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BRAUNE. Fernando. O surrealismo e a estética fotográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

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BRAUNE. Fernando. O surrealismo e a estética fotográfica. Riode Janeiro: 7Letras, 2000.

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Capturar visualmente o mundo e narrá-lo, sob este pontode vista, ontologicamente (mesmo que apenas sob a forma de umregistro gratuito de seus aspectos óbvios e cotidianos) temsido um dos desejos mais arraigados do homem ocidental. Talanseio “óptico” de representação conduziu, em termosimagéticos, a uma autêntica “quebra” do, até entãoprestigiado, ato pictórico, ao ser implementado, em plenoséculo XIX, o agenciamento técnico final do dispositivofotográfico. Este fato se deveu a pioneiros do naipe deThomas Wedgwood, Joseph Nicephore Niepce, Louis Jacques MandeDaguerre, Hippolyte Bayard e William Henry Fox Talbot - paracitar apenas os mais bem sucedidos, dentro de uma legião deengenhosos pretendentes – precisamente em agosto de 1839,quando o governo francês comprou a patente do daguerreótipo,disponibilizando-o para o uso público, já com o nome“fotografia” (híbrido dos termos gregos phos, “luz” egraphein, “escrever”, literalmente significando “escrita – ouregistro – luminosa”) – sugerido, à época, por Sir JohnHerschel. O referido agenciamento simplesmente arrematava umasérie de esforços, remissíveis à arquetípica câmera obscura,tão cara aos renascentistas, em não só dar conta de umarepresentação mais “pura” do real, quanto em disseminá-la epartilhá-la em nome da racionalidade científica triunfanteou, pelo menos, para a fruição simbólica das classes, queentão agentes oficiais do poder, nela investiam.

Autêntica interface do técnico e do estético, do jogoduro da representação e da maleabilidade conceitual crítico-moderna, a fotografia tem se constituído em um domínio, semdúvida, privilegiado – principalmente se levarmos em conta ofato de ela não poder apelar, como pôde o cinema, para acodificação fácil do binômio narrativa ficcional-movimento notempo – no que tange a uma melhor elucidação da sensibilidadecontemporânea. No entanto, e apesar disso, são aindarelativamente ouças, em nosso idioma, as incursões teóricasde qualidade, no que diz respeito à linguagem fotográfica eseu entorno poético. A exemplo dos ensaios, por aqui játraduzidos, de Philippe Dubois (O Ato Fotográfico) e de Jean-Marie Schaeffer (A Imagem Precária: Sobre o DispositivoFotográfico), O Surrealismo e a Estética Fotográfica, deFernando Braune, persegue um novo approach dessa ordem,revelando-se enriquecedor não só por sua tentativa de(re)discussão dos aspectos intrínsecos da fotografia, comotambém por sua proposta de elucidação de um certo elemento de“surrealidade” impregnante do olhar fotográfico. Se oprincipal percalço de uma reflexão incisiva sobre afotografia ainda repousa sobre o cotejamento, em teseimprovável desde Platão, entre as ordens lógico-metafisicamente excludentes da representação-simulação e daobjetividade-verdade, uma análise inter-faceante, como a aquifomentada, do projeto surrealista – no caso, pelacaudalosidade de um Giorgio de Chirico, um Max Ernst, um Joan

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Miró ou um Marcel Duchamp – em sua intencionalidade “deafrontamento da passividade, do enfado e da alienaçãoimpostos pela racionalidade moderna”, decerto nos conduz a uminstigante sobrevôo emancipatório. Urge acrescentar que aqualidade visual de tal sobrevôo jamais deixa de ser-nosgarantida pelos recortes vigorantes com que Fernando trata demunicionar nossa leitura e que, indo, entre outros, da dicçãocega das lentes de Evgen Bavcar ao voyeurismo paralisante doestranho de Diane Arbus, balizam com acuidade todo opercurso.

Jorge Lucio de Campos

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO [7]

I – A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE [9]

O referente [9]O atrelamento da fotografia às artes plásticas [10]A busca da autonomia [12]

II - O OLHAR SOCIAL URBANO [15]

A periferia [15]A surrealidade em Arbus e Seurat [16]O deslocamento do conceito do belo [20]As bases do Surrealismo [21]A dessacralização do nu [21]A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista [24]Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia) [26]A surrealidade fotográfica de Miró [27]

III - A IMAGEM SUBVERTIDA [30]

Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista [32]A surrealidade em Picasso [33]De Chirico [34]Duchamp e os ready-mades [34]Magritte [36]

IV - O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTOSURREALISTA [38]

A fotografia inserida na filosofia do 2º ManifestoSurrealista [40]

V - A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA [49]

VI - A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA [53]

A transgressão do espaço [54]A grande angular [57]O ângulo superior [57]

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A fotografia aérea e antiaérea [59]

VII - O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL [62]

O aspecto psicológico [62]O aspecto cultural [63]O aspecto social [66]O aspecto temporal [69]O confronto espaço x tempo [71]O percurso espaço-tempo nas artes [72]

VIII - A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE [77]

A surrealidade fotográfica em Magritte [80]Tragédia e talismã [82]O tempo fotográfico em De Chirico [82]O tempo fotográfico em Tanguy [83]

IX - A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEMFOTOGRÁFICA [86]

X - O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA [94]

XI - O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA [100]

A visão do cego historicamente [100]O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental [100]Evgen Bavcar [102]O cego e a questão mimética da fotografia [103]A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelocego [106]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [112]

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Para Marcia, Fernanda e Laura

portos que me amparam,velas que me fazem navegar.

À Daniel & Cia,que acreditou neste trabalho.

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INTRODUÇÃO

Este livro nasceu da necessidade que percebo em sediscutir, cada vez mais, a fotografia por dentro, em seusmais amplos espectros. Ative-me, de maneira mais específica,à surrealidade impregnada à fotografia, não exclusivamente aoMovimento Surrealista em si, embora este tenha-se configuradocomo o fio condutor para os principais questionamentos. Partido princípio de que o Surrealismo seria um veio interessantepara se discutir a fotografia, porque as suas própriasorigens apontam para esse caminho.

Em meio ao alucinante ritmo desenvolvimentista do séculoXIX, assolado pela Revolução Industrial, nasce a fotografia,num clima permeado pelo mundano, pelo desajuste social e portudo o que poderia levar o homem a uma total padronização desentidos, apontando, assim, para a sua aniquilação como serindividual.

Embora o Surrealismo, como movimento, tenha surgido umpouco mais tarde, as suas raízes percorrem o rastro de toda adesarticulação social da urbanicidade, e essa referência seráo grande elemento de comunicação entre a linguagemfotográfica e o Movimento Surrealista em si.

O projeto surrealista teve como balizamento o direto eobjetivo afrontamento à passividade, ao enfado, à alienação,enfim, a toda racionalidade que a modernidade acabou porimpor ao ser humano. O Surrealismo simbolizou uma luta nosentido de devolver ao homem a sua potencialidade criativa,retirando-o de uma estagnação paralisante e da alienação, aolibertá-lo das forças constrangedoras e opressoras de coação,fontes da lógica, da razão e da moral, com o intuito depromover a verdadeira harmonização entre as suas instânciasconsciente e inconsciente. A fotografia, de uma certa forma,perfaz o mesmo caminho, porém por outro viés, de maneirasutil, quase imperceptível. A carga desarticuladora,mobilizadora da fotografia concentra-se de forma maisacentuada no que ela deixa de mostrar, no que esta implícito,em tudo aquilo que não nos é dado de pronto, de imediato pelaimagem fotografada – há que se mergulhar na virtualidade dafotografia para, de fato, tocá-la e ser tocado, ungidosurrealisticamente.

Neste livro, proponho trazer à tona artistas eintelectuais que, de alguma forma, participaram, direta ouindiretamente do Movimento Surrealista, e do qual tornaram-sereferencias marcantes, como Breton, Masson, Tanguy, MaxErnst, Duchamp, Magritte, Miró, Dalí, De Chirico, Seurat,Picasso, Mallarmé, Appolinaire, Artaud, entre outros. Asfilosofias que permearam as obras desses artistas serviram-mede gancho, de ponto de ignição para discutir a surrealidade

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impregnada na fotografia, na tentativa de estabelecer umarelação de vasos comunicantes entre as diversas linguagens.

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I - A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE

É mais do que plausível que, desde o anúncio oficial desua criação, em 1839, por Daguerre, a fotografia tenhasofrido as mais severas críticas e ataques de todos os lados.Ela é uma atividade que nasce dúbia, permeia terrenos atéentão inimagináveis de se postarem juntos – fascina,deslumbra, mas aterroriza, amedronta. Que atividade tãoperigosa e surreal é essa, nascida da pesquisa científica,das experiências da química e da física e que, ao mesmotempo, insere-se no contexto artístico? E ciência ou arte?

A sociedade sempre foi ávida pela classificação, peloenquadramento, para que, a partir de uma definição, possaexercer seu poder sobre as atividades e manipulá-las damaneira que melhor lhe convier. E o ponto nevrálgico estáexatamente aí, pois a fotografia é escorregadia, e aí está oseu perigo, pois quando se pensava estar amarrada aos cânonesestabelecidos, ela transmutava, percorria outros caminhos,deambulava pela própria escuridão, na retomada do que eragenuinamente da sua natureza. Por isso a fotografia foi,durante um longo período, tão desrespeitada.

Ao mesmo tempo em que as primeiras fotografias mostravamimagens tipicamente dentro do cenário pictórico (temasalegóricos, históricos, naturezas-mortas etc.), o discurso emtomo delas nascia preso ao caráter científico de suasabordagens, apregoando uma fiel e exata representação darealidade.

O referente

A partir daí, a fotografia passou a enredar-se em suaspróprias teias. O cerne da questão encontra-se dentro daprópria linguagem fotográfica, no que há de inerente ao seupróprio meio, que é o referente.

Por mais abstrata que seja uma fotografia, por mais queela "minta", por mais que nela sejam adicionadasinterferências de quaisquer categorias, por mais surreal quepossa vir a ser uma fotografia, ela não deixa de estaratrelada ao referencial, Aquilo que, no exato momento em queo disparador da câmara foi acionado, estava lá – presençaincontornável –, caso contrário não haveria algo fotografado,não haveria a fotografia. Como disse Roland Barthes em Acâmara clara, o referente adere, por mais que queiramos nosdesvencilhar dessa característica. Essa condição indiciária,referencial, no entanto, que é a ontologia da fotografia, porter sido mal interpretada e pouco compreendida, acabou porlevá-la à condição de mimese, de "espelho da realidade". Essacondição mimética atribuída à fotografia vem do

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inquestionável deslocamento da realidade do objetofotografado à película no instante em que se fotografa, desua condição pragmática e existencial amarrada a uminstrumento mecânico, que só sobrevive em simbiose com arealidade, o resto sendo retórica. Ficava, portanto,estabelecido que a "imitação mais perfeita da realidade"estava nas mãos da atividade fotográfica, ficando o universoartístico relacionado a outras atividades mais nobres, maissublimes.

Essa visão estabelecida pela sociedade vinha respaldadapor intelectuais e críticos de arte da época, que entendiam aarte como uma atividade da imagística, de abstração darealidade, onde o sujeito, o ser humano, interpreta o mundo àsua maneira. A atividade artística, enfim, era vista comoalgo intimamente ligado à autoria, enquanto a fotografia,atividade regida por um instrumento mecânico e pelas leis daótica e da química, nada mais fazia, segundo essa visão, doque registrar, com fidedignidade, a realidade através da luz,sendo-lhe negada qualquer tipo de intelectualidade, decriatividade e interpretação. Entendia-se, assim, que nenhumtipo de interferência era requerida pelo sujeito que aoperasse, ou seja, encontrava-se a fotografia bloqueada pelofundamento da atividade artística, que era a autoria. Já quea arte era, conceitualmente, criação, e a fotografia eraconsiderada mero registro fidedigno da realidade, isenta,portanto, de qualquer indicio criativo, passava esta a serexcluída do circulo artístico, fato que se constituiu numerro crasso de interpretação do "índice fotográfico", uma vezque índice não implica, necessariamente, em mimese. Esseconceito gerou as mais fantásticas discussões em torno daatividade fotográfica, e muito embora ainda hoje, nos meiosmenos atentos, a condição indiciária da fotografia seja muitoconfundida e mal interpretada como mimética da realidade, foia partir, exatamente, de uma nova conceituação e discussão emtorno do índice que a fotografia passou a constituir-se comomeio de expressão com linguagem própria, autônoma,independente das amarras que a prendiam aos conceitospróprios da pintura, tornando-se, assim, parte do cenárioartístico.

O atrelamento da fotografia as artes plásticas

Antes de entrarmos na discussão da independência daatividade fotográfica, seria interessante uma digressão emtomo da dependência em que ela se manteve por tanto tempo.

A época do surgimento da fotografia, a pintura, que erao meio de representação do mundo, já carregava em seus ombroso pesado fardo de pertencer às "Belas Artes", além decarregar, por praticamente quatro séculos, o vicio do olhar

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renascentista. Obviamente, não se trata aqui de uma negaçãoou critica desfavorável ao movimento renascentista, só que osseus fundamentos e noemas encontravam ressonância noscontextos social, político, psíquico e científico dasociedade quatrocentista, que deixava de ser regida pelospoderes divinos, deixava de ser meramente um reflexo dopensamento de Deus, passando a colocar o homem como centro detodas as coisas.

A herança renascentista vem da perspectiva lineareuclidiana,1 colocada em pratica por Brunelleschi, 2 que faziacom que o mundo passasse a ser representado a partir de umúnico ponto de vista, fixo, ideal, perpendicular ao plano doquadro, induzindo o encontro das linhas paralelas em um pontode fuga, ou seja, nos dando a representação tridimensional domundo de forma idealizada, bela, em um espaço bidimensional –a tela. Essa visão de representação do mundo atrelada aoconceito do belo e conquistada pela pintura, portanto,alijava qualquer outra visão que não pertencesse aos seusprincípios.

Em vista desse cenário, os fotógrafos, por nãoencontrarem suporte dentro da própria linguagem fotográficapara alcançarem "um lugar ao sol", e, assim, pertencerem auma das "Belas Artes", passavam a utilizar-se dos meios dapintura para conseguir o status tão desejado, negando todosos princípios da fotografia, até mesmo evitando seremchamados de fotógrafos, preferindo denominações comopintores-fotógrafos, escultores-fotógrafos, fotógrafos-artistas. De forma a tirar a fotografia do seu caráter"mundano”, "prosaico", houve, pois, uma grande corrida para aabordagem de temas históricos, literários, anedóticos,típicos da pintura plenamente assimilada pela sociedade daépoca, já que, além da mera mecanicidade atribuída àfotografia, havia um total descrédito a essa atividade quetratava de temas urbanos, comuns e vulgares, sem ocomprometimento com o belo.

Os chamados fotógrafos pictorialistas perseguiram deforma incansável os cânones das "Belas Artes", chegando aoápice da negação da linguagem fotográfica com fotomontagensinspiradas nas pinturas pré-rafaelistas3, principalmente 1 Euclides: matemático grego (séc. III a.C.) autor deElementos, base da geometria elementar que contém o Postuladode Euclides.2 Brunelleschi (Fillipo): arquiteto italiano (Florença,1377-1446). Considerado o maior iniciador da Renascença, construiuem Florença a cúpula da catedral de Santa Maria Del Fiori.

3 Pré-rafaelismo: escola de pintura surgida na Inglaterra em1848, capitaneada por William Hunt e Dante Gabriel Rossetti.

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através de Reijlander e Robinson4, que fotografavam váriosplanos de uma cena, já que os recursos da fotografia, naépoca, não permitiam todos os planos em foco, para que, emseguida, fossem montados. Essas composições compreendiam umcaráter eminentemente caricatural, de exacerbação de gestos eatitudes, o mais próximo possível da pintura acadêmica,diferentemente das fotomontagens tratadas pelo MovimentoSurrealista, de que falaremos adiante.

A busca da autonomia

Se por um lado as fotomontagens dos fotógrafospictorialistas, baseadas na perfeição de detalhes daspinturas pré-rafaelistas, afastavam a fotografia dascaracterísticas próprias de sua linguagem, por outro ladoapontavam para um caminho até então inimaginado para estaatividade, o qual voltava-se para a criatividade, aintervenção direta do sujeito na obra enfim, a autoria. Afotomontagem permitia selecionar, criar, inventar uma imagem,e assim abria-se um veio de discussão de extrema importância.Uma vez que os fotógrafos da época sentiam a necessidade delançar mão de montagens para conseguir imagens o mais próximopossível da realidade, ficava claro que a fotografia nãopossuía meios suficientes para ser credenciada como alinguagem mais exata para representar o mundo.

Vendo-se diante de tais constatações, algumas correntesde fotógrafos passaram a discutir a atividade fotográfica pordentro, através das características de sua própria natureza,deixando de lado tudo o que não pertencia à sua linguagem,voltando-se para o exame dos seus próprios fundamentos, emsuma, assumindo sua autocrítica.

Acreditando que a arte tinha tornado um rumo errado a partirdo "estilo grandiloqüente" de Rafael, de idealização danatureza, tendo como modelo os grandes nomes do Renascimento,Os pintores pré-rafaelistas remontam ao período pré-Rafael,não mais idealizando e sim trabalhando a natureza com tudo oque existia. Por não desprezarem nem selecionarem nada danatureza, as suas pinturas eram riquíssimas em detalhes,representando a natureza o mais fidedignamente possível.4 Oscar Reijlander (1813-1875) e Henry Peach Robinson(1830-1901): fotógrafos que realizaram as mais famosasfotomontagens alegóricas, lendárias e heróicas, utilizando-sede todos os recursos na tentativa de imitação da pinturaacadêmica, principalmente da pintura holandesa de Rembrandt,Frans Haals e Jan Van Dyck.

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A fotografia seguia, assim, na esteira da críticakantiana,5 fundamentada numa autocrítica de dentro para fora, onde cada área do saber deveria estabelecer os seuspróprios limites, em oposição à religião, que, ao apoiar-seno dogma (dogma por definição é inquestionável,indiscutível), negava seu questionamento, sua autocrítica e,por isso mesmo, veio perdendo poder ao longo dos anos.

Cada meio de expressão tenta buscar as qualidadesintrínsecas, únicas de sua linguagem, procurando umadepuração, uma espécie de catarse, com o objetivo dedespoluir-se, principalmente, de tudo o que não é seu paratornar-se plena, independente, até mesmo para ter condiçõesclaras, sem receios ou traumas, de misturar-se, fundir-se aoutras linguagens, sem com isso perder a sua individualidade.Essa inter-relação entre as linguagens tem sido, desde MarcelDuchamp6, a tendência natural das artes plásticas, ratificadade forma mais acentuada a partir da Pop Art7, principalmentea partir de Robert Rauschenberg,8 que, através de suas“Combine Paintings”, integrava, em um mesmo espaço, váriosmeios de expressão, cada um deles guardando a sua própriaautonomia.

No caso específico da pintura, um longo caminho teve deser percorrido até que se percebesse a sua singularidadediante das outras formas de expressão, o que havia degenuinamente seu, que era exatamente a tela. A partir domomento em que a pintura enxergou a bidimensionalidade datela como o que havia de particularmente seu e de mais nenhumoutro meio de expressão, os pintores passaram, pouco a pouco, 5 Kant (Emanuel) : filósofo alemão (1724-1804), autor daCrítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica doJuízo e dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes.6 Marcel Duchamp : artista francês (1887-1968). Inicialmenteinfluenciado pelo Cubismo, teve depois participaçãoimportante no movimento Dadá e no Surrealismo. Fixou-se nosEstados Unidos onde dedicou-se à “antiarte” e em 1914 criou oseu primeiro ready-made.7 Pop Art: Escola de pintura surgida nos Estados Unidos porvolta de 1960, caracterizada por utilizar elementos datecnologia industrial dos grandes centros urbanos. Tinha comofonte de inspiração os cartazes de publicidade, automóveis,eletrodomésticos, comestíveis enlatados, histórias emquadrinhos, fotomontagens com personagens mundialmenteconhecidos, enfim, tudo o que estava relacionado à cultura demassa.8 Robert Rauschenberg: pintor norte-americano (1925-), criouas “Combine Paintings”, em que misturava elementosfotográficos, pictóricos, escultóricos, ao lado de tintasindustriais em um mesmo suporte.

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a desvencilhar-se da pintura escultórica, da representação datridimensionalidade do mundo, entregando-se às pesquisas doplano, alavancadas por Braque9 e Picasso, 10 resultando em suatotal autonomia, já que estavam a lidar com o que erarealmente seu.

9 George Braque : pintor francês (1882-1963). Participouprimeiramente do Fouvismo. Em 1908 fez uma exposição onde seobservavam “pequenos cubos”nem suas telas, surgindo, daí aexpressão “cubismo”. De 1909 a 1913 trabalhou com Picasso,criando o Cubismo analítico. Foi Braque quem executou asprimeiras colagens na pintura.10 Pablo Picasso: pintor espanhol (1881-1973). O mais célebreartista do século XX, embora tenha sido ligado ao Cubismo comBraque, permaneceu um criador independente de qualquerescola. Realizou obras de cerâmica, escultura, desenho egravura, além da pintura.

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II – O OLHAR SOCIAL URBANO

A fotografia apontou para a vertente natural de sualinguagem, que compreendia o lado social-urbano, assolado poruma infinidade de contrastes e perturbações. Nessa atmosferanascia a fotografia, integrada às suas mais ocultasrealidades.

A periferia

O olho do fotógrafo voltava-se, portanto, para tudo oque era não-oficial, enveredando pelos becos escuros,conferindo importância aos desvalidos, a uma sociedademarginal, onde o ser humano encontrava-se em total desarmoniacom a euforia desenvolvimentista da modernidade, dirigindo-se, enfim, para uma realidade banida dos privilégiosburgueses, ou seja, para a supra-realidade, aos olhos dasociedade oficial.

A atividade fotográfica antecipava, de certa forma, oambiente surrealista, os meandros pelos quais os surrealistasiriam vaguear. A periferia, habitat natural do fotógrafo,compreenderia, da mesma forma, o ponto de partida dostrabalhos de vários pintores surrealistas como Yves Tanguy,11

por exemplo, que, ao colocar em questão o relacionamento doser humano com o mundo moderno, apresentou espaços abertos,desérticos, construções industriais em ruínas, restos dodesenvolvimento; s”ao ambientes assombrosos, de grande mal-estar, onde raramente há qualquer referência humana, e quandohá, é marcada pelo isolamento, pela solidão humana, pela suatotal desconexão com a sociedade, prevendo um futuroameaçador e de incertezas.

Esse desajuste do homem frente a sociedade, preconizadopor Tanguy e trabalhado pelos fotógrafos será, em suaessência, a mola mestra de onde partirão os ideáriossurrealistas. Embora o Movimento Surrealista bretoniano12

tenha tido diversos desdobramentos no percurso da história, ofio condutor que o levou à sua formação foi, sem dúvida, um

11 Yves Tanguy : pintor americano, de origem francesa (1900-1955). Foi introduzido ao Surrealismo em 1925, ondeparticipou de todas as exposições do movimento. Suas obrasforam realizadas com um cuidado rigoroso e podem serconsideradas das mais ricas plasticamente e das maiscaracterísticas do Surrealismo.12 O Movimento Surrealista enquanto uma Escola: criado peloescritor francês André Breton (1896-1967). Breton fundou arevista Litterature, órgão do movimento Dada, que preconizavaa destruição dos valores lógicos, morais e artísticos. Oculto do irracional o conduziu ao Surrealismo, do qual elefoi e continuou sendo o principal articulador, chegando a serchamado de “O Papa do Surrealismo”. Em 1924 escreveu o 1ºManifesto do Surrealismo e em 1930, o 2º Manifesto.

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total desagravo à sociedade vigente. De fato, asconseqüências da Revolução Industrial acabaram por criar todoum clima favorável à formação de um movimento com ascaracterísticas do Surrealismo. A mecanização da indústriapropiciou um aumento na oferta e na qualidade dos bens deconsumo, criando grandes atrativos para que as pessoasdeixassem o trabalho escravo do campo e fossem em direção aosgrandes centros, em busca de melhores ofertas de emprego.Além disso, a própria mecanização da agricultura, ao demandarmenos mão-de-obra, favorecia o fenômeno da urbanização,gerando uma concentração exagerada e desordenada da populaçãonas cidades. Por outro lado, a dinâmica da RevoluçãoIndustrial exigia transformações urgentes, tendo comoconseqüências profundas e radicais alterações nocomportamento da classe trabalhadora, que se viu frente apéssimas condições de trabalho e à exigência da produção emsérie extremamente maçante e alienante, aliada aos baixossalários.

Assim, se por um lado todo esse sistema pôdeproporcionar melhorias na qualidade de vida da população, poroutro gerou uma imensa massa de trabalhadores desajustados,com sérios problemas sociais, perdendo cada vez mais a suaidentidade. Como reflexo de toda essa situação, as artesplásticas, de um modo geral, passaram a ser permeadas nãoapenas pelos novos desenvolvimentos científico-tecnológicos,mas pelo profundo embate do ser humano frente a tamanhosdesajustes proporcionados pela modernidade.

Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensae importante na formação da nova psicologia da sociedadeurbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a faceoculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado portabus, enfim, voltando-se para aqueles a quem a sociedadetinha virado as costas.

A surrealidade em Arbus e Seurat

Vários foram os fotógrafos que se alinharam a essavertente, porém creio ter sido Diane Arbus (1923-1971) quem,com maior sensibilidade, entendeu e participou, de formaprofunda, desse mundo, bem ao gosto surrealista.

Arbus teve a capacidade de não se enfronhar nesse mundomarginal de forma chã. Não era seu interesse tratar dapobreza material dos desprotegidos. O seu projeto ia muitoalém de inventário documental da evidente e incontestávelsituação por que passava boa parte da população urbana, e éaí que se forma o seu vínculo com o Surrealismo. Os elegidosde Arbus eram aqueles que não participavam do processoprodutivo da sociedade, por isso sendo excluídos,independentemente de sua condição social ou financeira. Amiséria de que trata Arbus passa muito mais por um caráterinterno, privado, do que externo. Todos os seus personagens,quer se trate de doentes mentais, travestis, anões, quer setrate de um cidadão comum das ruas, carregam dentro de si ogrotesco, o insano, o monstro, frente aos padrões sociais

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estabelecidos. Todos pertencem ao mesmo universo dosdesajustados, dos excluídos. Se os personagens de suas fotossão repulsivos, não estabelecem com o espectador a mesmarelação, não há um desejo imediato de repúdio contra o que seestá vendo, nem mesmo de compaixão para com essas pessoas.

Arbus não está a fotografar o criminoso que acabou deser assassinado, a criança que acabou de ser estuprada eesfaqueada, não há sangue em suas fotos, por isso o seu“repulsivo” não afasta, ao contrário, nos traz para perto,nos remete a pensar sobre esse mundo tão estranho eassombroso que há por trás de cada um desses rostos. Aprópria postura de Arbus diante da pessoa a ser fotografadanos dá indícios de sua intenção. Não há flagrante, nada éfeito às escondidas, todos sabem que estão sendofotografados, têm consciência de que estão a posar para umafoto. Poderíamos dizer que estabelece-se aí uma relaçãoinconsciente de uma conivência quase ingênua entre as partes.Do lado de Arbus não há intenção de marcar a anomalia em si,de mostrar a pessoa como um doente, e sim de apontar para asrelações humanas, para o distanciamento e mesmo odesligamento entre as pessoas; em outras palavras, para asurrealidade de tamanhos desencontros. Por outro lado, apessoa diante da câmara não se concebe como monstruosa,excêntrica ou grotesca, já que permite e colabora com o atode ser fotografada. Não há consciência da sua dor. A própriafrontalidade com que Arbus normalmente as fotografava nosleva a crer nessa teoria, pois ser fotografado de frentemarca não apenas o respeito para com o espectador, mas,sobretudo, a manifestação da essência da pessoa fotografada.

Os mosaicos bizantinos de Ravena já nos mostram quetodas as pessoas eram representadas de frente como sinal desolenidade e respeito ao público e, principalmente, ao chefedo Estado, da religião e do exército, aos quais os artistaseram subjugados.

Essa frontalidade típica de Arbus (assim como a máscarade Górgona,13 que, invariavelmente, encara de frente oespectador que a observa) induzia os personagens a tornarem-se ainda mais estranhos, pois os incitava a permanecer empose, sem qualquer falso naturalismo.

Diane Arbus, ao apresentar a solidão e o absurdo dasrelações entre os seres humanos, nos remete à obra deSeurat,14 que abriu definitivamente caminho para o pensamentosurrealista. 13 Referência aqui feita a Górgona “Medusa”.14 George Seurat: pintor francês (1859-1891). Adotou um métodocientífico baseado na “mistura ótica dos tons” para arealização dos seus trabalhos. Ao adotar um “método”, os seusquadros são realizados de forma extremamente impessoal, tudotendo a mesma regularidade, tudo sendo espaço, que seconfundo com as figuras, por terem o mesmo tratamento. Suasfiguras não têm mais massa e volume como as tradicionais, nãopossuem vida, individualidade, pois obedecem a esquemasmatemáticos.

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O caráter intuitivo, da percepção direta e da açãoimediata da pintura impressionista, mais próxima de um esboçodo que de um quadro acabado dentro das tradições acadêmicas,passou a ser questionado por Seurat, não apenas no sentido dedar ao quadro uma estruturação maior, uma composição maistrabalhada, mas sobretudo por incorporar as manifestaçõestanto tecnológico-científicas quanto psicológicas dasociedade moderna.

Seurat renunciou ao traço renascentista (não àcomposição), abolindo as linhas e os desenhos que erampreenchidos com as cores e lançou mão de um método científicocalcado na física e na matemática, no qual as cores eramcolocadas lado a lado através de pontos ou manchas. Essetratamento era dado em toda a superfície da tela e, com isso,as figuras e o espaço em que elas estavam inseridas não maisse distinguiam, o distanciamento sujeito-objeto, típico dacultura renascentista, estava sendo colocado por terra. Ométodo de Seurat fazia com que a figura e o fundo fossemfeitos da mesma matéria, as manchas criando personagens comcaracterísticas irreais, diferentes das tradicionais, por nãoapresentarem volume, massa, peso. Ao obedecer a esquemasformais de um método, os personagens eram estruturados demaneira completamente impessoal, como manequins humanos semvida e sem individualidade, não havendo qualquer tipo decomunicação, de interlocução entre eles, caracterizando oabsurdo dos relacionamentos humanos e o total desajuste dohomem na sociedade.

Ao colocarmos lado a lado uma fotografia de Arbus (semtítulo), de 1971, (figura 1) e um quadro de Seurat (“UmDomingo de Verão na Grand-Jatte”), de 1885, (figura 2)seremos capazes de observar uma enorme comunicação entreeles, por mais distantes que estejam no tempo (quase umséculo os separa) e por mais diferentes que sejam aslinguagens empregadas. De fato, o que sustenta ambos ostrabalhos é a surrealidade que eles carregam. Por mais que seespecule sobre o caráter técnico da obra de Seurat, constata-se que o que permanece, o que a faz transpor mais de umséculo de escolas e correntes artísticas das mais diversas econtinuar sendo fonte recorrente de grande parte dosartistas, admirada pelo público, é o seu caráter intrigante.Isto porque há aí embutida uma característica cultural típicado homem ocidental, que sempre se percebeu, principalmentedepois de Descartes, como um ser simplesmente racional. Apartir do momento em que se coloca esse homem frente a umainstância inconsciente, por ele desconhecida, e, portanto,fora dos seus controles, tudo passa a ser muito enigmático, epor isso, atraente. É exatamente nesse nível, nessa instânciainconsciente que trabalham as obras de Seurat e Arbus, nosenvolvendo, nos remetendo aos mais recônditos universossupra-reais.

