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Brasil, qual é o teu negócio? Alita Tortello CAIUBY 1 Resumo Procurando explorar a questão da identidade no momento atual, este artigo traz uma breve seleção de textos hinos, poemas e letras de música que mostram como a construção da imagem da identidade cultural brasileira, iniciada principalmente na nossa geração Romântica, foi se alterando ao longo dos anos. A proposta tem como base o texto de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, em que o autor avalia se existe uma crise de identidade cultural na modernidade tardia, além de examinar aspectos contraditórios do conceito de descentração do sujeito e de seu lugar no mundo social e cultural. Palavras-chave: identidade cultural, modernidade, identidade brasileira. Abstract Trying to explore the issue of identity in the present moment, this article provides a brief selection of texts hymns, poems and lyrics that show how the construction of the image of the Brazilian cultural identity initiated mainly in our Romantic generation is changing over the years. The proposal is based on the text of Stuart Hall, The question of cultural identity, in which the author assesses whether there is a crisis of cultural identity in late modernity, while examining contradictory aspects of the concept of decentering of the subject and its place in the social and cultural world. Keywords: cultural identity, modernity, Brazilian identity. 1 Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e Doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro, 20241-040, Rio de Janeiro, RJ, [email protected]

Brasil, qual é o teu negócio? - baraodemaua.br · O sexo descompromissado e o consumo desenfreado . ... (1823), fazendo alusão às supostas batalhas vencidas. Também o ³Hino

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Brasil, qual é o teu negócio?

Alita Tortello CAIUBY1

Resumo

Procurando explorar a questão da identidade no momento atual, este artigo traz uma

breve seleção de textos – hinos, poemas e letras de música – que mostram como a

construção da imagem da identidade cultural brasileira, iniciada principalmente na

nossa geração Romântica, foi se alterando ao longo dos anos. A proposta tem como

base o texto de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, em que o autor

avalia se existe uma crise de identidade cultural na modernidade tardia, além de

examinar aspectos contraditórios do conceito de descentração do sujeito e de seu lugar

no mundo social e cultural.

Palavras-chave: identidade cultural, modernidade, identidade brasileira.

Abstract

Trying to explore the issue of identity in the present moment, this article provides a

brief selection of texts – hymns, poems and lyrics – that show how the construction of

the image of the Brazilian cultural identity – initiated mainly in our Romantic

generation – is changing over the years. The proposal is based on the text of Stuart

Hall, The question of cultural identity, in which the author assesses whether there is a

crisis of cultural identity in late modernity, while examining contradictory aspects of the

concept of decentering of the subject and its place in the social and cultural world.

Keywords: cultural identity, modernity, Brazilian identity.

1 Mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp e Doutoranda em Literatura Brasileira na

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 20241-040, Rio de Janeiro, RJ, [email protected]

1. Introdução

Os dilemas da contemporaneidade. O homem e sua relação com o mundo.

Nossas letras nacionais têm muito a dizer sobre isso. Vivemos intensas e rápidas

mudanças, e a sociedade passa por um processo de reestruturação de comportamento e

de pensamento, os quais tentam insistentemente se estruturar num terreno movediço.

Uma das questões mais caras atualmente é a da identidade. Dessa forma, o livro

de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade (2002), irá guiar

prioritariamente nosso caminho, mas algumas considerações de outros autores como

Gilles Lipovetsky, Zigmunt Bauman e Benjamin Abdalla aparecerão para contribuir

com essa reflexão.

Nosso objetivo é aproximar as considerações de Hall da realidade nacional,

mostrando como elas aparecem nas produções literárias e como a construção de uma

imagem da identidade cultural iniciada principalmente no Romantismo brasileiro foi se

transmutando até chegar aos tempos atuais. Para isso, fizemos uma enxuta seleção de

textos – hinos, poemas e letras de música – que irão ilustrar, ao longo do artigo,

algumas das percepções do caso brasileiro.

