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Declaração do Fórum da Sociedade Civil de Adis Abeba sobre Financiamento ao Desenvolvimento 12 de julho de 2015 Nós, membros de mais de 600 organizações da sociedade civil e redes de todo o mundo, engajadas no processo que conduziu à e culminou na Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento ao Desenvolvimento (Adis Abeba, 13 a 16 de julho de 2015), organizamos um Fórum das OSCs antes da Conferência. Temos as seguintes reflexões e recomendações para transmitir aos Estados-membro das Nações Unidas e à comunidade internacional. Queremos expressar nosso apreço pela participação e acesso concedidos à sociedade civil no processo preparatório até o momento. Como a primeiro de três importantes Cúpulas da ONU sobre desenvolvimento sustentável neste ano, a Agenda de Ação de Adis Abeba (“Agenda Adis”) tem a oportunidade de dar o tom de uma agenda ambiciosa e transformadora que irá enfrentar as injustiças estruturais no atual sistema econômico global, assim como assegurar que todo financiamento ao desenvolvimento seja centrado nas pessoas e proteja o meio ambiente. O mundo está diante de desafios tais como os níveis históricos de desigualdade dentro dos e entre os países; a confluência de crises financeira, de alimentos e ambiental; a subprovisão de serviços essenciais; e pronunciados déficits de emprego. Neste contexto, o esboço do documento divulgado ainda não está a altura dos desafios que o mundo tem hoje diante de si, nem contém a liderança, a ambição e as ações práticas necessárias. A seguir, destacamos nossas maiores preocupações sobre a Agenda Adis, juntamente com nossas reflexões e sugestões a respeito de seus diferentes aspectos. A Agenda Adis, tal como está, vem solapar os acordos contidos no Consenso de Monterrey de 2002 e na Declaração de Doha de 2008. Também dificilmente será adequada para funcionar como plano operacional dos Meios de Implementação (MdI) para a agenda de desenvolvimento Pós-2015, que é um dos objetivos da conferência, e para inspirar a esperança de se alcançar um acordo bem sucedido em direção à COP 21 em Paris. A Terceira Conferência sobre Financiamento ao Desenvolvimento (FaD) deve asseverar de modo inequívoco que os processos de desenvolvimento devem ser liderados por países, sob a responsabilidade última dos Estados, com processos participativos que incluam todos os entes detentores de

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Declaração do Fórum da Sociedade Civil de Adis Abeba sobre Financiamento ao Desenvolvimento

12 de julho de 2015

Nós, membros de mais de 600 organizações da sociedade civil e redes de todo o mundo, engajadas no processo que conduziu à e culminou na Terceira Conferência Internacional sobre Financiamento ao Desenvolvimento (Adis Abeba, 13 a 16 de julho de 2015), organizamos um Fórum das OSCs antes da Conferência. Temos as seguintes reflexões e recomendações para transmitir aos Estados-membro das Nações Unidas e à comunidade internacional. Queremos expressar nosso apreço pela participação e acesso concedidos à sociedade civil no processo preparatório até o momento.

Como a primeiro de três importantes Cúpulas da ONU sobre desenvolvimento sustentável neste ano, a Agenda de Ação de Adis Abeba (“Agenda Adis”) tem a oportunidade de dar o tom de uma agenda ambiciosa e transformadora que irá enfrentar as injustiças estruturais no atual sistema econômico global, assim como assegurar que todo financiamento ao desenvolvimento seja centrado nas pessoas e proteja o meio ambiente. O mundo está diante de desafios tais como os níveis históricos de desigualdade dentro dos e entre os países; a confluência de crises financeira, de alimentos e ambiental; a subprovisão de serviços essenciais; e pronunciados déficits de emprego. Neste contexto, o esboço do documento divulgado ainda não está a altura dos desafios que o mundo tem hoje diante de si, nem contém a liderança, a ambição e as ações práticas necessárias.

A seguir, destacamos nossas maiores preocupações sobre a Agenda Adis, juntamente com nossas reflexões e sugestões a respeito de seus diferentes aspectos.

A Agenda Adis, tal como está, vem solapar os acordos contidos no Consenso de Monterrey de 2002 e na Declaração de Doha de 2008. Também dificilmente será adequada para funcionar como plano operacional dos Meios de Implementação (MdI) para a agenda de desenvolvimento Pós-2015, que é um dos objetivos da conferência, e para inspirar a esperança de se alcançar um acordo bem sucedido em direção à COP 21 em Paris.

A Terceira Conferência sobre Financiamento ao Desenvolvimento (FaD) deve asseverar de modo inequívoco que os processos de desenvolvimento devem ser liderados por países, sob a responsabilidade última dos Estados, com processos participativos que incluam todos os entes detentores de direitos. Os princípios da apropriação e liderança democráticas foram afirmados em muitos fóruns globais desde Monterrey e agora é o momento de colocá-los no coração de toda a arquitetura de financiamento como uma qualidade fundamental do espaço de construção de políticas dos países, que a próprio esboço da Agenda Adis retoma. Um ambiente favorável para a participação da sociedade civil é essencial.

Similarmente, a Terceira Conferência de FaD deve contribuir com os meios de implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), e o princípio do Rio de Responsabilidades Comuns Mas Diferenciadas (RCMD) deve ser levado em conta. Dentre todos os Princípios do Rio, este é indispensável para a garantir a legitimidade política e o impacto no mundo real da agenda de FaD. Se aplicado adequadamente, o princípio de RCMD também pode servir para reafirmar as capacidades de todos os países de cumprir compromissos nas áreas de direitos humanos, trabalho e meio ambiente.

Lamentamos que as negociações, em vez de conduzir na direção de resultados significativos, foram congestionadas por disputas políticas que diminuíram a autoridade do FaD de progressivamente lidar com questões sistêmicas internacionais em políticas de macroeconomia, finanças, comércio, tributos e moedas. Acreditamos firmemente que o

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processo de FaD, sustentado pela função normativa e o ethos da ONU, goza da participação universal de seus membros e, por essa razão, da legitimidade para lidar com essas questões que nenhum outro fórum poderia ostentar.

