Brasil Indígena 3

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    ENTREVISTA: MUTU MEHINKU

    FUNDAO NACIONAL DO NDIO FUNAI

    ESPECIAL

    Parque do Xingu

    TERRA

    Kiriri

    ISOLADOS

    ndio do Buraco

    Ano III n3 julho/agosto/setembro 2006

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    Belm-PA - Rua Presidente Vargas, 762 - Galeria Ed. da Assemblia Legislativa Paraense, Lj.02, Centro - Teleax: (91) 3223.6248

    Braslia-DF - Centro de Exposio e Vendas Artndia - SEPS Q702/902 - Ed. Lex - Trreo - Teleax: (61) 3226.4270

    Cuiab-MT - Rua Pedro Celestino, 301, Centro - Teleax: (65) 3623.1675

    Goinia-GO - Av. Leopoldo de Bulhes, Q.1 - Lote 1/5 - Setor Pedro Ludovico - Teleone: (62) 3241.5762

    Manaus-AM - Rua Guilherme Moreira - Praa Tenreiro Aranha, Centro - Teleax (92) 3232.4890

    Recie-PE - Rua Joo de Barros, 668 - Boa Vista - Teleone: (81) 3421.2144

    Rio de Janeiro-RJ - Museu do ndio - Rua das Palmeiras, 55 - Botaogo - Teleone: (21) 3286.8899

    So Paulo-SP - Rua Augusta, 1371 - Galeria Ouro Velho, Lj. 116-117 - Teleone: (11) 3283.2102

    lojaartndiaO melhor da arte e artesanato indgena, com garantia de autenticidade.

    A cada nmero, nossa revista Brasil Indgenaavana nas g randes discuss es sobre o u turo dospovos originrios . No anterio r, fzemos a matria d a

    grande Coner ncia Naciona l dos Povos I ndgenas.Neste, tratamos de outro s assuntos extremamentesrios e import antes: a e xpedio que reconhece aexistncia de um indg ena solitrio nos confn s deRondnia, o chamado ndi o do Buraco; a esta dehomologao da Terra Indge na Inwbohon a, naIlha do Banan al; a recon quista da Terra Indgen aKiriri, cujos habitantes ortalecem sua identidadecom vigor; a renovada e cri ativa verso da Festada Menina-Moa , dos ndios Tenetehara, que eu j tive a oportunidade de ver diversas vezes em a nospassados, e o ritual que o povo Enawen -Nawrealiza, em bu sca de paz e artura.

    A entrevista que apresent amos neste n mero com um jovem indgena pro essor do povo K uikuro,do Parque Indg ena do Xingu . Ele mant m suacultura com tod a a desenvol tura e respeit o e conheceos caminhos e descaminhos qu e esto surgi ndo nohorizonte cul tural e polti co dos povos x inguanos.Alis, a preoc upao das grand es lideranas destesmbolo do indi genismo brasilei ro que o Parque

    Carta do Presidente

    Capa: Ps de ndio Enawen-NawFoto: Juvenal Pereira

    do Xingu, c omo Aritana, A ukak, Takum e tanto smais, resulto u numa importa nte reuni o, eita noPosto Indgen a Leonardo Villas Bas, desses lderes

    com toda a c pula da Funa i.A matria sobre a parceria da F unai com a

    Secretaria Nacional Antidrogas Senad aborda oconsumo de lcool e de outras drogas por algumascomunidades i ndgenas. O uso e o abu so de bebidasalcolicas um problema his trico que me rece asolidariedade de todos os brasilei ros. A Funai sabeque s com m todos mais mode rnos, de res peito pessoa indge na e s co munidades, s ero encontradassolues para di minuir esse problema de grave sconseqnc ias para as aml ias indgen as.

    Os autores dessas matrias e das otos que asilustram estiveram em campo, sentindo o gosto deconviver com os ndios e m suas terras e de vivenci arsuas culturas. Da a qualidade dos textos, a belezadas otos, a riqueza das mat rias.

    Que o leitor sinta a dor e o prazer de serndio em nosso Pas.

    Mrcio Pereira Gomes, antroplogoPresidente da Fundao Nacional do ndio Funai

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    en rev s a

    por umaeducaondgena

    Michel Blanco

    Fotos: Ricardo Labastier

    MUTU MEHINKU

    BI: Narro, seu av, oi o primeiro xinguano a alarportugus. Voc, de certa maneira, az um caminhoinverso, dedicando-se ao ensino da lngua karib. Comovoc v isso?Mutu: Estou reorando a atuao do meu av,colocando no papel o que ele me ensinou. Ele oigrande companheiro do Orlando Villas Bas, noprocesso de demarcao e preservao de nossa terra.Foi o primeiro a aprender e ensinar o portugus, masnem por isso deixou de deender nossa cultura. Euquero continuar a luta dele. Quero devolver e ortalecercada vez mais essa idia de deesa da cultura do Xingu.

    BI: Voc e seu av eram muito prximos?

    Mutu: Toda vez que eu voltava do curso [do TerceiroGrau Indgena], ele ia minha casa p erguntar oque tinha acontecido, o que eu tinha aprendido. Eletinha grande expectativa de que eu iria aprendermuito. Sempre alava da importncia do estudo, daimportncia das pessoas e, assim, oi um grande amigo.

    BI: Ento seu av oi o seu primeiro proessor?Mutu: Sim, e oi um grande proessor. Quando eutinha cinco, sete anos, comecei a aprender portugus.Oralmente, meu av repassava esse conhecimento paramim. Eu era uma criana curiosa, queria aprender oportugus porque via algum se expressando nessa

    poltica da aldeia, quando transmite s crianas, aosjovens aquilo que aprendeu com os mais velhos e como mundo de ora. Ao mesmo tempo, tambm ajuda osmais velhos com aquilo que aprendeu em seus estudos.

    BI: Voc um deensor de escolas nas aldeias. Comovoc avalia a educao indgena?Mutu: Quase tudo uma novidade para ns. A escolas chegou na aldeia Kuikuro em 1994. Ainda somoscinco proessores. A escola tem de ser melhorada emtudo. Para isso, preciso um assessoramento tcnicoda Seduc [Secretaria Estadual de Educao de MatoGrosso] para a elaborao de um projeto poltico-pedaggico de 5 a 8 sries. Ns j temos o projeto de1 a 4 sries reconhecido pelo governo do estado.

    BI: No Xingu, as cidades esto cada vez maisprximas do Parque e muitos jovens tm contatointenso com a vida urbana. Qual seria o papel daescola nesse processo?Mutu: At pouco tempo, muita gente ia para a cidadeestudar. At agora, ningum da minha aldeia saiu praestudar, a gente tem ensinado aqui mesmo. Mas temoutros jovens que querem ir pra cidade. A gente precisausar a educao indgena para ensinar e estimular osjovens a participarem mais da preservao da cultura.A escola indgena tem como papel undamentalmanter viva nossa identidade e ampliar nossa culturatradicional. possvel manter a cultura, mesmo com

    Escolha e predestinao. Sob essas duas oras,Mutu Mehinku, 26 anos, ez-se proessor. Descobriua vocao decirando nmeros, quando estudavaMatemtica na aldeia Kuikuro e oi convencido por seuproessor a azer um curso preparatrio para lecionar naaldeia. Mas o portugus, embora osse o deagrador deua curiosidade na inncia, ainda era um obstculo. O

    apoio da amlia no s o convenceu, deu-lhe convico.Encontrou estmulo maior nas palavras de seu avmaterno, Narro Kuikuro, a quem considera seu primeiromestre. Falecido em 2004 e velado no cerimonial doKuarupum ano depois, Narro oi o primeiro xinguano aalar e ensinar portugus para os demais.

    Mutu trilha hoje outra margem da palavra: dedica-

    e ao ensino da escrita na lngua karib. Mas orienta seucaminho pelo legado humanista do av. Ele me ensinoua respeitar as pessoas porque, segundo ele, cada um mportante e tem seu lugar para ser importante.

    Formado em Lngua, Arte e Literatura peloTerceiro Grau Indgena programa de ensino superiorresultado da parceria entre a Funai e a UniversidadeEstadual de Mato Grosso , Mutu diretor da Escolandgena Estadual Central Karibe Comunidade

    Kuikuro. Filho de pai Mehinku e me Kuikuro, Mutu casado, tem dois flhos e busca uma educao indgenaalicerada na cultura tradicional e, ao mesmo tempo,ntegrada a tecnologias da inormao.

    lngua e admirava. A pensava: Ser que algum dia vouaprender a lngua portuguesa? A vivncia com meu avme incentivou muito a querer aprender cada vez mais.Depois eu entendi que, quando a gente descobre muitacoisa que a gente no sabia, torna-se uma pessoa melhor.Melhor para entender os outros e o mundo. Ele meensinou a respeitar as pessoas porque, segundo ele, cadaum importante e tem seu lugar para ser importante.BI: Por que voc quis lecionar?Mutu: O meu sonho era ser dentista, s que noexistia um projeto de ormao de agente de sadebucal aqui. S depois de pensar bem decidi participardo curso de ormao de proessores indgenas. Umproessor de Matemtica da Unicamp [Universidade deCampinas, em SP], o Pedro Paulo, veio aldeia para

    assessorar outros proessores indgenas. Ele disse paramim: Voc est adiantado na turma e poderia ajudaroutros colegas que esto trabalhando aqui. Foi entoque, depois de alar com meus pais, eu tomei a decisode participar do curso. No comeo, eu no sabia o queera ser proessor. Eu no sabia direito me expressar nalngua portuguesa nem escrever muito...

    BI: E hoje, o que ser proessor para voc?Mutu: Proessor aquele que passa o conhecimento,pensando em um uturo melhor. aquele queeduca as crianas, que d a elicidade a elas e a todaa comunidade. O proessor ajuda na organizao

    Eu entendi que, quando a

    gente descobre muita coisa

    que a gente no sabia, torna-

    se uma pessoa melhor.

    Melhor para entender osoutros e o mundo.

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    a proximidade das cidades. Nossa cultura esta a, viva.Como, hoje em dia, aes importantes da aldeia estomorrendo juntamente com os idosos, os donos dasradies, a gente pensou: Por que que a gente no az

    um registro da nossa cultura?

    BI: Voc est alando de um projeto que j existe, no? Qual a inteno desse trabalho?Mutu: Se deixar todo o mundo morrer sem aproveitaressa sabedoria, no uturo a gente no vai ter maisa riqueza do conhecimento tradicional. Ento nselaboramos um projeto junto com a UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ) para um trabalhode documentao. A idia capacitar os meninospara a produo de documentrios sobre as danas,

    os rituais, os cantos e tambm para a publicao dasnossas histrias. Com o uso da tecnologia, esperamosdespertar o interesse das crianas p or nossa tradio.Com o novo, a gente recupera o antigo.

    BI: Desde quando vocs tm esse projeto? O que joi eito?Mutu: O projeto comeou em 2002, com a Associaondgena Kuikuro do Alto Xingu e a UFRJ. Em 2004,

    conseguimos recursos, atravs do PDPI [ProgramaDemonstrativo dos Povos Indgenas, ligado ao ProgramaPiloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil,o PPG7, coordenado pelo Ministrio do Meio Ambiente],e fzemos vrias ofcinas sobre cinematografa. Filmamosunto com o pessoal da ONG Vdeo nas Aldeias. Jemos dois rutos: O eclipse da Lua e Cheiro de Pequi. O

    primeiro vdeo sobre as estas que o nosso povo aziaquando tinha eclipse. O segundo, em que ui o atorprincipal, sobre a origem do pequi. [Segundo a lenda, ocheiro do pequi oi transerido, por um heri mtico, doexo das mulheres para a ruta. Do pequi, os xinguanos

    extraem leo utilizado para embelezar e proteger a

    pele; a semente destaca-se como alimento cerimonialdistribudo entre visitantes, durante o ritual doKuarup.]Agora a gente est planejando azer outro flme. Aindano decidimos o tema. Pode ser sobre a origem do milhoou a origem doKuarup. Estamos tentando o apoiofnanceiro da Petrobras e pretendemos az-lo juntocom o Vincent [Carelli, indigenista, documentarista eundador da ONG Vdeo nas Aldeias]. Depois, a gentequer trabalhar sozinho e com outras coisas. Acho que jeremos alguma experincia. Alm dos documentrios,

    estamos construindo a Casa Cultural do Povo Kuikuro,onde vamos guardar todos os equipamentos e arquivaros materiais coletados.

