e professores que tanto poderiam escrever artigos de opinião como ser

fontes para entrevistas. 3. Articulistas internacionais, com contato prévio com o MST, e 4.

Agências de notícias e jornais do exterior que mantinham um perfil popular e poderiam

fornecer informações.

O orçamento previsto para o funcionamento do jornal neste primeiro esboço girava em

torno de um investimento inicial de 25 mil dólares para a compra de equipamentos como

computador, mobília, televisão, telefone, automóvel e demais utensílios. As despesas com

funcionários como jornalistas, administração e distribuição seriam de dez mil dólares mensais.

Foram calculados 4,5 mil dólares para gastos mensais de aluguel e manutenção, e 40 mil

dólares mensais para a gráfica. O jornal teria assim um custo de 55 mil dólares mensais,

precisando arrecadar 360 mil dólares para a sustentação de seus seis meses inicias de vida,

pelos cálculos da época, algo em torno de 900 mil reais (2002, p 3).

Esse dinheiro, segundo o documento, seria arrecadado a partir de quotas de

contribuições individuais ou de entidades de mil reais. Essas pessoas e entidades seriam

procuradas a partir da elaboração de uma lista com 250 nomes. Ficaria a cargo de uma equipe

de 25 a 30 militantes e "amigos" do MST nos estados conseguir mais dez entidades e

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indivíduos dispostos a contribuir com essa soma em cada estado. Seria buscado também o

apoio de sindicatos. É importante frisar que o documento previa que o jornal somente seria

lançado a partir da arrecadação de dinheiro suficiente para custear seus três meses iniciais.

Durante esse período as arrecadações continuariam para que mais três meses fossem

viabilizados, totalizando os 900 mil reais. A partir daí seria feita uma avaliação da

possibilidade de ir adiante com o jornal, levando em consideração que em médio prazo ele

deveria sustentar-se sozinho a partir da venda em bancas, assinaturas e anúncios (2002, p 3).

Este primeiro documento propunha um calendário para o trabalho que determinava

que, de julho a agosto de 2002 seriam feitos contatos com colaboradores e levantamento de

recursos. Entre os meses de setembro e outubro aconteceria o debate do projeto, avaliações e

montagem das equipes. O jornal deveria lançar suas primeiras edições entre novembro e

dezembro desse mesmo ano. Foi aberta uma conta bancária para os depósitos e um endereço

de correio eletrônico para receber sugestões. O projeto previa a doação de cotas de jornais e

livros para aqueles que contribuíssem financeiramente e prometia a devolução dos recursos

caso o projeto não se viabilizasse. Pedia também que fossem enviadas propostas de nomes

para o jornal, indicações de colaboradores e jornalistas militantes de fora do estado de São

Paulo.

A referida proposta foi apresentada pela primeira vez em 29 de junho de 2002, em

uma reunião realizada na sede da ONG Ação Educativa, na região central de São Paulo, em

que estiveram presentes jornalistas e militantes das mais variadas áreas, fotógrafos,

advogados, juízes, membros da Igreja progressista, sindicalistas, diretores de teatro,

escritores, produtores culturais e ativistas de direitos humanos.

A ata da reunião de 29 de junho registra que ela começa com a leitura do documento

"Um jornal político nacional" por João Pedro Stedile, que ressalta "a necessidade urgente de

termos um jornal para disputar a opinião pública brasileira" e colocando que "o MST

constantemente é desafiado a encarar esse desafio e ser o motivador da criação desse jornal".

Além de declarar que "depois de muitos debates internos, o MST decidiu empenhar esforços

para construir essa proposta política".

Durante o debate, aparecem novas propostas para o jornal. Em relação ao formato e

aparência fica determinado que o jornal deve ser "bonito, bem-feito, informativo e causar

impacto", deve ter uma "linguagem clara, de fácil entendimento, sem banalizar os assuntos.

Deve procurar o rompimento com "um padrão formal, contemplar a diversidade e preocupar-

se também com a forma, e não só com o conteúdo", além de ter uma capa "leve e chamativa"

(ata da reunião de 29/06/2002).

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Em relação ao projeto político, os presentes à reunião colocaram a necessidade de o

jornal ser respaldado por um documento de fundo, que seria o já citado "Projeto Popular para

o Brasil", com o qual o grupo já teria "identidade". Debateu-se a criação de um Conselho

Editorial que "garanta a linha política do jornal" e foi problematizada a questão da pluralidade

de visões, "que pluralismo é esse que defendemos?", indaga o documento.

Pela referida ata, a reunião deixa claro que se tratará de um jornal anticapitalista, de

combate à direita brasileira. Seu público alvo é colocado como "a esquerda do país", algo em

torno de "25 milhões de pessoas". A linha editorial deverá "garantir a pluralidade de idéias",

deve ter um "caráter nacional, que contemple todas as regiões do país", que se contraponha à

"imprensa burguesa". O jornal deve ser pautado pela "realidade, a partir das discussões sobre

o Brasil e as soluções para seus problemas", deve "combinar o caráter de denúncias com o de

conquistas populares" e "abrir espaço para a realidade e lutas dos povos de outros países".

Em relação aos recursos, a previsão de dinheiro proposta pelo MST para a sustentação

de seis edições do jornal cai de 360 mil dólares (documento Um jornal político nacional) para

275 mil dólares, 35 mil mensais para as edições e mais 25 mil para a infra-estrutura. A

plenária sugere que seja arrecadado dinheiro suficiente para a manutenção do jornal por um

ano, e não apenas por três meses, a partir de uma "campanha de massas, que combine formas

de organização estrutural do jornal como distribuidores, vendedores, colaboradores e

anunciantes". Sugere também que sejam contatados "artistas famosos que possam colaborar

com seus trabalhos como Sérgio Ferro, Sebastião Salgado", além da mobilização de "artistas

de teatro para que façam apresentações, revertendo a bilheteria para o jornal". Ficou acordado

que o jornal deveria organizar uma lista de sócios e ter "contribuintes mensais permanentes"

(ata da reunião de 29/06/2002).

Segundo o relato da reunião, os presentes colocam a necessidade de "agregar ao jornal

outras formas de comunicação como uma página na internet, uma agência de notícias, uma

versão online do jornal, um banco de fotos". A solidez do jornal estaria garantida se

conseguisse arrecadar recursos financeiros, manter uma linha editorial clara, montar uma rede

de colaboradores, distribuidores, vendedores, repórteres e fotógrafos "populares" e

finalmente, se conseguisse chegar às massas populares.

O jornal deveria ser ambicioso, de amplitude nacional, semanal, com tiragem de 100

mil exemplares. Esta reunião coloca pela primeira vez a idéia que de o jornal poderia tornar-

se diário após um período de consolidação, ao afirmar que "mesmo sendo semanal, deve ser

um jornal com perfil diário".

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Além dos aspectos acima citados, a ata dessa primeira reunião lista algumas idéias

gerais que contribuiriam posteriormente para a formulação do projeto editorial do Brasil de

Fato, entre elas a necessidade de mostrar a cara do Brasil a partir de fatos e denúncias, sem

discursos, a existência de reportagens, a divulgação de conquistas da população. Coloca-se a

necessidade de refletir sobre as experiências anteriores da imprensa alternativa e as razões de

sua não continuidade, além da determinação de que o jornal não deveria servir apenas como

uma ferramenta de comunicação entre um grupo restrito, ele deve se comunicar com a

sociedade.

Sobre o lançamento, define-se que não deve haver pressa e que o grupo deve aguardar

a arrecadação do montante necessário para o financiamento de um ano do jornal para colocá-

lo nas ruas. As fontes de informação devem ser buscadas fora do que colocam como "os

padrões comuns da grande imprensa", cujas "manipulações da informação" devem ser

mostradas, além de não priorizar somente a "qualidade", mas a "quantidade de informações, a

partir da agregação de outros multimídias". Aparece também a necessidade de aglutinação de

"amigos" e profissionais de outros estados ao projeto e do estabelecimento de "acordos com

os colaboradores" (ata da reunião de 29/06/2002).

Entre as diretrizes políticas, é colocado que o jornal "deve ser um espaço de

construção – numa perspectiva socialista – do futuro", além de não encarar a crise da esquerda

como um "entrave, mas sim enxergá- la como um desafio a ser vencido". Finalmente,

estabelece-se que o jornal deve atingir as massas populares.

O encaminhamento prático desta reunião é a formação de quatro equipes de trabalho

que ficariam responsáveis por desenvolver projetos para áreas específicas do jornal: finanças,

multimídia, editorial e colaboradores. As comissões saíram desta primeira reunião já com

encontros agendados. Segundo Nilton Viana, em entrevista concedida à autora:

Eram quatro comissões, uma delas para captar recursos, doações e bolar formas de campanha para arrecadação (finanças). Uma equipe para projeto editorial. Outra para pensar o projeto gráfico e outra para articular uma rede de colaboradores e criar um banco de dados e informações para que pudéssemos trabalhar melhor com colaboradores, pensar toda a forma de divulgação, no período pós-criação do jornal Brasil de Fato.

A partir da reunião de 29 de junho, tem início um processo mais amplo de discussão

em torno do projeto do jornal Brasil de Fato. As comissões passam a aglutinar novos

interessados e a lista de potenciais colaboradores do jornal aumenta. Veremos a seguir que

começam a aparecer as primeiras divergências que marcariam as discussões sobre o projeto

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editorial, sobre a estrutura financeira do jornal, e principalmente sobre a conjuntura brasileira

no momento escolhido para seu lançamento.

2. Projeto editorial e político do "jornal de esquerda"

A comissão responsável por pensar o projeto editorial do novo jornal, que a partir da

reunião de 29 de junho passa a ser conhecido como "jornal de esquerda", se reúne e formula o

projeto a partir dos pressupostos colocados e discutidos acima. A dinâmica comum às outras

comissões é de escrever documentos e submetê- los às críticas e sugestões do coletivo,

aprimorando o projeto até fechá-lo. Algumas pessoas ficaram responsáveis por partes

específicas do projeto, como a formulação das editorias. Também foram debatidas nas

reuniões amplas as sugestões enviadas a partir de discussões puxadas pelos militantes do MST

fora do estado de São Paulo.

O primeiro esboço do projeto editorial, feito pelo jornalista José Arbex Júnior, e

chamado de "Projeto editorial do Jornal de Esquerda" incorpora aos pressupostos iniciais

vistos acima (documento-base apresentado pelo MST e sugestões tiradas da primeira reunião,

em 29 de junho), uma lista de aspectos que chama de "O que o jornal não é", elementos que

deveriam ser evitados. Segundo este documento o jornal não é, ou não deveria se tornar:

político-partidário, não excluindo "em princípio, nenhuma corrente de opinião de seu quadro

de colaboradores (exceto, obviamente, aqueles que se opõem aos seus princípios gerais)";

ideológico, ou seja, "não colocando a ideologia na frente dos fatos. Isto é, ele não usa os fatos

como simples exemplo para ilustrar uma ideologia [...] o que não significa que ele não tenha

uma ideologia"; "de amigos para amigos", o que significa que o jornal não deve carregar uma

"linguagem cifrada, falada apenas por determinados guetos culturais e ideológicos. Sua

linguagem deve ser, ao contrário, de fácil entendimento para qualquer leitor médio, de

qualquer região do Brasil" (Projeto editorial do jornal de esquerda, 2002, p.2).

Em contraposição, o jornal deveria ser: um semanário independente, "sem vínculo

político-partidário nem associação a qualquer grupo empresarial"; moderno, "de leitura

dinâmica e agradável, para um público que já é consumidor de jornais, ou que poderá se

tornar ao notar que existe uma nova opção na praça"; sério, ao ponto de se tornar "referência e

leitura obrigatória para quem quer de fato saber o que está acontecendo"; bonito; informativo,

"com grandes reportagens, com denúncia de fatos e amplo espaço para o jornalismo"; ter

linguagem clara, sem cair na banalização; contemplar a diversidade de temas com

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criatividade; conduzir à reflexão, refletindo o "projeto popular para o Brasil", seus desafios e

as saídas [...] para resolver os problemas do povo; e ter dimensão nacional, abarcando "a

amplitude dos fatos e problemas de todo o país". (Projeto editorial do jornal de esquerda,

2002, p.3).

O público alvo do jornal era definido neste esboço como:

As pessoas progressistas, organizadas e desorganizadas, que querem mudanças no Brasil. Esse público vai desde a militância social engajada até a classe média desanimada, que conforma os eleitores do Lula-89, e que, portanto abarcam milhões de brasileiros. Embora por suas limitações de jornais, chegaremos apenas a alguns milhares. Há também um "filão" preferencial que seriam os sindicalistas, intelectuais, estudantes universitários e secundários, profissionais liberais, funcionários públicos etc. e que têm capacidade de formar opinião, multiplicar idéias e debates.

Segundo o referido documento, o formato seria tabló ide germânico, com vinte e quatro

páginas e quatro cores. A proporção entre texto e imagem seria de 60% a 40%. Suas páginas

seriam divididas entre as seguintes editorias: “nacional (política brasileira); economia

(nacional e internacional); política internacional; cultura; esportes e obedeceriam à seguinte

ordem”:

Capa; página 2: editorial, expediente, cartas dos leitores ou artigos de opinião,

campanhas; páginas 3 a 10: política e economia, sendo "o desafio aqui é cobrir essa área

dando um rosto a quem não tem visibilidade, e dando voz a quem normalmente não é

ouvido", entrevista, artigos de opinião; páginas 11 a 14: internacional; páginas 15 a 20:

cultura; páginas 21-23: esportes, "com um enfoque cultural" e página 24, a contracapa,

deveria abrigar sempre um assunto "quente".

A partir desse esboço, colocado para discussão entre o grupo ampliado que se formava

em torno do projeto, começaram a aparecer as primeiras divergências em torno das

perspectivas para o jornal e do papel que ele deveria cumprir. Essas divergências diziam

respeito principalmente ao público que o jornal deveria atingir e refletiam nas escolhas que o

projeto editorial deveria fazer. Os dois caminhos distintos apontavam para a escolha de falar

com um público militante e já organizado dentro dos movimentos de esquerda ou para o

desafio de construir um jornal voltado para um público ampliado, não necessariamente

organizado em partidos ou movimentos, concepção que aparecia como pressuposto para a

existência do jornal desde os primeiros documentos. Para José Arbex Júnior:

Uma perspectiva é que deveria ser um jornal de esquerda, voltado para a esquerda e com um conteúdo basicamente endereçado à militância de esquerda [...]. E havia

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outra perspectiva que era um jornal que se definia por uma linha antiimperialista, socialista, mas o público alvo dele não era a esquerda, era a nação brasileira. Era um jornal que iria disputar, em banca, a audiência da nação brasileira [...]. A idéia era mostrar para o leitor do Estadão, da Folha e da Veja que havia outro Brasil. E que era um Brasil que não seria descrito para o leitor por um jargão de esquerda. Mas seria descrito por uma linguagem normal, que todo mundo fala na rua, no dia a dia.

Na ata da reunião feita em 30 de agosto de 2002 entre as comissões do projeto

editorial e multimídia, fica claro que a existência de duas concepções permeia todas as

discussões, já que o jornal precisaria definir seu caráter para "decidir seu nome, a distribuição,

a equipe etc.". O documento coloca as duas concepções como: 1. (jornal) "com caráter

profissional, mas com um enfoque político diferente dos jornais tradicionais" e 2. (jornal)

"com caráter militante, de opinião, não-profissional".

Nilton Viana reforça a perspectiva de Arbex para o jornal, inclusive colocando que o

grupo procurou se espelhar nas experiências anteriores de jornais de esquerda para evitar os

mesmos erros:

Nós intensificamos muito o debate em torno de como e qual deveria ser esse instrumento, ou seja, esse veículo de comunicação, inclusive debatendo as experiências da esquerda, já que na verdade nós não estávamos inventando a roda [...] A esquerda brasileira sempre procurou criar seus próprios meios, então nós debatemos muito os erros e acertos desses meios específicos que a esquerda sempre procurou criar. Um deles é que nós não faríamos um jornal de nenhum partido político ou de uma tendência política específica, ao mesmo tempo em que não seríamos uma república de tendências. Não seria um jornal doutrinário, dogmático, massudo, seria um jornal com reportagens, que fizéssemos mesclado com profissionalismo e militância. E mais, não faríamos um jornal para nós mesmos, ou seja, para militância. O jornal nasceu especificamente para dialogar com outro público da sociedade brasileira, não com a militância, emb ora seja um instrumento que sirva de subsídio para a militância, para fazer o debate político-ideológico [...] Alguns queriam que fosse um jornal voltado para a militância, um pouco dentro da linha dotrinária-dogmática, de se algo que fosse um instrumento para a vanguarda [...] Então nós mesclamos todos esses debates e chegamos a um meio -termo. Ou seja, vamos fazer um jornal bonito, que vá para as bancas, que seja atrativo, com linguagem profissional, jornalística - com reportagem - mas que ao mesmo tempo seja um jornal que se posicione politicamente frente aos grandes desafios da conjuntura.

Em relação ao público-alvo do Jornal, Nilton identifica-o aos eleitores históricos do

PT:

Fundamentalmente, a gente trabalhava com a perspectiva, sobre qual seria nosso público. O PT tinha uma média até 1994, de 18 a 20 milhões de votos. Foi uma média que se manteve desde 1989 sem se alterar muito. Foram sempre votos ideológicos, de pessoas progressistas que querem mudanças estruturais no país. Nós inclusive, em linhas gerais, dizíamos que queríamos atingir esse público. Esse público que está disperso no país. Não esse público que elegeu no Lula no primeiro mandato, esses 54 milhões de pessoas, que aí já foi reflexo de marketing, que não condiz com o voto ideológico.

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Já Ricardo Gebrim, em entrevista a autora, declara que o grupo se referenciava no

número de pessoas que se agregaram em torno do Plebiscito sobre a ALCA, em 2002.

Segundo ele:

Nós tínhamos um levantamento de que a idéia de organizar o plebiscito sobre a ALCA tinha mobilizado no Brasil todo, 156 mil ativistas. Era um público bem plural, de todas as forças políticas de esquerda, mas isso para nós era uma referência. Existem 156 mil pessoas que, em tese, seriam o público alvo desse jornal. Então a gente falava e pensava muito nesse número, existem aí 156 mil pessoas, nós temos até a lista delas aqui, porque participaram do plebiscito, estavam envolvidas nisso, poderiam assumir, se interessariam num jornal como esse, poderiam ser o público alvo desse jornal. Então essa era a referência principal, que era algo bem amplo.

As duas concepções distintas sobre o papel e o caráter do jornal aparecem novamente

no momento da escolha de nomes. Desde o início das discussões, o MST recolheu sugestões

dadas em reuniões e enviadas por correio eletrônico. No momento de sistematização e

escolha, havia duas linhas distintas para o nome do jornal, que refletiam as duas perspectivas,

uma mais voltada para a luta dos trabalhadores e para a tradição socialista e outra mais

preocupada em estabelecer um diálogo com a população em geral. Segundo Miguel Stedile,

em entrevista concedida para esta pesquisa:

Tinham propostas como "Aurora" 16, por causa do navio... Super bolchevique. [...] O Arbex dizia o seguinte: "Olha, todo mundo tem uma idéia de jornal. Todo mundo quer construir um jornal de esquerda nacional e tal. É um momento histórico, estamos empolgados com isso. Se fosse por mim, o jornal se chamaria 'A Centelha', 'Socialismo ou Barbárie', mas o jornal não vai ser feito para mim". Então a gente tinha que disputar os setores de forma mais ampla. É claro que o jornal vinha falar para um público mais amplo, mas também deveria falar para a militância, para as organizações, ele se pretendia plural nesse aspecto.

A preocupação do grupo que defendia uma concepção mais aberta de jornal era de que

a escolha do nome restringisse a penetração do jornal a grupos de esquerda. Com esse perfil,

além de "Aurora", foram feitas sugestões como "Luta Popular", "Mutirão", "A Esquerda", "A

Voz da Esquerda", "Rumo Socialista" e "Esquerda Plural". Outra vertente de sugestões

apontava para a perspectiva mais ampla, apontando para opções como "Debate Brasil",

"Brasil de Debate", "Brasil de Fato", "Brasil Informa", "Correio do Brasil", "O Brasil", "Outro

Brasil", "Opção Brasil" e "Idéias e Fatos" (documento: relação dos nomes sugeridos para o

Jornal de Esquerda, 2002).

Os nomes finalistas da consulta, que recebeu 58 sugestões, foram divulgados em

circular passada por correio eletrônico ao coletivo em 23 de setembro de 2002. Eram: "O 16 Cruzador Aurora, navio utilizado pelos bolcheviques na tomada da cidade de São Petersburgo, no

início da Revolução Russa, em 1917.

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Brasil", "Brasil Popular", "Nosso Brasil", "O País", "Novos Tempos", "Tempos Novos",

"Nosso Jornal" e o escolhido: Brasil de Fato.

No dia 17 de outubro de 2002, uma circular informa os grupos de apoiadores do

jornal, as secretarias estaduais do MST e demais colaboradores do projeto de que o "Jornal de

Esquerda" finalmente tivera seu nome escolhido, após uma reunião que empreendeu um

processo de eliminação entre os oito finalistas. O Brasil de Fato tinha também um projeto

editorial fechado. A comissão responsável reunira sugestões feitas por correio eletrônico e as

submetera ao coletivo. As propostas para as editorias internacional, nacional e cultura foram

formuladas por membros do grupo especializados nas áreas, respectivamente José Arbex,

Hamilton de Souza (jornalista) e Sérgio de Carvalho (diretor teatral da Cia. do Latão). Mais

de três meses haviam se passado desde a primeira reunião aberta em torno do projeto, em 29

de junho.

A construção do Brasil de Fato entrava em outra fase, a de viabilização do projeto,

arrecadação de recursos, montagem de uma equipe fixa e de colaboradores, e publicação da

página experimental do jornal na internet. Outra prioridade era a construção dos comitês de

apoio, iniciativa que analisaremos a seguir. José Arbex Júnior, participante do grupo desde o

início e autor do esboço do projeto editorial aceitara o cargo de editor-chefe e a partir desse

momento, o grupo envolvido na construção do Brasil de Fato passa a trabalhar com um

indicativo de data para o lançamento de seu número zero, o Fórum Social Mundial de Porto

Alegre, marcado para janeiro de 2003.

A versão final do projeto editorial manteve os princípios gerais descritos no

documento-base apresentado inicialmente pelo MST, com algumas reformulações, além de

incorporar os principais aspectos do esboço formulado por José Arbex Júnior, com o

acréscimo das sugestões pela comissão específica e pelas reuniões gerais. Na visão de Miguel

Stedile, colocada em entrevista à autora:

A concepção majoritária predominou. Tinham algumas concepções minoritárias, praticamente individuais [...] dizendo "a gente deve ter uma revista de textos mais longos, análise profunda, voltada para os quadros." [...] Mas naquele momento a grande maioria das pessoas que estava debatendo o jornal não estava pensando nisso. Eles estavam pensando em um jornal massivo, de esquerda, para demarcar uma posição e influenciar nas lutas sociais, na disputa hegemônica mesmo. Não foi um jornal que nasceu se pensando pequeno. Pode até ter nascido pequeno, mas nunca se pensou limitado. [...] Isso não é um idealismo, exagero. Acho que é sinal de maturidade. Se a esquerda quer disputar o poder no Brasil, ela precisa ter veículos de comunicação de massa. [...] Uma preocupação em falar com o público mais amplo, em ser pedagógico, em orientar as lutar, de estar vinculado com os movimentos sociais, mas não se voltar exclusivamente para os movimentos.

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A abertura do projeto editorial coloca que:

Na luta por uma sociedade justa e fraterna, a democratização dos meios de comunicação é fundamental. E é com essa concepção que o MST, em consonância com outros movimentos sociais, como a Via Campesina17, a Consulta Popular, as pastorais sociais , criaram o jornal Brasil de Fato – um jornal político, de circulação nacional, para contribuir no debate de idéias e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país. Portanto, o Brasil de Fato é o resultado das aspirações de milhares de lutadores de movimentos populares, intelectuais de esquerda, sindicatos, jornalistas e artistas que se uniram para formar uma ampla rede nacional e internacional de colaboradores. (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002).

Ligeiramente modificados em relação ao primeiro documento, os objetivos centrais do

jornal Brasil de Fato seriam:

a) Expressar a visão da esquerda sobre os fatos e a realidade nacional e internacional e promover o seu debate; b) Expressar a postura da solidariedade internacional entre os povos; c) Ser plural nas idéias, sem vinculação a correntes partidárias, e profundamente comprometido com os interesses do povo brasileiro nas transformações sociais necessárias ao país; d) Subsidiar, com informação e reflexão, a militância social e as pessoas que querem mudanças; e) Estimular as lutas sociais e os movimentos de massa; f) Promover incansável e incessantemente os valores humanistas e socialistas; g) Ter como referencial político a necessidade de um Projeto Popular para o Brasil . (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002)

Suas características estão listadas como:

1) Periodicidade semanal, com perspectiva de ser diária num futuro próximo; tiragem mínima de cem mil exemplares; 2) Elaborado em linguagem simples, acessível, moderno, com muitas reportagens, cobertura fotográfica, bonito, sério, informativo e analítico, com a união de profissionalismo/ militância, competência/ compromisso social, beleza/luta; 3) Pautado, sobretudo pela realidade nacional, que reflita nos problemas de todo o país; 4) Vendido em bancas, por distribuidores militantes, por meio de assinaturas e em cotas para movimentos sociais, sindicatos, paróquias etc.; 5) O jornal é administrado por uma editora, sem fins lucrativos, que foi constituída para este fim, com alguns sócios honorários. (Projeto editoria l do jornal Brasil de Fato, 2002).

17 A Via Campesina é um movimento internacional de luta pela terra, criado em maio de 1993, que

congrega organizações camponesas de todo o mundo. No Brasil, fazem parte desta articulação, além do MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e a Pastoral da Juventude Rural (PJR). Disponível em http://www.viacampesina.org

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Sobre sua natureza e público alvo:

a) O jornal Brasil de Fato tem vocação quotidiana e nacional. Até consolidar as condições necessárias para tal, será um semanário, com tiragem de 100 mil exemplares iniciais. O Brasil de Fato responderá às crises conjunturais e estruturais, nacionais e internacionais, apresentadas e lidas desde o ponto de vista do mundo do trabalho. b) Nossos leitores são as pessoas progressistas, integrantes ou não de organizações classistas e populares, que querem mudanças no Brasil, incluindo a classe média disposta a somar-se na luta pela transformação do país. O Brasil de Fato destinar-se-á também aos sindicalistas, intelectuais, estudantes universitários e secundários, profissionais liberais, funcionários públicos etc. que têm capacidade para formar opinião, multiplicar idéias e debates. (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002).