É difícil vislumbrar os próximos 15 anos com grande otimismo com base na Agenda Adis. Na realidade, tememos consequências adversas para a agenda de desenvolvimento sustentável. O texto de FaD, além disso, dissipou toda ambição no decurso das negociações, fazendo a solidariedade internacional parecer ter se tornado um conceito distante. Os países que historicamente, e por uma boa razão, assumiram grande parte da responsabilidade de liderar a viabilização dos MdI, fizeram grandes esforços para dissipar essa responsabilidade. Ao mesmo tempo, o texto negligencia reformas normativas e sistêmicas que poderiam permitir aos países em desenvolvimento mobilizar seus recursos próprios disponíveis. Tal combinação torna impossível para estes países gerar os recursos requisitados para viabilizar sua agenda sustentável.

Expressamos nosso desapontamento com o fato de que a Agenda Adis é quase inteiramente desprovida de resultados viáveis. Embora esta não seja um evento de apelo, é deplorável que uma conferência sobre financiamento tenha até aqui falhado em redimensionar os recursos existentes e em comprometer novos recursos financeiros. Levanta-se a dúvida quanto ao compromisso dos governos de realizar a agenda de desenvolvimento expansiva e multidimensional como são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Realçamos em particular a atual oposição a um conselho tributário que funcione sob os auspícios da ONU, que proporcionaria financiamento sustentável e significativo ao desenvolvimento por meio, por exemplo, do combate à evasão tributária corporativa nos países em desenvolvimento.

Assinalamos com profunda preocupação a falta de ambição ao se assumir responsabilidades e compromissos de adotar caminhos para uma industrialização sustentável, baseada em trabalho digno e oportunidades de emprego. Lamentamos muito que o papel do diálogo social seja negligenciado quando, efetivamente, trata-se de um elemento chave para lidar com as desigualdades e contribuir nos processos de desenvolvimento globais. São necessárias medidas especiais para lidar com as castas e sistemas análogos aos hereditários, que perpetuam a exclusão e as desigualdades no acesso a recursos econômicos e aos benefícios do crescimento.

Estão completamente ausentes os compromissos concretos de integrar sistemas de proteção social – inclusive os pisos salariais, que poderiam instaurar o acesso universal a serviços públicos, proporcionando redistribuição de renda –, no que tange à mobilização de recursos internos. Reafirmamos energicamente a necessidade de implementar programas de proteção social e de trabalho digno em âmbito nacional, tal como está consagrado nas disposições da Convenção 102 e da Recomendação 202 da OIT.

Os passos adicionais voltados à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres parecem ser muito mais uma questão de “Igualdade de Gênero como Economia Inteligente” do que se referir a mulheres e meninas como portadoras de direitos sociais e econômicos. A Agenda Adis “reitera a necessidade de integração de gênero, inclusive com ações focadas e investimentos na formulação e implementação de todas as políticas financeiras, econômicas, ambientais e sociais”. O documento mostra, ainda, uma forte tendência à instrumentalização da mulher ao declarar que o empoderamento da mulher e a participação e liderança plenas e igualitárias de mulheres e meninas na economia são vitais para impulsionar significativamente o crescimento econômico e a produtividade.

Iniciativas controversas em microcampos como inclusão financeira ou empreendedorismo de mulheres não devem deslocar a atenção das barreiras estruturais para os direitos econômicos das mulheres, além do acesso pleno e igualitário aos e do controle sobre os

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recursos econômicos, que não estão presentes na Agenda Adis: ou seja, a distribuição desigual de trabalhos não-remunerados, por exemplo o de cuidar, a falta de acesso a serviços de cuidado, a persistente discriminação de gênero no mercado de trabalho (por meio de segregação vertical e horizontal, e uma presença pronunciada de mulheres em trabalhos precários e mal pagos, além de proteção social inadequada e insuficiente).

Advertimos que o otimismo em relação ao financiamento privado para se viabilizar uma ampla agenda de desenvolvimento sustentável, que trata das dimensões social e ambiental tanto quanto da econômica, é inadequado. A sociedade civil e vários Estados-Membro levantaram sérias e consistentes preocupações em relação ao apoio incondicional às Parcerias Público-Privadas e ao instrumento de financiamento misto. Sem o reconhecimento paralelo do papel do Estado no desenvolvimento e compromissos de salvaguardar a capacidade regulatória do Estado em nome do interesse público, há um grande risco de que o setor privado mais debilite do que reforce o desenvolvimento sustentável. O mesmo risco persiste se não houver o reconhecimento dos parceiros sociais (organizações de trabalhadores e empregadores) como atores em pé de igualdade. O direito de parceiros sociais de negociar livremente e concluir acordos coletivos é essencial para fortalecer a democracia, assim como para ampliar a transparência e realizar o desenvolvimento sustentável. O Estado têm a obrigação de fazer cumprir padrões universais em direitos humanos, igualdade de gênero, direitos trabalhistas e meio ambiente, inclusive a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção sobre os Direitos da Criança. A Agenda Adis ainda falha em não exigir que o setor privado cumpra com esses padrões. A prestação de contas financeira, social e ambiental do setor privado não é negociável.

O desenvolvimento inclusivo requer o acesso de pessoas com deficiência a serviços de suporte social e voltado às deficiências, além do microcrédito. Os investimentos devem prever salvaguardas para prevenir a criação ou a perpetuação de barreiras – legais, institucionais, de atitude, físicas e de informática – à inclusão e participação de pessoas com deficiências e grupos marginalizados.

A seguir, apresentamos nossas reflexões e sugestões sobre diferentes aspectos da Agenda Adis.

Mobilização de recursos domésticos

A mobilização de recursos domésticos (MRD) não é uma panaceia para o desenvolvimento. Mas é uma prioridade para o desenvolvimento na era pós-2015 e representa o fundamento do financiamento para o Estados. Lamentamos que a Agenda Adis tenha reduzido a MRD apenas ao financiamento público, decidindo lidar com o setor empresarial doméstico juntamente com os fluxos financeiros internacionais. Esse retrocesso injustificável em relação aos acordos de Monterrey e Doha funde indevidamente os negócios nacionais e internacionais em detrimento das estratégias que aproveitam as anteriores.