    BI: Em sua opinio, quais so os principais problemasdo Xingu hoje?Mutu: Uma grande preocupao com as cabeceirasdos rios do Xingu. Nas que esto ora da terraindgena, h plantao de soja, criao de bois e deporcos. Na poca da chuva, todos os agrotxicosque o azendeiro pe na soja escoam para c. Almdisso, temos grande preocupao com a construode hidreltricas, como a Paranatinga [A ParanatingaII uma pequena central hidreltrica que est sendoconstruda a cerca de 100 km da terra indgena, norio Culuene, um dos principais ormadores do rioXingu. LeiaParanatinga II, na pgina 14.], que podemameaar os peixes, nosso principal alimento. Sou contraa construo da hidreltrica. A gente precisa ser melhorinormado e lutar na Justia pelos nossos direitos. Almdisso, temos de alar com azendeiros para tomaremcuidado com as guas e procurarem outro meio dematar os insetos das plantaes. O azendeiro nosso

    inimigo. O azendeiro, o madeireiro, o garimpeiro.Esto todos de olho na nossa terra. Mas est bem claroque o maior problema a extrao de madeira. Oprprio ndio est abrindo a porta para as madeireiras.

    BI: Como impedir a derrubada de madeira, j que,como voc aponta, h participao de indgenas?Mutu: A retirada da madeira o que mais me entristecee um problema que a gente tem de vencer. Houvereunies aqui no Xingu para impedir isso, mas nuncativemos resultado. O prprio ndio est tirando essamadeira, na regio da Terra Nova [posto de vigilnciaem rea de ronteira na poro sudoeste do Parque].

    A gente tem de ormar uma comisso junto com aFunai, a Polcia Federal e o Ibama, e prender todosesses brancos que esto no Parque. Aqui no Xingu tm14 etnias dierentes que precisam tomar uma decisoconjunta. Mesmo que seja ndio, a gente tem de prendertambm para ele ter conscincia. J existe um cdigo

    orestal, mas que nunca cumprido. Temos de azercom que seja cumprido.

    BI: Falando dos brancos... Alm dos rgosgovernamentais, o Xingu tem uma grande presena deONGs e outras instituies. Como voc v isso?Mutu: Tem brancos que trabalham eminstituies como o ISA e a ACT [respectivamente,as organizaes no-governamentais InstitutoSocioambiental e Amazon Conservation Team].Outras instituies tambm querem trabalhar conosco,mas a gente tem de avaliar isso. Seno, vm aqui, comono caso da ACT, e azem o mapeamento das plantasmedicinais, podendo azer biopirataria l ora. Issoa gente no pode aceitar. A gente precisa ver se hrealmente algum benecio e um interesse coletivo parao Xingu. Como jovem, tenho um olhar dierente emrelao a isso, mas, nem por isso, eu descarto a opiniodas lideranas. Sempre estou ao lado deles, aprendendoe ensinando, alando das coisas erradas e das coisascertas porque esse o meu dever dentro da aldeia.E sempre digo que sou contra instituies que no

    pensam em um uturo melhor para o Xingu.BI: E a atuao da Funai?Mutu: A Funai est em Braslia [A AdministraoRegional do Xingu localiza-se na sede do rgo.] Hoje,aqui voc v vrios desconhecidos, como uncionriosda preeitura de Gacha do Norte, da Funasa[Fundao Nacional de Sade] e muitos outros, queso pessoas mais novas que no tm o mnimo de veiapara cuidar e respeitar os povos do Xingu. Muita genteala: J que a Funai no ajuda, vamos trazer outraspessoas para trabalhar aqui. Aqui quase no temuncionrio da Funai. A Funai precisa ser ortalecida,

    ter mais pessoal e mais recursos fnanceiros. Sei dasdifculdades, mas poderamos azer mais reunies coma Funai e apresentar propostas para encaminhar aoCongresso Nacional. Aqui no Posto [Posto IndgenaLeonardo Villas Bas, que atende as aldeias do AltoXingu] tem de ser ormada uma equipe permanente.Assim, a Funai fcaria mais prxima da gente.Antigamente, a Funai vivia sempre presente, semprejunto com a gente. Hoje em dia no assim, s tem ochee de posto. Falta gente.

    BI: Tendo em vista as suas atividades, qual o seugrande sonho?Mutu: Meu grande sonho ormar minha primeiraturma de alunos. Ver os alunos que eu ensinei

    praticando a cultura e valorizando a histria, os mitos,as lendas. Tornar a escola um espao de valorizaoda cultura. Ao mesmo tempo, quero ver as crianasaprendendo como o branco az seu trabalho e constrias leis. E saberem quais os nossos direitos. Quero vermais ndios administrando suas escolas. O prpriondio tem de aprender a gerenciar e receber recursospara manuteno da escola e compra de materialpedaggico. Eu quero que essa nossa u nidade sejamais independente e que o ndio seja gestor da escola.Ao mesmo tempo, a gente precisa ter um resultadobom e valorizar o nosso trabalho junto comunidade,para no precisar mais do branco trabalhando dentroda aldeia. Porque o branco no se acostuma com esseambiente dierente. A ele sente alta de rerigerante, dear-condicionado, de dormir na cama. Aqui ele dormena rede, toma banho no rio e no se acostuma. Porconta disso, muitas pessoas j desistiram de trabalharaqui na aldeia. por isto que a educao importante:o ndio necessita ter condies para assumir p ostos ecuidar de sua comunidade, dos seus direitos.

    Com o uso da tecnologia,

    esperamos despertar o

    interesse das crianas por

    nossa tradio. Com o novo,

    a gente recupera o antigo.

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    sum roCarta do Presidente 1

    Mrcio Pereira Gomes, antroplogo

    Entrevista: Mutu Mehinku 2Um jovem professor inspira-se no legado do av

    Especial: Parque Indgena do Xingu 8Marco do indigenismo, Xingu discute o futuro

    Ritual: Enawen-Naw 18Festa celebra o equilbrio entre dois mundos

    Isolados: ndio do Buraco 24nico sobrevivente de etnia desconhecida

    Terra: Inwbohona 30Territrio java homologado na Ilha do Bananal

    Terra: Kiriri 34A retomada cultural de um povo

    Opinio: O que ser ndio? 39Artigo analisa vises que se tem do ndio

    Geral: Projeto Antidrogas 40

    O problema do lcool e das drogas nas aldeias

    Opinio: Desenvolvimento comunitrio 42Coordenao da Funai discute formas de apoio produo indgena

    Cultura: Tenetehara 43Aldeia Santa Maria atualiza festa da Menina-Moa

    expedientePresidente da Repblica

    Ministro da JustiaPresidente da Funai

    Conselho Editorial

    Coordenador EditorialEditores

    Reprteres

    Colaboradores

    Fotgraos

    CopidesqueProjeto Grco

    Diagramao e arteTiragem

    ImpressoJornalista Responsvel

    Luiz Incio Lula da SilvaMrcio Thomaz BastosMrcio Pereira Gomes

    Publicao bimestral da Fundao Nacional dondio Funai/Coordenao Geral de Assuntos Exter-nos (CGAE) em parceria com Via Pblica Instituto para o Desenvolvimento da GestoPblica e das Organizaes de Interesse Pblico

    Carmen JunqueiraDaniel Matenho CabixiDominique GalloisGuilherme CarranoIzanoel dos Santos SodrJoo Pacheco de Oliveira

    Jos Carlos MeirellesJurandir Siridiw XavantePierlngela Nascimento da CunhaMichel Blanco Maia e SouzaFelipe MilanezJlia MagalhesChristiane PeresDanielle SantosMrio Moura FilhoIvan Abreu StibichJos Augusto Lopes PereiraVanessa CaldeiraAdemir RodriguesChristian KnepperRicardo LabastierJuvenal PereiraTeresa BilottaMarcelo AaloUnivers Design / Marcelo Aalo e Marcelo Menna10 mil exemplaresIpsis Grfca e EditoraJlia Magalhes

    Fundao Nacional do ndio FunaiCoordenao Geral de Assuntos Externos CGAESEPS QD. 702/902 Ed. Lex, 3 andar

    CEP 70390-025Teleone: (61) 3226.9411Contato: [email protected] | www.unai.gov.br

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    PARQUE INDGENA DO XINGU

    Xingu. Um imenso rio a cortar mais de 1.800quilmetros do interior brasileiro, do Mato Grossoao Par, quando desemboca nas guas doAmazonas. Seu curso segue do Brasil central para aHilia amaznica, por uma rea de transio ecolgicaque apresenta cerrados, campos, orestas de vrzea eorestas de terra frme. Uma bacia hidrogrfca quetransborda biodiversidade. Xingu, no entanto, maisdo que isso. Ao batizar a terra indgena brasileira maisreconhecida o Parque Indgena do Xingu , o nomeevoca uma associao quase imediata entre a naturezaexuberante e os povos originrios do Brasil. Mesmo

    em um pas que praticamente desconhece os ndiose suas realidades, sabe-se que o Xingu lugar deles.Trata-se de uma idia orte, mas que no escapa dedeturpaes. Presente em manchetes de jornal desdea dcada de 1940, quando o avano da ExpedioRoncador-Xingu alimentava a imaginao do cidadocomum sobre um serto indevassado, at os dia s dehoje, quando tambm fgura em peas publicitriaspara todos os fns, como campanhas para venda desandlias, e em rtulo de cerveja. Xingu, assim, quase um chavo. Porm, sempre uma reerncia aoindigenismo. A celebridade, no entanto, no isenta seus

    correntezapermanenteMichel Blanco e Jlia Magalhes

    Fotos: Ricardo Labastier

    expedio de contato com os povos indgenas. Ainda possvel encontrar entre os primeiros colonos do MatoGrosso quem se queixe desse desvio, que implicou ademarcao de terras indgenas em uma regio deexpanso agropecuria.

    Por volta de 1952 comeou a mobilizao queresultaria, em 1961, quase dez anos depois, na criaodo Parque Nacional do Xingu. Embora reduzidade seu tamanho original, previsto em 4,5 milhesde hectares, a rea tinha o carter hbrido de parquenacional em razo do duplo propsito de preservao:dos povos indgenas e da auna e ora da regio.Somente com a criao da Funai, em 1967, o nome oialterado para Parque Indgena do Xingu, conerindoprimazia proteo de seus p ovos originrios.

    Sociedade de naes Sob critrios p opulacionais,o Parque Indgena do Xingu dividido em trs partes,das nascentes at a oz do rio: sul (conhecida comoAlto Xingu), centro (Mdio Xingu) e norte (Baixo

    Xingu). Respectivamente, essas reas so assistidaspor trs postos da Funai: Leonardo Villas Bas,Pavuru e Diauarum. O Alto Xingu abriga povos quecompartilham um mesmo substrato cultural: Aweti,Kalapalo, Kamayur, Kuikuro, Matipu, Mehinku,Nahukw, Trumai, Waur e Yawalapit. Apesar davariedade lingstica, esses povos mantm ao longodos anos contatos intertribais to intensos articuladosem uma rede institucionalizada de trocas, omoitar,casamentos e rituais a ponto de se p oder dizer queparticipam de uma mesma cultura xinguana. Entreoutros traos culturais, os grupos xinguanos tmem comum o corte de cabelo masculino ovalado; o

    povos de preocupaes sobre o uturo, apesar de suasolidez cultural.