De início, apresentaremos uma compreensão geral do texto de Hall, pois nos

interessa trazer à tona os conceitos de identidade abordados por ele. Em seguida,

dividiremos nosso trabalho em duas etapas. Na primeira, nos deteremos sobre o

Capítulo 3 – “As culturas nacionais como comunidades imaginadas”, que trata do

conceito de nação. Traçaremos um paralelo entre as considerações aí estabelecidas e

alguns textos brasileiros que confirmariam as articulações propostas.

Em outra parte, iremos associar o Capítulo 4 – “Globalização”, a uma noção de

identidade brasileira mais contemporânea, vinculada aos acontecimentos principalmente

advindos do processo de globalização. Neste tópico, além de texto, mostraremos letras

de música nacionais.

Veremos, por fim, que a noção de “comunidade imaginada”, elucidada por Hall,

perdura e dialoga constantemente com os processos da modernidade e

contemporaneidade.

2. Sobre a Identidade

Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2002), Stuart Hall

começa explicando que a questão da identidade está sendo cada vez mais discutida, pois

vivemos uma época de “crise de identidade”. O que antes era tido como unificado,

próprio do sujeito integrado, agora se mostra fragmentado, ou descentrado. Como ele

mesmo sugere, a identidade é um tema abordado pelo motivo óbvio de que se apresenta

em crise.

Esse conceito, assinala Hall, é demasiado complexo, sendo, portanto, impossível

fazer afirmações conclusivas a esse respeito. Compete-nos mostrar as três concepções

de identidade cultural apontadas, ou seja, sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e

sujeito pós-moderno. O primeiro seria o sujeito totalmente centrado e unificado, o

segundo começa a mostrar a complexidade do mundo moderno e a consciência da

necessidade de relação com outras pessoas. Mas os outros mundos culturais e as

identidades que eles oferecem acabam por desestruturar esse sujeito, fragmentando-o,

constituindo, enfim, neste último sujeito, o qual não tem uma identidade fixa, essencial

ou permanente.

A esta última identidade lembramos que a noção de incompletude e

descontentamento faz-se presente. Temos essa relação bastante discutida por

Lipovetsky, em Felicidade Paradoxal (2007). Na linha de pensamento de que “o

homem nasce para ser livre e feliz” (2007, p. 285), seu homo felix está constantemente

em busca dessa felicidade e o consumismo vem contribuir com esse processo. Um

consumismo, aliás, mediado pela interação entre as diferentes identidades culturais,

constituídas pela globalização. “Produzimos e consumimos cada vez mais, mas isso não

nos torna mais felizes” (2007, p. 287), afirma Lipovetsky.

Já Bauman, ao dissertar sobre o homo sexualis, em Amor Líquido (2004), reitera

a necessidade de se relacionar do homem, já que este se sente sempre incompleto e

insatisfeito. O autor aponta ainda para as formas de que o indivíduo se utiliza para

acabar com essa insatisfação, tão inerente ao modo de vida contemporâneo. Do sexo ao

celular, Bauman assinala também o gasto descomedido – em uma compreensão mais

ampla – de que trata Lipovetsky. O sexo descompromissado e o consumo desenfreado

são aproximados, mostrando serem recursos dos quais os homens se aproveitariam

nessa busca incansável pela completude.

Ou seja, a fragmentação a que se refere Hall mostra-se coerente com esses

outros dois autores. Este sujeito pós-moderno assumiria diferentes identidades em

momentos diversos, a depender de suas necessidades.

Dessa forma, o esforço de Hall para tratar da identidade na pós-modernidade tem

laços estreitos com as reflexões apontadas por Bauman e Lipovetsky na medida em que

discutem os elementos que acabam por contribuir com essa fragmentação e

desestruturação que constituem o homem da contemporaneidade.

O passo seguinte para Stuart Hall é delinear os estágios a que ele se referiu para

apresentar os diferentes conceitos de sujeito. Ou seja, de como o sujeito passa de um ser

unificado para uma definição mais interativa e, posteriormente, “descentrado” na

modernidade tardia. Nesse caminho, o autor passa por Descartes, Locke, Adam Smith

até chegar ao surgimento do Modernismo com Baudelaire, Walter Benjamin e Kafka.