Os tributos são a fonte mais confiável para se financiar serviços públicos e fortalecer o contrato social entre o governo e o povo. Entretanto, uma de suas funções chave é a redistribuição de renda. Por essa razão, vemos com bons olhos os sistemas tributários progressivos, lembrando que o forte compromisso do Relatório de FaD de Doha de se construir sistemas tributários “pró-pobres” continua válido. Trabalho digno, inclusive a criação de empregos, e taxação justa de corporações multinacionais são elementos chave para se ter uma base de tributação estável. A Terceira Conferência de FaD acontece num momento em que ficou claro para todos que o sistema tributário internacional está sofrivelmente ultrapassado e quebrado. Da Amazon no Reino Unido à SAB Miller em Gana;

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do “Luxembourg Leaks” (vazamentos de Luxemburgo) ao relatório do Painel Mbeki e o trabalho da Comissão Independente para a Reforma da Taxação de Corporações, há evidências suficientes de que a prática, tanto de corporações como de indivíduos ricos, de transferir lucros com o propósito de sonegar impostos prejudica igualmente países em desenvolvimento e desenvolvidos. Contudo, os custos não são simétricos, pois a maioria dos recursos é transferida para fora dos países em desenvolvimento, privando-os de uma partilha justa de suas receitas. Custos significativos são impostos a suas oportunidades de desenvolvimento e a dignidade da pessoa comum é corroída. Além disso, enquanto os membros da OCDE trabalham para proteger suas próprias bases tributárias por meio de processos da OCDE, os países em desenvolvimento são deixados de fora da construção da agenda e das tomadas de decisão exclusivas que são tão cruciais para sua soberania e desenvolvimento.

Para enfrentar a economia dos refúgios fiscais globais, é necessário um aumento significativo em transparência. Infelizmente, as propostas da Agenda Adis de introduzir a publicação de relatórios de país a país das empresas multinacionais e os registros públicos de usufruto foram rejeitados. Em razão disso, os cidadãos permanecerão sem saber quanto as corporações multinacionais pagam em tributos e onde elas obtêm seu lucro.

Uma razão chave pela qual o sistema tributário global fracassou é que mais de cem países estão atualmente excluídos dos processos decisórios sobre padrões de taxação globais. Para começar a enfrentar esses problemas precisamos de um fórum em que cada país tenha o direito de participar, não apenas os mais ricos. Precisamos fundamentalmente mudar as regras de tributação, e o fato de que todos os países não estejam representados na elaboração dessas regras para garantir que elas funcionem para todos é não apenas antidemocrático como também injusto. Os países em desenvolvimento realçaram que a criação de um conselho tributário intergovernamental na ONU é um tema capital para eles. Apoiamos fortemente esta declaração.

Reiteramos a necessidade e recomendamos com energia a criação de um conselho tributário intergovernamental, transparente, com prestação de contas e adequadamente financiado, com abertura universal à participação dos membros, que lidere as deliberações globais sobre cooperação tributária internacional. Um conselho como este irá fortalecer a capacidade de países em desenvolvimento de gerar financiamento sustentável ao desenvolvimento por meio, por exemplo, do combate à evasão fiscal corporativa nestes países e do equilíbrio da alocação dos direitos fiscais entre o país fonte e o país de residência. Também pode apoiar os esforços das pessoas nos países em desenvolvimento para estabelecer suas próprias leis e seus próprios sistemas fiscais progressivos, justos e baseados em diretos, livre de pressões como as que são impostas por credores e governos de países desenvolvidos.

Além disso, é essencial que os Estados Membro fortaleçam suas ações com o compromisso de “promover a equidade, inclusive a igualdade de gênero, como um objetivo em todas as políticas tributárias e de renda”, tal como declarado em versões anteriores da Agenda Adis. A política tributária não é neutra em relação a gênero ou classe social. Políticas tributárias regressivas, como impostos indiretos, atingem desproporcionalmente as pessoas que vivem na pobreza, mulheres, minorias, deficientes, crianças e outros grupos marginalizados. Mulheres vivendo na pobreza são afetadas ainda mais, porque seu papel, socialmente construído, é geralmente o de cuidar. Assim, as políticas de mobilização de recursos domésticos precisam ser revistas para que levem em conta seu impacto sobre o trabalho e a renda das mulheres, inclusive trabalhos não remunerados, e a propriedade de imóveis e bens. O peso desproporcional dos impostos sobre as mulheres e pessoas que vivem na pobreza precisa ser revertido, como parte de uma ampla mudança na política fiscal em âmbito nacional para enfrentar as desigualdades. Uma reforma tributária deveria mobilizar

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recursos adicionais e suficientes para cumprir as obrigações do Estado e comprometer o máximo de recursos disponíveis para realizar ações em prol dos direitos humanos, inclusive os direitos da mulher, e garantir que os sistemas tributários sejam pró-sociedade civil e pró-ambientais. Também convocamos os governos a acabar com incentivos fiscais nocivos nos âmbitos nacional, regional e global. As corporações multinacionais estão recebendo isenções fiscais indevidamente amplas, das quais podem fazer mau uso.

Os Estados Membro deveriam também firmar acordo para que sejam realizadas avaliações de impacto independentes, participativas e periódicas, para monitorar os efeitos de suas políticas e acordos tributários sobre a materialização do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos em outros países.

Financiamento privado

Estamos profundamente preocupados com o papel central que o financiamento privado adquiriu ao longo das negociações de FaD. As provas de seu impacto no desenvolvimento sustentável são frágeis e, em algumas áreas – por exemplo, a privatização e mercantilização de educação, saúde e outros serviços essenciais –, há provas substanciais de seu impacto negativo, promovendo desigualdade e marginalização. Entretanto, o desenvolvimento industrial inclusivo e sustentável é de importância crítica para países em desenvolvimento, ao apoiar a diversificação econômica, agregar valor a matérias primas, melhorar a produtividade econômica e desenvolver e usar tecnologias modernas e apropriadas. De fato, aqui em Adis Abeba deveríamos nos lembrar da Agenda 2063 da União Africana, baseada na partilha da prosperidade por meio de transformação social e econômica.