Uma modificação importante em relação às propostas anteriores diz respeito ao

número de páginas, que no projeto editorial definitivo aparece como 16, número efetivamente

utilizado a partir do número 1, e não mais como 24. Em relação à estrutura interna do jornal,

manteve-se praticamente a mesma proposta feita por Arbex no esboço do projeto editorial,

mas a área de cobertura, os temas e preocupações que deveriam nortear o trabalho de cada

editoria foram desenvolvidos e ficaram estabelecidos da seguinte maneira:

Página 1 – capa; Página 2 – editorial, expediente, cartas, campanha de assinatura ou vendas; Páginas 3 a 8 – editoria nacional Temas: política, economia, educação, saúde, segurança, reforma agrária, habitação, povos indígenas, meio ambiente, riquezas naturais e demais áreas e assuntos do âmbito nacional. Forma: pelo menos uma boa reportagem de política e uma boa reportagem de economia, além de várias matérias (reportagens, artigos, notas e resumos) das demais áreas e assuntos nacionais. A pauta deve ter uma função estratégica para afirmação da linha editorial do jornal e a conquista de leitores; deve construir, a cada edição, um pouco da dimensão nacional, seja com a produção de matérias nos mais diferentes pontos do território, seja na expressão das realidades, das lutas e dos movimentos sociais. A cobertura nacional deve evitar o denuncismo, o sensacionalismo e o tratamento irresponsável e superficial dos fatos nacionais; ao contrário, deve ter critérios claros e transparentes para uma cobertura rica, sóbria, atraente, inteligente, educativa e formadora de opinião. A política deve ser vista além dos partidos e do jogo institucional dos executivos e legislativos; é preciso tratar a política como a ação humana na busca do bem comum; é preciso fornecer para o leitor os interesses existentes por trás dos fatos, os bastidores e onde estão os verdadeiros centros de poder. A economia precisa ser traduzida para que o cidadão comum - medianamente informado - entenda as relações da macroeconomia com os problemas do cotidiano, as relações internacionais do capital com as políticas governamentais. É preciso desmascarar o tempo todo a visão economicista, segundo a qual tudo deve estar subordinado à economia; é preciso desmascarar o tecnicismo e a burocracia, que são instrumentos usados pelas classes dominantes para justificar seus atos anti-populares. Páginas 9 a 11 – editorial internacional

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"Contextualização" é a palavra-chave desta editoria. Se a "grande mídia" mostra os fatos de forma fragmentária, nosso jornal, ao contrário, vai mostrar como os fatos da política internacional estão articulados, e explicam, muitas vezes, as atitudes de governos nacionais. A cobertura sempre terá no horizonte dois focos principais: O desvendamento da política do imperialismo, particularmente do imperialismo americano A resistência dos povos, quase sempre ocultada pela "grande mídia". Será particularmente importante nesta seção, talvez mais do que em qualquer outra editoria, a contribuição de articulistas que possam explicar, em linguagem muito simples e articulada, a conexão entre os fatos que são ocultados ou apresentados de maneira desconexa pela "grande mídia". Podemos e devemos aproveitar os materiais das agências alternativas e independentes (Alai, Adital, Diário de Urgência, Z net etc.) assim como a contribuição de correspondentes, "stringers" e de grandes articulistas e pensadores que estão do nosso lado (de Noam Chomsky a Leonardo Boff). Não seremos, necessariamente, "pautados" pela "grande mídia". Ao contrário, vamos produzir material próprio, original, adotando o ponto de vista dos movimentos sociais. Páginas 15 e 16 – Agenda cultural da esquerda, cultura e esporte Agenda cultural - Relação e descrição mínima de manifestações culturais, políticas, sociais na contramão do capital. 1) Princípios gerais: combater a mercantilização da cultura; priorizar processos e não produtos culturais. Os atos culturais devem ser apreciados por seu valor de uso (estético, político, moral etc.) não pelo valor de troca. Relacionar a produção cultural com sua base material. Sugerir meios para que o desenvolvimento cultural seja possibilidade de todos e não apenas da elite. Tratar cultura como ação política, sem doutrinarismo nem medo de tomar partido. Fugir do culto à personalidade. Tratar a chamada cultura popular com o mesmo rigor da chamada cultura erudita. Subverter os gêneros jomalísticos habituais. Exp erimentar novas formas. Comprar brigas com a grande imprensa. E também com as grandes editoras, gravadoras, teatros, televisões, e tudo o mais que tenha se tomado "grande" à custa da miséria alheia. 2) Funções das páginas de cultura a) Refletir criticamente a realidade da cultura produzida do país; b) Propor encontros de trabalho e novas possibilidades, reunindo pessoas para entrevistas, organizando debates, estimulando cruzamentos de áreas e participações das bases populares. 3) Áreas de concentração a) Produção simbólica: Registro, análise, interpretação de produtos e processos culturais significativos de áreas como Literatura, Teatro, Cinema, Artes Plásticas, Música, Dança, Ciências, Culinária, Moda, Arquitetura etc. b) Indústria Cultural: Crítica e desvendamento dos hábitos dos veículos de massa, sobretudo rádio, televisão, imprensa. c) Cultura popular e política: Registro e reflexão sobre as manifestações artísticas e culturais realizadas à margem dos mercados, vinculadas a tradições populares, ou ligadas às visões políticas de esquerda. d) Conjuntura sócio-política e econômica da cultura e educação: Análise e debate sobre as políticas culturais, científicas e educacionais do país. e) Esporte como cultura: Análises e reportagens sobre a vida esportiva no país. É importante que esta área tenha também perspectiva crítica, mostrando os vínculos históricos entre a indústria esportiva, as ideologias nacionalistas e racistas, e a financeirização do capital. (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002).

Em relação ao projeto político, não houve divergências. O documento-base formulado

pelo MST previa que o Brasil de Fato fosse orientado politicamente pelo já citado “Projeto

Popular para o Brasil”. O grupo formado para a elaboração do projeto do jornal, apesar de

heterogêneo, possuía referências no MST de forma a não contestar esse ponto. Dessa forma,

foram estabelecidos os seguintes objetivos e desafios políticos para o jornal:

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1. Elevar o nível de consciência política e cultural do povo. 2. Servir de subsídio para a militância social 3. Estimular as lutas sociais, de massa. 4. Expressar uma visão transformadora (esquerda) dos fatos e da realidade brasileira. 5. Ser plural nas idéias, mas balizado pelo compromisso de transformação social. 6. Incentivar o engajamento político, organizado das pessoas. 7. Promover o debate de idéias na sociedade. 8. Promover a cultura popular brasileira. 9. Expressar a solidariedade internacional entre os povos. 10. Cultivar os valores socialistas e humanistas. (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002)

Desafios a superar 1. Compreender que é um processo de construção permanente, que vai levar tempo, (um ano!) 2. É uma construção coletiva. É um verdadeiro movimento social. 3. Deve ser um instrumento. Logo precisa chegar ao maior número possível de pessoas, de organizações sociais, de locais, de cidades, ser conhecido. 4. Só alcançará seus objetivos políticos se for independente financeiramente. Caminhar com suas próprias pernas. Para isso o melhor caminho são as assinaturas. 5. Exige militância, dedicação, espírito de sacrifício, cuidado, para que se transforme num instrumento aglutinador. 6. Ter jornalistas profissionais e militantes, que se incorporem ao projeto, em muitas cidades, para ser nacional e popular. 7. Ter uma linha política editorial, didática e com profundidade, que arme o leitor de informações. (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002).

Outros elementos, como a criação dos comitês regionais, também estavam presentes

do projeto político do Brasil de Fato, assim como fazem parte dele as opções por

determinados modelos de organização do trabalho, tanto na redação como nos conselhos. Por

motivo de organização, deixaremos para abordar essas questões nos itens seguintes.

3. Funcionamento e sustentabilidade A estrutura de funcionamento do Brasil de Fato foi sugerida basicamente pela mesma

comissão responsável pela elaboração do projeto editorial do jornal. Esta comissão, formada

principalmente por jornalistas, era a mais capacitada para vislumbrar as demandas de um

meio de comunicação por pessoal. Por outro lado, a questão política permeou a estruturação

dos órgãos colegiados que deveriam gerir o jornal, deixando claro que o Brasil de Fato se

tratava de um projeto político que teria diretrizes claras a seguir.

A redação do Brasil de Fato, localizada na região central de São Paulo, seria

responsável pela organização da rede de correspondentes e colaboradores regionais que

deveriam fornecer informações, textos e fotos. Organizar essa colaboração seria o maior

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desafio da redação, segundo o documento "Estrutura organizativa do jornal", parte do projeto

editorial do Brasil de Fato. Sua equipe fixa de profissionais deveria contar com: um diretor de

redação, um editor de Brasil/ economia, um editor de internacional, um editor de cultura/

esportes, um coordenador da agência de notícias com funções de pauteiro, três repórteres sem

alocação fixa nas editorias, um editor de arte, um arteiro para editoração, um secretário de

redação/ produção. Também foi sugerida a reserva de alguma verba para a contratação de

eventuais repórteres e fotógrafos free-lancers, para a compra de fotos e ilustrações, além da

necessidade de contar com articulistas e jornalistas que ajudassem nos fechamentos. O esboço

do projeto editorial feito por José Arbex contava com a figura de um diretor de redação,

"autoridade máxima, autônoma e soberana para decidir o dia-a-dia do jornal (manchetes,

pautas, enfoques de reportagens, entrevistas)". Essa figura aparece como editor-chefe no

projeto definitivo, cargo ocupado primeiro por Arbex e posteriormente por Nilton Viana. Os

jornalistas e demais profissionais da redação seriam contratados e remunerados pelo serviço.

Dentro da perspectiva de construir um jornal militante, voltado somente aos movimentos

sociais, houve propostas que defenderam a não-remuneração dos profissionais, mas a

necessidade de consolidar uma equipe fez com que essa idéia fosse descartada.

Uma iniciativa que casou a necessidade de divulgação do projeto com a urgência em

formar uma rede de colaboradores foi a página na internet chamada de "Tira-gosto". Colocada

no ar em novembro de 2002, ela tinha como objetivos principais "concentrar, organizar e

estimular o trabalho da rede de colaboradores regionais, além de servir como canal de

captação de pautas e de novos colaboradores" e "testar e definir a melhor forma de operar no

dia-a-dia do jornal com o recebimento, a seleção e a edição do material enviado pela rede de

colaboradores regionais" (documento intitulado Cardápio para o site tira-gosto). A página

antecipava também alguns dos temas que seriam abordados no jornal a partir de artigos

inicialmente publicados por agências de notícias próximas e enviados por futuros colunistas.

Em relação à gestão, o projeto editorial final previa a formação de dois conselhos: de

redação e político. O conselho de redação teria quinze membros, com o papel de

supervisionar o jornal e fazer reuniões quinzenais com o conselho editorial. Este conselho,

formado por pessoas escolhidas pelo MST, deveria ser composto levando em consideração

aspectos como representação social, disponibilidade e compromisso com o jornal. Caberia ao

conselho de redação a contratação de pessoal, compra de equipamentos, administração das

relações do jornal, além da produção de editoriais em colaboração com o diretor de redação,

sendo que esta última função aparece somente no esboço de projeto feito por José Arbex.

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Ao longo do processo, o conselho de redação transformou-se em conselho editorial e

perdeu parte de suas atribuições pontuais no dia-a-dia do jornal, tornando-se um grupo de

sugestões de pauta e enfoques políticos, que se reúne mensalmente. Foi reformulado

procurando contemplar a pluralidade de visões dentro da esquerda, em princípio com doze

pessoas de origens distintas. Para Nilton Viana, em declaração feita na entrevista dada à

autora:

Inicialmente, quando o jornal foi lançado nós nos reuníamos quinzenalmente [...] para fazer o “pente fino”, digamos assim, da conjuntura política. E também tomar decisões mais de caráter imediato. A idéia era [ter] sempre figuras dos movimentos sociais, que tenham representatividade e possam trazer para cada reunião elementos que nos ajudem a balizar a conjuntura política.

O conselho político, formado pelos representantes do conselho editorial e

aproximadamente outros cinqüenta membros, tinha a função de dar respaldo e legitimidade ao

projeto. Para isso, foram convidados professores, intelectuais, artistas, escritores,

parlamentares e lideranças de movimentos sociais, que dificilmente participariam de forma

ativa da vida do jornal, mas que poderiam emprestar seus nomes e imagens às campanhas de

vendas e assinaturas. Este conselho deveria se reunir a cada três meses, mas isso nunca

ocorreu na prática. Foram organizadas reuniões semestrais, que há alguns anos se tornaram

anuais, pela dificuldade em coordenar agendas tão diferentes. Segundo Nilton Viana:

A instância maior é o conselho político [...] com espectro bem amplo de participação, inclusive ideológico. Nós temos [...] do PMDB ao PSTU. No começo era uma estrutura que se reunia duas vezes por ano, mas nós temos feito uma reunião anual. Ele tinha um caráter muito mais para dar respaldo político, inclusive com algumas figuras de expressão política nacional e internacional. É algo que foi criado muito mais para dar as diretrizes políticas de longo prazo e ao mesmo tempo dar um peso político para esse veículo que estávamos lançando. Nós temos dentro desse conselho o Noam Chomsky, Sebastião Salgado, Oscar Niemeyer. São figuras que é claro, não participam das nossas reuniões, mas são pessoas que por confiança política e por acreditar no projeto político do Brasil de Fato emprestaram seus nomes. Nós temos um leque enorme de pessoas, de intelectuais, artistas que emprestam seus nomes para dar respaldo político. Mas a função desse conselho é se reunir um vez por ano e fazer os grandes debates. E é um momento que nós aproveitamos para prestar contas do que estamos fazendo para as pessoas que emprestam seus nomes ao projeto Brasil de Fato .

Um dos pilares mais importantes do jornal seria sua lista de colunistas brasileiros e

estrangeiros. Graças ao prestígio do MST, uma série de intelectuais aceitou contribuir com

artigos não remunerados para o jornal. O dia a dia mostrou que nem todos teriam

disponibilidade e interesse para tal, mas, antes do lançamento do Brasil de Fato, a lista de

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possíveis colaboradores e articulistas era extensa e contava com os seguintes nomes

(Documento sem título com lista de colaboradores, 2002):

Colaboradores de política e economia nacional Ademar Mineiro, Apolônio de Carvalho, Armando Boito Jr., Beto Almeida, Caio Navarro de Toledo, Candido Grzybowski, Carlos Lessa, Carlos Nelson Coutinho, César Benjamin, Chico de Oliveira, Dom Demétrio Valentini, Dom Mauro Morelli, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomas Balduíno, Eduardo Carrion, Emir Sader, Ermínia Maricato, Fábio Konder Comparato, Fernando Morais, Frei Betto, Frei João Xerri, Gershon Knispel, Hamilton Octavio de Souza, Horacio Martins, João Quartim de Moraes, Jacob Gorender, João Pedro Stedile, José Arbex Júnior., Leandro Konder, Leo Lince, Leonardo Boff, Luis Carlos Guedes Pinto, José Luis Fiori, Marcos Arruda, Maria da Conceição Tavares, Maria Luisa Mendonça, Maria Vitória Benevides, Marilena Chauí, Marília Gabriela, Mário Maestri, Nilo Batista, Olga Futema, Paulo Arantes, Paulo Zarth, Plínio Arruda de Sampaio, Plínio Arruda de Sampaio Júnior, Raquel Rolnik, Reinaldo Gonçalves, Ricardo Antunes, Robert Ponge, Ronald Rocha, Sergio Haddad, Sueli Carneiro, Thetonio dos Santos, Vânia Bambirra, Valter Pomar e Vladimir Pomar. Colaboradores de cultura Alcione Araújo, Alípio Freire, Alfredo Bosi, Antonio Candido, Augusto Boal, Beth Carvalho, Clóvis Moura, Companhia Teatro do Oprimido, Daniel Viglieti, Dulce Maia, Eduardo Galeano, Fabio Paez, Fernando Morais, Ferrez, Gilberto Maringoni, Hamiltom Pereira (Pedro Tierra), Ivan Villela, Joana Fomm, Lobão, Luiz Fernando Veríssimo, Maria Maia, Maria Rita Kehl, Sebastião Salgado, Sérgio de Carvalho e Cia. do Latão, Silvio Tendler, Zé Celso Martinez Correa. Colaboradores de esporte Juca Kfouri, Sócrates, Cajuru, Juarez Soares, José Trajano, Chico Buarque. Meio-ambiente, transgênicos e soberania alimentar Aziz Ab' Saber, Ariovaldo Umbelino, Pedro Ivo, Sebastião Pinheiro, David Hathaway, Silvia Ribeiro, Pat Money, Peter Rosset, Ricardo Petrella, Vandana Shiva, Jean Marc Van der Weid, Adriano Campolina. Colaboradores internacionais André Gunder Frank (EUA), Armando Bartra (México), Claudia Korol (Argentina), Edward Said, (Palestina-EUA), Fausto Bertinoti (Itália), Fernando Heredia (Cuba), François Chesnais (França), François Hourtart (Belgica), Hanz Hymmlert (costa Rica), James Petras (EUA), Jean Ziegler (Suíça), José Saramago (Portugal), Leo Gabriel (Áustria), Manu Chao (Espanha), Marta Harnecker (Cuba), Michael Löwy (França), Miguel Urbano (Portugal), Mumia Abu Jamal (EUA), Noam Chomsky (EUA), Osvaldo Leon (Equador), Pierre Broué (França), Rita Edwards (África do Sul), Samir Amin (Inglaterra), Sérgio Yahni (Israel), Kiva Maidanik (Russia), Jacques Chonchol (Chile), Xavier Gorostiaba (Venezuela), Ana Maria Cecena (México), Shafik Handal (El Salvador). (Documento sem título com lista de colaboradores, 2002).

Havia também a idéia de fazer contato e utilizar a produção de agências internacionais

e portais independentes como ALAI, Ciranda da Informação, La Jornada, Prensa Latina, Il

Manifesto, entre outros.

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Um dos pilares de sustentação do projeto do Brasil de Fato, os comitês de redação

regionais, faziam parte do planejamento estrutural do projeto. Mas, por conta de sua

importância, reservaremos um item para falar somente sobre eles a seguir.

Além da equipe editorial e colaboradores, ficou colocada a necessidade de montar uma

equipe administrativa, que trabalhasse de forma profissional e remunerada, dentro dos

"princípios contábeis de uma empresa" (esboço do projeto editorial), com a formulação de

uma política de gastos e rendimentos. Apesar de não ter fins lucrativos, o jornal deveria

prever recursos para investir em seu próprio crescimento. Essa equipe deveria gerir também

as assinaturas e antes do lançamento do jornal, administrar as doações que o projeto receberia.

Em relação às finanças, logo que o primeiro projeto do jornal foi apresentado, foi

montada uma equipe para a arrecadação de dinheiro que viabilizaria a publicação. Pelo que

observamos a partir da análise dos documentos, a previsão do montante necessário para

garantir a sustentação do jornal por um ano mudou bastante ao longo das discussões, como

pudemos verificar acima. Em agosto de 2002, o coletivo chegou a um acordo em relação à

soma de um milhão e duzentos mil reais, que deveria ser arrecadada até o lançamento do

número zero, e que sustentaria o Brasil de Fato até sua consolidação. Posteriormente, uma

nova previsão foi feita, apontando para a necessidade de arrecadar dois milhões de reais para

garantir o lançamento e o período de consolidação.

A campanha de arrecadação de dinheiro foi deflagrada antes mesmo do nome do jornal

ser definido, quando o projeto era chamado simplesmente de "Jornal de Esquerda", e

funcionou em três frentes: contribuições de mil reais feitas por entidades e/ou indivíduos,

assinaturas antecipadas de cem reais (duração de um ano), e campanha popular que garantiria

ao colaborador um mês de recebimento do jornal através da doação de dez reais. Foram

estabelecidas cotas-metas de arrecadação para cada estado do Brasil, levando em

consideração as diferenças regionais. O estado de São Paulo, por exemplo, por conta de seu

peso social e econômico, deveria levantar 20% da meta nacional (Informe ao coletivo do

jornal de 23/09/2002).

A divulgação da campanha aconteceu por intermédio dos membros do coletivo, que

deveriam passar a seus contatos explicações sobre o projeto. Foi feita também a partir de

visitas dos membros às universidades e sindicatos e parte significativa por correio eletrônico.

As doações de mil reais eram feitas a partir de fichas de adesão, pagas com cartão de crédito

ou boleto bancário. As de cem reais eram feitas a partir de blocos de assinaturas e também

poderiam ser pagas por boletos. As de dez reais eram registradas em blocos de contribuição

no formato de rifas e numeradas para sorteio de livros e viagens a Cuba.

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Foi formulado um documento para a divulgação da campanha de arrecadação de

fundos, que tanto poderia ser impresso, colado como cartaz ou enviado pelo correio, como

poderia fazer parte de uma mensagem de correio eletrônico. Chamava-se "Aos interessados

em democratizar a comunicação", e trazia explicações sobre a iniciativa do MST de criação

de um "Jornal de Esquerda", expunha seus objetivos principais e características gerais. O

documento, formulado em agosto de 2002, condicionava a o lançamento à arrecadação de um

milhão e duzentos mil reais, soma considerada suficiente naquele momento para garantir seis

meses de vida do jornal, até que passasse a se manter com as vendas em banca, além de se

comprometer a devolver o dinheiro, caso o projeto não se concretizasse. Havia também a

possibilidade de arrecadação de fundos a partir de doações de entidades internacionais.

Após o lançamento, havia a perspectiva de que o jornal se consolidasse e se tornasse

auto-sustentável em um curto espaço de tempo, a partir da venda em bancas de revistas nas

300 maiores cidades do país, da venda de assinaturas, da venda de cotas para movimentos

sociais, da chamada "venda militante", organizada a partir de grupos que poderiam distribuir e

vender o jornal por determinada porcentagem (Arbex, esboço do projeto editorial) e, por

último, a partir da venda de espaços publicitários que "não comprometam, por sua natureza, a

qualidade política do jornal", priorizando os "pequenos anúncios, condizentes com a

orientação do jornal", e garantindo "que o jornal não dependa de anúncios institucionais que o

determinem e condicionem" (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato).

Havia algumas razões para que o coletivo que se reuniu em torno do projeto

considerasse que a auto-sustentação do jornal aconteceria em tão pouco tempo. Apesar de que

até os meios comerciais, cujos orçamentos são em boa parte cobertos por anúncios, costumam

demorar muito mais para se estabilizar. A primeira delas diz respeito a uma estimativa feita a

partir do número de assinaturas que o jornal poderia conseguir. José Arbex lembra que essa

conta foi formulada a partir do número de pessoas que se engajaram na organização do

Plebiscito da ALCA, em 2002:

A gente fazia um cálculo que, durante a campanha contra a ALCA, nós conseguimos agregar 150 mil pessoas. Qual era o cálculo? Se 10% dessas 150 mil pessoas assinarem o jornal são 15 mil assinaturas. Está sustentado o jornal. O Stedile já mencionava que no Brasil tinham nove mil paróquias. Se 10% fizesse assinatura, de um jornal, seriam 900 assinaturas. A gente achava que, por baixo o jornal começaria com 16 mil assinaturas. Um jornal com 16 mil assinaturas no Brasil é um jornal que se sustenta.

E a segunda estava relacionada às perspectivas políticas para o Brasil em 2003. A

partir da aproximação da data das eleições, a viabilidade de eleição de Luis Inácio Lula da

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Silva para a presidência da República após três derrotas, começou a se delinear de forma mais

clara. A partir disso, tantos os jornalistas como os dirigentes que se debruçavam sobre o

projeto do Brasil de Fato, fizeram a previsão de que a vitória de Lula, após onze anos,

provocaria um momento de ascensão do movimento de massas. Com esta nova conjuntura, o

jornal assumiria a função de ser o meio de comunicação mais próximo das lutas populares e

passaria a ser procurado avidamente, por trazer informações que somente ele traria. Nas

palavras de José Arbex, na referida entrevista:

A vitória do governo Lula dava uma perspectiva de ascensão da luta de massas, na cabeça das pessoas que estavam articulando o jornal. Quer dizer, a idéia era a seguinte: nós estávamos vivendo um momento histórico fantástico no Brasil, um operário, retirante, nordestino [...] chegou à presidência da república, isso vai dar um ânimo para o movimento de massas fantástico, e quando as pessoas forem às bancas para procurar notícias, eles vão ter o tradicional que é a Folha e o Estadão e vão ter o novo que é o Brasil de Fato.

Nilton Viana confirma a avaliação de Arbex e complementa, em depoimento dado à

autora:

Nós tínhamos companheiros que imaginavam [...] que o Lula sendo eleito, o Brasil de Fato teria uma grande penetração, porque haveria um estímulo às mobilizações de massa. Alguns companheiros acreditavam que com Lula eleito, as massas, os movimentos de transformação e todas as pessoas que queriam mudanças no país estariam abraçando o Brasil de Fato também, como um instrumento que fosse o reflexo daquele momento político, daquela realidade.

Para Ricardo Gebrim, em entrevista concedida para esta pesquisa:

Quando chegam as eleições de 2002, de possibilidade real de vitória, mesmo achando que o governo Lula não seria um governo de transformações, nós fizemos uma leitura de conjuntura em que achávamos que a vitória do governo Lula, como era um anseio tão represado historicamente, iria representar um momento de retomada, certo reascenso, uma vontade de lutar. Havia uma influência grande do que estava se passando na Venezuela e a gente achava que ainda que o Lula ficasse ali freando, tentando barrar, havia um desejo, um sentimento. Influenciava muito com essa nossa base social muito camponesa, de fato os acampamentos do MST inflaram bastante, isso nos deu certa percepção equivocada de que isso aconteceria na sociedade. Isso fez com que acelerasse muito essa idéia, precisamos ter um jornal. É necessário, é urgente.

Além de acreditar que o Brasil de Fato passaria muito rapidamente por um processo

de consolidação a partir da instituição de uma conjuntura política favorável com a vitória de

Lula nas eleições de 2002, havia a perspectiva de que o governo democratizasse os

investimentos públicos nos meios de comunicação, a partir da compra de espaços publicitários

em jornais e revistas alternativos, espaço onde o Brasil de Fato se encaixava. Segundo Arbex:

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"a gente achava, digo, o conselho editorial achava que o governo Lula iria pelo menos

prestigiar a imprensa de esquerda".

Veremos adiante que ambas as perspectivas, tanto a que colocava a vitória de Lula

como o motor de uma retomada nas mobilizações dos movimentos sociais, quanto a

perspectiva do governo eleito de conceder mais verbas publicitárias aos meios alternativos

não se concretizaram, fazendo com que o Brasil de Fato, depois de lançado, tivesse que rever

suas perspectivas de arrecadação de fundos adotando a venda em bancas e de espaços

publicitários para o governo.

4. Comitês de apoio

Podemos dizer, com base nos documentos e entrevistas coletados para esta pesquisa,

que a idéia dos comitês de apoio ao Brasil de Fato é um dos aspectos mais originais de seu

projeto editorial. Eles foram pensados para tentar solucionar questões complicadas para a

viabilização dos objetivos do jornal.

Em primeiro lugar, havia o pressuposto de que o Brasil de Fato não poderia restringir

suas pautas ao eixo São Paulo – Rio de Janeiro – Brasília, se quisesse realmente ser um

veículo de abrangência nacional. Por outro lado, não havia condições financeiras para

contratar correspondentes que levantassem sugestões de pautas, fizessem apurações e

redigissem matérias em outras capitais e regiões do país. Essa seria uma das primeiras funções

dos comitês, reunir pessoas que pudessem suprir a necessidade por repórteres locais com

sugestões de pautas e em alguns casos, até com o envio de textos. Ou seja, eles deveriam ser

um ponto de aglutinação de colaboradores. Segundo Nilton Viana: "Uma das coisas que a

gente discutiu muito nessa estrutura do Brasil de Fato, e uma das comissões cuidava disso, foi

a articulação dessa rede de colaboradores, e acoplado a isso, uma estrutura de comitês,

principalmente nas capitais ".

A organização dos comitês daria ao Brasil de Fato certa capilaridade, pois eles seriam

os responsáveis pela distribuição e venda local dos jornais (o contato com as bancas seria feito

através da estrutura montada em São Paulo), a partir do contato com movimentos sociais e

sindicatos, além de tocar as campanhas de assinatura.

A composição dos comitês deveria ser a mais heterogênea possível, afinal o jornal

tinha entre suas perspectivas mostrar uma face do Brasil que não encontrava espaço na grande

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mídia. Assim, quanto mais diversificados fossem os comitês, maior era a possibilidade de

gerarem boas pautas.

José Arbex Júnior considerava a existência dos comitês tão importante que chegou a

condicionar o desenvolvimento do jornal à sua capacidade de reunir pessoas e formar comitês

atuantes, como coloca em sua entrevista:

Eu me lembro que na época eu falei uma coisa que todo mundo concordou, ou pelo menos aparentemente concordou que era o seguinte: Nós temos um meio de aferir se esse jornal é possível e vai dar certo ou não. Esse meio de aferir é o seguinte, o jornal tem que ser feito por comitês de redação espalhados pelo Brasil inteiro. Ou seja, o jornal não pode ser restrito ao eixo Rio – São Paulo – Brasília, ele tem que mostrar um Brasil que ninguém conhece, descrito pelos brasileiros que vivem no Brasil. É claro que o comitê de redação em São Paulo teria a missão de dar um formato jornalístico legível para o material que a gente recebesse. Mas, esse comitê de redação de São Paulo não iria substituir os comitês pelo Brasil, não poderia acontecer isso. Se acontecer is so seria a derrota do jornal. E eu cheguei a fazer várias viagens pelo Brasil agregando esses comitês. Eu me lembro que houve reuniões fantásticas, eu me lembro de uma reunião em Belo Horizonte que participaram artistas de teatro, prostitutas, trabalhadores mascates de rua, intelectuais da Universidade. E era isso mesmo que tinha que ser.