Os personagens, tanto do quadro de Seurat quanto da fotode Arbus aos quais nos referimos, possuem tais qualidades.Frente ao “Grand-Jatte”, vivenciamos um mundo assolado poruma atmosfera de profundo silencia, e no entanto de extrema

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conturbação interna de seus personagens, sem qualquer tipo decomunicação entre eles. Cada pessoa vive isolada e voltadapara seu próprio mundo, embora estejam todas juntas num diade lazer em um parque. As pessoas de pé, junto ao lago,parecem ter seus olhares perdidos em outras águas; o casal noprimeiro plano, postado de forma imóvel, não faz nenhum tipode menção de, ao menos, se entreolhar; o rapaz de costas parao lago entretém-se sozinho; até mesmo a criança que aparececorrendo transmite solidão por estar brincando isoladamente.Todos esses personagens poderiam, sem dúvida alguma,pertencer a uma foto de Arbus; esta cena de Seurat poderiacertamente ser uma cena fotografada por Arbus, pois os trêspersonagens da sua foto que citamos estão, da mesma forma,juntos numa área de lazer, envoltos cada um em seu própriomundo.

O diferencial de suas obras está apenas no fato de que,enquanto Seurat lida com pessoas típicas da classe média,inclusive dentro dos padrões estéticos da sociedade, Arbuselege os realmente desajustados e de aspecto desagradávelesteticamente. Não há, de fato, em Arbus, qualquer intençãoem lidar com a beleza atemporal padronizada, muito embora assuas fotos, e de forma geral a fotografia, tenham essacapacidade de revelar beleza em meio ao grotesco, aodesagradável, característica, aliás, inerente à próprialinguagem fotográfica.

O deslocamento do conceito do belo

Há tempos a revelação da beleza atrelada aos aspectosgrotescos tem sido reforçada por diversos fotógrafos. Umexemplo típico e bastante conhecido entre nós é a obra deSebastião Salgado (1944-), que vem sistematicamentefotografando a pobreza e a miséria entre os povos dos paísesdo terceiro mundo e que, apesar de apresentar imagens de umconteúdo estético terrível, consegue, dentro desse contextolúgubre, passar uma beleza que transcende a própria imagemrepresentada. Neste caso, a fotografia desloca o conceitoclássico greco-romano de beleza para uma outra instância,para um lugar onde ela encontra o traço surrealista, ou seja,um lugar onde o belo perde toda a sua condição absoluta e seincorpora nas mais diversas situações, podendo estar presenteno grotesco, no desagradável ou, até mesmo, numacircunstância o mais banal possível.

O gosto surrealista de beleza afina-se com a atividadefotográfica, que procura o belo onde os olhos menos atentos oignoram, debruçando-se sobre a fealdade e revelando omaravilhoso através da descoberta de imagens de assuntos elugares jamais considerados como tal. A beleza fotográfica,que é eminentemente surrealista, encontra ressonância noenvolvimento emocional, na comoção com a cena fotografada,transformando-se numa questão interna, que vai depender dasexperiências e vivências culturais, sociais e psicológicas decada espectador, sem permanecer atrelada a um conceitoexterno, absoluto. Esse investimento no surreal fotográfico

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nos remete a uma situação de mobilização interna, deproximidade e envolvimento com a cena fotografada,arrancando-nos do torpor contemplativo, passivo e distante,que nos foi dado como modelo para o relacionamento com omundo.

As bases do Surrealismo

O Surrealismo surgiu apoiado na filosofia nietzschiana,no sentido de tirar-nos de tantos séculos de letargia social,tentando libertar o homem da alienação oriunda de umasociedade calcada nos preceitos da razão, da ética, da morale dos cânones religiosos erigidos sobre as bases da verdadeabsoluta e da inquestionabilidade dos dogmas. André Breton,no 2º Manifesto Surrealista, chega a radicalizar suasposições contra a sociedade, ao dizer que “todos os meiosdevem ser considerados aceitáveis para torpedear as idéias defamília, pátria e religião”, demonstrando, aí, todo o seupoder de revolta contra a imobilidade, o enfado e a solidãoimpostos por uma civilização decadente.

Aí o Surrealismo bretoniano encontra-se em perfeitaharmonia com o pensamento de Nietzsche, centrado naembriaguez dionisíaca, que tenta devolver ao homem todo o seupotencial criativo, sua força e movimentação, em que todas ascorrentes opressoras e castradoras não encontram espaço. EmAssim Falou Zaratustra, Nietzsche nos apresenta uma fala deZaratustra que invoca o indivíduo a falar, cantar e dançar,não importando se ordenada ou desordenadamente. O que vale éo “embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontadede viver”. Nietzsche, através de Zaratustra, nada maispretende do que nos remeter à nossa criatividade por meio dasmanifestações espontâneas.

O Surrealismo, por seu lado, pretende alterar a vida aodesencadear uma crise moral na sociedade, “desalienando ohomem dos preconceitos, dos formalismos e das convenções, nãoapenas pretendendo criar uma escola literária ou uma escolade pintura”, de acordo com a visão de Breton. A fotografia,da mesma forma, sobretudo por não ter nenhum compromisso coma grande arte do passado, ao debruçar-se sobre o anti-oficial, redimindo e tirando do limbo o kitsch e o promíscuo,pratica a anti-arte, e, assim, se adentra pelo mundosurrealista. Sob essa visão, a fotografia questiona o que erainquestionável, relativiza o que era absoluto, traz à tonauma nova visão de mundo, mais despojada e leve, emboracrítica, dinâmica e participativa.

A dessacralização do nu

Mesmo ao lidar com temas “sacralizados” pelas belasartes, como o nu, a fotografia, assim como o Surrealismo deforma geral, dará a eles um tratamento peculiar, típico deuma visão niilista da tradição histórica. Se tomarmos, porexemplo, uma foto de um nu de Weston (1886-1958), “Hand onBreast” (1923) (figura 3), poderemos fazer algumas

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especulações sobre ela. De imediato, observamos que todas asregras sacrossantas da beleza do nu são colocadas águaabaixo. Na realidade, Weston nos põe frente a um num quaserepugnante, em que o único seio a mostra, já que o close ébastante fechado, só é reconhecido devido ao mamilo, casocontrário poderíamos supor tratar de um pedaço de carnecravado por grandes unhas. Ao mutilar todo o resto do corpo,arrancando-lhe tudo o que lhe confere equilíbrio e, portanto,beleza, ao desvincular o nu feminino de toda a carga desensualidade que ele traz, constatamos um apelo proposital emevidenciar o quão grotesco é o ser humano. Aqui, o espaçovirtual, ou seja, o espaço não representado pela imagem, nosremete a um ser humano decadente, exaurido de todas as suasqualidades sexuais, em franca desarmonia consigo mesmo. Édifícil imaginarmos por trás dessa foto de Weston uma Vênusde Botticelli com toda a sua graciosidade, seu nu sensual e,ao mesmo tempo, harmonioso, no qual impera uma atmosfera desedução e idealização.

Antes de Weston, no entanto, Duchamp foi o artista quemais intensamente criticou a tradição artística, muitas vezestendo o num como ponto de partida. Em seu quadro “o NuDescendo a Escada”, o que à primeira vista poderia pareceruma apologia à mecanicidade, como se Duchamp tivesse aderidoaos aspectos da modernidade, ao Futurismo italiano15

reverenciado pela vanguarda da época, é exatamente o inverso.O manequim com roupas metalizadas é fragmentado pelarepetição dos gestos num movimento descendente, carregandoconsigo a idéia de uma fuselagem em franca decadência, o querevela, aí, o caráter descrente e destruidor de Duchampfrente à modernidade. Por outro lado, o nu, que em toda ahistória da arte sempre representou a beleza, a sensualidade,como os nus beatificados de Rafael ou as madonas nuas deRubens, descaracteriza-se por completo em Duchamp, que leva auma espécie de desmistificação do nu feminino, não só porqueefetivamente não há nu, já que o manequim está vestido comroupas metalizadas, como a atração pelo “nu” se dá através deuma visualidade negativa, e não pela beleza ou sensualidade.

Nesses dois rápidos exemplos, tanto a foto de Westonquanto o quadro de Duchamp nos fazem pensar sobre toda umaconceituação arraigada da beleza idealizada que a sociedadeocidental nos impôs como referencial inquestionável, como é ocaso típico da referida Vênus, de Botticelli, em que asproporções dos ombros e do pescoço da deusa foram alteradaspara que se atingisse uma beleza máxima, idealizada.

Esse modelo, de certa forma, passou a ter um outroequilíbrio, um outro peso na sociedade muito em função dafotografia, que, ao produzir imagens aleatórias do mundo,desierarquizou os temas e se alastrou de forma rápida por 15 Futurismo: Movimento artístico italiano iniciado em 1909por Filippo Tommaso Marinetti, afirmando a primazia davelocidade. Reagindo contra o Cubismo, julgado estáticodemais, os futuristas buscavam “a sensação dinâmicaeternizada enquanto tal”.

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todos os lugares. É muito recorrente em fotografia a belezade uma imagem vir do acidente, do acaso. Muitas vezes, éexatamente o que foge ao programado, a tudo aquilo que nospredeterminamos realizar, que faz de uma foto uma grandefoto. Não estamos aqui falando do instantâneo programadoquando estamos prontos ao que pode vir a acontecer, domomento exato de captarmos uma cena, típico da escolabressoniana,16 mas sim do acidente momentâneo inconsciente,característica que fez da fotografia a linguagem mais afinadacom os ideais do Movimento Surrealista.

A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista

O acaso, inerente à própria linguagem fotográfica,funciona através de espasmos que, por vezes, deixamos escaparda armadura racional que nos impomos, é a nossa passagem auma outra realidade diferente daquela que estamos acostumadosa vivenciar, bloqueada e permeada por regras. Se por um ladoa fotografia é a forma mais próxima da representação darealidade, por outro é ela quem desvenda o que há de maisdesconhecido e surpreendente no ser humano.

Através do acidente fotográfico, exercemos a nossainstância inconsciente, reveladora de nós mesmos, de todanossa vaidade escamoteada, face oculta manifesta. Comodesdobramento, a foto será um tanto mais arrebatadora quantomais profundamente conseguir atingir esse universo doespectador, já que a ele se abrirá o lúdico, o maravilhoso, odesconhecido, enfim, tudo o que há de mais primário dentro desi e que o remeterá a sua própria existência.

Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeirainvestida do Movimento Surrealista, que, através do seu“Primeiro Manifesto”, começa por fazer uma distinção bastanteclara entro o que pertence à racionalidade e o que pertenceao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão seafastar da realidade, mergulhando em um mundo até entãototalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico eo maravilhoso se fazem presentes. Desse modo, a razão humanaperde todo o seu controle, abrindo espaço para que aimaginação, sem qualquer tipo de freios ou críticas,manifeste-se forma plena. De acordo com o teatrólogo Pierre-Albert Birot, “o maravilhosos, cada vez mais livre deentraves, toma o caráter de surpreendente realidade em si, deSurrealismo...” e Louis Aragon17 escreve:

“Além do real, há outras relações que o espírito podeapresentar e que são tão primárias quanto o acaso, a ilusão,o fantástico e o sonho. Essas diferentes espécies reúnem-se econciliam-se num gênero que é a supra-realidade.”

16 Escola bressoniana : Estilo criado pelo fotógrafo francêsHenri Cartier-Bresson (1908-2004) de captar o momento ideal,o instante exato para se tirar uma fotografia.17 Louis Aragon : Poeta e romancista francês (1897-1982), umdos fundadores do Surrealismo.

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Além de Birot, um autor teatral que trabalhou com aidéia do afastamento da realidade cotidiana para mergulharnuma realidade onde o ser humano é remetido aos seusinstintos mais primitivos foi Antonin Artaud,18 para quem overdadeiro objetivo do teatro é

“traduzir a vida sob um aspecto universal, intenso, delaextraindo imagens com que gostaríamos de nos encontrar. Oteatro deve ser considerado a cópia, não desta realidadecotidiana e direta da qual vai-se reduzindo pouco a pouco aser apenas uma inerte reprodução, tão inútil comoinexpressiva, mas sim de uma outra realidade, perigosa etípica, em face da qual os princípios se apressam a voltar àobscuridade como os golfinhos quando vêm à tona d’água. Ora,esta realidade não é humano mas inumano e o homem com seuscostumes ou seu caráter, é preciso dizer, quase nadacontribui para ela.”

E acrescenta:

“O teatro deve reconduzir o espectador ao mundo dos sonhos edos instintos, que é sanguinário e inumano. Exprimindo asforças recalcadas do homem, uma obra o liberta; igualmente,encontrando os espectadores pelos meios plásticos, aencenação deverá, por assim dizer, fazê-lo entrar em transe.”

Da mesma forma, uma foto se sustentará, perdurará notempo não em função de sua técnica ou característicascomposicionais, mas ao conseguir mobilizar internamente aspessoas, fazer com que o espectador, ao se ver frente a ela,dê um passo em direção ao mundo desconhecido, por ter tido oseu inconsciente acionado.

O caminho trilhado pelos surrealistas para se abstraíremda realidade foi através do automatismo puro, daí o movimentoter surgido muito mais com um caráter literário do queplástico, e a linguagem fotográfica ter sido o seu grandeveículo visual.

Em pintura, por mais automáticas que seja umarepresentação, há a tela, os pincéis, a paleta, enfim, játoda uma condição processual do fazer do quadro, aliáscondição esta que a caracterizou como uma das belas artes. Ofazer do artista sempre encerrou não somente a condiçãoautoral do trabalho de pintura, como também a criatividade ea individualidade do artista, que a colocou, de fato, frenteà problemática surrealista. Se o Surrealismo nasce como umaatividade criativa na qual deve prevalecer o fluxo livre dasassociações, o automatismo psíquico puro, o inconscientetrabalhando sem qualquer tipo de barreiras, como poderiaexistir uma pintura realmente surrealista, se a próprialinguagem plástica exigia fases intermediárias para suarealização? Como o inconsciente poderia de fato se efetivar

18 Antonin Artaud: Escritor, poeta e dramaturgo francês (1896-1948). Distiguiu-se sobretudo pelos seus ensaios dramáticos.

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de forma automática, com o pintor tendo de lançar mão dediversos materiais e, conseqüentemente, realizar seu trabalhoem vários estágios?

Há um filme sobre Matisse no qual o artista é flagradodesenhando um retrato com gestos aparentemente irrefletidos einconscientes, mas que, na seqüência seguinte, a câmeralenta, ao mostrar a mesma cena, nos faz ver a sua permanenteescolha sobre que caminho seguir, a mão, pouco a pouco,encadeando todo um processo, uma seqüência de observações domundo.

Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia)

Das inúmeras analogias metafóricas que até então já sefizeram utilizando-se Roma e Pompéia, inclusive no âmbitofotográfico (vide O Ato Fotográfico de Philippe Dubois),cabe-nos, aqui, pensar as linguagens fotográfica e pictóricanessas circunstâncias. Poderíamos dizer que a pintura estápara Roma assim como a fotografia está para Pompéia.

Ao se tirar uma fotografia, tudo é escuridão, a imagemimpregnada na película permanecerá em latente escuridão e sóserá reconhecida, só virá à tona após a sua revelação, assimcomo Pompéia, que após a catástrofe ficou em estado delatência, de escuridão, até que as pás viessem revelar o queo Vesúvio imortalizou/ mortalizou em um único instante; aí secompleta a outra metáfora, a da instantaneidade, do momentodecisivo e único, em que tudo se passa de uma única vez.Apertado o obturador, tudo se dá; o presente de imediatotorna-se passado e o futuro, expectativa. A imagem é captadade forma totalizante e única, a luz/ larva varre e paralisa oque vê pela frente de forma instantânea, sem chances paraqualquer tipo de arranjo ou racionalização. A pintura, poroutro lado, perfaz um outro caminho; o fazer de um quadrocompreende um processo, um tempo, há sobreposição das camadasde tinta, é Roma com seu acúmulo de histórias, as camadas dotempo agindo sobre ela de forma fragmentária, porém contínua.

Percebemos aí que a foto-Pompéia é mais próxima doSurrealismo que a pintura-Roma.

Por melhor que seja a composição de uma foto, por maisperfeita que seja a técnica empregada, a força motriz,geradora de sua grande mobilização entre as pessoas está nodetalhe (o que para Barthes é o “Punctum”), principalmente seele provier do acidente, do acaso, pois o fascínio que afotografia suscita vem muito de sua condição enigmática, deapreender em uma fração mínima do tempo o incidental, sobre oqual nem mesmo o fotógrafo tem controle.

No exato momento do ato fotográfico, tudo éinconsciente, por maior que seja seu controle racional sobreo assunto a ser fotografado, até porque o ato fotográfico sedá no escuro, é o único momento em que o fotógrafo nada vêsobre o que está fotografando, já que o obturador, ao seracionado, faz levantar o espelho, tornando o fotógrafo cegodiante da imagem a ser fotografada.

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A síntese do ato fotográfico compreende, pois,exatamente essa fração mínima do tempo em que tudo se dá deforma inconsciente, totalizante e de uma única vez, semhesitação.

A surrealidade fotográfica em Miró

Não se pode negar que, da mesma forma, a pintura, emalguns momentos, tenha-se apresentado com escrita direta,imediata, em uma relação mais estreita com o automatismo,típico da primeira fase do Surrealismo. Yves Tanguy e AndréMasson, certamente, percorreram o automatismo seguindo seusimpulsos internos, mas foi Miró (1893-1983), sem dúvidaalguma, quem melhor navegou por esses mares e, por issomesmo, mais próximo esteve da filosofia/ concepção dalinguagem fotográfica.

O fio da pintura Mironiana apresenta em uma das pontas apoesia, na outra, a fotografia.

A poesia simbolista de Mallarmé,19 do final do séculopassado, talvez tenha sido o foco de maior influência napintura de Miró. Mallarmé inaugurou uma nova época naliteratura ao quebrar toda a estrutura da poesia parnasiana emesmo da vanguarda romântica de Baudelaire. Os seus versospassam a ser estruturados de forma que as palavras percorramum fluxo contínuo de associações e simbologias, umentrelaçamento de idéias, como se existissem vários poemasdentro de um só; a própria técnica de montagem das palavrasinduz a essa sobreposição. Mallarmé foi quem primeirorecorreu a um espaçamento entre as palavras, jogou com aparavisualidade, com o espaço virtual do branco do papel,criando um campo de ação para que o leitor, agora tambémautor, pudesse percorrer, igualmente, o seu próprio fluxo deassociações de forma livre e desbloqueada, em consonância comas suas vivências e experiências. Um trecho do poema básicopara essa nova trajetória de Mallarmé, “Um lance de dadosjamais abolirá o acaso”, ilustra a análise anterior.

Um lance de dados jamais abolirá o acaso (trecho)Stéphane Mallarmé

FOSSE origem estelarSERIA

pior não mais nem menos indiferentemente mas outro tanto

O NÚMERO

19 Stéphane Mallarmé : poeta francês (1842-1898). Sua obra,embora breve, foi determinante para a evolução da literaturano século XX.

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EXISTIRIAsenão como a alucinação dispersa da agonia

COMEÇARIA E CESSARIAbrotando qual negado e fechado quando surgido enfim por alguma profusão espargida em raridade

CIFRAR-SE-IA evidência da soma por pouco fosse uma

ILUMINARIA O ACASO

Cai a pluma rítmica pausa do sinistro

sepultar-se nas escumas originais

donde há pouco sobressaltara seu delírio até umcinco esmaecido pela neutralidade idêntica do

abismo

Appolinaire20 foi outro poeta que, neste século,influenciou diretamente a pintura de Miró e, na realidade, oSurrealismo como um todo, dando inclusive o nome aomovimento, quando escolheu como subtítulo de sua peça “LêsMamelles de Tirésias” a expressão “Drame Surrealiste”.

Miró desdobra a experiência adquirida na literatura emverdadeiros “campos visuais”, não existindo mais a telatratada como espaço renascentista no qual os elementos eraminseridos. Através dos seus “campos visuais”, Miró nosapresenta um mundo encantado com uma imensidão de símbolos esignos que percorremos em um fluxo, sem interrupção delinhas, formas ou cores, levando o espectador a uma viagem aoseu universo interior que tão pouco conhece. Há a formação deum emaranhado, de uma teia de imagens envolvendoentrelaçamentos e conexões entre os diversos elementosrepresentados, permitindo que o espectador percorracontinuamente a tela a partir de qualquer ponto, ou mesmodepare-se com o todo simultâneo do quadro, que, referido emMiró, não significa a tela fechada em si própria, o espaçorepresentado preso a um tema, a uma literalidade,característica do Classicismo, em que tudo é equilíbrio, éharmonia. Muito pelo contrário, a sensação de “vivo” em Miróvem exatamente dessa antítese. Suas telas vibram, transmitemdinâmica pelo caos instalado, transcendente do espaçorepresentado, que não se esgota por si só, tornando-se umsimulacro de visão. Assim, o olhar agitado do espectador 20 Guillaume Appolinaire : poeta e crítico de arte francês(1880-1918). Orientou a poesia simbolista par aos novoscaminhos que já anunciavam o Surrealismo.

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procura no espaço virtual a continuidade do momentoinaugurado na tela, que serve apenas como estopim paraarrancá-lo do torpor contemplativo tão habitual e fazê-lo“viajar” em si.

O incidental, o acaso a que nos referimos anteriormente,que constitui o punctum fotográfico, é, da mesma forma, ocatalisador de toda a obra de Miró. Segundo o próprio pintorcatalão, a força inicial que move o seu trabalho parte muitodo acidente, podendo uma gota de tinta caída ao acaso numatela ser o suficiente para detonar em seu inconsciente todoum arsenal de fantasias e imaginação que comporão o quadro,assim como um acidente no exato momento do “clic” fotográficopoderá constituir-se na força da imagem, por mobilizar algumainstância dentro do espectador, que não a mera visualidadecontemplativa racional.

A concepção da obra de Miró, tal qual a fotografia,aproxima-se mais de Pompéia do que de Roma, já que os seus“campos visuais” se dão ao espectador de forma totalizante,servindo como pontes para a ultrapassagem dos limites datela, transcendência que constitui o cerne da linguagemfotográfica, pois uma fotografia é, antes de tudo, umrecorte, uma subtração de um universo que esteve ali,presente no instante do ato fotográfico, mas excluído doespaço representado. Assim, uma fotografia não precisa,necessariamente, valer-se do corte, do sangramento explícitode uma imagem para ligar-se ao continuum do mundo, já que,inexoravelmente, ela traz dentro de si tal compreensão. Seriapobre, superficial, analisar ou simplesmente ver umafotografia apenas dentro dos limites da representação, umavez que ela própria, por compreender sempre uma imagemparcial do mundo, nos dá a “dica”, nos induz a ver o que estáalém dos nossos olhos, nos convida a uma viagem para além darealidade explícita ou explicitamente, independente da suacaracterística formal, uma surrealidade, mesmo que a nossavivência n”ao queira ou mesmo não permita assim vê-la.

O espaço virtual em fotografia é, em muitos casos, maisimportante do que o próprio espaço representado, o ausentetendo a força da presença, assim com em Miró. Essa ausênciamobiliza, atinge de tal forma as pessoas que ela é, de umamaneira ou de outra, muito recorrente entre os fotógrafos,que lançam mão dessa capacidade, própria da fotografia, paratransportar o espectador ao desconhecido, ao enigmático, atudo que é intrigante e assim o é exatamente por pertencer aum universo distante de sua realidade habitual, cotidiana,cuja passividade, na maioria das vezes, bloqueia os seusinstintos e o impede de viver o maravilhoso.

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III – A IMAGEM SUBVERTIDA

Além do corte natural pura e simplesmente, que é o“sangramento” da imagem, ao qual nos referimos anteriormente,a realidade explícita pode ser subvertida dentro do próprioespaço de representação, como se o espaço virtual nãoestivesse mais em seu “off” habitual, mas sim estivesse neleinserido técnica. Esta é muito recorrente em fotografia, comopor exemplo em Minor Whithe (1908-1976) “WindowsillDaydreaming” (julho 1958) (figura 4), em que vivenciamos umaexpectativa, uma instabilidade interior, ao sermos remetidosa um espaço enigmático para além da janela entreaberta poruma cortina oscilante. Da mesma forma, alguns pintoressurrealistas como De Chirico (1888-1978) e, principalmente,René Magritte (1898-1967), utilizaram-se do irrealismofantástico para transfigurar o mundo exterior, criando umaatmosfera de mistério e suspense ao representar um espaçoenigmático, a partir do qual iniciamos uma viagem para alémdo espaço representativo da tel. Ainda dentro do próprioespaço de representação, a realidade pode ser subvertidasurrealisticamente quando se lança mão de colagens dequaisquer objetos que venham, de alguma forma, produzirefeitos de mascaramento total ou parcial na imagemrepresentada, desestruturando o espaço e, conseqüentemente,quebrando a homogeneidade do olhar, não apenas porinterromper a linearidade e continuidade da leitura, como porintroduzir novas texturas e campos, que alterarão os sentidose remeterão o espectador a experimentar novas vivências.

Conforme Tristan Tzara21 (1896-1963), “a diferença dasmatérias que o olho é capaz de transformar em sensação tátildá uma nova profundidade ao quadro...”

Quando impregnada por tais interferências, a fotografiaabraça as artes plásticas, tornando-se linguagens unas.Frente às colagens/ montagens, pintores e fotógrafos põem-sediante de iguais propostas. Seja em Rauschenberg ou Man Ray,22

Max Ernst23 ou Moholy-Nagy, 24 os embates transcorrerão por

21 Tristan Tzara : (Romênia 1896 – França 1963). Um dosfundadores do Movimento Dada, que teve início em 1916 emZurique, insurgindo-se contra os absurdos de sua época econtestando radicalmente todos os meios de expressãotradicionais.22 Man Ray: pintor e fotógrafo americano (1890-1976). Foi umdos criadores do Movimento Dadaísta em 1917, em Nova York, ejuntou-se ao Surrealismo em 1920. Criou as “raiografias” erealizou diversos filmes surrealistas.23 Max Ernst: pintor francês de origem alemã (1891-1976). Foium dos fundadores do Dadaísmo, participou do Surrealismo,criou as fotomontagens surrealistas e a frottage (processocom base na ação de esfregar a matéria). Repeliusistematicamente qualquer disciplina, utilizando inúmerastécnicas e temas.

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vasos comunicantes, cujas descobertas fluirão pelos mesmoscanais, principalmente se pensarmos no Surrealismo.

Não seria arriscado afirmar que o Surrealismo encontrouas suas maiores transgressões através das colagens/montagens, exatamente por elas permitirem uma infinidade decombinações de imagens e elementos dentro das propostas domovimento. As colagens surrealistas têm seu fundamento noconfronto de imagens díspares, que nos colocam frente asituações absurdas, paradoxais, violentas, nos remetendo auma realidade que não apresenta qualquer nexo com a realidadecotidiana, liberando o espírito para um mundo novo, supra-real, caotizado pelos imprevistos choques de imagens.

Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista

A colagem/ montagem surrealista iniciou-se,efetivamente, com Max Ernst, que, ao beber nas fontescubistas de Braque e Picasso, deu um novo rumo à técnica poreles utilizada.

É interessante reproduzir pelas próprias palavras de MaxErnst a maneira pela qual surgiu a colagem surrealista, paraque possamos fazer uma ponte entre o seu nascimento e o seudesdobramento futuro:

“Num dia chuvoso, em Colônia, o catálogo de uma casa quevende material escolar desperta-me a atenção. Vejo aliexemplares de todos os gêneros, manuais de matemática, degeometria, antropologia, zoologia, botânica, anatomia,mineralogia, paleontologia, etc., elementos de natureza tãodiversas que a absurdidade do seu reagrupamento me perturba avista e os sentidos, desencadeando em mim alucinações econferindo aos sujeitos representados uma sucessão designificados novos e mutantes. A minha atividade visual ficoude repente tão agudizada que consegui ver os objetos que seformavam imediatamente sobre um fundo novo. Para o fixarbastava um pouco de tinta, algumas linhas, um horizonte, umdeserto, um céu, uma divisória ou coisas idênticas. Assim sefixou a minha alucinação.” (ERNST, Max – Taschen, p.18)

Assim, Max Ernst iniciava o que viria a ser um dosgrandes trunfos dos surrealistas, que, através das colagens,passavam a estabelecer relações diferentes das habitualmenteconhecidas entre os objetos e os seres, tirando-os do seucaráter absoluto, de suas identidades pró-fixadas, indo aoencontro do fortuito, das relações relativas, circunstanciaise, por isso mesmo, mais verdadeiras; a realidade do encontroentre objetos, estabelecida por uma montagem, encerra o seucaráter verdadeiro só e somente só enquanto esta durar, istoé, em uma outra situação, em uma outra montagem, esses mesmos 24 Laszlo Moholy-Nagy : escultor e fotógrafo húngaro (1895-1946). Realizou esculturas construtivistas, foi professor daBauhaus e fundador da Nova Bauhaus em Chicago (1938).Dedicou-se à fotografia, onde marcou sua obra por fotografiascom ângulos oblíquos.

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objetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo,assim, identidades diferentes. Desse modo, quando Man Rayfotografa um guarda-chuva na presença de uma máquina decostura em cima de uma mesa de dissecação, estabelece umarealidade nova e instigante entre esses três objetos que,anteriormente, sozinhos ou em outras montagens, possuiriamrealidades diferentes.

A surrealidade em Picasso

A circunstancialidade da montagem é extremamenterenovadora exatamente pela dinâmica e pelo carátertransformador que ela impõe à realidade de cada objeto.Imbuído desse espírito, Picasso, no começo do século,revolucionou a linguagem escultórica quando, ao criar “AGuitarra”,25 retirou a escultura do monólito, do pedestal, doseu caráter absoluto, fixo e imutável de representação,dando-lhe uma característica de mobilidade, de realidaderelativa, em que os objetos usados na construção de sua“Guitarra”, em outras circunstâncias, comporiam outraescultura e, portanto, compreenderiam outra realidade.

Assim como Picasso, que, utilizando-se dos princípios dacircunstancialidade, revolucionou de forma radical aescultura ocidental através da sua “Guitarra”, afotomontagem, a partir dos surrealistas, inaugurou uma novaconcepção na linguagem fotográfica, dando-lhe autonomia,retirando-a do pesado fardo de desempenhar o papel da fielrepresentadora do mundo, do seu caráter mimético. Aunicidade, a integridade da fotografia se esvai não apenas emfunção da provisoriedade da montagem, que a retira datemporalidade, mas por ela tornar a imagem representativabidimensional em tridimensional, dessacralizando-a,submetendo-a à condição de objeto manipulável, compreendendotantas realidades quanto possibilidades de suas montagens.

A visão fotográfica habitual do mundo é infringida pelamontagem, uma vez que ela é construída em função do que sefaz no espaço, dos choques entre as imagens sobrepostas,evidenciando que cada imagem assim construída vive umaexperiência própria, única, não guardando mais o conceito deespaço pronto, preconcebido por leis matemáticas dentro dateoria euclidiana de comprimento, largura e altura.

A montagem, na realidade, vem a ser um desdobramentonatural da concepção filosófica do nosso século. Enquanto oséculo XIX carregava o sentido de tempo aristotélico, linear,no qual tudo tinha seqüencialmente um início, um meio e umfim com desfechos lógicos, o século XX vivencia a concepção 25 Desde a Grécia que a escultura tinha o seu conceito deunicidade, nos dando a individualidade das formas. A“Guitarra” de Picasso, ao contrário, é construída a partir dajunção de elementos planos curvados, não sendo mais aimitação do objeto guitarra, mas a construção de um objeto,sem a integridade, a característica monolítica da esculturaconvencional.

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do todo, da simultaneidade, simbolizada pela linha demontagem automobilística, em que o automóvel é concebido comoum todo, sendo montado parte por parte num processo de pré-fabricação. Esse é o sentido de tempo contemporâneo, em queos elementos se justapõem, nada mais sendo do que a colagem ea montagem das artes plásticas.

Sem dúvida, toda essa nova potencialidade emanada pelascolagens e montagens nas artes plásticas em geral incluindo,aí, a linguagem fotográfica, que viria ratificar a força domovimento surrealista foi fruto de um longo processo deexperiências antecedentes.