    O Parque Indgena do Xingu localiza-se naregio nordeste de Mato Grosso. Em seus 2,6 milhesde hectares vivem 14 etnias dierentes, somando maisde 4 mil indivduos, em uma grande diversidadesociocultural que compe uma das mais ricas teiaslingsticas do continente. A popularidade do Parqueno imaginrio brasileiro deve-se, sem dvida, aotrabalho dos irmos Orlando, Cludio e LeonardoVillas Bas. Afnal, sua histria conunde-se coma vida desses homens, que, nas palavras de DarcyRibeiro, lanaram-se para aventuras to ousadase generosas que seriam impensveis, se eles noas tivessem vivido. Juntos, os irmos Villas Bas,Darcy e outros profssionais, como o sanitarista NoelNutels e os antroplogos Eduardo Galvo e LuizAlberto Torres, apoiados pelo Marechal Rondon, soos responsveis pelo ideal que alteraria os rumos dapoltica indigenista nacional.

    Passando-se por caboclos analabetos, os irmosVillas Bas conseguiram incorporar-se ExpedioRoncador-Xingu, driblando a principal exignciaeita pelo Governo: os alistados deveriam ser homensrudes, acostumados vida na selva. Natureza quese distanciava daqueles jovens paulistas, ocupadosem empregos burocrticos. Enganaram a todos ata arsa ser denunciada ao comando da expedio.Em vez de punidos, porm, os Villas Bas orampromovidos e, no incio do governo Dutra, em 1945,assumiram a liderana da Marcha p ara o Oeste.A partir desse momento, o que seria apenas umamisso de desbravamento tornou-se tambm uma

    Regio nordeste de Mato Grosso Municpios Canarana, Paranatinga, So Flix do Araguaia, So Jos do Xingu, Gachado Norte, Feliz Natal, Querncia, Unio do Sul, Nova Ubirat e Marcelndia rea 2.642.003 hectaresPopulao aproximadamente 4000 pessoas Etnias Aweti, Ikpeng, Juruna, Kalapalo, Kamayur, Kayabi, Kuikuro,Matipu, Mehinku, Nahukw, Suy, Trumai, Waur e Yawalapit Lnguas aweti (tronco tupi); juruna (tronco tupi);kalapalo, ikpeng, kuikuro, matipu e nahukw (amlia karib); kamayur e kayabi (amlia tupi-guarani); mehinku,waur e yawalapit (amlia aruak); suy (amlia J) e trumai (lngua isolada)

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    KuarupRitual mais conhecido dos povos indgenas brasileiros,oKuarup uma celebrao sobre a vida e a morte.Encena a narrativa da criao dos ndios do AltoXingu, quando eles choram, pela ltima vez, seusmortos, representados por troncos pintados e eneitadosda madeira que d nome ao ritual. A cerimnia temorigem na fgura deMavutsinim, responsvel por criar omundo e os homens, a partir de troncos de rvore.nico ritual que rene praticamente todas as aldeias do

    Alto Xingu, oKuarup a expresso mais orte da iden-tidade comum dos povos xinguanos. Tradicionalmente,s realizado para pessoas ilustres, seja por critriode linhagem hereditria, seja por liderana poltica oueconmica. Entretanto, outros que morreram em dataprxima tambm podero ser includos na cerimnia.A realizao de umKuarup representa uma grandehonraria, o reconhecimento de que o homenageadopassa a ser situado no mesmo nvel daqueles que con-viveram comMavutsinim.Recentemente, oram includos entre os homenagea-dos no-ndios considerados ilustres pessoas que sedestacaram na luta pela causa indgena, como o casodos prprios irmos Villas Bas e do indigenista JosApoena Meireles.OKuarup intensifca as relaes entre as aldeias, pormeio da iniciao dos jovens e da expresso ldico-competitiva da lutahuka-huka. Trata-se de um ritualestivo, de elevada beleza plstica, a ssociando o movi-mento de danas e os sons dos cantos e autas s coresreetidas nos criativos desenhos geomtricos pintadosno corpo.

    JawariIntroduzido na cultura xinguana pelos Trumai, o ritoenvolve uma disputa entre dois grupos, num jogo dearremesso de longos dardos com pontas de cera. Postosum diante do outro, dois indivduos de etnias dierentestentam atingir o adversrio, um a cada vez, da cinturapara baixo.O jogo considerado um catalisador no-violento deconitos anteriormente ocorridos entre os povos xin-guanos. Um ritual de alvio de tenses e agressividade,

    em que a disputa de dardos precedida de uma espciede treinamento em um boneco eito de olhagem amar-rada com embira. Vrios grupos podem ser convidadospara oJawari, geralmente realizado em julho.

    YamurikumAs mulheres invertem a situao de limitaes provoca-das pela desigualdade de gnero nas relaes cotidianas,durante a celebrao do Yamurikum. O ritual, para oqual tambm so convidadas indgenas de vrias alde-ias, uma rebelio eminina coletiva. Durante a esta,as mulheres manejam armas que, em qualquer outrasituao, no poderiam sequer tocar; usam adornostipicamente masculinos e lutam ohuka-huka. Aos ho-mens, cabe apenas o papel de expectadores, quando noo de saco de pancadas. No Yamurikum, as mulherestm permisso at para agredi-los.

    ormato da maloca e a sua disposio na aldeia, com agaiola do gavio real no centro; o uso doaluri (tangaminscula eita de entrecasca, presa cintura porcordis) pelas mulheres; o regime alimentar basede peixe e estas e rituais celebrados em conjunto,como oKuarup, oJawari e o Yamarikum. Os Trumai,embora responsveis pela disseminao doJawari,distinguem-se das demais etnias a lto-xinguanas porno participarem doKuarup e por no terem no peixeeu recurso protico, mas sim na caa. Em razo

    desse intercmbio, muitos indivduos so p oliglotas.Entretanto, cada um desses povos cultiva sua identidade

    tnica, afrmando suas dierenas na vida cotidiana e,obretudo, nos cerimoniais.

    As demais etnias que habitam o Parque Ikpeng, Kayabi, no Mdio; Juruna e Suy, no BaixoXingu no integram esse complexo xinguano eapresentam-se bastante dierenciadas culturalmente.Por questes administrativas, oram trazidaspara dentro da rea do Parque, inclusive com odeslocamento de aldeias inteiras. Apesar disso, acabampor relacionar-se com os outros povos por meio decasamentos e, recentemente, das associaes indgenas.Dada a pluralidade sociocultural de sua p opulao,

    os Villas Bas costumavam se reerir ao Parque comouma sociedade de naes.

    Preocupaes Com as picadas abertas pelaRoncador-Xingu, o Xingu aproximou-se da sociedadenacional. Colnias agrcolas instaladas na passagemda expedio comearam a se espalhar por vastaspores do que antes era um territrio inspito, em ummovimento intensifcado nos anos 1970, quando colonosgachos, com apoio governamental, deixaram o Sul doPas em busca de grandes extenses de terras cultivveisa preos baixos. As mudanas ocorridas no entorno da

    bacia do Xingu, obviamente, no deixaram de trazerconseqncias para seus habitantes nativos, pois ompeto dos empreendimentos ofciais era ocupar e levarprogresso regio. Os novos moradores trouxeramsim um pouco de desenvolvimento econmico, masa um custo elevado. Pequenas cidades prolieraram-se, chegando at a ronteira do Parque Indgena. E adevastao de grandes reas de cerrado e oresta asacompanharam. Projees eitas sobre dados ofciaisdo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)indicam que o desmatamento continuar a passoslargos, ameaando a Terra Indgena.

    rituais do xingu

    Imagens dos rituais do Xingu. Na pgina anterior, cacique Munu Mehinku

    Arquivo Funai

    CULTURA

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    Abaixo, um dos mais conhecidosndios do Xingu, Takum Kamayur

    Na prxima pgina, mapa doParque Indgena Parque do Xingu

    Kretire

    Paue-Kayaby

    Kuni Kayaby

    Capivara Kayaby

    Suy

    P. I. Diauarum

    SuySuya Novo

    Manoel Kayabi

    Tuim KayabiKupekani Kayabi

    Chiquito Kayabi

    Prepori Kayabi

    Pavuru

    Pato Magro Trumai

    Txico

    Frana

    Rio Ronuro

    Rio Steinen

    Rio Batovi

    Rio Culuene

    Morena

    Waur

    Nahuku

    Kalapalo

    Matipu

    Kuikuro

    Moitar

    Mehinku

    Aweti

    Tanguro

    Kamaiur

    L. V. Boas

    Yawalapit

    Maci Kayabi

    Piui Kayabi

    Juruna

    Kuruna

    Cururu

    Xingu

    Visto de cima, o Parque uma ilha verde cercadapor lavouras, principalmente de soja. Uma pressoda sociedade ao redor que se az sentir dentro dasaldeias, sob diversas ormas, e stimulando novos hbitosde consumo que podem, inclusive, levar cooptaopara atividades ilegais, como a venda de madeira. Arelao com os municpios vizinhos e o impacto deobras de inra-estrutura promovidas pela expansodo agronegcio impem aos habitantes do Parquendgena do Xingu a reexo sobre seu destino. Diante

    dos atos, apreenso o sentimento mais reqenteentre os ndios. Estou mais preocupado do que noempo do Orlando [Villas Bas], disse o cacique

    Aukak Kuikuro, durante encontro realizado de13 a 14 de setembro deste ano, que reuniu, no Posto

    Leonardo Villas Bas, a direo da Funai comideranas e jovens representantes de todos os povos doAlto Xingu.

    Proposto pela Funai com o intuito de iniciar umadiscusso sobre as perspectivas de uturo dos p ovosxinguanos, o encontro teve a participao do presidentedo rgo, Mrcio Pereira Gomes, dos indigenistasCludio Romero, Guilherme Carrano, Izanoel Sodr,Odenir Pinto e Slowacki de Assis, e do administrador

    do Parque, Tamalu Mehinku. Durante as discusses,entre assuntos como o repdio construo da usinahidreltrica Paranatinga II (ver boxe na pgina 14)desejo de preservao cultural oi tema unnime esempre se undia inquietao com as mudanas noentorno do Parque. Minha preocupao com outuro. Alguns jovens que oram estudar l ora nodizem o que acontece. Enquanto estiver vivo, continuocom a cultura que aprendi com meu pai, afrmou ocacique Takum Kamayaur, um dos principais pajsdo Alto Xingu. Espero que a Funai continue a ajudar,principalmente contra i nvasores. Muitas ONGs estoaqui, mas no vo ajudar com isso.

    Tal discurso oi endossado por lideranas comoos caciques Aritana Yawalapit, Munu Mehinku,

    Taukum Kalapalo e Jakalo Kalapalo, e tambm porjovens como Mutu Mehinku (conerir entrevistana pgina 2), Kaman Nahukw, Jeika Kalapalo eMatarip Trumai. Entretanto, a preocupao maisimediata demonstrada na reunio oi o desmatamentopara venda de madeira na regio da Terra Nova,rea originalmente destinada a abrigar um postode vigilncia na ronteira sudoeste do Parque. Aentrada de madeireiros intermediada por doispequenos grupos liderados por um cacique Trumaie outro Ikpeng. A reprovao geral e as i nvestidasdo administrador Tamalu Mehinku para encerrara atividade, constantes. Dias antes da reunio noPosto Leonardo, Tamalu chegou a gravar em vdeo aretirada da madeira para exibir aos demais. Acertou-se,durante o encontro, a ormao de uma comisso delideranas do Alto Xingu para negociar com os ndios ofm do desmatamento. Enquanto isso, a Funai planejauma ao para a retirada dos madeireiros e estudameios efcientes para evitar o envolvimento indgena navenda de madeira.

    Ao longo das discusses, o presidente da Funairecordou aos ndios casos de enriquecimento ilusrioque acometeram diversos povos em meio exploraode atividades como garimpo e venda de madeira.Vocs devem pensar no que precisam agora semesquecer o que importante manter para o uturo,para o uso das outras geraes. Pensar em atividadesque produzam um bem para toda a comunidade.A busca de alternativas econmicas sustentveismostra-se hoje como principal desafo para os povosdo Parque Indgena do Xingu e para os rgos doGoverno Federal.