Neste ponto, basta dizer que Stuart Hall explica essa “descentração”, em cinco

partes, mostrando como quatro autores – Marx, Freud, Saussure, Michel Foulcault – e,

por fim, o movimento feminista, contribuem para formar as identidades “abertas,

contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”.

Passamos mais rapidamente sobre esses temas, pois queremos tratar

especificamente do conceito seguinte, o da “comunidade imaginada”.

3. Comunidades imaginadas

A proposta do autor é inserir esse “sujeito fragmentado” nos termos das

identidades culturais. Primeiramente, é preciso entender que a identidade é fortemente

influenciada pela cultura. Como explica o filósofo Roger Scruton:

A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja

como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode

primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como

um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de

algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele

reconhece institivamente como seu lar. 2

Ou seja, o homem necessita fazer parte de algo, ter raízes e exaltar sua nação,

mesmo que este grupo ou estado advenha de uma elaboração mais ou menos artificial.

A partir disso, devemos entender que a identidade cultural é uma representação criada,

ou seja, a vida da nação constitui-se em grande parte da imaginação. Isso quer dizer que

a ideia de nação faz-se como um sistema de representação cultural. Como esclarece

Hall, essa concepção de nação tenta se passar como uma unidade homogênea que é

inventada a partir de uma identidade nacional idealizada, ou seja, uma “comunidade

imaginada”.

Seguindo esse conceito de Hall, podemos identificar alguns textos em nossa

literatura que procuram construir essa narrativa da cultura nacional.

O primeiro deles refere-se à narrativa da nação – as histórias nacionais que são

contadas e recontadas, passando por gerações, mostrando as batalhas, os ganhos e as

perdas da pátria, trazendo significado à vida, como se esse instinto nacional sempre

tivesse existido e perdurasse.

Neste sentido, cabe ressaltar uma característica intrínseca aos hinos: o canto

pátrio tem por objetivo justamente glorificar e honrar um povo. Nosso “Hino Nacional”,

com letra de Joaquim Osório Duque Estrada, de 1823, trata precisamente de recontar a

história gloriosa de nossa nação. Veja-se que os dois primeiros versos já fazem alusão à

declaração de independência clamada por Dom Pedro: “Ouviram do Ipiranga as

margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante (...)” (1823). Mostra ainda

que nossa igualdade foi conquistada com “braço forte”, querendo evidenciar que somos

um povo de honra – “Se o penhor dessa igualdade/ Conseguimos conquistar com braço

forte (...)” (1823), fazendo alusão às supostas batalhas vencidas.

Também o “Hino à Bandeira Nacional” (1906) – escrito por Olavo Bilac –

rememora nosso caminho de triunfos e percalços.

2 Esta citação está no capítulo 3 do livro de Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, trad.

Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro, Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 48.

Sobre a imensa Nação Brasileira,

Nos momentos de festa ou de dor,

Paira sempre, sagrada bandeira,

Pavilhão da Justiça e do Amor! (1906)

A imagem que se constrói lembra um compromisso do brasileiro, firmado aqui

com a pátria. Algo como o famoso dito “na saúde e na doença”, celebrado nos

matrimônios, em que as partes estariam juntas, nesse caso, para lutar por justiça e amor.

Está selada a união permanente da pátria e seus cidadãos.

Nosso hino nacional também serve de exemplo para a formação do segundo

elemento de que trata Hall: a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na

intemporalidade. Veremos compor-se, então, a ideia de um povo guerreiro, que acredita

na paz e na igualdade, que luta pela justiça em nome de um dever: defender a pátria.

(...) Em teu seio, ó liberdade,

Desafia o nosso peito a própria morte! (...)

(...) E diga o verde-louro dessa flâmula

- "Paz no futuro e glória no passado."

