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Cad. EBAPE.BR, v. 12, nº. 4, Apresentação, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014. p.741–755 Braverman, subjetividade e função de direção na produção do valor Braverman, subjectivity and function of direction in the value production Elcemir Paço Cunha 1 Trabalho e capital monopolista, de Harry Braverman (1920-1976), desde 1974 segue sendo um texto de referência para o debate marxista (e não marxista) sobre o processo de trabalho e as formas complexas por meio das quais o domínio do capital se desenvolve e se reproduz. As palavras de Paul M. Sweezy (1977, p. 11) à época são válidas para demarcar o livro em questão, mesmo passados 40 anos de sua primeira publicação: “[a] função desta obra é muito mais suscitar do que responder a questões”. Esse é o espírito da obra que cortou tantas décadas, tendo por ponto de arranque um singular encontro entre a investigação dos textos fundamentais do marxismo, da experiência pessoal como trabalhador e militante socialista, além do senso de realidade que transborda das linhas que armam o texto. Marxista de inclinações trotskistas, deveu muito às análises de Paul Baran e Paul Sweezy em Capital monopolista, contribuindo indubitavelmente ao avançar no estudo sobre as consequências que certos modos de transformação também tecnológica trouxeram ao processo de trabalho e à classe trabalhadora. O livro de Braverman é importante por uma série de questões além daquelas já convencionais quando esse é o assunto. Com frequência, é exaltado por revigorar criticamente uma sociologia do trabalho estacionada nas estatísticas e por lançar as bases de uma Teoria do Processo de Trabalho cuja crítica possibilitou o desenvolvimento dos chamados Estudos Críticos da Gestão (Critical Management Studies). A despeito dessa derivação, a chamada Teoria do Processo de Trabalho congrega muitos pesquisadores em todo o mundo, gera publicações e pauta eventos internacionais de grande expressão. Entretanto, Braverman também é memorável pelo nexo que buscou desenvolver entre a produção do mais- valor e a progressiva tendência à proletarização da classe trabalhadora, seja do trabalho qualificado ou sem qualificação, seja do gerente ou do operário, no interior e externamente à produção industrial. Esse desenvolvimento serve ao combate à tese lançada com frequência, inclusive em época recente no Brasil, de um dito “aburguesamento” de muitas esferas da atividade humana. Braverman mostra, ao contrário, a tendência mais forte à decaída dos diferentes processos de trabalho, dentro e fora da indústria incluindo os escritórios , sob os mesmos efeitos que assolam os trabalhadores tradicionalmente ligados à produção direta das mercadorias físicas. Sob esse ângulo, a precarização do trabalho, por exemplo, não seria uma exclusividade da esfera diretamente econômica, nem do trabalho manual no interior dela. É o que se pode constatar (guardadas as diferenças) em diversas esferas do trabalho, dos canaviais brasileiros às universidades norte-americanas. A ilusão à qual se prendeu a sociologia acadêmica (e sua terminologia, white-collars, blue-collars etc.) ao tempo de Braverman e à qual também se agarra hoje, desesperadamente, o discurso político, é aquela que sustenta um crescimento da “classe média”. A argumentação de Braverman mostra, entre muitas outras coisas, que o fenômeno não se deve à “vontade política” e, em especial, não é a Artigo submetido em 29 de setembro de 2014 e aceito para publicação em 12 de novembro de 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1679-395138853 1 Doutor em Administração pela UFMG; Professor Adjunto do Departamento de Ciências Administrativas; Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Endereço: Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Universitário, s/nº, Bairro Martelos, CEP: 36036-900, Juiz de Fora MG, Brasil. E- mail: [email protected]

Braverman, Subjetividade e Função de Direção Na Produção Do Valor

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Braverman, Subjetividade e Função de Direção Na Produção Do Valor

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  • Cad. EBAPE.BR, v. 12, n. 4, Apresentao, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014. p.741755

    Braverman, subjetividade e funo de direo na

    produo do valor

    Braverman, subjectivity and function of direction in the value production

    Elcemir Pao Cunha1

    Trabalho e capital monopolista, de Harry Braverman (1920-1976), desde 1974 segue sendo um texto de

    referncia para o debate marxista (e no marxista) sobre o processo de trabalho e as formas complexas por

    meio das quais o domnio do capital se desenvolve e se reproduz.

    As palavras de Paul M. Sweezy (1977, p. 11) poca so vlidas para demarcar o livro em questo, mesmo

    passados 40 anos de sua primeira publicao: [a] funo desta obra muito mais suscitar do que responder a questes. Esse o esprito da obra que cortou tantas dcadas, tendo por ponto de arranque um singular encontro entre a investigao dos textos fundamentais do marxismo, da experincia pessoal como

    trabalhador e militante socialista, alm do senso de realidade que transborda das linhas que armam o texto.

    Marxista de inclinaes trotskistas, deveu muito s anlises de Paul Baran e Paul Sweezy em Capital

    monopolista, contribuindo indubitavelmente ao avanar no estudo sobre as consequncias que certos modos

    de transformao tambm tecnolgica trouxeram ao processo de trabalho e classe trabalhadora.

    O livro de Braverman importante por uma srie de questes alm daquelas j convencionais quando esse

    o assunto. Com frequncia, exaltado por revigorar criticamente uma sociologia do trabalho estacionada nas

    estatsticas e por lanar as bases de uma Teoria do Processo de Trabalho cuja crtica possibilitou o

    desenvolvimento dos chamados Estudos Crticos da Gesto (Critical Management Studies). A despeito

    dessa derivao, a chamada Teoria do Processo de Trabalho congrega muitos pesquisadores em todo o

    mundo, gera publicaes e pauta eventos internacionais de grande expresso.

    Entretanto, Braverman tambm memorvel pelo nexo que buscou desenvolver entre a produo do mais-

    valor e a progressiva tendncia proletarizao da classe trabalhadora, seja do trabalho qualificado ou sem

    qualificao, seja do gerente ou do operrio, no interior e externamente produo industrial. Esse

    desenvolvimento serve ao combate tese lanada com frequncia, inclusive em poca recente no Brasil, de

    um dito aburguesamento de muitas esferas da atividade humana. Braverman mostra, ao contrrio, a tendncia mais forte decada dos diferentes processos de trabalho, dentro e fora da indstria incluindo os escritrios , sob os mesmos efeitos que assolam os trabalhadores tradicionalmente ligados produo direta das mercadorias fsicas. Sob esse ngulo, a precarizao do trabalho, por exemplo, no seria uma

    exclusividade da esfera diretamente econmica, nem do trabalho manual no interior dela. o que se pode

    constatar (guardadas as diferenas) em diversas esferas do trabalho, dos canaviais brasileiros s

    universidades norte-americanas. A iluso qual se prendeu a sociologia acadmica (e sua terminologia,

    white-collars, blue-collars etc.) ao tempo de Braverman e qual tambm se agarra hoje, desesperadamente,

    o discurso poltico, aquela que sustenta um crescimento da classe mdia. A argumentao de Braverman mostra, entre muitas outras coisas, que o fenmeno no se deve vontade poltica e, em especial, no a

    Artigo submetido em 29 de setembro de 2014 e aceito para publicao em 12 de novembro de 2014.

    DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1679-395138853

    1 Doutor em Administrao pela UFMG; Professor Adjunto do Departamento de Cincias Administrativas; Professor do Programa de

    Ps-Graduao em Direito e do Programa de Ps-graduao em Servio Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Endereo:

    Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Universitrio, s/n, Bairro Martelos, CEP: 36036-900, Juiz de Fora MG, Brasil. E-

    mail: [email protected]

  • Braverman, subjetividade e funo de direo na produo do valor Elcemir Pao Cunha

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    criao ou desenvolvimento do meio-termo, mas o crescimento progressivo da massa de trabalho improdutivo (que no cria valor, isto , trabalho nas esferas comercial, financeira e de escritrio, este ltimo

    tambm dentro da prpria indstria) sob o comando do capital, se comparado aos trabalhos diretamente

    produtivos (ligados ao capital produtivo) que adicionam novo valor2.