    PARQUE INDGENA DO XINGU

    Vocs devem pensar

    no que precisam agora sem

    esquecer o que importante

    manter para o futuro

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    Aos 68 anos, Marina Villas Bas, estava sentadana sala de estar de sua casa, no Alto da Lapa, bairrotradicional de So Paulo. Hoje, mesmo distante darealidade nas aldeias, no deixa de se preocupar comas questes que aigem os ndios. Afnal, a histriado Xingu mistura-se com a dela. Nas paredes da casa,muitas recordaes dos anos em que ela e o marido,Orlando, moraram no Parque. O cachorro de estimao,um vira-lata, uma homenagem carinhosa a uma dasetnias do Xingu: chama-se Waur.

    a Orlando que ela dedica suas palavras logonos primeiros instantes da entrevista. Durante pelomenos 50 anos de sua vida, ele alou para quem p desobre essas etnias, sobre os valores desses ndios eo respeito que eles tinham pela natureza. Para osirmos Leonardo, Cludio e Orlando Villas Bas, acriao da reserva indgena era a concretizao de umsonho: a preservao da auna, da ora e, sobretudo,dos povos que viviam naquelas matas. Na opiniode Marina, os povos xinguanos tiveram o privilgiode terem seu primeiro contato com antroplogos,socilogos e indigenistas. Os Villas Bas tin ham umapreocupao muito grande em divulgar esse trabalho,azendo palestras, escrevendo, dando entrevistas sobrecomo os ndios viviam numa sociedade harmnica eequilibrada. Assim, eles conseguiram chamar a atenopara os valores desses povos, que a ntes eram vistoscomo destruidores da oresta, como gente sem lei.O Orlando criou uma imagem positiva em relao sociedade indgena.

    A ltima vez que ela esteve no Xingu, em 2003, oipara participar doKuarup em homenagem ao marido,

    alecido em dezembro do ano anterior. Pde observar asmudanas pelas quais os ndios passaram. Voc no hde querer que o mundo pare no tempo. Mas eu pensoque eles ainda esto um pouco perdidos. Isso az parte deum processo pelo qual eles vo ter de passar. S gostariaque as pessoas que se relacionam com eles ossem maisconscientes. Que houvesse um pensamento humanista,com respeito natureza e ao indivduo, diz apreensiva.

    Quando ela oi pela primeira vez ao Xingu,em 1963, o Brasil era bem dierente. Foi a convite deOrlando, com quem se casou em 1969. Eu trabalhavacomo enermeira para um mdico que o conhecia e quetambm reqentava o Parque. Foi atravs desse amigo

    comum que eu ui parar l. Na rea, eu e Orlandomorvamos no Posto Indgena Leonardo Villas Bas,ele num barraco e eu em outro.Hoje esse posto atendeapenas o Alto Xingu, mas na poca no era assim. Comum avio teco-teco, Marina voava diariamente paratodas as aldeias e azia o controle da sade dos ndios.Ela morou 12 anos na rea e continuou envolvida noprojeto, mas trabalhando em So Paulo.

    Para Marina, a ida para o Xingu oi uma grandeaventura. A nica experincia de trabalho social que

    ela havia tido era com menores inratores, em SoPaulo. Estava muito longe de se imaginar diante deum universo to desconhecido para ela, quando oiconvidada por Orlando para ir para os confns de MatoGrosso. Tinha uma pista de pouso onde s descia avioda FAB (Fora Area Brasileira) uma vez por semana isso quando no chovia. A partir dali, voc no tinhamais contato com o mundo. Acontece que, a primeiravez que eu ui para conhecer a rea, comeou a chover echover. E os avies da FAB no desciam. Acabei fcandoum ms, sem poder sair de l, sem comunicao.

    Na poca, tinha apenas 25 anos. No auge dajuventude, no vigor das descobertas, a incerteza davolta para a cidade no a deixou angustiada. Eu j noestava querendo sair de l. Estava gostando dos ndiose me interessando por tudo. Os primeiros ndios queviu oi um grupo de Kuikuro que estava acampadono posto cozinhando pequi. Foi uma cena muitobonita: eles estavam com aqueles paneles de barro,aquele monte de cascas e caroos de pequi. E quandoeu cheguei, eles me chamaram, azendo gestos com amo. Conesso que fquei sem saber se eu ia ou no. A

    gente lia na escola que eles colocavam pessoas dentrodesses paneles (risos). A eu corri pra perto do Orlandoe disse: Eles esto me chamando, o que eu ao?. Elerespondeu: V!. Fui e ento eles me oereceram comidae comearam a me perguntar um monte de coisas.

    Apesar de alar com alegria dos tempos em quemorou l, ela diz no querer reviver algo que fcouno passado. O Orlando tinha u ma relao muitodierente com o Xingu. Para ele, aquilo era um projetode vida, o flho mais velho. claro que a amlia,o relacionamento comigo tambm oram muitoimportantes na vida dele. Mas tenho a sensao de queo Xingu oi a lgo mais orte.

    Legado A despeito das presses externas, queem muitos povos indgenas brasileiros provocaramo enraquecimento da identidade cultural, o Parquendgena do Xingu ainda apresenta elevado grau

    de preservao. Os rituais, apesar de a presena deexpectadores no-ndios ser cada vez maior, continuampraticamente inalterados. E um ato simples chamaa ateno: em poucos lugares no Brasil ndios comdcadas de contato andam nus e to sem pejo comono Xingu. Isso se deve ao histrico de contato com aociedade nacional que esses ndios possuem, p eculiar

    maior parte dos povos indgenas brasileiros, umavez que o principal mediador oi um etnlogo, oalemo Karl von den Steinen, entre os anos de 1884e 1887. Por fm, a atuao dos Villas Bas produziu

    eeito. Embora suscetvel a crticas que a considerarampaternalista em demasia, a gesto dos Villas Bas para

    preservar os ndios das rentes de expanso econmicasque se abriam na regio propiciou uma postura maisrespeitosa da sociedade nacional em relao aos ndiosdo Parque Indgena do Xingu, dierentemente do queocorreu com outros povos.

    A concepo do Parque Indgena do Xingutambm inaugurou no Brasil uma nova viso acercada demarcao de terras indgenas, ao consagrar oconceito de territorialidade indgena. Isto , a idia deque uma terra indgena no to-somente o espaopara sua sobrevivncia sica imediata, mas um espaoculturalizado por geraes anteriores, destinado presena permanente de um povo e de geraessubseqentes, de grande importncia para o uturo doPas. Antes de um lugar comum, o Xingu um divisor

    de guas no indigenismo brasileiro.

    As discusses a respeito da construo da PequenaCentral Hidreltrica Paranatinga II, s margens do rioCuluene (MT), arrastam-se desde 2004. A obra fcaentre os municpios mato-grossenses de Campinpolis eParanatinga, a cerca de 100 km do Parque Indgena doXingu e a 30 km de Parabubure, rea do povo Xavante. Amaior preocupao dos ndios e da Funai com relao preservao dos rios que passam pela rea, principalmentedo Culuene, que um dos principais ormadores do rioXingu. Essas guas so onte de sua base alimentar os

    peixes e esto constantemente ameaadas por usinashidreltricas e atividades agropecurias.

    O projeto prev o alagamento de uma rea de 1.290hectares, dos quais 920 so de vegetao nativa. O lago serormado pela edifcao de duas grandes barragens paraa gerao de 29 megawatts de energia. A hidreltrica estora da rea reservada aos ndios, mas no por isso queeles deixam de atentar para os impactos ambientais que aconstruo pode gerar para a comunidade.

    O empreendimento da Paranatinga Energia S. A.,icenciado pela Fundao Estadual do Meio Ambiente

    de Mato Grosso (Fema), j tem boa parte da obraexecutada. No entanto, a Funai e o Ministrio Pblico

    paranatinga II Federal ajuizaram ao civl pblica na Justia Federalpara impedir a continuidade da construo e transeriro processo de licenciamento ambiental para o InstitutoBrasileiro de Meio Ambiente e Recursos NaturaisRenovveis (Ibama). A Funai entende que essa a melhororma de azer com que a empreendedora respeite o meioambiente e aa um estudo de impacto etnoambiental maisdetalhado. Foi preciso uma deciso judicial para transeriro licenciamento ambiental da obra para a esera ederal.A sentena da Justia Federal de Mato Grosso, que oidivulgada no dia 11 de abril deste ano, anulava a licenada Fema e determinava que a empreendedora suspendessea obra, sob pena de pagar multa de R$ 10 mil por dia eeventual demolio do que j estava pronto.

    A alsa paz dos ndios xinguanos, porm, duroupouco. Recentemente, no dia 20 de setembro, uma decisodo Tribunal Regional Federal da 1 Regio autorizou acontinuidade das obras da Pequena Central Hidreltricano rio Culuene. A deciso contraria os interesses dospovos indgenas da regio, que no parece ter sido levadoem conta. Com isso, as obras podem continuar at queaquele tribunal decida defnitivamente sobre o caso. AFunai aguarda a publicao da liminar no Dirio Ofcialpara estudar eventual recurso em deesa dos direitos e dosanseios dos povos da regio.

    Colaborou Christiane Peres

    MARINA VILLAS BAS

    depoimentoPARQUE INDGENA DO XINGU

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    Antroploga e proessora da Ponticia UniversidadeCatlica de So Paulo, Carmen Junqueira reernciaquando o assunto Xingu. Ela esteve pela primeiravez no Parque em 1965. Nesta entrevista, Carmen alaobre as alternativas de desenvolvimento e o uturo dos

    povos xinguanos.

    BI: Na sua avaliao, qual hoje o maior desafo para ospovos indgenas do Xingu?Carmen:Eu vejo em Mato Grosso, de 1970 pra c, o

    nmero de municpios que apareceram em torno doParque do Xingu. Os ndios reqentam essas cidades eentem uma necessidade crescente de ter dinheiro, mesmo

    que no seja para consumo com utilidades, mas para umconsumo normal. A Funai pode at estar presente, masnaquela lentido, naquela burocracia de todo rgo estatal.Quando chega o auxlio, a coisa j oi. Ento, eu acho quea questo econmica o maior desafo.

    BI: Quais as conseqncias da maneira como esse contatoest sendo estabelecido com a sociedade envolvente?Carmen:Quando os ndios comearam a ser cooptados,principalmente onde tinha madeira de lei para ser retirada,a gente me refro a antroplogos e Funai vinhacom essa histria de que no podia tirar madeira. Masambm no oerecia uma alternativa. Ns nos eximamos

    de discutir o problema. O resultado oi que os ndiosoram cooptados pelas madeireiras, pelos azendeiros,por empresrios e ns perdemos essa batalha. Agora, halgum tempo, os ndios esto alando em turismo em terrandgena. Se no fzermos nada a respeito, ns vamos fcar

    mais uma vez melindrados. Eu acredito que a Funai tenha

    condies de encontrar uma soluo para isso.

    BI: Devem existir outras ormas das comunidades tiraremeu sustento, no?

    Carmen:Sim, existem. No Alto Xingu, por exemplo,os ndios vendem mel. Mas o programa econmico deveenvolver pesquisa, educao, ofcinas e suporte tcnico.Agricultura, por exemplo, no uma opo para eles.Porque azer monocultura no interessa. Agora elesesto com essa histria de turismo. Mas turismo em terrandgena caro, para poucos. Tem de ser antecedido

    de ofcinas que expliquem o que turismo. preciso quehaja restries srias para isso. O que os ndios tm de

    novos desaos

    entender que o turismo no algo para sangrar a pessoa

    que veio. No porque eu sou estrangeiro, que eu voupagar mais. Hoje assim l no Xingu: um preo parabrasileiro e outro para estrangeiro.