Miguel Stedile enxerga duas perspectivas na idéia dos comitês, não só reunir pessoas

interessadas em colaborar com o jornal, mas também de aglutinar militantes sociais em torno

do “Projeto Popular para o Brasil”, do qual, em suas palavras, o Brasil de Fato seria um

"anunciador":

De um lado ele seria um aglutinador de uma série de militantes comunicadores, trabalhando nos movimentos sociais, na grande imprensa, avulsos, que tinham vontade de trabalhar, de construir o Brasil de Fato , e ao mesmo tempo, aglutinador dos movimentos sociais e da militância que faria o debate em torno do jornal [...] Mas de modo geral, os comitês eram a vida orgânica, e daí de novo esse vínculo com o projeto popular. O jornal seria – vou usar um termo religioso – anunciador do projeto, seria o propagandista do projeto popular. Então, se você está comprometido de forma orgânica com o jornal, no seu processo de organização para materializar o projeto popular, o jornal tinha papel chave, de orientar, de fornecer subsídio e de debater.

Verificamos que os comitês tinham uma função que ia além da sustentação do projeto

com pautas e arrecadação de recursos, mas deveriam também impulsionar debates locais

sobre o projeto popular, para os quais o jornal seria o subsídio. Na opinião de Miguel, a

aproximação de movimentos locais poderia fazer com que as pautas do jornal não ficassem

restritas às demandas dos movimentos mais envolvidos em sua construção, como o MST e a

Consulta Popular, contribuindo para a idéia de pluralidade de expressões defendida em seu

projeto editorial. Segundo ele:

Como a construção do jornal estava muito ligada à Via Campesina, ao Movimento Consulta Popular e a alguns setores bem específicos do movimento sindical, é óbvio

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que tem uma tendência de que esses movimentos sejam mais privilegiados na cobertura. Então uma preocupação que nós tínhamos [...] era de como dar visibilidade aos movimentos sociais que existem, estão fazendo luta, mas que não necessariamente estão dentro do nosso campo, que não são da Via Campesina, que são urbanos. Você tem que mostrar o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, o Movimento dos Catadores e Recicladores...

Para Nilton, os comitês cumpririam a função de aglutinar pessoas em torno do projeto

político do Brasil de Fato:

A partir dessa organização em torno do projeto político, você tira as tarefas específicas, alguém para fazer a divulgação, alguém cuidar da venda de assinaturas. Então esse comitê era para ser um espaço político que se reunisse uma vez por mês, para que se faça uma análise de conjuntura, para que se leia e debata o editorial do jornal, para que fizesse críticas e sugestões. Que fosse realmente um espaço político, e que desse espaço você tenha as demandas naturais desse projeto.

As orientações para organização e objetivos dos comitês foram formuladas por uma

das comissões criadas dentro do coletivo que desenvolveu o projeto do jornal em São Paulo, a

comissão de colaboradores. A comissão previu inclusive a realização de grandes debates em

torno da idéia do jornal em algumas capitais, para ajudar na formação dos comitês, além de

ser mais um espaço de arrecadação de recursos.

O documento “Desafios políticos do jornal” dedica seu item três à formação dos

comitês, listando suas tarefas e indicando seus procedimentos:

1- Organizar os comitês/coletivos nas capitais e cidades para: a) Articular os jornalistas correspondentes b) Articular a distribuição militante c) Articular a venda profissional. d) Articular a campanha de assinaturas e) Fazer com que o jornal seja conhecido na cidade t) Buscar possíveis publicidades g) Buscar formas de arrecadar recursos h) Programar atividades político-culturais na cidade e setores sociais. 2. Atuar como coletivo, com local de referência, datas fixas de reuniões, divisão de tarefas e iniciativa. 3. Em cada comitê precisamos ter: - Um responsável político, que vai coordenar a distribuição de tarefas e responsabilidades. - responsáveis pela distribuição - responsáveis pelas assinaturas - responsáveis pela divulgação - responsáveis pela busca de publicidade - responsáveis por eventos - jornalistas correspondentes (Desafios políticos do jornal, 2002, p.1)

Podemos verificar por intermédio das entrevistas e documentos, que os comitês

pressupunham um grau elevado de organização e comprometimento, ao menos de algumas

pessoas que seriam as responsáveis por fazê- los efetivamente funcionar. Primeiro porque

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não seria possível organizar os comitês contando apenas com a disponibilidade de jornalistas

e colaboradores, existia a necessidade de um elemento aglutinador. Segundo porque, de

acordo com o plano inicial, os comitês deveriam funcionar como pequenas secretarias do

Brasil de Fato em outras cidades (reproduzindo a estrutura organizativa urbana do MST),

que trabalhariam para a venda de assinaturas, de espaços publicitários, organizando eventos

etc., ou seja, demandariam uma atuação profissional e não apenas voluntária. E em terceiro

lugar, porque os comitês teriam uma função política clara e precisariam ser conduzidos por

alguém que conhecesse e defendesse as linhas que deveriam ser seguidas.

Ficou claro para o MST que seria necessário garantir essa organização mínima dos

comitês através de seus militantes. Dessa forma, foi solicitado que as estruturas do

movimento nos estados liberassem uma pessoa para cumprir esse papel. Havia a previsão de

remuneração para os que assumissem a tarefa, a ser custeada pelo próprio jornal, como

observa Nilton: "Nós chegamos a ter companheiros liberados, ou seja, recebendo uma

pequena ajuda para a construção desses comitês". Essa pessoa se encarregaria também de

procurar um local para a sede do comitê, que funcionaria como uma sucursal do jornal.

A orientação é para que esses espaços fossem solicitados junto a sindicatos e outras

entidades. Os comitês não deveriam funcionar junto com as secretarias estaduais do MST,

para que o jornal não ficasse vinculado unicamente ao movimento e também para envolver

outros atores no compromisso de sustentação de seu projeto. Dessa forma, as funções de um

responsável por um comitê de apoio do Brasil de Fato seriam (texto formulado em

dezembro de 2002 sobre os comitês):

1. Função: Responsável pelo jornal Brasil de Fato no estado. 2. Atividades: 2.1.Estimular e ajudar a articular o funcionamento permanente do comitê de apoio ao jornal, convocando as reuniões, garantindo a periodicidade e local certo; 2.2.Organizar cadastro dos membros do comitê, endereço,contacto etc.; 2.3. Organizar o cadastro de jornalistas que podem colaborar com o jornal e fazer matérias, no início de forma militante. 2.4. Ver quais entidades, empresas ou organismos públicos poderiam fazer publicidade. (se o companheiro conseguir contratos de publicidade receberá 3% sobre o valor da propaganda); 2.5. Articular a distribuição do jornal; a) Ver se tem possibilidade de organizar brigadas de jovens para vender o jornal toda semana. Cadastrar os jovens e controlar. b) Contatar entidades, sindicatos e paróquias que poderiam fazer assinaturas massivas. c) articular campanhas de assinaturas nos estados; 2.6. Articular propaganda do jornal Brasil de Fato , em outros jornais alternativos e rádios da região; 2.7. Controlar os carnês distribuídos da campanha de assinatura no estado, de 100 reais ou de 10 reais . Monitorar para que até março se consiga atingir a meta de cada estado;

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2.8. Se articular com o setor de distribuição do jornal, em nível nacional, para articular campanhas etc.; 2.9. Ver um local para eventualmente deixar os jornais para distribuir e para venda. 2.10. Ter iniciativa para buscar todas as formas possíveis de divulgar o jornal, aumentar vendas, assinaturas, publicidade etc.; 3. Local: Devemos encontrar um local para funcionamento dessa referência, contato e sucursal do jornal. Basta uma sala que tenha mesa, telefone e correio eletrônico. Esse local deve ser buscado junto a entidades, sindicatos, e de preferência não deve ser na secretaria do MST, para desvincular o jornal do movimento. O jornal deve ser expressão de um conjunto de forças, es pecialmente urbanas; 4. Apoio institucional: Garantir que a entidade que cede espaço, também possa assumir custos de telefone, correio eletrônico, já que o jornal não tem verba para custeio, apenas para ajuda de custo do responsável. 5. Inicio das atividades: Imediato. O quanto antes. 6. Festa de lançamento: Articular com o comitê de apoio um ato político-cultural de lançamento do jornal na capital, na primeira quinzena de março.

Com a data de lançamento do jornal estabelecida para janeiro de 2003, os comitês

teriam pouco tempo para se formar e garantir uma organização mínima para contribuir com

as edições regulares do jornal, que deveriam começar a circular no mês de março. Veremos a

seguir as condições que definiram a data de lançamento do jornal, a partir de uma análise de

conjuntura feita após a eleição de Lula para a presidência, em outubro de 2002.

5. Lançamento do jornal Brasil de Fato

A proposta apresentada pelo MST durante a primeira reunião do coletivo de

colaboradores do então "jornal de esquerda" previa que o lançamento do Brasil de Fato

deveria acontecer em novembro de 2002, após as eleições presidenciais de outubro. Uma

segunda proposta de calendário, que passa a aparecer nas atas das reuniões a partir de

setembro, determinou que o jornal fosse lançado durante o Fórum Social Mundial de 2003,

em Porto Alegre. Após a confirmação desta data, as comissões passaram a trabalhar para que

o número zero estivesse pronto a tempo e os recursos arrecadados.

A terceira edição consecutiva do Fórum Social Mundial de Porto Alegre prometia

reunir milhares de militantes e ativistas de todo o mundo em uma semana de debates,

conferências, discussões e atos contra o imperialismo e por um modelo de sociedade

organizada fora das bases do capitalismo. Parecia a ocasião perfeita para o lançamento de

um jornal alternativo, em um grande ato político que reunisse personalidades da esquerda

brasileira e mundial. Era uma chance do jornal já sair conhecido por um público amplo e

diversificado, que poderia divulgá-lo e assiná-lo.

No dia 27 de outubro de 2002, Luis Inácio Lula da Silva é eleito presidente da

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República. Um clima de euforia toma conta dos movimentos e indivíduos envolvidos com a

construção do jornal Brasil de Fato. Conforme colocamos acima, duas perspectivas

favoráveis apareciam para o grupo, a primeira era que a eleição de Lula significaria um

aumento das mobilizações dos movimentos sociais, representando um momento de ascensão

do movimento de massas que só teria a contribuir para a divulgação e penetração do Brasil

de Fato na sociedade. A segunda era que o governo recém eleito, escaldado pelas críticas e

manipulações da grande mídia em relação à figura de Lula e ao Partido dos Trabalhadores,

partiria para uma política de aproximação com os meios alternativos, que poderia se reverter

em termos de compra de espaços publicitários para anúncios no Brasil de Fato.

Essas avaliações, que mais tarde se mostraram equivocadas, fizeram com que o

coletivo se debruçou sobre o projeto do jornal projetasse um tempo muito curto para a

consolidação e auto-sustentação do Brasil de Fato. O cálculo feito apontava que em um

período de seis meses a um ano, o jornal não só deveria estar consolidado financeiramente, a

partir, principalmente, da venda de assinaturas e em bancas, como teria condições materiais

para se tornar diário.

Outra decisão precipitada por estas avaliações fez com que o grupo descumprisse um

dos pressupostos divulgados em todos os materiais de arrecadação de fundos e decidisse

lançar o Brasil de Fato mesmo sem ter conseguido juntar a soma necessária para o

lançamento e o período de consolidação, calculada definitivamente em dois milhões de reais.

No início de janeiro de 2003, com o lançamento do jornal marcado para dia 25 do

mesmo mês, o grupo havia arrecadado apenas 400 mil reais, 20% do total determinado como

necessário. Diante dessa situação, foi proposto o adiamento do lançamento até que mais

recursos fossem arrecadados, mas a maioria avaliou, com base nas perspectivas colocadas

acima, que o Brasil de Fato deveria aproveitar a conjuntura favorável e a reunião de pessoas

no Fórum Social Mundial para fazer seu lançamento. A campanha de arrecadação de fundos

continuaria a acontecer após a publicação do número zero e esperava-se que até a data

determinada para o início das edições regulares, em março, a questão financeira já tivesse

sido solucionada. Segundo José Arbex:

Calculamos na época que, para sair um jornal do jeito que a gente queria, precisaríamos de dois milhões de reais, no mínimo. Para sustentar um comitê de redação razoável e uma campanha de assinaturas, e para sustentar também um número expressivo de edições, até o jornal emplacar nas bancas. Bom, aí começaram os problemas, porque quando atingimos a cifra de quatrocentos mil reais, foi decidido que o jornal sairia. Eu fui contra. Esse dinheiro estava sendo arrecadado de tudo quanto é jeito, com ONGs estrangeiras, rifas [...]. Eu fui voto vencido, eu me lembro que o conselho editorial do jornal constituído por onze ou doze pessoas e foi

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onze a um a votação. O um era eu. Eu fui contra, eu disse que não dava para lançar o jornal desse jeito. Era uma loucura. Por que se decidiu fazer o jornal? Porque a vitória do governo Lula dava uma perspectiva de ascensão da luta de massas, na cabeça das pessoas que estavam articulando o jornal. Quer dizer, a idéia era a seguinte, nós estávamos vivendo um momento histórico fantástico no Brasil, um operário, retirante, nordestino, [...] chegou à presidência da república, isso vai dar um ânimo para o movimento de massas fantástico, e quando as pessoas forem às bancas para procurar notícias, eles vão ter o tradicional que é a Folha e o Estadão e vão ter o novo que é o Brasil de Fato. E nós não podemos perder essa oportunidade de emplacar o jornal. A idéia era essa. E bom, resolveu-se então soltar o jornal, sem ter perna para isso, a verdade é essa.

Ricardo Gebrim relembra a dificuldade em arrecadar o montante necessário para o

lançamento, mas avalia que, através das campanhas, o jornal criara uma expectativa em torno

de si que não poderia ser frustrada:

Saímos à caça para levantar esse dinheiro entre amigos, entidades, apoios etc. Ali já foi um sinal de que as dificuldades seriam muito grandes e que a gente não contava com elas. O tempo foi passando, os prazos que a gente esperava e nós chegamos com (um valor) muito abaixo do que a gente esperava, menos de quatrocentos mil. E se colocou essa questão porque para poder arrecadar esse dinheiro nós lançamos a expectativa de se lançar um jornal de esquerda [...]. Então se criou essa expectativa, os militantes saíram em campo, venderam cotas, assumiram compromissos, então o jornal precisava ser lançado. E lançamos o jornal de uma forma bastante espetacular, lá no Fórum, foi um lançamento muito bonito, maravilhoso, gerando uma grande expectativa.

Assim, ficou mantida a decisão de lançar o jornal durante o Fórum Social Mundial de

2003. Na noite de 25 de janeiro, seis mil pessoas lotaram o auditório Araújo Vianna, na

região central de Porto Alegre, e outras duas mil ficaram de fora, não podendo assistir ao ato

por falta de espaço no ginásio. Presenciamos o grandioso e emocionante ato de lançamento

do Jornal Brasil de Fato, que reuniu expoentes da esquerda brasileira e mundial como Hebe

de Bonafini (militante argentina do movimento das Mães da Praça de Maio), Aleida Guevara

(médica cubana, filha de Ernesto Che Guevara), Eduardo Galeano (escritor uruguaio),

Sebastião Salagado (fotógrafo brasileiro), Plínio de Arruda Sampaio (ex-deputado federal),

Olívio Dutra (ex-governador do Rio Grande do Sul e na ocasião, ministro recém nomeado

pelo presidente Lula) e Augusto Boal (diretor de teatro). Estavam presentes também os

primeiros membros do conselho editorial do Brasil de Fato, Alípio Freire, César Benjamin,

Hamilton de Souza, Kenarik Boujikian, Luiz Eduardo Greenhalgh, Luiz Bassegio, Maria

Luisa Mendonça, Milton Viário, Neuri Rossetto, Plínio de Arruda Sampaio Júnior e Ricardo

Gebrim.

O número zero do Brasil de Fato, vendido a dois reais nos dias que antecederam o

lançamento em Porto Alegre, era um esboço do que o jornal se tornaria a partir de março,

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com o início da publicação de suas edições regulares. Em formato tablóide, com doze

páginas, teve como manchete principal uma frase do economista Celso Furtado18, que

durante entrevista disse que "Lula precisa ter coragem". A segunda manchete falava sobre os

protestos contra a invasão dos Estados Unidos ao Iraque, com a frase: "Mundo diz não à

guerra de Bush".

Seu editorial, intitulado "Por que um jornal popular?", explicava as razões que

levaram ao lançamento do jornal, inscrevendo o Brasil de Fato em um quadro de resistência

formado por acontecimentos como as manifestações mundiais de repúdio às guerras do

Iraque e Afeganistão e a eleição de Lula no Brasil, figura identificada pelo jornal como

"indesejado pelas elites". O texto reafirma o compromisso do jornal em "contextualizar as

notícias sob a ótica dos trabalhadores", combater o imperialismo, defender os direitos

fundamentais das pessoas e a democracia. Para concretizar suas aspirações, pretende ser

plural ao "abrigar distintas vozes representativas da luta pela construção de um projeto

popular e democrático" e mostrar "um país ocultado e aviltado pela grande mídia"

A edição zero trouxe também uma coluna de "cumprimentos", pequenos textos de

personalidades como Oscar Niemeyer e José Dirceu saudando a iniciativa do Brasil de Fato.

As matérias giravam em torno de temas como transgênicos, movimento sindical,

financiamento às corporações midiáticas, manifestações contra a guerra no Iraque,

celebração do aniversário de Martin Luther King Jr., a oposição da elite venezuelana às

reformas propostas pelo presidente Hugo Chávez, futebol de várzea e o uso da imagem de

Che Guevara em peças publicitárias.

Após o impacto causado pelo ato de lançamento em Porto Alegre e da publicação do

número zero, o Brasil de Fato enfrentou o desafio de seguir arrecadando fundos e vendendo

assinaturas para viabilizar suas próximas edições, contando não só com as dificuldades

inerentes a um empreendimento dessa natureza, mas também com a expectativa gerada pelo

sucesso do evento, cultivada tanto entre sua equipe como entre os potenciais leitores que

presenciaram seu nascimento.

18 Celso Furtado (1920-2004), economista paraibano, um dos maiores intelectuais brasileiros do século

XX, escreveu obras em que disseca a questão do subdesenvolvimento do país.

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Capítulo V – O JORNAL BRASIL DE FATO EM SEIS ANOS DE EXISTÊNCIA, TRAJETÓRIA, DIFICULDADES, DESAFIOS

Neste capítulo, analisaremos a trajetória do jornal Brasil de Fato em seis anos de

existência. Vamos considerar o período compreendido a partir do lançamento de seu número

zero, durante o Fórum Social Mundial de 2003 até o final do ano de 2008, para analisar suas

dificuldades, desafios, transformações e conquistas após a publicação de sua primeira edição,

em março de 2003.

Optamos por dividir esse período em três fases distintas. A primeira corresponde ao

ano de 2003, primeiro ano de vida do jornal, em que o coletivo teve de aprender como fazê- lo

a partir de experiências empíricas, já que as metas e previsões feitas antes do lançamento se

mostraram equivocadas. A segunda fase diz respeito aos anos de 2004 a 2006, que chamamos

de “anos de crise”. Durante esse período, o Brasil de Fato enfrenta toda a sorte de

dificuldades com distribuição, campanha de assinaturas, redução da tiragem e número de

páginas. É neste período que podemos observar claramente as transformações pelas quais o

projeto editorial começa a passar com o objetivo de se adequar à conjuntura imposta ao jornal.

O terceiro período, entre os anos de 2007 e 2008, compreende a fase em que o Brasil de Fato

parece "se encontrar" diante de novos objetivos e passa a definir melhor seu papel dentro de

novas perspectivas. Chamamos essa fase de “consolidação”, tanto de uma nova visão em

torno das possibilidades do jornal como de sua sobrevivência propriamente dita. Neste item,

procuraremos inserir um balanço sobre os seis anos do jornal, feito a partir dos depoimentos

colhidos com nossos entrevistados.

Foram utilizados como subsídios para a redação dos itens 1. Primeiro ano de vida do

jonal, 2003 e 2. Anos de crise, 2004 a 2006, documentos, atas de reunião, projetos, circulares

e mensagens de correio eletrônico cedidas principalmente por Nilton Viana e João Pedro

Stedile. Dada a diminuição da produção de textos sobre a fase que chamamos de consolidação

– os documentos obtidos para esta pesquisa descrevem mais detalhadamente as atividades do

jornal até o ano de 2006 – as informações que subsidiam o item três, que corresponde ao

período que chamamos de consolidação do jornal, foram majoritariamente colhidas nos

depoimentos de Miguel Stedile, Nilton Viana, José Arbex Júnior e Ricardo Gebrim.

O item quatro faz um resgate dos temas das manchetes apresentadas pelo Brasil de

Fato em 304 edições, publicadas de janeiro de 2003 a dezembro de 2008 (não foram

utilizadas nesta pesquisa as edições publicadas em 2009), demonstrando quais assuntos foram

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considerados prioritários pelo jornal. Como se trata de tema recorrente e fundamental para a

análise da trajetória do Brasil de Fato enquanto meio de comunicação de esquerda, optamos

por separar as manchetes que dizem respeito ao governo Lula e agrupá-las no item cinco, em

que faremos uma breve análise de conteúdo.

1. Primeiro ano: 2003 Após o grandioso lançamento durante a 3ª edição do Fórum Social Mundial, a recém

formada equipe de redação, subsidiada pelo conselho editorial, começou a preparar a primeira

edição regular do Brasil de Fato. A primeira questão colocada foi a do formato do jornal.

Uma carta não assinada, enviada no dia 15 de fevereiro de 2003 ao conselho editorial do

Brasil de Fato, explica que a edição zero saiu em formato tablóide germânico, identificado

historicamente com os meios impressos da esquerda e considerado de leitura mais fácil. Mas,

diz que a manutenção desta opção se tornaria inviável pelos custos de rodar um jornal

colorido em tamanho tablóide e pelo tempo de gráfica que essa opção demandaria. O coletivo

de redação e o conselho foram chamados a opinar entre a manutenção do formato tablóide

germânico colorido, com custos mais elevados e maior tempo de gráfica, e a adoção do

mesmo modelo com quatro cores em tamanho standart, opção aprovada.

Assim, o número um é publicado no dia 8 de março de 2003, e sua manchete principal

"Ricos cobiçam a água do mundo (e o Brasil está na mira)", gera polêmicas entre os membros

do conselho editorial. Segundo José Arbex Júnior, em entrevista à autora:

Eu me lembro que a primeira manchete que eu dei foi sobre água e isso causou escândalo dentro do jornal, porque imagina se um jornal operário, socialista, comunista, leninista, vai dar manchete sobre água. Um jornal comunista mesmo dá manchete sobre sindicato, luta de classes, greves, e não sobre água. E eu me lembro que isso causou uma comoção, um escândalo. O que eu achei uma estupidez porque água é um problema absolutamente central e cada vez mais.

Segundo o documento "Balanço administrativo e financeiro 2003 e 2004”, elaborado

por Silvio Sampaio, administrador do jornal, a edição número um do Brasil de Fato sai com

uma tiragem de 30 mil exemplares semanais e começa a enfrentar seus primeiros problemas

de distribuição e venda em bancas. As primeiras edições (do número um ao número oito) são

distribuídas em bancas pela empresa Transfolha, que pertence aos grupos Folha e Estado, e

pagas à vista, mas nem todos os exemplares chegam a seu destino, como observa José Arbex,

na mesma entrevista:

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No primeiro mês a gente rodava 120 mil exemplares e simplesmente as distribuidoras não distribuíam o jornal, e isso foi comprovado. Eu fui a uma reunião do Sindicato dos Estivadores de Santos para discutir ALCA, tinham umas 800 pessoas na reunião. Eu tava falando da ALCA e de repente um moleque levanta a mão e pergunta por que a gente tinha parado de mandar o Brasil de Fato para Santos. Eu disse: "você está maluco"? E ele: "Não, chegou a primeira edição e vendeu tudo, esgotou. A segunda edição eu fui procurar na banca e não achei". E aí várias pessoas levantaram a mão e falaram a mesma coisa. Nós fomos verificar na distribuidora, que era a mesma da Folha e do Estadão e vimos que de fato eles estavam sabotando o jornal. Sabotaram em Santos, Florianópolis, Goiânia. [...] Então houve concretamente sabotagem contra o jornal.

Para Ricardo Gebrim, em depoimento à autora, a questão da distribuição foi a mais

difícil que o jornal enfrentou em seus primeiros meses de vida:

Primeiro foi essa descoberta, que para nós foi dura, de que jornais não se vendem em banca. Havia certa ilusão das bancas de revista. Logo de cara nós descobrimos que o processo de distribuição era extremamente monopolizado, na época nós não conseguimos penetrar em nenhuma rede grande.

No mês de março de 2003, a administração do jornal começa a procurar alternativas

para a distribuição, diante dos problemas de boicote que enfrenta com a Transfolha. Duas

empresas são contatadas, Chinaglia e Dinap, a última pertencente à editora Abril. Para

convencer o proprietário da empresa Chinaglia, representantes do conselho editorial e político

do Brasil de Fato vão ao Rio de Janeiro para uma reunião, como recorda Gebrim em seu

depoimento:

Eu fui para o Rio conversar com o Fernando Chinaglia [...]. Conseguimos fazer um monte de pressão para introduzir o jornal lá com o Chinaglia, mas eles não tinham o menor interesse. E lá os próprios donos falaram o seguinte: os jornais, todos os jornais, dão prejuízo na banca, mesmo a Folha de S. Paulo, o Estadão. Eles são obrigados a colocar na banca porque eles ganham com os anunciantes, que exigem que eles estejam nas bancas. Mas a banca dá prejuízo. Dá prejuízo para o jornaleiro, para o distribuidor e para o jornal. É um péssimo negócio. E isso para nós foi uma surpresa, nós tínhamos muita expectativa nas bancas. Que ele acontecesse nas bancas. Aí descobrimos que além de dar prejuízo nas bancas, o custo da distribuição nacional que era totalmente monopólio da Fernando Chinaglia e outras duas empresas, uma ligada a Abril e outra ligada à Folha e ao Estadão era impossível. Não tinha como romper isso e era inviável e isso foi um choque.

Apesar das dificuldades, em abril de 2003 o Brasil de Fato assina um contrato de

consignação com a Chinaglia, que passa a vigorar a partir do número 9. Em julho, a empresa

resolve encerrar o contrato com o jornal, negociado então para vigorar por outros dois meses.

Em outubro de 2003, é feito um novo acordo, que determina 50% de consignação mais uma

taxa de 0,15 centavos por jornal, o que garante a distribuição em bancas ao longo do ano.

Ao mesmo tempo, os exemplares de assinantes (cerca de dois mil) eram enviados pelo

correio, sendo entregues com grande atraso. A primeira experiência dos assinantes com o

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jornal é ruim, pois os exemplares, quando chegam, estão com dias ou até semanas de atraso.

Não só o sistema escolhido era falho, mas a campanha de arrecadação de dinheiro através de

assinaturas militantes de cinco edições a dez reais, também significou prejuízo. Soma-se isso

ao fato de que os boletos com assinaturas de cem e dez reais foram vendidos por militantes do

Brasil inteiro, que nem sempre retornaram esses boletos com as informações necessárias para

o envio das assinaturas. Segundo Ricardo Gebrim:

O outro problema que tivemos foi ver a complexidade das assinaturas. Isso nós cometemos muitos erros iniciais, que acabaram virando problemas crônicos gravíssimos. Por exemplo, nós no início, no afã de levantar os recursos, lançamos uma venda de cotas que dava direito a uma assinatura eterna para quem fizesse uma de mil reais, acima de dois mil era para o resto da vida. E alguns fizeram cotas de cinco mil, até de dez mil reais, que daria então duas vidas de jornal. E aí quando saiu o jornal essas pessoas não recebiam. Pelo contrário, ainda foram vender assinaturas para elas. E depois chegava a cobrança pela assinatura. Foi um problema bastante caótico, muito desgastante. Nós lançamos outra coisa que foi um equívoco brutal, que era um venda de não me lembro se era de dez reais, a assinatura custava cem naquela época, mas tinha outra assinatura de dez reais que dava direito a cinco edições. Era algo que, além de ser um prejuízo inicial brutal, nós não tínhamos estrutura. Nós não tínhamos nem estrutura daquelas rifas que chegavam atrasadas, se perdiam. As pessoas vendiam e não tinha endereço. Aquilo foi um caos terrível, que maculou muito esse sistema de assinatura e foi um problema crônico, porque muita gente que comprou aquelas assinaturas se desgastou, não recebeu.