    Por esses pontos, Braverman permanece importante para a discusso sobre a lgica do valor, questo

    retirada de cena sempre que possvel em nome de abstraes que esfumaam as contradies reais.

    importante, ainda, como trincheira diante do avano do irracionalismo e suas variadas manifestaes, que

    pregam a indeterminao da realidade e um subjetivismo solipsista beira do niilismo derrotista, que negam

    a contradio no movimento prprio das coisas e mistificam o existente, sobretudo em uma forma de

    sociabilidade arqueada pelo poder do capital e seu impulso insacivel de autovalorizao. Todavia, a prpria

    efetividade cobra seu preo do irracionalismo. O movimento dessa realidade concreta cria as condies e

    tendncias de sua prpria transformao, cuja realizao, contudo, no se d sem a atuao efetiva dos

    homens ao converterem, por meio da prxis histrica, as tendncias em efeitos postos conscientemente. O irracionalismo a forma que assume [...] a tendncia a esquivar a soluo dialtica de problemas dialticos, como sugeriu Lukcs (1958, p. 193). por esses e outros motivos que Braverman precisa ser lido e debatido,

    inclusive para explicitar suas deficincias, com o rigor que o autor merece.

    No sentido de contribuir para o debate de pontos importantes do livro em questo, seguem abaixo ao menos

    dois que se mostram centrais, mas sem qualquer inteno de esgotar a discusso. Ao final, so indicados os

    artigos profundamente instigantes, tanto no conjunto como de modo individual, que configuram esta edio

    especial inestimvel.

    Os dois pontos importantes giram em torno, de um lado, do problema da subjetividade, a partir do qual se

    ergueram rios de pginas hostis a Braverman. preciso esclarecer alguns pontos a respeito. De outro lado,

    tratamos do carter produtivo e improdutivo da funo de direo, isto , do trabalho do administrador na

    produo do valor como trabalho de explorar exercitado por frao do trabalho explorado uma dimenso que Braverman mesmo no pde desenvolver suficientemente.

    Subjetividade

    Uma das maiores polmicas certamente gira em torno do problema da subjetividade. Em parte, Braverman

    pode ser responsabilizado por uma dificuldade que cobra seu preo, mesmo depois de quarenta anos.

    Entretanto, apenas em parte.

    A certa altura da introduo de Trabalho e capital monopolista, nosso autor explicou que no intentava

    cuidar do estudo da moderna classe trabalhadora no nvel de sua conscincia, organizao ou atividades. Este livro [disse ele] trata da classe trabalhadora como classe em si mesma e no como classe para si mesma (BRAVERMAN, 1977, p. 33-34, grifo do autor). No h lugar para longas digresses que lidem com uma

    das grandes questes do marxismo, isto , a diferenciao entre classe em si e classe para si. Digamos,

    brevemente, que a segunda refere-se ao estgio em que a classe j tem esclarecida sua misso histrica,

    reconhece-se como classe e empreende ato social e poltico com o intuito de transformar a realidade social e

    superar as relaes de classe. A primeira, por sua vez, refere-se existncia da classe em suas condies

    objetivas, mas ainda incapaz (por diferentes razes) de converter essa condio em movimento histrico. Ao

    se concentrar na classe em si, Braverman tem em mente um quadro da classe trabalhadora tal qual existe, com a forma dada populao trabalhadora pelo processo de acumulao primitiva do capital (BRAVERMAN, 1977, p. 34). O autor americano estava bastante esclarecido dos problemas dessa

    alternativa analtica. Como ele mesmo explica:

    2 Essas categorias (valor, trabalho produtivo e improdutivo) sero discutidas mais adiante em certo detalhe.

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    Esta limitao autoimposta ao contedo objetivo de classe e a omisso do sujeito, receio

    que comprometer irremediavelmente este estudo aos olhos daqueles que flutuam na

    corrente convencional da cincia social. Para eles, por longo hbito e insistente teoria, a

    classe no existe realmente fora de suas manifestaes subjetivas. Classe, status,

    estratificao, e at mesmo o assunto da moda [hobby horse] dos ltimos anos, que foi

    tomado a Marx sem a mnima compreenso de seu significado, alienao tudo isto so

    para a cincia social burguesa artefatos de conscincia que s podem ser estudados na

    medida em que se manifestam nas mentes da populao em foco. Pelo menos duas geraes

    de sociologia acadmica elevaram este enfoque de tal modo categoria de dogma que s

    raramente se sente necessidade de substantiv-lo (BRAVERMAN, 1977 p. 34; 1998, p.

    19)3.

    Como uma espcie de antecipao das crticas que viriam, Braverman sugere uma das marcas mais decisivas

    do marxismo, a de que a realidade opera de maneira independente da conscincia dos homens que vivem

    essa mesma realidade o que no significa que a conscincia no desempenharia qualquer papel. Talvez nosso autor no tenha dedicado palavras suficientes para uma explicao mais acabada dessa questo,

    deixando ao menos aludido que as condies sociais da existncia de uma classe seguem existindo de modo

    independente da elaborao consciente dos indivduos que compem essa classe. Nosso autor explicitou, na

    antecipao da crtica, que para aqueles que flutuam na corrente convencional da cincia social, a classe, o status, a alienao etc. so incompreensveis seno como artefatos de conscincia, coisas que s existem nas mentes dos grupos que compem o objeto da pesquisa sociolgica. Embora no tenha desenvolvido

    suficientemente seu argumento, o autor americano coerente com seus fundamentos e almeja avaliar as

    condies de classe e no os movimentos histricos da classe para si. o que lemos, muitas pginas depois,

    ao afirmar que a existncia de uma classe trabalhadora como tal no depende das diversas formas concretas de trabalho que lhe cabe desempenhar, mas, isto sim, de sua forma social (BRAVERMAN, 1977, p. 347). E completou, pargrafos depois: a variedade de determinadas formas de trabalho pode influir na conscincia, coeso ou atividade econmica e poltica da classe trabalhadora, mas no afeta a existncia dela como

    classe (BRAVERMAN, 1977, p. 347). Era disso que se tratava para o autor nova-iorquino em 1974.

    Braverman no fazia ideia de que seus crticos iriam muito mais longe do que pde antecipar. Como

    comentou ODoherty (2009, p. 5-6), Braverman tipicamente lido e associado a uma forma monocausal e teleolgica da historiografia marxista qual falta nuance histrica, sutileza dialtica e sofisticao terica. As crticas de outra qualidade vieram, primeiro, a partir de uma inclinao gramsciana pelas mos de

    Michael Burawoy e, depois, por leituras da derivadas, mas em um corte mais diverso e, por vezes, avesso ao

    marxismo. Contudo, mesmo essas crticas guardam limitaes. Vejamos.

    Burawoy (1983) no se restringe a Braverman; apresenta um Marx no dialtico, como portador de uma

    descrio do regime fabril restrito ao momento coercitivo. Supe-se que Marx teria visto apenas esse

    momento da produo historicamente determinada. Por diferena, no contemporneo, em que a dependncia

    do trabalho em relao ao capital alegadamente menor, o mtodo no pode ser outro seno a produo

    ideolgica. Essa posio de Burawoy em relao produo a mesma que muitos gramscianos sustentam

    em relao ao Estado, posio segundo a qual em Marx vigeria uma concepo restrita do Estado (COUTINHO, 1996; 2012), estacionado no momento coercitivo. Existem provas, porm, que colocam em

    dvida este ltimo entendimento (PAO CUNHA, 2014), tendo tambm em mente que o modo coercitivo do

    Estado impossvel como a forma poltica normal da sociedade, insuportvel mesmo para a massa das classes mdias (MARX, 2011a, p. 171). Existem provas, ainda, no que tange produo (cf. PAO CUNHA, 2010, p. 310-326), uma vez que Marx demonstrou que no lugar do chicote surge o manual de

    penalidades: um tipo de regulao social do processo de trabalho nesse momento do desenvolvimento da

    produo capitalista que dista de uma mera coero. Dito de outra forma, Marx j apreendia em seu tempo a

    3 As passagens que aparecem com dupla referncia constituem traduo de nossa autoria derivada de cotejamento com a traduo

    para o portugus da edio de 1977.