    BI: Ento o turismo j unciona no Xingu?Carmen:Sim, s no sei se unciona direito. Tem deter uma fscalizao para ver se esto entrando drogas,bebidas alcolicas... Era preciso preparar os ndios paraesse tipo de empreendimento. Se amanh eu e vocquisermos abrir uma pousada, ns vamos ter de azer umcurso para nos prepararmos para isso. Por que o ndiono iria precisar? Eu acredito que haja possibilidade, masacho tambm que a Funai deveria tomar a dianteira desseprocesso com todo o cuidado que se deve ter.

    BI: Que tipo de cuidado?Carmen:O turismo no pode ser aleatrio. No pode terdrogas nem lixo. Tem de ser profssional. Outro pontoimportante a participao de toda a comunidade, pormeio de representantes. As decises no devem fcarrestritas a um grupo pequeno de grandes lderes. O lucrodeve ser bem dividido. Para o turista, preciso azer

    algumas coisas tambm primeiros-socorros, pessoascapacitadas para esse tipo de atendimento, verba parareposio de medicamentos. Isso tudo s se consegue comofcinas. Ainda assim, seria necessrio ter uma pessoavolante, que osse s aldeias de tempos em tempospara observar o andamento do projeto. Esse tipo deacompanhamento necessrio.BI: O contato com os municpios em torno do Parquedespertou a necessidade de ter dinheiro. Como a relaodos ndios com essas cidades?Carmen:As maiores cidades em torno do Xingu soCanarana e Sorriso essa segunda tem a maior

    PARQUE INDGENA DO XINGU

    AdemirRodrigues

    produo de soja. Os ndios esto cercados por pessoasque podem acilmente seduzi-los com dinheiro. Porisso, precisam ter uma educao politizada pra queeles entendam o que est em jogo. Por exemplo, nocaso da construo de uma hidreltrica, no se podeser contra por ser contra. preciso saber o que umempreendimento como esse pode causar.

    BI: Voc prope apoiar coisas que so polmicas, comoo turismo. Existe u m racha no indigenismo brasileirocom relao a como tratar essas questes?Carmen: Isso uma bobagem. preciso ver qual asituao dos ndios no Brasil. Em vrios lugares, aaldeia no tem mais maloca, e sim casinhas. Eu nosei o que isso representa para a vida em coletividade,

    mas deve signifcar alguma coisa. Eu at diria que possvel, um dia, as aldeias terem casas de alvenaria,carros, computadores... Mas preciso manter o bsico:o respeito s organizaes sociais, ao casamento... muito delicado, porque essas inovaes sempreacarretam dispndio de dinheiro, e os ndios esto nessaase de querer dinheiro.

    BI: Como se d a organizao poltica dentro do Xingu?Carmen: Se tiver um inimigo maior do lado de ora,eles se juntam. o caso da hidreltrica [ParanatingaII]. Todos se uniram para lutar contra aquilo. Mas,se no tiver esse in imigo maior, tem uma politicagementre eles que muito orte. Um Kamayur olha umJuruna e lembra que aquela amlia matou o av delee tal. Quando existem razes histricas que separamos povos, a unio no cotidiano muito dicil. Issoacontece com qualquer sociedade.

    BI: Mas so apenas os atores histricos que intereremna relao entre eles?Carmen: Tem o prprio convvio tambm, com as

    disputas menores. Outra coisa que a Antropologiadiscute que, quanto mais voc se parece com outrapessoa, maior o seu desejo de se dierenciar dela. Vocquer ser voc, a nica. Eles tambm querem ser osnicos. Isso no impede que haja mil casamentos entreeles, mas os conitos existem.

    BI: Como a Funai pode lidar com essas disputas internas?Carmen: Abrindo essa possibilidade para todo oParque. S poderiam azer turismo as comunidadescredenciadas pela Funai. O ideal mesmo seria construiruma estrutura que fcasse ora da aldeia. muitodicil controlar a educao dos turistas; eles entram

    nas casas dos ndios como se estivessem entrando numshopping. Os ndios sentem isso, como qualquer umde ns sentiria. Aastando o alojamento da aldeia,se profssionalizaria mais a coisa. Ca so contrrio, oturismo invade o privado e mistura-se com a vidacotidiana da terra indgena. Outra coisa que a Funaipoderia azer seria levar inormaes de experinciasque deram certo para eles.

    BI: Como fca a produo cultural com o turismo?Carmen: Vou alar mais dos Kamayur porque passeimuito tempo com eles. Na dcada de 1980, eles estavamvivendo um problema grande com relao cultura; osndios estavam usando muita coisa que no azia partedaquele universo. Agora que eles esto pensando nessa

    coisa do turismo, est havendo umrevival cultural. Aescola, por exemplo, um espao muito interessanteporque onde as meninas aprendem todas as cantigasdas estas. No undo eles encaram a modernidade como apoio do antigo. claro que a cultura vai mudando,mas essa metamorose incorpora o passado para quepresente se torne vivel. Algum pode dizer que s para ingls ver. Mas, enquanto isso no mudar aestrutura amiliar, as relaes de trabalho, as lideranas,no interere.

    BI: At porque no se pode querer que as pessoasparem no tempo...Carmen: Claro que no! Qual a grande dierenaentre o municpio de Canarana e a sociedadeKamayur, por exemplo? Eu diria que so as relaesde trabalho e a contagem do tempo. Os ndios no tmuma relao capitalista, do patro que explora o outro.Mas qual ser o uturo deles, se o Brasil um pascapitalista? Eu acho que p ossvel ter um capitalismomais enriquecido, mais generoso. Quando mudaremas relaes de trabalho, que hoje so baseadas no grau

    de parentesco, que os ndios possam trabalhar comcooperativas. So ormas mais avanadas de eles sesustentarem. O que no pode larg-los porque oconsumismo tem uma ora destruidora: o dinheirocil que leva a um consumo cil. por isso que eupenso que cursos seriam interessantes para os ndios,para tratar questes como a economia solidria. Temosque deixar o preconceito de lado e abrirmos portas paraum caminho menos alienante. O importante manteressa idia de comunidade, de u m ter responsabilidadeem relao ao outro. Essa uma viso socialista. AFunai tem de se aproximar de pessoas que possamcontribuir para isso.

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    ENAWEN-NAWr ua

    pescadoresde espritoChristiane Peres

    Fotos: Juvenal Pereira

    Na subida do rio Juruena, quase na divisaentre Mato Grosso e Rondnia, um grupo de20 homens Enawen-Naw celebra dentro decanoas a jornada de trs meses de pesca queabastecer um dos seus pr incipais rituais: oYkwa.Uma cerimnia em homenagem aos Yakairiti,espritos do subterrneo que, segundo a crena, soresponsveis por todas as coisas ruins.

    A busca pela paz entre o universo do subterrneoe o do homem muito bom como se autodenominamos Enawen-Naw az com que todos os anos,durante sete meses, eles realizem o rito sagrado dapesca, da plantao da mandioca, da oerenda aos

    Acima, conronto entreYkwa e Harikali marca oncio do ritual direita, pescador azoerenda aoYakairiti

    espritos e da diviso da comida na nica aldeiada comunidade, localizada a 200 quilmetros domunicpio de Juna (MT). um tempo de renovao danatureza para um povo que tem nos mistrios de suascrenas a certeza de uma vida em harmonia.

    O ritual repete-se em ciclos que respeitam a pocada pesca nas barragens, do plantio e da colheita damandioca. Tudo az parte de um processo que comeacom o fm da piracema, perodo em que os p eixessobem o rio para a desova, e termina com a satisaodos Yakairiti. O Ykwa mistura-se, dessa orma, com arotina dos ndios, que explicam suas crenas pela epelo medo. Os Yakairiti fcam bravos e vo matar as

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    Durante as tardes, avez dos anftries da esta

    agradecerem aos espritos

    as amlias dos 450 Enawen-Naw. Em rente aocorredor de entrada fca a Casa das Flautas, localreservado dos homens, onde, alm do instrumentoutilizado nos rituais, est a representao de tudo que sagrado para eles: os espritos.

    Lado a lado, os Ykwa, como passam a serchamados os pescadores, batem os ps no cho,dando ritmo dana. Carregando grandes cestos

    repletos de p eixe, organizam-se em fla e entramna aldeia com suas oerendas. A encenao da lutareconstitui o passado desse povo que, por muito tempo,oi hostilizado pelos vizinhos Cinta-Larga. A lutasimboliza, na sua perspectiva, a batalha entre o bem eo mal, em que os responsveis pela esta medem ora edo incio ao estival mstico.

    Na madrugada, mais gritos. Parecem em estadode xtase proundo. Jogam bebidas e comidas pelocho, na rente das malocas e em cima de quem estiverpor perto. Pedem que nada alte quela comunidade eque a artura esteja presente at o prximo encontro.Regadas a beijus,keter (tipo de mingau base demandioca) emara (mistura de gua com mel de abelhasilvestre), as primeiras oerendas duram at a manh dodia seguinte.

    So nas noites de ritual que os homens semeiamas primeiras ramas de mandioca e rezam para a plantaque chamam de mandioca me. Segundo a lenda,a primeira mandioca do mundo era uma menina quepediu me que a enterrasse at o pescoo e ao paique sempre lhe trouxesse peixe. Assim, ela produziriamandiocas para que no altasse comida amlia. Umdia, porm, uma mulher da etnia arrancou suas razes.A menina morreu e, a partir da, as mandiocas nonasceram mais sozinhas e os homens oram obrigados aplant-las todos os anos.

    crianas e trazer doenas, se algum deixar de plantarmandioca e de trazer o peixe. Por isso, no podemosdeixar de azer. sagrado, conta Xayoene, porntermdio de um intrprete. Ele um dos pescadores

    que, pacientemente, tentam explicar o complexo sentidodesse ritual, ainda p ouco estudado pela Antropologia.

    Os Enawen-Naw tm um convvio recente coma sociedade envolvente. O primeiro contato ocorreu em

    28 de julho de 1974, com o padre Thomaz Lisboa e omissionrio jesuta Vicente Caas. Mas esse choquecultural no ez com que perdessem seus costumes ea inuncia do portugus ainda mnima na aldeiaMatokodakwa. Poucos entendem o idioma nacional eexpressam-se na lngua salum, da amlia aruak, o queaz com que a tradio seja ainda mais preservada.

    Encontro marcado Nas guas do rio Iqu, umdos auentes do Juruena, os p escadores eneitam-secom jenipapo, urucum e argila. As palhas de buriti eas sementes de tucum do orma ao traje usado poreles. Penas negras e cintilantes de mutum servem paraeneitar um grande cocar. uma preparao minuciosae cada detalhe precisa ser respeitado para que oequilbrio entre o subterrneo e o terreno seja mantido.

    Os preparativos continuam durante a caminhadaat a entrada principal de Matokodakwa. A doisquilmetros da chegada, os gritos comeam. Soagudos e prolongados. O som a senha. Aviso aos quefcaram na aldeia que o ritual se in icia para todos. Oalvoroo de mulheres e crianas ao ouvir o barulhoinaliza a importncia do momento por vir.

    O grande ptio no centro da aldeia ser palcodas encenaes e danas rituais pelos prximosquatro meses tempo que duram oerendas, cnticose agradecimentos. Em volta, dez malocas abrigam

    ENAWEN-NAW0

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    esquerda, pescadorrecebe sal vegetal

    produzido nos meses depreparo da esta

    Abaixo, rezas e cantosdo o tom do ritual

    Da mandioca e do peixe Nada pode altar duranteas celebraes. Por isso, nos trs meses de pescaria dosYkwa, cabe s mulheres a preparao de toda a comidaque ser servida. A mandioca usada para azer os beijus eos dierentes tipos de mingau plantada na roa coletivae s pode ser manuseada pelos escolhidos para fcar naaldeia e preparar a chegada do ritual: osHarikali. So elesos responsveis por essas plantaes e, desde que so eleitos,do incio ao trabalho de derrubada, queimada, limpezae plantio da roa. Assim que oi escolhido pelos espritose pelo paj para azer parte do grupo anftrio da esta, ojovem Kamamene engrossou o grupo dosHarikali e ajudouna plantao da mandioca. Pelos prximos dois anos, ele eoutros 19 homens estaro incumbidos desse cuidado.