De Chirico

Nas artes plásticas, um dos primeiros sinais demanifestação apontando diretamente para uma realidade adversaà nossa veio com a fase metafísica de Giorgio De Chirico(1888-1978). Numa época em que o Futurismo realizavaexperiências com composições dinâmicas e tumultuadas e oCubismo chegava ao plano total com Braque e Picasso levandoàs telas a funcionalidade, a mecanicidade do mundo atravésdas fragmentações e multiplicidades dos pontos de vista,características da modernidade, De Chirico apontava para umavertente diametralmente oposta a toda essa racionalidadeocidental, o que, posteriormente, viria a ser a pedra detoque do Surrealismo. Seus trabalhos, nesse período, forammarcados pela total descontextualização dos objetos, com oconfronto entre imagens díspares num mesmo espaço, remetendo-nos a uma nova realidade, sendo o potencial revelador dessanova imagem tanto maior quanto mais antagônicas fossem essasimagens e mais distantes da nossa realidade nos remetesse.Essa descontextualização dá-se de forma extremamenteenigmática, estranha, em cenários e ambientes da mesma formaestranhos, silenciosos, fantasmagóricos, potencializandoainda mais a descontextualização. Essas características fazemdo mundo de De Chirico um mundo à parte, que nada tem a vercom a realidade existente.

A tônica da fase metafísica de De Chirico apresentaestreita relação com a montagem surrealista, que se estruturanão em função da comparação, mas do confronto entre imagensantagônicas.

Duchamp e os ready-mades

Paralelo a De Chirico, correm as especulações de MarcelDuchamp (1887-1968), cujas obras apontariam para um diretodesdobramento no Surrealismo, tendo Man Ray como um de seusprincipais interlocutores.

Dentre as diversas transgressões praticadas por Duchamp,nosso interesse, no momento, se atém mais a uma investigação

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sobre seus ready-mades,26 não quanto ao seu caráter indiciárioou de traço, mas no que eles podem nos ajudar na compreensãode suas relações com a filosofia do Surrealismo, sobretudocom as montagens/ colagens surrealistas de que estamostratando.

Duchamp constata que o mundo moderno rejeita, repelequalquer gesto individual, que é inútil e inócua qualqueração individual do ser humano frente à massificação e astandardização imposta pela sociedade. Assim, parte para arealização dos seus ready-mades, em que, na realidade, elenada fez além de selecionar objetos já prontos,industrializados, entregando-os ao mundo como sendo obras dearte, já que o mundo considera arte sempre o objeto final,acabado, e não o gesto artístico que o gerou, o potencialintelectual existente no fazer da obra de arte. Por isso,Duchamp vai salvaguardar o seu gesto, não fazendo, porperceber que iria se perder e conseqüentemente ser ignorado,o que acaba por colocar em cheque toda uma tradição quesempre esteve presente na história da arte: o fazerartístico.

Quando Duchamp fixa uma roda de bicicleta a um banco eos define como arte, estabelece-se de imediato umdeslocamento conceitual, já que é o próprio Duchamp que, aoacoplar dois objetos já prontos, diz que o que está ali é umaobra de arte, não possibilitando a intermediação dainstituição para definir e validar aquele objeto como obra dearte. Há, portanto, uma subversão à tradição não somente porlhe ser negado o privilégio de definir o que vai ou não seruma obra de arte, mas, sobretudo, por transferir essaresponsabilidade para o artista, potencializando o seu gestoindividual, marcando uma postura singular do ser humano emoposição à massificação estabelecida.

Essa mobilização interna era acentuada pela maneira comoDuchamp escolhia os objetos para a concepção dos ready-mades,pois eles deveriam ser isentos de qualquer qualidadeestética, tanto negativa quanto positivamente. Deveriam ser anão-significação, o supra-sumo da assepsia estética, para queo seu caráter atrativo e, portanto, interativo se desse,efetivamente, em função da total descontextualização de suasrealidades próprias, no novo ambiente em que eles agora seencontravam. De acordo com a visão do próprio Duchamp:

“O grande problema era o ato de escolher. Tinha que escolherum objeto sem que ele me impressionasse e sem a menorintervenção, dentro do possível, de qualquer idéia oupropósito de deleite estético. Era necessário reduzir o meugosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um objeto que nãonos interessa absolutamente não só no dia em que o elegemos,mas para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de

26 Ready-Made: Criado por Marcel Duchamp, é um objeto jámanufaturado, pronto, promovido ao nível de arte pela simplesescolha do artista.

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tornar-se algo belo, agradável ou feio...” (DUCHAMP, Marcel –O Castelo da Pureza, p.27)

De fato, colocar alguns cubos de mármore e um termômetrodentro de uma gaiola ou acoplar uma roda de bicicleta a umbanco é retirar completamente as funções habituais de cada umdesses objetos, é alterar radicalmente os significadosindividuais de cada um deles, e, por isso mesmo, pela uniãode realidades individuais tão desconexas é que se dará apotencialização de uma realidade nova, intrigante e decaráter interativo tão grande com o espectador, que eleestará possibilitado a vivenciar uma experiência internasurpreendente e, portanto, mobilizadora.

O caráter desses encontros entre objetos que compõem osready-mades é o mesmo que acompanha as fotomontagenssurrealistas, em que a fronteira entre a realidade que defato existe e uma outra realidade inconsciente é muito tênue,o que nos torna perplexos, sem saber ao certo onde começa eonde termina a realidade concreta.

Duchamp, da mesma forma, instaura esse mesmo tipo derealidade nas poucas pinturas (se é que assim podem serchamadas) realizadas entre os seus ready-mades, como é o casodo “Grande Vidro” também intitulado “A Noiva e seusCelibatários, Mesmo”. É uma pintura sobre vidro onde eledescreve um truncado mecanismo nas relações entre a noiva eos celibatários, que, supostamente, estão representados noquadro. O “Grande Vidro” é acompanhado de uma série de notasna “Caixa Verde”, que vão explicar a funcionalidade doquadro. Grande parte dessa descrição literal, no entanto, nãocorresponde ao que está de fato representado, criando, assim,uma fragmentação, uma ausência de integridade, sendo essadesvinculação da realidade visual geradora de uma reflexãosobre que realidade é essa que nos é imposta, em que a lógicado que se vê é meramente arbitrária, convencionada.

Magritte

As fotomontagens surrealistas, por meio de justaposiçõesde imagens e palavras, percorrem o mesmo questionamento. Essaabsurdidade duchampiana é, da mesma forma, colocada nostrabalhos de René Magritte (1898-1967), que desafia a lógicada realidade ocidental instaurando o irracional, o onírico,através de uma perfeita manipulação da realidade, ao retiraros objetos de suas banalidades cotidianas, inserindo-os emsituações sem uma coerência aparente, onde se instalam omistério e o fantástico de tal forma que somos postos frentea uma “realidade totalmente verossímil (ele não inventa nada)e absurda ao mesmo tempo”. O mundo de Magritte é permeadopelo mistério, em que o desconhecido surge do conhecido.

No quadro “A Chave dos Campos”, há a representação deuma janela de vidro que dá para uma paisagem, sendo que osvidros, ao serem quebrados, caem ao chão e cada pedaço devidro caído continua conservando a imagem da paisagem vistaatravés da janela, misturando, aí, realidade e ficção, como

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afirma o próprio autor: “Criando um novo mundo a meio caminhoentre o sonho e a fantasia.”

Essa manipulação da realidade interage simbioticamentecom as operações de fotomontagem surrealista, pois Magritte,com tinta e tela, instaura o mesmo tipo de realidade queHannah Höch, Robert Rauschenberg, John Heartfield, Max Ernst,assim como tantos outros artistas, que o fazem através dejustaposições de imagens, nas quais cada realidadefotografada (e por isso mesmo, de fato, existente) ao sejuntar em um mesmo espaço a outras imagens igualmenteverídicas, existentes, alteram-se a si próprias, inaugurandouma desorganização da visualidade aparente e criando, apartir desse “caos”, uma realidade além daquela que estamoshabituados a vivenciar, ou seja, uma supra-realidade.

No entanto, não é apenas através dos aspectos pictóricosde seus quadros que Magritte nos apresenta toda a ilogicidadedo mundo, pois ele lança mão de um outro elemento, que é aescrita, para descontextualizar ainda mais a realidadeexistente. Nesse caso, embora se configure uma verdadeiraoperação duchampiana pelas suas propostas, a formalização sedá diferentemente. Ao contrário de Duchamp, a escrita, emMagritte, faz parte, efetivamente, do campo da representaçãodo quadro, em cuja obra a imagem plástica e a imagem gráficasão colocadas no mesmo espaço, configurando-se comoverdadeiras montagens surrealistas, pela total desconexãoentre o que se vê e o que se lê.

O que Magritte faz é representar objetos dentro decompartimentos com um nome em baixo de cada representação,que, na realidade, nada tem a ver com a representação em si.Quando Magritte pinta um cachimbo e coloca em baixo o título“Isto não é um cachimbo”, está nos chamando a atenção para aarbitrariedade da linguagem, uma vez que é mera convenção oque liga o nome cachimbo ao objeto que o representa. Dessemodo podemos perceber que as relações que sustentam o mundotêm seu suporte em valores preconcebidos e por isso mesmofrágeis, e conseqüentemente passíveis de modificações.Transmutá-los é o que se pretende com o Surrealismo.

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IV – O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTOSURREALISTA

Toda a incerteza vivenciada através das imagenssurrealistas, em que os dados da realidade concreta seentrelaçam às visões fantasiosas do inconsciente, encontrarespaldo nas experiências com os doentes paranóicos. Umacaracterística peculiar da paranóia, e que, por isso,suscitou grande interesse entre os surrealistas, é que odoente paranóico interpreta os fenômenos que ocorrem narealidade em função de suas obsessões, realizando,continuamente, uma síntese entre o real e o imaginário,fazendo com que o mundo do delírio se transporte ao plano darealidade. Debruçado em tais experiências, Salvador Dalí27

elaborou o seu método “paranóico-crítico”, com o qual elepropõe um componente ativo na elaboração das imagens. Segundoo próprio Dalí, “o método que leva em conta apenas o papelexclusivamente passivo e receptor do sujeito surrealista deveser substituído por um método ativo, capaz de realizarmaterialmente este mundo delirante da irracionalidadeconcreta”. Por isso, em sua fase paranóico-crítica Dalípreconizava que toda a sua ambição no plano pictóricoconsistia em materializar, com a maior precisão possível, asimagens da irracionalidade concreta e que o mundo imaginárioe a irracionalidade concreta tivessem a mesma evidênciaobjetiva, a mesma consistência, a mesma expressão persuasivae comunicável que o mundo exterior da realidade fenomênica.

Uma das características marcantes do seu método, noplano pictórico, foi a imagem dupla, ou seja, aquela imagemque, sem a necessidade de alterações, pode representar, aomesmo tempo, duas ou mais realidades diferentes. É o caso doretrato feito por Dalí de Mae West, em que os traços faciaisda atriz representam também um mobiliário. O artistasustentava que qualquer imagem pode multiplicar seussignificados até o infinito, dependendo, exclusivamente, dacapacidade delirante do espectador.

As imagens do método paranóico-crítico tiveram umdesdobramento extremamente interessante na construção dosobjetos surrealistas, que se prestavam a um mínimo defuncionamento mecânico, cumprindo única e exclusivamente afunção de representante dos delírios do inconsciente, muitasvezes desorientando mais o público do que os próprios quadrosou poemas surrealistas. Um exemplo do objeto surrealista 27 Salvador Dalí : pintor espanhol (1904-1989). Um dospersonagens mais complexos das artes do século XX.Interessou-se pelo Cubismo, pelo Futurismo e pela pinturametafísica de De Chirico. Estudou profundamente a obra deFreud e a partir daí criou o método paranóico-crítico, logoincorporado ao Movimento Surrealista. Em 1937 rompeu com oSurrealismo, retornando à pintura influenciada pelaRenascença Italiana, dedicando-se posteriormente à pinturareligiosa.

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proposto por Dalí foi a “reprodução de grandes automóveis,três vezes maiores que os normais e com todas as minúcias depormenores dos originais, em gesso, para que, envoltos emroupas femininas, fossem enterrados em sepulturas, cujo lugarseria reconhecido apenas por um delicado relógio de palha”.

O Movimento Surrealista, que vinha, de uma certa forma,sofrendo desgaste em se utilizar apenas do automatismo puro,tendo como proposta o total afastamento da realidade,encontrou em Salvador Dalí uma fonte renovadora ao absorver ométodo paranóico-crítico, que, em última instância, resgatouo retorno à realidade da qual se afastaram, sugerindo aintegração dos delírios do inconsciente com os dados darealidade vivida. Dalí propõe, assim, com o seu método, asíntese inconsciente + consciente, para se chegar à supra-realidade e, conseqüentemente, à harmonia do ser humanoconsigo próprio.

A partir daí, as experimentações surrealistas passarampor um processo contínuo de transição, em que se verificouque o mundo vive numa permanente inter-relação entre oracional e as fantasias subjetivas, negando, assim, todo osistema cultural do Ocidente, que acentua de forma negativaesses aspectos paradoxais do mundo. Para os surrealistas, asupra-realidade é “o ponto do espírito onde a vida e a morte,o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável eo incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidoscontraditoriamente” e, portanto, passam a realizar obras emque combinam todos esses elementos contraditórios do mundo,acreditando numa verdadeira relação de “vasos comunicantes”,em que tais elementos juntos, ao invés de se oporem, como éacentuado culturalmente, interagem, de maneira a se chegar àplenitude do ser humano.

A supra-realidade já não representa, portanto, oabsolutismo do inconsciente, a total evasão da realidade, masse correlaciona com ela à procura da unidade, abrindo canaisatravés de imagens para que o mundo real seja o reflexo doespírito humano.

Uma das concretizações mais evidentes do novo rumotomado pelo Surrealismo em sua segunda fase foi atransformação do título do quadro “Revolução Noturna” de MaxErnst, para “Revolução Diurna”, apontando, aí, para umretorno à realidade, agora com a clareza da vivênciaexperimentado no mergulho ao inconsciente; os surrealistas,retornam, então, à realidade concreta da mesma forma que ospersonagens de Platão, que ao terem contato com a luza apósviverem um longo período na escuridão, retornam à cavernaenriquecidos com a experiência vivida.

Dessa forma, o contato com o cotidiano não representouum retrocesso dos surrealistas, já que o cotidiano passou aser vivenciado à luz de uma experiência enriquecedora daprimeira fase do movimento, na qual se debruçaram total ecompletamente sobre o mundo do inconsciente.

Toda a teoria da segunda fase do Movimento Surrealistateve suas bases calcadas na psicologia freudiana, quelibertou o indivíduo das concepções morais da sociedade, para

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que, enriquecido com essa vivência, pudesse experimentar umanova relação com a realidade cotidiana.

Esse retorno ao concreto acabou por desdobrar-se nomaterialismo dialético de Marx, que encarava o homem como “umconjunto de forças livremente desabrochadas”, o qual iriareconciliá-lo com as duas faces de si mesmo: consciência +inconsciência. Por isso, seria mais do que natural oMovimento Surrealista encontrar respaldo nos estatutos deMarx, que possibilitavam a união de forças contraditórias,chegando a uma

“filosofia particular da imanência, segundo a qual a supra-realidade estaria contida na própria realidade (não seria nemsuperior, nem inferior). E reciprocamente, pois o continenteseria também o conteúdo. Tratar-se-ia quase de um vasocomunicante entre conteúdo e continente.”

A fotografia inserida na filosofia do 2º ManifestoSurrealista

Essa pequena imersão nos desdobramentos do MovimentoSurrealista nos coloca diante da qualidade fundamental dafotografia, que é a oscilação entre o real e o inconsciente.

De fato, a fotografia percorre esses dois caminhosconcomitantemente. Não há imagem fotográfica que deixe decarregar dentro de sai a realidade existente na hora do atofotográfico, juntamente com a carga psicológica e subjetivapor ela emanada. Essa carga inconsciente, com certeza, é aface mais complexa de uma imagem fotográfica, uma vez que elaprovém de várias instâncias que se intercomunicam e sedesdobram em outras tantas realidades subjetivas. Envoltos emtais complexidades, encontram-se o sujeito fotografado, osujeito que fotografa e o espectador, cada qual contribuindocom suas próprias experiências e vivências culturais, sociaise psicológicas, que farão da imagem de fato existente,fotografada, uma obra sempre em aberto à mercê de quem aolha.

Se pensarmos, primeiramente, no fator técnico, podemosobservar que a linguagem fotográfica por si só já trabalhacom uma realidade deturpada. Mesmo lançando mão de uma lentedita “normal” de 50mm, ela jamais corresponderá exatamente àvisão humana, sempre estará ocorrendo algum tipo dedesvirtuamento da realidade vista pelo olho humano. Arealidade, no entanto, estará clara e patentemente deturpadaao trabalharmos com uma lente grande angular, que nos daráuma imagem bastante distorcida, ou uma teleobjetiva, queapresentará planos achatados. Todas essas imperfeições ouanormalidades impostas à realidade como o desfoque, asilhueta, o tremido, a dupla exposição e tantas outras mais,são recursos eminentemente fotográficos que, de imediato, jános colocam frente a uma realidade diferente da quevivenciamos em nosso cotidiano. A linguagem fotográfica,portanto, tem a capacidade de nos prover, através do seuaparato técnico, de todo um manancial de informações visuais

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extremamente libertárias que podem alterar o nosso sentido erelacionamento espacial com a realidade.

Ao estarmos diante de uma imagem distorcida darealidade, caso típico de uma lente grande angular,experimentamos, de alguma forma, um certo tipo dedesconforto, de mal-estar. Essa recusa que a princípio seinstala, tem suas raízes na ausência de correspondência entreo espaço que estamos acostumados a vivenciar, dentro do qualos nossos sentidos habitualmente já respondem a todas assolicitações, e essa imagem distorcida. O homem sempreprocurou ratificar a sua presença no mundo buscando algo queo remetesse a sua semelhança e ao espaço, que é a suacondição básica de relacionamento com o mundo, o seu grandereferente. Caso esse referente não encontre correspondência,isto é, caso o homem não encontre semelhança entre o quesente e o que vê, instaura-se o caos, pois aí lhe é negada acondição primária de se sentir parte do mundo.

Essa vivência, de certa forma, é ainda mais acentuada aose tratar de uma imagem fotográfica, já que a fotografiasempre foi culturalmente encarada, desde a sua criação, comoa mais fiel representante da realidade, o referente miméticoda natureza. A partir do momento em que ela nega e frustraessa expectativa de apresentar uma realidade com a qualestamos habituados a conviver e que, inconscientemente,desejamos que seja mostrada, há, sem dúvida, umadesarticulação interna, tendo como conseqüência natural anegação de toda e qualquer imagem que venha quebrar esseestatuto.

O fato é que a linguagem fotográfica traz já dentro doseu próprio meio de expressão a qualidade de apresentar umarealidade existente e, ao mesmo tempo, transcendente a elaprópria, quer dizer, a fotografia já carrega,intrinsecamente, a surrealidade dentro de si.

Por mais sofisticada que seja a aparelhagem fotográfica,por maiores que sejam os avanços da tecnologia ótica, ainstância inconsciente do sujeito que fotografa, no exatomomento em que o obturador é acionado, justapõe-se a todaessa racionalidade, impondo sua carga expressiva à imagem e,certamente, a força dessa imagem será diretamenteproporcional a esse investimento do sujeito. Não há como tertotal controle sobre todos os parâmetros no momento em que seestá fotografando, até porque nem tudo depende apenas dofotógrafo. Sempre há algum tipo de interferência externa,como a mudança de luminosidade, um movimento imprevista dacena, a entrada inesperada de algum objeto ou de alguém noespaço a ser fotografado. Há, enfim, todo um contexto queresvala ao controle único e exclusivo do fotógrafo.

A racionalização, a consciência sobre o que se querfotografar pode, e até deve, existir (se for o caso)anteriormente ao acionamento do obturador. O ato fotográficoem si é pura inconsciência, pois nesse exato momento tudo éescuridão (não apenas teoricamente, já que nesse mo mento oespelho se fecha), nesses décimos de segundo tudo ocorre de

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forma totalizante e de uma única vez, não havendo tempo paraetapas processuais, para se voltar atrás.

As imagens que ficam, perduram no tempo, conseguematravessar gerações e, mesmo assim, continuam emocionando aspessoas, com certeza não o fazem pelas suas qualidadestécnicas. Um fotógrafo medíocre, com uma sofisticadaaparelhagem, pode estar, tecnicamente, ao lado de um grandefotógrafo, e mesmo assim continuar medíocre, sem brilho, semconseguir emocionar as pessoas. Por isso, por mais que atendência do mercado seja a de padronizar tecnicamente asaparelhagens, de colocar as pessoas com praticamente o mesmotipo e nível de material, sempre haverá fotógrafos efotógrafos. Paradoxalmente, quanto mais se assemelham osequipamentos, mais se nota a diferença entre a boa e a máprodução de imagens; o que se esperava de uma padronizaçãodos fotógrafos em função da sofisticação tecnológica, dosimensos recursos que os deixariam em “pé de igualdade”, veiosomente acentuar diferenças, as quais configuram-se pela“marca” de cada ser humano.

Essa “marca” a que nos referimos e a que chamam estilo,esse diferencial, é produto do inconsciente de cada serhumano, uma vez que, frente a um meio de criatividade, sai dalatência e torna-se arte. Por isso, uma imagem fotográfica,ao ser produzida, leva consigo a realidade de fato existente,juntamente com o manancial inconsciente do sujeito que aproduz, desdobrando-se em uma supra-realidade, em umarealidade que não se configura apenas através do palpável,mas, isto sim, através da inter-relação do que há deinconsciente na produção e do que foge a tudo isso,característico da instância inconsciente.

A unicidade consciente/ inconsciente, portanto, tãoprocurada e desejada pelo Movimento Surrealista, é nãosomente parte integrante como pedra fundamental, dadoinseparável da linguagem fotográfica.

O sujeito fotografado, da mesma forma, atua intensamentenesse processo. Um olhar ou um gesto qualquer, por maisimperceptível que possa parecer diante do todo ou da atençãocentral de uma imagem, pode alterar por completo, ou entãoacentuar o sentido da cena, principalmente se esse gesto nãofizer parte diretamente do contexto da foto.

Sebastião Salgado flagrou no “Raso da Catarina” (Bahia)(figura 5) uma cena que nos remete a uma reflexão sobre essasituação. O cenário compreende uma noiva dentro de um carroaguardando a chegado do noivo. Uma das portas do carroencontra-se aberta, onde se vê uma mulher de pé, fora docarro, apoiada com um dos braços sobre a tal porta.

Quando olhamos essa foto, as nossas atenções voltam-seimediatamente para a noiva, em seu estado de resignação,quase patético, aguardando o momento tão desejado. Ali, tudoé espera: o chão batido à espera do calçamento, a construção(ao fundo) à espera de sua finalização, o lugar vazio domotorista à espero do suposto noivo e, principalmente, anoiva, concentrando em si toda a emocionalidade da foto. Noentanto, após um certo tempo, sinto que a força realmente

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expressiva da cena encontra-se na mulher que está fora docarro, não por ela estar efetivamente em estado de espera,pois está grávida, mas pelo seu olhar – não há como evitarnossas atenções sobre ela. A espera que há em seus olhos vaialém da gestualidade concentrada na noiva, pois nos pega maispelo que não está representado, ou seja, a espera de quefalam esses olhos não é de fato a espera pelo noivo, vaimuito além disso. A profunda desesperança nesse olhar nãocorresponde a uma espera momentânea, objetiva, que, namaioria das vezes, nesse tipo de situação, se desfaz.

Esses olhos trazem toda uma vida de espera, nosofrimento de sua situação sertaneja.

É possível perceber que essa mulher olha para um nada,para um vazio, pois é um olhar que está perdido dentro delaprópria, tão longe e tão próximo. A superficialidade do queseria uma cena óbvia de espera torna-se contundente diante doque, a princípio, se dava como algo secundário a ela, ouseja, esse “secundário” à cena é que a qualifica, tornando-apresente dentro do espectador que a olha, sem poder evitar oseu comprometimento com ela. Assim, mais uma vez, a forçadessa imagem não se encontra, de fato, no espaçorepresentado, e sim na virtualidade a que ela nos remete.

Nos chamados “flagrantes”, aquelas fotos em que osujeito não percebe que está sendo fotografado, é muitorecorrente este tipo de situação. Pelo fato de sersurpreendido pela câmara, sua participação no contexto daimagem fotografada é toda inconsciente e esse dado tem umcaráter fundamental na animação da foto, que, no caso,refere-se à maneira pela qual a imagem atinge o espectador. Amobilização, aí, diz respeito não a perturbações ou choquesestéticos, mas ao confronto com o desconhecido, com o ocultorevelado do sujeito.

Cartier-Bresson (1908-2004) é o grande mestre na arte do“momento decisivo” não por conseguir emocionar o mundoatravés de imagens chocantes, carregadas de emoção ou cheiasde retórica, mas por tocar no inconsciente do espectador.Utilizando-se de imagens extremamente simples, quaseminimalistas, Bresson faz surgir o que há de oculto, deinconsciente nas pessoas, o qual jamais seria revelado seelas tivessem consciência de estarem sendo fotografadas.“Momento decisivo” é, portanto, essa fração de segundo em quedeixamos a latência inconsciente tornar-se realidade; é aí,nessa instância, que o espectador é seduzido, é como se elepegasse o “gancho” dessa revelação inconsciente e trouxessepara si, revelando-se a si próprio.

Assim, esse gesto, ato inconsciente, realiza o caminhode volta, fotografando o espectador, que, ao ser atingido poreste punctum, mobiliza-se internamente, passando a formar umemaranhado de associações que lhe darão possibilidades dearticular dentro de si tantas realidades quantas seuinconsciente permitir. O espectador, portanto, participadessa trilogia (juntamente com o sujeito que fotografa e oque é fotografado), mas não como um sujeito pronto a fecharum ciclo, muito pelo contrário, abrem-se sempre novas

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possibilidades associativas a cada instante em que ele foracionado por esse punctum inconsciente, já que suasexperiências e vivências mudarão de caráter a cada momento.

Poderíamos, então, dizer que uma imagem fotográfica ésempre vista com olhos surrealistas, pois o sujeito quefotografa, o sujeito que é fotografado e o espectador estarãosempre de alguma maneira inter-relacionados tanto através darealidade existente (dado fundamental da linguagemfotográfica) quanto por suas instâncias inconscientes (estasdependendo das vivências e experiências individuais de cadaum).

É interessante ressaltarmos aqui a diferenciação docaráter de supra-realidade existente em fotografia e emoutras áreas de criatividade, especialmente em pintura. Aconfiguração da existência de uma supra-realidade, ou seja,da convivência concomitante entre uma realidade consciente euma realidade inconsciente, em fotografia compreende umaqualidade específica, já que ela é a única linguagemartística em que o dado de realidade, o referente, o traço,aparecem como características inseparáveis do seu sistema,sem os quais ela não existiria, e isto muda tudo.

Se tomarmos, por exemplo, Magritte, que foi um dospintores surrealistas que mais trabalhou com a realidadeconsciente e inconsciente num mesmo espaço, deveremos sempreestar atentos para o fato de que a realidade ali posta sobrea tela é pura representação, não há qualquer vínculo de traçoentre o que ele está realizando com suas tintas e pincéis e arealidade de fato existente (Foucault dizia que “pintar não éafirmar”). Aliás, o próprio Magritte joga muito com essenoema representacional da pintura. Conforme já foi enfocado,a pintura de um cachimbo com o título “Isto não é umcachimbo” nada mais faz do que ratificar que o que está alipintado na tela não é, de fato, um cachimbo e sim arepresentação do objeto pintado. Além disso, nos lembra aimpossibilidade da total e fiel representação de um objetotridimensional em um espaço bidimensional (a tela),diferentemente da fotografia, que, embora nos apresente umaimagem, da mesma forma, bidimensional, essa imagem não seconstitui como uma representação e sim como a própriarealidade impressa no papel. A imagem de um cachimbo impressaem um papel fotográfico sempre terá, indefectivelmente presoa ela, o traço do objeto cachimbo que a originou.

Uma imagem fotográfica, portanto, compreende uma maiorcomplexidade quanto aos aspectos formais da supra-realidade,visto que a realidade existente (racional), já de imediato,imprime-se no papel fotográfico, enquanto a realidadeinconsciente, embora tenha seu ponto de partida na imagemrepresentada, é encontrada fora dela. De outra forma,poderíamos colocar que a subjetividade de uma imagemfotográfica só pode ser buscada fora (embora a partir) dela,uma vez que o que está no papel é pura realidade. Então, damesma maneira que o referente, o dado de realidade, éincondicional à fotografia, a sua virtualidade também o é. Jáem uma pintura, por ela não ter nenhum comprometimento com a

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realidade, esse processo se dá de forma diferente. Porconstituir-se de uma representação (mesmo que seja arepresentação de um sonho, de uma visão, de um estado deespírito), a realidade apresentada em uma tela já carregadentro de si a sua própria subjetividade.

Entendo, portanto, que essa inexorabilidade da realidadeque a fotografia traz consigo seja a resposta procurada portantos fotógrafos atraídos por temas tão diferentes. Não háfotógrafo que, em algum momento, não tenha empunhado a suacâmara na compulsão de flagrar um assunto de total estranhezapara ele.

Mesmo quando se trata do banal, do corriqueiro, do quehá de mais comum, lá está o olhar do fotógrafo focado (oudesfocado) naquilo que os olhos menos atentos não estão aenxergar. Há, de fato, uma tendência, mesmo inconsciente, dese buscar o adverso, o contrário, o não trivial, isto é,aquilo que está implícito na visão imediata. Seja nofotojornalismo, nos ensaios pessoais, nas fotografias de modaou em quaisquer outras áreas da linguagem fotográfica, ofotógrafo é seduzido pelo grotesco, por tudo aquilo que, dealguma forma, não esteja direta ou explicitamente relacionadoà própria realidade do objeto fotografado, à sua funçãoprimordial, mesmo que esteticamente. Desse modo o fotógrafoencontra a sua saída, o veio para transpor a realidadeindiciária e referencial que faz parte e que está dentro dafotografia.

É como se o fotógrafo, aí, tentasse a todo custodesafiar o próprio meio que está expressando, burlando umarealidade que, de fato, existe. Conseqüentemente ele insisteincessante, na busca de apreender o extraordinário, o quefoge a todo e qualquer domínio da racionalidade possivelmenteapreensível pelo homem. É a busca do desconhecido.

Aqui podemos perceber por que foi a fotografia alinguagem artística que, com maior profundidade, levouadiante as propostas do Movimento Surrealista. Um dosprincípios básicos do 1º Manifesto Surrealista fundamenta-sena tentativa da criação de uma crise moral na sociedade,passando, obviamente, pelo desvirtuamento, pela adulteraçãoda realidade existente em todas as formas de expressãoutilizadas pelo Movimento. A poesia, a pintura, a escultura eo próprio teatro lidam com linguagens subjetivas, enquanto afotografia é a única delas em que a realidade é parteintegrante e inquestionável de sua linguagem, a única em quea subjetividade, a instância inconsciente, encontra-se foradela. Da mesma forma devemos abrir aqui um espaço para a artede “assemblage”28(também conhecida quando introduzida noMovimento, como “objeto surrealista”). Na assemblage, o meiode expressão não faz referência à realidade, não a tem comoíndice ou traço, como na fotografia, mas é a própria 28 Assemblage: Termo cunhado na década de 50 por Jean Dubuffetpara denotar obras de artes elaboradas a partir de fragmentosde materiais naturais ou fabricados, como o lixo doméstico.Usado para definir desde fotomontagens até instalações.

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realidade que transfigura, assume um novo valor. A assemblagelida com objetos do cotidiano, cujas funções habituais paraos quais foram feitos são anuladas, compreendendo, após umprocesso de seleção e montagem com outros objetos, um novocontexto. A escolha desses objetos, portanto, passa pelainstância inconsciente do artista, que, ao lançar mão de todoos seu aparato fantasioso, seleciona-os de acordo com as suaspróprias necessidades internas para atingir uma novarealidade. Esses objetos, assim, livres das limitaçõesestabelecidas por suas funcionalidades racionais,possibilitam novas relações entre o ser humano e o meio emque vive.