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    transio da coero mais direta e violenta durante o processo de gnese do capitalismo s formas mais sutis

    de exerccio do poder de direo [Regierungsgewalt] (MARX, 1985, p. 484), na medida em que, inclusive, no evolver da produo capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educao, tradio e hbito, reconhece as exigncias desse modo de produo como leis naturais e evidentes por si mesmas (MARX, 2013, p. 808). Qual a participao das relaes imediatas na produo nesse processo de criao

    do hbito, por exemplo? No est a explcito que o momento da produo no encerra apenas coero

    virulenta?

    Com isso, possvel avaliar que as crticas ao Braverman tambm ecoam sobre Marx. Se as crticas no

    procedem em relao a Marx, o que dizer sobre as que recaem diretamente sobre o autor americano?

    Vejamos:

    [] os problemas bsicos: Braverman assume que os aspectos objetivo e subjetivo do

    processo de trabalho possam ser separados e analisados independentemente um do outro.

    [] seus crticos argumentam que uma compreenso do controle do capital [] no pode

    ser localizado sem a devida ateno aos componentes subjetivos do trabalho

    (BURAWOY, 1985, p. 24) (WILLMOTT, 1990, p. 337).

    preciso esclarecer que Braverman no parece ter assumido que os aspectos objetivos e subjetivos do processo de trabalho podem ser separados e analisados independentemente um do outro, como lemos acima. Vimos antes que nosso autor pretendia tratar da classe em si, isto , como ela surge nas condies da

    produo do capital independente da elaborao consciente que a classe faa dessas condies. A

    determinao bastante objetiva de que a realidade possui movimento prprio, independente da conscincia,

    converte-se, para os crticos de Braverman (e tambm para os de Marx4) em uma separao entre

    objetividade e subjetividade no processo de trabalho. Alis, Braverman seria o ltimo a discordar de que uma

    compreenso do controle do capital no pode ser alcanada sem a ateno devida aos componentes subjetivos do trabalho, como sugerem seus crticos acima. E o que o autor americano tem a dizer diretamente a respeito?

    O captulo seis, denominado A habituao do trabalhador ao modo capitalista de produo, (por acaso?) repleto de indicaes sobre esses processos mediados pela subjetividade, muito prximas, alis, daquela

    considerao marxiana de antes a respeito da formao da classe trabalhadora. Existem muitos outros pontos

    no texto que tambm trazem essa questo para o primeiro plano. Entretanto, fiquemos apenas com o captulo

    seis. O ponto de partida bastante ilustrativo: [...] a habituao dos trabalhadores ao modo capitalista de produo deve ser renovada a cada gerao (BRAVERMAN, 1977, p. 124). E completou:

    [...] a necessidade de ajustar o trabalhador ao trabalho em sua forma capitalista, de superar a

    resistncia natural intensificada pela tecnologia mutvel e alternante, relaes sociais

    antagnicas e a sucesso de geraes, no termina com a organizao cientfica do

    trabalho, mas se torna um aspecto permanente da sociedade capitalista (BRAVERMAN,

    1977, p. 124).

    Como possvel afirmar que a habituao socialmente posta no resultado histrico mediado pela

    subjetividade?

    Braverman estende consideravelmente a anlise sobre o desenvolvimento das pesquisas de inclinaes

    psicolgicas e, depois, sociolgicas. A crise de 1929 fez com que a fbrica aparecesse

    4 Para uma discusso sobre a relao entre objetividade e subjetividade em Marx e resposta aos problemas postos por

    autores dos chamados Estudos Crticos da Gesto e outros mais, ver Bicalho (2014).

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    [...] subitamente no como um sistema de organizao burocrtica formal no modelo

    weberiano, no como um sistema de relaes de grupo informal, como na interpretao de

    Mayo e seus seguidores, mas antes como um sistema de fora, de antagonismos de classe

    (BRAVERMAN, 1977, p. 129).

    Nosso autor considerava que tais pesquisas no foram to aptas no desenvolvimento de medidas

    imediatamente prticas que atendessem s necessidades reais da produo se comparadas ao taylorismo e,

    por isso, tiveram pouca influncia sobre a habituao dos trabalhadores produo do capital. Talvez o autor

    americano tenha subestimado tais influncias, mas sua considerao serve de base para lanar uma questo

    decisiva: Se a adaptao do trabalhador ao modo capitalista de produo deve pouco aos esforos dos manipuladores prticos e ideolgicos, como de fato ela se realiza? (BRAVERMAN, 1977, p. 129). Braverman reconhece na histrica econmica e poltica do mundo capitalista o papel principal no processo de ajustamento, dos conflitos e revoltas que o acompanham (BRAVERMAN, 1977, p. 129) e como poderiam encaminhar conflitos e revoltas sem a mediao da subjetividade? Ao destacar o fordismo, o

    autor nova-iorquino pretende mostrar o carter preponderante no mecnico, no nico, no unidirecional das condies e foras socioeconmicas se comparadas com a manipulao ou bajulao (BRAVERMAN, 1977, p. 129-30) promovida pelos estudos psicolgicos e sociolgicos.

    O ponto central para Braverman que, com o desenvolvimento do fordismo e com o espraiamento dessa

    lgica da produo para virtualmente todas as demais esferas econmicas, ilustra-se a

    [...] regra de que a classe trabalhadora est progressivamente submetida ao modo capitalista

    de produo, e s formas sucessivas que ele assume, apenas medida que o modo

    capitalista de produo conquista e destri todas as demais formas de organizao do

    trabalho, e com elas, todas as alternativas para a populao trabalhadora

    (BRAVERMAN, 1977, p. 132, grifo do autor).

    Em outros termos, trata-se de tornar objetivamente todos os outros meios de vida impossveis (BRAVERMAN, 1977, p. 133).

    Essa constatao, entretanto, no ndice de desconsiderao dos aspectos subjetivos no processo de

    trabalho, como seus crticos sugeriram (a despeito do fato de haver alguma perda na excessiva concentrao

    nesses padres produtivos, como taylorismo, fordismo). Como o prprio Braverman (1977, p. 133) explica:

    Se as mnimas manipulaes dos departamentos de pessoal, a Psicologia e Sociologia da

    indstria no desempenharam papel mais importante na habituao do trabalhador ao

    trabalho, consequentemente isto no significa que o ajustamento do trabalhador est

    isento de elementos manipulativos. Pelo contrrio, como em todo funcionamento do

    sistema capitalista, a manipulao vem em primeiro lugar e a coero mantida na reserva

    exceto que esta manipulao o produto de foras econmicas poderosas, polticas de

    emprego e barganha, e a atuao e evoluo ntimas do prprio sistema capitalista, e no

    primacialmente dos hbeis esquemas de peritos em relaes trabalhistas.

    Seja pela considerao do papel principal das condies e foras socioeconmicas, seja pela indicao do

    carter progressivamente manipulativo do capitalismo com vistas ao ajustamento, isto , constituio do hbito, ambos os movimentos (complementares, diga-se de passagem) so impensveis sem a mediao da

    subjetividade dentro e fora dos muros que cercam a produo. um devaneio considerar o contrrio. E, como possvel ver, Braverman (assim como Marx) no recusou, como no poderia mesmo recusar, a

    mediao da subjetividade. Para alm da constatao de que nosso autor no desenvolveu razoavelmente tal

    problema de grande magnitude, poderamos questionar se a histria real autoriza uma desconsiderao to

    radical dos problemas da conscincia de classe. Poderamos, ainda, perguntar se Braverman no teria

    subestimado demasiadamente os efeitos dos estudos manipulativos na produo do valor e fora dela, em

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    esferas de domnio do capital comercial, financeiro, ou mesmo para alm do complexo econmico imediato.