Em abril de 2003, é lançada uma campanha por correio eletrônico, assinada por

membros dos conselhos político e editorial, que pedem a cada assinante que convença quatro

amigos a também assinar o jornal, com o intuito de envolver o leitor com o projeto. A meta,

neste momento, era fazer mil assinaturas por mês.

Paralelamente, o jornal começa a sofrer mudanças em seu projeto. Em 30 de junho de

2003, uma reunião para a discussão de modificações no projeto gráfico é feita por uma

comissão formada para este fim, com a presença da professora da ECA/USP, Otília Bocchini.

O relatório desta reunião, realizada em 30 de junho de 2006, afirma que o Brasil de Fato

"nasceu feio", e traz sugestões que facilitem a leitura e a tornem mais agradável, como o

estabelecimento de um padrão de cinco colunas para todas as páginas, adotar uma tipologia

simples, consolidar um padrão para os títulos etc.

Em setembro do mesmo ano, mais uma mudança. O jornal deixa de ser editado por

José Arbex Júnior e seu cargo de editor-chefe passa a ser ocupado, a partir do número 30, por

Nilton Viana. A troca se justifica, segundo declara Arbex em entrevista à autora, com a idéia

de que seria mais interessante tê-lo viajando pelo país para divulgar o jornal, intensificar a

campanha de assinaturas e tentar reforçar a formação dos comitês.

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Já em 6 de outubro de 2003, uma circular, enviada em nome da direção nacional do

MST às secretarias estaduais do movimento, aponta para a necessidade de "retomar com mais

seriedade a campanha de sustentação do jornal, a partir de um trabalho permanente e

organizado de assinaturas", Para nós, fica clara a percepção do movimento de que a

sustentação e divulgação do jornal estavam em suas mãos. Algumas das medidas propostas

por esse texto eram: a liberação de jovens militantes do MST que pudessem "circular em um

período permanente para fazer assinaturas do jornal", pedir o cadastro de mala-direta de

entidades como sindicatos, diretórios de partidos e movimentos para divulgação e campanhas

com prefeituras.

O documento, cujo assunto diz "viabilidade do jornal Brasil de Fato", assinado por

João Pedro Stedile em 14 de outubro de 2003, coloca a necessidade de levantamento de um

milhão de reais em três meses para garantir a sobrevivência do jornal. O custo mensal do

Brasil de Fato nesta época estava calculado em cem mil reais e o quadro de assinantes

dispunha de somente 2600 membros. O texto identifica "certo boicote na publicidade

governamental, em função de nossa linha política independente". O documento propunha

também que fosse formado em cada estado um comitê especial de dirigentes do MST que

discutissem as melhores formas de arrecadação de dinheiro.

Paralelamente, a equipe de redação do jornal se reúne e faz uma avaliação dos nove

meses de trabalho. O documento produzido, chamado de “Balanço da equipe de redação” (24

de novembro de 2003), conclui que o jornal tem atingido seu objetivo de "espelhar a realidade

dos movimentos sociais, conforme as condições existentes de trabalho", e identifica que as

dificuldades "externas" são as que mais comprometem o trabalho do jornal, se referindo aí à

questão da "participação reduzida dos colaboradores". Para a redação, "a ausência de

participação permanente e efetiva" de colaboradores de outros locais do país compromete o

projeto ao "impedir que o jornal traga novidades dos mais diversos locais do Brasil" e

apontam que "sem a rede, o jornal fica cada vez mais dependente da grande mídia e

condenado a esquentar19 matérias, fugindo da proposta de mostrar a realidade do povo

brasileiro". A reunião apontou também a necessidade de maior participação do conselho

editorial na sugestão de pautas e fornecimento de informações sobre os movimentos. Segundo

a equipe, o jornal tem acertado na linha política ao "ser crítico, sem ser chapa-branca, ao

mesmo tempo em que não é porta-voz do governo nem sectário". O documento traz ainda as

19 No jargão jornalístico, a expressão significa reelaborar matérias já publicadas a partir da atualização

de algumas de suas informações.

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seguintes propostas: 1. Incluir na reunião de pautas a agenda dos movimentos sociais; 2.

Designar uma pessoa que cuide exclusivamente da rede de colaboradores; 3. Reformular com

urgência a página na internet; 4. Cobrar mais participação do comitê político e editorial e 5.

Garantir infra-estrutura mínima, como computadores.

Durante esse período de balanço, além da ausência de colaboradores fixos, ficou

constatado também que os comitês começavam a gerar problemas. Por motivos de

desorganização, deixavam de enviar as vendas avulsas, retinham comissões e eram fontes de

gastos.

Finalmente, o documento "Um ano construindo uma imprensa alternativa", produzido

em dezembro de 2003 e não assinado, traz, a partir da síntese de várias reuniões feitas com o

conselho editorial e os membros de alguns comitês, com o comitê de São Paulo e em espaços

do próprio MST, um balanço político definitivo do ano de 2003. O documento reafirma os

compromissos políticos do Brasil de Fato e lista alguns "desafios a superar na construção do

jornal", entre eles: a compreensão de que o jornal é fruto de um processo de construção

coletiva permanente, e que isso leva tempo; a necessidade do jornal se tornar mais conhecido

e chegar a outros locais; a necessidade de ser independente financeiramente, sendo que a

melhor forma para isso são as assinaturas; o desafio de manter uma linha editorial didática e

de aglutinar profissionais e militantes de outras cidades, para que seja efetivamente nacional e

popular.

Já a o item "avaliação política" deste documento traz subsídios para a compreensão da

visão majoritária do grupo sobre o papel do jornal diante das dificuldades colocadas para a

esquerda naquele momento. Nele consta o seguinte:

1. O jornal não pertence a uma corrente ideológica, não é partidário, não se centraliza em nenhuma organização política, mas também não é um jornal apenas de jornalistas. É um jornal que quer estar colado aos movimentos sociais. Isso dificulta o jornal a manter uma linha política clara e ajustada à conjuntura. Ele vai sendo moldado, pela própria conjuntura e por uma visão plural da conjuntura. 2. A conjuntura política brasileira é muito difícil para a esquerda e para os movimentos sociais. Primeiro, porque há uma disputa de projetos na sociedade e no governo. O Brasil vive uma crise de destino, de projeto. E isso exige do jornal uma percepção maior da complexidade que se vive, desse enfrentamento cotidiano, de interesses e de projetos, que acontecem dentro do governo, dentro da sociedade e até nos movimentos. 3. A situação de descenso do movimento de massas e de crise ideológica das esquerdas contribui para aumentar a complexidade da atuação do jornal. 4. Mais do que nunca, o jornal terá que assumir um papel, que nos ajude, a: estimular o reascenso do movimento de massas, a manter unidade entre os movimento e forças populares (sempre somando forças - tomar cuidado para não cair no gueto); a defender e propagandear a necessidade de um projeto popular alternativo para o Brasil. 5. Infelizmente alguns movimentos sociais e forças de esquerda, ainda não se deram

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conta, não têm clareza, da importância e da necessidade de temos um jornal de esquerda, independente, plural, que possa contribuir para armar a militância numa conjuntura tão adversa. 6. A linha editorial e política do jornal está refletindo esse processo, complexo, de dificuldades, de certo comportamento pendular dos movimentos, e de forma permanente disputa de projetos na sociedade. Por outro 1ado, ela reflete o baixo grau de acúmulo de forças, dos movimentos e da esquerda. 7. O jornal ainda não virou uma referência política, para a maioria da militância social, embora os que o conhecem, em sua maioria elogiam, e estão começando a ter o costume de lê -lo. 8. Percebemos que vários setores sociais se interessam e acompanham o jornal. Todos têm vontade política de sustentá-lo, mas enfrentam dificuldades e limitações de priorizar sua difusão e utilização. 9. Devemos preservar e valorizar a mística em tomo do jornal, em especial, com os setores sociais . O jornal tem que ser uma obra coletiva de todos os movimentos sociais, de toda esquerda social. 10. As dificuldades que estamos enfrentando são reflexos: a) da crise econômica, que afeta a toda militância social, que está pauperizada. b) da crise ideológica e orgânica da esquerda brasileira. 11. O jornal esta pagando um alto preço político, por esse clima que o país vive, de desânimo da esquerda e das forças sociais, diante do quadro político. Por isso, nos exige mais vontade política, para implementá-lo. De todos, dos dirigentes, dos movimentos e seus coletivos, dos militantes, e dos formadores de opinião, para levar adiante esse projeto jornalístico. 12. Devemos manter a integridade ideológica, sem sectarismo, mas sem cair em oportunismo. Nossa referência de luta política, não pode ser apenas os atos do governo, mas sim os projetos políticos para a sociedade brasileira. 13. Infelizmente, a massa de nossa militância, na base, ainda não incorporou a necessidade de, ficar realmente alerta, ler e estudar o jornal todas as semanas. Os companheiros/as do lterra (escola técnica do MST) nos comunicaram que o jornal é utilizado semanalmente pelas brigadas dos estudantes, e tem um ótimo rendimento, estão mais informados, com mais conhecimento, gerando debate, e melhorando o aproveitamento em sala de aula. 14. Há um enorme campo e necessidade de atuação para o jornal, mas é preciso que os dirigentes assumam essa atividade de propaganda e difusão do jornal, para dar credibilidade junto a outros setores sociais. E também temos que melhorar as formas de nos organizar ao redor do jornal. 15. O que impressiona é que a crise política da militância social e partidária é tão grande, que há um baixo nível geral de leitura de qualquer jornal, livro, e isso reflete no nosso jornal também. Perdeu-se o costume da leitura diária, do debate de idéias, e do confronto ideológico. 16. O jornal não está chegando a todos os espaços de organização e militância social em que deveria chegar. Nem mesmo conseguiu ir aos principais eventos políticos, em nível nacional. Falta-nos mais militância dedicada à sua propaganda e distribuição. 2.2. Reforçar o papel e contribuição do jornal nessa conjuntura A partir dessa avaliação da conjuntura política, comentou-se sobre o papel do jornal, para que ele cumpra seus objetivos políticos, reforçando as seguintes linhas políticas editoriais: 1. Priorizar o debate e reflexão sobre a necessidade de um projeto popular para o Brasil, como alternativa ao neoliberalismo e atual política econômica. 2. Estimular as lutas sociais, estando nas suas páginas, mais espaço para as lutas populares que vem acontecendo em todo pais, e em todos os setores populares. 3.Ter uma visão de longo prazo. Precisamos ter persistência histórica, essa indefinição dos rumos do Brasil vai se tardar por um longo período histórico e somente vai ser decidido se tivermos um período de reascenso do movimento de massas. 4. Elevar o nível de consciência e estimular o povo, os militantes-leitores, a formar a opinião de que o povo tem direitos que foram conquistados ao longo de décadas

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na luta contra o capitalismo, e que agora estão sendo vilipendiados, ou tratados como concessão de favores. 5. Ampliar o debate no jornal, sobre a natureza do descenso de massas, da apatia, e ver como sair dela. 6. Propagandear os avanços, conquistas e resistências do povo, que se acumulam para um projeto alternativo. 7. Aumentar os espaços para reportagens sobre o Brasil real, verdadeiro. Fazer matérias sobre a realidade e acontecimentos em todo pais, que são escondidos pela imprensa burguesa. 8. Tomar cuidado para não virar um jornal de opinião, de alguns jornalistas e intelectuais. O jornal tem que ser vivo, atuando com os movimentos e na conjuntura. 9. Recuperar a "mística" de um jornal de esquerda, formador. 10. Estimular que o jornal seja utilizado para debates, nos espaços políticos, nos movimentos e entre a juventude

Podemos verificar na reprodução do documento que já existe no jornal uma

perspectiva voltada para uma atuação junto aos movimentos sociais e não mais para a

sociedade de forma ampliada. O documento reforça o papel do Brasil de Fato na formação

dos militantes dos movimentos, ressaltando a experiência com as brigadas de estudantes do

MST, e reclama do fato de que outros movimentos não tenham ainda desenvolvido a

compreensão sobre sua importância enquanto ferramenta de luta. Fala também da necessidade

de desenvolver junto à militância o hábito de leitura do jornal e também de colocá-la para

trabalhar de forma mais orgânica pela viabilização do projeto.

O primeiro item do documento ressalta que o Brasil de Fato não é um "jornal de

jornalistas", fazendo provável referência à imprensa alternativa dos anos 1970 e à revista

Caros Amigos, construída nos mesmos moldes dos "jornais de jornalistas". O jornal se exime

de tomar certos posicionamentos quando se coloca como algo que está "colado aos

movimentos sociais" e que se deixará "moldar pela conjuntura". Sendo que no mesmo item o

texto afirma sua independência em relação às correntes políticas e partidos da esquerda.

Talvez aqui seja mais adequado dizer que o Brasil de Fato não pertencia a nenhum

grupo político ou tendência formalizada, mas que seguia uma linha política clara, definida

principalmente pelo MST, movimento engajado em sua construção, na pessoa de João Pedro

Stedile. Tanto que a opção por não se posicionar contra ou a favor em relação ao governo

Lula é a mesma adotada pelo MST. O item 12 do documento declara que: "devemos manter a

integridade ideológica, sem sectarismo, mas sem cair em oportunismo. Nossa referência de

luta política, não pode ser apenas os atos do governo, mas sim os projetos políticos para a

sociedade brasileira". Trata-se da mesma posição adotada pelo MST nos espaços de debate da

esquerda, de não rotular o governo Lula como "bom" ou "ruim" e evitar contribuir para a

fragmentação das forças progressistas em torno do tema. Vale dizer que este posicionamento,

digamos, mais fluido do MST, que critica as medidas conservadoras do governo, mas sem

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propor a ruptura, foi assimilado pelas correntes mais radicais como um posicionamento

legítimo do mais importante movimento de massas, que tem bases a mobilizar, mas foi pouco

compreendido em termos de linha política para o Brasil de Fato, que passou a ser cada vez

mais identificado como o "jornal do MST"

Em relação à questão financeira, o documento intitulado "Informe para o conselho do

jornal", elaborado por Silvio Sampaio, administrador do jornal, faz o balanço do ano de 2003,

e declara que as tiragens naquele momento giravam em torno de 18 mil exemplares, a um

custo de 24 mil reais por edição. Os gastos totais com o Brasil de Fato estavam na casa dos

cem mil reais por mês. Apenas mil exemplares eram vendidos em bancas semanalmente. E o

número de assinantes era de três mil. No período de março a dezembro de 2003, o jornal

recebeu cinco anúncios institucionais, num total de 25 mil reais de arrecadação com

publicidade. Arrecadou também 20 mil reais em doações de organismos internacionais

(informe para o conselho do jornal, dezembro de 2003).

Citando novamente o documento "Um ano construindo a imprensa alternativa", de

dezembro de 2003, a meta colocada para o jornal em 2004 era conseguir mais dez mil

assinantes, e recolher 100 mil reais mensais, ou seja, mil novas assinaturas por mês. A

distribuição em bancas seria mais selecionada, a partir da escolha daquelas que apresentavam

melhores índices de venda. Cada estado deveria organizar uma festa de um ano do jornal e

tentar arrecadar dinheiro com ela e principalmente, cada movimento social que estivesse

realmente empenhado na construção do jornal, deveria assumir uma cota de assinaturas por

estado.

A questão da sustentação do jornal parece ter monopolizado a tônica das discussões ao

longo do ano de 2003. Por outro lado, havia uma transformação em curso, que direcionava o

Brasil de Fato para um público cada vez mais segmentado, indo na contramão do previsto em

seu projeto editorial. Veremos nos dois itens seguintes que esse processo de direcionamento

tende a se intensificar na medida em que o jornal atravessa períodos de grandes dificuldades

financeiras. Veremos também as razões que podem explicar essa guinada de projeto. Para

encerrar, podemos dizer que, em dezembro de 2003, a idéia de que o Brasil de Fato alcançaria

grande popularidade com as vendas em banca não se concretizou e a perspectiva de se tornar

um jornal diário no período de um ano parecia cada vez mais remota.

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2. Anos de crise: 2004, 2005 e 2006 O período que incorpora os anos de 2004 a 2006 foi o de maior dificuldade para o Brasil de

Fato . O jornal enfrentou uma queda de faturamento e quase foi obrigado a encerrar suas

atividades. Em junho de 2004, segundo o documento "Balanço administrativo e financeiro

2003 e 2004" a equipe foi forçada a reduzir os custos de operação do jornal para 80 mil reais

mensais. Em agosto, sua tiragem caiu para cinco mil exemplares e os custos passaram a ser de

62 mil reais mensais, sendo que para isso o jornal foi obrigado a demitir funcionários,

fechando o ano com um quadro de quatro mil assinantes, quando a meta a atingir era de dez

mil, e sete mil exemplares de tiragem.

Segundo o mesmo documento, produzido pelo então administrador do jornal, Silvio

Sampaio, em 2004, a média de venda em banca era de mil e quinhentos exemplares e de 250

novas assinaturas por mês. Em 2005, a média de venda em bancas cai para mil e cem

exemplares mensais. Em abril de 2006, o jornal é obrigado a reduzir o número de páginas de

16 para 8 (edição 165).

Um reflexo positivo das dificuldades financeiras foi o desenvolvimento da agência de

notícias Brasil de Fato na internet, em 2006, que passou não só a absorver o material que não

cabia mais na edição impressa devido à diminuição do número de páginas, como passou a

contemplar um noticiário de cunho mais factual, enquanto o jornal impresso tornou-se mais

analítico.

Durante o período mais duro de crise, muitas propostas foram feitas para que o Brasil

de Fato tentasse ampliar sua gama de leitores e se estabelecesse. Em junho de 2004, em um

documento chamado de "Propostas para o jornal Brasil de Fato enfrentar a nova conjuntura",

José Arbex, então ex-editor do jornal, avalia que a equipe de redação deveria se concentrar em

dois ou três fatos centrais por edição, e que esses fatos deveriam ser esmiuçados, a partir de

amplas reportagens. Segundo ele, as pautas teriam de ser repensadas já que "ao contrário do

que diziam as previsões mais otimistas, o jornal não vem sendo procurado por amplas massas

que ingressariam na vida política, entusiasmadas com as ações de um ousado governo de

esquerda". Um dos itens do documento "Balanço político e encaminhamentos gerais sobre o

jornal Brasil de Fato", sem autoria, mas se referindo ao MST em primeira pessoa, diz que o

jornal não pode ser "expressão apenas da vontade política e dos esforços do MST. Nem temos

condições e nem cumpriria o seu papel".

O documento, produzido a partir da reunião do conselho político em 27 de novembro

de 2004 e intitulado "Propostas para o jornal Brasil de Fato", coloca algumas sugestões como:

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ter cuidado para que o teor das manchetes reflita o conteúdo e a linha política do jornal;

aprofundar a análise dos fatos políticos e da realidade brasileira, compensando o fato do jornal

perder a atualidade do cotidiano por ser semanal; manter a pluralidade, ouvindo as diferentes

visões da esquerda sobre os acontecimentos; ampliar o leque de temas, falar sobre meio-

ambiente e preparar um questionário para os movimentos sociais para que opinassem sobre o

jornal. O documento volta a tocar na importância dos colaboradores, sugerindo a

possibilidade de utilizar o espaço do Fórum Social Mundial de 2005 para criar momentos de

aglutinação. No final de 2004, segundo mensagem de João Pedro Stedile dirigida ao

Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB, em 8 de novembro, o Brasil de Fato

custava 65 mil reais por mês e arrecadava apenas 30 mil, sendo sustentado basicamente pelo

MST.

Durante este período de três anos, as discussões continuam a se concentrar na busca

por formas de sustentação do jornal, divididas em três metas: assinaturas (em novembro de

2004 eram somente cinco mil, segundo carta enviada ao MAB), publicidade governamental,

tanto em nível municipal e estadual, como federal e apoio dos movimentos para assinaturas

coletivas para seus militantes. Foram feitos diversos apelos que não encontraram respaldo nos

demais movimentos. Na opinião de Ricardo Gebrim, o fracionamento da esquerda diante do

governo Lula foi responsável pelo não engajamento de outros movimentos no jornal.

Naquele momento (lançamento) nós não conseguimos vislumbrar como a esquerda se comportaria em relação ao governo Lula e como essa divisão da esquerda chegaria a uma tamanha polarização [...]. Tanto é que esse equívoco não ocorreu só no jornal, ocorreu também na nossa ilusão de que a CMS poderia ser um grande espaço unificador quando na verdade, o governo Lula acabou se tornando, a figura do Lula continuou a ser a meta-síntese que era da esquerda antes, só que agora dividida entre amor e ódio, entre os setores que estavam se rebaixando para sustentar e os setores que passaram a se pautar como oposição ao governo Lula. Isso também fez com que a esquerda começasse no seu processo de pulverização, a um processo de rearranjo, e nesse rearranjo vão surgindo as ferramentas. E evidentemente que cada força política ao sentir que está se esgotando um ciclo e que vai se iniciar outro ciclo, não quer botar sua azeitona na empada de ninguém, cada um quer construir seus próprios mecanismos, seus próprios veículos.

No início de 2006, a situação financeira do Brasil de Fato torna-se tão preocupante

que seu conselho resolve tomar medidas drásticas para diminuir o montante de dívidas que o

jornal acumulou. Segundo o documento "Informe da situação do jornal Brasil de Fato", de 24

de março, sem autoria, o Brasil de Fato deveria tornar-se mensal, com notícias menos

conjunturais e textos mais analíticos. Seriam produzidas edições especiais monotemáticas de

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grandes tiragens (500 mil exemplares), feitas a partir das necessidades das mobilizações dos

movimentos e a agência na internet produziria uma revista eletrônica semanal.

Apesar dessas resoluções, a redução do número de páginas de 16 para 8, a partir da

edição 165, de abril de 2006, foi o caminho adotado para a manutenção das edições semanais

impressas do Brasil de Fato.

Em 2 de julho de 2006, um documento sem título direcionado aos membros do

conselho editorial e político faz algumas avaliações sobre as transformações pelas quais

passou o projeto do Brasil de Fato. O texto retoma as características originais do projeto, "um

jornal de esquerda, político, de circulação nacional, bonito, com linguagem simples etc. E que

disputasse com os grandes meios nas bancas", para em seguida colocar que

Sonhávamos que o jornal pudesse estar colado a um processo de reascenso do movimento de massas que não vai. E tivemos que mudar sua forma. Em vez de um jornal de massas, nas bancas, com tiragem significativa, tivemos que transformá-lo num jornal de militantes.

A partir desta constatação, o documento avalia que o jornal esperava contar com

publicidade de organismos públicos20, o que também não aconteceu na proporção esperada e

credita sua "salvação" às assinaturas (nesse período em torno de 6700), e às contribuições dos

movimentos sociais. O texto avalia como avanços a manutenção de uma página sobre a

África, a publicação de edições temáticas massivas, e a composição de uma equipe de

jornalistas dedicados, que "sem ingerência do conselho editorial, faz do jornalismo uma

militância". Este documento é produzido alguns meses após a redução de páginas do jornal,

acima citada, e coloca que a mudança foi necessária para assegurar a sobrevivência do Brasil

de Fato.

No final de 2006, um documento chamado de “Balanço do jornal Brasil de Fato”

esmiúça a trajetória do jornal, apontando problemas, ajustes e acertos. Entre os problemas

estão: a prevista ascensão dos movimentos de massa, que não aconteceu; a dificuldade em

manter a unidade da esquerda em torno do jornal, apesar de sua busca por pluralidade; falta de

profissionalismo na distribuição; problemas administrativos; falta de quadros políticos nas

atividades internas de distribuição do jornal; ilusão em relação à venda em bancas, problemas

com operacionalização das assinaturas, falta de conhecimento em relação ao fato de que todos

20 O Brasil de Fato recebeu em 2004 aproximadamente 104 mil reais em anúncios, boa parte deles de

empresas estatais. Em 2005 esse número foi para 135 mil reais e em 2006, 170 mil reais. Entre os anunciantes estão a Petrobrás, o Ministério do Trabalho, a Secretaria de Comunicação do Paraná e a hidrelétrica de Furnas.

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os jornais de esquerda no mundo são bancados pela militância e não através de assinaturas ou

venda em bancas.

Entre os ajustes e acertos, o documento de balanço lista a criação da agência na

internet e a edição de um boletim eletrônico; a manutenção da linha editorial independente e a

edições massivas temáticas (reforma agrária, biodiversidade, eleições, energia elétrica). Como

perspectivas, o texto coloca a manutenção da linha editorial acertada e das edições especiais, a

reconstrução da rede de correspondentes e a retomada da produção de gr andes reportagens. O

documento aponta também que opção em manter o Brasil de Fato funcionando onerou

financeiramente o MST e a Via Campesina.

Podemos observar que o grupo dirigente do jornal tem consciência da mudança de

rumos do Brasil de Fato, de uma perspectiva de ser um jornal de massas, que dialogasse com

a sociedade, para a consolidação de um jornal voltado para a militância política dos

movimentos que o compõem, principalmente o MST.

Segundo o documento de balanço que faz essa avaliação, a mudança foi conseqüência

da apatia que tomou conta da sociedade e da não realização da tão esperada ascensão da luta

de massas, contrariando as expectativas em relação ao governo Lula. A partir deste dado

concreto, que impediu que o jornal alcançasse um público mais amplo que o sustentasse, a

solução foi partir para a construção de um jornal de movimentos, o que leva a mais um

problema. As diferentes avaliações do governo Lula feitas por setores da esquerda,

ocasionaram sua divisão e fracionamento. Isso fez com que os demais movimentos sociais

não concordassem com a linha política do jornal e não se integrassem ao seu projeto da forma

como o coletivo que o formulou imaginava. Este cenário, somado aos problemas encontrados

pela distribuição e já citados acima, fizeram com que o jornal se transformasse em algo bem

diferente do projeto original.

No próximo item, veremos que há mais elementos para compor a avaliação dos

porquês das transformações sofridas pelo projeto do jornal. Esses elementos serão colocados

principalmente a partir das entrevistas.

3. Consolidação: 2007 e 2008 Em fevereiro de 2007, o documento "Brasil de Fato: informe aos movimentos que o

sustentam" coloca que o jornal, em quatro anos, sofreu dificuldades de natureza:

"administrativa, organizaciona l, geográfica, financeira e de apoio político", mas afirma que

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"graças ao esforço militante e voluntário" e a algumas mudanças no projeto inicial que

"priorizava o jornal impresso e a disputa em bancas", conseguiu sobreviver.

O Brasil de Fato teve seu número de páginas reduzido, diminuiu tiragem e equipe, e

com a economia de dinheiro, pagou suas dívidas. Segundo o documento, foi possível construir

"um novo sistema de comunicação que extrapola o jornal impresso e procura potencializar o

uso de outros veículos de informação também importantes", como a página na internet e o

boletim eletrônico semanal enviado a cem mil endereços. O texto coloca que, o esforço de

massificar o jornal impresso permanece, "mas a partir das edições temáticas (de grandes

tiragens e distribuídas gratuitamente), que disputam a opinião pública em temas especiais"

Em relação às perspectivas para o "conjunto de veículos" (jornal e página na internet)

que compõem o Brasil de Fato, o documento avalia que só haverá crescimento "se os

movimentos sociais crescerem de representatividade na luta de classes do país e se as nossas

idéias crescerem na esquerda". Em relação ao posicionamento político do Brasil de Fato, o

texto é claro:

Hoje defendemos uma posição que se diferencia das demais, por não termos aderido ao governo Lula, mas também não aceitamos fazer oposição a ele – e somente a história dirá se essa posição é correta e crescerá. Também o nosso crescimento vai depender de que aumentando a importância dos movimentos sociais no contexto da luta de classes, então outros setores da esquerda e da sociedade terão crescente interesse em saber/ conhecer nossas posições políticas pelos veículos que dirigimos. Finalmente, nosso jornal somente recuperará um papel de disputa de opinião nas massas se houver reascenso do movimento de massas. Se ainda nos mantivermos por um longo período no refluxo do movimento de massas, nossa tarefa será de resistência e, portanto, com dificuldade para crescer e ampliar.