Salvador Dalí foi um dos artistas que mais contribuíramna elaboração de objetos surrealistas, os quais denominava“objetos que, prestando-se a um mínimo de funcionamentomecânico, estão baseados nos fantasmas e representaçõessuscetíveis de serem provocados pela realização de atosinconscientes”.

Toda essa manipulação de objetos do cotidiano para arealização de assemblages (aqui entendidas como objetossurrealistas) nos remete de imediato à obra de Duchamp,principalmente aos seus ready-mades. Ocorrem aí, de fato,verdadeiras operações duchampianas, em que o encontroinsólito de objetos com realidades tão díspares proporcionaum deslocamento na realidade interna de cada espectador, quepassa a ter de buscar outros referenciais, novos parâmetrosde entendimento, visto que a assemblage exige u menvolvimento participativo do espectador no sentido detranscender as realidades dadas, já existentes em cada um deseus objetos. Todo esse caráter mobilizador da assemblageencontra perfeita ressonância nos princípios surrealistas,por ela gerar efetivamente uma crise moral, isto é, poracionar no espectador todo um mecanismo de desprendimento aoque é pré-conceituado, ao que é dado de maneira pronta eacabada, já que o seu conhecimento e entendimento, a suaconceituação e valor da realidade serão transitórios,alterarão a cada nova obra apresentada.

Assim, subverter a realidade de forma a se criar umaoutra mais profunda a partir dessa própria realidade, isto é,atingir uma supra-realidade calcada diretamente na realidadeexistente exige um outro approach, principalmente por sesaber que esse estágio de supra-realidade em fotografiadepende de uma participação mais direta do espectador, já quea potencialidade de uma imagem fotográfica concentra-se,acentuadamente, na sua virtualidade, que, obviamente, dependeda vivência de cada espectador.

A transcendência da realidade concreta provida por umaimagem fotográfica, portanto, será tanto maior e tanto maisprofunda quanto maior for o seu potencial de afastamento emrelação à realidade do espectador. Esse distanciamento entreo que o espectador vê e as suas experiências e vivências devida no mundo, o hiato criado por essas diferenças depercepção é que o levará à construção de um novo universo,onde o consciente e o inconsciente, ao invés de serem vividos

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como instâncias antagônicas, serão parte de um mesmo sistema,voltado para um equilíbrio que não seja mais linear,mecânico, estabelecido por regras racionais, mas sim umequilíbrio em que prevaleça uma organização assimétrica, nãorepetitiva, um caos aparente, visto que luz/ escuridão, vida/morte, preto/ branco e finalmente consciente/ inconscienteconstruirão, simultaneamente, esse sistema, cuja existênciaserá facultada pela presença de ambos, não mais comoconflito, oposição, mas como correntes de um mesmo fluxo.

Essa realidade à qual nos referimos constitui-se,primordialmente, pela relação espacial que o ser humanoguarda com o mundo que o cerca.

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V – A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA

O espaço não é uma realidade em si, dada, já pronta, naqual o homem tenha de se adaptar, e sim uma experiência decada um. Ele é função direta de todas as nossas experiênciase vivências anteriores, ou seja, o espaço está todo em nós,pois, a cada novo espaço em que nos encontramos, somosremetidos à memória de nossos comportamentos anteriores para,então, criarmos e sentirmos esse espaço, que terá, pois, ocaráter experimental. Certamente as vivências espaciais de umcidadão urbano, de um índio do Alto Xingu e de um primitivoem uma ilha do Pacífico são completamente diferentes, vistoque suas experiências culturais, sociais e corporaiscompreendem qualidades divergentes.

Desde que nascemos, desenvolvemos as nossas noções deespaço, de acordo com as sensações que passamos aexperimentar. Os fantásticos estudos de Piaget demonstraramque a percepção espacial é cumulativa, que a sua compreensãoé determinada pelas diversas etapas por que passa oindivíduo. As primeiras sensações espaciais de uma criançapertencem a um universo unidimensional, sem formas fixas,medidas, perspectivas, proporções. Fazem parte de umarepresentação confusa do mundo, através de sensaçõesfugidias, mas que são ponto de partida e dado fundamentalpara a nossa compreensão posterior do espaço no mundo.Segundo Piaget,

“o primeiro universo do homem é topológico-deformável,baseado em noções de separação e proximidade, de sucessão ede ambiente, de envolvimento e de continuidade,independentemente de qualquer esquema formal e de qualquerescala fixa de medida.” (DUBOIS, Philippe – O AtoFotográfico)

A criança passa, em seguida, por uma fase projetiva doespaço, em que ela percebe um mundo bem mais definido, comcorpos fixos e independentes, providos de formas eclassificação, ainda que sem a noção de escala. Aos poucos,no entanto, vai havendo o enriquecimento das sensações com oapoio da memória, abrindo-se o mundo das várias dimensões,das relações de grandeza entre objetos, das relações lógicase assimétricas, enfim, de todo um sistema codificado deperspectiva, calcado na geometria euclidiana. Piaget, noentanto, nos chama a atenção:

“a passagem de um estágio a outro não implica odesaparecimento total dos sistemas de percepção anteriormenteadquiridos e dominados. As representações topológicas doespaço, por exemplo, permanecem latentes para sempre em nossoespírito, elas não são expulsas pelas representaçõesprojetivas e perspectivas que se lhes superpõem.” (DUBOIS,Philippe – O Ato Fotográfico)

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Crescemos, portanto, carregando o pesado fardo darepresentação espacial da perspectiva euclidiana, que oOcidente, de forma contundente, privilegiou. Esse sistema,especulação máxima do Renascimento, propunha que o espaçoteria a aparência de um cubo, onde todas as linhas de fuga sereuniriam em um ponto único situado dentro do quadro ecorrespondendo à visão a partir de um ponto de vista único doolho humano. Vários séculos habituaram-nos a aceitar taisconvenções como dogmas verdadeiros e perfeitos derepresentação da realidade, pois são elas a base de todo osistema educacional do Ocidente, que, ao desenvolver nossasfaculdades matemáticas e visuais, nos torna cidadãos moldadose deformados por uma cultura particular. Sem dúvida alguma,esse conjunto de articulações e métodos de representaçãoespacial, perspectivado, compreendeu um valor inestimáveldurante o período renascentista por permitir imensos avançosnas ciências aplicadas e humanas, nas descobertas econquistas territoriais, no conhecimento do mundo. De umaforma geral, proporcionou desenvolvimentos incalculáveis detoda sorte, porém é preciso entender que tais sistemas nãosão, de forma alguma, os valores imutáveis e irrepreensíveisde representação do mundo. Muito pelo contrário, são sistemasarbitrados e inventados em concordância com todo o padrãosocioeconômico, cultural e político vivenciado durante aépoca renascentista. Hoje ele não constitui mais a nossaverdade.

As convenções arbitrárias de fonte única de luz e davisão perspectivada monocular já não coincidem mais com osvalores do nosso tempo, pois deformações, mobilidade,velocidade, plasticidade, materialidade, experimentação seopõe, de forma radical, à estabilidade, equilíbrio epermanência da sociedade renascentista.

Por isso, a questão espacial é, atualmente, tão ampla eabertamente discutida. Hoje lidamos com o espaço de uma formamuito mais experimental, imaginativa e comportamental, do queatravés de teorias e métodos dados, já prontos.

A representação espacial renascentista de que estamostratando passou a ter os seus primeiros questionamentos noséculo XIX, exatamente quando a fotografia é inventada.Embora o cubo cenográfico e a perspectiva linear aindaestivessem presentes em praticamente todos os artistas doséculo XIX, os primeiros realistas seguidos pelosimpressionistas e pós-impressionistas já levantavam algumasdiscussões em torno da representação espacial que haviaquatro séculos seguia como dogma inquestionável.

Manet foi um dos primeiros a abrir uma discussão sobre alinguagem pictórica em si, trazendo a reboque a questão doplano da tela, ou seja, contestar a representaçãotridimensional do mundo em uma superfície bidimensional, queé a superfície da tela, em contraposição à geometriaeuclidiana, que tenta nos passar de forma ilusória atridimensionalidade do mundo no plano da tela.

Monet, através de trabalhos como “Catedrais”, “Pontes deLondres” ou mesmo “As Mulheres no Jardim”, embora faça

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referências ao espaço cúbico do Renascimento, ao tradicionalenquadramento e segregação dos planos em profundidade, jácoloca a questão do espaço fragmentado (através de manchasadjacentes umas às outras) e a questão da maior proximidadeentre figura e fundo (em função da maior semelhança entreeles).

Renoir, em alguns quadros, já sugere fundos desfocados eachatados, assim como algumas representações em close no casodo “Busto de Mulher” (estudo de nu), no qual o fundo éindeterminado, o espaço feito da mesma matéria que a mulher,evidenciando a aproximação figura/ fundo, e, principalmente,pelo fato de o quadro deixar de ser estruturado em funçãoexclusivamente de um ponto de vista único (típico darepresentação renascentista) para ser tratado por váriospontos de luz (impingindo, portanto, uma mobilidade do olhar)centrados na boca, ombro e seio.

Degas, da mesma forma, não poderia deixar de ser aquimencionado, por ter abordado questões espaciais cruciais queabriram caminhos para investigações futuras e também por tertido a fotografia como uma de suas atividades de expressão.

A pesquisa de Degas é a pesquisa do movimento do espaço,por isso a linha para ele tinha uma conotação muito maisdinâmica do que formal. Embora Degas tenha composto uma sériede temas sugerindo movimento (caso das bailarinas, corridasde cavalos, etc.), o que lhe interessava realmente era passara idéia do movimento pelo deslocamento do olhar no quadro,para que assim o espaço se alterasse a cada instante. Aqualidade do espaço em Degas passava, então, de uma instânciarígida, fixa, proveniente das regras do Renascimento (altura,largura e profundidade), para uma maior relatividade. Oespaço passava a ser definido pela nossa própriaexperimentação e percepção do espaço.

Em “O Absinto”, Degas sugere um espaço vertiginoso,desequilibrado, em direção ao espectador e, literalmente, nosinsere na cena ao cortar todos os lados do quadro. Esses“sangramentos” nas quatro direções (em cima, embaixo, doslados) retiram o espectador da mera posição contemplativa,distante, tornando-o participativo, dentro do espaçorepresentado, agindo sobre ele e recebendo dele toda a suainfluência. Degas, aí, já coloca uma questão fundamental eextremamente atual ao tratar da interação sujeito/ objeto,homem/ mundo, revelando-se uma proximidade inexistente nacultura ocidental desde o Renascimento.

Enquanto a sociedade da Idade Média acreditava que tudoestava em Deus e, por isso, nenhuma distância deveria haverentre as coisas, já que elas eram manifestações de umaessência única, o Renascimento cortava esse vínculo, propondouma separação homem/ Deus e afirmando que o homem passava aser a medida de todas as coisas. A partir desse conflito, vemtoda uma filosofia de separação, afastamento do homem emrelação à natureza, o que, certamente, iria desdobrar-se narepresentação espacial, pois era de maneira distante,separada, que o homem se percebia, se relacionava com omundo. Por isso, todo o sistema representacional legado pela

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sociedade renascentista era calcado nas leis fixas eimutáveis do mundo exterior. No entanto, todo esse conjuntode regras arbitradas pelos teóricos e decodificadas pelasociedade da época, aos poucos foi perdendo sustentaçãoperante novas experiências vivenciadas, e esses princípiosestabelecidos foram sofrendo modificações e renúncias emfunção das transformações filosóficas, espirituais e sociaisque o homem passava a sustentar diante do novo mundo.

A modificação nas concepções de distância social passavaa alterar a relação comportamental de espaço do homem com omundo, e aí retornamos à modernidade atribuída a Degas, porter, de fato, sido sensível a tais transformações. QuandoDegas propõe um espaço interativo, nos colocando próximos àcena representada, através dos sangramentos, antecipa-nos oambiente onde viveríamos; um mundo que age sobre nós de todasas formas e de todos os lados; um mundo que não está maisdistante de nós, de que deixamos de ser meros contempladores;um mundo que nos exige total percepção e interação, hajamvista as constantes interferências que sofremos em nossocotidiano.

O século XIX, dessa forma, constituía-se num grandelaboratório cujas experiências que vinham sendo maturadashavia algum tempo, passavam a ser efetivamente postas emprática, em consonância com todas as emergentestransformações sofridas pela sociedade. Ficava patente, noentanto, que todas essas alterações e deslocamentos tinham,em sua essência, uma maior aproximação e interação do homemcom o seu meio. Em contraponto ao distanciamento e à visãoglobal do mundo, imposta desde o Renascimento, estava a visãopróxima, fragmentária e direcionada aos detalhes. Essamudança de atitude refletia-se na maneira de ver as coisas nomundo, e, conseqüentemente, no modo de representá-las. Apintura, principalmente a partir dos impressionistas, e afotografia tiveram de lidar diretamente com o problema doespaço em função de uma psicologia social que aos poucos foise instalando, e também pelo fato de o espaço constituir-senuma característica inerente a suas linguagens. Por isso, nãoé à toa que Renoir, muitas vezes, sugere a figura e o fundonum mesmo plano de interesse; que Degas propõe uma visãopróxima, tátil, através de fundos abstratos colocados aoprimeiro plano ou através de seus diversos closes; queCézanne trabalha as pesquisas da construção da totalidade dascoisas apresentando um todo simultâneo de superfície eprofundidade.

Está colocado, então, o grande embate entre comorepresentar o mundo em função das novas relações espaciaisvivenciadas pela sociedade e toda uma carga de quatro séculosde cultura assimilada a partir do Renascimento. Muitos têmsido os artistas plásticos e fotógrafos empenhados nessaempreitada desde o final do século passado até hoje.

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VI – A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA

A questão espacial, em fotografia, é, de fato, delicada,e por isso mesmo compreende uma de suas vertentessurrealistas mais interessantes. O aparato técnico dafotografia, bem como o sistema cultural do Ocidente, induzem-nos sempre a vermos o mundo de uma única maneira,caracterizando-se como engrenagens arbitradas e articuladasem função da nossa própria condição no mundo. Quando osteóricos do Renascimento engendraram seu sistema derepresentação espacial, assim o fizeram tomando por base oponto de vista único, monocular, ideal, acima da testa,perpendicular ao plano do quadro. Isso, logicamente, só pôdeser possível levando-se em consideração a ortogonalidade dohomem em relação ao mundo. Afinal, como afirma PhilippeDubois, “somos seres eretos, vivemos de pé, postadosverticalmente diante da horizontalidade do solo, e essa é acondição fundamental para o nosso relacionamento espacial como mundo.”

Ao olharmos uma imagem, de imediato é formada a relaçãoentre o espaço fotográfico propriamente dito e a nossapresença no espaço. O fato é que o modelo arbitrado par anosfornecer o espaço fotográfico é construído em torno daortogonalidade, ou seja, de retângulos ou quadrados,dependendo de cada caso, mas sempre a partir do sistema dashorizontais x verticais, o que, na realidade, não correspondeao aspecto natural, pois a imagem provida pelas lentes daobjetiva é, a princípio, circular, assim como a imagemformada na nossa retina. Para tanto, todo um aparato éconstruído de maneira a forçar o espaço fotográfico a sedobrar a essa estruturação ortogonal; é “janela” na câmaracom telêmetro, espelho e visor nas câmaras reflex, janelasnos ampliadores, marginadores para os papéis e até nasmoldura para exposição: “Nada além de retângulos e quadradosque se duplicam ao infinito.” (DUBOIS, Philippe – O AtoFotográfico)

Assim, todo esse modelo tem como objetivo harmonizar-seà nossa postura, ao nosso posicionamento no mundo, que étambém ortogonal. Por isso é que quando uma pessoa quer tiraruma fotografia dita harmoniosa, dentro dos padrões normais,ela faz valer, o quanto possível, toda a correspondência deparalelismos entre espaços, ou seja, todas as verticais,assim como todas as horizontais do espaço a serem inseridasna fotografia devem estar paralelas às verticais ehorizontais do visor da câmara, para que, conseqüentemente, aimagem esteja em equilíbrio com a nossa posição no espaço, amesma forma vertical em relação à horizontalidade do solo.Isso, portanto, faz com que a foto tenha um aspecto natural,ilusório aos olhos do observador, por possibilitar umaidentificação com a sua experiência e percepção do espaço.

Uma vez cortada essa correspondência entre o espaçofotográfico e o espaço vivenciado pelo sujeito, surge umcerto mal-estar e, por conseguinte, uma atitude de não

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aceitação da imagem vista, em função de um sentimento derejeição, de exclusão de sua própria presença no mundo.Diante desse verdadeiro “cut”, o espectador experimenta aausência de referências de sua própria realidade, adesorientação do espaço que lhe é comum e, conseqüentemente,o afastamento, o distanciamento de sua realidade racional, ea criação, então, de uma outra realidade, em que oinconsciente se faz presente.

A tônica do movimento surrealista recai exatamente sobreesse distanciamento. De Chirico foi quem, através de seustrabalhos da fase metafísica, constituiu-se na pedra de toquepara tal questionamento. A perspectiva, em seus quadros, nãoencontra ressonância nem na representação renascentista dageometria euclidiana, com um ponto de vista único, nemtampouco na representação plana do Cubismo de Braque ePicasso, pois, embora utilizando-se de uma multiplicidade depontos de vista (como o Cubismo), eles eram de uma totalincoerência conduzindo a uma impossibilidade espacial, a umarepresentação da realidade em que bom senso e lógica estãototalmente afastados. Esses trabalhos de De Chirico causam-nos mal-estar não apenas em função de suas figuras grotescas,de sua incoerência temporal ou da ilogicidade de seus temas,mas sobretudo pelo distanciamento espacial a que eles nosremetem, pela total falta de correlação entre o espaçovivenciado por nós e o espaço da imagem representada; aí,literalmente, perdemos a noção do espaço.

A transgressão do espaço

A fotografia, conforme apontamos, não se absteve, damesma forma, de subverter o espaço plástico arbitrado pelosmétodos renascentistas, muito embora – e talvez sobretudo porisso – o seu meio de representação seja todo construído emconformidade com tais teorias. A câmara fotográficaproporciona uma visão que, na realidade, não corresponde àvisão normal do homem, visto que ele se utiliza de um pontode vista único, monocular, em função de uma objetiva únicaque nos seleciona um recorte (retangular ou quadrado) apartir de um padrão ortogonal, forjado pelo dispositivo quechamamos de “janela”.

Esse espaço, que é provido pelo próprio meio derepresentação fotográfica, passou a ter intensastransgressões no fluxo das experimentações do MovimentoSurrealista.

O close constituiu-se numa das formas de desarticulaçãodo espaço perspectivo. A visão habitual do homem, que eraglobal e distanciada, de maneira a corresponder ao modeloimposto desde o Renascimento, encontra o seu contraponto noclose. Primeiramente porque o close ao compreenderessencialmente um fragmento de algo, exige uma maioratividade do olhar, induz a uma maior participação doespectador no desvendar dos detalhes. O close, por isso,demanda um maior aprofundamento e portanto uma maioraproximação em relação à obra. No entanto, essa aproximação é

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muito mais sensitiva, está muito mais relacionada a umaspecto intuitivo de identificação com as demandas internasdo observador, ávido por estabelecer relações que o coloquemem harmonia com o mundo, do que uma aproximação de fatoespecial. Muito pelo contrário, o close nos traz um brutalafastamento de nossa realidade espacial, aliás, ele sópermite a aproximação da instância inconsciente por afastar-nos de nossa realidade cotidiana.

Uma imagem em close retira a noção de representaçãotridimensional do objeto na superfície plana do suporte(papel, tela, madeira, pano etc.), pois as linhas de fuga etodo o sistema da geometria linear perspectivada sãoeliminados. O close aproxima-se mais da representaçãoespacial planar do Cubismo do que da perspectivarenascentista, pois a imagem em close realiza um fechamentodo plano no suporte, afastando assim a noção datridimensionalidade à qual nos acostumamos a ver representadano plano.

Alguns fotógrafos ligados ao Movimento Surrealistautilizaram-se do close em diversas ocasiões, na intenção depropiciar uma relação diferenciada do homem com o mundo,exatamente pelo fato de a imagem em close possibilitar umafastamento da realidade espacial habitual. Afinal, quando,frente a uma imagem, não encontramos correspondência com onosso próprio sistema espacial, quando somos privados donosso reconhecimento topológico no mundo, instala-se umaverdadeira ausência da realidade racional, com a conseqüentepredisposição à aceitação de um novo referente, de uma novarealidade, cujas relações se dão de forma mais intensa, maisprofunda.

Uma referência significativa com relação a esse tipo deimagem é uma foto de Paul Strand (1890-1976) “Wire Wheel”(N.Y. 1918) (figura 6), na qual ele apresenta um closelateral de um carro. Ali, nossas referências habituais deespaço perdem força em face do comprometimento de todo omodelo de representação perspectivado; não há mais odistanciamento que nos possibilite fazer desse suporte, que éo papel fotográfico em si, uma “janela”, a típicarepresentação ilusória tridimensional do mundo. A relação comessa imagem é participativa, o constante movimento dos olhosé reflexo da dinâmica, do estado interativo sujeito/ imagem,já que, para compreendermos e, verdadeiramente, sentirmos oque essa imagem pode nos dar, é necessário percorrermos umcaminho dentro da foto, como se estivéssemos fechando a gradedo plano, que, interessantemente, pode ser, explicitamente,vivenciado através dos raios da roda do carro. Assim, toda anossa placidez contemplativa habitual, validada pela totalcorrespondência entre a nossa tridimensionalidade no mundo ea tridimensionalidade de uma imagem, é abalada, e em funçãodesse distanciamento do espaço racional criado é que seefetiva a maior inter-relação com a imagem; é a procura deuma nova realidade interna, em detrimento de uma outrarealidade já desgastada.

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A grande angular

Um outro aspecto que nos remete a um distanciamento donosso espaço cotidiano e que se caracteriza como um dado desurrealidade tipicamente fotográfica é a distorção pela lentegrande angular. Por possuir uma grande profundidade de campo,a grande angular aproxima e aumenta o primeiro plano,afastando os planos posteriores para o infinito. Dessa forma,ao mesmo tempo em que ela, por esse motivo, reforça o sistemade representação tridimensional, as linhas verticais sãodistorcidas em direção ao espectador, para o centro da foto.Uma imagem concebida por uma lente grande angular transgridea visão normal que temos do mundo e, por isso mesmo, nosatenta para o fato de que essa dita “visão normal” nada maisé do que um modelo inventado, arbitrado, e que nãocorresponde, em hipótese alguma, à única e inquestionávelvisão do mundo. Há, de fato, uma resistência à aceitação deuma imagem feita por uma lente grande angular porque eladesarticula, na verdade, as leis convencionais de ortometriaa que nos habituamos, causando-nos uma certa sensação de mal-estar ao percebermos algo fora do lugar, pois outrasinstâncias sensitivas do nosso organismo são acionadas, alémda realidade racional. É interessante observar que com agrande angular é como se o próprio meio se auto-adulterasse,já que o seu sistema (o da grande angular) forja todo opadrão de construção do aparato fotográfico, calcado nosmodelos rígidos da ótica e da mecânica, dispostos aproporcionar uma visão a mais harmônica possível à nossavisão dita normal.

O ângulo superior

O espaço é igualmente sentido de forma libertária frentea uma composição realizada a partir de um ponto de vistasuperior, aéreo ou mesmo antiaéreo (da terra, fotografar algono espaço). Rodchenko (1891-1956), Moholy-Nagy, Kertész(1894-1985) e vários outros fotógrafos ligados ao MovimentoSurrealista construíram boa parte de suas obrasexperimentando as contracomposições oblíquas, ou seja,tirando fotos de um ângulo superior em diagonal. Não foigratuitamente que esses artistas ativeram-se de forma tãoprofunda a esse tipo de pesquisa. A composição oblíquasuperior marca acentuadamente a dinâmica, o movimento. Adinâmica tratada aí, no entanto, não intenciona de formaalguma passar a idéia de deslocamentos rápidos, de mostrarque as coisas apresentadas estão de fato se movendo, atéporque esse tipo de sensação poderia ser dada utilizando-se orecurso das velocidades ultrabaixas do obturador da câmara,onde as imagens apareceriam em “flou”, borradas, semdefinição clara. A dinâmica, nesse caso, está mais nasensação de quem vê tais imagens. Na foto “Boats In The OldPort Of Marseilles” (1929) (figura 7) de Moholy-Nagy, porexemplo, todos os barcos estão completamente parados, masdevido ao ângulo de onde a foto foi tirada, temos a nítida

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sensação de que os barcos estão se movendo e de que vãoescorrer pelas bordas do papel fotográfico. Neste caso,Moholy-Nagy acentua ainda mais esse tipo de sensação, quando,ao utilizar-se do sangramento da imagem (vazamento dosobjetos representados pelos quatro cantos do papel), noscoloca como se estivéssemos realmente dentro do espaçorepresentado, como se fôssemos parte ativa do acontecimento,recurso este já bastante utilizado por Degas exatamente com omesmo intuito, conforme vimos anteriormente.

À parte essa primeira interação com a imagem sugeridapelo sangramento, há uma natural dinâmica interna doobservador, por ele perder os seus pontos fixos de referênciahabituais de espaço dentro da foto. Afinal, a tomada deângulo da foto proporciona uma imagem cujo espaço nãocorresponde efetivamente ao nosso espaço ortogonal em relaçãoà horizontalidade do solo. A instabilidade criada é a mesmaque se estivéssemos dentro de um desses ba r cós, flutuandosobre as águas, vivenciando diferentes pontos de referênciaespacial a cada movimento provocado pelas águas, criandonossa própria noção de espaço a partir de cada deslocamentodo barco, em total oposição à noção pré-fixada de espaço porteorias e regras matemáticas que tentam generalizar asensação de espaço e, conseqüentemente, padronizar ocomportamento humano. A mobilidade dessa foto é gerada,portanto, muito mais em função de uma desarticulação espacialdo que pela própria representação do objeto fotografado. Assuas linhas de composição são linhas oblíquas, transversais,que cortam toda a imagem numa composição de espaçotipicamente barroca, na qual as diagonais cortavam toda asuperfície na intenção da instabilidade, do movimento, daexacerbação pela desordem, em oposição à serenidade,intelectualidade e estabilidade renascentistas.

A desordem barroca, sugerida pelas diagonais, encontra oSurrealismo, até mesmo confirmando que as desarticulaçõesespaciais, a procura de uma nova vivência espacial, deferenteda nossa noção de espaço racional, é inerente a todo serhumano, em qualquer época que ele viva. Seja nas formasdinâmicas e sensuais de um Bernini, nas composiçõestumultuadas e dramáticas de um Tintoretto ou nascontracomposições oblíquas de Rodchenko ou Moholy-Nagy, ohomem está sempre buscando novas realidades, distantes da suapostura fixa, arraigada à terra.

A fotografia aérea e antiaérea

A fotografia aérea propriamente dita já coloca uma outraquestão, extremamente moderna, por vir de encontro àsdiscussões e pesquisas que estavam sendo realizadas nas artesplásticas com relação ao plano da tela. Não vamos, aqui, nosater às fotografias aéreas feitas por Nadar (1820-1910) nofinal do século XIX, que compreendiam aspectos maisintuitivos do que experimentais, mas sim àquelas vinculadasàs investigações do espaço na composição.

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Toda a representação tridimensional, marcada pelaorientação do horizonte, onde os planos superpostos eseparados dão a noção de profundidade e todas as coisas podemser perfeitamente localizadas dentro de um espaçocompreendendo comprimento, altura e largura, ficacomprometida frente a uma fotografia aérea. Nesse tipo defoto (insisto em que estamos tratando das vistas aéreastiradas de avião) chega-se, efetivamente, ao plano total,assim como Picasso chegava ao plano por meio de suaspesquisas cubistas. Isso altera completamente a nossapercepção de espaço e, conseqüentemente, a nossa relação como mundo, até porque o espaço plano de uma fotografia aéreademanda uma decodificação, uma interpretação, já que ocôncavo e o convexo, as saliências e as reentrâncias não sãoperceptíveis, tudo pertence ao mesmo plano de maneiraalternada, e a representação figurativa da realidade nãoencontra ressonância em nossa maneira habitual devisualização. Essa abstração, esse distanciamento de nossarealidade racional é ainda realçado pela perda do referencialfixo a que estamos subjugados por não estarmos presos à terrafirme.

A fotografia aérea, por ter a sua origem em um ponto devista especial, implica uma total liberdade, autonomia e,principalmente, mobilidade na maneira de observá-la. O seuflutuar no espaço exige, para que dela nos aproximemos, omesmo tipo de sentimento, pois a possibilidade de interaçãocom a imagem estará condicionada ao nosso desprendimento detoda a ortogonalidade clássica, rígida, a que estamosacostumados, para que possamos, da mesma forma, experimentaruma realidade autônoma, livre, regida única e exclusivamentepelas instâncias inconscientes.

O mesmo tipo de analogia pode ser feita ao se fotografardo solo o espaço aéreo, alterando-se apenas o referencial departida. Stieglitz (1864-1946) foi quem, com maiorprofundidade, se dedicou a esse estudo, ao ficar anos a fiofotografando nuvens, cujas fotografias denominou“Equivalências”. Muitos foram os autores que se debruçaramexaustivamente sobre as “Equivalências” de Stieglitz, razãopela qual me permito ser breve quanto ao comentário relativoà obra do referido fotógrafo.

Para mim, o que há de fundamental no que diz respeito,especificamente, ao assunto aqui tratado, por compreender odado efetivamente surreal nas “Equivalências”, é o fato deStieglitz estabelecer, através dessas imagens, um corteradical na concepção das relações correspondentes entre oespaço representado pela imagem fotográfica e o nosso espaçotopológico no mundo. As fotografias de nuvens, por nãopossuírem qualquer orientação ortogonal, por apresentaremtotal e completa autonomia espacial, não nos deixam o mínimovestígio referencial que leve a uma relação com o nossoespaço habitual. Essas imagens comprovam, efetivamente, quetoda e qualquer tentativa no sentido de atrelar,obrigatoriamente, a harmonia entre o espaço proporcionadopela linguagem fotográfica e a nossa maneira de ver o mundo é

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pura retórica, pois, afinal de contas, as “Equivalências” nãodeixam de ser fotografias, sem, com isso, apresentaremqualquer sinal ou traço de nossa espacialidade racional.

Sem dúvida alguma, essas imagens de nuvensproporcionaram autonomia à linguagem fotográfica, não porelas abandonarem o sistema figurativo de representação,tampouco por elas deixarem de lado o modelo mimético dereprodução da tridimensionalidade do mundo, masprincipalmente, e sobretudo, pela carga de sensações a quesomos remetidos quando com elas interagimos; aí tudo éliberdade, independência, ausência de domínio sobre o espaçovivenciado, sensações essas configuradas pela relação deequilíbrio entre o inconsciente e uma nova realidadediferente da que nos é dada a priori, o que nada mais é doque a própria surrealidade.

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VII – O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL

O que torna a linguagem fotográfica um meio de expressãoessencialmente surrealista é a sua capacidade de proporcionarimensos afastamentos da realidade do observador, nos maisdiferentes níveis. Seja no aspecto cultural, temporal,estético, espacial, social, psicológico, seja em qualqueroutra instância em que se configure um distanciamento darealidade vivida por uma pessoa, instala-se a surrealidade. Oexcêntrico, o exótico, o grotesco, conforme vimosanteriormente, se por um lado provoca repulsa, angústia,aversão, por outro atrai, fascina, estimula, exatamente pelofato de sermos colocados frente ao desconhecido, a tudoaquilo que não sabemos bem do que se trata, por nos faltardados suficientes de classificação. Podemos, então, formulara equação: afastamento externo é inversamente proporcional aaproximação interna, isto é, quanto mais distante da nossarealidade racional (externa) estiver uma imagem, para maispróximos da nossa realidade interna, sensitiva, inconsciente,seremos remetidos e, conseqüentemente, maiores serão aspossibilidades de harmonia com o universo que nos cerca.