    Outra coisa, porm, afirmar que Braverman teria desconsiderado por inteiro o momento subjetivo no

    processo de trabalho, que teria cindido tal momento de seu necessrio complemento, o momento objetivo.

    Parece que, desse ngulo, aquela derivao (os chamados Estudos Crticos da Gesto), engendrada tendo por

    base essa considerao sobre Braverman, possui um problema de fundamento. No se deve questionar

    Braverman por meio de falsos problemas.

    Ao final dessa considerao sobre a subjetividade, possvel ver as mazelas que esses mal-entendidos

    histricos provocam e que transcendem os limites de Trabalho e capital monopolista. Tenhamos em mente,

    por exemplo, a to frequentemente evocada distino entre mecanismos de controle objetivo e subjetivo.

    Segundo se conta, o capitalismo de estgio anterior se fundou no controle objetivo do trabalho e, no

    posterior, no controle subjetivo. Com frequncia, tambm se ligam os pontos, associando taylorismo a

    controle objetivo e os padres posteriores a controle subjetivo. Ora, de supor que os trabalhadores na virada

    do sculo XIX para o XX vendiam-se sem suas cabeas! Basta uma leitura dos Princpios de administrao

    cientfica, de Taylor, para apreciar o momento subjetivo; Schmidt que o diga (cf. TAYLOR, 1953, p. 44-47). Qualquer explicao que obstrua as conexes entre a objetividade e a subjetividade no movimento

    concreto-prtico no uma explicao. No to fcil ignorar, por exemplo, que a apropriao da vontade alheia o pressuposto da relao de dominao (MARX, 2011b, p. 411). Nem mesmo nas formas mais coercitivamente explcitas de dominao a subjetividade est ausente. Ela momento ineliminvel do

    movimento prtico dos homens. O captulo seis de Braverman prova que ele tinha isso muito bem claro, a

    despeito das leituras de seus crticos ou dos limites intrnsecos no tratamento do tema5.

    Funo de direo na produo do valor

    Braverman tambm abre outras questes importantes, largamente deixadas em segundo plano pela

    elaborao mais desenvolvida na grande rea dos chamados Estudos Organizacionais. Trata-se da lgica do

    valor e seus condicionantes sobre a vida social, inclusive sobre a funo de direo na produo econmica,

    isto , o trabalho de administrar.

    Uma das coisas mais interessantes o destaque que distingue a anlise de Braverman daquelas mais abstratas

    como, por exemplo, a demarcao do trabalho do administrador como tomada de decises, resoluo de

    problemas ou, ainda, como a realizao das etapas de um ciclo administrativo, muito bem conhecido por

    todos que passaram pelos cursos de Administrao. O autor americano, munido de seu profundo sentido de

    realidade, destaca que o problema tal como se apresenta aos homens que administram a indstria, o comrcio e as finanas muito diferente do problema como aparece nos mundos acadmicos ou

    jornalsticos (BRAVERMAN, 1977, p. 41). E completou:

    [...] o administrador est habituado a conduzir processos de trabalho num ambiente [setting]

    de antagonismo social e, de fato, jamais o conheceu de outro modo. Os gerentes de empresa

    no tm nem esperana nem expectativa de alterar essa circunstncia por um nico golpe;

    ao contrrio, eles esto ocupados com a melhoria apenas quando interfere no

    funcionamento ordenado de suas fbricas, escritrios, armazns e lojas. Para o gerente

    corporativo isso um problema nos custos e nos controles, no na humanizao do

    trabalho. Exige sua ateno porque manifesta-se no absentesmo, na rotatividade de

    pessoal [turnover] e nos nveis de produtividade que no se conformam com seus clculos e

    expectativas. As solues que aceitaro so apenas aquelas que promovem melhorias nos

    5 Sem mencionar o captulo 1, sobre Trabalho e fora de trabalho, que revela o momento subjetivo no trabalho humano como algo

    consciente e proposital (BRAVERMAN, 1977, p. 50) e, logo, o lugar decisivo da subjetividade em todo e qualquer processo de

    trabalho humano.

  • Braverman, subjetividade e funo de direo na produo do valor Elcemir Pao Cunha

    Cad. EBAPE.BR, v. 12, n 4, apresentao, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014. p. 747755

    custos do trabalho e nas posies competitivas nos mercados domstico e mundial

    (BRAVERMAN, 1977, p. 41; 1998, p. 25).

    Demarcar o trabalho do administrador que opera na dimenso econmica como atividade que se resolve no

    interior do antagonismo social tem a vantagem de explicitar de maneira concreta, no abstrata, os reais

    imperativos que nascem das prprias relaes sociais de produo capitalistas. Desse modo se vai raiz do

    problema e, para lembrar um ilustre florentino a respeito de outra ordem de questes, verit effecttuale

    della cosa. Braverman abre, assim como outros autores importantes que remontam a Marx, a possibilidade e

    a necessidade de considerar tal atividade de direo a partir da lgica do valor.

    Considerando que seria impossvel explicitar sequer as nuances centrais dessa lgica, no seria um grande

    desservio determinar o valor como tempo de trabalho socialmente necessrio, sob condies histricas

    particulares, produo das mercadorias, sendo elas prprias forma de valor. Escreveu nosso autor que

    todos os produtos do trabalho na produo capitalista carregam as marcas invisveis da propriedade e que, para alm de sua forma fsica, h sua forma social como valor (BRAVERMAN, 1977, p. 256, grifo do autor). Esse ponto de partida de Braverman, de uma teoria do valor-trabalho (BRAVERMAN, 1977, p. 54), ilumina o propsito da produo de mercadorias, isto , um processo para a expanso do capital (BRAVERMAN, 1977, p. 55-56; 1998, p. 36). Como a produo capitalista no mero processo de trabalho

    na feitura de coisas teis, j que tambm processo de criao de valor, de valorizao, o movimento dessa

    unidade respeita a trama posta pelo valor de troca que domina seu pressuposto objetivo, o valor de uso. Essa

    marca central implica, para Braverman (1977, p. 56; 1998, p. 37), compreender a maneira pela qual o processo de trabalho dominado e modulado pela acumulao do capital, isto , compreender como o valor domina as necessidades reais dos homens. Braverman (1977, p. 217) apreende a relao entre o movimento do valor e o movimento do trabalho, inspirado na exposio de Marx sobre a lei geral da acumulao capitalista, porm importante dizer conforme desenvolvida por Baran e Sweezy em Capital monopolista. Esses condicionantes da produo do valor podem ser apreendidos, seguindo Braverman, nas

    esferas imediatamente econmicas e para alm delas. O progressivo movimento do capital, escreveu

    Braverman (1977, p. 218):

    [...] reorganizou totalmente a sociedade, e ao criar a nova distribuio do trabalho criou a

    vida social amplamente diferente daquela de apenas setenta ou oitenta anos passados. E esta

    incansvel e insacivel atividade do capital continua a transformar a vida social quase que

    diariamente diante de nossos olhos, sem cuidar em que ao assim fazer est criando uma

    situao na qual a vida social torna-se cada vez mais impossvel.

    Descontando o tom apocalptico ao final da passagem, o ponto central que o excedente do trabalho distribudo em novas formas de produo ou no produo incorreu no fato de que a estrutura ocupacional e portanto a classe trabalhadora foi transformada (BRAVERMAN, 1977, p. 218). Com palavras mais incisivas, explicou Braverman que a fora de trabalho, como a parte viva do capital, sua estrutura ocupacional, modos de trabalho e distribuio pelas atividades da sociedade [...] so determinados pelo

    processo em curso de acumulao do capital. Essa fora, completou, captada, liberada, arremessada pelas diversas partes da maquinaria social e expelida por outras, no de acordo com sua prpria vontade ou

    atividade prpria, mas de acordo com os movimentos do capital (BRAVERMAN, 1977, p. 320). Ou, ainda, uma sociedade que se baseia na forma do valor submete mais e mais de sua populao trabalhadora s complexas ramificaes das exigncias da propriedade do valor (BRAVERMAN, 1977, p. 258).

