BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    Bertolt BrechtA Santa Joana dos

    Matadouros

    Traduo e apresentao:Roberto Schwarz.

    Cosac & Naify.

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    Sobrecapa: detalhe de George Grosz, Caf (1918).VG Bild-Kunst, Bonn, 2001.

    Die Heilige Johanna der Schlachthfe. Suhrkamp Verlag.Traduo e apresentao:

    Roberto Schwarz.

    Coleo Prosa do Mundo.Coordenao: Samuel Titan Jr.Conselho editorial: Augusto Massi e Davi Arrigucci Jr.Traduo: Roberto Schwarz.Preparao: Heitor Ferraz e Fabiana Werneck.Reviso: Samuel Titan Jr.Capa e projeto grfico: Fbio Miguez.Editorao eletrnica: Vanderlei Lopes Richarde.

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro(Fundao Biblioteca Nacional).Brecht, Bertolt.

    Bertolt Brecht: A Santa Joana dos Matadouros.Ttulo original:Die Heilige Johanna der Schlachthfe.So Paulo: Cosac & Naify Edies, 2001.Coleo Prosa do Mundo.p. 216.ISBN: 85-7503-098-1.

    1. 2.3. Brecht, Bertolt. CDD 832.

    Todos os direitos adquiridos por:COSAC & NAIFY EDIES, 2001.Rua General Jardim, 770, 2 andar.So Paulo SP.Fone: 55 11 3218-1444.Fax: 55 11 [email protected].

    APRESENTAOO bate-boca das classespor Roberto Schwarz, 7

    A SANTA JOANADOSMATADOUROS, 15

    APNDICE

    Panorama crtico, 197Sugestes de leitura, 211

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    O bate-boca das classespor Roberto Schwarz1

    Experimentalismo esttico e Revoluo Russa pertencem aum mesmo momento, de crise da ordem burguesa, por volta daPrimeira Guerra Mundial. Quando, por exemplo, os dadastasatacavam a obra de arte e a instituio artstica, julgavam consumar

    uma liquidao histrica, assim como fazia Lnin, quando afirmavaa atualidade da revoluo, em decorrncia das contradies da etapaimperialista. Sem fazer de Lnin um prcer dad, nem esquecer queboa parte das inovaes estticas de nosso tempo veio de homensapolticos ou reacionrios, vale a pena insistir no parentesco:socialismo e vanguardismo viam como caducas as formas domundo burgus e quiseram apressar o seu fim.

    Por isso mesmo, espanta que no tenha sido maior a suaassociao e, sobretudo, que no interior da esquerda tenha havidotanta hostilidade ao esprito experimental, a ponto de se formar umdesencontro histrico. Este ainda no est devidamente analisado, ea sua explicao pelo "acidente stalinista" insuficiente, j que oproblema vinha de antes e no se solucionou depois.

    Seja como for, entre os escritores que so a referncia nestesculo foram poucos os que movimentaram uma cultura deesquerda mais desenvolvida, e pouqussimos os que fizeram dela,mais que uma bandeira bem aceita, um fermento de inovao.Aqui sobressai a figura de Brecht, cuja inventiva artstica fenomenal, e sempre acintosa se alimentava metodicamente doestudo e da experincia da luta de classes.

    Nos palcos brasileiros, o Brecht que se tem visto outro, de

    um perodo anterior, cujo cinismo anrquico veio a calhar com aexasperao e a desiluso polticas que tomaram conta do meioartstico nos anos do AI-5. Sem lhe desconhecer o valor, certo1Esta nota acompanhou a publicao das primeiras cenas da pea em NovosEstudos CEBRAP, n 4, 1982. O conjunto foi retomado em Que Horas So?(So Paulo: Companhia das Letras, 1987). Na presente traduo da pea deBrecht aproveitei sugestes de Gilda de Mello Souza, ModestoCarone,Vincius Dantas e Boris Schnaiderman (N.T.).

    que o Brecht verdadeiramente novo e decisivo o da maturidade,que associou em grande escala a experimentao artstica e areflexo poltica, donde, alis, o prestgio mundial e de certa formaextra-literrio que se prendeu a seu nome. Contrariamente ao que moda dizer, ele o artista mais audacioso, complexo e diferente.