A partir do trecho colocado acima, retirado do documento "Brasil de Fato: informe

aos movimentos que o sustentam", podemos aferir que o grupo dirigente do jornal reconhece

as mudanças em relação ao projeto editorial original, de um jornal de massas, plural, e a

justifica pela não realização da ascensão do movimento de massas após a eleição de Lula, em

2002. Reconhece também, que o jornal não desperta o interesse de setores da esquerda que

não estão próximos ao “Projeto Popular” e de outras parcelas da sociedade, pelo pouco espaço

político ocupado pelos movimentos sociais neste período, resultado de uma conjuntura

desfavorável.

Ricardo Gebrim, membro do conselho editorial do Brasil de Fato e dirigente do

movimento Consulta Popular, tem uma posição semelhante. De modo geral, credita à

conjuntura de crise de mobilização dos movimentos sociais, a responsabilidade pela mudança

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de rumos do jornal e por sua restrição a um público militante, ligado aos movimentos que o

construíram, como coloca na entrevista à autora:

Eu pessoalmente tenho a visão de que sem uma alteração mais profunda na conjuntura, o jornal está condenado a ficar nesse nicho. Claro que esse nicho tem espaço, tem gordura para ele crescer um pouco mais, um pouco menos, as campanhas podem dar um pique maior, você pode vender um pouco mais de assinaturas, você pode crescer um pouco mais nas assinaturas, mas ele está meio que condenado nesse momento atual a esse espaço. É difícil ele romper esse espaço, exige outro momento. Um momento de maior intervenção popular, maior mobilização, onde o jornal se converta, onde esse campo político que o jornal reproduz ganhe força social. O jornal também vai ganhar força social. Eu enxergo o jornal como uma ferramenta desse campo, se esse campo não ganha espaço, não ganha força, o jornal por si só não vai ganhar. Ninguém quer encher muito a bola do jornal, porque sente que está enchendo a bola de um campo político.

Em relação à alteração das perspectivas inicias para o jornal, Gebrim acredita que suas

metas eram muito ambiciosas e que o Brasil de Fato deveria ter se proposto a começar menor,

sem a pretensão de atingir um público tão amplo, como coloca no trecho a seguir:

Na prática existia esse debate (de falar para a sociedade). E esse debate influenciava muito a idéia de um jornal de grande porte, como ele tentou nascer. Eu acho que aí houve um equívoco da nossa parte, porque na prática o jornal converteu-se em um jornal que abrange o círculo. E isso é o real. Isso é o que nós tínhamos capacidade de sustentação financeira, capacidade política, capacidade material de viabilizar. O outro nós não teríamos capacidade material. Eu acho que o Brasil de Fato não podia ser muito diferente, por isso eu acho que ele deveria ter começado pequenininho. Esse era o espaço que estava reservado para um veículo com esse perfil, de trabalhar esse conjunto de forças que a gente chama de projeto popular, que é uma coisa mais ampla, esses setores sociais, tava reservado esse perfil para ele, essa possibilidade de público. E esse conjunturalmente estava reservado isso. Só outra conjuntura vai ampliar, vai potencializar que ele tenha outro público, atinja mais gente, cumpra um papel maior.

Já Miguel Stedile coloca que as metas que o jornal pretendia atingir eram

acertadamente ambiciosas, pois ele nasceu para fazer a disputa da hegemonia na sociedade.

Em entrevista à autora, declara que:

Agora olhando para trás a gente pode perceber onde nós erramos e de que maneira. Agora, naquele momento tinha essa idéia que ia diminuir a repressão e que ia abrir espaço para que os movimentos sociais pudessem acumular. Então, e era importante, já que haveria embates, polarizações – como houve, e há – e era importante que houvesse um jornal que orientasse isso, um jornal que fosse massivo. Então uns falam meio que frustrados e outros de forma meio cômica, na fala do Arbex no ato de fundação do jornal: “Nós temos um jornal que em breve será um diário de um milhão de exemplares”. Nesse momento, quando a gente vê todas as dificuldades que o jornal passou, parece um exagero, um idealismo, um devaneio. Mas naquele momento histórico não estava errado de colocar aquilo como meta. Estabelecer que se nós queremos... E a preposição dele continua correta. Se nós queremos um jornal que demarque do ponto de vista de esquerda e faça a disputa hegemônica, você

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precisa de um jornal com uma periodicidade como essa [...] Não foi um jornal que nasceu se pensando pequeno. Pode até ter nascido pequeno, mas nunca se pensou limitado. “ah, vamos ser pequenos e aí...”. Não, nós vamos ser grandes. Isso não é um idealismo, exagero. Acho que é sinal de maturidade. Se a esquerda quer disputar o poder no Brasil, ela precisa ter veículos de comunicação de massa. E veículo de comunicação de massa não é o Jornal Sem Terra com 20 mil exemplares, não é... Tem que ser massivo. Então, tem que atirar alto também.

Para Nilton Viana, editor-chefe do jornal, a principal dificuldade que fez com que o

Brasil de Fato não atingisse o público amplo que almejava foi a questão da distribuição e, a

partir dela, o jornal se viu obrigado a se restringir e transformar formato e linguagem, se

direcionando para o público militante, como declara a seguir:

Hoje, nós passamos a ser um instrumento muito mais de resistência. Significa que, pelo baixo nível de assinaturas e de divulgação, ele passou muito mais a ser um instrumento que está servindo para os nossos formadores de opinião, nossos militantes, nossos dirigentes. Ele não está conseguindo, não conseguiu ser um instrumento que está chegando para a grande maioria da população. Então nós tivemos que adequar nossa linguagem. Nós tivemos que trabalhar com textos muito mais densos, com mais informação analítica. Por mais que seja uma reportagem, são reportagens muito mais densas, sendo que no projeto inicial a idéia era trabalhar com textos muito mais curtos. Então dada inclusive essa dificuldade do jornal chegar, só chega para o nosso leitor apenas sete dias depois que nós fechamos a edição. Então não pode ser uma linguagem factual, não pode ser muito superficial, então nós trabalhamos com textos muito mais aprofundados, com reportagens, com muito mais elementos. Daí nossas reportagens de página inteira. Do ponto de vista de linguagem, acaba sendo muito densa. Mas fomos obrigados, enfim. Acredito que quando nós formos ampliando e quando tivermos mais facilidade de chegar a um maior nível em número de pessoas a tendência é trabalharmos com linguagem mais simples, com textos menos densos.

José Arbex Júnior, ex-editor chefe do jornal e membro do coletivo que se envolveu em

sua construção, faz uma avaliação em que credita a mudança de rumos do jornal em relação

ao seu projeto editorial original a quatro pontos fundamentais, que se interligam. Em primeiro

lugar, coloca que o formato do jornal foi pensado para deslanchar numa conjuntura de

efervescência popular, com a ascensão dos movimentos, o que não aconteceu. Um segundo

ponto seria a questão do lançamento do jornal, sem a arrecadação do montante calculado para

isso (como pudemos ver no capítulo IV). O terceiro foi o boicote e a dificuldade em distribuir

o jornal em bancas e o quarto, é a não realização dos comitês, como coloca na entrevista dada

à autora:

Eu me lembro que na época (do lançamento) eu falei uma coisa que todo mundo concordou, ou pelo menos aparentemente concordou que era o seguinte: Nós temos um meio de aferir se esse jornal é possível e vai dar certo ou não. Esse meio de aferir é o seguinte, o jornal tem que ser feito por comitês de redação espalhados pelo Brasil inteiro. Ou seja, o jornal não pode ser restrito ao eixo Rio – SP – Brasília, ele tem que mostrar um Brasil que ninguém conhece descrito pelos brasileiros que vivem no Brasil. É claro que o comitê de redação em São Paulo teria a missão de dar um formato jornalístico legível para o material que a gente recebesse. Mas, esse

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comitê de redação de São Paulo não iria substituir os comitês pelo Brasil, não poderia acontecer isso. Se acontecer isso seria a derrota do jornal. E eu cheguei a fazer várias viagens pelo Brasil agregando esses comitês. Eu me lembro que houve reuniões fantásticas, eu me lembro de uma reunião em Belo Horizonte que participaram artistas de teatro, prostitutas, trabalhadores mascates de rua, intelectuais da Universidade. E era isso mesmo que tinha que ser. A idéia era essa, fazer esse jornal.

Para Arbex, os comitês, que seriam o grande diferencial do Brasil de Fato em relação

aos outros jornais, além de ser o elemento garantidor da pluralidade de visões, não

funcionaram pela incapacidade do jornal em mantê- los com recursos financeiros, além de

deslocar pessoas para formá-los, e também diante da perplexidade que se abateu sobre a

sociedade após a eleição de Lula em 2002. Segundo ele:

O maior problema é que o governo Lula não foi aquilo que se esperava. Então o que aconteceu? Criou-se uma expectativa em cima do governo Lula nos primeiros seis meses do país e do jornal que todo mundo ficou na dúvida, que governo é esse aí? É esquerda, é direita? O Lula está esperando o momento adequado para dar a guinada para a esquerda? È um governo em disputa, não é um governo em disputa... O que é isso aí? E é lógico que essa perplexidade começou a se abater sobre as pessoas que queriam fazer o jornal.

Arbex acredita que a expectativa em relação ao governo e a indefinição sobre os

rumos a tomar atingiram o Brasil de Fato não só em relação à formação dos comitês, mas

também em relação ao público leitor, já que, como colocamos acima, o jornal foi pensado

para atuar dentro de uma conjuntura de ascensão dos movimentos e lutas populares, em que

ele seria o único veículo a falar "de dentro" das mobilizações para fora. Durante a entrevista,

Arbex coloca que:

Não vamos esquecer que houve um momento de expectativa. O Brasil inteiro parou para ver o que ia acontecer. Se o Lula tivesse feito um apelo ao movimento de massas para que fosse para a rua fazer reforma agrária, aí eu te garanto que iria se cumprir a previsão dos otimistas, que o jornal iria estourar. Mas o Lula não fez isso, no discurso de posse usou umas dez vezes as palavras “espera” e “paciência”. Então houve um momento em que todos os movimentos sociais, e as pessoas em geral, os trabalhadores, os brasileiros que comemoraram, ficaram num processo de expectativa, você não conseguia chamar ninguém para a luta. Vai lutar contra o que? Contra o governo Lula?

Como pudemos perceber, existe consenso de que o jornal Brasil de Fato que saiu nas

bancas não é o mesmo que está descrito em seu projeto editorial. Tanto os documentos

produzidos a partir de reuniões do conselho, os posicionamentos do MST em circulares, como

os depoimentos colhidos para a realização desta pesquisa afirmam que essa mudança

aconteceu. Diante dela, buscam explicações que giram em torno de temas semelhantes e

relacionados, avaliando que a conjuntura imaginada durante a formulação do projeto não se

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concretizou e a partir daí surgiram dificuldades: 1. Financeiras, que interferem nas questões

de distribuição e tiragem; 2. De mobilização, que restringiram as possibilidades de formação

de comitês que funcionassem efetivamente no fornecimento de pautas; 3. Políticas, que

dividiram a esquerda a partir de discordâncias em relação à natureza do governo Lula e

afastaram grupos políticos e intelectuais diversos do projeto do jornal.

Dando mais ou menos importância a essas questões, os documentos consultados e as

falas de nossos entrevistados concordam que o Brasil de Fato se tornou um jornal de

movimentos, o que não estava previsto em seu projeto editorial, mesmo que seu esboço tenha

sido formulado no seio do MST.

Por outro lado, existem avaliações diferentes sobre as opções que o jornal adotou

diante das adversidades apresentadas pela conjuntura descrita acima, e mais, existem

explicações diferentes para justificar essas opções. Alguns enxergam que as escolhidas foram

as únicas que a conjuntura apresentou, mas esta não é uma visão consensual. José Arbex, por

exemplo, afirma que a indefinição do Brasil de Fato em relação ao governo Lula foi tão

prejudicial ao seu projeto de disputa de um público amplo na sociedade quanto os outros

fatores listados acima. Ele declara, em entrevista para essa pesquisa que:

Quem faz o jornal não sabia que manchete dar no jornal. Porque se você desde o começo dissesse que o governo Lula é de direita, eu saberia que manchete dar no jornal. Por exemplo, transgênicos. "Lula é um traidor porque aprovou os transgênicos" etc. Se eu partir da caracterização de que o governo Lula é de esquerda e que ele cometeu um equívoco com o negócio dos transgênicos, a minha manchete vai ser outra. "Governo Lula comete um equívoco". Se eu parto da constatação de que é um governo em disputa, hora vai para a esquerda, hora vai para a direita, minha manchete vai ser outra, "Lula tem que ouvir o clamor do povo". E não houve uma concordância sobre o que era o governo Lula, e isso apareceu estampado no jornal. Entre o grupo que pensava o jornal. Por outro lado, e aí vem a parte dos leitores, o que o leitor espera do jornal, que ele já não vai encontrar nem no Estadão, nem na Folha , ele esperaria algo novo. O leitor, para justificar ele não comprar o Estadão nem a Folha e justificar ele comprar o Brasil de Fato, o Brasil de Fato teria que provar que ele era necessário para esse leitor que já lê a Folha e que já lê o Estadão. O que nós poderíamos oferecer nessa circunstância que ele já não tinha? Nada. Nada porque os comitês não funcionaram, a gente não tinha um Brasil diferente para mostrar, a gente não tinha nada novo para mostrar. O que a gente tinha? Um discurso ideológico. Só. Por que o cara vai deixar de comprar a Folha para ficar ouvindo o discurso ideológico do Brasil de Fato?

Para Arbex, a ambigüidade do Brasil de Fato em relação ao governo Lula fez com que

o jornal não conseguisse se definir, inclusive em relação à linguagem e público-alvo. Segundo

ele:

Não estava claro para quê ia existir um jornal que ia se relacionar com um governo que a gente não sabia exatamente o que era. O jornal também não sabia o que era. Então por que assinar esse jornal? É um governo que a gente não sabe o que é e um

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jornal que não sabe por que existe. Então para que assinar esse jornal? O jornal ficou no limbo. Uma hora dava manchetes contra os transgênicos e não sei o que, outra hora elogiava a política externa do governo Lula, outra hora descia o cassete no Banco Central, depois dizia que o Lula fez bem em não isolar Cuba, foi um negócio completamente anômalo. Prime iro lugar, a perplexidade de quem fazia o jornal. Segundo lugar, a ambigüidade do próprio governo Lula e a ambigüidade que ele estabeleceu com a CUT, com o próprio movimento de massas, com a nação brasileira em geral. Em terceiro lugar você tem uma situação de completa esquizofrenia, que é saber se esse jornal, afinal de contas, deveria se endereçar à esquerda ou à nação inteira. Que é o problema que eu mencionei. Qual é a linguagem que o jornal deveria utilizar? Se os comitês tivessem emplacado, esse problema nem apareceria, porque a linguagem do jornal seria a dos comitês. Mas esses comitês não emplacaram, então qual é a linguagem do jornal? É a linguagem dos comitês de redação, em São Paulo. E qual é essa linguagem? Não é a do MST, porque as pessoas que escreviam o jornal não eram do MST, não era a linguagem do PT, porque as pessoas que escreviam o jornal não eram necessariamente do PT. Não era uma linguagem universitária, porque nem todos... Que linguagem era essa? Uma linguagem difusamente pretendida como sendo uma linguagem de esquerda.

Já Nilton Viana, declara que o jornal não se pauta pelo governo, procurando fazer

críticas pontuais em alguns momentos, como coloca em sua entrevista:

Para nós é o seguinte, o jornal não é nem oposição ao governo Lula nem correia de transmissão do Planalto. Sabemos que esse é um governo extremamente contraditório, não é? É um governo em toda essência, é um governo neoliberal, em toda sua estrutura, em toda sua condução política, econômica etc. Mas o Brasil de Fato não tem o governo Lula como inimigo. Até mesmo porque não é papel do Brasil de Fato, e nós fazemos o acompanhamento e a leitura, que inclusive se expressa dentro do conselho do BF, que é um conselho amplo – o Conselho Editorial – dentro dessa leitura, que o governo é um governo contraditório, mas o papel é sempre que esse governo fizer ou tomar qualquer medida que beneficie a maioria da população brasileira o Brasil de Fato é o primeiro a estampar manchete e defender. Mas sempre que tomar medidas contrárias à classe trabalhadora, nós estaremos somando forças às lutas sociais, aos movimentos sociais, à classe trabalhadora, quem quer que esteja fazendo luta. Agora, nós temos claro que o governo Lula não é nosso inimigo.

Arbex argumenta que o jornal perde a independência ao deixar de fazer críticas

contundentes contra o governo para não forjar uma ruptura, como afirma na declaração a

seguir:

O que é um jornal independente? Um jornal independente é um jornal que não se deixa pautar por compromissos ideológicos. O jornal independente tem uma ideologia, mas ele não se deixa pautar por compromissos ideológicos. Então ele é de esquerda, é socialista, antiimperialistas, mas, sobretudo é um jornal. Qual é o compromisso do jornal? É como o fato, com a notícia. É com aquilo que está acontecendo. Esse é o compromisso do jornal. Bom, o que está acontecendo pode afetar o governo, não interessa. Você vai parar porque pode afetar o governo? Se você parar, deixou de ser jornal. Você virou um porta-voz, um comentarista, um panfleto, mas você deixou de ser um jornal, porque você não foi até o fim para reportar aquilo que está acontecendo e que você sabe que está acontecendo. Então o jornal acabou, em minha opinião, por causa dessas ambigüidades, por causa dessa falta de definição, por causa de todo esse marasmo ideológico que se apossou da esquerda com o governo Lula, o jornal perdeu a vitalidade dele, perdeu a capacidade que tinha de mobilizar alguém. Primeiro porque ele não podia ir até o fim. Porque

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para ir até o fim ele teria que cortar na própria carne. Segundo porque para ir até o fim, o que é ir até o fim, é um projeto popular alternativo? E o projeto popular alternativo diz o que? Que transgênicos não pode. O importante não é dizer isso em editorial, o que eu estou reclamando aqui é cobrir isso. A minha acusação não é que o jornal não fez uma manchete histérica dizendo: Lula é de direita. O problema é que o jornal não cobriu a guinada, guinada não, a adesão total do governo Lula à direita. Não cobriu. Por exemplo, a reforma agrária na Amazônia agora, que está sendo uma pilantragem armada para enriquecer grileiro utilizando movimentos sociais como massa de manobra. O pessoal que faz o jornal sabe disso, mas não aparece no jornal. Por que não aparece? Porque teria que romper com o governo Lula e aí a coisa fica complicada.

A questão do governo Lula também interferiu na relação dos movimentos com o

jornal. Muitos identificaram a linha do MST e se afastaram ou deixaram de se integrar ao

projeto. Segundo Arbex, essa questão não teria importância se o Brasil de Fato não tivesse se

tornado um jornal voltado para os movimentos sociais:

Ele devia ser disputado em banca, vendia para o povão, não ia ser sustentado pelos movimentos. Acabou sendo isso porque primeiro ele foi publicado num momento que não tinha verba para ser publicado. Segundo porque se esperava que houvesse a ascensão dos movimentos e ela não aconteceu e terceiro porque os comitês não se formaram. Então ele acabou ficando refém da única estrutura que aparentemente poderia dis tribuir o jornal, que eram os tais movimentos. Que também não se concretizou. O jornal nasceu da consciência de que a elite brasileira estava recrudescendo os ataques contra o povo. Foi dessa consciência que nasce o jornal. Agora é óbvio que quem tinha as condições orgânicas de se expressar para tentar fazer alguma coisa eram os movimentos sociais. Mas ele não agregava só os movimentos sociais... Até porque você tinha participando das reuniões um Fernando Morais, a Dulce Maia, a Cia. do Latão, artistas, não eram os movimentos sociais, era a sociedade brasileira.

Nilton Viana enxerga que a não-adesão dos movimentos é mais um reflexo da

conjuntura complicada em que vive a esquerda brasileira desde a eleição de Lula, mas

demonstra também a dificuldade em cons truir um meio de comunicação unitário:

Nós estamos em um período descenso, infelizmente, do movimento de massa. A chegada de um operário que tramitou no campo da esquerda [...] à Presidência e não corresponde às expectativas transformadoras, necessariamente cria rupturas e fragmenta a esquerda. Não bastasse tudo isso, setores da esquerda foram cooptados nesse processo. Então são elementos que refletem nessa estrutura no Brasil de Fato . Então o jornal por ser esse projeto político, sofre as conseqüências da fragmentação da esquerda. Alguns setores da esquerda, que no começo estavam somando forças ao projeto, no decorrer desse processo entendem que a visão política que dá sustentação ao Brasil de Fato não está de acordo com a sua visão. Mas isso é natural, enfim. É reflexo desse processo de fragmentação brasileira. Por outro lado, fazer um veículo de comunicação da esquerda que seja plural, que tenha uma amplitude dessas forças políticas é um desafio tão grande tanto quanto unir a esquerda brasileira como um todo. Até mesmo porque cada um procura criar seus próprios meios, seus próprios instrumentos. Alguns, como eu citei antes, procuram ter a visão partidária, doutrinária, e como nós somos um jornal que atua em um campo plural – nós não temos um comitê central que vem aqui baixando doutrinas, enfim. Isso também

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reflete nessa estrutura, já alguns companheiros tem a visão que tem que criar instrumentos dessa forma.

A partir disso, Miguel Stedile aprofunda a reflexão sobre a forma como os próprios

movimentos sociais enxergam a comunicação, como algo secundário e instrumentalizado, o

que nos ajuda a entender a relação que os movimentos sociais estabelecem com o Brasil de

Fato.

As organizações populares e os movimentos sociais podem até dizer que a comunicação é um eixo estratégico na disputa da hegemonia, mas na prática isso não acontece. Existe uma série de condições materiais, maturidade política, nível de enfrentamento, que vai te levar a concluir que “olha, se a gente não dominar e não avançar no campo da comunicação, nós não vamos entrar nessa disputa ideológica. O MST percebeu isso depois de quanto tempo? E de que maneira? Durante por dez, doze anos nós nos demos por satisfeitos por ter o Jornal Sem Terra . A gente percebeu que precisava de um veículo específico para comunicar com a sociedade, que precisava da internet. Acho que setores movimento camponês, do movimento social urbano, talvez por não perceber tanto... não terem ainda esse grau de maturidade, talvez não tenham percebido a importância e necessidade que isso poderia ser nesse momento [...] Então tem uma fragmentação nos meios de comunicação de esquerda que não é mera coincidência. Existe uma intencionalidade disso. Se você entrar em um jornal nacional a sua fatia não vai estar lá. Então eu acho que isso do ponto de vista político é o central. É essa divisão da esquerda que obriga... Porque o jornal, com todas as críticas que a gente possa fazer a ele, mas desde que ele começou, ninguém pode dizer que o Brasil de Fato se fechou para determinado setor. E se você olha para o Conselho Político que é o nome pro - forma para o expediente, ele vai do Valerio Arcary, que representa o PSTU, Conlutas até setores do campo majoritário do PT. Então o jornal se dispôs a aglutinar isso, ingenuamente talvez, porque essas divisões da esquerda de certa forma já estariam pressupostas desde o período da campanha. O que iria ocorrer, enfim... Mas acho que isso foi o central, o que inviabilizou o jornal neste momento histórico. Foi essa incapacidade, foi ter se proposto a ser um jornal que aglutinasse a esquerda que teve que ter paciência, que teve que fazer concessões, que teve que mexer com todos os lados... E haviam dois setores da esquerda que não tinham o interesse de construir um jornal nacional. Ou porque tem outra concepção de comunicação que pressupõe disputar por dentro dos grandes meios de comunicação ou porque é o seu veículo, vinculada à 6ª Internacional que é o dono da verdade e que a classe trabalhadora já tem o seu jornal.

Apesar da não adesão dos movimentos sociais ao projeto, da fragmentação da

esquerda e da dificuldade do Brasil de Fato em se posicionar em relação ao governo, os anos

de 2007 e 2008 mostram-se positivos para a consolidação do projeto. Entre as metas para o

ano de 2007 colocadas no documento "Brasil de Fato: informe aos movimentos sociais que o

sustentam" está a "ampliação do material informativo dirigido prioritariamente para a

militância social e formadores de opinião pública", por meio da conjugação dos elementos

ligados ao jornal, página na internet e boletim eletrônico e o prosseguimento do

"planejamento das edições massivas", combinadas com as "jornadas de mobilizações dos

movimentos sociais", procurando atingir um público multiplicador, jovens, estudantes,

professores, religiosos etc. O documento faz um apelo para que os movimentos que estão ao

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redor do projeto façam um acompanhamento mais próximo de suas pautas e reforcem o

conselho editorial, além de juntar recursos para o custeio das edições temáticas, pagas em

conjunto pelas entidades e organizações envolvidas nos assuntos que elas cobrem.

Como encaminhamento concreto, o documento propõe que se avalie a possibilidade de

o jornal aumentar o número de páginas para doze e voltar a publicar reportagens sobre a

África, além de introduzir matérias sobre meio ambiente e grandes entrevistas. O aumento de

páginas se concretiza a partir da edição 218, em maio de 2007.

Atualmente, o jornal permanece com doze páginas. Segundo Nilton Viana, editor-

chefe, sua tiragem média é de 25 mil exemplares semanais, com um quadro de 6 a 8 mil

assinantes. Nilton afirma que o Brasil de Fato "se sustenta com as assinaturas, com a venda

em banca, com as doações dos movimentos sociais e com alguns anúncios de estatais [...],

mas principalmente com a doação dos movimentos sociais e com as assinaturas", e hoje, pode

se considerar consolidado, uma vitória para quem já chegou a dever 260 mil reais.

Em termos financeiros, Nilton coloca em seu depoimento que o ideal seria atingir de

20 a 25 mil assinaturas para a auto-sustentação. Apesar de contar com dinheiro da venda de

anúncios para órgãos estatais, Nilton acredita que o um jornal popular deve buscar sua

sobrevivência de outras formas, como coloca a seguir:

A gente sempre trabalha na perspectiva de que um instrumento da classe trabalhadora necessariamente precisa buscar sua auto-sustentação. Buscar inclusive não dependendo de nenhum anúncio publicitário, seja ele de onde for. Entendemos que a verba pública [...] deve ser democraticamente distribuída e infelizmente não é dessa forma que acontece [...] Eu entendo que um instrumento da classe trabalhadora deve caminhar sistematicamente seja pela venda em bancas, seja pelas assinaturas, e se não for por esse dois instrumentos, que ele seja bancado pela classe trabalhadora e que ele seja cotizado entre os movimentos sociais etc. Mas nunca apenas dependa de verbas publicitárias, porque você acaba sendo refém dessa forma de arrecadação de recursos, e governos mudam. Hoje a gente tem consigo alguns anúncios de algumas estatais, mas essa conjuntura pode mudar completamente e nós não termos mais verba nenhuma. Então nós precisamos buscar que a classe trabalhadora assuma o instrumento da classe trabalhadora. Se cada um contribuísse com o mínimo possível, a gente conseguiria deslanchar tranquilamente o Brasil de Fato.