    Se existe nexo entre o movimento do valor e o movimento do trabalho, a atividade de direo exercida

    frequentemente por administradores (atividade de direo) na produo do valor (ou mesmo fora dela)

    tambm deve receber condicionamentos complexos. Isso procedente porque, por um lado, o motivo que impulsiona e a finalidade que determina o processo de produo capitalista a maior autovalorizao

    possvel do capital, isto , a maior produo possvel de mais-valor e, portanto, a mxima explorao

    possvel da fora de trabalho pelo capitalista (MARX, 2013, p. 406). Por outro lado:

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    O comando do capitalista no apenas uma funo especfica, proveniente da natureza do

    processo social de trabalho e, portanto, peculiar a esse processo, mas, ao mesmo tempo,

    uma funo de explorao de um processo social de trabalho, sendo, por isso, determinada

    pelo antagonismo inevitvel entre o explorador e a matria-prima de sua explorao

    (MARX, 2013, p. 406).

    Agora ele [o capitalista individual ou coletivo, depois do crescimento do seu capital]

    transfere a funo de superviso direta e contnua dos trabalhadores individuais e dos

    grupos de trabalhadores a uma espcie particular de assalariados [...] que exeram o

    comando durante o processo de trabalho em nome do capital (MARX, 2013, p. 407).

    Ao mesmo tempo em que a atividade de direo realizada pelo administrador efetivada da tica do capital,

    esses homens e mulheres no so outra coisa seno trabalhadores assalariados. Braverman desenvolve esse

    ponto de partida considerando as alteraes provocadas na fase monopolista do capitalismo. verdade que

    desenvolve mais o primeiro lado da equao (o motivo e a finalidade do processo), deixando apenas algumas

    indicaes sobre o carter assalariado do administrador o que tentaremos desenvolver adiante , porque tendeu a obscurecer o problema pela total incluso dessa atividade na categoria do trabalho improdutivo.

    No obstante, trata-se de apreender o considervel crescimento na escala de operaes gerenciais (BRAVERMAN, 1977, p. 222). Disso resulta que:

    A funo especial de administrao exercida no mais por um nico gerente, nem mesmo

    por uma equipe de gerentes, mas por uma organizao de trabalhadores sob o controle

    de gerentes, assistentes de gerentes, supervisores etc. Assim, as relaes de compra e

    venda da fora de trabalho, e, em consequncia, de trabalho alienado, tornou-se parte

    do aparelho gerencial em si mesmo (BRAVERMAN, 1977, p. 228, grifo do autor).

    As anlises de Braverman so originais porque buscam, como dissemos antes, abarcar os condicionantes

    gerais da lgica do valor inclusive em esferas no imediatamente produtivas, no industriais, por assim

    dizer. Ele se ocupa em larga medida dos efeitos sobre os trabalhadores dos escritrios, inclusive com a

    gerncia do escritrio como um produto do perodo monopolista do capitalismo (BRAVERMAN, 1977, p. 259). Um dos elementos importantes dessa anlise a distino entre trabalho produtivo e improdutivo,

    questo qual Braverman dedicou um captulo.

    Em termos sintticos, o autor americano aceita, e com razo, a posio de Marx de que o trabalho produtivo no capitalismo aquele que produz valor de mercadoria [commodity value], e, por conseguinte, mais-

    valor6 para o capital. Isto exclui todo o trabalho que no trocado por capital (BRAVERMAN, 1977, p.

    348; 1998, p. 285). Com o desenvolvimento do capitalismo, vrias outras modalidades do trabalho caem na

    categoria do trabalhador produtivo. V-se que a transformao do trabalho improdutivo em trabalho produtivo que , para os fins do capitalista de extrair mais-valor, o prprio processo da criao da sociedade

    capitalista (BRAVERMAN, 1977, p. 249; 1998, p. 286). Onde quer que se desenvolva o capitalismo, mais difcil a existncia de trabalhos improdutivos fora do domnio do capital. Isso significa que nem todo

    trabalho que cai sob seu domnio converte-se necessariamente em trabalho produtivo, porque isso depende

    do momento da produo total em que tal trabalho se realiza. Por isso, Braverman (1977, p. 351, grifo do

    autor) escreveu que enquanto o trabalho improdutivo declinou fora do alcance do capital, aumentou dentro do seu mbito. Isso o leva importante distino entre o que ele denomina funes adicionais, alm da produo imediata do valor: realizao do valor e apropriao do valor. Enquanto a primeira se

    liga circulao das mercadorias no mercado, a segunda expressa a luta de capitais em concorrncia pelo

    6 Braverman utiliza a expresso surplus value, que correspondente a mais-valia ou, melhor ainda, a mais-valor, conforme a nova

    edio de O capital, publicada pela editora Boitempo em 2013. A traduo de Trabalho e capital monopolista optou por valor

    excedente (com exceo do ttulo do captulo 11, onde se l mais-valia e trabalho excedente), mas isso retira o trao decisivo do

    processo de valorizao que o termo consagrado reserva.

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    valor, e sua transferncia e redistribuio de acordo com exigncias individuais, especulaes e os servios do capital sob a forma de crdito etc. (BRAVERMAN, 1977, p. 351). Essas funes, explica Braverman (1977, p. 350), mobilizam enormes volumes de trabalho que, embora necessrio para o modo capitalista de produo, em si improdutivo, visto que no amplia o valor ou o mais-valor. Nosso autor, aqui, busca seguir Marx (2013, p. 238), para quem a circulao ou a troca de mercadorias no cria valor nenhum, lembrando, porm, que o capital no pode ter origem na circulao, tampouco pode no ter origem na circulao. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, no ter origem nela (MARX, 2013, p. 240), isto , o processo total da produo do capital tem na circulao das mercadorias ponto de passagem necessrio,

    mas esse momento do movimento total no adiciona novo valor.

    O trabalho realizado, pois, no escritrio trabalho improdutivo, uma vez que no cria novo valor e est mais

    ligado realizao e apropriao do valor j criado. A despeito disso, o mercado de trabalho para as duas principais variedades de trabalhadores, escritrio e fbrica, comea a perder algumas de suas distines de

    estratificao social, instruo, famlia e coisas semelhantes (BRAVERMAN, 1977, p. 298). Trata-se, e este o ponto, da criao de um vasto proletariado sob forma nova (BRAVERMAN, 1977, p. 299-300).

    A atividade do administrador se confirma tanto na produo imediata como naquilo que Braverman chamou

    de realizao e apropriao que, no obstante, ocorrem tanto distantes do processo de produo das

    mercadorias como no interior da prpria produo imediata. Como apreender esse conjunto, produtiva ou

    improdutivamente? E os efeitos, tambm so muito semelhantes? Braverman pouco desenvolve, diretamente,

    esses dois pontos, porm, de modo comparativo, confere nfase ao segundo. esse desenvolvimento,

    entretanto, que o permite colocar as questes importantes. Com efeito, Braverman (1977, p. 352-353)

    explicou que:

    Nas primitivas empresas capitalistas o trabalho improdutivo empregado em pequenas

    quantidades era, de modo geral, um estrato privilegiado, intimamente associado com o

    empregador e detentor de favores especiais. Os que trabalhavam com ele na realizao de

    vendas, contabilidade, funes especulativas e manipulativas representavam para ele scios

    na guarda e expanso de seu capital enquanto capital, distintamente daqueles na produo,

    que representavam seu capital apenas em sua forma temporria como trabalho. [...].