    Hoje o ponto de vista dos trabalhadores volta a integrar e

    perturbar, pela natureza das coisas o nosso espectro polticolegal. Ora, como nenhum outro, o teatro de Brecht fixou asdissonncias e contores que transfiguram a cultura burguesasempre que os explorados tm a palavra, a qual a seu modo e porsua vez interesseira, contraditria, inautntica, frustra etc., poiso autor no populista. certo que a Alemanha de Weimar no o Brasil da abertura, mas este quadro, os esvaziamentos e asrelativizaes que ocasiona, est na ordem do dia entre ns.

    A Santa Joana dos Matadouros (1929-31) uma das grandespecas do sculo. Na traduo que segue, quisemos divulgar timbrese modos de composio quase inexplorados na literatura brasileira.

    O assunto a crise do capitalismo, cujo ciclo deprosperidade, superproduo, desemprego, quebras e novaconcentrao do capital determina as estaes do entrecho. Aspersonagens so a massa trabalhadora, empregada oudesempregada, os magnatas da indstria da carne, osespeculadores, e disputando as conscincias os comunistase uma variante do Exrcito da Salvao (os Boinas Pretas).Servem de lugaros matadouros de Chicago, o edifcio da bolsade valores e o quartel dos soldados de Deus. A linguagem,agressivamente artificial e heterognea, fora a promiscuidade deestilos verbais com repugnncia recproca. Ela calcada, entreoutros modelos, na realidade sangrenta e comercial dosmatadouros; em momentos escolhidamente sublimes da lricaalem (a dico helenizante de Hlderlin e Goethe, o clima finaldo segundo Fausto, a interioridade exaltada do expressionismo);na terminologia da especulao financeira; na sobriedade trgicados gregos; na retrica dos agitadores de porta de fbrica; na

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    Bblia de Lutero; na misria operria. O objeto da preocupaocomum, enfim, a paralisao ou retomada da produo deenlatados: greve geral e/ou presunto e salsichas.

    Como este apanhado indica, o trao redutor e caricato, etem algo em comum com os desenhos de seu contemporneoGeorge Grosz. Trata-se do clima "chocante" e materialista do

    Naturalismo, menos a sua componente de fatalidade, substitudapela certeza escarninha da explorao econmica e damistificao ideolgica. Na viso revolucionria, orientada pelacrtica ao capital, misria e baixeza deixam de ser um destino,para se tornarem peas de acusao no bate-boca terico entre asclasses. Da a substituio da caridade pela euforia intelectual epelo sarcasmo. A combinao inesperada de brutalismo e gostode explicar um achado de Brecht e formaliza um aspecto real deposio de esquerda.

    Entretanto, o realce da dimenso esquemtica no tem efeitoapenas polmico. Ele faz que o antagonismo de classe aparea

    enquanto tal e em grande, na dimenso da sociedade inteira, e queesteja em jogo o seu ser-ou-no-ser; o que para uma literatura deinteno revolucionria um efeito precioso. Note-se, alis, quegeneralidades tais como o ciclo da crise capitalista, osassalariados da indstria da carne ou os aambarcadores ditasantiartsticas, por excederem a esfera intuitiva e negarem a pessoa so bem mais aceitveis para um esprito esclarecido que osenquadramentos mticos ou as alegorizaes com que osescritores de nosso tempo buscaram traduzir a dimenso coletivaou remediar a irrelevncia das anedotas individuais, que so oponto de partida de todos. Neste sentido, o seu teor de abstrao(que pareceu "formalismo" a Lukcs) um elemento realista e fazparte do intuito brechtiano de orquestrar a cena ideolgica em suaamplitude e cacofonia reais. Emprestando a imaginao aocontraste entre as vozes da pea, verdadeiramente impressionante,e cuja fora se deve a estas generalidades, o leitor ouvir esperamos algo como a msica da sociedade global. Seja dito

    de passagem que poucos anos depois Oswald de Andrade tentavacoisa parecida noRei da vela (1937).

    Por serem assuntos "baixos", a explorao de classe e acarne enlatada so tratadas na Santa Joana em linguagem nobre,emprestada de Hlderlin e Goethe. O efeito de profanao ostensivo e encarna, para ser breve, as objees do materialismo

    ao idealismo e dos explorados celebrao do homem "emgeral". Entretanto, note-se que a outra face da moeda to oumais importante: eis a, expressas com excelncia, no verso maisarmado da literatura alem, a luta de classes e a fabricao desalsichas o que, bem pesadas as coisas, um avano popular. Aposio de Brecht diante da tradio complexa. Nada maisavesso a seu esprito que abrir mo de conquistas intelectuais outcnicas, o que vale a pena lembrar, por ser contrrio aopopulismo em arte.