    Todo o mundo tem sua vez de serHarikali. Pragente, tudo importante. Agora o momento de botar sa bebida para o Ykwa, cuidar pra que no alte comida,relata Kamamene. de responsabilidade doHarikalitodaa estrutura da esta. Nunca alta comida. A gente j deixatudo separado para a esta. Festejamos bastante, que parafcarmos bem protegidos.

    Apesar da abundncia de alimentos na hora deestejar, para eles nunca h o bastante. Enquanto osHarikalidizem que a produo nas roas oi escassa, os Ykwadizem que no conseguiram trazer peixe sufciente paraagradar aos Yakairiti. quase um pedido de desculpas.Uma justifcativa para que esses espritos no pensem queos Enawen-Naw esto sendo ingratos. Mas essa satisaodos espritos tambm no dura muito. Logo aps as chuvas,

    eles vo querer ser agradados novamente. Tempo de asamlias se reorganizarem, as tareas serem distribudase o trabalho nas roas e nas barragens recomear, para amanuteno do equilbrio no cotidiano dos Enawen-Naw.

    ENAWEN-NAW 3

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    soa osNDIO DO BURACO

    vida em ugaFelipe Milanez

    Fotos: Arquivo Funai

    O sul do estado de Rondnia tem uma aparnciatriste nos meses da estiagem, que vai de maioa outubro. Em setembro de 2006, durante uma

    expedio da Frente de Proteo EtnoambientalGuapor, da Funai, na regio de Corumbiara, asqueimadas eram tantas que deixavam um espessonevoeiro permanentemente sobre as longas planciesdesmatadas. No se enxergava poucos metros rentesem que a viso fcasse embaada. Numa paisagemsem cor, apenas negro e cinza, troncos retorcidos decastanheiras jaziam no curto horizonte que maisparecia um gigantesco cemitrio do que a Amaznia.Mesmo no auge do dia, o sol que transparecia atravsda umaa era de um vermelho osco. No ar, umcalor seco e spero. Ao longo de uma estrada de terracastigada por pesados carregamentos de madeira, que

    maltratava a caminhonete que transportava a equipeda Funai, alguns blocos de mata virgem apareciamde tempos em tempos, como ilhas de resistncia,intensamente densas e verdes. Nesses resqucios demato, as rvores so altas, imponentes, a desafar adestruio assustadora que as circunda.

    Dentro de uma dessas ilhas de oresta amaznicanativa, cada vez mais rara, a expedio da Funai deuincio, entre os dias 10 e 13 de setembro, busca devestgios recentes de um ltimo indgena isolado naregio de Corumbiara, o ndio do Buraco assimchamado porque, no centro de suas moradias, hsempre um buraco proundo. Ele oi visto pela primeiravez, ofcialmente, na seca de agosto de 1998, pelosindigenistas Marcelo dos Santos, atual coordenador da

    Coordenao Geral de ndios Isolados (CGII), e A ltairAlgayer, que hoje comanda a Frente Guapor, naqueletempo chamada Frente de Contato do Guapor.Depois dessa apario, devido s graves ameaas queele sore por parte de madeireiros da regio, oramdesencadeadas constantes buscas, na tentativa de seestabelecer contato todas elas rustradas. A partirde ento, o papel da Frente passou a ser a vigilnciae o monitoramento da rea, de orma a garantir aintegridade sica do ndio.

    A expedio, chefada por Algayer, conseguiuconfrmar as condies atuais de vida do ndiosolitrio e seu provvel local de moradia. Levando-se em conta as possibilidades de extermnio que eleatravessou ao longo da vida e o ato de ser o ltimoremanescente de um grupo desconhecido, essesvestgios encontrados assumem grande importnciae enchem de estmulo quem luta pela sobrevivnciasica e cultural desse homem.

    Marcas da existncia Com habilidade e vivnciano mato, Algayer conseguiu encontrar uma clareiraaberta poucas semanas antes, com dezenas de rvores

    derrubadas, que indicava o incio dos trabalhos para umaroa. Nas pontas dos galhos quebrados, as olhas aindaestavam verdes. Os cortes tinham sido eitos por ummachado afado provavelmente um presente deixadopor uma expedio anterior. Algumas rvores de cauchotinham seus caules grosseiramente marcados para aextrao do ltex inamvel, retirado poucos dias antes,possivelmente para ser usado como lamparina.

    Com isso, a gente pode notar que ele aindaest vivo e deve estar bem de sade para ter eitoessas marcas e essa derrubada, analisava Algayer.Nas proximidades do local dos rastros, uma maloca

    antiga, j abandonada, com tocos de paxiba fncadasno cho como paredes. O teto j havia cedido e, nointerior, estava o surpreendente buraco de todas as suasmoradias, proundo e misterioso.

    As valiosas inormaes dessa ltima expediocontribuem para o processo de regularizao undiriada rea. De acordo com o artigo 231 da ConstituioFederal de 1988, a Funai responsvel pelo bem-estar de todos os povos indgenas do Brasil. Isso incluiregularizar a posse das terras tradicionais bem comogarantir a proteo do territrio e a integridade sicade seus habitantes. H mais de 60 indcios da existnciade grupos indgenas isolados no Pas. A grande maioriaest em terras indgenas j demarcadas, algumas parao uso exclusivo de grupos sem contato. Como no casodo ndio do Buraco, vrios desses grupos esto emsituao vulnervel e correm risco de contato violentocom invasores. Pela nova poltica da CGII, o contato eito apenas quando outras ormas de proteo se tornaminviveis por isso, as rentes de contato passaram a sechamar rentes de proteo etnoambiental.

    A primeira viso Os indigenistas Santos e Algayer,estarrecidos com a violncia que assolava a regio deCorumbiara nas dcadas de 1980 e 1990, passaramvrios anos em expedies constantes para vasculhartodo punhado de mato em que esbarravam. Ouviamde pees de madeireiras boatos desconexos de que poraquelas bandas havia ndios bravos, arredios. No fnalde 1995, conseguiram realizar os primeiros contatoscom um desses grupos isolados. Entre os rios PimentaBueno e Corumbiara, localizaram uma p equenaamlia de ndios Kano.

    Na pgina anterior,um dos poucos

    registros emvideo do ndio doBuraco, eito pelo

    documentaristaVincent Carelli

    Ao lado, vestgiodo buraco de uma

    antiga casa doindgena

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    Bastante assustados, os irmos Tiramant ePur oram ao encontro da equipe da Funai. Emeguida, levaram Santos e Algayer a sua aldeia e

    os apresentaram me e tia. Eram os ltimosremanescentes dos Kano.

    Um ms depois, os Kano guiaram a e quipe daFunai at uma aldeia localizada a poucos quilmetrosda sua. Nessa outra aldeia, ento desconhecida, oirealizado o contato com seis ndios Akuntsu. Elescarregavam em suas costas marcas de tiros, e os maisnovos pareciam apresentar distrbios emocionais, poisfcavam extremamente agitados na presena de brancos.Com a ajuda de um ndio Mequm, que serviu dentrprete, os Akuntsu admitiram ter sorido massacres

    e que quase todo o seu p ovo tinha sido assassinado a

    iros. Nessas conversas, tambm deixaram claro quedeveria haver ainda outro grupo indgena na rea.

    Os indicativos materiais da existncia do ndiodo Buraco s oram encontrados quando as buscas sentensifcaram, aps o contato com os Akuntsu e os

    Kano, amplamente divulgados pela mdia. A equipeda Funai temia que os ndios soressem uma represliapromovida por azendeiros alarmados com a repercussodos recentes contatos. A demora para encontr-loaumentava a agonia de um trabalho contra o tempo. Ondio do Buraco corria grave risco de ser exterminado.

    Em outra poro de oresta, Santos e Algayeroparam com uma casa de telhado de duas guas,

    cobertas de palhas de aa, rodeada com varas enfadasna terra. No interior dela, havia um buraco com mais ders metros de proundidade e um de dimetro o queamais tinham visto antes. Na mesma hora, deram-se

    conta de que estavam diante de uma etnia desconhecida.Na primeira vez em que houve contato visual

    com indigenistas da Funai, o ndio caminhava poruma trilha de caa para verifcar se sua armadilhainha capturado algum queixada. Era o ms de agosto

    de 1998, e o ar estava intragvel pela umaa e pelapoeira. Os indigenistas j estavam h alguns diasna mata. Em certo momento, escutaram barulhosde olhas e, em silncio, acompanharam o som, atchegarem a uma palhoa, diante da qual ele estavaentado. Quando oram ao seu encontro, ele entrou

    na casa. Parecia bastante assustado. A tentativade contato se estendeu por horas. Os indigenistasentavam alar, riam, oereciam prendas, mas no

    conseguiam convenc-lo a sair. Ao contrrio, eleapontava uma echa atravs das palhas. A equipe nodesistiu e continuou em rente maloca. Os presentesamarrados a uma vara eram dilacerados por aco.

    Se algum se aventurasse a entrar ali, certamentereceberia o mesmo tratamento, escreveu Santosno relatrio dessa expedio apresentado Funai.Sob a mira do ndio, a equipe se retirou do local omomento no era adequado para o contato. Poucosmeses depois, em nova expedio num local prximo,houve o segundo contato visual dos indigenistas como ndio. A resistncia dele era a mesma. Plantadosem rente maloca, semelhante anterior, cuidavampara no assust-lo. Em vo. Dessa vez, uma echa oiatirada contra o cinegrafsta da equipe, o indigenista

    Vincent Carelli, passando perto de seu trax. Houveoutras tentativas de contato, sem sucesso.

    Aps a reestruturao da CGII, no incio de2006, a Funai decidiu respeitar o desejo do indgena depermanecer isolado. Quatro ou cinco vezes por ano, soorganizadas expedies com o objetivo de fscalizar area e observar as condies de vida do ndio solitrio.

    A intererncia no territrio ora os gruposisolados a estabelecerem, em algumas situaes, onomadismo como mecanismo de sobrevivncia. Nessascircunstncias, a difculdade da equipe de localizaoaumenta, uma vez que os indgenas desenvolvema estratgia de camuar sua presena na regio. O

    da bala muitas vezes se sobrepe s leis do Estado de

    direito, desenhar um territrio para ele tem sido umdesafo ideolgico imposto aos servidores da Funai,especialmente queles que trabalham no local e soconstantemente ameaados de morte, como o casode Santos e Algayer.

    Inicialmente, a rea de mata onde o ndioperambula oi interditada pela Justia Federal em 1997.A proteo judicial oi prorrogada e a Funai iniciou oprocesso administrativo de demarcao. Pela lei, a terraem que vive deve ser de seu usuruto. De acordo coma diretora de Assuntos Fundirios da Funai, NadjaBind, a terra de propriedade da Unio, e ele devepermanecer ali at o fm de sua vida. Caso venha aalecer, a rea continuar de propriedade da Unio.Da mesma orma, o ato de ser uma nica pessoano deve intererir nesse processo. Mesmo um nicoindivduo pode ser considerado como povo, se ele oremanescente de sua cultura e etnia, condio que odistinga da coletividade nacional por seus costumes etradies, defne o procurador geral da Funai, LuizFernando Villares.

    A poltica da atual coordenao da CGII

    intransigente no que diz respeito livre iniciativa decontato com o indivduo. ele quem deve ter a opode azer contato com a sociedade envolvente. Em seurelatrio sobre o contato visual que teve com o ndiodo Buraco, em 1998, Santos descreveu: Ele, no seudesespero e dio, no deseja neste momento dialogarou receber a visita de quem quer que seja. Esse oseu direito, pois ele, mais do que qualquer um, sabe oque oi perder seus parentes e seu povo recentementeenvenenado e baleado pelas mos dos mesmosque agora aparecem como amigos para lhe oertarerramentas e comida. Ele est s e parece que quermorrer assim. seu direito.