    Aqueles que ajudavam o capitalista na circulao de seu capital, na realizao do seu lucro,

    e na administrao do seu trabalho, obtinham privilgios, segurana e status na funo

    exercida, e assim, ser um trabalhador improdutivo era em si uma felicidade que contrastava

    com a desgraa do trabalhador na produo.

    Braverman informa diretamente que as atividades tpicas de escritrio (vendas, contabilidade, especulao)

    surgem como trabalho improdutivo. Em meio a essas atividades, o autor sugere, ainda, as atividades

    manipulativas as quais, como vimos antes no tratamento da questo da subjetividade, expressam o ato

    administrativo muito ligado direo da fora de trabalho. Sob esse ponto de vista, o trabalho do

    administrador, mesmo aquele ligado produo imediata, tambm seria trabalho improdutivo? Aguardemos

    momento oportuno para retomar essa questo. O importante destacar que muitas mudanas ocorreram no

    modo de produo capitalista de tal maneira que o processo de trabalho produtivo tornou-se, mais do que nunca, um processo coletivo (BRAVERMAN, 1977, p. 353) e o resultado do processo (o conjunto das mercadorias) no pode ser atribudo a qualquer trabalhador singular. Entretanto, Braverman (1977, p. 353)

    destaca com maior nfase que do lado do trabalho improdutivo foi criada uma massa que partilha da sujeio e opresso que caracteriza as vidas dos trabalhadores produtivos. Assim, o processo de proletarizao assume escala universal para o modo de produo capitalista:

    As funes improdutivas, tendo evoludo de ocupaes especiais e privilegiadas

    intimamente associadas com o capital nas divises da atividade empresarial ou mesmo nas

    indstrias capitalistas distintas e completas em si mesmas, produziram agora seus

    exrcitos de assalariados cujas condies so em geral semelhantes s daqueles exrcitos de

    trabalho organizado na produo (BRAVERMAN, 1977, p. 353).

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    Nessas funes improdutivas, como vimos, esto includas as atividades de realizao e apropriao. Tudo

    indica que, para Braverman, a atividade do administrador, em seu bojo, concentra-se nessas funes

    improdutivas. Mesmo o exerccio das funes manipulativas na produo imediata determina tal atividade

    como trabalho improdutivo, embora Braverman, como dito antes, no tenha desenvolvido suficientemente

    esse aspecto importante.

    Isso se explica pelo fato de que nosso autor estava concentrado em explicitar os efeitos da lgica do valor

    sobre os trabalhadores produtivos e, inclusive, sobre os trabalhadores de escritrio, circunscritos sob o

    domnio do capital comercial (realizao) e financeiro (apropriao). Muito embora restem diferenas na

    forma concreta desses trabalhos comparados ao trabalho produtivo direto no processo de valorizao que implica o grau de qualificao, nveis salariais etc. , o ponto que se destaca que cada vez mais o trabalho realizado no escritrio progressivamente igualado s formas simples do assim chamado trabalho manual de colarinho azul (BRAVERMAN, 1977, p. 276; 1998, p. 225), isto , no so mais procedentes as distines de fundamento entre o trabalho manual e o trabalho de escritrio porque este tendencialmente

    reduzido cada vez mais s formas simples de trabalho. Trata-se, como antes, no da identificao de uma

    atribuio social tpica da classe mdia, mas da proletarizao dessas funes desempenhadas sob o domnio

    do capital. Dessa maneira:

    O trabalho improdutivo contratado pelo capitalista para ajud-lo na realizao ou

    apropriao do mais-valor , ao ver de Marx, semelhante ao trabalho produtivo em todos os

    sentidos, exceto um: ele no produz valor e mais-valor, e por conseguinte aumenta no

    como causa, mas muito pelo contrrio, como consequncia da expanso do mais-valor

    (BRAVERMAN, 1977, p. 357; 1998, p. 292).

    O trabalho improdutivo do administrador nesse contexto do escritrio, no interior da prpria produo

    imediata, informou-nos Braverman, no passa ileso a esse processo de proletarizao. A relao, posta pelo

    autor, de progressiva identificao (guardadas as diferenas na forma concreta) entre o processo de trabalho

    administrativo e o processo de trabalho na produo imediata do valor implica uma relao de espelhamento:

    A gerncia veio a ser administrao, que um processo de trabalho efetuado para fins

    de controle no seio da empresa, e efetuado, alm do mais, como um processo de trabalho

    rigorosamente anlogo ao processo da produo, embora ele no produza artigo algum que

    no seja a operao e coordenao da empresa.

    Desse ponto em diante, examinar a gerncia significa tambm examinar esse processo de

    trabalho, que contm as mesmas relaes antagnicas contidas no processo da produo

    (BRAVERMAN, 1977, p. 228).

    So processos anlogos, porm cindidos, segundo o entendimento de Braverman. Embora demarque o

    espelhamento (de identidade por vezes exagerada) e o antagonismo que se manifesta, ainda, no trabalho da

    gerncia, Braverman separa a produo do valor, de um lado, e o processo de trabalho da coordenao dessa

    produo, de outro. Essa uma dificuldade que teremos de retomar adiante. Por agora, basta-nos reforar o

    espelhamento posto pelo autor a partir de sua constatao dada pela proletarizao, tambm, do trabalho

    gerencial:

    Em todas essas atividades, o desenvolvimento do capital transformou a funo operante do

    capitalista de uma atividade pessoal a um trabalho de uma multido de pessoas. A funo

    do capitalista representar o capital e ampli-lo. Isso feito ou pelo controle da produo

    do mais-valor nas indstrias e atividades produtivas, ou pela apropriao dele de fora

    daquelas indstrias e atividades. O capitalista industrial, o fabricante, um exemplo do

    primeiro; o banqueiro exemplifica o segundo. Essas funes gerenciais de controle e

    apropriao tornaram-se por si mesmas processos de trabalho. So conduzidas pelo capital

    do mesmo modo como ele realiza os processos de trabalho da produo: com trabalho

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    assalariado comprado em larga escala no mercado de trabalho e organizado em imensas

    mquinas de produo de acordo com os mesmos princpios que governam a organizao

    do trabalho na fbrica (BRAVERMAN, 1977, p. 255-256; 1998, p. 208).

    Ao reforar o espelhamento explicita-se o carter assalariado dos trabalhadores que realizam essas funes

    gerenciais, cujo processo de trabalho , alm da realizao e da apropriao, controle na produo imediata

    do mais-valor. Esse trabalho assalariado, porm improdutivo, que desempenha o controle, sofre dos mesmos

    efeitos que os trabalhadores produtivos e que os tambm improdutivos que se situam fora da produo

    imediata do valor. Ao passo que ajuda a revelar que o trabalho da administrao a representao do capital

    no interesse condicionante de maior valorizao possvel, mostra, ainda, que esse trabalho improdutivo cai

    na categoria de trabalho explorado, j que tambm constitui capital varivel junto a todos os demais

    trabalhos assalariados aglutinados e necessrios produo do valor. Se todos esses trabalhos so

    amalgamados em um trabalho coletivo imprescindvel produo do valor, como seriam improdutivos de

    modo pleno? Essa dificuldade advm da abstrao relativamente forada que Braverman se v obrigado a

    fazer para traar o espelhamento entre o processo de produo do valor e o processo de trabalho da gerncia

    quando, no movimento da realidade concreta, essa desconexo no existe. Vejamos isso, enfim, mais de

    perto.

    Alguns pontos so importantes, mas no inteiramente suficientes, dados os limites das pginas.