Mas, se ergues da justiça a clava forte,

Verás que um filho teu não foge à luta,

Nem teme, quem te adora, a própria morte. (1823)

E mais uma vez, o “Hino à bandeira nacional” também apresenta essas

características:

Contemplando o teu vulto sagrado,

Compreendemos o nosso dever;

E o Brasil, por seus filhos amado,

Poderoso e feliz há de ser.

Ou seja, independentemente das mudanças e instabilidades da história, os

elementos essenciais do caráter nacional permaneceriam inalterados, os brasileiros

continuariam sendo este povo heroico e guerreiro que defende sua pátria, pois

compreendem sua grandeza. “Está lá desde o nascimento, unificado e contínuo,

“imutável” ao longo de todas as mudanças, eterno” (HALL, 2007, p. 53).

Também esse elemento de origem e tradição se encontra nos nossos textos

românticos. Remontam a mata virgem de Iracema. Centram-se em nossas terras, na

beleza selvagem, na floresta intacta, no paraíso, no lugar da liberdade e do prazer.

Vale ressaltar que a estética romântica no Brasil teve como engrenagem a

tomada de consciência nacional e uma vontade de exprimir na literatura os sentimentos

da nação que acabava de conquistar sua independência, em 1822. Os dois grandes

representantes desse período são José de Alencar e Gonçalves Dias.

O conhecido poema “Canção do Exílio” apresenta esse aspecto. Já nas primeiras

estrofes, a glorificação à natureza constrói-se comparativamente – opondo o local em

que se encontra o poeta àquele que ele gostaria de estar, ou seja, o Brasil.

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer eu encontro lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Seu desejo assinala uma idealização, um lugar de fauna e flora perfeito em que

há palmeiras, estrelas, flores, sabiá. Como se esses elementos só existissem aqui,

assumindo um caráter único, especial, raro. Como em:

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Na última estrofe, o eu lírico chega a pedir a Deus para não morrer antes de

voltar a sua terra natal.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que disfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá. (1843)

Antonio Candido, ao comentar sobre esse período, afirma:

Esta determinação da paisagem, aproximando-a da sensibilidade

pessoal, reforça de algum modo a velha tendência de celebração

nativista, que daí a pouco dará lugar a uma das manifestações centrais

da literatura romântica: a paisagem como estímulo e expressão do

nacionalismo. (1964, p. 209).

Com um poema de elaboração simples e a presença constante de comparações

nas estrofes, Gonçalves Dias inaugura na literatura brasileira uma tradição – a ideia de

que não há nenhum país tão acolhedor como o Brasil. Ele servirá de inspiração para

outros tantos versos.

Podemos citar, por exemplo, a conhecida paráfrase no “Hino Nacional” – “Teus

risonhos, lindos campos têm mais flores;/ "Nossos bosques têm mais vida",/ "Nossa

vida" no teu seio "mais amores"”. A intertextualidade reforça a imagem de país tropical

e agradável. Mas o aspecto mais importante dessa construção é que, por se tratar de um

hino, as características do país tornam-se atemporais, sem necessidade de serem

situadas num tempo preciso, como comenta Hall.

Outro poema romântico aborda os encantos das terras brasileiras também

dialogando abertamente com “Canção do Exílio”. Trata-se do poema “Eu nasci além

dos mares”, de Casimiro de Abreu. Segue um trecho:

Eu nasci além dos mares:

Os meus lares,

Meus amores ficam lá!

— Onde canta nos retiros

Seus suspiros,

Suspiros o sabiá!

Oh que céu, que terra aquela,

Rica e bela

Como o céu de claro anil!

Que seiva, que luz, que galas,

Não exalas

Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas

Das montanhas,

Daqueles campos natais!