    Um nico indivduo pode ser considerado como povo, se ele

    o remanescente de sua cultura e etnia, condio que o distinga

    da coletividade nacional por seus costumes e tradies.

    desenvolvimento das atividades de localizao pode

    ser entendido como uma perseguio, colocando asequipes em risco, explica Sa ntos.

    Esses atos arredios so plenamentecompreensveis para quem passou os ltimos 20 anosem permanente uga. Na regio, especula-se queseu grupo possa ter sido envenenado por volta de1985. Os ndios, que mantinham relaes cordiais detrocas com uma azenda, oram surpreendidos porum novo administrador que, cansado do escambo,teria misturado veneno a uma poro de acar dadacomo presente. Depois disso, nenhum ndio apareceumais. Outra evidncia de que seja um remanescentede massacre uma aldeia destruda encontrada porSantos e Algayer, em 1996. No interior da FazendaModelo, um grupo de pees limpava uma rea,supostamente para apagar vestgios indgenas. Asrodas de trator amassavam a estrutura das casasque tinham, no interior, o mesmo buraco. Restosde echas estavam quebrados no cho. Ficamosindignados, achamos que tinham matado todos osndios, conta Santos. Em depoimentos de moradores,dados sob anonimato, Santos e Algayer ouviram

    que jagunos invadiram a aldeia com tiros ao cu,botaram os ndios para correr e atearam ogo em tudoque era de cultura indgena. No se sabe se nesseepisdio algum morreu. O trauma dos brancos, noentanto, fcou na pele desse ltimo indivduo.

    Senhor de sua terra Desde que oram encontradosos vestgios que comprovam sua existncia, o ndiodo Buraco passou a enrentar, sem saber, umaturbulenta batalha burocrtica, no seio do Estado,pela sua sobrevivncia sica e cultural, na qualdiversos atores debatem a proteo e a garantia de umterritrio onde ele possa viver. Numa terra onde a lei

    No meio da mata, ele observao inimigo ( esquerda), instantecaptado por Vincent Carelli

    NDIO DO BURACO

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    Bakw tem quatro anos, uma linda crianaKano. Como muitas outras, gosta de brincar de bola,anto com as de plstico, que ganhou de brancos,

    quanto com as de caucho, eitas por seu tio Pur.Tambm se diverte, ao atirar echas para o alto e nasrvores mais que uma diverso, um treinamentode vida , correr no mato e pular no colo da me,Tiramant. O pai, ele ainda no sabe quem .Tiramant, quieta, tmida, observadora, no gostade alar a respeito do pai do menino, no se interessaem explicar aos brancos. Na pequena aldeia kano daTerra Indgena Omer, Bakw vive com a me e o tio.As outras pessoas que conhece so os uncionrios doposto da Funai e os seis indgenas Akuntsu que, comoele e sua amlia, sobreviveram a massacres ocorridosnas ltimas dcadas no sul de Rondnia. Bakw uma esperana de uturo, que at poucos anos atrsparecia no existir.

    Os nove indgenas da T. I. Omer representamum fnal relativamente eliz, considerando-se o

    que poderia ocorrer a qualquer ndio sem contatoque vivesse no sul de Rondnia. Os contatos comndigenistas da Funai, eitos em 1995, tornaram-se

    essenciais para a proteo da rea que habitam. Foi anica orma encontrada para dar conta da truculnciados azendeiros da regio. A relao com servidoresda Funai mostrou a esses ndios que nem todobranco igual. Eles ainda no entendem o papel eo uncionamento do Estado, mas de alguma ormaabem do poder que ele tem para administrar conitos

    como os que tanto os aigiram.Baba, ou Konibu, o lder dos seis Akuntsu. Sua

    dade aproximada 70 a nos. No cotovelo, uma cicatriz

    circular mantm viva a lembrana do sorimentoque viveu. Com gestos de mmica intercalados comalgumas palavras de sua lngua tupari, ele consegueexplicar que oi perseguido dentro da aldeia, ugiu e,ao contrrio das dezenas de pessoas de seu grupo, oiatingido apenas por um tiro. A marca muito parecidacom a que Popak, outro homem do grupo, de cerca de40 anos, tem nas costas. Segundo M arcelo dos Santos,indigenista da Funai que ez contato com o grupo, aviolncia contra esses ndios atingiu seu pice com ainvaso de sua aldeia por volta de 1985. Depois desseepisdio, os poucos sobreviventes Akuntsu passarama viver escondidos no mato e, com o passar do tempo,oram se tornando gente invisvel. Uma situao ques mudou depois do contato com a Funai, em 1995.

    Morte e dor Foi no perodo dessa dispora, emconstantes andanas pelo territrio, que os Akuntsupassaram a conviver mais com os Kano. Alm deviverem perto uns dos outros, o ato de compartilharem

    o mesmo temor dos brancos aproximou os doisgrupos. Os Kano remanescentes no possuem sinaisde tiro como os Akuntsu, que carregam as marcasda crueldade a que oram submetidos. A histria dosKano ainda um mistrio. As tradues precriasde seus relatos, sempre diceis de serem lembrados econtados, indicam que, aps a matana dos homensda comunidade, as mulheres decidiram abandonar avida. Ingeriram veneno, que tambm deram s suascrianas. Sem uma razo aparente, sobraram dosKano a me de Pur e Tiramant, Iamoi, e uma desuas primas, Waimor. Ningum mais, de um grupode aproximadamente 50 pessoas.

    Mesmo depois do contato, em 1995, o dramadessa amlia continuou. Obrigados ao convvio,a relao passou a ser tensa entre os Kano e osAkuntsu. Em 1998, em uma de suas constantesvisitas aldeia dos Akuntsu, Waimor Kano oiassassinada pelos ndios. No se sabe a razo. Adepresso amiliar que se seguiu, acompanhadada impossibilidade de vingana, oi agravada porum outro ato. Quando os Kano comeavam a sereazer da perda de Waimor, a matriarca Iamoie um neto de seis anos (nascido pouco antes docontato), ilho de Tiramant e, possivelmente, dePopak Akuntsu, aleceram por causa da malria,exatamente dois meses depois do nascimento deBakw, em janeiro de 2002. Dos ltimos seis Kano,trs aleceram.

    Entre os Akuntsu, a ora da natureza trouxeo desastre para os sobreviventes. Em meio s chuvasdo inverno de 1999, uma rvore caiu sobre a malocade Konibu e sua amlia (a mulher Nontobia, as

    ilhas, Inuntei e Ink, e a velha matriarca Ururu).Ele teve o mur partido e uma neta de apenassete anos, ilha de Popak com Ink, aleceu. Ador dividiu o grupo. Konibu teve de passar doismeses em recuperao ps-operatria na cidadede Vilhena ele jamais tinha visto uma cidade nasua vida. As mulheres entraram em desespero echoravam todos os dias no posto da Funai, esperade notcias. Popak tentava tocar a bola pra rente,caando, dizendo s mulheres que o mundo nohavia acabado, recorda o indigenista Altair Algayer,naquele tempo chee do posto da T. I. Omer eombro amigo de Konibu.

    Renascimento A vida e a morte entre essas

    duas comunidades indgenas remanescentes do sulde Rondnia desperta questes undamentais daexistncia. Apesar da dor, so donos, em sua culturae vontade de beleza, de uma ora de viver mpar.Todo dia, toca auta, chora e dorme, conta Pur emportugus, com difculdade, sentado em sua rede. Aauta de seis uros, de dierentes tamanhos, tocadacom maestria dentro da organizada maloca que dividecom Tiramant e Bakw. Veste roupas ganhas. Einteressa-se por tudo o que cultura dos brancos.Conta que desde pequeno oi assim. Subia nas rvoresaltas e passava o dia espiando os pees a tocar o gado.Ficava quieto. Nem sua me podia saber. Ela dizia queos brancos eram maus, que deles Pur no podiapegar nada, nem os plsticos que catava no cho paratransormar em colares. Levou uma bronca da me,Iami, quando, um dia, trouxe dois brancos para aaldeia, junto com Tiramant. D emorou a convenc-lade que, daquela vez, eles eram bons.

    Marcelo dos Santos e Altair Algayer, juntocom o cinegrafsta Vincent Carelli, mostraram paratodo o Pas a beleza dos Kano e o sorimento dos

    indgenas da regio. Era agosto de 1995, perodode seca. A j alecida Waimor guiou-os at osAkuntsu. Convenceram Popak de que aquelesbrancos eram bons, de que o grupo no era igual aosassassinos. Popak depois convenceu o chee e xamKonibu, e o grupo rendeu-se. De uma vida ugitivae nmade, passaram a habitar o espao de matoonde esses homens bons diziam no haver perigo.Compreenderam que deviam evitar os pastos e ospees. E que nessa terra, homologada em abril de 2006,poderiam viver da orma como bem entendessem.A guerra havia acabado. O medo constante e a ugapoderiam, enfm, dar lugar vida.

    a vida depois domassacre

    esquerda, Bakwrecebe o carinho da me,sobrevivente KanoAo lado, cotidiano demulheres Akuntsu

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    a ilha dosaruansFelipe Milanez

    Fotos: Arquivo Funai

    Regio oeste do estado de Tocantins MunicpiosPium e Lagoa da Conuso rea 377 mil hectaresPopulao cerca de 450 pessoas Etnia Java, Karaj e Av-Canoeiro Lngua karaj, tronco macro-j

    a maior ilha fuvial do mundo, repleta de lagose rios e de uma deslumbrante diversidadede fora e auna. A Ilha do Bananal chama aateno pela beleza, com longas pastagensnaturais intercaladas por reas de cerrado baixoe mata alta nas margens dos rios. Na estiagem,areias oas ormam lindas praias, escolhidaspelas tartarugas para a desova. Em meio a todaessa natureza, na bacia do rio Araguaia, vivem osAruan s. Seres mitolgicos, osAruan s preeriramviver num mundo subterrneo, em busca de artura

    e eternidade. Aqueles que vieram para a superciee transormaram em Java ou, como eles mesmose denominam, Itya Mahdu, o Povo do Meio, que

    vive entre o subterrneo e o cu. Alm de santurioecolgico, a Ilha do Bananal repleta de mitos queconciliam o encanto das paisagens com a cosmologiados povos Java, Karaj e Av-Canoeiro. Aconjugao destas perspectivas cultural e ecolgica enriquece ainda mais o Brasil com uma rea deproteo ambiental ormada pela sobreposio deerras indgenas ao Parque Nacional do Araguaia,

    criado em 1959, que ocupa pouco mais de um quartodos dois milhes de hectares da Ilha.

    Karaj, ndios Xerente e autoridades, como o presidenteda Funai (Fundao Nacional do ndio), Mrcio PereiraGomes, o embaixador da Austrlia, Peter Heyward, ealguns polticos, entre eles, Jos Hani Karaj, vereadorindgena do municpio de Lagoa da Conuso.

    Luta e reconhecimento Este o resultado de umaluta poltica de mais de 30 anos pelo nosso territriotradicional, lembrou, na abertura da cerimnia, ocacique de Boto Velho, Wagner Java. Liderana jovemna aldeia, Wagner passou a palavra para os mais velhos

    Miguel e Ronaldo, pessoas de destaque nessa batalha.Soremos muito com posseiros e invasores, e depoisainda tivemos de provar que cuidamos bem de nossaterra para poder viver nela, mostrar que sabemos comocaar e pescar com responsabilidade, afrmou Miguel.

    Como era rea de preservao, os ndios temiamque no pudessem viver ali do modo como sempreviveram, azendo roas, pescando, caando, o que causoua estranheza descrita pelas lideranas. Entretanto, numprimeiro momento, a iniciativa ecolgica constituiu-seem uma importante orma de proteo territorial. Aomenos difcultava a entrada desenreada de invasoresa seus campos, ideais para a pecuria. Apenas com a

    erra INWBOHONA

    Em 18 de abril de 2006 oi homologada a TerraIndgena Inwbohona, s margens do rio Java, dentroda unidade de conservao e logo a leste da TerraIndgena Parque do Araguaia. O parque indgena majoritariamente habitado pelo povo Karaj no lado dorio Araguaia, mas tem importantes aldeias dos Java,como Canoan. Essa nova ampliao de rea indgenadentro da Ilha vem englobar duas importantes aldeiasjava, Boto Velho e Txoud, alm da recm-criadaWahatna. Juntas, elas possuem 450 habitantes. Comoainda h outras comunidades java que fcaram ora

    de Inwbohona, j est em estudo de identifcaoo restante do Parque Nacional que ainda no terraindgena, no extremo norte, e que ser demarcado como nome de Utari Wyhyna-Hirari Berena.