    O primeiro que a funo de direo, a administrao, no se realiza to somente no escritrio. Na verdade,

    a funo de direo assume muitas formas e manifesta-se em diferentes pontos do conjunto organizado da

    produo, isto , no interior do trabalhador coletivo. O engenheiro, por exemplo, administra, desempenha a

    funo de direo sobre o trabalho. At mesmo alguma parte de seu trabalho poderia ser considerada

    administrativa, no sentido mais restrito, como trabalho burocrtico. O trabalho do engenheiro no apenas

    numrico e burocrtico, mas, tambm, social, manipulativo como sugeriu Braverman. Muitos outros tipos de

    trabalho podem apresentar caractersticas semelhantes a essas, a depender das circunstncias singulares em

    anlise. Importa destacar que existe, portanto, um risco na abstrao radical do processo de trabalho

    gerencial como algo desconectado por completo do processo da produo do valor. H uma passagem de

    Marx que Braverman possivelmente no conhecia e que muito esclarecedora a esse respeito. Nela, Marx

    (1988, p. 443-444; 1969, p. 65-66, grifo do autor) diz:

    Com o desenvolvimento da subsuno real do trabalho sob o capital ou o modo de

    produo especificamente capitalista no o trabalhador individual, mas uma

    capacidade de trabalho socialmente combinada que mais e mais o executor real

    [wirkliche Funktionr] do processo de trabalho em sua totalidade, e j que diferentes

    capacidades de trabalho as quais cooperam conjuntamente para formar uma mquina

    produtiva total contribui de diferentes meios para o processo direto pelo qual a mercadoria,

    ou, mais apropriadamente aqui, o produto, formado, com um trabalhando mais com suas

    mos, outro mais com seu crebro, como gerente, engenheiro ou tcnico, etc., outro como

    supervisor, um terceiro diretamente como um trabalhador manual, ou ainda como mero

    servente, mais e mais funes da capacidade de trabalho so includas no imediato

    conceito de trabalho produtivo, diretamente explorados pelo capital e subordinados em

    geral ao seu processo de valorizao e de produo.

    Quer dizer, quanto mais se desenvolve o modo de produo capitalista mais decisivo se torna o trabalhador

    coletivo. Braverman capturou esse ponto, sem dvida. O problema est em no apreender que a funo de

    direo, ou ao menos parte considervel dela, no est fora do trabalho combinado que produz valor, como

    pareceu supor Braverman. E precisamente o fato dessa funo se realizar em meio s atividades produtivas

    na criao da mercadoria o que a torna uma forma de trabalho produtivo. Entretanto, a distino que

    Braverman realiza til para a constatao de que nem todo trabalho que se inclui no trabalhador coletivo

    necessariamente produtivo. Basta, para isso, ter em mente o escritrio em que se confirmam as funes de

    realizao e apropriao no interior da prpria produo imediata e que tambm requerem uma funo

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    particular de direo. O trabalhador coletivo, na verdade, formado por trabalhos improdutivos e produtivos

    nos quais a funo de direo se manifesta em distintos pontos, tanto produtiva como improdutivamente,

    cortando de modo considervel o amplo conjunto. Talvez seja til, pois, fazer distino entre a parcela da

    funo de direo que cai na categoria do trabalho produtivo e aquela que permanece ligada realizao e

    apropriao (na classificao de Braverman). Desse modo, obtemos a vantagem de avaliar que parte

    considervel desse trabalho gerencial , ao mesmo tempo, trabalho assalariado e tambm produtivo, porque

    no s participa (como os trabalhadores assalariados improdutivos) do trabalho coletivo como, ainda,

    adiciona valor, como a passagem de Marx acima explicita. Disso resulta que no devemos abstrair por inteiro

    o processo de trabalho que se confirma como comando sobre o trabalho em relao ao processo global de

    valorizao porque parte relevante do trabalho de administrao explorada, ainda, de modo produtivo nesse

    processo.

    Essas consideraes so importantes para destacar que o salrio que remunera essa fora de trabalho especial

    se d fora da ordem dos chamados ganhos empresariais. Desse modo, no se deve confundir o trabalho que realiza a funo de direo com capital, o que faria com que perdssemos de vista o carter produtivo de

    parte do trabalho gerencial, sem mencionar seu carter antagnico efetivo:

    O trabalho de superintendncia e gerncia erigido como tal a partir do antagonismo, da

    supremacia do capital sobre o trabalho e sendo, assim, comum a todos os modos de

    produo baseados nas contradies de classe como o modo de produo capitalista,

    conectado direta e inseparavelmente, tambm sob o sistema capitalista, com as funes

    produtivas as quais todo trabalho social combinado atribui aos indivduos como suas tarefas

    especiais. Os salrios de um epitropos, ou rgisseur como era chamado na Frana feudal,

    so inteiramente divorciados do lucro e assumem a forma de salrios para trabalho

    qualificado sempre que a atividade operada sobre uma escala suficientemente ampla para

    garantir o pagamento de tal MANAGER, embora nossos capitalistas industriais estejam

    longe de atender aos assuntos do Estado ou dedicados ao estudo da filosofia (MARX,

    1998, p. 384).

    A funo de direo (superintendncia, gesto) no modo de produo capitalista no nasce simplesmente por

    efeito do trabalho combinado, mas, antes, em razo do carter antagnico do processo. Com isso, destacamos

    que, independente do carter produtivo ou improdutivo, o trabalho de homens e mulheres no desempenho da

    funo de direo cai na categoria do trabalho explorado e sofrem efeitos semelhantes, os quais marcaram a

    longa histria de lutas dos trabalhadores na ponta do processo de produo do valor, como bem notou

    Braverman.

    Contudo, aqui, tambm se revela uma contradio importante que relativamente escapou ao autor nova-

    iorquino. Ao passo que so trabalho explorado como componentes do trabalhador coletivo que se realiza de

    modo estranhado sob o domnio do capital, representam, em grande parte, o interesse do capital de maior

    valorizao possvel. claro que o trabalho de explorar distinto do trabalho explorado, mas os dois

    aspectos se manifestam em conjunto na funo de direo que se realiza diretamente como trabalho

    produtivo no processo de valorizao. Trata-se do movimento complexo do trabalho de explorar exercitado

    pelo trabalho explorado, uma forma diretamente contraditria de exerccio da dominao pela prpria classe

    dominada sobre ela mesma; ou, ao menos, exercida por uma frao dominante cada vez mais dominada da

    classe dominada.

    Esta ltima constatao acerca do movimento complexo ajuda a trazer de volta o problema da subjetividade

    que abordamos antes, e tambm serve de encaminhamento para o final dessas curtas consideraes. Ora, no

    geraria qualquer espanto considerar que o processo de formao do hbito na classe trabalhadora abarca,

    ainda, sua frao que exercita o trabalho de explorar. No factvel, aqui, um longo desenvolvimento. Para

    nossos intentos, basta destacar que as variadas individualidades que desempenham as funes de direo

    como trabalho assalariado (produtivo ou improdutivo) foram recrutadas em maior parte na prpria classe que

    vive do trabalho, pois, do contrrio, no precisariam vender sua fora de trabalho para viver. Essa frao

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    teve, ainda, de ser habituada ao exerccio da funo, posio social subjetivamente elaborada que da

    deriva. Sua habituao, no entanto, comporta o processo de identificao com os interesses do capital; algo

    necessrio para o exerccio da prpria funo. A condio de pertencer de modo objetivo classe

    trabalhadora no se reflete de modo ideal, isto , como membros da classe do trabalho, mas como algo

    puramente externo, bastante diferente. A prpria prtica concreta dessa funo se encarrega de criar as

    condies bsicas que emperram o autorreconhecimento como frao da classe trabalhadora ou ao menos

    como frao dominante da classe dominada. Todavia, essa habituao certamente no seria completa sem a

    participao tambm da educao formal nos bancos escolares, sobretudo nos cursos universitrios de

    administrao em que a chamada profisso considerada no s diferente, mas, ainda, apresentada como

    oposta ao trabalho. Essa oposio, no entanto, tomada como no contraditria, isto , no se revela a raiz

    da questo. Em suma, no se mostra que essa oposio dada pelo carter antagnico do processo de

    produo que pe parcelas da prpria classe do trabalho em relao contraditria consigo mesma.