O aspecto psicológico

Neste momento, não poderíamos deixar de citar,novamente, a obra de Diane Arbus, por ser praticamente todaela calcada em um afastamento que não se sabe, por certo, deonde vem. Há sempre algo de velado em seus personagens, écomo se Arbus apontasse para alguma coisa que não seencontra, efetivamente, no que se vê, ou seja, ela acabatrabalhando mais profundamente com a virtualidade da imageme, por conseguinte, com o inconsciente do observador. Dessemodo, Arbus nos aterroriza, principalmente porque, com essaatitude, nos coloca uma imensa responsabilidade diante decada imagem sua, uma vez que pede para vermos algo que, defato, não se encontra explícito. Então, somos obrigados aformular toda uma compreensão subjetiva da imagem, somoslevados a refazer todo o percurso elaborado pelo autor e,diante de tal participação, nos comprometemos com a imagem,tornamo-nos cúmplices do ato realizado e, portanto, co-autores da obra.

Convenhamos que o sentimento de co-autoria em uma imagemde Arbus traz, no mínimo, fortes arrepios. Mas por que isso?O fato é que as suas fotografias sugerem, de uma maneira oude outra, imagens carregadas de angústia, mesmo que o assuntonão implique necessariamente tal sentimento. A vivência quetemos quando Diane Arbus nos apresenta uma fotografia de umacriança chorando, de uma família reunida em pleno lazer dedomingo ou de uma mulher comum porto-riquenha é a mesma queexperimentamos quando estamos frente a suas fotografiasrealmente grotescas, como as dos decadentes travestis, dasfiguras circenses, da Albina engolidora de espadas, dohermafrodita ou de quaisquer outras figuras excêntricas. O

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que permeia todas elas é o distanciamento que sentimos, eisso se dá porque nas suas imagens há sempre a lembrança daanomalia, da doença mental, qualquer que seja o tema, o quenos remete, conseqüentemente, ao afastamento, aodistanciamento psicológico, por isso é tão aterrorizador.Vivemos, de imediato, uma dissociação entre o nosso mundoracional, ordenado, filtrado por regras, e por isso dentro detodo um limite bastante previsível, e o mundo desses loucos,doentes mentais, atravessado pela fantasia e inconseqüência.

O que se passa é que esses personagens, em função desuas anomalias mentais, ou mesmo devido às suas própriascaracterísticas de exotismo e excentricidade, não estão asofrer, a dor não lhes pertence, mas está dentro de nós,observadores “normais”. Somos nós que, talvez por um processode transferência, por sentirmos, de uma certa forma,responsabilidade por tais danos, colocamos a dor, ainfelicidade nessas pessoas. E a partir do momento em que asfazemos infelizes (já que elas não possuem, de fato, aconsciência do estado em que se encontram), somos tomadospelo sentimento gerador da culpa, da angústia, do medo e,conseqüentemente, do afastamento.

As fotografias de Arbus, assim, não permitem que oespectador se afaste do tema fotografado, justamente porestarem alicerçadas nos distanciamentos psicológicos entre ouniverso vivido pelo sujeito fotografado e aquele vivido peloobservador, pois é em função desse distanciamento que oobservador é colocado frente a sua própria realidade interna,que se torna isenta de todos os controles racionais, e, porisso mesmo, carregada de tamanha mobilização; é o encontrocom o desconhecido, com o inconsciente.

Ao longo de tudo o que temos visto até aqui, podemosobservar que a surrealidade em fotografia, o alcance de umarealidade mais intensa, próxima das nossas sensações maisprofundas e, por isso, mais verdadeiras, não está única eexclusivamente relacionada ao Movimento Surrealista em si,mas sim constitui-se como característica inerente à própriafotografia. A linguagem fotográfica por si só já guarda aqualidade surrealista de reter atemporalmente todo seuafastamento da realidade racional, independente de qualquerengajamento ou intenção.

O aspecto cultural

Diante de tal articulação, encontramos August Sander(1876-1964), que, embora tenha-se constituído como umfotógrafo extremamente eclético (sua obra apresenta umavariedade imensa de diferentes temas), marcou a sua presençade forma definitiva na história ao realizar o seu projeto quefoi um verdadeiro inventário do povo alemão. Sander efetivouuma varredura em praticamente todo tipo de profissão e classesocial de forma imparcial, através de um olhar neutro (emoposição a Diane Arbus). O que importava era a tipologia, oque cada uma dessas pessoas representava na sociedade. Todos,independentes da sua posição social, recebem o mesmo tipo de

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tratamento por parte do autor, que afirmou: “Não é minhaintenção nem criticar, nem descrever estas pessoas.”

Por trás deste discurso frio, distante e racional, noentanto, um universo permeado por incógnitas, estranhezas,exotismos e tudo o que há de mais intrigante se descortina ànossa frente. Sander lançou mão do mais puro padrãoconvencional, tanto formal quanto temático, para justamentedesarticular o que estava por trás disso tudo. Não era suaproposta discutir o espaço plástico em si, assim como não eraa dos artistas surrealistas. Utilizou-se ortodoxamente detoda a estrutura ortogonal construída em torno do aparatofotográfico – afastamento dos planos, típico da relaçãofigura/ fundo em que o centro de atenção da cena destacava-seclaramente dos planos secundários; ratificação darepresentação mimética tridimensional do mundo nabidimensionalidade do papel (característica do ponto de vistaúnico e fixo); composição equilibrada, tudo isso disposto emtorno do assunto, da mesma forma, de extremo convencionalismoda linguagem fotográfica – o retrato. Os retratos de Sander,no entanto, não permaneceram para a história, nãoatravessaram gerações devido a suas belas composições. Háalgo de inquieto flutuando sobre seus personagens, algo deindefinido, de que só nos damos conta após uma imersão naimagem. (Os retratos de Sander, de uma certa forma,desmobilizam a retórica criada em torno da instantaneidade dafotografia, em que o instantâneo é substituído pelosimultâneo, pois assim como um quadro de Miró, que, aprincípio, se dá de forma totalizante, eles exigem um certotempo, demandam que percorramos os seus meandros, queviajemos sobre a sua surrealidade para irmos além davisualidade explícita.)

Sander, em sua fase dos retratos, realiza um verdadeirocontraponto com o método paranóico-crítico de Salvador Dalí,já que, enquanto este descobre novos significados noirracional, fazendo com que o mundo do delírio passe ao planoreal, aquele parte de uma realidade o mais convencionalpossível ao alcance do delírio imagético.

Dentre as suas composições durante esse período, “TheWife of the Painter Peter Abeleen” (1926) (figura 8) nãopoderia deixar de ser mencionada. Aí percebemos atranscendência de que estamos falando. Ao olharmos essa fotosem lermos seu título, não encontraremos indícios suficientesque nos garantam tratar-se de um homem ou de uma mulher, nemtampouco caracteriza-se um homossexual; tudo é incógnito, évelação, não apenas observado nos trajes ou no penteado dopersonagem, mas, sobretudo, na sua postura, em que a maneiratípica masculina do cigarro pendurado na boca é contrapostaao seu olhar, que, direto e fixo sobre nós, parece questionaro modelo de classificação, identificação e definição adotadoem relação aos seres humanos. Em contrapartida, isentos dequalquer referencial que nos situe dentro desses padrões jápredeterminados, somos exigidos a buscar, dentro de nossaspróprias experiências e vivências, dados de reconhecimento,que só terão sentido em sua instância à parte da realidade

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racional, em que conceitos, dogmas, ou qualquer tipo dedoutrina moralizante ou de conduta não estão presentes, poiselementos relacionados a instâncias inconscientes, fora denosso controle, pertencentes a uma supra-realidade estãosendo acionados. Essa mobilização interna, que nos afasta doestado letárgico em que freqüentemente nos encontramos e quese constitui como o ponto de partida, vem a ser a questãofundamental do Surrealismo, que, neste caso, apresenta-se areboque de um distanciamento caracteristicamente cultural,mais do que propriamente psicológico, caso típico da obra deArbus.

Sander, de fato, navegou por mares cáusticos,principalmente elevando em consideração que a sua fase dosretratos se deu no período entre guerras, que foi marcadopela exacerbação de um modelo de eficiência e moralidadeimposto pelo fascismo e pelo nazismo. Desse modo, Sander seviu obrigado a abandonar o seu projeto e passar a fazerfotografia de paisagens.

Toda essa qualidade meio dissimulada da obra de Sander,na qual o que parece explícito e racional encontra-se apenasa serviço de toda uma elaboração subjetiva, profunda einconsciente, encontra respaldo na sua própria filosofia detrabalho, quando afirma que uma de suas maiores influênciascoube a Kandinsky, nada menos do que o precursor da pinturaabstrata.

O aspecto social

O distanciamento cultural que aqui tentamos mostrar pormeio de especulações sobre a obra de Sander nada mais é doque uma derivação do aspecto social, eminentementecaracterístico da fotografia. Desde a sua criação, afotografia circulou pelos meandros da sociedade, em especialatravés do retrato, a ponte de ele tornar-se sinônimo defotografia, e a câmara, “máquina de tirar retrato”. Esseveículo (o retrato) foi e é de extraordinária riqueza nosentido de possibilitar a ampliação do (re)conhecimento dasdiversas classes sociais, , suas inter-relações, conflitos e,sobretudo, seus comportamentos. Se hoje temos, no Brasil, umaiconografia profunda de nossa sociedade, devemos a todosesses fotógrafos (além das entidades públicas ecolecionadores que possibilitam a continuidade de suas obras)que se dedicaram ao retrato desde os primórdios até aatualidade, refletindo toada a evolução do pensamento social,passando pela nobreza do Império, pelos senhores de engenho,políticos, intelectuais, comerciantes, escravos, camponesesetc. O retrato nos dá evidências não apenas dos tipos físicosque compõem a sociedade, mas também de sua ambientação, modode trajar, de calçar, de pentear.

Independentemente da época em que é realizado, seja emsua fase daguerreotípica, seja atualmente, o retrato nos dápistas, nos aponta de uma maneira sutil para o confronto coma nossa própria realidade. Para a classe média, por exemplo(a grande consumidora da fotografia), a nobreza possui um

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caráter tão intrigante quanto a pobreza, pois o que entra emjogo, nesse caso, é o distanciamento imposto pelas classessociais, o que na realidade constitui-se como fato(meramente) relativo, já que o que para determinado grupo depessoas pode parecer estranho, não necessariamente o é paraum outro. O retrato tem sido sempre o grande catalisadordessas discussões.

Se tomarmos como exemplo os primeiros retratos emdaguerreótipos no Brasil (placas de cobre banhadas com pratae polidas em seguida), ali está estampada,representativamente, a burguesia emergente de meados doséculo passado, que, na realidade, se aproveitou de talprocesso para perpetuar-se na história, da mesma forma que osnobres o conseguiram, só que através dos célebres pintores.Uma vez que almejavam alcançar o mesmo status da nobreza, osburgueses chegavam a limites excessivos de sofisticação eopulência na realização dos daguerreótipos, não apenas nostrajes e ambientação como também nas suas próprias confecçõese acabamentos. Era comum os daguerreótipos virem dentro deestojos luxuosos, feitos em madeira, revestido de couro, comforros de veludo, molduras douradas, placas com aplicaçõesdouradas, tudo isso envolvendo retratos de personagens dentrode suas mais rebuscadas roupagens e ambientação.

Abstraindo-se da distância temporal (a qual trataremosadiante), um cidadão comum, sem acesso a tais meios, frente aimagens de tamanha sofisticação, sentiria-se tão deslocadoquanto se estivesse diante da mais parca pobreza ou mesmodiante dos escravos fotografados por Marc Ferrez (1843-1923)ou dos camponeses de Walker Evans (1903-1975), pois o queimporta, aí, é a distância social entre o sujeito que observae o sujeito fotografado, e essa distância é que confere todoo caráter de surrealidade da imagem. Certamente para a classemédia do nosso século assistir ao casamento da princesa Dianacom o príncipe Charles, em toda a sua opulência, foi tãosurreal quanto observar a pobreza existente nas ruas dasgrandes cidades. O que marca, o que caracteriza todo essetipo de situação é a distância, sempre a distância...

Uma imagem que me parece colocar de uma só vez essaquestão é a fotografia “A Rainha Vitória”, de 1863 (figura9), tirada por G.W.Wilson (1823-1893). Lá está a rainhaVitória sobre o seu cavalo, como que guardada dentro do seumanto, invocando extrema austeridade (aqui não há qualquersugestão de opulência ou sofisticação). Há, no chão, ao ladodo cavalo, um cavalariço ou criado, que imagina-se escocêspor estar vestindo um kilt. Frente a frente, em um mesmoespaço (fotográfico), encontram-se o dominador e o dominado,o que seria para a sociedade britânica o representante máximode tudo o que determina e impõe ao lado do que acata e serve.

A distância existente na composição da fotografia entreo criado e sua majestade demonstra radicalmente a que classecada um pertence: o criado no chão, próximo ao animal,distante da nobreza (a rainha). Tanto para um quanto paraoutro, por mais conveniente que seja a circunstancialidade dasituação em que se encontram (querendo ou não, há dependência

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mútua entre ambos), há uma imensa carga de surrealidade,marcada pela diferença social. Ambos, embora pertencentes aum espaço comum, não fazem a menor menção de interlocução, decomunicação entre si, caracterizando o absurdo das relaçõeshumanas, o surrealismo que permeia a convivência entre osindivíduos, sobretudo quando salientado por fatores externos,que, no caso, é a distância social. Por este aspecto, afotografia da rainha Vitória, de G.W.Wilson, encontra boaparte da obra de Seurat, calcada justamente no disparate daconvivência humana, que, na realidade, serviu como um dospontos de partida para o Movimento Surrealista.

O aspecto temporal

Lidar com distanciamento, afastamento, diferenças, emfotografia é, antes de qualquer coisa, lidar com o mistérioda temporalidade implicada em sua linguagem. Nenhuma análiserelacionada à fotografia alcança tamanha complexidade se nãofor comparada a sua questão temporal. Se o estudo do tempotem sido palco de profundas e infinitas discussões por todaintelectualidade (filósofos, artistas plásticos, matemáticos,físicos, astrônomos etc.) desde os primórdios dascivilizações, a fotografia veio fertilizar ainda mais essesolo já tão profícuo a tais questionamentos.

Por séculos a fio, tempo e espaço conviveram comoentidades antagônicas, contraditórias e independentes uma daoutra. Na realidade, somente no século XX com osrelativistas, principalmente através da Teoria daRelatividade de Einstein, é que espaço e tempo passaram afazer parte de um mesmo universo, passaram a ser enxergadoscomo um conjunto unívoco.

Antes, porém, de focarmos objetivamente o surrealismotemporal que permeia a fotografia, seria interessante adeambulação por algumas fases de determinadas sociedades cujobinômio espaço-tempo tenha sido, em algum nível, discutido deforma mais direta. A minha intenção, neste momento, érevisitar a maneira pela qual algumas sociedades vivenciarama questão temporal sob a ótica das artes plásticas,acreditando na possibilidade de uma maior estrutura para oentendimento e aprofundamento dessa discussão no âmbito dafotografia.

Qualquer experiência estética está atrelada, de umamaneira ou de outra, ao tempo. Por mais que se queiraatribuir uma instantaneidade, um imediatismo de visão emrelação a uma imagem, a sua apreensão só se dará numadimensão temporal, pois é impossível absorver algo derepresentação plástica como uma olhada instantânea (supondo-se esta possibilidade real).

Quando se diz, por exemplo, que um quadro de Miró se dáde forma imediata, como um todo, sem dúvida alguma se estálançando mão de uma retórica para o melhor entendimento dotrabalho, pois no exato momento em que o visualizamos, umasérie de associações ligadas a nossa experiência começa a sedelinear, instalando-se aí, obviamente, o fenômeno temporal.

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Cézanne, da mesma forma, estabelece em seus quadros umarelação temporal extremamente interessante: quando tudoparece dado num único instante, captado como um todo imediatoem uma primeira olhada, como o decorrer do tempo, após váriasoutras visadas, passamos a perceber em seus trabalhos quetudo está em ebulição, que todos os objetos relacionam-se unscom os outros, ocasionando tensão e dinâmica, a ponte determos a sensação de que tudo pode despencar se tirarmos algode seu lugar. Não é necessário, portanto, que se estabeleçauma seqüência de imagens para que haja a configuração dotempo; não há imagem fixa – por mais que a sua figuração oseja, a sua percepção é dinâmica.

Quando nos postamos diante de uma imagem, os nossosolhos varrem o espaço de representação e, mesmo quando somosatraídos a uma parte específica do todo e ali permanecemosfixos, a dinâmica não cessa. O nosso espírito e o nossocérebro não param de estabelecer associações e diferenciaçõescom todo um arsenal de conhecimentos acumulados, pois cadaelemento da representação, por mais isolado que possaparecer, adquire sentido em quem o vê quando, internamente,articula-se a integração entre as partes e quando orelacionamos às nossas próprias vivências adquiridas. Porisso a visão é sempre ativa, o espírito nunca permanecendo emtotal passividade (a não ser na escuridão total daimobilidade da morte), pois a percepção só existe atrelada àdinâmica, à mobilidade, compreendida numa dimensão temporal,já que o encadeamento de fatos, idéias e elementos sucessivossó se dá no tempo.

Na realidade, a apreensão temporal de uma obra é questãode referencial, é função dos parâmetros internos de cadapessoa. E é por isso que temos tanta dificuldade emreconhecer algo que não apresente qualquer ligação com anossa própria cultura. Por isso nos sentimos muitas vezesincapazes de analisar obras de outras civilizações, das quaisnão temos conhecimento prévio. A temporalidade da visão sófaz sentido quando a integramos em um sistema coerente com onosso saber, com o nosso conhecimento prévio. Daí nasce aimpossibilidade de pessoas de civilizações e épocasdiferentes terem o mesmo comportamento analítico diante deuma obra de arte. Quando a visão está incorporada em umdeterminado tempo, a memória coletiva passa a fazer parte decada imagem, razão pela qual, por mais estranhas que possamparecer as obras de arte atuais, elas estão em sintonia com omomento psicológico da sociedade atual. O fato é que qualquerimagem incorpora elementos retirados do real com elementosretirados da experiência pessoal de cada indivíduo,ratificando, assim, a proposição da impossibilidade de sereter o conteúdo de uma imagem no real imediato. Assim,enquanto o espaço é função da estrutura física de cadaobjeto, o tempo depende do encadeamento de idéias doselementos compreendidos na memória, sendo, em últimainstância, função direta da cultura de cada um. A elaboraçãoserá tanto maior quanto maiores forem os recursoscognoscíveis do espectador, mas sempre, por menores que sejam

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as condições de articulação, ou mesmo por menos complexa queseja uma imagem, o tempo estará presente. O nosso cérebropermanece em constante atividade, assim como o universo emconstante movimento.

O fator cultural de cada época, portanto, determina, deuma certa forma, o grau de complexidade nas articulações, ouseja, a maior ou menor possibilidade de associações eaprofundamento na leitura de uma imagem. A Idade Média, porexemplo, vivia uma situação em que a sociedade estavacompletamente subjugada ao poder divino, e por isso suasaspirações iam aonde os dogmas da igreja permitiam. Qualquerreflexão fora do âmbito eclesiástica era sumariamenteinaceitável. Diante dessa conjuntura, os temas para asrepresentações eram todos retirados da religião. O poucoacesso que as pessoas tinham a algum tipo de imagem dava-seatravés da observação dos retábulos e dos vitrais dasigrejas, os quais compreendiam cenas de ensinamentossagrados, constituindo um universo de reflexão equestionamento extremamente restrito. Por mais que o grau decomplexidade nas elaborações e análises das imagens fosseincomparavelmente menor do que o que temos hoje, ou seja, pormais familiar e mais diretas que fossem as referências, atemporalidade, no entanto, sempre aparecia impregnando,fazendo parte da captação de cada imagem.

O confronto espaço x tempo

O inter-relacionamento, a interdependência entre tempo eespaço é inerente a qualquer imagem, assim como a combinaçãoentre o tempo individual do autor, o tempo relativo àsarticulações dos elementos culturais e da experiência(vivência) do espectador e o tempo referente à memóriacoletiva do meio quando da observação da imagem, não havendo,assim, a possibilidade da apreensão instantânea, imediata, deuma obra de arte.

Embora o espaço compreenda convergência, unificação,concentração (já que implica localização) e o tempo pertençaao universo da divergência, da dispersão, da distribuição(por implicar desenvolvimento entre passado, presente efuturo, por compreender memória), o binômio espaço-tempo nãopode ser visto como uma dicotomia, e sim como uma unidadeconstituída de entidades recíprocas, uma atuando com a outra,pensamento este em total oposição aos princípios newtonianossobre espaço e tempo que vigoraram por séculos e queencontram respaldo nas criações artísticas. Segundo Newton,

“o espaço é essencialmente um recipiente absoluto,independente, infinito, tridimensional, eternamente fixo euniforme, dentro do qual Deus depositou o universo materialno momento da criação. O tempo é estrutura absoluta,independente, infinita, unidimensional, fixa e uniforme.”

Para Newton, portanto, espaço e tempo são quantidades emsi mesmas, possuindo existências independentes, não

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relacionais e que compreendidas de propriedades invariáveis eabsolutas. Estes “principia” de Newton só passaram a cair porterra quando os relativistas começaram a criar modelos eteorias apontando para um continuum de pontos de espaço-tempo. Para os relativistas,

“não se pode mais identificar uma porção única de tempo querepresente todo o universo num instante e à qual todos oseventos próximos e distantes possam ser referidos (...) aúnica idéia de movimento com sentido é a de movimentorelativo a outros objetos materiais (...) o espaço-tempoabandona a noção de se estar no mesmo lugar em momentosdiferentes, deixando a noção de estrutura geral rígida nosentido newtoniano.”

A Teoria da Relatividade de Einstein, ao questionar otempo e o espaço, passou a alterar as relações do universo,desdobrando-se nas artes plásticas.

O percurso espaço-tempo nas artes

Um longo caminho teve de ser percorrido pelos teóricos eartistas plásticos até que se chegasse aos níveis dequestionamento sobre tempo e espaço que vemos atualmente.

A arte bizantina29 assentava-se de forma extremamenterígida sobre o dogma cristão. O segmento mais poderoso dasociedade bizantina (em oposição aos iconoclastas) tentavasustentar-se no poder através do mais extremado rigorcristão. Para eles, as imagens eram verdadeiros ícones, razãopela qual os artistas eram obrigados a fecharem-se em tornodos temas sagrados. Não havia possibilidade de se aceitar umarepresentação que guardasse qualquer semelhança com a ordemnatural, visto que o universo, para eles, nada mais era doque a continuação, o desdobramento do pensamento de Deus. Nãopoderia haver um espaço figurado, criado, se o universo comoum todo era uno, proveniente das leis divinas, nada existindoalém da essência de Deus.

No transcorrer da sociedade bizantina, já em finais daIdade Média, o tempo e o espaço passaram a ter uma novaconfiguração, principalmente através das experiências deGiotto.30 O dito sistema figurativo moderno passou a existir,efetivamente, no decorrer dessa época, em que os artistas

29 Arte bizantina : oriunda da antiguidade helenística eromana, foi essencialmente religiosa, utilizando-se muito dosafrescos e dos mosaicos (igrejas de Ravena).30 Giotto di Bondonne : pintor e arquiteto italiano (1266-1337). Famoso pelos murais e afrescos, sua arte modificouradicalmente toda a concepção da pintura ao passar arepresentar as cenas sagradas como se elas estivessemacontecendo diante dos nossos olhos, superando, assim, arigidez do espaço unitário da arte bizantina. Foi Giotto quemredescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numasuperfície plana, relacionando o universo divino ao terreno.

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passaram a representar signos, nos quais tempo e espaçocolocavam-se como valores ligados à vida terrena, comum dasociedade, desligados de sua afeição direta à tradiçãoevangélica, em que os temas, ainda que vinculados àreligiosidade, aos santos, passavam a ser trazidos para umnível da vida cotidiana, havendo, portanto, a dessacralizaçãoda imagem, ou seja, a “modernização do sagrado”. O objetivoda arte agora deixava de ser única e exclusivamente o deservir aos ensinamentos da igreja, de cultuar só o que vemdas leis divinas, passando a uma preocupação voltada para osvalores do homem na terra.

Por constituir-se como passagem, como intensa transição,é comum encontrar-se, em uma mesma representação dessa época,referências a tempos e espaços diferentes. O tempo lendário eo tempo contemporâneo, muitas vezes, misturaram-se em umamesma composição, havendo já aí a introdução de um temporelativo à memória, onde o que se vê é diferente do que sesabe. Uma vez que a representação incorpora elementos daexperiência individual, do acontecimento cotidiano do mundo,remeterá o espectador a efabulações e articulações ligadas aoseu arsenal de conhecimento, à sua bagagem cultural,refletindo, assim, em uma alteração na análise e na absorçãoda obra de arte, pois que o tempo, agora, deixa de estaratrelado exclusivamente a uma referência única, a daeternidade celeste, para incorporar a experiência individualdo espectador.

Levando-se em conta essas articulações que acabamos dever, podemos observar que as representações na Idade Média,em suas últimas fases, compreendem uma temporalidade maispróxima da concepção relativista de Einstein do que daabsolutista de Newton, uma vez que o entendimento da obra dearte passava a ser também função da vivência pessoal de cadaum, isto é, relativa a cada espectador.

Assim, as especulações góticas (plasticamente mais bemrepresentadas por Giotto) dentro do desenvolvimento de todauma mentalidade e cultura sociais da época, servirem deestofo e de ponte para toda a experimentação renascentista.Seria leviano pensar que Brunelleschi, dentro do seu gênio,tenha descoberto uma fórmula matemática mágica capas dealterar de uma hora para outra todo um sistema figurativopara criar o que se chamou de Renascimento. Não há comoduvidar: no mundo, qualquer transformação, qualquerdesenvolvimento exige uma temporalidade em seu encalço.

A concepção renascentista, portanto, voltava-se, total ecompletamente, para a racionalidade do mundo, em que o homempassava a se colocar como o centro, “a medida de todas ascoisas”, Brunelleschi, Uccello, Donatello e vários outrosrenascentistas aproveitaram-se das teorias da matemática e dageometria desenvolvidas, principalmente, por Alberti eEuclides, para formular um novo espaço figurativo, criandoassim um modelo estético que acabaria por revolucionar omundo da representação e, por que não dizer, alteraria porcompleto as relações do homem com seu meio ambiente. Osistema por eles idealizado, em oposição ao sistema de blocos

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da Idade Média, baseava-se na perspectiva linear euclidiana,na qual as imagens deveriam estar representadas como s eestivessem dentro de um cubo aberto de um lado ( a chamada“janela de Alberti”) e vistas a partir de uma visãomonocular, fixa, em que as leis da física e da óticaprevaleceriam, de forma que qualquer objeto do universopudesse ser medido e localizado no espaço segundo uma mesmaescala, permitindo-lhes reduzir o universo da maneiradesejada. De posse de tão poderoso instrumento para arepresentação exata do mundo exterior, em função de tamanhoinvestimento na representação espacial do mundo, o binômioespaço-tempo deixa de existir como funções recíprocas,surgindo, assim, a concepção do espaço unitário, homogêneo eatemporal.

O Renascimento, assim, ao contrário do que vimos emrelação à Idade Média, por alijar a temporalidade do seusistema figurativo, dando total ênfase à representaçãoespacial, aproximou-se mais claramente daquilo que viria aser a teoria absolutista de Newton do que da relatividadeeinsteiniana. O Renascimento criou a noção do espaçoabsoluto, completamente mensurável, perspectivado, emcompleta oposição à futura noção de relatividade do mundo, emque tempo e espaço passariam a constituir um todo,relacionar-se-iam entre si, enfim, o tempo constituindo-secomo a 4ª dimensão do espaço.

Tratar do tempo, em fotografia, é lidar diretamente como momento único em que o obturador [e acionado. Ao olharmosde forma separada e específica o ato fotográfico em si, essafração de segundo que o acompanha, podemos dizer que, defato, há um corte na continuidade do tempo e que, por setratar de um tempo pontual, há separação, há abstração dealgo do mundo, em que, a princípio, pela imobilização de ummomento, toda a temporalidade encerrada parece estagnar-seimediatamente, de uma vez por todas, como que jogada àstrevas e esquecida. A sensação que se tem diante do exatomomento em que é consumado o ato fotográfico não é, comoveremos adiante, a de ausência por se ter retirado algo dealgum lugar. A idéia de que o tempo da imagem fotografada seinterrompe quando ela é captada e fixada na superfície dopapel não se sustenta, pois a fotografia na pára aí. Muitopelo contrário, aí tudo começa, todas as especulações evivências em torno de uma imagem fotográfica são feitas apartir desse momento. A fragmentação temporal que afotografia instala, a instantaneidade e pontualidade do tempoque seu processo compreende é, sem dúvida alguma, o traçocaracterístico que a faz distinta de qualquer outra linguagemartística. Esse “momento” único, entretanto, não seria mágicose aí permanecesse, se aí se esgotasse.

A temporalidade instantânea, imediata, de que estamosaqui tratando, foi sem dúvida um dos grandes catalisadores dopensamento surrealista. Duchamp utilizou-se desse conceitopara conceber as suas obras revolucionárias no mundo dasartes plásticas, o qual se viu questionado em seu maisprofundo pilar, que era o fazer artístico, pois jamais se

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conceberia a realização de uma obra de arte sem que houvessea intervenção direta, a participação efetiva do autor (quecompreende o tempo do fazer do artista). Duchamp, porém, comonum ato fotográfico, criou seus ready-mades, integrando-se naconcepção da temporalidade imediata. Selecionar um mictório eelevá-lo imediatamente ao nível de um objeto de arte,denominando-o “A Fonte” é afastar, por completo, a idéia dofazer artístico, de toda a concepção processual que semprecaracterizou uma obra de arte. O tempo de Duchamp, em seusready-mades, é muito mais fotográfico (Pompéia) do quepictórico (Roma), pois através de um simples gesto seu, desua própria vontade e desejo, um objeto industrializado, jápronto, passa imediatamente de um nível utilitário, prático,ao status de objeto de arte. De modo a ratificar a filosofiada temporalidade fotográfica de Marcel Duchamp, lembremos queuma de suas obras mais fantásticas “O Grande Vidro”,permaneceu em processo de concepção por quase 10 anos e sófoi dada como finalmente terminada quando, durante o seutransporte, o vidro rachou.

Para Duchamp, o exato momento em que o vidro se quebrourevestiu a obra de um mistério que ela não possuía, concedeuà obra desdobramentos ainda não alcançados. Precisou o tempoimediato (fotográfico), pontual, instantâneo, agir sobre aobra para eternizá-la no próprio tempo. Assim, “O GrandeVidro” de Duchamp torna-se a grande metáfora fotográfica,pois o momento da quebra do vidro (o momento do atofotográfico, do acionamento do obturador) não faz com que elase esgote nesse instante, não destrói a obra, mas atransporta para uma outra temporalidade, em que infindáveisespeculações se seguirão, e o tempo imediato, desamarrado,passa a se articular com o tempo memorial.

Daí surge o grande mistério, a grande complexidade queenvolve a fotografia – o fato de ela compreender de uma sóvez presente, passado e futuro. Através de um corte nopresente, a fotografia perpetua para o futuro o que já setornou passado. Toda a perplexidade da fotografia convergecomo que por inteiro para esse momento único em que se apertao obturador da câmara. Esse instante, particularmente, faz dafotografia uma linguagem absolutamente diferenciada de todasas outras, que compreendem um fazer contínuo. A pintura,conforme vimos anteriormente, por mais que jogue com o fluxolivre do inconsciente, com o imediatismo, é composta pordiversos momentos (em uma mesma obra), nos quais o autor,pelo fato de lançar mão do pincel, espátulas, tinta e outrosmateriais, já suscita uma temporalidade progressiva. Afotografia, ao contrário, se dá toda de uma única vez, não hárecuo, não há vacilação, nem tampouco esboços, rascunhos,retoques, a não ser no produto final. Uma vez apertado oobturador, a imagem vista está, imediata e irremediavelmente,inscrita nos grãos de prata da película; nada mais há quefazer, tudo está inscrito para todo o sempre.

Sem dúvida alguma, nada acontece sem que o obturadorseja acionado, daí esse momento ser o mais crucial e, por

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isso mesmo, o mais complexo da fotografia, pois tudo gira apartir dessa fração de segundo.