Igualmente preocupante é a confiança cega no setor privado para se conquistar o empoderamento feminino. A necessidade de promover um ambiente favorável aos negócios é enfatizada repetidas vezes, o que comprovadamente serve primordialmente aos grandes negócios e não às micro, pequenas e médias empresas. As evidências mostram que a agenda de desregulação e privatização no setor privado na maioria das vezes contradiz e enfraquece a possibilidade de se respeitar, proteger e fazer cumprir os direitos humanos. Deveria haver uma avaliação periódica e antecipatória do impacto em direitos humanos dos investimentos e atividades do setor privado. Somente isso irá salvaguardar o interesse público.

Enquanto o financiamento privado e as atividades corporativas aumentaram seu escopo e volume, os investimentos estrangeiros frequentemente deixam para trás os povos e países mais pobres. Os poucos investimentos que de fato atingem países de baixa renda tendem a ser concentrados nas indústrias de extração ou são investimentos agrícolas que levam a atividades nocivas, como a grilagem de terras. Para garantir que grandes empresas privadas cumpram padrões sociais e ambientais acordados internacionalmente, Convenções da OIT e todos os direitos humanos, apelamos por que obrigatoriedades e um mecanismo de prestação de contas que ajude a assegurar que os efeitos do desenvolvimento sejam positivos. Infelizmente, a Agenda Adis não propõe acordos neste sentido. Deveria haver uma clara mudança na direção de promover padrões obrigatórios ao invés de padrões facultativos, como os Princípios do Pacto Global da ONU, que, no caso particular da igualdade de gênero, provou ser totalmente inadequado e inapropriado para dar respostas a abusos nos direitos humanos de mulheres, especialmente no caso de corporações transnacionais. Solicitamos a adoção de diretrizes para relatórios financeiros, ambientais, sociais e de gestão, de país a país, para todas as grandes companhias.

Companhias privadas também se beneficiam cada vez mais de fundos para a cooperação ao desenvolvimento sem uma adequada análise de impacto. De fato, toda uma nova categoria de instrumentos de financiamento ao desenvolvimento surgiu, como o financiamento misto

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e a alavancagem, inclusive a robusta promoção de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Entretanto, faltam provas de que as PPPs estejam realmente produzindo resultados econômicos, sociais e ambientais positivos. Apoiamos a promoção de discussões inclusivas, abertas e transparentes sobre princípios e critérios para finanças privadas baseadas em recursos públicos no âmbito da ONU. Os conselhos regulatórios nacionais precisam proteger o interesse público no que concerne às PPPs. Para ser coerente com outras formas de financiamento público internacional, essas regulações deveriam ser baseadas em compromissos e princípios acordados internacionalmente, como os padrões trabalhistas consagrados nas Convenções da OIT e a Declaração da OIT sobre Empresas Multinacionais, os Princípios do Rio de Meio Ambiente e Desenvolvimento, as Diretrizes da OCDE e os Princípios Guia da ONU sobre Negócios e Direitos Humanos e os Princípios de Eficiência do Desenvolvimento. Serviços públicos essenciais que impliquem a obrigação do Estado em garantir direitos humanos relacionados à água e saneamento, educação e saúde devem ser excluídos das parcerias com o setor privado. Contratos públicos tradicionais, que atendam a critérios de eficiência administrativa e prestação de contas, deveriam permanecer como o caminho preferencial para envolver o setor privado no financiamento de infraestrutura. Quando forem firmadas Parcerias Público-Privadas, elas devem ser condicionadas a critérios de factibilidade e auditagem, e também incluir salvaguardas para garantir a transparência, os preços justos, a acessibilidade e a qualidade dos serviços e a infraestrutura sustentável que eles devem entregar, prevenindo-se o fardo de dívidas insustentáveis.

Empresas privadas devem também alinhar seus modelos de negócio ao objetivo de atingir impactos econômicos, sociais e ambientais progressivos, para garantir o desenvolvimento sustentável. Neste contexto, enfatizamos que a transparência corporativa começa com a contribuição da justa parte em tributos que cabe às companhias privadas para a mobilização de recursos públicos, além da oferta de trabalho e salários dignos. Conclamamos tanto os governos quanto as empresas privadas a implementar efetivamente os Princípios Guia da ONU sobre Negócios e Direitos Humanos, e a estabelecer mecanismos eficazes para a solução de disputas entre corporações e comunidades ou indivíduos, de modo a oferecer reparações reais para partes que sofram impacto negativo de atividades corporativas, especialmente os povos indígenas. Em todo caso, partindo da consciência de que princípios facultativos são insuficientes, apelamos aos governos que se engajem de maneira construtiva no processo de desenvolvimento de um instrumento internacional de vinculação legal para corporações transnacionais e outros negócios, em curso no Conselho de Direitos Humanos de Genebra.1

Deveríamos priorizar políticas e fundos de desenvolvimentos que deem suporte a uma economia social e solidária e financiamentos que fortaleçam a apropriação democrática e apoiem as micro, pequenas e médias empresas nacionais, cujo impacto no desenvolvimento sustentável é maior. Os imigrantes são parceiros ativos no desenvolvimento por meio de seu empreendedorismo transfronteiriço, transferência de habilidades e inovações financeiras. Assinalamos que para algumas vias o custo de remissão de valores ainda é de até 3%. Chamamos os Estados Membro a refletir sobre a ambição do FaD quanto ao compromisso de facilitar as transações de remessa de valores à meta do custo de 1% até 2025, e a financiar esquemas de investimento transfronteiriços e de migração.

Cooperação Internacional ao Desenvolvimento

Assinalamos com grande preocupação a tendência dos doadores tradicionais de se esquivar

1 Resolução A/HRC/26/L.22 do Conselho de Direitos Humanos, adotada em junho de 2014.

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de suas responsabilidades na cooperação, colocando a ênfase na cooperação Sul-Sul, mobilização de recursos domésticos e no setor privado. A Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD), em particular, continuam sendo críticos para o financiamento ao desenvolvimento e os compromissos feitos há mais de quatro décadas de se atingir a meta de 0,7% do Produto Nacional Bruto (PNB) para a AOD permanece uma pedra angular para o sucesso... Apelamos aos governos que cumpram os compromissos existentes de prover recursos adicionais para se eliminar abismos socais e caminhar na direção da redução da pobreza, atingindo novos desafios de desenvolvimento, numa arquitetura em que os direitos humanos sejam centrais. Os resultados relacionados ao financiamento público internacional e à cooperação para o desenvolvimento devem manter e ampliar as conquistas feitas nas conferências de Monterrey e Doha, respectivamente.