    Subjetivamente, essa contradio no se mostra pronta. Trata-se da contradio em movimento na qual o

    trabalho explorado tambm se realiza como trabalho de explorar; expresso desenvolvida da concorrncia no

    interior da prpria classe do trabalho.

    Por fim, cabe dizer que esses pontos no tm a menor pretenso de forar uma crtica a Braverman, mas de

    apresentar algum desenvolvimento possvel a partir das questes que ele mesmo abriu ao longo da exposio

    de Trabalho e capital monopolista. E, se podemos promover algum andamento das questes, deve-se

    qualidade do material que Braverman legou a pelo menos duas ou trs geraes de pesquisadores inquietados

    com a crtica e a transformao da sociedade para alm dos limites da pr-histria da humanidade.

    *

    Nesse sentido, os trabalhos que compem esta edio comemorativa aos 40 anos da publicao de Trabalho

    e capital monopolista tambm exploram diferentes questes abertas por Braverman, inclusive, elaboram

    anlises crticas sobre diferentes pontos do texto ou at adotam uma literatura bastante diversa em relao

    aos pilares que o autor norte-americano sustentou.

    O artigo que abre esta edio, assinado por Fabiane Santana Previtali e Clson Csar Fagiani, intitulado

    Organizao e controle do trabalho no capitalismo contemporneo: a relevncia de Braverman. O texto

    prope uma revisita s teses centrais do livro seminal de Braverman, buscando analisar a problemtica

    introduo das inovaes tcnicas no estgio de desenvolvimento do capitalismo no sculo XXI. Os autores

    apresentam consideraes que ajudam a revelar a intensificao, a flexibilizao e a precarizao das

    condies de trabalho sob a celebrao contempornea acerca da qualificao e recombinao do trabalho

    mental e manual.

    Na esteira dessas questes que tocam a precarizao do trabalho, o segundo artigo, de Maria Beatriz

    Rodrigues, intitulado Trajetrias de vida e de trabalho flexveis: o processo de trabalho ps-Braverman,

    busca apresentar as alteraes promovidas no capitalismo a partir da dcada de 1980 e, entre elas, o processo

    de flexibilizao como parte do desenvolvimento do capitalismo em sua fase ps-fordista. Captura, a partir

    dos casos italiano e brasileiro, os complexos efeitos da flexibilizao ainda em operao sobre as condies

    de vida e de trabalho, incluindo os impactos sobre o potencial de mobilizao de classe dos trabalhadores.

    O problema das classes sociais no capitalismo o tema do terceiro artigo, Revisiting the issue of class

    structure in Labor and monopoly capital, contribuio internacional assinada por Bruno Tinel. Alm da

    retomada dessa problemtica central que corta todo o livro de Braverman, o texto aponta determinados

    enlaces no resolvidos pelo autor nova-iorquino a respeito da polarizao de classes no desenrolar do

    desenvolvimento do capitalismo. Entre a polarizao de classes e a variabilidade no espectro da estrutura de

    classes, Tinel situa as tendncias e contratendncias identificadas por Braverman como muito mais incertas

    do que pde sugerir o prprio autor de Trabalho e capital monopolista.

    O debate sobre as classes sociais nunca seria explicitado suficientemente sem a atuao do Estado capitalista.

    O artigo Braverman, o Estado e a administrao consensual, de Claudio Roberto Marques Gurgel, aborda os desdobramentos do papel do Estado a partir de Braverman, os quais culminam em novas formas de

  • Braverman, subjetividade e funo de direo na produo do valor Elcemir Pao Cunha

    Cad. EBAPE.BR, v. 12, n 4, apresentao, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014. p. 754755

    atuao estatal por mediao das crises dos anos de 1970-80 e da crise de 2008. A pesquisa bibliogrfica e os

    dados secundrios sugerem que, nessa nova fase de atuao estatal, minguam as fronteiras entre o pblico e o

    privado (administrao pblica consensual) e fortalece-se o processo de mercantilizao de outras dimenses

    sociais, criando as condies para um Estado servidor plenamente compatvel com o movimento

    gerencialista.

    O quinto artigo desta edio especial assinado por Eduardo Sartelli e Marina Kabat, constituindo outra

    contribuio internacional, intitulada Where did Braverman go wrong? A Marxist response to the politicist

    critiques. Ele traz o instigante argumento de que as deficincias da elaborao de Braverman sobre o

    processo de trabalho podem ser encontradas no em seus fundamentos marxistas, mas por ter renunciado

    propriamente a tais fundamentos, sobretudo s categorias marxistas (cooperao simples, manufatura e

    grande indstria) em favor de conceitos regulacionistas (taylorismo, fordismo e toyotismo). Em defesa da

    superioridade das categorias marxistas para a compreenso dos conflitos no processo capitalista de trabalho,

    o texto enfrenta criticamente as posies politicistas de David Montgomery e Michael Burawoy, dado que

    tm dificuldades na apreenso do momento da produo do valor como despotismo do capital e

    supervalorizam tal momento como se fosse aberto s iniciativas tanto do capital como dos trabalhadores. O

    ngulo central que o processo de trabalho no imediatamente poltico, como sugerem as posies

    politicistas. As foras decisivas so tcnicas e econmicas, sobretudo pela unidade entre processo de

    produo e processo de valorizao.

    O ltimo artigo desta edio, Experimentao do tempo e estilos de vida em contexto de trabalho imaterial,

    de Jonas Cardoso e Carmem Ligia Iochins Grisci, contribui com a discusso sobre as condies de trabalho

    nos processos contemporneos. Sobretudo porque o texto analisa o tempo de vida e o tempo de trabalho de

    professores horistas do Ensino Superior privado em Porto Velho-RO. Chama a ateno no texto o fato de

    que, mesmo por outras vias analticas, explicitam-se ressonncias de uma das constataes mais fortes de

    Braverman: os impactos da lgica do valor tambm sobre trabalhadores externamente esfera econmica

    imediata. O texto revela que os estilos de vida so estabelecidos a partir dos ditames do capital, isto , uma

    dada forma do processo de trabalho que condiciona a maneira como os homens vivem para alm do prprio

    trabalho. Sobretudo, o artigo chama a ateno para o fato de que o trabalho imaterial do professor (esse

    proletrio da educao) exige, por mediao das tecnologias informacionais, sua total disponibilidade,

    intensificando o trabalho e dominando todo o tempo de vida.

    Na seo Opinio, os leitores encontraro a contribuio de Claudio Katz, intitulada Discusiones del control

    patronal, numa avaliao das teses centrais presentes em Braverman acerca de uma teoria do controle

    patronal, tendo em vista o desenvolvimento atual do capitalismo. Nesse sentido busca explicitar a

    consistncia de uma teoria marxista contida em Braverman em contraste com as posies da viso

    neoclssica e da teoria da regulao. Destacam-se as consideraes de Katz acerca dos limites da tese de

    Braverman sobre desqualificao absoluta do trabalho no capitalismo, bem como as consideraes de que no

    autor nova-iorquino persiste uma perspectiva de centralidade do trabalho em contraste com o fim do trabalho.

    importante registrar o agradecimento aos avaliadores nacionais e estrangeiros que dedicaram muito de seu

    tempo na elaborao da presente edio, bem como ao professor Fernando Tenrio pelo incentivo e

    Fabiana Braga Leal pela competente assistncia.

    Por fim, esperamos que os leitores do Cadernos EBAPE.BR aproveitem os textos aqui apresentados. A

    expectativa suscitar debates sobre os problemas acerca do processo de trabalho contemporneo, inclusive

    incentivar o surgimento de outras edies e publicaes que acionem as temticas importantes que no

    eliminam as contradies do mundo concreto nem a necessidade social de sua transformao efetiva.

  • Braverman, subjetividade e funo de direo na produo do valor Elcemir Pao Cunha

    Cad. EBAPE.BR, v. 12, n 4, apresentao, Rio de Janeiro, Out./Dez. 2014. p. 755755

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