A caça só morrerá após o gatilho da arma ser acionadopelo caçador, mas, uma vez consumado o ato e uma vez morta, acaça se desfaz no tempo, desaparece. A surrealidade temporalfotográfica aparece justamente porque ela desfaz esseprocesso, construindo o seu próprio modelo, pois oacionamento do gatilho (obturador) provê a morte, que seráperpetuada no tempo. Em fotografia, a “caça”, após sua morte(captada pelo ato fotográfico) pe embalsamada para sempre (noque se refere ao tempo de sua duração, pois a fotografia nãose constitui como um objeto eterno em si). Ao adquirir ocaráter de permanência, de ser o seu próprio contínuo (porfazer parte da história), transporta-se do tempo cronológicoa um tempo memorial afetivo.

O exato momento do acionamento do obturador retira osujeito do tempo para inseri-lo no seu próprio “tempo”, queseguirá seu caminho como memória, vivificando a “morte”,reanimando o que se tornou pedra. Pr isso, o mito da GórgonaMedusa vir sempre atrelada à metáfora da morte fotográfica.Não é somente o fato de ela transformar em pedra todos os quecruzam o seu olhar, levando-os à eterna imobilização, que afaz próxima da fotografia; esse fato se dá, sobretudo, pelapetrificação ocorrer exatamente no momento em que sua cabeçaé decapitada, o que torna os seus poderes eternamente ativos.Ou seja, a sua morte (por ter sido olhada) não a levou para oreino das trevas, mas lhe possibilitou conservar os seuspoderes para sempre, perpetuando-os ativamente (aí é que vejosua estreita relação com a fotografia, por isso acho que acâmara é a própria máscara de Gorgó, que petrifica, imobilizatodos os que a olham, sem jogá-los no limbo do tempo, mastransportando-os a um continuum memorial).

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VIII – A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE

Fotografar é testemunhar a mortalidade, é participarativamente da “inexorável dissolução do tempo”, é entrar emconfronto com a sua própria morte e com a do sujeitofotografado. Apertar o obturador é lançar o dardo de Ártemis,a deusa cretense. “Senhora dos Animais”, cujas flechas não sóabatem os animais, como, muitas vezes, atingem as mulheres,dando-lhes morte súbita. Poe matar brusca e imediatamente,sem que se perceba, as flechas de Ártemis são “doces” e amorte que proporciona, uma “terna morte”; o simples toque noobturador determina a mesma morte súbita provocada porÁrtemis, uma morte terna e doce.

Fotografar é a inserção imediata num tempo póstumo, poisque é a travessia instantânea do sujeito que ali estava,preso à sua temporalidade cronológica, ao sujeito-imagemmemória. A fotografia atua como uma “crônica de uma morteanunciada” (conforme García Márquez) e, talvez, seja tambémesse um dos determinantes para o mal-estar que a maioria daspessoas sente ao saber-se sendo fotografada. O fantasma damorte (mesmo que inconsciente) que ronda a fotografia (é maisdo que sabido que há inúmeras comunidades e sociedades quenão se deixam fotografar em hipótese alguma, por medo deserem tiradas as suas vidas) nos coloca, de uma certa forma,cara a cara com a nossa própria fragilidade com a nossavulnerabilidade de meros seres humanos à espera da nossairrefutável passagem, aqui não mais metafórica. É dessegrande mistério, aterrorizador pelo desconhecido, que nosfala a fotografia; é como se ela, a cada momento, noslembrasse que também (como ela) somos nada mais do quepassagem. Deixar-se fotografar é, de alguma maneira, permitirque seja realizado o ensaio da morte; é admitir que o momentoque estamos vivendo compreende não um todo-momento, masapenas parte de uma universalidade; é presentificar a nossaausência, nos fazendo ver o que há de unicamente implacávelem nossas vidas – a morte.

Quem sabe não seja talvez esse grande mistério vida/morte que envolve o que está sub-repticiamente por trás dafotografia, o seu determinante para que a sociedadecontemporânea, cada vez mais e mais, faça uso de sualinguagem? A fotografia, para manter a vida, proporciona amorte (seu grande paradoxo), e o sujeito, no afã desesperadode manter-se vivo, sucumbe ao risco da imobilização na buscada perpetuação de si, nem que seja através da sua imagem. Aperpetuação de que trata a linguagem fotográfica, porém, nãoenseja o mesmo enfoque de eternidade absoluta, não compreendeo mesmo caráter de perenidade associado à psicologia dassociedades mais antigas, cujas lembranças da vida erameternizadas através dos monumentos monolíticos, absolutos emsuas próprias concepções eternas e materiais, sem risco de seperderem no tempo. A perenidade do monumento monolítico era acerteza inquestionável da lembrança da vida.

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A partir do momento em que a sociedade tomouconhecimento da fotografia e passou a adotá-la como paradigmade tudo o que pudesse remeter à lembrança, à memória, o seurelacionamento coma morte deslocou-se da instância absoluta,dogmática. A absorção da linguagem fotográfica trouxe àsociedade moderna um maior sentido de transitoriedade, defugacidade, exatamente pelo fato de a fotografia tambémparticipar direta e fisicamente da mortalidade. Não é apenaspor testemunhar o envelhecimento do sujeito fotografado que afotografia fala da morte. Também carrega dentro do seupróprio meio a noção do perecimento, pois a própria imagemimpressa no papel é assolada pela ação do tempo, através daluz, umidade, calor, etc., o que a faz deixar o sentidoabsoluto, monolítico, do monumento, colocando-a no reino datransitoriedade. A fotografia, assim, relativiza não apenas omodo de olhar, como vimos anteriormente, mas também o tempo(através da morte). Dessa forma, a psicologia da sociedademoderna, ao incorporar a fotografia, despreza o monumento,rechaça a perenidade, o tempo absoluto e imutável, optandopor uma forma fugaz de tratar a morte, daquilo que fica damorte, relativizando a eternidade temporal.

Quando, anteriormente, falamos da inscrição perpétua daimagem no papel fotográfico e de que ela estaria para sempreimortalizando/ mortalizando o sujeito fotografado, apontamos,da mesma forma, para o sentido “relativo” de “perpetuação” e“eternidade” compreendidos na linguagem fotográfica. Afinalde contas, o estado de desgaste a que chega a fotografia éuma das características que a aproximam do gosto surrealistae dadaísta. Por ter como objetivo central desmobilizar asconcepções morais da sociedade, as quais estavam atreladas atoda uma tradição cultural do Ocidente, fincadas empreconceitos, regras e doutrinas inquestionáveis epreestabelecidas, é que os surrealistas e dadaístas passarama desmistificar todo o conceito de arte, e assim o fizeramlançando mão de tudo o que poderia ir contra a tradiçãoartística. Começaram, assim, a trabalhar com materiais de usocomum, de baixo valor, usados, principalmente, com refugos esucatas, extremo oposto aos materiais estereotipados dasacademias de Belas Artes.

Nada mais apropriado, portanto, do que utilizar afotografia como meio de expressão composta por esses objetosbaratos, encontrados em qualquer canto, jogados em qualquergaveta, retirados de revistas e jornais, facilmentereproduzíveis, carregando consigo fragmentos do mundo prestesa seguirem juntos viagem rumo ao envelhecimento, tempo afora.A fotografia, assim, já nasce com a marca surrealistaincorporada em si, que de latente passa a ser explicitamentepercebida no decorrer do tempo, pois se por um lado elaenvelhece a imagem captada, por outro, como objeto, sobre oseu próprio processo de desgaste. Conseqüentemente, torna-seinevitável o seu encontro com a surrealidade, visto que otempo, de uma maneira ou de outra, encarrega-se de afastá-lade nossa realidade. Como objeto, há dois caminhos a seguir:se o tempo a faz marginal pela sua própria decomposição,

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tornando-a desprezível pela qualidade visual que apresenta,fazendo dela um objeto obsoleto, de outra forma, cobre-a deuma aura que jamais alcançara antes do envelhecimento. Nessecaso, a surrealidade provém do fato de a fotografia acabartornando-se, por si própria, uma antiguidade, uma raridade,uma relíquia mesmo, tamanha a distância que guarda do momentode sua realização.

É interessante observar como a fotografia, com o passardo tempo, vai adquirindo um certo status, prestígio e, atémesmo, um respeito que antes não possuía. A viragem sépia(amarronzada), bastante recorrente entre os fotógrafos,pressupõe carregar precocemente a fotografia dessa aura que otempo lhe assegura. O tempo, aqui, aproxima a fotografia bemmais da arquitetura do que da pintura: por menor que seja abeleza estética das ruínas romanas, o tempo impregna cada umadaquelas pedras com tamanha força emotiva, que os seusdesgastes não apenas as retiram de uma conceituação plásticacomo lhes asseguram um peso e uma intensidade jamais providapelo novo. Assim também é a fotografia: o desbotamento, amancha, a sua degeneração enfim, lhe proporcionam uma belezaintrínseca que se sobrepõe a qualquer análise estética, aocontrário da pintura, que sempre carregou o conceito do belode forma explícita.

O fato é que o envelhecimento da fotografia traz consigoo envelhecimento da própria realidade fotografada,presentifica “os estragos do tempo”, comove pelo que jápassou. A fotografia age, portanto, como a efetiva premoniçãodo amanhã, o que, sem dúvida, lhe confere imensa mobilização.Toda essa carga que envolve a fotografia vem a reboque do quehá de mais peculiar em sua linguagem e que a torna única: areferência. Por pior que seja a imagem (fora de foco,tremida, desbotada, mal iluminada), incorporada a ela está areferência do sujeito (ele esteve lá, caso contrário nãoteria havido fotografia). O sujeito transmuta, desloca-se desua própria realidade para a realidade do papel fotográfico,e juntos seguem seu envelhecimento.

O desenho e a pintura, por mais perfeitos e fiéis quesejam, não são o modelo, do qual são separados por um imensoabismo. Por isso a questão temporal em fotografia apresentauma surrealidade bem mais profunda, o que significa, de fato,sem rodeios, trazer o sujeito para envelhecer junto. Osálbuns de família nada mais são do que bancos depositários dotempo (leia-se aí tempo como momento) de vida de cada sujeitofotografado. Esse fato faz, na realidade, com que fotografiasgeralmente muito mal tiradas possuam um nível de mobilizaçãoe envolvimento tão intenso. E cada vez que se revisitam taisálbuns, o grau de surrealidade das fotos é maior. É adistância temporal agindo sobre elas, que confere a taisimagens tamanha força e violência, o que explica voltarmos deforma recorrente a esses álbuns, na intenção de recuperarmoso irrecuperável, de testemunharmos a nossa juventude, depossuirmos uma realidade já inatingível.

O tempo acaba por revestir a fotografia não apenas dosentido da lembrança do vivido, de todo o manancial emotivo

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que ela evoca, mas também de uma excentricidade que a fazextremamente intrigante, e a excentricidade será tanto maiorquanto mais distante no tempo, em relação a nossa realidadeatual, a imagem se apresentar. Os retratos fotográficos sãoum grande exemplo dessa situação, uma vez que, mesmo sendo osgrandes representantes da tradição e da ortodoxia emfotografia, mostram o tempo alterando de tal forma os hábitosapresentados pelos modelos fotográficos – o vestuário, ospenteados, as suas posturas – que o exotismo com que os vemosnos remete a uma surrealidade muito mais intensa do quealgumas das montagens fotográficas contemporâneas maisinventivas.

O nosso interesse diante de uma fotografia antiga, opoder de atração que ela exerce sobre nós está intimamenterelacionado a essa inexorável circunstância do tempo, quetudo envelhece, afasta, atribuindo um caráter de mistério eexcentricidade ao passado, constituindo-se, por isso mesmo,no termômetro do presente. Não é à toa que a fotografia causatão grande fascínio. Mesmo as mais recentes já estãoinvestidas de um passado irrecuperável, em desaparecimento, oque nos faz sair em busca do que já foi e garimpar dentro daimagem impressa o que gostaríamos que fosse o presente. Osentido arqueológico, muitas vezes depositado no fotógrafo,transporta-se para o observador, que, uma vez tocado pelointeresse por uma imagem, realiza uma verdadeira incursãofotográfica adentro. É de fato uma arqueologia contemporânea,em que escava-se um passado quase presente, e a decalagemtemporal entre o presente e o passado, por menor que seja,transforma, imediatamente, o momento em antiguidade, aquivivenciado como um resumo fragmentário e surrealístico domundo, pois que pertencente, então, ao excêntrico, aogrotesco, ao exótico.

A característica arqueológica do observador diante deuma fotografia pressupõe um sentido surrealista por se darnão uma investigação dos vestígios de civilizações antigas,mas por se vasculhar, “escavar” a própria civilização atual,que , por um simples (porém irremediável) toque no obturador,passa a representar uma “antiguidade instantânea”. Essaarqueologia contemporânea, imediata, está em plana harmoniacom a filosofia da sociedade atual, que, na verdade, seorganiza e se concebe a partir de fragmentos de passadosrecentes. Essa sociedade, que cada vez mais se forma a partirdo refugo, do descartável, do que já foi posto fora por ter-se tornado velharia, é a sociedade da reciclagem. Toda essavelharia a que me refiro, se pensarmos, compreende a própriafotografia, pois, para a sociedade atual, o que aconteceuontem, ou , mais especificamente, há alguns décimos desegundo (pelo obturador), já faz parte de um passadoarqueológico.

A surrealidade fotográfica em Magritte

Esse mergulho – a que chamei incursão – rumo ao mistériode uma imagem fotográfica carrega a mesma vivência

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estabelecida nas obras de Magritte. É, como já vimos, fazersurgir o desconhecido do conhecido. O que há de surrealísticoimpregnando o universo das obras de Magritte também permeia aimagem fotográfica, porque as correlações se passam de formaparalela. Magritte utiliza-se de situações e coisasconhecidas, retiradas da própria realidade, mas envoltas emuma atmosfera misteriosa, por possuírem identidades ocultas.Penetrar em uma obra de Magritte é desvendar, pouco a pouco,os véus do óbvio, para então embrenhar-se na floresta oculta,onde a realidade explícita cede lugar a uma série dearticulações sucessivas do inconsciente, que, livre de toda equalquer regra pertencente à racionalidade, retira o modelo(sujeito ou objeto representado) de sua banalidade, de suaapreensão lógica. Esse processo faz surgir a verdadeira faceoculta do modelo, revelando o que os olhos dasuperficialidade não podem alcançar.

As obras de Magritte nos transportam a sucessivasviagens de idas e vindas, ao passarmos de uma realidaderacional, explícita, em que todos os elementos do quadro sãorepresentados de maneira extremamente clara, dentro do maispuro figurativismo, a uma outra realidade, em que esseselementos juntos potencializam as realidades particulares(explícitas) de cada um, fazendo surtir do banal, do trivial,o novo, o maravilhoso. É uma verdadeira investida no que nãose conhece, no que, a princípio, não se vê; é partir doconcreto, do que já está preestabelecido e definido, deantemão, em direção à real essência das coisas, ao que elasnão deixam transparecer de imediato.

Uma leitura mais atenta de uma fotografia não deixa deconstituir-se como uma operação magrittiana, talvez mesmo umaprofundamento dessas qualidades, uma vez que ela lida diretae implacavelmente com a realidade. Enquanto Magritte, atravésda pintura, trabalha a representação, a interpretação deaspectos da realidade, a fotografia parte sempre einexoravelmente da realidade existente, retomando, mais umavez, o fato de ela ser fundamentalmente referência darealidade. Assim sendo, a grande “descoberta” de uma imagemfotográfica passa sempre, primeiramente, pelo que é retiradoda realidade existente, pelo que é dado explicitamente, para,aí sim, começarem as articulações e deambulações imagemadentro (caso seja do desejo do observador).

Ao lermos uma fotografia (ou ao observarmos um quadro deMagritte) acontece justamente isto, o ir e vir de umarealidade a outra, até sabermos, ao certo, em qual delas nosencontramos, pois estamos diante de três realidades e trêstempos diferentes de uma só vez: a nossa realidade em si, arealidade imposta pelo fotógrafo – o que, em últimainstância, é a realidade da própria imagem impressa – e arealidade construída por nós, a partir das articulaçõesprovenientes das duas primeiras, o que faz com que cadafotografia estabeleça com o observador uma ligação tãomisteriosa. O tempo participa também de forma contundentenesse mistério, uma vez que o tempo fotográfico e o tempocronológico são postos lado a lado, estabelecendo embates dos

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mais diversos cada vez que nos encontramos frente a umafotografia. A temporalidade fotográfica nos investe tanto deum fascínio quanto de um temor muito grande, sobretudo quandose trata de pessoas que já morreram.

Tragédia e talismã

Após a morte do meu pai, resolvi escolher uma fotografiadele para tê-la comigo em meu dia-a-dia. Talvez por não podermais desfrutar de sua presença na vida real, tenha tido esseanseio de carregá-lo perto de mim, ao menos na sua realidadefotográfica. Dentre as diversas fotos que conheci do meu painas mais diferentes épocas de sua vida, fui acometidocompulsivamente pelo desejo de escolher uma, muito embora elaapresente todos os defeitos técnicos que uma boa fotografianão deveria ter. Lá estava o meu pai em pé, em uma estação detrem, abraçado à sua irmã mais velha, por volta dos seus seisanos de idade. Por que escolhi especificamente esta foto enão uma outra qualquer de sua fase mais adulta, que orepresentasse melhor e que guardasse uma lembrança maispróxima da época em que convivemos juntos? Acredito que ofascínio pela escolha dessa foto esteja relacionado àimplacável condição, inerente à própria fotografia, de sejogar com o tempo de forma tão incontestável, fato que nosremete às mais diversas inquietações. Há algo de extremamenteperturbador ao observar o meu pai ali tão novo, com um futurotão grande à sua frente, e saber que ele já está morto. Quetragédia é essa, imposta pela fotografia, se no exato momentoda sua realização condena irremediavelmente o sujeitofotografado à morte? Que aponta de forma tão cruel(exatamente porque não está mentindo) para a morte?Ratificamos mais uma vez essa grande surrealidadefotográfica, de brincar de vida e morte de uma só vez, defazer com que, no instante em que o obturador é acionado,surja uma imagem natimorta. Se por um lado ela imortaliza osujeito naquele tempo, por outro ela declara a sua morte,condena-o à morte futura. Apesar dessa catástrofefotográfica, no entanto, volto todos os dias àquela imagem,talvez por me sentir redimido desse drama, por perceber que afotografia me possibilita alcançar (mesmo que só por unsinstantes) a realidade inatingível da presença daquela pessoaque tanto amei. Por isso, acho essa capacidade da fotografiade conviver, a todo momento, com os mais profundos paradoxos,o seu grande mistério – ser tragédia e talismã, ao mesmotempo.

Essa inquietação provocada pela temporalidadefotográfica é sentida de forma tão surrealista como nas obrasde De Chirico e Tanguy, dois pintores que seguiram caminhosplásticos bastante distintos, mas que apontaram para aquestão temporal com a mesma dramaticidade que a fotografia.Aqui, o tempo pictórico e o fotográfico suscitamsurrealidades paralelas.

O tempo fotográfico em De Chirico

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A obras de De Chirico apresenta questionamentosmarcantes em relação ao espaço, onde ele experimentarepresentações em oposição tanto à perspectiva linear vigentedesde o Renascimento quanto em relação ao plano cubista,criando, assim, uma espacialidade nova, de nulidade,aparentemente de total incoerência (conforme já vimos). A suaobra, porém, questiona sobretudo o tempo, de onde vem a suamaior aproximação com a fotografia. As obras metafísicas deDe Chirico apresentam, de forma bastante recorrente, umafalta de unidade temporal muito grande, por apresentarem, emum mesmo espaço, diversos tempos diferentes (colunas gregas,arcadas romanas, elementos da Idade Média, damodernidade...), o que nos traz uma certa sensação dedesconforto pela perda de um referencial coerente, linear, epor não sabermos, de fato, a que realidade estamos sendoremetidos.

O que, a princípio, é percebido apenas como um mal-estartransforma-se num gancho para uma investida mais profunda nasurrealidade temporal instalada. De imediato, o tempofotográfico presentifica-se na obra de De Chirico quandopercebemos que o que está representado ali na tela se passacomo um flagrante instantâneo transposto direto para a tela,como se De Chirico, num passe de mágica, tivesse captadoatravés de pincéis e tintas um momento único (fotográfico),embora de uma realidade que, definitivamente, não pertence ànossa vida. As suas imagens, de fato, nos levam a crer que ascenas apresentadas pertencem a um tempo congelado de umarealidade indeterminada, freqüentemente composta com relógiosmarcando as horas da tarde, assoladas por um sol causticanteque, ao varrer toda a cena, nos deixa o enigma causado pelassombras. De Chirico, aí, nos leva novamente ao mesmo mistériofotográfico da ausência/ presença da ambigüidade, vivenciadaatravés das sombras humanas que deixam o rastro desse passadorecente congelado (fotográfico) e que nos faz experimentar ogrande paradoxo fotográfico de vida e morte, ao imortalizar/mortalizar o sujeito representado (fotografado) como sombra.Tudo isso está envolto pela atmosfera de uma realidadeextremamente inquietante, por ser desconhecida e enigmática,em oposição à realidade fotográfica (que, por mais abstrataque seja, é proveniente da realidade existente), mas que, porisso mesmo, vem acentuar drasticamente a sua temporalidademisteriosa, como a realidade fotográfica.

O tempo fotográfico em Tanguy

A obra de Tanguy, por seu lado, não encontra atemporalidade fotográfica através da captação do momentoúnico, do congelamento instantâneo da realidade. Muito pelocontrário, os seus quadros nos mostram ambientes silenciosos,sombrios, abissais, de uma imensa solidão, com total ausênciado ser humano, com referências feitas apenas a alguns tiposde vidas amorfas, compreendidos em um tempo em suspenso. Tudoparece estar há muito tempo parado, de uma estática

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verdadeiramente incômoda, pairando sobre a cena um grandemistério pelo fato de o espectador se perceber diante de umpassado ilocalizável, confuso e, por isso mesmo, melancólico.As suas representações nos causam estranheza, até porque,normalmente, não sabemos ao certo de que se tratam; oraparecem formas orgânicas pertencentes ao fundo do mar, oralembram cidades arrasadas por uma catástrofe atômica, oumesmo um parque industrial abandonado com um amontoado desucatas. A força dessas imagens, a excentricidade que asenvolve e que, na realidade, nos arrebata, não está nasrepresentações plásticas, no sistema figurativo em si, pormais exótico que nos possa parecer, mas provém da distânciatemporal que vivenciamos. Justamente aí é que vejo o ganchoda obra de Tanguy com a fotografia; pos as suasrepresentações estão de tal forma investidas de umafastamento no tempo, de uma distância tão brutal da nossarealidade cotidiana, que somos levados ao mesmo embate queocorre quando estamos diante de uma fotografia que nos toca.

O fascínio pelo que se há a descobrir, esse grandemistério de se desvendar o desconhecido, o que se encontrapor trás da realidade explícita das coisas, surge ao mesmotemo em que somos tomados exatamente pelo medo dessadescoberta, pelo devir de uma realidade que não sabemos qual.A fotografia nos coloca essa questão bem de perto, por lidarcom uma realidade existente e uma outra que se esconde atrásdela. A obra de Tanguy me parece aprofundar ainda mais essadiscussão por lançar mão de uma realidade a princípiopossível, mas que, jogada em um abismo temporal tão grande,torna-se total e completamente desconhecida por nós,marcando, assim, de maneira mais intensa, um afastamento danossa realidade, tanto por nos dar esse passado tão longínquocomo por passar uma visão tão aterrorizada e desarticulada dofuturo. A obra de Tanguy, portanto, tal qual a fotografia,sustenta uma premonição do futuro, mas sempre de maneiramuito negativa. Assim, a distância temporal trabalha aqui,mais uma vez, apontando para uma descontextualização da visãoque temos das coisas e trazendo consigo a sua própria cargasurrealista.

Na realidade, tanto De Chirico quanto Tanguy instigaramconstantemente os nossos sentidos por jogar com a latência,com a virtualidade impregnada na distância temporal de suasimagens.

A obra de Tanguy é permeada pela virtualidade, na medidaem que ele prioriza um tempo em suspenso, parado no ar e nosjoga, irremediavelmente, a um passado desconhecido, semqualquer vínculo referencial interno, apontando,conseqüentemente, para um futuro ameaçador, incerto, semgarantias. As representações de Tanguy, por flutuarem notempo, nos provocam uma instabilidade muito grande em relaçãoao que poderá vir adiante. Tudo parece estar por fazer, comose algo estivesse prestes a acontecer, mas permanecesse aindaem seu estado de latência, em potencial, gerando muitaangústia e ansiedade por sermos levados a especular e preveralgo a partir do desconhecido.

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De Chirico, por sua vez, em meio a uma atmosfera já tãocarregada de mistério, coloca em suas representações sombrashumanas “sangrando” pelos espaços entre as construções. Narealidade, as únicas possibilidades de movimento (que é o quenos faz especular sobre o corte fotográfico do momentoinstantâneo de suas cenas) frente a representações tãoestagnadas, em que não transparece qualquer tipo de animação,são as tais sombras humanas. Quantas elucubrações e fantasiasnão nos passam pela cabeça ao nos depararmos com aquelasimagens virtuais de seres humanos que passaram ou passarãopor aquele local? Não há como evitar especulações em torno dequem seriam essas figuras que estariam transitando em locaistão estranhos, ou que pessoas conviveriam em lugares tãomisteriosos. A virtualidade imposta por essas sombras provocao mesmo tipo de inquietação estabelecida pelas imagensfotográficas quando ainda não foram reveladas; tudo éespeculação, é fantasia. Embora somente o próprio De Chiricopudesse nos dar a certeza de suas intenções, creio que,nesses casos, ele brinca de fotografia, por ela invadir,literalmente, a pintura, fazendo parte dela, como se umalinguagem se transpusesse virtualmente, assim como a sombrapara dentro de outra. Tal fato constitui-se em mais umelemento de desarticulação na obra de De Chirico, pois eleintensifica a surrealidade da sua pintura através dopensamento fotográfico.

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IX – A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEMFOTOGRÁFICA

Quando tratamos de tempo em fotografia, todas as suascorrelações com os ready-mades de Marcel Duchamp que citamosanteriormente caem por terra. Neles, o objeto é o próprioíndice, ele é, ao mesmo tempo, signo e referência, ao passoque, em fotografia, por mais próxima que ela esteja do objetoque representa, seja por raiografia, por cópia contato,fotograma, ou qualquer outra forma, lá está o tempo,irredutivelmente agindo como elemento de corte, de separação,afastando a imagem do seu próprio índice. É dentro desseespaço de tempo, entre o exato momento em que o obturador éacionado (e a foto realizada) e a imagem revelada, quetranscorrem as mais diversas e profundas especulações emtorno da fotografia. Nesse intervalo, toda e qualquerracionalidade que se possa ter da imagem que se fotografou seesvai por completo, foge do nosso controle, deixa de ser umaverdade para tornar-se mera conjectura, pois passamos, aí, aatuar no campo das fantasias, que nunca poderão sercomprovadas, nem mesmo diante da foto, pois, nessa defasagem,o tempo já atua de forma a fazer com que a imagem reveladadenote algo sempre diferente do que imaginamos. Aliá, umoutro fator que torna a fotografia uma linguagem tãofascinante é verificar, em cada foto que tiramos, que elajamais corresponde exatamente ao que pensávamos ver.

A cada filme que revelo, ao observar o resultadoalcançado, me convenço mais de que a ligação da fotografia sedá de forma muito mais profunda com o inconsciente, com algoque foge a todo e qualquer controle, do que com aracionalidade que lhe é atribuída. A partir daí, podemosespecular que esse talvez seja um dos maiores atestados deque a fotografia já nasce carregando dentro de si umaexcessiva dose de surrealidade, independentemente de elaestar ou não engajada em qualquer movimento ou escola. Asurrealidade é ratificada a cada nova imagem revelada, jáimpressa com o golpe da fatalidade de se opor à nossafantasia.

Justificam-se, então, o medo e a ansiedade que nosocorrem nessa transição, entre o ato fotográfico em si e afoto já pronta. Sempre ficará no ar, sem resposta, o querealmente foi visto durante a sua realização, ou seja, umavez pronta, a foto servirá apenas como uma referência,sugestão de um momento, o que nos levará a questionar arespeito do que pertencia ao reino da nossa imaginação e oque de fato estava posto como realidade em si. A foto apontapara todo um lado inconsciente, ligado às nossas efetivasintenções e desejos escamoteados por trás da realidaderacional dada. Ao invés de perguntarmos o que, realmente,tínhamos visto, somos levados a pensar no que realmentequeríamos ver, e a partir daí uma série de intruncadasarticulações começa a se dar, do consciente ao inconsciente,da realidade racional a uma supra-realidade, na tentativa de

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dar conta, de harmonizar ou mesmo de separar dentro de nós ouniverso fantasioso do real. Nesse caso, a fotografiatrabalha no sentido de quebrar todas as certezas que temosdas realidades vivenciadas.

As incertezas que experimentamos diante de umafotografia pertencem ao mesmo universo das discussõescolocadas por Magritte quando ele desarticula a escrita daimagem, empregando títulos que nada têm a ver com a imagemrepresentada. Ao desenhar um cachimbo, não se faz necessárioescrever embaixo que aquilo se trata, de fato, de umcachimbo, pois a associação daquele objeto com o nomecachimbo é criada imediatamente em nossa mente. QuandoMagritte, no entanto, pinta um cachimbo e escreve embaixo, nomesmo espaço de representação, “Isto não é um cachimbo”,coloca-nos não apenas diante da arbitrariedade da linguagem,da fragilidade da comunicação, da mera convencionalidade querege as relações do mundo, mas sobretudo chama-nos a atençãopara as inquestionáveis verdades que simplesmente passamos aadmitir, sem ao menos pensarmos sobre elas.

Magritte, com esse gesto, dilui as nossas certezasracionais e aponta para a existência de uma outra realidadepermeada pela ficção e pelo imaginário, desfazendo, assim, ainabalável segurança de identidade do ser humano com o mundopalpável, fazendo-nos desconfiar do nosso modo de ver arealidade, de aceitar e reconhecer as coisas do universocomo elas nos são dadas. Enquanto a fotografia instaura umaenorme perturbação interna, em relação ao seu período delatência diante do resultado final, ao levantar conjecturassobre o que se imaginava ter visto durante o ato fotográfico,Magritte, nessa sua fase, não sugere, não lança suposiçõesnem suscita dúvidas, mas aponta direta e objetivamente para aquestão, nos fazendo crer que, definitivamente, o que estamosvendo não corresponde à imagem representada (no caso dafotografia, imagem fotografada). Afinal de contas, estardiante da representação de um cachimbo e do título “Isto nãoé um cachimbo” é presentificar, efetivamente, adesarticulação e desarmonia entre o signo e o nome que lhe éatribuído; é olhar algo e perceber que aquilo não correspondeao que estamos vendo. O que se observa aí é que Magritteconserva para sempre a inquietação provocada pela latênciafotográfica. Em outras palavras, enquanto a perturbaçãoprovocada pela latência fotográfica se dilui, se dispersa como tempo, Magritte estampa e inscreve para sempre, num mesmoespaço de representação, que o que vemos não corresponde,necessariamente, ao que a realidade nos mostra.

A superposição desse conceito de latência entre aslinguagens pictórica e fotográfica vem amarrada à noção depassagem, de mudança de condição, de um estado primitivo (nosentido de primeiro) a um estado avançado no tempo. Essapassagem pode constituir-se através de um processo, de umaevolução gradual (pintura/ Roma) ou pode se dar de uma só vezcomo um todo (fotografia/ Pompéia). Talvez o estado delatência em fotografia nos mobilize de uma maneira tãoangustiante e ansiosa justamente pelo fato de o processo

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fotográfico trabalhar sempre nos dois extremos, pois antes darevelação nada se tem, não há absolutamente nada a não serfantasias, imaginações, conjecturas, que são bloqueadas erompidas de uma só vez no exato momento em que o filme éretirado do tanque de revelação e estirado contra a luz. Apassagem do nada para o tudo é imediata, não há como alterara imagem captada durante esse processo (a não sertecnicamente, o grão, o contraste etc.). A latênciafotográfica pode, assim, ser vista aqui metaforicamente comouma mola comprimida que, quando solta, explode de imediatotodo o potencial acumulado, sem qualquer passagemintermediária (podemos até mesmo comparar o susto que se temao se abrir uma dessas caixas que possuem em seu interiorbrinquedos de mola, ao “susto” que se tem quando da revelaçãode um filme – tudo é surpresa, tudo é sobressalto diante doimprevisto).