As deliberações da Terceira Conferência de FaD até o momento não demonstraram liderança no que se refere a como a meta de 0,7% será atingida pelos países avançados economicamente. Apelamos a todos os parceiros de desenvolvimento para o compromisso de, até 2020, oferecer cronogramas e arquiteturas de prestação de contas, inclusive legislação facilitadora em âmbito nacional. Também conclamamos os parceiros a redirecionar ajudas para os locais onde há maior necessidade, com plano de ações e cronograma claros, de modo a visar a meta de oferecer 50% da AOD aos Países Menos Desenvolvidos (PMDs). Vemos com bons olhos as menções às necessidades dos Países de Renda Média, mas sem um claro compromisso com um plano de ações para estes países, isso se torna pura retórica. É preciso notar também que a classificação atual do Banco Mundial ou da ONU para os países é incompleta e não reflete falhas estruturais que causam aumento da pobreza e da desigualdade entre os países.

Os resultados da Agenda Adis quanto à efetividade do desenvolvimento não são animadores. As referências à agenda de eficiência deveriam ser colocadas na abertura da parte sobre cooperação internacional ao desenvolvimento. Os governos agora precisam implementar passos mais fortes nos âmbitos global e local, com metas tanto de quantidade como de qualidade. O financiamento público internacional precisa enquadrar-se a princípios internacionais de cooperação para o desenvolvimento efetivo, em que a apropriação democrática, parcerias inclusivas, transparência e prestação de contas e resultados que apontem para a erradicação da pobreza e a redução da desigualdade formam o núcleo duro de toda cooperação.

Os compromissos relativos a ajuda desvinculada perderam força ao longo das negociações e agora surgiu um chamado, superficial e momentâneo, de que os atuais esforços sejam acelerados. A AOD precisa catalisar o processo de empoderamento das pessoas e sua apropriação das estratégias de desenvolvimento, promover sua participação e inclusão na agenda de desenvolvimento e, ao mesmo tempo, ser ambientalmente saudável e não impactar o clima. Não deve ser usada para exercer o poder sobre os países beneficiários, por exemplo pela imposição de condicionantes ou vinculando com negociações comerciais, ou então contribuindo para que esses países fiquem mais endividados. Ao invés disso, a AOD deve ser usada para desenvolver a capacidade da economia do país beneficiário e de mobilizar seus próprios recursos enquanto reduz desigualdades estruturais, inclusive a desigualdade de gênero. Também deve priorizar setores sociais e agricultura em relação à infraestrutura e outros setores não-sociais. Além disso, a AOD deve ser oferecida de tal modo a efetivamente apoiar a mudança estrutural de longo prazo, por exemplo, por meio de apoio prolongado a organizações da sociedade civil. O grande aumento em AOD deveria ser sentido na parte dos recursos referentes à assistência, mais que na parte dos empréstimos.

A Agenda Adis chama os países a “detectar e comunicar alocações de recursos para igualdade de gênero e o empoderamento da mulher”. No entanto, detectar e comunicar não

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é suficiente. É inaceitável que países desenvolvidos não se comprometam em ampliar o percentual de OAD para se atingir a igualdade de gênero, o empoderamento da mulher e os direitos humanos de mulheres e meninas, materializando assim compromissos de financiamento assumidos há muito tempo com o objetivo de acelerar a implementação completa e efetiva de agendas de desenvolvimento acordadas internacionalmente, inclusive a Plataforma de Ação de Pequim e o Programa de Ação do Cairo, entre outros, sem recorrer às imposições e condicionantes dentro do estreito âmbito da oferta de ajuda.

Importante destacar que a Agenda Adis não trata dos compromissos adicionais relacionados à implementação de desenvolvimento, mitigação das mudanças climáticas e a agenda da biodiversidade. Apelamos por uma melhor integração das mudanças climáticas, que devem ser centrais ao conjunto das ajudas. Mas isso não é suficiente. Financiamentos novos e adicionais voltados para a questão climática são igualmente necessários para se cumprir os compromissos feitos no processo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC). A AOD tem ramificações muito frágeis, o que coloca sob risco os esforços de erradicar a pobreza e enfrentar as mudanças climáticas. Os governos precisam tomar medidas claras, direcionadas e transparentes tanto para a AOD quanto para o financiamento da questão climática, de modo a garantir que os compromissos em ambas as áreas sejam plenamente cumpridos.

Pedimos cautela ao se endossar parcerias de múltiplos partes que não estabeleçam um espaço aberto, acessível, inclusivo e transparente para fiscalizar, monitorar e avaliar, com plena e significativa participação das organizações da sociedade civil. Parcerias globais com o setor privado devem ser discutidas e aprovadas pelos governos num espaço intergovernamental da ONU. Parcerias baseadas em abordagens verticais, com financiamento imprevisível e volátil e sem uma clara vinculação com obrigações de direitos humanos como a iniciativa “Toda Mulher, Toda Criança”, terão efeitos adversos para a implementação de uma agenda de desenvolvimento mais ampla na próxima década. De modo similar, apoiamos as plataformas e parcerias de múltiplas partes como o Comitê Mundial da ONU sobre Segurança Econômica (CFS) e a janela do setor público do Programa Global de Agricultura e Segurança Alimentar.

Para mobilizar recursos previsíveis, confiáveis e eficientes para diversificar as ferramentas de financiamento dedicadas ao desenvolvimento, todos clamamos pela Taxação das Transações Financeiras Internacionais. A comunidade internacional deve continuar a explorar o uso de fontes inovadoras para complementar a AOD e gerar financiamento adicional, por meio de quotizações e taxas derivadas de lucros obtidos com a globalização, por exemplo em operações financeiras e transporte aéreo e marítimo, com o objetivo de erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento sustentável, inclusive com ações voltadas à questão climática.