Com o jornal estabilizado finalmente, é possível pensar em perspectivas e novos

objetivos. Para Nilton, a ampliação do Brasil de Fato é uma delas, como ele coloca a seguir:

Nós temos como desafio fazer o Brasil de Fato ampliar. Seja com setores da esquerda, trabalhar permanentemente – isso nós temos cumprido esse papel – de buscar a unidade da esquerda, estimular a unidade, não é? Outro objetivo que temos cumprido: ser estimulador das lutas. Outro objetivo que temos cumprido: temos procurado dar dignidade às lutas e à classe trabalhadora. E a maior conquista que nos temos até hoje nesses seis anos de Brasil de Fato foi

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ter aglutinado milhares e milhares de militantes, muitos deles anônimos por esse país afora. Muitos e muitos colaboradores em outros países, de outras agências de notícias... Aglutinado um leque muito amplo de militância em torno do projeto político do Brasil de Fato . Essa é a maior conquista do jornal. Já como desafio nós temos que ampliar e muito nossas assinaturas. Nós temos que trabalhar muito, muito, muito para fazer o Brasil de Fato cada vez mais cumprir o papel fundamental dele que é de chegar à classe trabalhadora e ajudar a elevar o nível de consciência da classe trabalhadora. Temos que fazer dezenas de edições especiais, que é para chegar para a grande maioria do povo brasileiro com temas fundamentais [...] e precisamos convencer os nossos militantes, os nossos apoiadores no país inteiro da importância de sustentar o Brasil de Fato.

Já Ricardo Gebrim, membro do conselho editorial e dirigente da Consulta Popular,

acredita que o Brasil de Fato só poderá ser ampliado a partir de uma mudança conjuntural

mais profunda, como coloca na entrevista que concedeu a esta pesquisa:

Eu acho que o jornal ainda cumprirá o seu papel mais decisivo. Na verdade, esses anos todos foram anos em que acumulamos experiência, conformamos um coletivo mais experiente, entendemos como se faz um jornal, entendemos os desafios do jornal, entendemos como lidar com essa questão da comunicação, a sua complexidade, mas a conjuntura não foi favorável às idéias da esquerda, às idéias transformadoras, e conseqüentemente a um veículo de comunicação de esquerda. Como otimista, a gente acha que o período histórico está mudando. Vai ser uma mudança confusa, difícil, complexa, tem seu ritmo que é bastante inesperado, então é difícil falar em prazos. Mas a conjuntura vai se alterar e o jornal vai cumprir um papel diferente. Por isso, o fato de tê-lo mantido, é o seu ganho principal. Porque tem todas as suas experiências, experiências complicadas, negativas, as barrigadas que o jornal deu, tudo isso nos ajudou a ensinar a fazer o jornal, organizar o jornal e tendo o veículo para uma conjuntura mais favorável. Eu acho que o Brasil de Fato não podia ser muito diferente, por isso eu acho que ele deveria ter começado pequenininho. Esse era o espaço que estava reservado para um veículo com esse perfil, de trabalhar esse conjunto de forças que a gente chama de projeto popular, que é uma coisa mais ampla, esses setores sociais, tava reservado esse perfil para ele, essa possibilidade de público. E esse conjunturalmente estava reservado isso. Só outra conjuntura vai ampliar, vai potencializar que ele tenha outro público, atinja mais gente, cumpra um papel maior. Então, nesse sentido, ter se preservado foi a maior vitória.

Para José Arbex, a consolidação do Brasil de Fato nos moldes atuais não significa

grandes avanços, já que seu o projeto original e ousado não existe mais. Segundo ele:

Eu acho terrível. Porque a estabilização dele é a estabilização do cemitério. Um morto está estabilizado na cova. O que isso prova? [...] Para que ele serve? Se você comparar isso com o objetivo inicial do jornal é uma demência. Eu era a favor de acabar com o jornal papel e ficar só com o online, mas fui derrotado de novo. É ilusão achar que hoje ele está cumprindo algum papel. Agora, eu acho melhor que exista o Brasil de Fato do que não exista. Mas eu acho que hoje ele seria muito mais útil como agência online, ia custar muito menos dinheiro. Em vez de imprimir e gastar milhares de reais em papel você podia empregar esse dinheiro em uma rede de repórteres no Brasil, pagando salário base para cada um desses repórteres em cada canto do Brasil e produzir uma agência de notícias que refletisse o Brasilzão.

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Muito melhor do que ficar gastando dinheiro com papel, mas aí é opção deles. Um jornal deve servir para elevar o nível de consciência do povo, e como é que você eleva o nível de consciência do povo? Não é com discurso de esquerda. Eleva a consciência do povo ao mostrar um Brasil que ninguém conhece [...].

Já Miguel Stedile acredita que o Brasil de Fato, com a redefinição de seus objetivos,

passou a cumprir um papel importante para o debate de idéias na esquerda brasileira, apesar

de não funcionar como um instrumento de disputa de hegemonia, como coloca a seguir:

O jornal se tornou muito mais do que num espaço de aglutinação da esquerda... Muito mais não, se tornou em um referencial para a militância avulsa ou organizada que se identifica com a esquerda social. Agora, pessoalmente falando, acho que o jornal cumpriu um papel importante para a democratização da comunicação e para a esquerda de um modo geral que é o seguinte, [...] havia uma lenda histórica que um dia vai vir um disco voador chamado “jornal de esquerda” que vai disputar a hegemonia. [...] Eu acho que uma das lições que o Brasil de Fato deixa é o seguinte: que esse veículo de esquerda que a gente idealizava não existe. Não vai existir. Não existem condições materiais, objetivas e subjetivas, mesmo continentais, pela extensão continental que o Brasil tem, para existir um jornal unitário de esquerda. Talvez a grande lição do Brasil de Fato seja que todos esses setores de esquerda tenham que ter seus jornais. O PT tem a decisão de nunca ter um jornal etc. E outra coisa que eu acho, do ponto de vista de disputa de hegemonia, é de que hoje [...] a ferramenta principal para a disputa de hegemonia não é de forma alguma um jornal impresso. A luta pela hegemonia está no audiovisual. Hoje, acho que, até recomendo para quem tem esse discurso, “ah, um jornal de esquerda, não sei o quê...” Esqueça. Tenha o seu jornal para sua militância, seu público de influência, seus 10 mil, 20 mil exemplares. Mas quem quiser tomar o poder no século XXI tem que ter uma TV. Legal ou não. Tem que produzir vídeos, postar no youtube ou similares, projetar no meio da rua, etc. O futuro da comunicação... O futuro não, o presente da comunicação de esquerda, social [...] passa pelo audiovisual necessariamente. E os veículos impressos, em minha opinião, no Brasil, na Guatemala, na Venezuela, Estado Unidos,vão servir muito mais para a militância, para os quadros, do que para a massa. O desenvolvimento tecnológico não nos permite apostar só nessa ferramenta.

Em relação à disputa de hegemonia, podemos concluir, a partir dos depoimentos e

discussões colocados acima, que o Brasil de Fato atualmente não é visto como um meio de

comunicação que a promova na sociedade. Verificamos também, que tampouco há disputa

política de seus rumos entre os membros do conselho editorial, que continuam a se reunir

mensalmente. A última reunião do conselho político, em dezembro de 2008, na qual

estivemos presentes, discutiu os rumos da esquerda diante da crise do capitalismo e pouco

falou sobre o jornal especificamente. Concluímos que as pessoas e organizações que

permanecem ligadas ao projeto do Brasil de Fato, concordam com a linha política designada

para ele pelo MST e Consulta Popular, aceitando a transformação do projeto em um jornal de

movimentos e apostando em sua continuidade para o auxílio na formação de seus quadros e

transmissão das idéias desses grupos para uma parcela de assinantes, organizados ou não. A

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partir da leitura dos documentos e das análises das entrevistas aqui colocadas, pudemos

formar um quadro de explicações e opiniões sobre as razões que condicionaram a

transformação do projeto original do Brasil de Fato. A seguir, faremos uma análise de suas

manchetes em seis anos de edições semanais. O próximo capítulo será dedicado a uma

avaliação dos resultados encontrados na pesquisa de campo que reconstituiu a trajetória do

Brasil de Fato e sua relação com as questões levantadas pela parte teórica desta pesquisa.

4. Temas das manchetes do Brasil de Fato em seis anos de vida Neste item, procuraremos fazer o resgate dos principais temas das manchetes do Brasil

de Fato em 304 edições, publicadas entre março de 2003 e dezembro de 2008. Não faremos a

transcrição integral das manchetes, mas apontaremos o tema central de cada uma, com o

objetivo de traçar um panorama dos assuntos mais destacados abordados pelo Brasil de Fato

em seis anos, a partir de sua manchete principal. No caso de manchetes que digam respeito

diretamente ao governo Lula, colocaremos apenas a palavra "Lula" como referência, para

analisá- las de forma mais aprofundada no item cinco deste capítulo.

Agrupando as manchetes em grandes temas, podemos verificar quais assuntos foram

considerados prioritários para a cobertura do jornal. As manchetes que fazem referência direta

ao presidente Lula e ao governo são as mais comuns, pois foram 39 em seis anos.

As mobilizações do MST e a luta pela reforma agrária vêm em seguida, com dezoito

manchetes. O terceiro tema mais abordado em manchetes são as ações do governo de George

W. Bush, presidente dos Estados Unidos entre 2001 e 2009, aqui agrupadas com as manchetes

que fazem referência direta à Guerra do Iraque, num total de treze. Somam treze também as

manchetes sobre o mundo do trabalho, que compreendem as que abordam assuntos como

desemprego, direitos trabalhistas, trabalho infantil, escravo ou degradante. As manchetes

sobre movimentos sociais, suas mobilizações e demandas somaram onze, enquanto as que

falam sobre a Bolívia, a Venezuela e se referem a episódios de corrupção no Brasil empatam

em nove. Outros temas recorrentes são: violência no campo (oito), transgênicos (oito),

transposição do rio São Francisco (sete), Fórum Social Mundial (compreendidas as manchetes

que falam sobre a edição do Fórum Social Brasileiro) (seis) e movimento sindical. A tabela 1

traz a incidência dos temas gerais em manchetes de forma completa.

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Temas das manchetes21 Ano

2003

Ano

2004

Ano

2005

Ano

2006

Ano

2007

Ano

2008

Total

Lula 12 2 7 7 7 4 39

MST/ Reforma agrária 1 4 5 2 4 2 18

Guerra do Iraque/ Governo Bush 4 3 3 1 1 1 13

Mundo do trabalho22 1 3 1 5 3 13

Movimentos sociais 2 5 3 1 11

Bolívia 1 2 1 5 9

Corrupção 3 1 5 9

Venezuela 1 4 2 1 1 9

Violência no campo 2 2 2 1 1 8

Transgênicos 4 2 1 1 8

Transposição do rio São Francisco 1 2 1 3 7

Fórum Social Mundial e Brasileiro 1 2 3 6

Movimento sindical 2 3 1 6

Agências reguladoras 3 1 1 5

Indígenas 3 1 1 5

Petróleo brasileiro 1 1 1 2 5

Privatizações 1 1 3 5

Vale do Rio Doce/plebiscito23 5 5

Violência policial 1 1 1 2 5

Agronegócio 1 1 2 4

Dívida externa 2 2 4

OMC24 2 1 1 4

Transnacionais 1 1 1 1 4

América Latina 1 2 3

Colômbia 3 3

21 As manchetes foram selecionadas a partir de seus temas principais 22 Inclui questões trabalhistas, previdência, trabalho infantil e degradante 23 Em 2007, vários movimento sociais, incluindo o MST e a Consulta Popular, organizaram um

plebiscito popular sobre a anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, ocorrida em 1997 em um processo controverso.

24 Organização Mundial do Comércio

Tabela1 Temas gerais de manchetes do Brasil de Fato divididos por anos

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Educação 1 1 1 3

Eleições municipais 3 3

FMI 2 1 3

Grito dos Excluídos25 2 1 3

México/ Zapatistas 1 1 1 3

Moradia 1 1 1 3

Oriente Médio/Palestina/ 1 2 3

Paraguai 1 2 3

África 2 2

ALCA 1 1 2

Autonomia do Banco Central26 2 2

Bancos 1 1 2

Crise da esquerda 1 1 2

Crise econômica mundial 2 2

Cuba 1 1 2

Energia elétrica 1 I 2

França/ manifestações de rua 1 1 2

Haiti 1 1 2

Meio ambiente 2 2

Mulheres 1 I 2

Palocci27 1 1 2

PT 1 1 2

Relações América Latina-EUA 2 2

Água 1 1

ALBA28 1 1

25 O Grito dos Excluídos é uma entidade latino-americana de combate às desigualdades sociais,

composta por setores progressistas da Igreja Católica e movimentos sociais . No Brasil, organiza manifestações em várias cidades no dia 7 de setembro. A temática das mobilizações muda a cada ano, mas o mote permanente é a luta contra as desigualdades sociais e a exclusão.

26 A esquerda, historicamente, se posiciona contra a autonomia do Banco Central. 27 Antonio Palocci Filho, médico e político de Ribeirão Preto (SP) foi o primeiro ministro da Fazenda

nomeado pelo governo Lula, permanecendo no cargo do início do primeiro mandato, em 2003 até o dia 27/03/2006. Era identificado pelos movimentos sociais como o principal responsável pela política econômica conservadora adotada pelo governo.

28 A ALBA é uma proposta de integração comercial regional para os países da América Latina. Formulada pelo governo de Hugo Chávez, ela seria um alternativa à ALCA, vista pelos movimentos sociais como uma ameaça imperialista ao desenvolvimento dos países pobres do continente.

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Argentina 1 1

Ataques a moradores de rua em

São Paulo

1 1

Banco da Terra 1 1

Banco do Sul 1 1

Barack Obama 1 1

BNDES29 1 1

Bolsa família 1 1

Che Guevara 1 1

CIA/ Dalai Lama 1 1

Consumismo 1 1

Coréia do Norte 1 1

Crise Aérea 1 1

Cúpula sul-americana 1 1

Daniel Dantas 1 1

Distribuição de renda 1 1

Ditadura militar brasileira 1 1

Equador 1 1

Especulação financeira 1 1

Febem/ PSDB SP 1 1

Fórum das Américas 1 1

Geórgia - EUA 1 1

Guatemala 1 1

José Sarney 1 1

Justiça social 1 1

Livre comércio 1 1

Minicom30 e Globo 1 1

Morte Pinochet 1 1

ONU 1 1

PAC31 1 1

29 Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico 30 Ministério das Comunicações 31 Programa de Aceleração do Crescimento

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Presídios EUA 1 1

Segurança pública SP/PCC 1 1

Soberania nacional 1 1

Sucateamento do Estado 1 1

Taxa de juros 1 1

TV Digital 1 1

Uruguai 1 1

Valores de esquerda 1 1

5. O jornal Brasil de Fato e o governo Lula

Neste item, faremos uma breve análise das manchetes do Brasil de Fato dedicadas ao

governo Lula em seis anos de existência. Escolhemos esse recorte como unidade de análise,

pois nos pareceu interessante tentar entender a relação jornalística que existe entre o Brasil de

Fato e o governo. As avaliações sobre o governo Lula foram o ponto que mais concentrou as

divergências da esquerda nos últimos seis anos, e como pudemos perceber através das

entrevistas e relatos aqui colocados, teve reflexos profundos na trajetória política do jornal.

Afinal, o Brasil de Fato não passou incólume pelas divisões que as diferentes análises e

avaliações sobre o desempenho do governo provocaram em movimentos sociais, partidos e

outras organizações progressistas no Brasil.

De forma simplificada, os posicionamentos da esquerda sobre o governo Lula podem

ser divididos em dois grupos. Há os que avaliam que existe uma disputa de projetos dentro do

governo, e que cabe à esquerda mobilizar suas bases para tornar a correlação de forças

favorável às mudanças e transformações que defendem. Geralmente, as pessoas e grupos que

carregam essa visão mantêm-se dentro do PT e/ou ligados a organizações cuja diretoria

expressa a mesma posição, como a CUT.

Do segundo grupo fazem parte aqueles que consideram que Lula traiu suas origens e

convicções ao construir um governo de conciliação e não de ruptura. Para as pessoas e grupos

políticos que comungam dessa visão, o governo Lula é tão conservador quanto o governo

Fernando Henrique Cardoso, não está em disputa e precisa ter sua natureza elitista

desmascarada. Ao longo de seis anos de mandato, muitos militantes e grupos políticos

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deixaram o PT, a CUT, e outras organizações consideradas governistas para fundar novos

partidos e centrais sindicais a partir dessas avaliações, como o Partido dos Trabalhadores

Socialistas Unificados (PSTU), a Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas, central sindical

ligada ao PSTU), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e a Intersindical (central ligada

ao PSOL).

Como vimos, o Brasil de Fato optou por não se posicionar de forma mais contundente

diante do governo Lula, partindo para a crítica, bem dura em alguns momentos, mas sem

sinalizar uma ruptura. Essa forma de posicionamento, vista por alguns como independência

(Nilton Viana), e por outros como vinculação (José Arbex), de certa forma acompanhou as

estratégias adotadas pelo MST, que mescla pressão a momentos de apoio, como durante a

campanha de Lula à reeleição.

Partindo para a análise, consideramos que a observação das manchetes pode nos dar

uma idéia sobre a forma jornalística adotada pelo Brasil de Fato para expressar seus

posicionamentos – sejam as críticas, cobranças ou apoio – em relação às atitudes de Lula.

Procuraremos relacionar as manchetes, quando possível, ao estado de ânimo dos movimentos

sociais, principalmente do MST, e verificar se realmente existe ambigüidade no tratamento

dado ao governo.

Reunimos as manchetes a partir da identificação de duas palavras que funcionaram

como nossas unidades de análise. Foram selecionadas todas as que continham as palavras

"Lula" e "governo", ou referência direta ao governo a partir da citação de figuras do primeiro

escalão, de programas de governo e termos como reeleição, em 304 edições. Encontramos 48

manchetes, sendo 39 fazendo referência direta e nove, indireta.

A partir desta seleção, dividimos as manchetes de acordo com os anos em que foram

publicadas e as classificamos como 1. Críticas ao governo, 2. Recomendações, 3.

Propositivas, e 4. Elogiosas/ Apoiadoras. Os resultados desta classificação podem ser

verificados na tabela 2.

Consideramos também, para efeitos da análise de conteúdo, nove manchetes que

fazem referência direta ao governo Lula, mas não o citam nominalmente, ao falar sobre

programas de governo, ministros ou outras questões. Essas manchetes não foram incluídas na

tabela 2, e constam da tabela 1, que traz os temas gerais das manchetes divididos por anos de

publicação.

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Tabela 2. Manchetes que citam o governo Lula dividas por anos.

Ano 1. Críticas ao

governo 2. Reivindicações

ao governo 3. Propositivas

4. Elogiosas/ Apoiadoras

Total de manchetes

2003 3 2 2 7 14 2004 1 1 - - 2 2005 7 1 - 3 11 2006 3 1 2 2 8 2007 9 - - - 9 2008 4 - - - 4 Total 27 5 4 12 48

2003 Zero. "Lula precisa ter coragem", afirma Celso Furtado

7. Palocci elogia o FMI e negocia o Brasil na ALCA

8. Chefões do narcotráfico são alvo de Lula

9. Lula precisa dar um basta

12. É hora de o governo resgatar o compromisso histórico, diz ministro

13. Lula quer romper isolamento de Cuba

15. Bancos desafiam Lula e mantêm juros extorsivos

17. Bush pressiona e Lula aceita ALCA em 2005

19. Lula garante prioridade para reforma agrária

20. Lula ataca política externa dos Estados Unidos

24. Governo reage aos ataques da elite contra os movimentos sociais

26. Lula defende unidade sul-americana para enfrentar ALCA e OMC

39. Palocci defende arrocho na área social

43. Sem-terra têm de pressionar, diz Lula

Durante o ano de 2003, o Brasil de Fato publica doze manchetes sobre o governo

Lula, a maior quantidade de manchetes durante um ano com essas referências. Apenas uma

delas se coloca de forma crítica ao governo, trata-se da edição de número 17, em que o jornal

afirma que "Bush pressiona e Lula aceita a ALCA em 2005". A luta contra a aprovação da

Área de Livre Comércio das Américas é uma das bandeiras mais importantes para os

movimentos sociais envolvidos com o projeto popular, incluindo o MST. Durante o ano de

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2002, os mesmos movimentos na época que se reuniram para construir o jornal, se engajaram

na organização de um grande plebiscito popular sobre o tema, com o intuito de conscientizar

suas bases sociais e a sociedade em geral para os perigos da aprovação da ALCA para o

desenvolvimento econômico e industrial do país.

As manchetes das edições zero e 9 correspondem ao item reivindicações ao governo.

Ambas sugerem de forma mais impositiva comportamentos ao governo. A manchete de

número zero, com as aspas que remetem a uma frase dita pelo economista Celso Furtado,

entrevistado para essa edição do jornal, recomenda coragem ao presidente. A de número 9 é

mais incisiva, recomendando ao presidente que dê um basta às negociações da ALCA.

As manchetes caracterizadas como propositivas são as das edições de e número 12 e

43. A primeira sugere que o presidente destine mais verbas à pesquisa, sendo que o ministro

citado é Roberto Amaral, titular da pasta de Ciência e Tecnologia do início do governo a

janeiro de 2004. A de número 43 refere-se a uma fala do próprio Lula, que na ocasião,

participava de uma atividade em um assentamento no Rio Grande do Norte, pedindo aos sem-

terra que pressionem o governo para que haja reforma agrária.

As demais foram consideradas positivas, pois relacionam Lula e suas decisões à

bandeiras defendidas pelo jornal, como a perseguição aos "chefões do narcotráfico" na edição

8, o rompimento do isolamento de Cuba (13), a prioridade para a reforma agrária (19), o

ataque à política externa de Bush (20), a defesa dos movimentos sociais diante de ataques da

elite (24) e a unidade sul-americana no enfrentamento contra a ALCA (26). A manchete de

número 15, que diz: "Bancos desafiam Lula e mantêm juros extorsivos", denotam que Lula

pretendia baixar a taxa de juros, outra política defendida pelo jornal, mas foi impedido pelos

bancos, tendo tomado assim, uma atitude correta.

Já as manchetes 7 e 39 não fazem referência explícita a Lula, mas entram nesta

análise por se dirigir ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Na concepção dos movimentos

que compunham o jornal, Palocci era o grande responsável pela política econômica

conservadora do governo Lula, e suas ações deveriam ser combatidas. Por outro lado, a crítica

aberta a Palocci muitas vezes substituiu as que deveriam ser dirigidas à figura de Lula. Ou

seja, apontar para o ministro da Fazenda fazia com que o presidente fosse poupado.

2004

45. Índios retomam terras e exigem ação do governo

52. Governo ameaça universidade pública

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Em 2004, apenas duas manchetes fazem referência direta ao governo Lula, sendo uma

considerada crítica e a outra reivindicativa. Em "Índios retomam terras e exigem a ação do

governo", o jornal defende a demarcação das terras indígenas e uma ação incisiva de Lula. Já

em "Governo ameaça a universidade pública" a crítica é clara. Afinal, o ensino gratuito é uma

das bandeiras históricas da esquerda e conseqüentemente, defendida pelo Brasil de Fato. Essa

manchete se refere especificamente ao projeto de Reforma Universitária formulado pelo

Ministério da Educação, que, entre outras propostas, continham um item sobre a isenção de

impostos para instituições de ensino particulares que abrissem vagas para estudantes pobres,

embrião do posteriormente implantado Programa Universidade para Todos.

2005

97. Mais um ano. E as mudanças?

104. Lula promete o fim da impunidade

120. Esquadrão da moralidade entra em cena

121. Lula, o povo ou as elites?

123. De novo, governo pede benção à direita

124. Lula troca ministros. Nada muda

125. Presidente Lula culpa o PT pela crise

128. Mídia prepara o terreno para derrubar Lula

130. Mesmo sob suspeita, Palocci é intocável

135. MST perde a paciência com Lula

145. Transposição em troca da reeleição

Em 2005, o Brasil de Fato dedica sete manchetes às referências diretas a Lula. Entre

elas, quatro são críticas, uma é reivindicativa e duas são elogiosas. A edição de número 121

exige que Lula escolha entre governar para o povo ou para as elites. As críticas tornam-se

mais duras quando o próprio jornal aponta a escolha de Lula para a pergunta colocada na

manchete de número 121, ao afirmar que Lula vem pedindo bênçãos à direita (edição 123) e

que a sua troca de ministros não representou qualquer forma de mudança (124). A manchete

da edição 125 coloca a existência de uma crise que o governo evita assumir, colocando a

culpa por ela em seu partido, e a 135 aponta que o MST perdeu a paciência com Lula, pois a

realização da reforma agrária não passa de uma promessa. Anterior ao endurecimento das

posições, a edição 104 traz um elogio à promessa de Lula de acabar com a impunidade dos

que cometem crimes contra trabalhadores e ativistas sociais (a manchete se refere ao

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assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, no Pará). Em meio às manchetes

críticas, a da edição 128 entre no critério das elogiosas/ apoiadoras ao afirmar que a grande

imprensa de forma oportunista aproveita-se da fragilidade do governo para tentar derrubá- lo.

Com essa manchete, o Brasil de Fato demonstra que, apesar das críticas, ficará ao lado do

presidente se este tiver seu mandato ameaçado.

As edições cujas manchetes não fazem referência direta ao presidente analisadas aqui

são as de número 97, 120, 130 e 145. A primeira, crítica, afirma que, após dois anos, Lula não

empreendeu as mudanças prometidas quando foi eleito. A de número 120 transparece apoio a

Lula ao questionar a idoneidade das figuras que fazem denúncias de corrupção contra o

governo, todas com suas próprias histórias de falcatruas. Trata-se de mais uma demonstração

de que o jornal se coloca ao lado do presidente quando o considera ameaçado. A manchete de

número 130 insiste na crítica a Palocci, ao colocar que mesmo sob suspeita de desvios, o

ministro tem sua permanência no cargo garantida. Trata-se de crítica velada a Lula. E

finalmente, a manchete de número 145, também crítica, afirma que o presidente aprovará o

projeto de transposição do rio São Francisco, ao qual o jornal se coloca contrário, em troca do

apoio do ministro da integração nacional, Ciro Gomes. Segundo o Brasil de Fato, o projeto da

transposição interessa às elites cearenses, representadas por Ciro.

2006

149. Lula decepciona e pobreza continua

161. Lula mantém política do desemprego

184. Por que Lula ganha força?

187. Desvios de petistas fortalecem a direita

188. Movimentos declaram apoio a Lula

189. Esquerda quer maior compromisso de Lula com mudanças

191. Rumos para um governo popula r

192. Movimentos prometem mais pressão popular no segundo mandato de Lula

O ano de 2006 é marcado pelas eleições presidenciais, disputadas entre Lula,

candidato à reeleição e Geraldo Alckmin, então governador do estado de São Paulo. Diante da

ameaça de vitória de Alckmin, candidato do PSDB de histórico conservador, o Brasil de Fato

declara apoio a Lula com duas manchetes elogiosas: Por que Lula ganha força? (184) e

Movimentos declaram apoio a Lula (188). A manchete "Movimentos prometem mais pressão

popular no segundo mandato de Lula" é classificada como reivindicativa, já que denota que os

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movimentos pretendem exigir transformações de Lula a partir de mobilizações. As edições

189 e 191 trazem propostas e sugestões da esquerda que está ao redor do jornal para o

próximo mandato de Lula e finalmente, as críticas, publicadas em janeiro e março de 2006,

portanto longe das eleições de outubro, são duras ao afirmar que a pobreza e o desemprego no

Brasil continuam pela falta de ações efetivas de Lula. A manchete 187, publicada mais perto

das eleições, em setembro, menciona o episódio da compra de um dossiê contra José Serra

(PSDB), então prefeito de São Paulo e candidato a governador, por petistas, colocando em

risco a eleição de Lula. A manchete é crítica, mas ao partido e não ao presidente.

2007

200. Bolsa família é solução para pobres?

202. Ministro do STF faz jogo do governo e dá sinal verde para a transposição

205. Sem mudar a economia, PAC não funciona

206. Governo mente sobre reforma agrária

214. Lula entra no jogo de Bush

229. Governo quer privatizar hospitais

231. Governo encontra "solução" à direita para crise aérea

245. Fórum do governo fracassa; impasse na reforma da Previdência continua

249. Governo Lula tenta abafar greve de fome de frei Luiz

Em 2007, com Luis Inácio Lula da Silva já reeleito presidente da República, o Brasil

de Fato dedica sete manchetes ao governo, todas elas críticas. O jornal acusa Lula de mentir

sobre a reforma agrária, maquilando dados sobre assentamentos e dedica duas matérias à

adesão de Lula ao projeto da transposição do rio São Francisco, uma delas fazendo referência

à greve de fome de Dom Luiz Cappio, membro da Comissão Pastoral da Terra, a CPT.