Não podemos esquecer, entretanto, que o rito da passagemrelacionado à latência fotográfica, por mais que se dê deforma brusca, imediata, envolve uma grande soma de etapasprocessuais que vão desde o acionamento do obturador até ofilme revelado, sendo que o resultado final da imagemcompreenderá, cumulativamente, cada um desses resultados,isto é, embora o processo de visão manifeste-se apenas nasduas pontas da cadeia (na hora do ato fotográfico e nomomento do filme já revelado), cada etapa realizada naescuridão vai sendo guardada como memória, influenciando noresultado final.

No curso do pensamento da latência fotográfica,vislumbramos novamente o mito de Artemis, a sagitáriaselvagem, que percorre os mesmos rituais de passagem. Elaacompanha todos os passos dos seres, desde o embrião aonascimento e à juventude, até tornarem-se adultos,estabelecendo, precisamente, as delimitações dessas diversasetapas e fazendo as ligações entre elas. Ártemis proporcionaa passagem, a mudança de condição, representa a ponte entrepassados e futuros, de tal forma que as diversas fases dessaspassagens não sejam esquecidas e apagadas. Ela é, portanto, agrande representante mitológica da latência fotográfica, jáque cuida para que todos os estágios intermediários demudanças de condição sejam realizados sem atropelos, sem quenada se perca. Ártemis é a própria imagem do que existe entrea latência e a revelação.

Percebe-se, então, que o mito de Ártemis articula-se deforma bastante interessante com a fotografia, principalmenteem função do seu sentido de administração e coordenação entreas passagens. As fotografias, em muitos casos, possuem acapacidade de funcionar como verdadeiras bombas-relógio àmedida que estão sendo reveladas, e quando já prontas, defato, explodem dentro de nós com tamanho impacto que somenteclamando por Ártemis, para que com o seu poder concilie,restabeleça a ordem perdida. É como se a fotografianecessitasse embutir a presença de Ártemis em sua linguagempara nos livrarmos do susto de sermos acometidos,subitamente, por tamanhas mobilizações internas e,

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conseqüentemente, remetidos aos mais imprevistos encontroscom o nosso inconsciente. Essas mobilizações são provocadaspela virtualidade temporal inerente à própria fotografia. Defato, intensas articulações internas são suscitadas quandouma imagem está impregnada com um tempo virtual. Passamos,aí, a lidar novamente com o desconhecido, como que poderá vira acontecer, e, muitas vezes, o desfecho da cena dependerá danossa própria imaginação, das nossas próprias fantasias. Éjustamente essa aproximação, esse chegar tão próximo aosnossos desejos mais recônditos, que nos faz tremer e nos fazpensar sobre o imenso potencial bélico (já que falamos debomba) acumulado, latente, dentro de nós.

Assim, a virtualidade temporal tornou-se uma referênciamarcante e recorrente em praticamente todos os pintoressurrealistas, exatamente por ela possibilitar remeter oespectador, de forma imediata e intensa, aos seus desejosirrealizáveis, a tudo aquilo que a realidade racional, porforça das circunstâncias, afasta e impede que se efetue.Trabalhar com o tempo virtual é percorrer a sugestão, éinsinuar, é gerar um grande veio de inspiração para que oespectador, a partir de uma imagem inicial que guarda umimenso potencial imaginário, possa dar continuidade à cenavista, tendo como referência as suas próprias experiências efazendo delas a sua grande ferramenta de criatividade, deliberação do seu inconsciente.

O tempo virtual é a própria surrealidade, pois ele sóexiste, só faz sentido, dentro do universo imaginário efantasioso. Parte sempre de uma realidade dada (através deuma imagem) para, então, tomar o seu rumo, encontrar o seudesenvolvimento no inconsciente de cada um. Por isso, umaobra permeada pela virtualidade temporal jamais configura-secomo sendo de um único autor; há sempre a presença (virtual)de quem quer que seja, para lhe dar a completude. A sensaçãode vazio, de um certo mal-estar do incompleto, do faltar algona imagem é justamente o estopim para a mobilização, para queo espectador participe de forma tão intensa diante de taisimagens, no impulso de dar continuidade àquela realidade.Assim, uma vez iniciado o processo de criação, o que era mal-estar agora é pulsação, é verve, é tudo aquilo que possaremeter à plenitude, pois, atravessada a ponte daracionalidade para a estrada do inconsciente, a possibilidadedeixa o campo da dúvida para se deleitar à mercê do desejo –basta o desejo para a conquista. Essas imagens têm algo devento, de soltura, de desvario, até porque experimentamosmesmo a embriaguez. Navegar pela virtualidade temporal épartir do porto seguro da realidade racional em direção aos“mares nunca dantes navegados” do inconsciente, é ter acoragem de desamarrar os sapatos de ferro que nos prendem àterra. Deixar-se levar por tais imagens é não se contentar emser um mero espectador, é sair do estado contemplativo para areal participação, percorrendo a obra de um ponto de vista doartista para recriá-la dentro de suas possibilidades edesejos, é, enfim, passar do apolíneo ao dionisíaco.

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A virtualidade temporal, que para os pintores doMovimento Surrealista constituía-se uma questão intencionalde mobilização interna, no sentido de gerar crise, de retiraro ser humano de seu estado de torpor e passividade habituais,passou a ser trabalhada pelos fotógrafos de uma maneira maisintuitiva, embora igualmente impregnada de uma carga demobilização muito grande, vindo daí mais um gancho para aproximidade com a arte surrealista.

Conforme já mencionado anteriormente, praticamente todosos pintores surrealistas, em algum momento e em algum nível,trabalharam com a virtualidade temporal, o que nosimpossibilita ver aqui toda a sua abrangência, de formatotalizante. Podemos pinçar, no entanto, um quadro do Dalí,“A Persistência da Memória”, que aponta de forma bastanteclara a investida na virtualidade temporal. O cenário éextremamente fantasmagórico, tendo ao fundo um mar (como umespelho d’água totalmente parado) e uma montanha, dando parauma faixa de terra que se estende até o primeiro plano, quecompreende três relógios deformados, como se estivessemderretendo, cada um deles pendurado sobre um galho de árvore,uma mesa e um objeto não identificado. Dalí, ao apresentar umambiente de total paralisação, não está, com isso,transmitindo passividade; muito pelo contrário, utiliza-sedesse estado de estagnação no sentido de potencializar arepresentação, de criar uma força motriz capaz de retirar oespectador do mal-estar gerado por tamanha inércia. Aimpressão que se tem é que Dalí, nesse quadro, coloca deforma plena e explícita uma questão fundamental entre nós,que é a de decidirmos tomar ou não as rédeas de nossas vidas,de enfrentarmos o medo do passo adiante, quando tomados pelaangústia da paralisação diante da vida.

A virtualidade temporal presentifica-se nesse quadro deforma intensa por vir carregada de dois aspectos que secomplementam e se potencializam. Inicialmente, há toda umavivência da expectativa do que pode vir a acontecer a partirdesse ambiente, típico da virtualidade temporal em si, quandosomos levados a desdobrar a cena representada ao sabor dosnossos desejos e fantasias. Instala-se, portanto, aí, oprimeiro temor do que podemos ou do que, de fato, vamos(leia-se, aí, nosso inconsciente) fazer a partir dessarealidade com a qual nos defrontamos, principalmente a partirdessa imagem, em especial, que oculta um acúmulo imenso deinformações e ramificações represadas, prestes a eclodir. Osegundo aspecto que a meu ver atua no sentido de intensificara virtualidade temporal de fato é justamente esse equilíbrioextremamente instável entre todos os elementos da cena, deque a estática está a serviço, sustentando-se na realidade,em função das diversas forças de tensão que atuam em cadaobjeto.

Assim, se por um lado Dalí nos provê, através dessaimagem, de um veículo riquíssimo que nos possibilita entrarem contato com as nossas fantasias e “quereres”, liberando onosso inconsciente para trabalharmos livres o rumo a ser dadoàquela cena, por outro gera uma imensa angústia no afã de

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darmos esse passo. Afinal de contas, a exagerada inércia quepermeia a cena é pura aparência, é como se estivéssemosdiante de diversos barris de pólvora interligados por pavios,que, na primeira fagulha, colocariam tudo pelos ares,provocariam o desarranjo total da cena. O grande medo,portanto, reside exatamente aí – colocados frente àpossibilidade de experimentar algo novo, fustigados a viajarpelos meandros da temporalidade virtual, somos acometidos,repentinamente, pelo temor de tudo desarticular, de gerar umimenso desequilíbrio em cadeia, pois deslocar qualquer peçadessa imagem tão tencionada é correr o risco do totaldescontrole, de não darmos conta do que provocamos. Sevivenciamos esse embate frente a essa imagem é porque eleestá, da mesma forma, presente em nossas vidas, e a força de“A Persistência da Memória” manifesta-se, justamente, quandoela passa de mera representação, quando sai do quadro, daparede, e ganha vida, desdobra-se literalmente dentro de cadaespectador.

A fotografia, por seu lado, quando banhada pelavirtualidade temporal, enriquece e aprofunda tudo o quediscutimos em relação à pintura (mais especificamente emrelação ao quadro de Dalí) pelo fato de estar sempre presa aoíndice, à referência. Assim, todo o temor ao qual nosreferimos quando tratamos das obras representadas pelospintores surrealistas toma um outro corpo, configura-se deforma diferente, quando falamos da fotografia, pois nessecaso estamos lidando com a própria realidade. Não partimosmais de uma ficção, de uma representação, e sim da própriarealidade, do que, de fato, esteve lá. Uma imagem fotográficacom a qualidade da virtualidade temporal avança um passodentro da surrealidade, uma vez que, qualquer que seja ocaminho, o desdobramento dado à imagem, o perigo iminenteinstaurado sai do mero estado representacional para o real,como se o que imaginamos pudesse, realmente, vir a acontecer,afinal de contas, a imagem de onde partimos, de fato,aconteceu.

Há uma fotografia realizada por um fotógrafo anônimo quedemonstra tipicamente esse estado de angústia e ansiedade. Aimagem nos mostra um equilibrista num circo, flagrado noexato momento em que cai da corda onde estava executando asua apresentação. Por ter sido tirada de uma distância muitogrande e por estar muito escura, a foto não nos permiteobservar a reação facial do equilibrista diante da queda.Tanto melhor, pois ao refletirmos sobre a virtualidadetemporal, esse fato só intensifica a nossa análise, por fazercom que a imagem deixe todas as elucubrações ao nossoencargo. Por não nos ser possível ver o rosto doequilibrista, a foto nos obriga a partir apenas do fatoocorrido em si, não nos deixando qualquer referencial doartista a que nos apegarmos. Estaria ele dando gargalhadaspor provocar, intencionalmente, o pânico no público e deixar-se cair em uma rede, ou será que, efetivamente, a quedaexistiu independentemente de seu desejo? O fato é que, emborao público tenha vivenciado um momento de pânico e tensão em

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quaisquer das duas situações, a realidade mostrou, logo emseguida, o desfecho do ocorrido, pois, pelo bem ou pelo mal,a cena se fechou ali, enquanto que, na fotografia,principalmente do ângulo em que foi tirada, tudo fica porconta da nossa imaginação e fantasia, a captação e aparalisação da cena naquele exato momento impõem umainfinidade de desdobramentos. Não estamos, então, diante doque a realidade irá nos mostrar (a morte ou a gargalhada?).

O pânico de que estamos falando, em fotografia, insere-se num outro contexto, visto que ele não vem de fora paradentro e nós não ficamos à mercê do que a realidade irá nosimpor, mas porque caberá a nós dar o destino que bementendermos ao equilibrista. O temor talvez não estejarelacionado ao rumo que daremos àquele equilibrista,especificamente, até porque a realidade já lhe deu umadireção de qualquer maneira. O medo está, provavelmente,relacionado àquilo de que o nosso inconsciente será capaz,pois, diante de uma imagem como essa, que certamente seabrirá a desdobramentos, todo o nosso poder fantasioso estaráà flor da pele e, então, entraremos em contato íntimo com anossa verdadeira e mais pura realidade interna, o que,possivelmente, nos causará assombro.

Muitas vezes a nossa racionalidade não sustenta, não sedá conta do que se passa em nosso inconsciente, que, narealidade, é quem representa os nossos verdadeiros desejos einstintos. Saber-se, experimentar-se desejoso de danos eestragos nos causa não apenas mal-estar e incômodo, mastambém um grande medo de sabermos que somos capazes de taisatos. As primeiras perguntas que, de imediato, vêm a nós,diante de uma cena como essa, são: Qual deve ter sido areação do equilibrista nessa hora? O que estaria elepensando? O que estaria passando em sua mente? Essasperguntas, no entanto, perdem peso, se esvaem e se esvaziamno tempo quando nos damos conta de que são perguntas, narealidade, que estamos nos fazendo, apontando para dentro denós mesmos. Daí o temor dos desdobramentos, o temor de“viajarmos” na virtualidade temporal da imagem, que nada maisé do que responder a todas essas questões através de umarealidade que não é a racional, limitada e controlada, mas aque não tem regras nem medidas e que, por isso mesmo,constitui-se como a que mais se aproxima da nossa verdadeiraidentidade, que se pode dizer, a nossa própria surrealidade.

Dentre as inúmeras situações em que a fotografia jogacom a virtualidade temporal, há uma outra que lida com umaspecto diferente daquela que foi vista em relação aoequilibrista. Trata-se das imagens em que o autor induz,direciona a sensação da virtualidade temporal de forma maisobjetiva para o próprio sujeito fotografado. Nesses casos,saímos do domínio do susto, do sobressalto, e adentramos numuniverso mais denso, silencioso e de maior introspecção.Refiro-me, aqui, às incontáveis fotografias tiradas noscampos de concentração durante o período de guerra, e mesmoàquelas realizadas ainda hoje como registros nos presídiosantes da execução sumária de um preso. Todas apresentam o

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mesmo fio de ligação – a morte. Nesses casos, o aspectofantasioso desloca-se de forma mais intensa do espectadorpara o sujeito fotografado porque o desfecho, o desdobramentoda cena possui um espectro mais reduzido, por já estaramarrado a um final que, de antemão, sabemos que será. Pormais terrível que seja a sensação, partimos do princípio deum final conhecido e irremediável e, por isso mesmo,transferimos, intuitivamente, a vivência do tempo virtualpara aquele que experimenta, efetivamente, a sensação deestar com a sua vida por um fio. A “viagem” virtual, nestescasos, fica mais relacionada ao fato de se saber o que deveráse passar na cabeça de uma pessoa que tem a certeza da mortetão próxima, qual a história dessa pessoa, o que a levou,durante a sua trajetória no mundo, a ser conduzida a tamanhatragicidade. Essas fotos carregam grande tensão e ansiedadereferentes à idéia de “passagem”, pois a virtualidadetemporal, aqui, incorpora-se a tudo o que diz respeito a umamudança de estado, à travessia – vida/ morte.

A fotografia, por ser um recorte do mundo, a captação deum momento único do universo, de uma maneira ou de outra,sempre lida com a virtualidade temporal, mesmo que essaquestão não esteja estampada de forma explícita na imagem(como é o caso do equilibrista). Ela, de fato, se presta deforma fantástica a esse tipo de elucubração, por semprepermitir uma brecha, sempre deixar algo no ar a ser dito, oque, aliás, configura-se como uma das grandes característicassurrealistas. Uma fotografia jamais se encerra dentro de siprópria, jamais se fecha em um universo unívoco e unilateral.Ao contrário, constitui-se sempre como uma obra em aberto,permeada por vasos comunicantes, em que o espectador é tãoparte da produção e da autoria da imagem quanto o própriofotógrafo, o que conduz a fotografia a uma grandesurrealidade, uma vez que cada espectador desdobrará a imagemde maneira particular, por ter acúmulos de experiênciasdiferenciadas.

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X – O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA

Pensar em tempo fotográfico é pensar em passagem,transposição de estados, latência/ revelação, vida/ morte,que, em fotografia, adquirem a capacidade de conviver não deforma paradoxal, mas complementar e, mais do que isso, deinter-relacionar-se a tal ponto que uma não encontra sentidosem a outra. A toda essa concepção incorpora-se o significadoda luz, em fotografia. Não há como exercer a atividadefotográfica sem que haja luz, pois ela é vital, é elementoprimeiro como ferramenta de trabalho. A luz, em fotografia,desempenha idêntico papel que o oxigênio em nossas vidas,pois sem oxigênio não há como sobrevivermos, é ele que nos dáa vida e também nos tira a vida, já que todo o nosso processode envelhecimento provém da oxidação de nossas células, da“corrosão” provocada pela ação do oxigênio em nosso organismo(por mais paradoxal que possa parecer, o mesmo elemento quenos dá vida, nos tira!). A luz se processa da mesma forma.Uma vez captada, impressa na película e guardada como imagemlatente, deverá ser evitada, rechaçada, pois haverá o riscode, literalmente, essa luz destruir (matar) a imagem a sermanifestada. Além disso, a luz deverá sofrer uma série decontroles para trabalhar efetivamente como geratriz deimagem, pois o seu excesso (ou a sua falta) no momento em queatinge a película poderá, igualmente, destruir, fazerdesaparecer a imagem, configurando-se, aí, de maneira maisclara a metáfora do oxigênio.

A fotografia constitui-se como escritura feita pela luz,que é o seu princípio ativo, acionador de todo o seuprocesso. A luz, em fotografia, nos faz lembrar o mito Jano,um dos antigos deuses romanos, representado por dois rostosopostos. O seu nome já o designa como passagem, tantoespacial quanto temporal. Espacialmente, tem comorepresentação a porta, que implica sempre dois lugares, umque se deixa e outro em que se penetra (por isso a sua imagemter dois rostos, duas frentes); e, temporalmente, carrega osímbolo de princípio, o mês Januarius lhe é atribuído, ponteentre o ano que findou e o que está a começar. Jano é uma“divindade circular”, sendo o início o seu próprio fim. Éreflexivo por desdobrar a sua imagem, pois, da mesma forma,recebe-a de volta para o início de um outro ciclo.

A luz, em fotografia, apresenta a mesma duplicidade,sendo início de tudo e, concomitantemente, o seu própriopotencial destruidor, aniquilador de tudo o que fezconstruir. Tem-se, então, a irrefutável condição da imagemfotográfica: pela luz gerada (início), pela luz destruída(fim). Uma vez a luz presentificada, marcada a sua apariçãoinicial, qualquer nova manifestação apontará para o fim doque foi o seu próprio início. Assim, a luz compreende,intrinsecamente, a sua negação, e é essa condição de negaçãoque acaba por ser a sua grande força motriz, pois gera em sio seu grande enigma e, conseqüentemente, torna a imagemfotográfica tão reflexiva.

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A metáfora da luz fotográfica extrapola, transcende alinguagem artística e incorpora-se em nossas vidas, poisvivemos, diariamente, o mesmo drama da película e da imagemfotográfica. Somos todos os dias assolados, banhados pela luzdo sol que nos dá a vida e que nos proporciona o verdadeiroespetáculo da visão, pois é a sua luz que nos faz enxergar omundo. Paradoxalmente, é justamente essa mesma luz que tudopode escurecer, levando-nos à total escuridão, se nelafixarmos o nosso olhar. Somos remetidos às trevas pela faltae pelo excesso da luz do sol. Assim, o sol. Cumpre sobre nós,surrealisticamente, a mesma trajetória de duplicidade feitapela luz, de maneira generalizada, em relação à imagemfotográfica – tanto pode compreender vida quanto morte para onosso olhar; tanto nos traz a claridade quanto pode nostrazer a escuridão. O sol nesse caso, realiza a grandeligação, ou melhor, a “re-ligação” (re-ligião) entre astrevas e a claridade, por isso não podemos olhar diretamentepara ele sem correr o risco de ter somente trevas.

Nesse mesmo domínio, evocamos e deixamo-nos seduzirpelos objetos de Marcel Duchamp. Ao mesmo tempo em que eletenta desvalorizar a arte enquanto um fazer, ao materializara sua idéia através dos objetos visuais, como os ready-mades,por exemplo, toda a ironia incorporada a eles acaba negando oseu próprio conceito de idéia, por apresentar-se comocrítica. Duchamp, a todo momento, joga com o paradoxo, com aambivalência de sentidos. A sua arte configura-se, no fundo,com a negação de si própria, sendo, ao mesmo tempo, anegativa do fazer artístico e do seu próprio conceito deidéia e constituindo-se como a metáfora da luz na imagemfotográfica.

Esta ambivalência de Duchamp torna-se mais explícitaquando da realização de “O Grande Vidro”, até porque o vidro,por si só, já traz o paradoxo de afastar e unir (o vidro nospossibilita enxergar o que está do outro lado, e permite aligação visual e/ ou espiritual a algo que ele mesmo separa),principalmente nesse caso, em que a obra é realizada nopróprio vidro. Como havia comentado anteriormente, “O GrandeVidro” é acompanhado, paralelamente, de toda uma descrição emque Duchamp narra, minunciosamente, a presença de diversosobjetos e personagens que estão compreendidos na obra, masque não estão explicitamente, representados. Dentre essespersonagens, a noiva é colocada como uma das figurascentrais; por isso mesmo, prendemo-nos à sua pseudopresençade forma ambígua. Na realidade, não há uma presençapropriamente dita, pronta a consumirmos e contemplarmos comoimagem dada, já pronta. O que há, na verdade, é umvislumbramento, uma aparição de algo a ser decifrado e que,por isso mesmo, está diretamente ligado aos nossos sentidos.

O que ocorre de fato são rápidas aparências que semanifestarão à medida que os nossos sentidos (e, obviamente,os nossos desejos) estiverem predispostos à sua presença, eque logo desaparecerão. A noiva é, portanto, uma idéia que senega e se destrói a cada aparição, continuamente aniquilada acada nova manifestação, quando não conseguimos detê-la como

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presença, mas como simples aparição que a cada momento deveráser refeita por nós para termos a sua aparência. É esse jogode ambivalência o enigma da presença-ausência, da construção-destruição (assim como a luz em fotografia) manipulado porDuchamp, que faz a sua obra tão hermética e reflexiva que,conseqüentemente, nos faz sair da condição de meroscontempladores, voyeurs, para, efetivamente, participarmos dasua elaboração.

O fenômeno psíquico de passagem que vivenciamos em umasituação de latência fotográfica é paralelamente acompanhadoe só existe frente ao fenômeno de mudança do estado físico daluz, visto que, uma vez apreendida, a luz só será imagem naextremidade final do processo, quando a química se sobrepusera ela.

O papel desempenhado pela luz no desenvolvimento darealização de uma fotografia como um todo adquire um caráterde extremos, em função da relação que ela mantém com ofotógrafo. Há, de fato, uma procura incessante da luz paraque a sua inserção sobre a película possa gerar a imagemdesejada, mas uma vez estabelecido esse laço afetivo detamanha entrega e intensidade e o obturador acionado, ouseja, consumado o ato de amor, a relação esvazia-se porcompleto, tomando um rumo diametralmente oposto. O fotógrafoagora passa a ter verdadeira ojeriza, repugnância a qualquerraio de luz, configurando-se mesmo numa verdadeira neurose.

Uma bateria de verificações e checagens percorre a suacabeça, motivado pelo pânico de a imagem ser destruídaexatamente pelo que a gerou. Será que a câmara está,realmente, vedada o suficiente para que nenhum facho de luzvenha penetrá-la? Será que o filme está totalmente rebobinadoao se abrir a câmara para retirá-lo? O laboratório está defato em completa escuridão? Haverá vazamento de luz no tanquede revelação? Os papéis fotográficos estão devidamenteprotegidos em suas embalagens? Em suma, todas essas questõese muitas outras relacionadas aos cuidados com a luzcertamente já passaram em algum momento pela cabeça de umfotógrafo. Há realmente uma relação de amor e ódio, assimcomo na vida, em que se tem ódio somente de quem realmente seama, ou seja, para o fotógrafo, a luz identifica-se como osdois lados de uma mesma moeda. Fotografia é, ao mesmo tempo,de uma só vez e complementarmente, corpo físico e corpoquímico. Dois estados coabitam, transfiguram-se um no outrocomo o intuito de garantir a sobrevivência, caracterizando,assim, materialmente, a vivência psicológica que temos dapassagem do que acontece em um nível inconsciente para oracional.

Conforme vimos, o ato fotográfico em si, este exatomomento em que o obturador é acionado, configura-se demaneira mais próxima a uma atitude inconsciente do quepropriamente racional, haja vista a impossibilidade de semanter o total controle de tudo o que acontece diante da cenaa ser captada. Por mais sofisticados que sejam os aparatostécnicos e por maior que seja a atenção e o controlepsicológico do sujeito que fotografa, há sempre algo que

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escapa e que foge do nível racional, algo que não conseguimosou não queremos ver com os olhos da realidade consciente. E éesse lapso, essa “falha” que, muitas vezes, dá consistência equalifica a imagem. Tanto é assim que, freqüentemente, nossurpreendemos com o resultado final do trabalho, com o que,de fato, a fotografia após revelada nos mostra. A passagemque se efetua do ato fotográfico em si para a fotografia jápronta não deixa de ser passagem do inconsciente para oconsciente. A fotografia, de forma bastante interessante,materializa essa travessia por meio da luz e da química. Todoo aspecto inconsciente que permeia o momento em que oobturador é acionado é efetivado sempre (nunca de outraforma) pela luz, enquanto que a racionalização, a mudançadesse estado de fantasias e imaginações, diante da imagem jápronta, só poderá ser concretizado através da química. Emoutras palavras, em fotografia a luz caracteriza-se como oinconsciente, enquanto a química como o consciente, e ambas,por coabitarem o mesmo espaço e qualificarem o mesmouniverso, presentificam a surrealidade embutida nafotografia, que nada mais é do que a manifestação incontesteda convivência mútua entre o consciente e o inconsciente.

A analogia que acabamos de fazer, relacionada àsurrealidade existente na convivência mútua entre doisestados materiais diferentes (luz/ química) no mesmo universoda película fotográfica, pode ser encontrada, de maneirasimilar, nas pinturas de Dalí, em sua fase paranóico-crítica,não mais através de estados materiais e sim por meio deestados psíquicos diferentes. Dalí, nesses casos, realiza umasíntese entre o real e o imaginário, propondo a suadesarticulação por parte do espectador. Os seus quadros dafase paranóico-crítica apresentam, normalmente, dois veios aserem percorridos. Primeiramente, Dalí utiliza-se de todo oseu virtuosismo técnico para nos dar uma imagem de totalcompreensão, dentro do mais puro figurativismo estético, omais próximo possível da nossa realidade racional. Em meio aessa primeira fase representativa, Dalí compõe outras figurase objetos entremeados, a princípio imperceptíveis. Assim,temos várias imagens compreendidas em níveis diferentes,adentro de um mesmo universo espacial, no caso a tela. Tudoagora dependerá do espectador, que desdobrará a cenarepresentada de acordo com o seu manancial de experiênciasacumuladas. Em uma primeira visada, ficamos absortos naextraordinária e fantástica plasticidade que essas imagensapresentam, tamanha a versatilidade e, portanto, proximidadecom a natureza das coisas. Em uma segunda instância, noentanto, obviamente se for do interesse e do desejo doespectador ater-se de forma mais profunda à cenarepresentada, começaremos a desvendar o que há nasentrelinhas, o que está por trás daquela imagem primeira,nítida e chapada. Passaremos a vislumbrar um universoinfinito de associações de imagens.

Nesse momento, estaremos transpondo a barreira doracional e adentrando no mundo das articulaçõesinconscientes, a partir do qual desdobraremos a cena

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representada em tantas outras imagens quanto estivermospredispostos a fazê-lo. Dalí em sua fase paranóico-críticadispõe, em um mesmo espaço representativo, coabitando deforma integrada (assim como no caso da fotografia), elementosque fazem parte nitidamente da realidade racional, que sãoaqueles de apreensão imediata, objetiva e direta, comelementos direcionados à realidade inconsciente, instigadoresdo nosso sistema de autodefesa. Basta, então, a nós,espectadores, fazermos a passagem do que está latente ao queserá manifesto, de realizarmos uma verdadeira transfiguraçãoque partirá de uma imagem figurativa identificada com arealidade cotidiana, e que nos remeterá às inúmerasassociações de imagens que, a princípio, estavam empotencial, sem serem reconhecidas, em imagens agoramanifestas através do nosso inconsciente. Constata-se aí asurrealidade dalineana, por surgirem em um mesmo espaço dearticulação as instâncias racional e inconscienteconcomitantemente, assim como na película fotográfica.

A ambivalência físico-química da imagem fotográficareflete-se na ambivalência psíquica dalineana e a absorvenovamente, metaforicamente, como a caverna de Platão, demaneira enriquecida e iluminada, uma vez que a instânciamaterial da linguagem fotográfica nada mais é do que aratificação, a confirmação palpável de todas as articulaçõesvivenciadas por nós a nível inconsciente. Talvez o mais puroideal surrealista, tão exaustivamente procurado por AndréBreton em todos os seus manifestos, esteja sub-repticiamentecristalizado na fotografia, em transe com a pintura.

Walter Benjamin (1892-1940) já apontava para um“inconsciente ótico” existente em cada um de nós, o qual só émanifesto através da fotografia. Benjamin estava aí a falardas diversas experiências e atitudes que vivenciamosinconscientemente, mas que só são percebidas e flagradas peloolhar da câmara. É como se a fotografia possibilitasse arevelação do “inconsciente ótico”, tornasse consciente,fizesse surgir o vivido, enfim, desse forma, geografia, aoque era apenas experimentado. Segundo Benjamin:

“A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala aoolhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaçotrabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que elepercorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimentode um homem que caminha, ainda que em grandes traços, masnada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo emque ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitudeatravés de seus recursos auxiliares. Só a fotografia revelaesse inconsciente pulsional.” (BENJAMIN, Walter – ObrasEscolhidas, p.94)

Essa aparição, visão do inconsciente de que estamosfalando, só é possível através da luz, a grande intermediáriade todo esse processo. Conforme Giordano Bruno, “para que avisão seja constituída não bastam o olho e o objeto a serolhado, é necessária uma intermediação que é a luz”. Portratar-se de ponte, mediadora entre duas instâncias, a luz

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comporta-se tanto como remédio quanto como veneno. Remédiopor proporcionar a emersão, realizar a verdadeiraesporulação, por dar origem e forma às vivências eexperiências que são apenas sentidas, mas que ainda não foramlocalizadas e articuladas; remédio também, no sentido de“curar”, preparar e tratar a película fotográfica para sechegar à imagem desejada (a película, para deixar o seuestado cru, original e tornar-se imagem, atinge a cura pelaluz, a “fotocura”), assim como no sentido filosófico epsicológico de fazer vir à tona todos os nossos sonhos edesejos, inscritos através de imagens. Paradoxalmente, nessemesmo sentido ela se torna veneno, por matar justamente o quelhe deu vida, pois se a luz se faz remédio pelo fazer surgir,assim o é devido aos impulsos inconscientes, que,imediatamente, são aniquilados como tais, a partir do exatomomento de sua materialização. Desse modo, a luz trabalhapara dar vida e morte ao inconsciente.

Todo esse intrincado embate vivenciado em função da luzapareceu também, interessantemente, na 2ª fase do MovimentoSurrealista que presentifica a Primavera do mito gregoPerséfone. Após ter sido raptada, Perséfone, a “Rainha dosInfernos”, comeu três grãos de romã, o que a ligou,definitivamente, ao reino das sombras. Deméter, sua mãe, quesaiu desesperada à sua procura, com um archote em cada mão,só retornou ao Olimpo (monte considerado como a morada dosdeuses) com a promessa de que, a cada primavera, Perséfonevoltaria à luz. O Surrealismo cumpre, assim, o mesmo ciclopercorrido por Perséfone. Para chegar à luz, portanto, foipreciso que a “Rainha dos Infernos” permanecesse um longoperíodo na escuridão – a luz só lhe foi possível, só lhe foiconcedida a partir da escuridão.