Daquele céu de safira

Que se mira,

Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,

Sou bom filho,

Quero a pátria, o meu país,

Quero a terra das mangueiras

E as palmeiras,

E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares

Pelos ares

Fugindo do caçador;

Eu vivo longe do ninho,

Sem carinho;

Sem carinho e sem amor! (1859)

Novamente é nítida a exaltação da pátria, em que o poeta utiliza os mesmos

elementos de Gonçalves Dias para identificá-la – sabiás, palmeiras, aves, céu. Mais uma

vez, verificamos a construção de um espírito nacional. Os poetas românticos, quer

influenciados pelo movimento da independência quer legitimamente intimidados pela

natureza do país, acabaram por construir versos que contribuíam de forma efetiva para

um discurso que enfatiza a origem e a intemporalidade.

Como sabemos, o impacto de “Canção do Exílio” foi tão grande que repercutiu

por décadas em versos (parodiados ou não) de outros poetas. Para citar alguns temos

Juó Bananére, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes,

José Paulo Paes e Chico Buarque3.

Mais adiante, Hall aponta para outros dois elementos: o mito fundacional e a

ideia de um povo original. Expliquemos melhor.

No primeiro caso, tenta-se localizar a origem da nação em um passado tão

distante que ele se perde no que o autor chama de tempo “mítico”. Pensando mais uma

vez no Brasil, poderíamos citar o carnaval. Ironicamente, muitos acreditam que nós

criamos a tradição carnavalesca. A festa, no entanto, tem suas raízes na Grécia, sendo

posteriormente recuperada pelo cristianismo em países europeus. Tornou-se um ícone

para nosso povo somente mais tarde quando já estávamos colonizados. O carnaval,

todavia, é tratado como se fizesse parte genuína de nossa história cultural, sendo, na

verdade, mais um dos costumes importados de uma cultura hegemônica ocidental.

Quanto ao povo original, ou seja, um povo também vinculado a uma

temporalidade esquecida, Hall ressalta que é raramente esse povo primordial “que

persiste ou que exercita o poder” (2002, p. 56). Neste caso, a letra de “Aquarela do

Brasil”, de Ary Barroso é um bom exemplo para mostrar esse aspecto e o do mito

fundacional. O texto retrata um Brasil que é creditado especialmente pela cultura do

carnaval e que cria, por consequência, o nosso povo. É dele que surge o gingado, a

manha, o mulato inzoneiro, o bamboleio, a moreninha sestrosa. Selecionamos os versos

em que essas características aparecem:

Brasil, meu Brasil Brasileiro,

Meu mulato inzoneiro,

Vou cantar-te nos meus versos:

O Brasil, samba que dá

3 Existem ainda outros textos que tratam da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Neste trecho, no

entanto, referimo-nos aos poemas “Migna terra tê parmeras” (Juó Bananére), “Canto de regresso à

pátria” (Oswald de Andrade), “Europa, França e Bahia” e “Nova canção do exílio” (Carlos Drummond de

Andrade), “Canção do Exílio” (Murilo Mendes), “Canção do exílio facilitada” (José Paulo Paes) e “Sabiá”

(Chico Buarque).

Bamboleio, que faz gingar;

O Brasil do meu amor,

Terra de Nosso Senhor.

Brasil!... Brasil!... Prá mim!... Prá mim!...

(...)

Brasil, terra boa e gostosa

Da moreninha sestrosa

De olhar indiferente.

(...)

Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro

É o meu Brasil Brasileiro,

Terra de samba e pandeiro.

Brasil!... Brasil! (1939)

É importante atentar para a descrição desse povo, que aparece feliz e em clima

de festa, vivendo na terra do samba e do pandeiro. Esse olhar otimista é pouco ou quase

nada molestado pelo certo tom melancólico existente em um trecho da música.

A parte a que nos referimos relembra os tempos difíceis, pedindo que o trovador

cante de novo, deixando subentender a ideia de uma interrupção, em alguma ocasião de

um passado tortuoso:

Ô, abre a cortina do passado;

Tira a mãe preta do cerrado;

Bota o rei congo no congado.

Brasil!... Brasil!...

Deixa cantar de novo o trovador

À merencória à luz da lua

Toda canção do meu amor.

Quero ver essa Dona caminhando

Pelos salões, arrastando

O seu vestido rendado.

Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!... (1959)

E a música acaba no conhecido discurso, denotando novamente as belezas

naturais do país:

O Brasil, verde que dá

Para o mundo admirar.

O Brasil do meu amor,

Terra de Nosso Senhor.

Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!...

Esse coqueiro que dá coco,

Onde eu amarro a minha rede

Nas noites claras de luar.

Ô! Estas fontes murmurantes

Onde eu mato a minha sede

E onde a lua vem brincar. (1959)

O que se percebe, enfim, é a construção da imagem de um povo sempre

contente, superando as adversidades, já que se sente abençoado e, mais ainda, parte de

um povo original, um grupo, uma nação. Sabemos que esse povo – da dança, da festa,

da boemia – não é de fato detentor do poder em nosso país. A rigor, as festividades no

Brasil apenas contribuem para uma maior alienação política e social. E isso não é um

fenômeno recente.

A mesma manifestação é exposta nos versos de Jorge Ben Jor em “País

Tropical”. Neste caso, ele faz uma ressalva com relação a seus bens materiais, mas a

expressão de felicidade por fazer parte deste povo supera essa condição. Segue um

trecho:

Moro num país tropical, abençoado por Deus

E bonito por natureza, mas que beleza

Em fevereiro (em fevereiro)

Tem carnaval (tem carnaval)

Tenho um fusca e um violão

Sou Flamengo

Tenho uma nêga

Chamada Tereza

Sambaby

Sambaby

Sou um menino de mentalidade mediana

Pois é, mas assim mesmo sou feliz da vida

Pois eu não devo nada a ninguém

Pois é, pois eu sou feliz

Muito feliz comigo mesmo (1969)

As músicas e poemas são apenas alguns dos exemplos que podemos trazer para

mostrar, principalmente no que se refere à cultura, como nosso país também está

relacionado a este processo de unificação cultural de que trata Hall. Por meio de

intervenções culturais, vai se construindo um universalismo, em que a nação responde

como um grupo idealizado.

Ocorre, entretanto, que cada indivíduo tenta também inserir seu estilo único,

autêntico, reinventar as diferenças, sendo, portanto, impossível a existência de um

particularismo universal. Está aí o paradoxo da identidade cultural.

Para Hall, as “comunidades imaginadas” constituem-se de três conceitos: “as

memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação da esperança”

(2002, p. 58). Esses elementos é que impulsionam para uma unificação, tentando fazer

desaparecer as diferenças dos seus membros que podem ser de classe, gênero ou raça

diversos, mas que respondem a uma mesma identidade cultural.

Porém, com o advento da globalização todos esses elementos de construção da

identidade cultural são colocados à prova. Aqui cabe lembrar-se de Benjamin Abdala,

no que concerne às culturas hegemônicas. A imposição de uma cultura politicamente

mais forte é um instrumento que tenta anular e subordinar as diferenças culturais.

Portanto, lembra Hall, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (2002, p. 62).

Entramos no dilema de um povo sem o conceito de nação. Muitos da população

trabalhadora circulam por vários países, numa perspectiva multiidentitária, por ter

aquele sentimento, já citado, de que falta alguma coisa.

Abdala elucida essa questão afirmando que

(...) essa perspectiva de fronteiras múltiplas (o homem dividido ou

integralizado em pelo menos duas fronteiras), onde ele se desenraiza

de sua terra de origem sem se enraizar na terra de origem de outros,

coexistindo com grupos sociais migrantes de outras culturas, pode

constituir um hábito crítico. Através desses contatos e ausências,

próprios de uma população nômade, em constante circulação e

deslocamentos, a identidade afirma-se ainda mais como um constante

vir-a-ser, sem um porto de chegada. (ABDALA, 2002, p.19)

A razão desse deslocamento é novamente o sentimento de incompletude. O

homem sente necessidade de ser cidadão de vários países, pois já não consegue

identificar-se. A partir daqui, podemos começar a discutir o próximo capítulo da obra de

Hall.