    Na aldeia Boto Velho de Inwbohona, em 14de julho, doisAruans saram das proundezas daIlha para levar proteo e artura comunidade java.Cobertos por uma bela mscara de palha e penasde arara, dois homens representavam os espritose danavam pelo ptio central, acompanhados porduas meninas-moas. Tratava-se de uma esta nica:comemorar a homologao da terra. Alm dos Javada aldeia Txoud, compareceram cerimnia parentes

    Aruans tomam o ptioda aldeia na esta da

    homologao

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    Constituio Federal de 1988 oi possvel a transernciada posse da terra, que j era da Unio, para os ndios,o que serviu para mobiliz-los para a luta por seus

    direitos. Nas discusses polticas durante o processo dehomologao, prevaleceu a tradicionalidade da ocupao,prevista no artigo 231 da Constituio.

    Colonizao em etapas H centenas de anos osJava conhecem a sociedade nacional. Contudo, ato incio do sculo, preeriam o isolamento. Toparamcom bandeiras paulistas nos anos 1700, mas s oramcontatados dois sculos depois, pelo Servio de Proteoaos ndios (SPI), rgo antecessor da Funai. Coincidiu,nesse perodo, uma incipiente ocupao da rea porno-ndios. Durante a ditadura do Estado Novo, entreas dcadas de 1930 e 1940, o Governo de Getlio Vargasexplorou a imagem dos Karaj, dos Java e dos Xambio considerados povos irmos e alantes da mesmangua em meio ao ideal nacionalista que promovia

    projetos de colonizao. Abertura de estradas, pistas depouso e outras obras de inra-estrutura acilitaram aexpanso da agropecuria e aqueceram a especulaomobiliria. O impacto sobre os habitantes originrios dalha do Bananal oi desolador: violncia, disputas com

    posseiros, epidemias e uma triste perda populacional.

    De acordo com o estudo de identifcao da reaeito pelo antroplogo Andr Toral, o curso demogrfconegativo na vida dos Java somente oi invertido no incioda abertura poltica nos anos 1980, com um processo deretomada cultural que ortaleceu o grupo. Pela primeiravez na sua histria, os Java comearam a viver umempo de recuperao populacional. Os rituais voltaram

    a ganhar importncia na vida comunitria e, com oortalecimento de sua identidade, eles conseguiramambm dar incio retomada de algumas reasnvadidas. O conito estava conagrado, uma vez que,

    no pice da pecuria, a Ilha chegou a abrigar mais decem mil cabeas de gado e 700 amlias.

    Uma parte da explorao pecuria era incentivadapela poltica do SPI e, posteriormente, na poca daditadura militar, pela Funai, que intercedia junto aos

    azendeiros para arrendar terras e utilizar o dinheiropara investimento nas aldeias. Com a ajuda do MinistrioPblico, a Justia oi mobilizada para pr fm a essaprtica e determinar, legalmente, a retirada dos no-ndiosda Ilha. Entretanto, sem outra alternativa econmica,algumas comunidades continuaram permitindo apresena do gado em troca de dinheiro, assim comoaceitando a pesca e a venda do valioso pirarucu, hojeproibidas por lei. Mesmo sendo rea de preservao, oIbama local no conseguia impedir essa explorao. Coma obstinao dos mais velhos, como os caciques Ronaldoe Miguel, o caminho da degradao tomou outro rumo.Ronaldo, hoje em cadeira de rodas devido a um acidentede carro, est eliz por ter conseguido assistir garantia daterra java. Depois de tanto sorimento de nosso povo, odireito sobre o nosso territrio vai dar a chance pra gentede uma vida nova, afrma.

    Persistentes, os Java enrentaram batalhas semabrir mo de sua identidade cultural, que continua aditar o ritmo da vida comunitria. Este povo soube,como poucos, manter a integralidade de uma das maisricas culturas de nosso Pas, com luta e resistncia

    reconhecidas pelo direito nacional, disse o presidenteda Funai, Mrcio Gomes, na esta da homologao.Mostraram a toda a humanidade a grande habilidadeque possuem com suas longas canoas, o conhecimentosobre as guas, as cheias, a agricultura em terrenosdiceis, e encantaram desde os primeiros contatoscom a beleza de seus rituais e a riqueza de sua vidaespiritual, complementou. Hoje, o desafo dos Java conseguir implantar atividades econmicas queconciliem a satisao de suas necessidades com seumodo de vida tradicional, sem agredir a natureza.

    Sofremos com posseiros e depois ainda tivemos que provar que

    cuidamos bem de nossa terra para poder viver nela, que sabemos

    caar e pescar com responsabilidade.

    INWBOHONA

    Projeto de futuro Com a homologao, os Javaganharam nimo para buscar essas alternativas,segundo Ronaldo. Uma postura dierente das tentativasanteriores, que levou a uma explorao desenreada dosrecursos da Ilha e ainda seduz os mais novos. Segundoo decreto homologatrio presidencial, a administraodo Parque Nacional do Araguaia ser compartilhadapor Funai, Ibama e comunidades dos Java,

    Karaj e Av-Canoeiro. Recentemente, lideranasindgenas assinaram um acordo, comprometendo-sea interromper defnitivamente o arrendamento paraa pecuria, reconhecendo que a prtica traz poucosbenecios fnanceiros, em vista dos danos ao meioambiente e a sua cultura.

    A alternativa oerecida tem sido projetos devigilncia e de explorao sustentvel. O principalplano em curso e nvolve recursos da ordem deR$ 400 mil, oriundos do Projeto Integrado deProteo s Populaes e Terras Indgenas daAmaznia Legal (PPTAL) um fnanciamentodo Governo alemo junto Funai , aplicados em

    parceria com a Associao Ilha Verde, da aldeiaTxoud. O objetivo incentivar atividades que exijamum deslocamento constante pela Ilha, tais como apesca, a produo de mel e a colheita de material paraconeco de artesanato. Alm de acilitar a vigilnciae difcultar as i nvases, possvel extrair renda deorma sustentvel. A comunidade est empenhada emdiscutir novos projetos, afrma Henrique Cavalleiro,

    tcnico do PPTAL. J estamos conseguindo combateras caravanas, que so as levas de turistas que entram napoca de seca para pescar nos lagos da Ilha e saem del com toneladas de pirarucu, diz.

    Como seusAruans, os Java querem artura. Naesta da homologao, no altaram peixes moqueadose tartarugas, o prato mais apreciado, acompanhados dearinha de mandioca. Tinha tambm carne de gado,onte de protena j incorporada dieta do grupo.Sob a proteo dosAruans e puxados pelo cantadorJuarez Urai, os Java celebraram a reconquista de seuterritrio. Agora hora de esta, de comemorar e deolhar para rente, vibrava o cacique Miguel.

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    No meio do semi-rido nordestino, um povorenasce de um passado sorido e orgulha-se

    de poder expressar sua origem sem medo. Empleno centro do octgono que orma a TerraIndgena Kiriri est Mirandela: sua principal aldeia,localizada no noroeste da Bahia. l que osndios cultuam, semanalmente, ritos incorporadosdepois da reconquista de suas terr as.Todosos sbados, ao fm dos dias quentes do serto, acelebrao do Tortem incio. Eles vo danar ecantar em reverncia aos encantados, como chamamseus espritos protetores. Assim, durante horas emais horas de agradecimentos e oerendas, essacomunidade se reafrma como indgena, aps sculosde perseguies.

    o renascer de

    mirandelaChristiane Peres

    Fotos: Arquivo Funai

    Regio noroeste da Bahia Municpios Banza, Quijingue, Ribeira do Pombal e Tucano rea 12.300 hectaresPopulao aproximadamente 1.700 pessoas Etnia Kiriri Lngua portugus

    KIRIRI

    Os cnticos, hoje entoados em claro portugus, jque a lngua materna oi perdida nos idos de 1800, reerem-

    se, muitas vezes, histria de luta e resistncia desse povoque enrentou ortemente as investidas de colonizadores,azendeiros, posseiros e religiosos que tomaram suas terraslogo aps o Descobrimento. Desse perodo, s restaram aspequenas vilas coloniais que se transormaram em aldeias.Hoje, senhores do pedao de cho de onde oram expulsos,os Kiriri reconstroem sua histria, quase perdida no tempo.

    Em poucos dias, eles vo relembrar essesmomentos, ao estejarem 11 anos da reconquista deMirandela. O vilarejo vai acordar mais uma vez ao somde autas, chocalhos e zabumbas acompanhados porcnticos ritualsticos, para celebrar o eito ocorrido em11 de novembro de 1995.

    ndios Kiriri em 1968 e hoje,depois da retomada

    Um grito de protesto Aps sculos de resistncia,os Kiriri reconquistaram e reocuparam seu territrio

    central, que estava nas mos de no-ndios e j abrigavaum municpio inteiro. Mirandela o corao da TerraIndgena Kiriri, distante cerca de 20 quilmetros domunicpio de Ribeira do Pombal, importante centroeconmico da regio. At 1995, essa rea entre o agrestee a caatinga estava ocupada por posseiros e azendeirosque ali ergueram povoado, posteriormente elevado adistrito de Ribeira do Pombal. Na dcada de 1980, paradesespero dos nativos, a vila quase oi emancipada, oque a consolidaria como municpio e usurparia de vez osolo dos indgenas.

    A proposta chegou a ser colocada em votaona Assemblia Legislativa da Bahia. Os Kiriri

    erra

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    conseguiram, entretanto, que ela osse alterada, azendovaler o argumento de que aquela regio se tratava docentro da terra indgena destinada a eles desde 1700,quando o rei de Portugal destinou uma lgua emquadra a todas as aldeias do serto com mais de 100casais o que corresponde a uma rea de 12.320 ha.Dessa orma, ocorreu uma soluo intermediria: aemancipao do distrito, mas com a transerncia deua sede para o povoado de Banza, ncleo exterior

    rea indgena.A insatisao tomou conta de todos. Dos 13

    pequenos povoados que ormavam Banza, oito eramndgenas, somando 75% da rea total do municpio.

    Por isso, um estado crescente de tenso se estabeleceue Mirandela se tornou rente de resistncia da luta dos

    Kiriri pela reconquista de suas terras. Foi uma tragdia

    essa poca. A gente vivia passando ome, era maltratado,vivia como escravo. Mas um dia a gente sonhou queudo ia mudar e mudou, relembra o cacique Lzaro

    Gonzaga, que liderou a mobilizao pela retomada.Hoje o povo Kiriri visto como exemplo de luta

    para as demais comunidades indgenas localizadasna regio Nordeste. No espao de 15 anos, eles seestruturaram politicamente e promoveram, em fns dosanos noventa, a extruso de cerca de 1.400 no-ndiosque ocupavam suas terras, homologadas desde 1990.

    Serto bruto At que os ndios conseguissemrecuperar seu territrio, muita coisa aconteceu.Preconceitos, rixas, perseguies, mortes. Palavras tristes,mas que se tornaram comuns no vocabulrio dessesndgenas. Quando os colonizadores conquistaram

    o serto, ormando cidades e vilas, plantandocanaviais, extraindo metais preciosos ou criando gado,mpunham a autoridade do rei, diundiam a crist eransormavam ndios e negros aricanos em escravos.

    Cenrio que remonta a um passado distante; porm, no

    caso dos Kiriri, az parte de sua histria recente.Esses ndios chegavam a passar ome, pois suas

    plantaes eram insufcientes para o sustento de sua