É essa escuridão, entremeada de mistério e sabedoria,que nos interessa como reflexão, frente ao contraponto davisualidade e da luz, vitais à linguagem fotográfica.

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XI – O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Refletir sobre instâncias opostas como luz e escuridãosempre gerou infindáveis discussões, principalmente em setratando da sociedade ocidental, que, continuamente,privilegiou tais instâncias como entidades paradoxais,contraditórias e não complementares e inter-relacionais. Aescuridão da cegueira, talvez por envolver-se de intensomistério, tem sido, ao longo da história, palco de inúmerasconsiderações e estudos.

A visão do cego historicamente

E meio à preparação de sua Enciclopédia, Diderotformulou um tratado relacionado a essa discussão em suas“Cartas sobre os cegos para o uso dos que vêem”, em que,interessantemente, a cegueira é examinada exatamente noSéculo das Luzes. Paradoxalmente, o cego presentificou-secomo emblema do “Homem da Luz” justamente por participar, porestar imerso em regiões a que outros não têm acesso. O cegocarrega um saber diferenciado, vê de outra forma e, como tal,sempre surpreende, por olhar com os olhos de um mago que estápronto a revelar algo que só a ele cabe e que só ele conhece.Já no século VI a.C., um dos primeiros poetas gregos, Homero(que era cego), era tido como o “mestre da verdadeinacessível”. O cego Tirésias, da peça Antígona, de Sófocles,era vidente; mais recentemente, no século XX, podemos falardo escritor argentino Jorge Luis Borges, que ficou cego nosanos mais produtivos de sua vida literária, deixando uma obrade extraordinário valor pela visão filosófica e metafísicaque tinha da vida. Todos eles, dentro das suas diferentestemporalidades, representavam sábios diferentes, apontavampara uma nova ordem filosófica, baseada em uma nova maneirade se perceber o mundo.

Ao mergulharmos um pouco mais fundo no século XVIII e emseu Iluminismo, percebemos que os seus próprios teóricosincorporaram a escuridão em seu pensamento, levando-nos acrer que a luz (a razão) associava-se à escuridão para fazerdela o seu próprio fermento, ou seja, que o caminho para sechegar à razão (à luz) deveria, necessariamente, passar pelastrevas. Quando Diderot coloca Saunderson, um cego denascença, como personagem principal de seu livro, identificaa sabedoria com a escuridão, inclusive reforçando a suaformulação ao colocá-lo como um geômetra (nada mais paradoxalpara nós, que enxertamos, do que um geômetra cego). A outraleitura, que faz parte do mesmo pensamento, seria a de queDiderot, através do Saunderson, nos fala da insipiência, dasuperficialidade e, mesmo, da vaidade daqueles que vêem,principalmente dos que vêem demais.

O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental

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O sentido do “ver demais” acaba por atualizar, porinserir o pensamento de Diderot na contemporaneidade, porquevivemos, hoje, a cegueira por vermos demais. A nossacivilização privilegia, acima de tudo, o olhar, mais quequalquer outro sentido. No mundo grego, pré-socrático, omundo do mito, o homem é levado pela força da música(Mellus). Percebendo que ela se destrói, se dissolve, o homemtrata de criar Apolo, representante da imagem, para se ater auma aparência, para buscar a sua estabilidade, para seperpetuar no mundo e, então, não desaparecer. A partir daí, anossa civilização passa a valorizar a imagem, o visual, o quevem do olhar, e desde então temos sido, pouco a pouco, e cadavez mais, envolvidos por imagens, principalmente após aRevolução Industrial. Em função da pressa, da agilidade comque as coisas acontecem no mundo, a cultura ocidentalcontemporânea passou a ser calcada na fragmentação (o cubismojá apontava esse caminho), na redução do todo, buscando nafração, no fragmento, a síntese, o máximo de informação, nummínimo de tempo despendido. Nesse sentido, o texto, aliteralidade passou a sucumbir frente à imagem, e desde entãotemos sido abarrotados, literalmente “metralhados” por todasorte de imagem, a todo momento. Assim, ironicamente, acontemporaneidade nos coloca diante do mesmo impasse vividopela fotografia (uma de suas filhas mais rebeldes) diante daluz – o excesso como fator destruidor, aniquilador eparalisante. Quando nos defrontamos com o imenso acúmulo deimagens a que somos submetidos, corremos sério risco de nadavermos, da saturação tornar-se prenúncio da não-absorção emetafórica e paradoxalmente, da própria escuridão.

Essa talvez seja a verdadeira cegueira, pois aocontrário daquele que, de fato, não enxerga, temos sidoprivados do nosso sentido de visão seletiva, e nem por issonos aguçamos, nos esmeramos em nossos outros sentidos. Aocontrário do que deveria acontecer, encontramo-nosprogressivamente mais embotados, indiferentes e apáticos, eesse estado letárgico, por comprometer a nossa visão, faz dafotografia um verdadeiro instrumento seletivo daquilo que sevê, ou melhor, do que se quer ver e não se consegue. De outramaneira, poderíamos dizer que o olhar passou a ser de talforma privilegiado em nossa cultura, que os outros sentidosatrofiaram-se ou não se desenvolveram o suficiente. Quando opróprio sentido visual torna-se velado pelo excesso do que hápara ser visto, deparamo-nos de frente com todas as nossasfragilidades sensitivas e, conseqüentemente, com uma brutaldificuldade em reagir às intempéries do mundo moderno. Dentrodeste contexto específico, o cego (aquele que, de fato, nãopossui o sentido da visão) não apenas integra-se àcontemporaneidade como interage com ela de maneira muito maisintensa. Justamente por encontrar-se privado do sentido demaior valoração em nossa cultura é que o cego potencializatodos os seus outros sentidos e, conseqüentemente, a suarelação com o mundo passa, obrigatoriamente, por canaisdiferenciados. A sua noção de tempo, de espaço e toda a suaatitude diante das coisas do mundo são trabalhadas em função

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dos sentidos extremamente aguçados de que dispões. Por issoficamos tão perplexos ao percebermos a interação do cego como meio em que vivemos.

Ao cego, no entanto, falta a luz, e “para que a visão seconstitua torna-se imprescindível a mediação da luz”(G.Bruno). A escuridão, portanto, seria a própria negação dafotografia, a sua maior antítese, já que a sua existênciadepende, irredutivelmente, do que vem da luz. Não por não tera luz, mas por não vê-la, é que o cego constitui-seteoricamente, como o grande paradoxo da fotografia, que,necessariamente, exige a visão. Mas qual é essa visão? Seráque a visão de que fala a fotografia está conectada, única eexclusivamente, ao olhar, isto é, ao poder da visualidade emsi?

Evgen Bavcar

Se todas as reflexões, por mais pertinentes que sejam, vem ensejar qualquer dúvida a respeito do que foi dito acima,faz-se necessário tomar conhecimento da obra do fotógrafocego esloveno Evgen Bavcar. Neste momento, abandonamos ouniverso da visão do olho para penetrarmos na visãosensitiva. Bavcar é o fotógrafo da sombra, não da luz; é aprópria redundância por ser, como ele mesmo diz, “uma câmaraescura atrás de uma câmara escura”. Na verdade, o que ele fazé inverter o processo da caverna de Platão, a fim de nosprovar que é preciso um retorno à escuridão para que se possavoltar, efetivamente, a enxergar, e para que, na escuridãodas trevas, as pessoas possam encontrar as imagens querealmente procuram.

Conforme pudemos refletir anteriormente, a fotografiacarrega algo de vidente em sua linguagem, aponta para algoque os olhos comuns não vêem, revela para o futuro situaçõesimperceptíveis e que escapam à realidade cotidiana,principalmente à contemporânea, já tão impregnada e poluídavisualmente, na qual pouco se pode ver, não somente peloexcesso do que há para se ver como também pela crescentepadronização das imagens com as quais nos deparamos. Essavidência fotográfica à qual nos referimos nada mais é do queo resultado lógico da ansiedade vivida pelo homemcontemporâneo. É como se ele tivesse encontrado na fotografiaa sua própria redenção, o veículo necessário para reencontrara imagem perdida, enfim, tivesse adquirido olhoscontemporâneos, uma vez que o homem passou a ter,necessariamente, de reavaliar todo o seu processo de visão,selecionar as imagens a ele impostas, de modo a não sucumbirperante o clichê e não perder a sua identidade diante damassificação. Assim, fugindo da cegueira contemporânea oolhar retoma um outro caminho, realiza uma espécie deassepsia, no sentido de afastar tudo o que é excesso, tudo oque é retórica, impondo a si mesmo um processo de reeducação.O olho, então, mais seletivo, mais esmerilhado, encontrar-se-á capacitado a ver o que outros não vêem, ou mesmo, o que eleantes não via. Esse processo, portanto, em função da apuração

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do olhar, leva ao que estamos chamando de vidência, de ver oinvisível.

Por mais contraditório que possa parecer, o olho, paraefetivamente ver, deve aproximar-se cada vez mais da redução,de algo minimalista, em franca oposição à redundância, eBavcar leva essa proposição às últimas conseqüências. Mais doque realizar um processo de redução, ele é a própria redução,a própria negação da visualidade, faz verdadeira “tabularasa” do que é o olhar. Com ele, há o rompimento da barreirada apuração máxima do olhar por materializar a visualidadeatravés da fotografia, estando, literalmente, na escuridão.Bavcar vê o invisível, mas o invisível para nós, queenxergamos, pois ele vê de forma diferente, sem fazer dafotografia uma atividade reprodutora da natureza. A partir domomento em que um cego realiza ensaios fotográficos, toda equalquer discussão em torno da fotografia ser ou não mimeseda realidade cai por terra. A sua postura diante dafotografia, a maneira como ele lança mão dessa linguagem éúnica e exclusivamente de forma criativa, materializando edando formas às imagens através de um processo de construção,elaborado em sua imaginação via sensações adquiridas. Talvezaí esteja o ponto nevrálgico da autonomia tão procurada pelafotografia, que parece estar se autodriblando (pois que há,de fato, a “finta”, mas ainda prevalecendo o total controledo meio).

O cego e a questão mimética da fotografia

Quando os fotógrafos pictorialistas tentaram, a todocusto, retirar da fotografia o pesado fardo que lhe tinhasido imposto, que era o de ser o mero “espelho da realidade”,acabaram por torná-la um verdadeiro pastiche da pintura, decujos princípios ficou dependente e servil. De lá para cáincontáveis discussões e questionamentos relacionados ao jugoda fotografia à realidade e à pintura têm sido levantados,embora essa discussão já tenha se esvaziado por si mesma,pois vivemos hoje uma época das artes visuais, em que aslinguagens artísticas não se percebem mais de forma cindida,seccionada, mais inter-relacionada (hoje o conceito de “artesvisuais” é bem mais apropriado do que o de “artes plásticas”,haja vista a total inter-relação entre as linguagens, aimensa impregnação de uma linguagem em outra, e o fato de osuporte, a materialização e a desmaterialização estarem sendotão amplamente discutidos).

Evgen Bavcar dá um passo fundamental em torno de todaessa discussão ao exercer o seu processo de criação atravésda fotografia, ao mesmo tempo afastando-a de toda e qualquersubmissão tanto em relação à pintura, conforme o conceito dospictorialistas, quanto em relação à realidade. Ele se utilizada luz que a natureza lhe proporciona (e que lhe foi negada)para construir a sua arte, tendo a fotografia como veículo,não fazendo dela um meio para repetir a realidade. Porfaltar-lhe o sentido da visão, tudo passa a ser pura criação,o que afasta a conceituação mimética imposta à fotografia

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desde a sua criação, e que, porventura, ainda possapermanecer entre os menos atentos. A fotografia, aí, é livre,plenamente independente, desprovida de qualquer amarra, sejaela no sentido conceitual ou moral. É interessante observar aplena autonomia da fotografia (linguagem eminentementevisual) aparecendo justamente na abstração da visão, como setivesse havido a necessidade de se limpar total ecompletamente a visão do olhar, realizar a sua inteiradespoluição, para se chegar à sua plena liberdade.

Enxergar não pode caracterizar-se como um processomeramente visual, pois seria banalizar, superficializar emdemasia a condição humana. Homero, Tirésias de Sófocles,Borges e tantos outros entraram para a história, e de algumaforma influenciaram na transformação das sociedades em queviveram, privados do sentido da visão. Nesse contexto,podemos falar também de Bavcar, por ele ter tido a ousadia deresgatar a questão do sentido da visão em uma sociedade comoa nossa, extremamente racional, calcada nos cânonesaristotélicos, em que o ver relaciona-se estreitamente – e,por isso mesmo, reduz-se bruscamente – aos elementosintelectuais e às relações entre as idéias. Bavcar, de umacerta forma, radicaliza a sua contraposição a toda essacultura, por levantar essa questão justamente através dalinguagem que exige o olhar como o elemento ativo.

Por não possuir a visão, a postura e a relação do cegocom o mundo passa não apenas pelos outros sentidos já tãoaguçados, como pela memória que ele guarda das coisas apartir desses estímulos sensitivos. O trabalho de Bavcarestrutura-se, basicamente, em função do conceito da memóriaconectado aos sentidos, não a memória conceitualmentehistórica e usualmente tratada por nós. Assim como as pessoasque enxergam possuem a memória visual das coisas (muitasvezes tida como “memória fotográfica”), o cego exercita a suamemória através do olfato, da audição, das sensações de frioe quente, do sopro do vento sobre as coisas (Bavcar costumadizer que fotografa contra o vento para perceber a forma e aposição das coisas) e, principalmente, através do tato, quepode tornar-se extremamente refinado em decorrência deconstantes exercícios. Assim, percebemos em Bavcar a própriatotalidade do artista, a plena inserção e integração notrabalho, uma vez que o seu processo de criação passa,essencialmente, tanto pelo corpo quanto pelo espírito, portodos os sentidos e pela mente.

Assim como Picasso por meio de “Máscaras Africanas”,“Guitarra”, “Demoiselles D’Avignon” e tantos outros trabalhosrevolucionou a cultura ocidental ao negar qualquer tipo dehierarquia entre os objetos (orgânico e inorgânico) e entreos valores provenientes do Oriente e do Ocidente, Bavcarafasta a noção de subordinação e hierarquia entre o racionale o inconsciente, exercendo, de fato, a plena surrealidade.

Ao visitar a belíssima exposição do fotógrafo eslovenono Museu da República (Rio de Janeiro), tive a oportunidadede observar algumas pessoas extremamente mobilizadas pelo queestavam vendo, não apenas pelo fato de aquelas imagens terem

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sido captadas por um fotógrafo cego, mas pela própriaestranheza das imagens em si. Havia algo desconectado, algode diferente naquelas imagens, de forma a suscitar tamanhosquestionamentos, os quais, em última instância, acabavam porlocalizar o trabalho como surrealista. Confesso que fuitomado por todas aquelas articulações, a ponto de meperguntar por que tais pessoas haviam associado aquelasimagens ao Surrealismo. O que seria esse “Surrealismo” aoqual se referiam? Estaria esse “Surrealismo” no lugarexatamente de uma falta de definição? (É comum as pessoasfazerem referência ao Surrealismo quando estão diante de algoestranho, diferente.) Penso em que deslocamentos, narealidade interna de cada uma daquelas pessoas, tais imagenspoderiam ter provocado para que elas passassem a reagir comtamanha estranheza.

Certamente, em alguma instância algo rompeu-se, desfez-se na relação entre a realidade racional do espectador e avivência inconsciente experimentada diante daquelas imagens,para que houvesse tal mobilização. Não acredito que ascaracterísticas técnicas das fotografias (ângulo de tomada,pontos de vista bastante insólitos, em alguns casos, perda daprofundidade de campo, sobreposição de planos etc.) por maisque apresentem aspectos realmente incomuns, possam ter sido ofator determinante para o questionamento. Creio quepoderíamos pensar em algo mais além, em algo que, aprincípio, estaria velado, escamoteado por trás do exotismotécnico, mas que, talvez, possa ter servido de estopim, deelemento desencadeador, e por isso de gancho de união emobilização com o espectador.

Primeiramente, é preciso atentar para a extremadificuldade que temos em admitir e absorver algo que venhacaracterizar-se como uma visão nova e diferente do mundo, eBavcar coloca isso de imediato, até porque ele, realmente, vêdiferente. Enquanto a nossa visão é truncada, afastada ecarregada de uma imensidão de vícios, críticas e regras, hajavista toda a teorização que trazemos desde o Renascimento, avisão do Bavcar é total e participativa. Nela, corpo e mentesão acionados de uma só vez, interagindo constantemente umcom o outro e proporcionando, desta forma, uma imagemliberta, isenta do vício cultural, moral, e racional, vindado exterior. Se as suas fotografias são realmente diferentesdas que normalmente encontramos, se causam tamanho espanto eperplexidade, é justamente porque a sua visão é maisprofunda, mais completa, realizada de dentro de cadasituação, uma vez que não são “tiradas” em decorrência deapenas um dos nossos sentidos (a visão). Para nós queenxergamos, fotografar pode depender única e exclusivamenteda visão, e, obviamente, de um mínimo de conhecimentotécnico, enquanto que para um cego esse processo certamenteterá de envolver a memória sensitiva captada de váriossentidos, aliada a uma profunda percepção inconsciente domundo.

Assim sendo, não há dúvidas de que o envolvimento e oinvestimento colocados em uma fotografia realizada por um

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cego são, incomparavelmente, maiores do que as que executamose, por isso mesmo, ela parece tão diferente para nós. Aofotografar, o cego efetiva a síntese do Surrealismo, atua aplena comunhão entre a realidade racional existente, que lheserve como referencial e índice, e a realidade inconsciente,que, intrínseca, faz parte do seu universo em trevas, que sóa ele pertence.

A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelocego

Quando refletimos a respeito do momento mágico em que oobturador é acionado, momento único, capaz de integrarnaquele décimo de segundo a síntese surrealista, pois este éo instante em que o espelho se fecha proporcionando aescuridão, quando mergulhamos na instância inconsciente (emharmonia com a instância racional da realidade dada), estamosnos referindo ao universo do cego, ao único momento em queexperimentamos, embora de maneira tênue, a vivência do cego.Dessa forma, Bavcar não apenas vive a escuridão, como é opróprio espelho fechado. O que, para nós, passa-se em algunsdécimos de segundo, para ele identifica-se com a sua própriaexistência. A escuridão lhe proporciona um estado natural deconstante vigília inconsciente. Diríamos que elerepresentaria o nosso “negativo”, por percorrer um sentidoinverso ao nosso, pois enquanto nós, para realizarmos umafotografia, temos, de antemão, a realidade racional dada esaímos em busca do décimo de segundo da nossa escuridão(instância inconsciente), Bavcar já parte da sua própriaescuridão, ávido pela realidade racional. Assim, o seupercurso, ao fotografar, compreende uma carga inconscienteextremamente acentuada, o que lhe confere uma visãodiferenciada do mundo.

A condição do cego, enquanto fotógrafo, identifica-se decerta forma com os “Penetráveis” de Hélio Oiticica31 e com os“Contra-Relevos” do artista russo Vladimir Tatline, um doselaboradores do Construtivismo russo. Os “Contra-Relevos” sãoplanos abertos e vazados cujos espaços internos compreendem omesmo espaço externo (exterior) do espectador. Então o que éo espaço interior dele? É o meu espaço exterior. Não há,portanto, espaço interno e espaço externo, tudo é uma coisasó, ou seja, o “Contra-Relevo” está totalmente imerso noambiente em que se encontra e que o qualifica. Enquanto orelevo nos passa a ilusão da saliência, do estar para fora, o“Contra-Relevo” se insere no ambiente. A postura do Bavcar, 31 Hélio Oiticica : artista brasileiro (1937-1980).Transformava os processos de arte em sensações de vida.Considerava como “problemas sensoriais básicos aquelesrelacionados à sensação de estímulo-reação condicionados apriori”. Para ele, a “participação sensorial” deveria serrelacionada a um sentido supra-sensorial, no qual oparticipante iria elaborar dentro de si mesmo suas própriassensações.

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ao fotografar, é justamente a da plena inserção, em que onosso espaço externo caracteriza-se como o seu espaçointerno, exatamente como o “Contra-Relevo”. Para Bavcar, osespaços interno e o externo fazem parte de um mesmo universo,não havendo diferenciação entre ambos, uma vez que “o seulugar é o de dentro”, o da plena imersão no ambiente, e éprecisamente essa postura que o leva a participar dacontemporaneidade de forma tão absoluta.

Se observarmos um pouco o desenvolvimento da sociedadeocidental e o seu percurso até o atual momento em que nosencontramos, podemos perceber que o homem sempre buscou umadualidade (sujeito/ objeto, tempo/ espaço, corpo/ alma),identificando, assim, uma cisão ao se afastar do mundo e,conseqüentemente, de si próprio. O mundo encontrava-se láfora, e o homem, postado à distância, observava todos osacontecimentos e fenômenos de forma racional, sem qualquerenvolvimento direto. Não é por acaso que a pintura (reflexoda sociedade) manteve-se praticamente, durante quatro séculos(do Renascimento a Cézanne) representando a figura destacadado fundo. Partia-se do pressuposto de que havia uma estruturapreconcebida do espaço onde o objeto era, então, inserido, ea garantia de que, naquele espaço, haveria a inserção de umobjeto, o que nos leva a pensar que, ao se pintar primeiro umfundo e depois a figura, o homem se pressupõe num mundo emque há uma estrutura prévia a qualquer acontecimento, com umaordem espacial garantindo os acontecimentos do mundo. Essaatitude aponta para uma total falta de integração do homemcom o mundo (falta de integração figura/ fundo). Somente nosfinais do século XIX, com Cézanne, é que essa relação dohomem com o universo em que vive começa a aparecer de formadiferenciada. Cézanne passa a trabalhar na tela experiênciaspercebidas a partir de uma nova qualidade no relacionamentohomem/ mundo, pois passa a ser a tônica da arte contemporâneaa proximidade, a interação.

Até o século XIX, os mecanismos da cultura ocidentaltentaram, o quanto puderam, manter distantes aintelectualidade e tudo o que pudesse remeter à emoção e àafetividade, estigmatizando o desenho como o representante daracionalidade (intelectualidade) e a cor como pertencendo àemoção. Esses universos eram postos à parte com o intuito desustentar o distanciamento do homem em relação ao seuuniverso. Historicamente, ou se era desenhista, pertencente àescola florentina, ou se era colorista, segundo a tradiçãoveneziana. Na realidade, essa conceituação arrastou-se até asproximidades do Impressionismo, que trabalhava,exclusivamente, a sensação visual através da cor, abstraindo-se de uma maior estruturação do quadro. Matisse, quecertamente bebeu na fonte dos trabalhos de Gauguin, quebrou ociclo estabelecido ao construir os seus quadros,racionalmente, através da cor. O equilíbrio, emboraextremamente instável, verificado em seus trabalhos, vem daconstrução racional das massas de cores no plano (ora“esfriando”, ora “esquentando” as cores), sendo que a cor,aí, representa também o intelectual, não estando, apenas, a

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serviço da pura emoção. Matisse chega à extrema síntesedesenho/ cor quando passa a realizar a découpage, que são osrecortes em papel colorido, os quais eram compostos ecolados. Há, aí, a total integração desenho/ cor, pois formae cor são, agora, uma única coisa, como se Matisse passasse apintar com a tesoura e, assim, representasse a totalinteração do homem com o mundo. O Cubismo, por outro lado,perseguiu a mesma harmonia e equilíbrio, mas pelas vias daintelectualidade, pois objeto e espaço eram integradosatravés da pesquisa racional, na busca representativa da novarelação de aproximação e participação homem/ mundo.

Ao observarmos a obra de Bavcar parece-nos que eleperfaz ambos os caminhos trilhados por Matisse e Picasso aomesmo tempo, como se ele fosse a própria síntese dessasvertentes. SE, por um lado, prescindir do olhar lhe rouba oveículo privilegiado pela nossa civilização, por outro lheconfere a plena integração, o que o coloca no cerne do embatecontemporâneo, que é a divisão, o afastamento entre asinstâncias racional e emocional, afetiva (em últimainstância, inconsciente). Bavcar nega todo esse arcabouçoconstruído em função da separação, uma vez que a sua condiçãonão permite o distanciamento imposto pelo sentido da visão,em que não há superficialidade, não há voyeurismo, não hámeias palavras, pois que sua visão é dentro, é tátil, é, comodisse anteriormente, o próprio “Contra-Relevo” de Tatline. Apartir daí, Bavcar nos faz perceber que o seu trabalho é,efetivamente, inter-relacional, que a realidade racional e oinconsciente, que a materialidade das coisas e a suaespiritualidade pertencem a uma mesma hierarquia, em que nadase sobrepõe a nada, pois sujeito/ objeto, figura/ fundo,dentro/ fora, corpo/ alma, tudo carrega o seu próprio grau deluminosidade e reflete o brilho a cada entidade complementar.

Assim, a equação Matisse/ Picasso refaz-se no decorrerda obra de Bavcar. A carga inconsciente que permeia de formaintensa o seu trabalho resgata o investimento emocionaldepositado por Matisse através da cor (por mais paradoxal quepossa parecer um fotógrafo cego evocar a cor como uma de suasreferências), ao mesmo tempo em que a sua efetivação só se dáse estiver sustentada pela sensibilização de seus outrossentidos que não a visão, adquirida através da materialidadedas coisas da realidade existente. Configura-se, aí, aprópria estruturação do trabalho, a real construção daimagem, surgindo, então, o referencial da obra de Picasso.Para Bavcar, fotografar é entregar-se, literalmente, de corpoe alma, é perceber-se Matisse e Picasso, é ser-se matéria eespírito, consciência e inconsciência concomitantemente.

Por estar dentro, por estar efetivamente inserido,fazendo parte do ambiente que está fotografando, é que asimagens de Bavcar transmitem uma extraordinária carga dematerialidade. A cegueira o leva a fotografar através do tato(mais do que qualquer outro sentido), pois ele toca, apalpa oobjeto antes de fotografar, fazendo com que o universo ao seuredor torne-se parte integrante do seu próprio universo. Comisso, interpõe matéria sobre matéria à imagem, sem lançar

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mão, na realidade, de qualquer tipo de material, o que acabapor aproximar a sua obra fotográfica à pintura. Essaaproximação não se dá de acordo com o que “fotógrafospintores” no final do século XIX tentaram fazer. Ao contráriode Robinson e Reijlander – que ansiavam por elevar afotografia ao status que a pintura havia alcançado na época,e que, em função disso, tiveram de abrir mão dascaracterísticas inerentes à própria linguagem fotográfica emprol dos meios típicos da pintura – a obra de Bavcar remete àpintura e interage com ela a partir da sua própria posturadiante da imagem a ser fotografada. Ele altera o que seria onosso ponto de vista porque, na realidade, ele não o tem.

O seu deslocamento, por não ter o vício do ponto devista único, possibilita vários pontos de vista diferentes e,freqüentemente, as suas “tomadas” são angulosas, oblíquas,produzindo imagens cujos planos sobrepõem-se uns aos outros,remetendo a uma materialidade típica da linguagem pictórica,em função das diversas superfícies planares em contigüidade.Aí, sim, a fotografia encontra a pintura sem traumas oucomplexos, sem o medo da sua própria descaracterização porquerer ser o outro; a partir daí torna-se totalmente inócua adiscussão que gira em torno do fato de a fotografia pertencerou não às artes plásticas, e de ter o status de outrasatividades artísticas, de tentar ou não fazer da pintura osue próprio noema.

A obra de Bavcar nos faz perceber que é possível ainteração e a aproximação entre as linguagens artísticas, semque com isso haja a perda da integridade de cada meio, atéporque ao evocar, de alguma forma, a pintura em seustrabalhos, reafirma toda uma conceituação e princípiospróprios da fotografia, ao mesmo tempo em que deixa-sepermear por manifestações externas.

Pensar a obra de Bavcar é ver a fotografia por dentro,com tudo o que ela tem de escuridão, sem restrições oulimites; é possibilitar-nos tirar o véu do meio tom,restando-nos o preto e o branco, que, afinal, é a linguagempor ele escolhida para trabalhar. De fato, é bastantecoerente, para um cego que fotografa, a escolha pelo processoem preto e branco, pois, afinal de contas, essa linguagemapresenta um grau interpretativo muito maior do que alinguagem em cor. De imediato, a fotografia em preto e brancodistancia-se da realidade existente, que é colorida. Arelação que mantemos com o meio em que vivemos sempre se deude forma colorida. Assim, uma fotografia colorida, por piorque seja (tecnicamente falando), encontra-se muito maispróxima da nossa realidade, já apresenta, de antemão, o mesmocódigo intelectivo da nossa realidade. Por isso a fotografiacolorida ser considerada (muitas vezes equivocadamente) maisfácil de se fazer. É como se ela permitisse uma margem deerro muito maior, pois só pelo fato de possuir a cor jáencontra ressonância, já possibilita um maior entendimentopara o espectador. A cor, no entanto, ao mesmo tempo em quecompreende um fator de aproximação com a realidade, pode, poroutro lado, banalizar a fotografia, levá-la ao constante

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risco da retórica. Em função da maior compreensão da fotocolorida, o mercado de consumo passou a ser massificado pelalinguagem em cor e, com isso, a “boa” fotografia coloridapassou a sofrer um processo de desvalorização artística muitogrande. Assim, essa referência mais explícita à realidadedada acaba por tornar a fotografia colorida desprovida deelementos subjetivos mais intensos, comprometendo,conseqüentemente, o seu valor criativo.

Por outro lado, a fotografia em preto e branco afasta-seda realidade existente por não lhe prover códigos deentendimento compatíveis com os seus, o que a leva adesfrutar de um maior descomprometimento mimético. O lastrode sua autonomia amplia-se à medida que ela prescinde do seumaior referencial com a pintura, que é a cor. Uma fotografiaem preto e branco, por melhor que represente a realidade, pormais que dela se aproxime, guarda consigo alguma coisa deoculto, de não revelado. Ela é uma linguagem que pressupõealgo além da mera contemplação, não há como estar realmenteenvolvido, “tomado” por uma imagem em preto e branco com umapostura simplesmente voyeurista, pois essa implicação exigedesvendar as suas entrelinhas, descobrir, pouco a pouco, oque a imagem nos proporciona implicitamente, o que há paraser visto por trás dos claros e escuros. Então, há de sefazer da fotografia em preto e branco um verdadeiropalimpsesto, em que os diversos planos de sombras e luzesvão, passo a passo, desdobrando-se em outras visões dentro domesmo espaço fotográfico, no mesmo suporte.

A fotografia em preto e branco, portanto,independentemente de sua abordagem, já parte de um intensodado reflexivo, que a coloca, de alguma forma, comoreferência à interiorização, ao estar dentro, ao profundo.

Quando Evgen Bavcar debruça-se sobre a fotografia pormeio da linguagem em preto e branco, configura-se a puraessência do que se poderia chamar de Surrealismo, uma vez quea realidade existente, racional, integra-se, de forma plena,à instância inconsciente, produzindo, assim, a fotografiasurrealista contemporânea por excelência. A constanteatualização e, portanto, a grande contemporaneidade dafotografia encontra-se justamente nessa capacidade de elacarregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma cargasurrealista de oscilar constantemente entre o real e oimaginário, em convivência mútua.

A fotografia pertence ao universo científico e artísticoao mesmo tempo, além de possibilitar o automatismo através doacidente, o acaso. Trabalhando ininterruptamente a distânciaespacial, social, cultural e psicológica, a linguagemfotográfica coloca-nos frente ao desconhecido, ao que éestranho à nossa vivência comum, tendo como fio o excêntrico,o exótico, proporcionando, assim, um vasto manancial dequestionamento. Por tudo isso, a fotografia nos faz ver que osurrealismo a ela incorporado não se adequa única eexclusivamente a uma época ou ao Movimento Surrealista em si,mas sim ao que pode ser identificado tanto em um retrato de

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Julia Margaret Cameron (1815-1879) quanto em uma imagemcontemporânea de Bavcar.

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