4. União e quebra

No capítulo 4, “Globalização”, Hall explica como esse processo acabou por

desconstruir as representações culturais que tentavam ir em direção da unidade. Para

ele, há três consequências possíveis: as identidades nacionais se desintegram face ao

crescimento da homogeneização cultural; identidades nacionais e “locais” são

reforçadas pela resistência a globalização; novas identidades híbridas tomam o lugar da

identidade nacional. Essas duas primeiras são mais facilmente observáveis no caso

brasileiro.

Hall alerta que a globalização não é um fenômeno recente. Na verdade, ela é

inerente à modernidade. Basta retomar a tradição instaurada por Gonçalves Dias que

será revisitada pelo modernista Murilo Mendes em sentido diverso. A poesia, também

intitulada “Canção do Exílio”, irá tocar justamente na consequência relacionada à

homogeneização cultural de que trata Hall.

Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade! (1930)

As interferências de outras nações aparecem claramente no texto – “Califórnia”,

“Veneza”, “Gioconda”. Mas notamos também o descompasso do eu lírico com o país

em que habita. Ele se sente em terra estrangeira, impotente perante o domínio capitalista

desigual que o impede de comprar as gostosas frutas, pois custam “mil réis a dúzia”.

Não há mais carambola de verdade, nem sabiá, como assentia Gonçalves Dias.

Murilo Mendes, como poeta modernista, reflete também um segundo momento

de nossa literatura, e das artes em geral, em que a identidade brasileira é colocada em

xeque, tornando-se tema central. Sentindo-se “sufocados” – para fazer referência ao

poema – nossos artistas começam a procurar outros recursos em busca de uma

identidade. O incômodo da dominância cultural externa passa, portanto, a fazer parte de

nossas discussões.

A música “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, também retoma essa condição.

No entanto, revela outro traço mencionado por Hall: a resistência à globalização

fortalecendo a identidade nacional.

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor

Eu fui na Penha, fui pedir ao Padroeiro para me ajudar

Salve o Morro do Vintém, pendura a saia eu quero ver

Eu quero ver o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada

Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato

Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará.

Na Casa Branca já dançou a batucada de ioiô, iaiá

Brasil, esquentai vossos pandeiros

Iluminai os terreiros que nós queremos sambar

Há quem sambe diferente noutras terras, noutra gente

Num batuque de matar

Batucada, batucada, reunir nossos valores

Pastorinhas e cantores

Expressão que não tem par, ó meu Brasil

Brasil, esquentai vossos pandeiros

Iluminai os terreiros que nós queremos sambar

Ô, ô, sambar, iêiê, sambar...

Queremos sambar, ioiô, queremos sambar, iaiá (1940)

É nítido o orgulho em ser brasileiro, mas a música traz também outro elemento.

O fato de não querer se curvar perante a cultura americana. Versos como “Eu quero ver

o tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar/ O Tio Sam está querendo conhecer a

nossa batucada/ Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato” procuram

justamente sugerir o oposto, ou seja, uma submissão dos americanos a nossa

“brasilidade”. Há até um questionamento do poder cultural hegemônico, enquanto

chama o povo para mostrar que temos uma identidade: “Chegou a hora dessa gente

bronzeada mostrar seu valor”. Tal identidade é relembrada pelo samba, pandeiro,

batucada, comidas típicas – temos enfim, nossos valores e uma expressão que não

encontramos em nenhum outro lugar.

Não muito mais tarde, esse questionamento vira insatisfação. O povo brasileiro

parece ter sofrido as consequências da desintegração da identidade – mencionado por

Hall – e em muitos momentos nossos representantes culturais não sentem mais orgulho

de sua nação.

Um exemplo claro aparece na música “Brasil”, do cantor e compositor carioca

Cazuza. Ele questiona quais são, de fato, nossos valores. Retiramos o trecho mais

significativo:

Brasil!

Mostra a tua cara

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim

Brasil!

Qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim...