Comércio internacional

A ausência de progressos significativos na Rodada de Desenvolvimento de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), juntamente com a contínua proliferação de acordos de comércio e investimento preferenciais, impõe um exame renovado e crítico da contribuição do sistema de comércio multilateral ao desenvolvimento sustentável e igualitário. Apelamos aos governos que avaliem criticamente esses acordos e o sistema de comércio multilateral, eliminem cláusulas de arbitragem investidor-Estado e realizem avaliações de impacto em direitos humanos e de sustentabilidade de todos os acordos de comércio, de modo a garantir que eles estejam alinhados com as obrigações tanto nacionais quanto extraterritoriais dos governos. Chamamos também a um modelo econômico que permita avaliar de maneira crível o impacto da abertura ao comércio e da harmonização

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regulatória. Além disso, solicitamos aos governos que fortaleçam o papel da UNCTAD de assegurar um tratamento integrado e baseado em direitos humanos do comércio e assuntos inter-relacionados em finanças, tecnologia, investimentos e desenvolvimento sustentável.

Lamentamos que a Agenda Adis tenha sido uma oportunidade perdida. Ela endossa o comércio internacional em geral, sem qualquer qualificação, como “um motor do crescimento da economia inclusiva e da redução da pobreza”. Isso é declarado apesar do profundo desequilíbrio no sistema de comércio global, exemplificado pela disputa sobre o estoque público para a segurança alimentar nos países em desenvolvimento e as regras injustas e desiguais da OMC para os subsídios agrícolas; pela evidente desindustrialização em algumas regiões; e pela exploração do trabalho das mulheres e empregos precários como uma fonte de vantagem competitiva para se atrair investimento estrangeiro. O confinamento dos países em desenvolvimento aos nichos de baixo valor agregado nas cadeias globais de valor restringe a transferência de competências e de tecnologias, e fortalece o desequilíbrio nas cadeias produtivas entre corporações e pequenas e médias empresas, condenando pequenos produtores e trabalhadores à pobreza. Os aumentos recentes na exportação proveniente de países em desenvolvimento foram movidos pela subida nos preços das commodities, que agora estão em declínio e sujeitos continuamente à volatilidade, muito em razão da desregulação financeira. Além disso, a liberalização do comércio leva à consolidação de fatias de mercado por corporações devido ao funcionamento da competição, e fusões e aquisições.

Também assinalamos os impactos mais amplos relacionados a gênero do atual modelo de liberalização do comércio, inclusive a privatização, que torna menos acessíveis serviços públicos como a água e o atendimento de saúde, consequentemente aumentando o fardo das mulheres do não remunerado trabalho de cuidar.

A Agenda de Ações perde a oportunidade de reforçar a implementação de padrões internacionais em acordos de comércio, inclusive as Convenções da OIT sobre Discriminação e Remuneração Igualitária e as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais de modo a garantir que as cadeias produtivas globais contribuam para promover o trabalho digno.

Embora o comércio internacional tenha o potencial de apoiar o trabalho digno, o desenvolvimento igualitário e sustentável e a realização dos direitos humanos e da igualdade de gênero, isso não ficou evidente na prática. Este potencial não pode ser realizado sem um espaço nacional adequado para se implementar políticas industriais, sociais e ambientais orientadas ao desenvolvimento, inclusive regimes de direito de propriedade intelectual que garantam a oferta de medicamentos a preços acessíveis. Tais políticas são necessárias para dar suporte à diversificação econômica sustentável, impulsionar a capacidade produtiva, proteger o conhecimento indígena e tradicional, garantir os direitos de mulheres e trabalhadores, produtores e comerciantes, assim como garantir a sustentabilidade ambiental. Como o Relatório de FaD de Doha reconhecia, “o ritmo e a sequência ideal para a liberalização do comércio depende das circunstâncias específicas de cada país”.

Em vez de salvaguardar este espaço político, a Agenda Adis falha ao não fazer uma avaliação crítica da política internacional de comércio; dos subsídios nocivos concedidos à agricultura doméstica em países ocidentais; e das cláusulas de arbitragem investidor-Estado que dão mais poder aos investidores estrangeiros de processar governos por implementar regulação doméstica de salários, proteção ambiental, saúde pública, ações afirmativas e políticas macroprudenciais. Além disso, falha ao não desafiar a natureza fechada e secreta desses acordos, que ataca o direito de todos os cidadãos de participar nas questões públicas.

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Dívida

Na Declaração do Milênio os governos se comprometeram com uma “solução duradoura para o problema do endividamento”. Em todo caso, os persistentes fracassos em se evitar ou pelo menos dar uma solução rápida a crises de endividamento com um custo mínimo para os direitos humanos desde então mostra que a solução ainda é uma quimera. Exceto pela iniciativa voltada aos Países Pobres Altamente Endividados (PPAE) e outras iniciativas isoladas, um número excessivo de países em todo o Sul ainda sofre com o peso de suas enormes dívidas. A expectativa das taxas de lucro nos Estados Unidos aumenta a ameaça de que essas tendências sejam ainda mais exacerbadas. Tristemente, nenhum compromisso claro de novos cancelamentos de dívidas é prometido na Agenda Adis.

Conclamamos os governos a levar adiante os importantes desenvolvimentos normativos na direção de melhorar a reestruturação das dívidas soberanas que aconteceram na ONU nos últimos anos. Também pedimos um engajamento construtivo de todos os governos nas tentativas de se criar uma nova instituição para reestruturação das dívidas e uma arquitetura legal multilateral sobre dívidas soberanas na ONU, como foi iniciado pela Resolução 68/304 da Assembleia Geral da ONU. Estes processos devem ser usados para se produzir um mecanismo internacional abrangente, independente de credores e devedores, disponível para países endividados para que possam ter suas dívidas revistas considerando parâmetros de legitimidade e sustentabilidade da dívida com a plena participação da população do país envolvido.

Lamentamos que estes esforços sejam reconhecidos apenas de modo implícito na Agenda Adis. Os governos também perderam a oportunidade de reduzir os riscos de futuras crises de endividamento adotando os Princípios UNCTAD sobre Concessão e Tomada de Empréstimos Soberanos Responsáveis. Estes princípios, lançados pela UNCTAD em 2012 após consultas feitas junto a uma base ampla, consistem apenas na reiteração de melhores práticas e leis internacionais sobre o assunto já existentes. Aderir a eles não custa dinheiro mas pode economizar bilhões em contratos e pagamentos de dívidas sem garantias.