Também critica as ações do governo em relação à tentativa de privatização de hospitais e da

saída "à direita" para a crise dos transportes aéreos que se instala a partir do meio de 2007. O

jornal afirma ainda que Lula reforça as políticas imperialistas de Bush para a América Latina

ao defender o cultivo de cana-de-açúcar para produzir e exportar etanol para os EUA e diz

que governo fracassa ao manter a reforma da previdência em um impasse.

Outras duas manchetes referem-se a programas centrais para o governo Lula. A edição

200 questiona se o Bolsa Família é saída para pobres, fazendo uma crítica não explícita ao

programa, que não combate as raízes das desigualdades sociais. A manchete sobre o Programa

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de Aceleração do Crescimento também é crítica, pois afirma que sem mudança na política

econômica, o programa é ineficaz.

2008 266. Governo Lula legaliza grilagem na Amazônia

272. Opção de Lula por agronegócio leva Marina a pedir demissão

275. Por mais etanol, Lula libera exploração dos cortadores

296. Defesa de torturadores divide o governo Lula

Em 2008, o Brasil de Fato segue com a crít ica ao governo Lula em suas manchetes,

publicando quatro referências diretas ao governo para criticá- lo. A edição 266 afirma que

Lula regularizou a prática da grilagem de terras32 na Amazônia, a 272 coloca sua opção pelo

agronegócio, reiterada pela edição 275, que relaciona diretamente as ações do presidente à

exploração dos trabalhadores no corte de cana. Notamos que se tratam de pautas rurais,

claramente ligadas às demandas do MST. Já a edição de número 296 coloca o jornal em

consonância com os movimentos de direitos humanos, que no final de 2008 se manifestaram

exigindo que o Estado brasileiro reconheça que alguns agentes que atuaram junto aos órgãos

de repressão da ditadura militar praticaram tortura contra opositores do regime. A manchete é

crítica, pois pressupõe que não deveria haver divergências sobre a necessidade de punição a

torturadores em um governo popular. A manchete remete também ao fato de que o governo

Lula ainda não promoveu a abertura dos arquivos da ditadura, outra reivindicação encampada

pelo jornal Brasil de Fato.

32 O termo grilagem significa a falsificação do título de posse de um imóvel rural, prática comum no

Brasil, principalmente para legitimar a ocupação irregular de áreas públicas por grandes fazendeiros. A referência aos grilos é feita, pois o documento falsificado é colocado junto com os animais para que tomem a aparência de papéis antigos.

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Capítulo VI – RELAÇÃO ENTRE ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS

NO JORNAL BRASIL DE FATO

Este capítulo pretende fazer uma análise da trajetória do jornal Brasil de Fato,

relacionando os dados obtidos por intermédio da análise de documentos e entrevistas com os

aspectos teóricos levantados.

1. Leninista ou gramsciano

O segundo capítulo deste trabalho procurou, em primeiro lugar, estabelecer algumas

diferenças entre as teorias formuladas pela esquerda sobre o papel dos meios de comunicação

não só dentro das organizações políticas, como também na formação delas. Para isso, foram

utilizadas as teorias de Vladimir Lênin, expostas basicamente nos artigos Por onde começar?

e no livro Que fazer?, e de Antonio Gramsci, cuja referênc ia é a obra Os intelectuais e a

organização da cultura. Retomando com nossas palavras, os modelos propostos por Lênin e

Gramsci diferem quanto à concepção de meio de comunicação utilizado para elevar o nível de

consciência do povo. Lênin propõe um modelo de jornal de partido, cuja tarefa seria, além de

conscientizar, aglutinar pessoas, primeiro em torno da viabilização do jornal, e segundo com o

objetivo de organizá- las dentro do partido. Ou seja, para Lênin, o jornal é um organizador

coletivo, um meio, um instrumento que além de despertar a consciência, atrai pessoas para

compor as fileiras de uma organização política.

Já Gramsci enxergava os jornais como entidades autônomas, cujo papel principal era

formar, a partir de sua integração a outros meios da sociedade, uma consciência contra-

hegemônica. Para o autor, o jornal deveria cumprir uma função dialética de informar de

acordo com as necessidades do povo, ao mesmo tempo em que contribuiria para a criação de

necessidades, ampliando assim sua esfera de atuação e influência.

A partir dessas duas perspectivas, podemos observar alguns elementos do pensamento

de Gramsci e Lênin na formulação teórica do projeto editorial do Brasil de Fato. A primeira

que nos ocorre é a idéia dos comitês regionais. Não seriam uma forma de organizar pessoas

em torno do projeto do jornal como recomenda Lênin? Ricardo Gebrim, advogado e dirigente

do movimento Consulta Popular discorda, e argumenta que seu formato não poderia ter dado

certo exatamente pela não-vinculação a um organismo político mais abrangente, como

veremos no trecho de entrevista concedida para esta pesquisa:

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Isso (os comitês) vigorou por pouco tempo, de forma muito efêmera. Eu acho que é uma visão um tanto idealizada. Porque é difícil você manter as pessoas em torno de um jornal, salvo se o jornal for um expediente organizativo de um projeto político organizativo mais consolidado. O Iskra era um organizador coletivo para difundir um conjunto de concepções para estruturar aqueles círculos sociais democratas que existiam como um partido. Cumpriu esse papel de organizador coletivo, mas ele era um veículo para uma organização coletiva. A idéia do Brasil de Fato era muito mais um jornal e menos organizador coletivo, mas que também cumprisse um papel, mas ser muito mais esse mecanismo de propaganda.

Já Miguel Stedile adota uma concepção mais próxima da descrita por Lênin, ao dizer,

em entrevista à autora que:

Eu acho que um problema que a esquerda tem de modo geral é que quando vai ler o Que Fazer? de Lênin ou lê errado, ou interpreta de uma forma muito mecânica, esquemática. Porque pega aquela idéia de que o jornal é o organizador coletivo e acha que o jornal vai criar pernas e vai falar por si próprio. E se a gente olha a idéia do Iskra que está no Que Fazer?,o jornal era a linha de transmissão, era digamos assim a matéria prima de estudo... Era o catalizador, o motivador para que você montasse núcleos que seriam a base do partido. Então não é que o jornal faria o papel do partido, mas ele seria um estimulante. [...] De modo geral, os comitês eram a vida orgânica, e daí de novo esse vínculo com o projeto popular. O jornal seria – vou usar um termo religioso – anunciador do projeto, seria o propagandista do Projeto Popular. Então, se você está comprometido de forma orgânica com o jornal, no seu processo de organização para materializar o Projeto Popular, o jornal tinha papel chave, de orientar, de fornecer subsídio e de debater. E acho que de certa forma esse papel ele cumpre hoje.

José Arbex acredita que o projeto editorial inicial do Brasil de Fato estava mais

alinhado com uma perspectiva gramsciana, de um jornal autônomo, cujo papel principal é a

elevação do nível de consciências das massas, auxiliando na disputa de hegemonia, mas não a

empreendendo sozinho ou como meio principal, como declara a seguir, em trecho

reproduzido de sua entrevista:

Não é um instrumento no sentido leninista . Um jornal deve servir para elevar o nível de consciência do povo, e como é que você eleva o nível de consciência do povo? Não é com discurso de esquerda. Eleva a consciência do povo ao mostrar um Brasil que ninguém conhece, e aí o povo é que escolha. Aí as pessoas vão poder escolher na banca se ela quer ler na Folha que o Meirelles resolveu manter a taxa de juros a não sei quanto, ou ela vai ler o jornal Brasil de Fato mostrando que existe intoxicação dos trabalhadores no Rio Grande do Sul, mostrando que existe um monte de coisa, alienação no futebol porque o futebol arte brasileiro está acabando, e aí ele vai ter como escolher. Isso é a democracia. Não eu ficar fazendo discurso contra o Meirelles, porque aí vira a minha verdade contra a verdade do Estadão. Não é essa a questão. O jornal não é a Folha de esquerda, nem a Veja de esquerda e nem o Estadão de esquerda. É o jornal dos brasileiros. É pauta relevante para a vida cotidiana dos brasileiros. Você não vai disputar hegemonia no Brasil por meio da imprensa. A imprensa vai servir para a disputa de hegemonia. Mas quem vai

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disputar a hegemonia é o povo organizado. Se você não organizar o povo, você não vai disputar hegemonia com ninguém.

Em relação a essa questão, é interessante resgatar a opinião de Bernardo Kucinski

sobre a disputa de poder e projeto que esteve presente em alguns exemplos de jornais da

imprensa alternativa de resistência à ditadura militar. Em Jornalistas e revolucionários, o

autor coloca que eram comuns as tentativas de aparelhamento dos jornais por parte de

organizações e partidos de diferentes correntes de esquerda. Para o autor, o que estava em

jogo com essas disputas era a concepção do papel do jornal, vista de uma forma pelos

jornalistas que se envolviam nos projetos com o objetivo de construir publicações autônomas

e de maneira distinta pelos dirigentes dos partidos que se aproximavam dos mesmos para

instrumentalizá-los e voltá- los para suas lutas específicas. Para Bernardo Kucinski (2003, p.

19-20):

Havia entre as concepções vigentes uma forte inspiração gramsciana, entendendo os jornais como entidades autônomas, com o principal propósito de contribuir para a formação de uma consciência crítica nacional. [...] Todos os principais jornais procuravam montar um conselho editorial composto por personalidades de prestígio com a finalidade de legitimar a linha editorial, ampliar a base de sustentação dos jornais ante as investidas da repressão e identificá-lo com correntes expressivas de opinião.

Em contrapartida, a visão leninista muitas vezes suplantou a inspiração gramsciana e

direcionou os meios para outros caminhos. Segundo Kucinski (2003, p. 20):

O organismo deliberativo dos jornais era em geral estabelecido segundo o princípio da frente jornalística, reunindo jornalistas intelectuais e ativistas de vários partidos clandestinos em torno de uma plataforma comum. Mas na cultura política de cada partido ainda predominava a concepção leninista que entendia o jornal como instrumento de partido. E cada grupo procurava ganhar posições na frente jornalística, para fazer dele o seu instrumento de poder, mesmo ao atropelo dos mecanismos pré-estabelecidos. Era como se houvesse um consciente gramsciano, expresso nos programas e estatutos, compartilhado principalmente por jornalistas independentes e intelectuais, e um inconsciente leninista trazido pelo ativismo político, que acabava se impondo.

Apesar de guardar semelhanças com os processos descritos acima, não podemos dizer

que o Brasil de Fato tenha sido alvo de disputas entre diferentes correntes políticas, afinal,

desde o início das discussões, o grupo formado para pensar o jornal concordou que seu

projeto político fosse guiado pelas diretrizes expostas no documento "Um projeto popular

para o Brasil". A disputa de concepção dentro do Brasil de Fato ocorreu no momento de

definir qual seria seu público alvo, se o jornal deveria ser direcionado à militância política de

esquerda ou à sociedade de forma mais ampla, o que condicionaria a escolha de pautas e a

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definição de sua abordagem. Essa disputa esteve evidenciada nas divergências encontradas

durante o processo de escolha do nome do jornal, como colocado no capítulo IV. Podemos

dizer assim que, o projeto editorial do jornal Brasil de Fato nasceu, em parte, gramsciano,

mas o jornal enquanto produto foi se aproximando da perspectiva leninista após seu

lançamento, ao ver-se obrigado a direcionar-se para um público mais restrito, de militantes de

movimentos sociais, na medida em que foi encontrando dificuldades para sobreviver e

ampliar sua tiragem, seu número de assinantes e sua cobertura. Por outro lado não podemos

ignorar que algumas concepções relacionadas ao jornal de moldes leninistas estavam

presentes no projeto do jornal Brasil de Fato desde a sua concepção, principalmente no que

tange ao pertencimento a um projeto político definido, no caso, o programa "Um projeto

popular para o Brasil", e também na ideia de organização dos comitês.

Em nossa opinião, é difícil supor que um jornal que nasce a partir de uma proposta

feita por um movimento social com linha política definida, como o MST, ou seja, por uma

força que faz a disputa de projeto de poder na sociedade e para isso, precisa organizar

pessoas, consiga fugir muito à perspectiva leninista. O Brasil de Fato deixa claro em seu

projeto político (Projeto editorial do jornal Brasil de Fato, 2002) que não somente é guiado

pelo documento "Um Projeto Popular para o Brasil", formulado no âmbito do MST e

Consulta Popular, mas que destinará suas páginas para o debate deste projeto com a

sociedade. Nesta linha, os comitês que se formassem pelo Brasil para a discussão do jornal,

não só contariam com um representante do MST para guiar politicamente os debates, como

vimos na reprodução de documentos no capítulo V, mas o deveriam fazer em torno das bases

do Projeto Popular. Dessa forma, não seria o jornal Brasil de Fato um instrumento de

organização de pessoas em torno do "Projeto Popular", a partir dos comitês?

Acreditamos que existiu uma perspectiva de ampliar os círculos de debate e

aglutinação em torno do "Projeto Popular" através dos comitês do Brasil de Fato, pensando

não somente em dar pluralidade e regionalismo às pautas do jornal, aproximando-o assim

mais de uma perspectiva leninista, em que o jornal funciona como organizador coletivo.

O Brasil de Fato foi alvo de disputas internas entre indivíduos que defendiam

concepções diferentes para o jornal. No momento da formulação de seu projeto editorial havia

dois papéis distintos que ele poderia cumprir, o de um jornal voltado para a sociedade ou para

a organização movimentos sociais. Por outro lado, nunca houve dentro dos espaços do Brasil

de Fato um grupo que divergisse sobre a linha política que ele deveria seguir. Todos

concordavam com os pontos descritos no Projeto Popular, mas nem todos concordavam com a

forma que o jornal deveria adotar para propagandear esses pontos.

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Consideramos que, apesar da concepção majoritária de um jornal amplo ter vencido a

disputa, e dos documentos produzidos para referenciar o jornal falarem constantemente em

pluralidade, o Brasil de Fato foi construído sob bases leninistas, tanto em relação à função

organizativa dos comitês para o debate do "Projeto Popular", como no sentido de que o

enfoque das pautas estaria sempre de acordo com a visão de mundo e linha política do MST,

inclusive em detrimento, em alguns momentos, de escolhas mais convenientes do ponto de

vista jornalístico, como coloca Arbex em sua ent revista. A necessidade do Brasil de Fato em

demarcar a posição política do MST e propagandear o "Projeto Popular" acaba muitas vezes

levando à adoção de um discurso ideológico e doutrinário, que não só não agrega quem não

está "iniciado" na militância, como afasta a perspectiva de formação de uma frente ampla de

movimentos que sustente seu projeto, por carregar a linha de apenas um grupo político.

Por outro lado, não podemos supor que um grupo político engajado em construir um

jornal de frente ampla e que se veja diante da perspectiva não imaginada de tocá- lo sozinho e

opte por fazer isso, não vá utilizá- lo como instrumento de propaganda e reforço de suas ideias.

A fragmentação da esquerda a partir de avaliações diferentes sobre o governo Lula,

comprovada pelo número de rachas em partidos e centrais sindicais, contribuiu para a

dispersão em torno do projeto do Brasil de Fato. Afinal, a não realização da perspectiva chave

para o desenvolvimento do projeto, ou seja, a ascensão dos movimentos tornou-os indecisos

sobre seus rumos diante de um governo Lula ambíguo e contraditório e com capacidade

reduzida tanto para mobilizar suas bases quanto para despertar o interesse de um público mais

amplo para suas demandas e realizações. Por outro lado, mesmo em uma conjuntura diferente,

menos adversa, os movimentos sociais que não fazem parte do entendimento acerca do

documento "Projeto Popular para o Brasil" formulado pelo MST poderiam da mesma forma

não se somar ao projeto amplo do Brasil de Fato.

Ao mesmo tempo, a trajetória do Brasil de Fato demonstra como é complicado

construir um meio de comunicação que deslancharia somente a partir da realização de

condições específicas, como a ascensão dos movimentos de massa.

Diante deste quadro, acreditamos que o Brasil de Fato carrega elementos de um jornal

leninista desde a formulação de sua proposta, mas argumentamos que a não realização de dois

fatores fundamentais para o desenvolvimento de seu projeto, a ascensão do movimento de

massas e o suporte de um leque amplo de entidades e movimentos sociais, fez com que esses

elementos se intensificassem, transformando o Brasil de Fato em um modelo próximo ao

descrito como jornal de partido por Lênin.

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2. Popular e alternativo

Neste item, procuraremos aproximar o jornal Brasil de Fato de algumas teorias

descritas durante o capítulo II que visam caracterizar as experiências de comunicação

alternativa e popular no esforço de formular alguns conceitos.

Como vimos anteriormente, a expressão imprensa alternativa ficou fortemente

marcada pelas experiências de jornais de frente ampla, criados por jornalistas e indivíduos que

se opunham à ditadura militar brasileira, e que floresceram principalmente durante o final da

década de 1960 até o meio da década de 1970. Esses jornais carregavam algumas semelhanças

entre si, tanto no sentido de aglutinação de grupos políticos progressistas, fragmentados pela

repressão imposta ao regime, como em seu caráter de alternativa à grande imprensa

comercial, que apesar de ter sofrido censura do governo autoritário em algumas ocasiões, não

cumpria o papel de oposição sistemática aos militares e seus projetos para a sociedade. As

dificuldades por eles enfrentadas também guardavam semelhanças, todos sofriam censura,

muitos eram boicotados por distribuidoras, tinham problemas em chegarem às bancas e

conseqüentemente, salvo algumas exceções, não atingiam a auto-sustentação, pois os

anúncios eram escassos, assim como as contribuições financeiras que recebiam.

Mas, consideramos que o termo alternativo é muito amplo para se restringir somente

aos jornais representantes da imprensa alternativa de resistência à ditadura. Segundo Cicília

Peruzzo (2008, p.2), no artigo Aproximações entre a comunicação popular e comunitária e a

imprensa alternativa no Brasil da era do ciberespaço:

No conjunto, a comunicação alternativa representa uma contra-comunicação, ou uma outra comunicação, elaborada no âmbito dos movimentos populares e “comunidades”, e que visa exercitar a liberdade de expressão, oferecer conteúdos diferenciados, servir de instrumento de conscientização e, assim democratizar a informação e o acesso da população aos meios de comunicação, de modo a contribuir para a transformação social.

A comunicação alternativa pode se manifestar de várias maneiras, e não apenas

jornais, tendo ou não suas produções ligadas aos movimentos sociais, se manifestando

também a partir de meios comunitários, imprensa alternativa propriamente dita – tal como

ficaram conhecidos os jornais do tipo de Opinião e Pasquim - e publicações sindicais.

Segundo Peruzzo, a comunicação alternativa é livre por não estar vinculada a interesses

governamentais e empresariais de cunho comercial ou político-conservador. Para a autora

(2008, p. 3):

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Historicamente a posição político-ideológica desse tipo de comunicação no Brasil é de caráter contestador ao status quo e serve como canal de expressão de setores subalternos organizados da população com vistas a obter respostas para suas demandas ligadas às carências sociais e econômicas advindas das desigualdades sociais (condições de moradia, de saúde), bem como às lutas para democratizar a política e a sociedade, além daquelas do mundo do trabalho visando melhorar a distribuição de renda e as condições trabalhistas.

Apesar de ter nascido em um contexto totalmente diverso, o Brasil de Fato guarda

muitas semelhanças com os projetos de jornais alternativos dos anos 1960 e 1970. Apesar de

nunca ter sido um jornal de jornalistas, o Brasil de Fato foi criado com a perspectiva de

aglutinar a esquerda dispersa, por razões dis tintas, em torno de seu projeto editorial. Ou seja,

também pretendeu ser um jornal de unidade. Ao mesmo tempo, sempre se colocou com uma

perspectiva de alternativa à grande mídia comercial, trazendo ao público uma visão diferente

sobre temas pouco caros aos jornais dos grandes grupos de comunicação, como as

mobilizações sociais, por exemplo. As dificuldades enfrentadas pelo Brasil de Fato em

termos financeiros e de distribuição são praticamente as mesmas. Se ele não enfrentou a fúria

de grupos de ultra-direita promovendo atentados às bancas de jornal que o vendiam, teve de

driblar o monopólio e a censura econômica das grandes distribuidoras, que exigiram

pagamento à vista para espalhar suas edições.

Para Bernardo Kucinski, em seu livro Jornalistas e revolucionários, as dificuldades na

auto-sustentação eram um dos problemas mais evidentes dos jornais alternativos durante as

décadas de 1960, 1970 e 1980. Segundo ele, (2003, p. 18), poucas produções conseguiram

atingir tiragens grandes o suficiente para cobrir as despesas da distribuição em bancas,

atividade monopolizada desde então por grandes distribuidoras.

O jornalismo alternativo praticado pelo Brasil de Fato pode ser visto como uma

recriação dos canais de expressão abertos pelos jornais de resistência à ditadura militar. Sua

experiência se insere no conceito da comunicação popular, alternativa e comunitária, que

segundo Peruzzo, se caracteriza por (2008, p. 3):

Iniciativas populares (para além de jornais) e orgânicas aos movimentos sociais, segmentos populacionais organizados e/ou a organizações civis sem fins lucrativos. [...] Estamos falando, pois, de uma comunicação que se vincula aos movimentos populares e outras formas de organização de segmentos populacionais mobilizados e articulados e que têm por finalidade contribuir para a mudança social e a ampliação dos direitos de cidadania. Assim sendo, um fator importante desse processo diz respeito à contextualização, ou seja, são experiências inseridas nas dinâmicas mais amplas de mobilização social com vistas à consecução de direitos de cidadania, tanto sociais como econômicos e políticos.

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Podemos associar o Brasil de Fato também à algumas perspectivas descritas para a

comunicação popular, que, como já vimos, é associada aos interesses das classes subalternas.

Para Carlos Eduardo Lins da Silva (1981, p. 63) há dois fatores determinantes para a

conceituação da comunicação popular: a divisão da sociedade em classes sociais e a utilização

de um meio periódico que defenda os interesses das classes trabalhadoras.

Mas, o conceito de comunicação popular compreende processos variados, com

diferentes características. Envolvem desde pequenos meios a grandes iniciativas, que não

obedecem a uma metodologia uniforme. Carlos Eduardo Lins da Silva elenca três formas

distintas produção relacionadas à comunicação popular. A primeira diz respeito às

publicações que defendem os interesses das classes trabalhadoras, mas não são produzidas por

elas e nem a elas se destinam. A segunda forma é a produção de publicações que defendem as

classes trabalhadoras, e, apesar de não ser produzida por elas, é a elas destinada. E a terceira

compreende publicações feitas e consumidas pelas classes trabalhadoras, sendo obviamente

porta-vozes de seus interesses. Apesar das diferenças, o fator que as une é a linha editorial

voltada para as necessidades e os interesses das classes subalternas. O povo é protagonista da

comunicação popular, mas tanto as produções que se dão no âmbito das classes subalternas,

como as que se dirigem a elas e são feitas por outros segmentos sociais (PERUZZO, 1998, p.

127).

O Brasil de Fato se encaixa dentro da primeira perspectiva, pois, apesar de contar com

integrantes de movimentos populares entre seus formuladores, o processo de produção do

jornal do dia-a-dia é conduzido por jornalistas profissionais, identificados com os anseios e

reivindicações das classes populares. Se público alvo pretendia-se mais amplo, ao atingir não

somente militantes organizados, mas integrantes das camadas populares dispersas e também o

público da chamada "classe média", professores, universitários, funcionários públicos e

autônomos.

O jornal também carrega semelhanças em relação às limitações dos meios de

comunicação populares, que muitas vezes coincidem com as enfrentadas pelos veículos da

chamada imprensa alternativa, tanto no quesito abrangência como no conteúdo. Esses meios

costumam atingir parcelas muito restritas da população, por conta de aspectos já explicitados

como tiragem reduzida, distribuição e escassez de recursos. Em relação ao conteúdo, uma

crítica constante é o fato de suas produções serem, em alguns casos, doutrinárias, abusando de

uma linguagem repleta de chavões, insistindo na abordagem dos mesmos assuntos e pouco ou

nenhum espaço para o entretenimento.

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O grupo que formulou o Brasil de Fato esteve atento a essas questões, mas pareceu

abandoná- las aos poucos, à medida que o jornal passou a se direcionar aos militantes

organizados. Um exemplo é a página sobre futebol, prevista no projeto editorial, mas que não

foi levada adiante por diversos fatores. Outro exemplo é a cobertura de cultura, que se

restringe à procura por manifestações populares folclóricas, normalmente distantes do

contexto da maioria da população.

Por fim, podemos dizer que o Brasil de Fato se difere das demais manifestações de

comunicação popular por procurar a disputa com os meios comerciais. Como vimos este

aspecto não faz parte necessariamente da descrição dos meios populares, que, na maior parte

das vezes estão restritos às realidades locais. Nesse ponto, o jornal se aproxima da perspectiva

de disputa colocada pelos veículos da imprensa alternativa.

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CONCLUSÃO

A presente pesquisa teve como objeto de análise o jornal popular-alternativo Brasil de

Fato, semanário idealizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e

desenvolvido por um coletivo heterogêneo que se reuniu em torno de seu projeto. O jornal

nasceu da necessidade por um canal de comunicação com a sociedade a partir de uma

ofensiva lançada pela mídia comercial cont ra o movimento, em um momento em que as

forças repressivas do governo intensificavam suas ações contra os sem-terra.

Lançado em janeiro de 2003, o Brasil de Fato tinha a perspectiva de se tornar um

jornal diário, de massas, que se contrapusesse à grande imprensa comercial e pautasse as

questões sociais a partir de uma ótica de esquerda. Pretendia dar voz aos movimentos sociais,

levar suas reivindicações à sociedade e debater com a população os termos de um programa

de transformações chamado de "Um Projeto Popular para o Brasil", formulado pelo MST e

pelo Movimento Consulta Popular.

Algumas avaliações feitas pelo grupo à época do lançamento do jornal davam conta de

que a eleição de Luis Inácio Lula da Silva para a presidência da República, depois de três

tentativas frustradas, daria novo ânimo às lutas de massa e o Brasil viveria um novo ciclo de

ascensão dos movimentos sociais, semelhante ao ocorrido no final dos anos 1970.

Dessa forma, não só o lançamento do jornal foi precipitado sem que o coletivo tivesse

amealhado a quantia necessária para sustentar o jornal até sua consolidação, como havia uma

perspectiva de que a ascensão dos movimentos traria uma demanda por um meio de

comunicação alternativo à grande imprensa, que trouxesse informações de dentro do processo

de luta de classes. O projeto do jornal Brasil de Fato foi pensado a partir dessa perspectiva,

que se revelou equivocada já início de 2003.

A eleição de Lula não representou uma perspectiva de ascensão, pelo contrário.

Diante da variedade de leituras diferentes sobre a natureza do governo, as já não muito coesas

forças da esquerda tradicional se dispersaram, ocasionando rachas em partidos políticos e no

movimento sindical. O resultado da perplexidade diante das ambigüidades e contradições do

governo Lula se traduziu em imobilismo para os movimentos, que passaram a articular suas

bases com mais dificuldade.

Paralelamente, o jornal Brasil de Fato, cujo projeto dependia de uma conjuntura

favorável às idéias da esquerda para florescer, enfrenta dificuldades para consolidar seus

objetivos. Por falta de dinheiro, as tiragens não atingem o número esperado (150 mil) e a

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distribuição falha compromete a chegada do jornal às bancas. O número de assinantes não

cresce e o jornal é obrigado a cortar custos de operação antes mesmo que pudesse se organizar

para funcionar com profissionalismo.

O audacioso projeto do Brasil de Fato previa uma cobertura nacional e desejava

mostrar à sociedade a realidade do país, não veiculada pelos meios da grande mídia

comercial. Para isso, foi formulada a idéia dos comitês de redação regionais, que teriam

múltiplas funções. A primeira seria reunir colaboradores, jornalistas profissionais ou não,

dispostos a buscar pautas, informações, redigir textos, ou seja, fazer o jornal. A segunda seria

capilarizar a distribuição do Brasil de Fato nos locais em que o esquema de distribuição não

chegaria. E a terceira era política, os comitês deveriam se reunir em torno do projeto do jornal

para debatê-lo e a partir daí promover análises de conjuntura e discussões orgânicas sobre o

"Projeto Popular". Os comitês seriam geridos por militantes do MST nos estados e regiões

onde se instalassem.