Grande pátria

Desimportante

Em nenhum instante

Eu vou te trair

Não, não vou te trair... (1987)

O poeta está perdido em meio à sua própria identidade nacional – “Qual é o teu

negócio?/ O nome do teu sócio?” –, mas quer continuar a se sentir ligado a ela – “Em

nenhum instante/ Eu vou te trair/ Não, não vou te trair”. O que vemos é um processo de

desestruturação da unidade, mas que ao mesmo tempo volta-se para o próprio

imaginário da pátria originária na busca por uma saída. É um movimento interessante,

pois revela que a condição de “comunidade imaginada” deixa resquícios, ainda persiste

de alguma maneira.

Já na letra “Que país é esse?”, de Renato Russo, do grupo Legião Urbana, esta

solução parece não ser mais encontrada:

Nas favelas, no Senado

Sujeira pra todo lado

Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse?

Que país é esse?

Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia iá, iá,

Na baixada fluminense

Mato grosso, Minas Gerais e no

Nordeste tudo em paz

Na morte o meu descanso, mas o

Sangue anda solto

Manchando os papeis e documentos fieis

Ao descanso do patrão

Que país é esse?

Que país é esse?

Que país é esse?

Que país é esse?

Terceiro mundo, se foi

Piada no exterior

Mas o Brasil vai ficar rico

Vamos faturar um milhão

Quando vendermos todas as almas

Dos nossos índios num leilão

Que país é esse?

Que país é esse?

Que país é esse?

Que país é esse? (1978)

As intervenções estrangeiras, a corrupção, a desigualdade social acabam

minando o orgulho do povo, provocam raiva e grande insatisfação. A letra indica que

não adianta ter as riquezas naturais se não respeitamos nossos próprios concidadãos, ou

seja, os índios. Curiosamente, o mesmo símbolo eleito de nosso Romantismo para

representação e exaltação da pátria.

A identidade cultural nacional está agora se esfacelando. Não há aqui qualquer

assimilação com a “comunidade imaginada” constituída no início do Romantismo.

Nossa noção de identidade nacional está, de fato, sendo questionada, pois os indivíduos

parecem não mais se identificar com os rumos que o país está tomando. Como

sobreviver a essa crise?

5. Conclusão

No jogo das identidades, o advento da globalização é determinante em especial a

partir da década de 1970. Para Hall, a facilidade e rapidez de comunicação entre grandes

distâncias têm influência direta na interação entre as diferentes identidades culturais.

Isso porque o tempo e o espaço têm seus significados alterados na pós-modernidade. As

barreiras estão todas líquidas – se quisermos usar a analogia de Bauman.

Além disso, o consumismo tem também papel importante no contexto da

globalização, na medida em que cria a possibilidade para as identidades partilhadas. Ou

seja, os produtos não são pensados para um povo ou uma nação específica, mas antes

para um grupo de consumidores que estão espalhados por todo o planeta e consomem os

mesmos bens. Os aparelhos eletrônicos, peças de vestuário, cosméticos e outros tantos

produtos podem ser direcionados a uma classe global específica contribuindo para a

formação do que Hall chama de “homogeneização global”.

Há ao mesmo tempo uma tensão entre o “global” e o “local”. Essa dialética

perdura e mostra mais uma vez que estamos definitivamente passando por um processo

de mudança. Podemos retornar às raízes ou incorporar finalmente uma identidade

multifacetada, deslocada, nômade. A resposta à “crise das identidades” não está pronta,

continua acontecendo.

Enfim, nossa proposta foi mostrar como ao longo da história brasileira alguns

textos trazem os aspectos indicados por Hall. Fica claro que nossa seleção é ínfima

perante um corpus tão vasto. Ao que podemos concluir que nossa intenção era de

elucidar a questão, contribuindo para um olhar diferente diante de nossas produções nas

letras. Esperamos, por fim, que nosso esforço tenha mostrado que é possível estabelecer

uma relação entre a produção cultural brasileira e as considerações a respeito das

identidades culturais sugeridas por Stuart Hall.

6. Bibliografia

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