Já é tempo de os cálculos de sustentabilidade das dívidas deixarem de ser exercícios “puramente técnicos” como as Instituições de Bretton Woods dizem que são, e que elas incorporem as dimensões moral e legal que os seus impactos em direitos humanos exigem. O Consenso de Monterrey ofereceu um bom começo para este compromisso de associar a sustentabilidade da dívida às necessidades de financiamento para que os países atinjam os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Lamentamos não ver na Agenda Adis a renovação deste compromisso ou um compromisso de implementar os Princípios Guia para Dívida Externa e Direitos Humanos. De fato, se o resultado buscado em Adis Abeba é ter um papel relevante nos meios de implementação dos ODSs, deve tratar concretamente tanto o impacto do serviço da dívida na realização dos ODSs pelos Estados e a incorporação dos recursos financeiros públicos necessários para implementar os ODSs nas análises nacionais de sustentabilidade da dívida.

Associadas de modo inextricável ao problema do endividamento são as dívidas odiosas e ilegítimas e, também, as ações decisivas para enfrentá-las, no sentido de pôr um fim à sua reacumulação, inclusive por meio de auditorias independentes das dívidas. Este passo direcionado para a ação é necessário com urgência.

Tecnologia

O Acordo da Agenda Adis colocou a Tecnologia num lugar de relevo no discurso do financiamento ao desenvolvimento, e isso é um desvio em relação a declarações anteriores.

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Vemos com bons olhos a referência específica a “tecnologias acessíveis para pessoas deficientes” e também esperamos a facilitação do acesso à tecnologia para outros setores marginalizados. É preciso que haja um reconhecimento explícito de que a tecnologia não é neutra quanto ao gênero e que necessidades e circunstâncias específicas das mulheres precisam ser integradas na projeção e desenvolvimento de tecnologias. Direitos humanos, inclusive o direito à privacidade, devem ser protegidos em TCI.

É crucial enfatizar que o desenvolvimento de tecnologias não é um monopólio do setor formal, e também que a tecnologia não é apenas transferida e difundida pelo setor privado e por países industrializados. A adoção de soluções tecnológicas para se alcançar objetivos de desenvolvimento não deve ser baseada em uma aceitação acrítica das promessas das novas tecnologias e seus potenciais de levar à distribuição do desenvolvimento, mas sim no reconhecimento de seu risco de aprofundar desigualdades e na compreensão das opções de tecnologias disponíveis para suprir necessidades específicas, condições e capacidades dos países e comunidades.

O papel inestimável do conhecimento indígena e tradicional para se enfrentar os desafios de desenvolvimento por gerações deve ser fortemente reconhecido e promovido, e as inovações comunitárias devem ser apoiadas como o são as do setor formal. Os fundos de inovação devem ser estabelecidos para apoiar o desenvolvimento e difusão de tecnologia local, promover o conhecimento tradicional e fortalecer a capacidade de inovação comunitária. O conhecimento tradicional deve ser protegido da apropriação indevida.

O papel do financiamento público para apoiar inovações locais e sistemas de conhecimento tradicionais é crucial. Tecnologias desenvolvidas com financiamento público devem permanecer em domínio público e devem ser disponibilizadas para países em desenvolvimento. A gestão da pesquisa, ciência, tecnologia e inovações deve ser inclusiva e transparente.

Louvamos o estabelecimento de um Mecanismo de Facilitação Tecnológica (MFT) na ONU e reconhecemos seus potenciais de lidar com os obstáculos da transferência de tecnologia de maneira a permitir que os países em desenvolvimento possam fortalecer suas capacidades de inovação para responder aos desafios de desenvolvimento. Esperamos que os processos abertos, transparentes e inclusivos que estão compreendidos no MFT venham a acolher considerações críticas sobre temas e opções de tecnologia ao invés de se tornar meramente uma plataforma de venda de tecnologias. Para ser responsivo e antecipatório, o MFT precisa permitir que os países monitorem e avaliem os impactos potenciais de tecnologias na economia, nos empregos e meios de subsistência, na sociedade e no meio ambiente, com participação direta das comunidades e da sociedade civil. Questões sistêmicas no desenvolvimento e transferência de tecnologia, tais como direitos de propriedade intelectual restritivos, questões de comércio e financiamento precisam ser abordadas com altivez pelo MFT, pois estabelecem diretrizes em ciência, tecnologia e inovação para se alcançar os ODSs.

Questões sistêmicas

Os governos que se encontraram para a Revisão de FaD de Doha há sete anos tinham diante de si a maior crise financeira desde a Grande Depressão. Deveria ter sido um alerta para reformularmos os fundamentos de um sistema financeiro e monetário internacional que fracassa ao servir ao desenvolvimento sustentável e aos direitos. Sete anos depois, os impactos e repercussões da crise financeira ainda são sentidos no desemprego e nos serviços sociais não recuperados, na desigualdade e na contínua degradação ambiental. As pessoas que enfrentam desigualdades estruturais, como mulheres e jovens, foram

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desproporcionalmente afetadas. Enquanto isso, vemos o setor financeiro confortavelmente retornando a suas práticas pré-crise e em alguns casos obtendo lucros ainda maiores que antes, enquanto continuamos a transgredir as fronteiras planetárias. O processo de financeirização das economias segue adiante e está criando mais desigualdade e instabilidade e tirando recursos financeiros dos setores sustentáveis e igualitários do desenvolvimento. Os chamados para se reestruturar as fundações do sistema financeiro e monetário internacional, inclusive os que foram feitos na Conferência Mundial sobre a Crise Financeira e Econômica, passaram despercebidos. Se outra crise fosse estourar hoje, o mundo estaria tão despreparado quanto estava em 2008 para reduzir seus custos e assegurar que eles sejam assumidos por quem os causou, com seu comportamento imprudente e ganancioso.