A idéia dos comitês não se concretizou como o previsto, alguns existiram por um

tempo, mas nenhum deles desempenhou sua função como era esperado. Diante disso, a rede

de colaboradores que abasteceria o jornal de pautas, representando um diferencial em relação

aos meios convencionais, não deslanchou. O fracasso dos comitês foi atribuído à falta de

dinheiro para mantê-los, a falta de quadros políticos para tocá- los e principalmente à

conjuntura adversa que se instalara, tornando a mobilização de pessoas para a participação em

projetos coletivos ainda mais difícil.

A situação financeira enfrentada pelo jornal durante seu primeiro ano de vida era

crítica. Suas contas eram pagas majoritariamente pelos movimentos e entidades que estavam

em torno do projeto, onerando principalmente o MST, responsável pela formulação de sua

primeira proposta.

Diante de todas essas adversidades, o Brasil de Fato é obrigado a mudar de

perspectiva. Fica claro que o jornal não consegue atingir camadas amplas da sociedade e nem

produzir as reportagens de envergadura nacional que pretendia. Essa mudança significa o

abandono das perspectivas de se tornar um jornal diário, concorrente direto dos grandes

jornais comerciais, e o direcionamento de seu projeto para algo mais próximo dos

movimentos sociais, um jornal que fale para a militância e a subsidie com elementos para

formação.

Nesta segunda perspectiva, o Brasil de Fato também encontra dificuldades de se

desenvolver. Um jornal voltado para os movimentos sociais deve ser feito por eles, a partir de

suas demandas, e logicamente, sustentado pelos mesmos. Mas, a fragmentação das forças

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populares diante das avaliações sobre o governo Lula prejudica a intenção do Brasil de Fato

de reunir a esquerda em torno da defesa e viabilização de seu projeto.

O jornal adota o posicionamento do MST em relação ao governo Lula, ou seja, faz

críticas pontuais, mas não sinaliza com um rompimento, como pudemos verificar na análise

de conteúdo. Dessa forma, afasta as forças que radicalizam suas críticas ao governo e

desagrada os que optaram pelo apoio incondicional a Lula. Resta ao MST conclamar os

demais movimentos agrários que compõem a Via Campesina e a Consulta Popular para

resistir e manter o jornal funcionando. Em 2006 ele vê o seu número de páginas cair pela

metade e a tiragem se reduzir ao mínimo.

Analisando os documentos e as entrevistas recolhidas para a composição do quadro de

formação e desenvolvimento do jornal Brasil de Fato, percebemos que uma avaliação

sobressai na tentativa de explicação para a transformação do projeto editorial e da

incapacidade do jornal de cumprir os objetivos colocados na época de sua formulação.

A perplexidade e divisão que tomam conta da esquerda após a eleição de Lula e a

dificuldade de mobilização dos movimentos que decorre desse estado de espírito são as causas

apontadas para a dificuldade de sustentação financeira do projeto do Brasil de Fato, que

inviabiliza a busca por colaboradores em todo o país e ao mesmo tempo inibe a formação dos

comitês de apoio ao jornal, que não se desenvolve plenamente e não atrai público, ao mesmo

tempo em que isso acontece porque seu sistema de distribuição é falho.

Diante desse quadro, o jornal é obrigado a rever suas perspectivas e voltar-se para

dentro, passando a funcionar cada vez mais para suprir as necessidades dos movimentos que o

sustentam, sem conseguir articular novos apoios por conta de seus posicionamentos políticos

e adotando cada vez mais em seu conteúdo, pautas e linguagem restritas aos interesses e

realidades dos movimentos sociais que o sustentam.

Este trabalho procurou analisar os aspectos acima citados, que, logicamente

contribuíram para a mudança de rumos do projeto do jornal. Mas ao mesmo tempo, procurou

investigar a hipótese colocada inicialmente para explicar a transformação editorial

empreendida no Brasil de Fato. .

Esta hipótese pretendia responder as duas perguntas norteadoras do projeto: "Por que é

tão difícil construir um meio de comunicação de massas que siga uma linha contra-

hegemônica e faça o contraponto à grande imprensa no Brasil?" e "Por que o Brasil de Fato,

apesar de ter sido aparentemente pensado para esse fim, não conseguiu atingir este objetivo?",

e apontava que o Brasil de Fato não teria conseguido preencher a demanda por um veículo

com as características colocadas em seu projeto editorial por estar vinculado desde sua

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formulação ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que, por mais que

propusesse a construção de um meio plural e de interesse das massas, aberto à participação de

colaboradores de todas as origens, teria imprimido ao jornal sua visão dos meios de

comunicação como transmissores de posicionamentos ideológicos e políticos, fazendo com

que desde o início sua finalidade fosse a propaganda do "Projeto Popular para o Brasil",

restringindo assim sua possibilidade de crescimento entre as camadas da sociedade não

identificadas com esse documento.

Chegamos à conclusão de que ambos os caminhos apontam para respostas às nossas

questões, sendo que a colocada por nossa hipótese representa uma questão de fundo, enquanto

às outras dizem respeito a aspectos conjunturais. Não é possível dizer se o projeto do jornal

teria sofrido as mesmas modificações na prática, caso a conjuntura política na época de seu

lançamento fosse diferente. Provavelmente os próprios acontecimentos levariam a publicação

para outros caminhos.

O que podemos afirmar por outro lado, é que existem aspectos na forma como o

projeto do jornal foi concebido que deram a ele características dos jornais de partido

concebidos nos moldes leninistas, como, por exemplo, sua vinculação a um programa político

formulado pelo movimento social que o criou e o sustenta.

A formulação do projeto editorial do Brasil de Fato pode ser enxergada como um

processo dialético, em que duas concepções diferentes de jornal lutam para sobressair e se

relacionam com as condições objetivas colocadas pela conjuntura. De um lado, a concepção

gramsciana que dizia que o jornal deveria disputar hegemonia na sociedade pelo fato de

existir e cobrir temas que pelos quais os jornais comerciais não se interessam. Essa concepção

previa que a disputa seria feita ao promover uma elevação do nível de consciência do povo ao

mostrar a realidade brasileira que não está presente na mídia comercial. Do outro, a

concepção leninista, que vinculada o jornal a um programa político determinado e pretendia

organizar comitês de redação que aglutinariam e organizariam pessoas em torno da proposta.

A linha gramsciana ganhou a disputa pelo nome do jornal, rebatendo propostas ligadas à

tradição socialista e militante, que poderiam restringir o público. Mas, os aspectos leninistas

presentes desde o início, ganharam força na medida em que o jornal encontra dificuldades de

sustentação e se volta para os movimentos como forma de sobrevivência.

Diante deste quadro, acreditamos que o Brasil de Fato carrega elementos de um jornal

leninista desde a formulação de sua proposta, mas argumentamos que a não realização de dois

fatores fundamentais para o desenvolvimento de seu projeto, a ascensão do movimento de

massas e o suporte de um leque amplo de entidades e movimentos sociais, fez com que esses

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elementos se intensificassem, transformando o Brasil de Fato em um modelo próximo ao

descrito como jornal de partido por Lênin.

Concluímos que é muito difícil pretender que um meio de comunicação gestado no

âmbito de um movimento social que faz a disputa de poder na sociedade, consiga ser

independente ao ponto de não se vincular aos posicionamentos políticos defendidos por este

movimento. Ao se vincular, o jornal perde a condição de agregar visões diferentes no apoio e

sustentação a seu projeto, comprometendo a busca pela pluralidade. Ao mesmo tempo,

quando espelha somente a visão e os posicionamentos de um grupo, tende a abusar do

discurso ideológico e afastar os não- iniciados, passando a fazer sentido apenas para quem

participa do grupo. Ou seja, abandona a perspectiva de atingir um público amplo e se

transforma em instrumento de um ou mais grupos políticos.

Finalizando, colocamos algumas sugestões e análises de perspectivas para o jornal

Brasil de Fato nos próximos anos. Como vimos, após um período de dificuldades econômicas

e diminuição do número de páginas, atualmente o jornal está consolidado, sustenta-se com a

venda de assinaturas, de espaços publicitários e a partir de doações de movimentos sociais.

Além do jornal impresso, o Brasil de Fato existe como agência de notícias na internet,

boletim semanal, na publicação de edições especiais temáticas massivas que acompanham as

mobilizações dos movimentos sociais e no fornecimento de spots de rádio para emissoras

comunitárias.

Trata-se de uma pequena rede de comunicação que poderia ser potencializada. Por

outro lado, e isto se trata de uma percepção pessoal, se não há mais disputa de projeto e o

Brasil de Fato se consolidou como um jornal de movimentos, que fala para uma parcela da

sociedade organizada nos mesmos, por outro parece haver menos vida em torno de seu

projeto. A última reunião do conselho político do jornal, da qual participei, discutiu temas

como a crise mundial, mas quase não falou sobre o jornal, ou pelo menos de como o jornal

poderia cobrir um assunto tão urgente como este.

Acreditamos que, por mais que o Brasil de Fato tenha abandonado a perspectiva de se

tornar um jornal massivo enquanto não houver uma transformação conjuntural favorável às

idéias da esquerda, isso não significa que ele não possa ampliar suas bases leitoras de forma

lenta, indo um pouco além do público formado pelos movimentos.

Nossa primeira sugestão diz respeito à diversificação das pautas do jornal, a partir de

um levantamento de dados e fontes para a construção de um verdadeiro banco de pautas de

temáticas sociais, que buscasse algo além do dia-a-dia das mobilizações dos movimentos

sociais.

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A segunda sugestão diz respeito aos colaboradores. Concordamos que os comitês, para

se constituírem no formato em que foram pensados, demandam uma conjuntura mais

favorável à reunião de pessoas e discussões de projeto. Demandam mesmo uma nova onda de

ascensão dos movimentos de massa, que não é a realidade do período atual. Isso não significa

que não haja pessoas dispostas a colaborar com o Brasil de Fato fora do eixo Rio de Janeiro –

São Paulo – Brasília. Estudantes de comunicação podem contribuir para o jornal levantando

pautas e assuntos interessantes para apuração. E muitos jornalistas, saturados do trabalho

burocrático em assessorias de imprensa, também poderiam de interessar. Para isso, o jornal

teria de destinar ao menos uma ajuda de custo para manter os profissionais ao redor do

projeto.

A terceira sugestão tem a ver com o binômio linguagem/ diversidade de pautas e

cobertura. Em primeiro lugar, é preciso evitar a linguagem militante, o doutrinarismo e

panfletarismo que caracterizam os meios de esquerda e afastam leitores não- iniciados. O

jornal tem de abrir espaço para manifestação culturais e lúdicas, pois se não o fizer incorrerá

no erro que há décadas é identificado neste tipo de publicação. O Brasil de Fato pode ser

menos sério e sisudo, como aponta Miguel Stedile em sua entrevista, e pode abordar temas

mais leves, como a cultura – tomando cuidado para não cair em estereótipos, e esportes.

Nesta mesma linha, existe a questão do contraditório. Segundo Nilton Viana em

entrevista à autora, o jornal costuma buscar a pluralidade de opiniões ouvindo várias correntes

da esquerda sobre determinados temas, mas não abre espaços para as opiniões da direita "que

já tem os meios convencionais para se expressar". Mesmo assim, em alguns casos,

principalmente em matérias sobre denúncia, é importante ouvir o outro lado. Além de dar

legitimidade ao jornal, expõe as idéias hegemônicas para que o jornal possa combatê- las com

fatos, sem apelar para o discurso ideológico ou ter medo de destacá- las.

Por fim, há a sugestão de ampliação da área de influência do jornal a partir da busca

por movimentos e entidades ainda não contatados. Por exemplo, quantas associações de bairro

permanecem atuando de forma militante junto à comunidade? Talvez não tantas quanto no

final dos anos 1970, mas com certeza algumas ainda restam. A mesma coisa em relação às

CEBs, alguns grupos permanecem reunidos nos mesmos moldes e poderiam se interessar pelo

Brasil de Fato. Fazer um mapeamento dessas instituições e apresentar a elas a proposta do

jornal pode conseguir não só algumas assinaturas como dar capilaridade ao Brasil de Fato,

ampliando sua penetração em comunidades em que ele não chega.

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PERUZZO, Cicília M. K. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. 344 p. PINASSI, Maria Orlanda. O MST e a completude destrutiva do capital. Margem esquerda : ensaios marxistas. São Paulo: Boitempo Editorial, n.6, 2005. p. 105-120 PINHEIRO, Jair. As classes trabalhadoras em movimento: alguns aspectos teóricos. Lutas Sociais : revista do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais. São Paulo: PUC-SP, n. 17/18, p. 130-142, 2006. SINGER, Paulo; CALDEIRA BRANT, Vinicius (orgs.). São Paulo:o povo em movimento. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1983. 232 p. STEDILE, João Pedro; FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. 168 p. STEDILE, João Pedro. Uma outra matriz produtiva. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, p. 9, jan. 2009. SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM COMUNICAÇÃO. Cadernos Intercom: jornalismo popular. n.1. São Paulo, 1982.

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ANEXO 1 Temas das manchetes do Brasil de Fato - edições semanais.

2003

1. Água

2. George W. Bush/ guerra do Iraque

3. George W. Bush / guerra do Iraque

4. Transgênicos

5. Autonomia do Banco Central33

6. Autonomia do Banco Central

7. Lula

8. Lula

9. Lula

10. George W. Bush

11. Transgênicos

12. Lula

13. Lula

14. Guerra do Iraque/ protestos

15. Lula

16. Transnacionais

17. Lula

18. Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)

21. Movimentos Sociais/ mobilizações

22. Movimentos Sociais/ mobilizações

23. Dívida externa

24. Lula

25. Educação/Reforma Universitária/ protestos

26. Lula

27. Dívida externa/ moratória

28. Organização Mundial do Comércio (OMC)

29. Organização Mundial do Comércio (OMC) – último número editado por José Arbex

30. Transgênicos – primeiro número editado por Nilton Viana 33 A esquerda, historicamente, se posiciona contra a autonomia do Banco Central.

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31. Governo de São Paulo/ PSDB/ Febem

32. Desemprego

33. ALCA

34. Bolívia

35. Transgênicos

36. Fundo Monetário Internacional (FMI)

37. Fórum Social Brasileiro34

38. MST

39. Palocci35

40. Venezuela

41. Violência policial em São Paulo

42. FMI

43. Lula

2004

44. Movimentos sociais/ mobilizações

45. Lula

46. ALCA

47. Fórum Social Mundial 2004, Índia

48. ALCA

49. Banco da Terra

50. Privatização de pedágios

51. Trabalho escravo (em condições análogas à escravidão/ degradante)

52. Lula

53. George W. Bush

54. Energia elétrica

55. Movimento sindical

56. Guerra do Iraque

34 O Fórum Social Brasileiro, organizado em Belo Horizonte de 6 a 9 de novembro de 2003, foi uma

espécie de edição nacional do Fórum Social Mundial, planejado para encaminhar as lutas durante o ano de 2004, em que o Fórum Social Mundial aconteceria na Índia.

35 Antonio Palocci Filho, médico e político de Ribeirão Preto (SP) foi o primeiro ministro da Fazenda nomeado pelo governo Lula, permanecendo no cargo do início do primeiro mandato, em 2003 até o dia 27/03/2006. Era identificado pelos movimentos sociais como o principal responsável pela política econômica conservadora adotada pelo governo.

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57. MST/ luta pela reforma agrária

58. Relações entre Estados Unidos – Brasil

59. Dívida externa

60. Venezuela

61. Mundo do trabalho

62. Movimento de desempregados

63. George W. Bush/ América Latina

64. Cuba

65. Palestina

66. Reforma agrária

67. Venezuela

68. Livre comércio

69. Exportação de cana de açúcar

70. Reforma agrária

71. Movimento Passe Livre

72. Transgênicos

73. Venezuela

74. Fórum das Américas

75. Especulação financeira no Brasil

76. Privatização do petróleo brasileiro

77. Venezuela

78. Ataques a moradores de rua em São Paulo

79. George W. Bush

80. Grito dos Excluídos 200536

81. Reforma Universitária/ protestos

82. Movimento sindical

83. Soberania nacional

84. Partido dos Trabalhadores/ eleições

85. Grito dos Excluídos

86. Transgênicos

36 O Grito dos Excluídos é uma entidade latino-americana de combate às desigualdades sociais,

composta por setores progressistas da Igreja Católica e movimentos sociais . No Brasil, organiza manifestações em várias cidades no dia 7 de setembro. A temática das mobilizações muda a cada ano, mas o mote permanente é a luta contra as desigualdades sociais e a exclusão.

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87. Transposição do Rio São Francisco

88. Uruguai

89. Massacre de Eldorado dos Carajás

90. Mobilizações/ movimentos sociais

91. Massacre Felisburgo

92. Monitoramento dos movimentos sociais pela polícia/ São Paulo

93. Reforma agrária

94. Salário mínimo

95. Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA)37

2005

96. Solidariedade/ valores de esquerda

97. Lula

98. Venezuela

99. Argentina

100. Fórum Social Mundial 2005 – Porto Alegre

101. Fórum Social Mundial 2005 – Porto Alegre

102. Guerra do Iraque

103. Violência no campo

104. Lula

105. Haiti

106. Mulheres

107. Guerra do Iraque

108. Taxa de juros

109. FMI/ não renovação do acordo pelo Brasil

110. Violência policial

111. Moradia

112. Indígenas

113. Reforma agrária

114. MST/ marcha

115. Cúpula sul-americana 37 A ALBA é uma proposta de integração comercial regional para os países da América Latina.

Formulada pelo governo de Hugo Chávez, ela seria um alternativa à ALCA, vista pelos movimentos sociais como uma ameaça imperialista ao desenvolvimento dos países pobres do continente.

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116. MST/ marcha

117. José Sarney

118. Corrupção

119. Índígenas

120. Corrupção/ reação da "direita"

121. Lula

122. Movimento Zapatista – México

123. Lula

124. Lula

125. Lula

126. Crise da esquerda

127. PT

128. Lula

129. Movimentos sociais/ marcha em Brasília

130. Palocci

131. Grito dos excluídos

132. George W. Bush

133. Desemprego/ importações

134. ONU

135. Lula

136. Transposição do Rio São Francisco

137. Guatemala

138. OMC

139. Justiça social

140. Venezuela

141. Manifestações na França

142. Transgênicos

143. Transposição do Rio São Francisco

144. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Terra

145. Transposição do Rio São Francisco/ reeleição

146. Privatizações em São Paulo/ PSDB

147. Lula

148. Reforma agrária

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2006

149. Lula

150. Haiti

151. Fórum Social Mundial – Venezuela

152. Fórum Social Mundial – Venezuela

153. Fórum Social Mundial – Venezuela

154. Relação entre o Ministério da Comunicação e a Globo

155. Trabalho infantil

156. Tribunal Popular em São Paulo

157. Bancos

158. Reforma agrária

159. Lula

160. INSS

161. Lula

162. Massacre de Carajás

163. Manifestações na França

164. Agronegócio e violência no campo

165. Petróleo – última edição com 16 páginas

166. Bolívia – primeira edição com 8 páginas

167. Demissões na indústria automobilística

168. Segurança pública em São Paulo/ PCC/ PSBD

169. Violência policial na periferia/ São Paulo

170. Movimentos sociais/ juventude

171. Movimento sindical/ CUT

172. Favelas vs. Bairros nobres/ São Paulo

173. Trabalho degradante/ marca C&A

174. Energia elétrica

175. TV digital

176. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

177. Oriente Médio

178. Paraguai

179. Ataque de Israel ao Líbano

180. Lula

181. Transnacionais

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182. Reforma agrária

183. Movimento sindical/ demissões

184. Lula

185. Acidentes de trabalho

186. Bolívia

187. Lula

188. Lula

189. Lula

190. Coréia do Norte

191. Lula

192. Lula

193. George W. Bush

194. Reforma agrária

195. México

196. Venezuela

197. Movimento sindical/ Gerdau

198. Morte de Augusto Pinochet

199. Natal vs. Consumo

200. Bolsa família

2007

201. Reforma agrária

202. Lula

203. Privatização do metrô de São Paulo

204. África

205. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)

206. Lula

207. Direitos trabalhistas

208. Educação

209. África/ transnacionais

210. Guerra do Iraque

211. América Latina

212. Reforma agrária vs. Ruralistas

213. Agronegócio

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214. Lula

215. Salários no neoliberalismo

216. MST/ jornada de luta

217. Movimento sindical

218. Dia do trabalho

219. Vale do Rio Doce

220. Plebiscito Vale do Rio Doce38

221. Transposição do Rio São Francisco

222. Corrupção/ empreiteiras

223. Venezuela

224. MST/ 5° congresso

225. Transnacionais

226. Transposição do Rio São Francisco

227. Violência policial/ Rio de Janeiro

228. Usinas hidrelétricas vs. Meio ambiente

229. Lula

230. Crise aérea

231. Lula

232. Agências reguladoras

233. Bancos

234. Plebiscito Vale do Rio Doce

235. Sucateamento do Estado

236. Corrupção Vale do Rio Doce/ mensalão tucano

237. Plebiscito Vale do Rio Doce

238. Crescimento econômico vs. Distribuição de renda

239. Movimento Zapatista – México

240. Privatizações/ PSDB

241. Che Guevara

242. Privatização do urânio

243. Violência no campo/ assassinato de militante do MST

244. Violência policial no Rio de Janeiro 38 Em 2007, vários movimento sociais, incluindo o MST e a Consulta Popular, organizaram um

plebiscito popular sobre a anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, ocorrida em 1997 em um processo controverso.

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245. Lula

246. Petróleo brasileiro

247. Indígenas

248. Lula

249. Bolívia

250. Transposição do rio São Francisco/ greve de fome de Dom Cappio 39

251. Transposição do rio São Francisco/ greve de fome de Dom Cappio

252. Aquecimento global

2008

253. Bolívia

254. Crise da esquerda

255. Moradia/ despejo de favelas em São Paulo

256. Assassinato de João Goulart pelo regime militar

257. George W. Bush

258. América do Sul

259. Colômbia

260. Cuba/ saída de Fidel

261. Anatel

262. Colômbia/ FARC

263. Agronegócio/ mulheres

264. Bolívia

265. Relação CIA com Dalai Lama

266. Lula

267. Eleições municipais

268. Massacre de Carajás – 12 anos

269. Paraguai

270. CPI da saúde/ governo de São Paulo/ PSDB

271. Bolívia

272. Lula

273. Corrupção/ metrô/ PSDB 39 Dom Luiz Cappio é um frade franciscano, bispo da cidade de Barra, na Bahia, que se posiciona

radicalmente contra o projeto de transposição do rio São Francisco. Fez duas greves de fome, em 2005 e 2007, para tentar convencer o governo Lula a abandonar o projeto e partir para a construção alternativa de cisternas.

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274. Indígenas

275. Lula

276. Agronegócio

277. Corrupção/ governo PSDB Rio Grande do Sul

278. MST/ Ministério Público gaúcho 40

279. MST/ perseguição política

280. Colômbia/ resgate de reféns das FARC

281. Daniel Dantas

282. Corrupção

283. Rodada Doha/ OMC

284. Transnacionais

285. Corrupção/ Veracel

286. Geórgia/ ingerência EUA

287. Eleições municipais

288. Paraguai

289. Mulheres no processo eleitoral

290. Bolívia e Venezuela

291. Crise/ EUA

292. Equador

293. Eleições municipais

294. Transgênicos

295. Bolívia

296. Lula

297. Barack Obama

298. Banco do Sul

299. Petróleo brasileiro

300. Crise econômica mundial

301. Presídios nos EUA

302. Tribunal Popular

303. Bolívia

304. Petróleo brasileiro

40 Em junho de 2008, integrantes do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul recomendaram,

em ata de reunião, a extinção do MST.

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ANEXO 2

Documento: UM PROJETO POPULAR PARA O BRASIL

I – Objetivos:

1 Organizar na sociedade brasileira, a produção dos bens, as leis e fixar as prioridades do

governo, para que todos os brasileiros e cada cidadão tenha assegurado: Emprego (trabalho);

Acesso a Terra para trabalhar; Moradia digna para sua família; Educação pública e gratuita

em todos os níveis de escolaridade; Alimentação adequada, e atendimento de Saúde pública.

2 Recuperar a SOBERANIA NACIONAL DO BRASIL sobre seus destinos, seja na política

externa, seja evitando ingerência de interesses estrangeiros em nossa economia, na política, no

território e recursos naturais.

3 Desenvolver um regime político de democracia popular, em que cada cidadão possa

participar nas decisões do estado e nos assuntos de interesse coletivo.

4 Valorizar a cultura do povo brasileiro nas suas mais diferentes manifestações e aspectos.

5 Combater todas as formas de discriminação social, por renda, raça, gênero, opçãosexual, cor

da pele, opção religiosa, etc..

6 Desenvolver de forma quotidiana, na nossa sociedade os valores humanistas e socialistas

que fizeram a evolução da humanidade, como a solidariedade, a justiça social e a igualdade

entre todos cidadãos.

7 Preservar os recursos naturais, com um processo de desenvolvimento equilibrado e

responsável com as gerações futuras. Defender nossa Amazônia e sua biodiversidade.

II - Para alcançar esses objetivos será necessário um programa político:

1 Ruptura com a DEPENDÊNCIA EXTERNA DE NOSSA ECONOMIA. Romper os acordos

com FMI e Banco Mundial, que monitoram nossa economia. Proibir a transferências de lucros

e riquezas para o exterior. Cancelar o pagamento da divida externa. Investigar todos os

empréstimos e envio de recursos passados.

2 CONTROLAR O CAPITAL FINANCEIRO. Revisar toda dívida pública interna, federal,

estadual e municipal. Ver sua legitimidade, níveis de taxas de juros, e submete-Ia aos

interesses e prioridades sociais. Ou seja os recursos ora carreados pelo governo para os

Bancos seriam destinados aos programas de educação, saúde, transporte coletivo, e na

reorganização da indústria e da agricultura. Controlar a taxa de juros e a especulação.

3 DEMOCRATIZAR A PROPRIEDADE DA TERRA. Estabelecer o tamanho máximo da

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propriedade rural e realizar uma reforma agrária desapropriando todas as grandes

propriedades acima do limite que garanta o acesso a terra a todos os que quiserem viver e

trabalhar no meio rural.

4 REORGANIZAR A PRODUÇÃO NACIONAL, na indústria e na agricultura. Visando, em

primeiro lugar, o abastecimento das necessidades básicas da população e a geração de

empregos. Descentralizar o parque industrial levando o desenvolvimento para o interior do

país e para o meio rural.

5 MANTER SOB CONTROLE DO ESTADO TODAS AS EMPRESAS ESTRATÉGICAS

na área de minérios, comunicações, energia e transportes, garantindo assim sua finalidade

social e a reaplicação dos lucros para bem estar coletivo.

6 DISTRIBUIR RIQUEZA E RENDA. Implantar um amplo programa de distribuição de

renda e de riquezas, diminuindo as desigualdades sociais, com aumento real dos salários,

imposto sobre grandes fortunas e heranças.

7 REFORMA URBANA. REORDENAMENTO DAS CIDADES. Impedir a especulação

imobiliária. Controle dos aluguéis. Democratização da propriedade do solo urbano para

garantir moradia digna para todos.

8 DEMOCRATIZAR OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA. Garantindo o acesso e

o controle das rádios e televisão, que são concessões de serviço público, para as comunidades

e a sociedade em geral.

9 DESENVOLVIMENTO DA TECNOLOGIA NACIONAL. Desenvolver um programa de

estímulo e difusão da pesquisa, da ciência e da tecnologia no território nacional. E priorizar a

busca de solução dos problemas do povo brasileiro.

10 REGIME POLÍTICO. Mudar as leis do país para que se garanta uma democracia com

efetiva participação popular, em todos os níveis de decisão política.

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ANEXO 3

Capas do Brasil de Fato cujas manchetes fazem referência ao governo de Luis

Inácio Lula da Silva