    Para ter idia da maestria e da clareza estudada com queBrecht transpe situaes da luta de classes, veja-se adiante a

    passagem brevssima em que o desemprego invade as ruas portodos os lados. Como numa inundao a que no h como fugir,os desempregados pedem emprego a desempregados que lhesquerem pedir emprego. Veja-se igualmente a conciso na fala dos70 mil trabalhadores de Lennox & Co., que diante dos portesfechados da fbrica expressam a natureza contraditria de suarelao com o capital. Sem transio, encadeados pela lgica dascoisas, os momentos se alinham como blocos: a revolta contra osalrio insuficiente, a deciso de deixar um trabalho aviltante, anecessidade que obriga os trabalhadores a ficar, a reivindicaode condies melhores, a aceitao de condies piores, afamiliaridade com os meios de produo, o desespero de nodispor deles, as splicas que so ameaas, e, enfim, a asfixiaoperria em decorrncia da competio intercapitalista. ltimoexemplo, vejam-se os belssimos versos de Joana sobre oimediatismo dos pobres, em que as apreciaes da classedominante sempre insultuosas sobre a falta de espiritualidade

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    e viso dos miserveis compem um lamento paradoxal, que podeser lido a contrapelo, como admisso de que no mundo operriose forma uma cultura voltada para a satisfao das necessidadesreais do ser humano.

    Para terminar, algumas observaes sobre o verso usado napea. De hbito, em literatura, a argumentao tida como a

    menos artstica das atividades. Entretanto, nela que o verso deBrecht encontra os seus melhores efeitos, uma espcie de poesiada conduta inteligente (ou sublinhadamente inepta, como nosargumentos insustentveis dos Boinas Pretas). O ritmo da dico submetido ao andamento argumentativo, que tem musicalidadeespecfica, a qual vai primar tambm sobre a musicalidade dapalavra. Ou melhor, esta metodicamente desmanchada, para queressalte a outra, mais vinculada apreenso intelectual. Naconduo do verso ocorre algo de mesma ordem, atravs davalorizao complexa de sua pausa final, que o resultado de umtruque simples: Brecht no pe vrgula no fim da linha, o qual em

    conseqncia pode mas no precisa ter funo de virgular,dvida esta que obriga sempre a um intervalo. E se de fato apausa frequentemente vrgula a fala, s vezes ela separa palavrasque logicamente estariam juntas, ou, ainda, interrompe umraciocnio. A incerteza quanto sua funo cria algo como umsuspense de final de verso, que se desfaz e refaz quase que linha alinha, e que um elemento de desautomatizao e deintelectualizao da leitura. No cabe aqui uma anlisedesenvolvida deste procedimento, de modo que baste uma de suasvariantes. Como o leitor vai notar, constante o recurso a um tipoespecial de corte, em que o argumento que animar o versoseguinte comea pela ltima palavra do verso anterior, o qual ficaostensivamente inconcluso. Isto, que um ritmo dos maisdefinidos, faz que a dimenso do raciocnio prevalea sobre adisposio grfica, mas enquanto efeito dela, sem anular a divisoem versos nem muito menos deslizar para a prosa. Assim,misturada grita das situaes e dos argumentos, corre tambm

    uma delicada msica de variaes e tenses, composta pelodeslocamento constante do lugar em que se cortam ou concluemos versos ou raciocnios, pendentes sempre uns dos outros.

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    A Santa Joana dos Matadouros

    PERSONAGENS

    JOANA DARK, tenente dos Boinas Pretas.PEDRO PAULO BOCARRA, em alemo Pierpont Mauler,

    [o Rei dos Frigorficos.CRIDLE, GRAHAM, LENNOX, MEYERS, magnatas

    [da carne em conserva .SLIFT, um corretor.DONA LUCKERNIDDLE.GLOOMB, um trabalhador.PAULUS SNYDER, major dos Boinas Pretas.MARTA, soldado dos Boinas Pretas.JACKSON, tenente dos Boinas Pretas.MULBERRY, um locatrio.UMSERVENTE.INDUSTRIAISDACARNEENLATADA.ATACADISTAS.CRIADORESDEGADO.CORRETORES.ESPECULADORES.BOINASPRETAS.TRABALHADORES.DIRIGENTESOPERRIOS.OSPOBRES.DETETIVES.