A Terceira Conferência de FaD ofereceu a oportunidade de se construir a sólida fundação institucional necessária, ainda mais com o novo paradigma de desenvolvimento sustentável que a comunidade internacional planeja adotar por 30 anos a começar em setembro de 2015. Reafirmar a primazia dos direitos humanos e a proteção ambiental sobre as políticas para finanças, comércio e regulações monetárias, e da coerência, é altamente necessário. Mas os governos ainda fracassam em assumir a liderança política necessária para fortalecer o papel das Nações Unidas na condução das necessárias reformas baseadas em direitos humanos e pró-desenvolvimento dos sistemas econômico e financeiro globais e em uma maior coerência institucional.

Ao invés de uma profunda reflexão sobre os fracassos do FMI pré e pós-crise e seu conselho de se aplicar austeridade sem garantias como resposta a ela, a Agenda Adis propõe um recrudescimento dessa via. Valida os insuficientes processos de reforma de governança que estão em curso. A extensão do uso da dupla maioria dos votos no FMI – exigindo maiorias relevantes dos votos e dos países para todas as decisões – seria um caminho simples mas eficaz de dar aos países em desenvolvimento uma voz equânime. Ao mesmo tempo, reiteramos nosso apoio à emergência de novas instituições de finanças para o desenvolvimento que possam representar uma alternativa melhor do que o paradigma de finanças que as Instituições de Bretton Woods atualmente representam.

A necessidade de coordenar políticas dos principais países industrializados por seus impactos além de suas fronteiras e nos países em desenvolvimento, reconhecida em Monterrey, é substituída por um texto que dá a impressão de que qualquer política de qualquer país tem o mesmo impacto em âmbito global.

Não há qualquer clamor por reformar o regime de Direitos Especiais de Saque em direção ao seu máximo potencial, para servir como ferramenta de finanças para o desenvolvimento e como centro do sistema monetário internacional. O FMI deveria emitir US$ 250 bilhões por ano em novos DESs, baseando esta alocação em necessidades econômicas e destinando a maioria dos recursos aos países em desenvolvimento. O controle de capitais, ferramenta que serviu bem a muitos países em suas respostas à crise, é vagamente reconhecido no esboço do documento conclusivo, como um último recurso a ser usado depois que as medidas de ajuste são aplicadas.

As Agências de Classificação de Risco de Crédito deveriam melhorar a qualidade dos critérios de suas avaliações de risco, de modo a apoiar o desenvolvimento sustentável, inclusive incorporando a dimensão da sustentabilidade ambiental. Chamamos os Estados Membro a iniciar um processo na ONU para desenvolver diretrizes que apontem para este propósito.

Acompanhamento

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Acreditamos que as referências à importância da transparência e prestação de contas no acompanhamento da Agenda de Ação de Adis Abeba não tem a devida correspondência em fortes compromissos da parte dos governos de publicar informações periódicas, abrangentes, acessíveis e voltadas ao futuro sobre todas as atividades ligadas ao desenvolvimento e fluxos de recursos, públicos e privados, domésticos e internacionais, inclusive sobre receitas, alocações, gastos, contratações e resultados. Conclamamos os Estados Membro a se comprometer com a implementação dos padrões atuais relativos a abertura de dados sobre os tópicos mencionados acima, como a Iniciativa de Transparência da Ajuda Internacional. Novas tecnologias da informação, capacitação e disponibilidade de abertura de dados dos atores estatais e não-estatais são vitais. Os governos deveriam criar um ambiente favorável, inclusive pela adoção e implementação de leis e políticas de direito à informação e pela alocação de recursos, que facilite a contribuição e participação do público nas tomadas de decisão e monitoramento das atividades ligadas ao desenvolvimento em todos os níveis.

É fundamental garantir que compromissos com prazos e planos de ação estabelecidos nos acordos de FaD firmados até o momento tenham continuidade com uma Comissão dedicada ao seu acompanhamento e revisão. A ausência de um compromisso de estabelecer um mecanismo forte de acompanhamento do FaD tem tido consequências horríveis para a capacidade dos países, em especial países em desenvolvimento, de implementar não apenas os ODSs como também as agendas internacionais de desenvolvimento acordadas, inclusive em Copenhague, Pequim e Cairo.

Reconhecemos que o estabelecimento na Agenda Adis de um Fórum de Financiamento ao Desenvolvimento intergovernamental e universal com resultados acordados é efetivamente um passo na direção certa. Em todo caso, como o mesmo espaço ficou encarregado de acompanhar os Meios de Implementação da agenda de desenvolvimento pós-2015, existe o risco de levar à uma apreciação fragmentada do financiamento ao desenvolvimento no que se refere a cada objetivo e meta específicos dos ODSs, e a perder o foco em questões sistêmicas. Isso não estaria alinhado com o foco holístico do FaD, que costumava facilitar as pontes e interconexões entre desenvolvimento, comércio, finanças, endividamento, questões sistêmicas e compromissos de direitos humanos, inclusive os direitos das mulheres. Além disso, a arquitetura do FaD vai muito além do financiamento específico aos ODSs e seu enquadramento temporal de quinze anos, já que ela tem um papel autônomo e um foco singular em questões sistêmicas internacionais, sem uma duração definida. É por essa razão que pedimos o firme compromisso de fortalecer um processo institucionalizado que garanta uma robusta implementação dos acordos de Monterrey, Doha e Adis para a implementação do FaD nos próximos anos. O mandato concedido à plataforma de Financiamento ao Desenvolvimento representa o potencial de uma mudança brutal na direção da transformação estrutural de urgente necessidade neste mundo marcado pela desigualdade, e se trata sim de um imperativo para preservar sua integridade e força.

Entre as OSCs e os movimentos sociais existe um forte compromisso com uma abordagem de financiamento ao desenvolvimento que atenda as necessidades básicas de todas as pessoas enquanto se preserva o planeta para as futuras gerações. Este não é o rumo que o financiamento ao desenvolvimento tem tomado atualmente, e estamos bastante insatisfeitos com isso.

Reafirmamos nossa intenção de continuar a trabalhar com todos os países, grupos de países, instituições e autoridades subnacionais no sentido de alinhar o financiamento com o modelo de desenvolvimento que apoiamos, e não as necessidades de um setor corporativo transnacional que não presta contas, inclusive suas companhias financeiras. Para este propósito, vamos trabalhar para fortalecer a comunidade de OSCs envolvidas no FaD, nos âmbitos global, regionais e dos países.