    JORNALISTAS.JORNALEIROS.SOLDADOS.PASSANTES.

    Colaboradores: H. Borchardt, E. Burri e E. Hauptmann.

    I.

    O REI DOS FRIGORFICOS PEDRO PAULOBOCARRA (MAULER) RECEBE UMA CARTA DESEUS AMIGOS DE NOVA YORK

    Nos matadouros de Chicago.

    BOCARRAlendo uma cartaTudo indica, querido Pedro Paulo, que o mercado de carne agoraest bastante abarrotado. Acresce que as barreiras alfandegriasdo Sul resistem ao nosso ataque. Parece aconselhvel, portanto,caro Pedro Paulo, largar mo do comrcio de carne. Esta dica demeus caros amigos de Nova York chegou hoje. A vem o meuscio.

    Ele esconde a carta.

    CRIDLEPor que to sombrio, caro Pedro Paulo?

    BOCARRALembra-te, Cridle, o diaEm que percorrendo o matadouro era noite Paramos ao p da mquina de enlatar presunto?Lembra-te, Cridle, aquele viteloQue virava o olho claro, grande e obtuso para o cu

    Enquanto entrava na faca? Senti como se fosse carne[de minha carne.

    Ai de ns, Cridle, como sangrento o nosso comrcio.

    CRIDLEMais uma vez a tua velha fraqueza, Pedro Paulo? quase inverossmil. Voc, o gigante dos enlatados

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    O rei dos matadouros que faz tremer os aougueiros deste pasVoc se desfaz em compaixo por um bezerro loiro.Peo-te que no traias tal fraqueza diante dos outros.

    BOCARRALeal amigo Cridle!

    Eu no devia ter ido ao matadouro!Em sete anos que estou neste negcio no fui lEvitei. Mas agora que fui, mais forte do que eu: hoje mesmoDeixo este negcio sanguinrio.Fique voc com ele, a minha parte eu te deixo a preoVil, e deixo de corao. Ningum como voc unha e carne com este negcio

    CRIDLEA preo vil, quanto?

    BOCARRAEntre velhos amigos no Cabe pechinchar muito. Digamos dezmilhes.

    CRIDLENo estaria caro se no fosse o LennoxQue disputa conosco lata por lata de carneQue nos estraga o mercado com preos baixosQue nos liquida se no for liquidado.Enquanto ele no cair, e s voc pode derrub-loNo aceito a tua proposta. At lUsars a tua privilegiada inteligncia cheia de astcias.

    BOCARRANo, Cridle, os gemidos daquele viteloNo silenciam mais neste peito. urgenteA destruio de Lennox, porque eu prprio

    Desejo tornar-me um homem bom e jNo quero ser um carniceiro. Vem, Cridle, vouTe mostrar como se quebra o Lennox em pouco tempo.Em seguida ficars com minha parte neste comrcio

    [que me di.

    CRIDLEQuando Lennox for abatido.

    Os dois saem.

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    II.

    a.A QUEBRA DAS GRANDES INDSTRIAS DE CARNE

    Diante das Indstrias Lennox.

    OSTRABALHADORESSomos setenta mil trabalhadores nas Indstrias

    [de Carne LennoxE no podemos viver nem mais um dia com este salrio de fomeQue ontem, por cima, voltou a baixar.Hoje, os provocadores madrugaram no porto:Quem acha pouco o que Lennox paga s ir embora.Pois bem, vamos todos embora e mandemos

    merda este salrio que dia a dia menor.Silncio.No de hoje que este trabalho nos repugnaQue esta fbrica nos suplicia, e jamaisNo fosse a soma dos horrores da fria ChicagoNs estaramos aqui. Agora pormQue doze horas de trabalho j no pagamUm po ou uma cala ordinria, agoraMais vale ir embora jE esticar as canelas hoje, em vez de amanha.Silncio.

    Eles esto pensando o qu? PensamQue somos gadoQue aceitamos tudo? NsSomos trouxas? Antes morrer! NsVamos embora daqui imediatamente.Silncio.J no so seis horas?

    Por que no abrem os portes, seus exploradores? AquiEst o seu gado, seus carniceiros, abram!Batem nos portes.Ser que esqueceram de ns?Gargalhadas.Abram! Ns

    Queremos entrar em vossasArapucas e cozinhas imundas paraPreparar carne de restosPara outras bocas mais endinheiradas.Silncio.Exigimos no mnimoO salrio anterior, que j era insuficiente, no mnimoA jornada de dez horas, no mnimo...

    UMHOMEMque passaO que esto esperando? No sabem

    Que Lennox fechou?

    Jornaleiros cruzam o palco correndo.

    OSJORNALEIROSFechadas as indstrias do rei da carne Lennox!Setenta mil trabalhadores sem po nem teto! Lennox vtima daimplacvel guerra de preos do rei da carne e da filantropia PedroPaulo Bocarra.

    OSTRABALHADORESAi de ns!O prprio infernoNos fecha as suas portas!Estamos perdidos. O sanguinrio BocarraAperta a garganta de nosso exploradorE quem sufoca somos ns!

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    b.P. P. BOCARRA

    Rua.

    OSJORNALEIROSA Tribuna de Chicago, edio da tarde! O rei da carne e dafilantropia P. P. Bocarra comparece inaugurao dos HospitaisBocarra, os maiores e mais caros do mundo!

    Passam Bocarra e dois homens.

    UMPASSANTEa outroAquele o P. P. Bocarra. Voc conhece os outros dois?

    O OUTROSo detetives. Esto de olho para impedir que ele seja linchado.

    c.PARA TRAZER CONSOLO A DESOLAO NOSMATADOUROS OS BOINAS PRETAS SAEM DE SEUQUARTEL: PRIMEIRA DESCIDA DE JOANA SPROFUNDEZAS

    Diante do quartel dos Boinas Pretas.

    Joana frente de um comando de Boinas PretasEm tempos turvos de caos cruentoE desordem por decretoE abuso previstoE humanidade desfiguradaQuando a agitao nas capitais j no pra de engrossar

    Descemos aos matadourosA que se parece o mundo.ChamadosPelo boato de violncias iminentesA fim de impedir que em sua brutalidade a gente simplesDestrua as prprias ferramentas

    E pise o seu po, ns trazemosDeus.A popularidade Dele no o que era.Malvisto por muitosEle j no tem entradaNos domnios da vida real:E no entanto Ele a nica salvao dos espezinhados!Por isto nos decidimosA rufar os tambores em Seu nomePara que Ele tome p nos bairros miserveisE a Sua voz ecoe nos matadouros.

    Aos Boinas PretasE esta nossa iniciativa com certezaA ltima do gnero. A tentativa derradeiraDe reergu-Lo em meio desagregao geral, e istoCom o apoio dos espezinhados.

    Afastam-se batendo os tambores.

    d.OS BOINAS PRETAS TRABALHAM DA MANH

    AT A NOITE NOS MATADOUROS MAS QUANDOA TARDE CAIU NO HAVIAM ALCANADOPRATICAMENTE NADA

    Diante das Indstrias Lennox.

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    UMTRABALHADORParece que esto tramando mais uma negociata gigantesca nomercado de carnes. Enquanto isto nem a nossa fome nsenganamos.

    OUTROTRABALHADOR

    A luz do escritrio est acesa.Eles esto calculando os lucros.

    Chegam os Boinas Pretas. Armam uma publicidade: Um teto a20 centavos por noite; com caf, 30.

    OSBOINASPRETAScantamAteno, muita ateno!O senhor a que est falidoA moa ali que est um trapoO vosso pranto foi ouvido.

    Calem-se as buzinas, cesse o ronco dos motores!Esperana, irmos: eis os vossos protetores!E tu, a ponto embora de naufragarD-nos teu olharAntes de afundar.Ns te trazemos poE garra para lutarPela tua salvao.E no queiram dizer que tudo intilPois a situao da injustia fica insustentvelSe todos vierem conosco e marcharemDe mos dadas, numa forma responsvel.Faremos desfilar canhes e tanquesAvies em quantidadeCruzadores cruzaro o marTeu prato de sopa, irmo, eles vo batalhar.Pois o vosso nmero, pobres da terra,

    De to aterrador,Far do rico o vosso defensor!Avante pois, ao assalto, com as frontes levantadas!nimo, nufragos da vida! Aqui estamos de mos dadas!

    Durante o canto os Boinas Pretas distribuem o seu jornalzinho,

    O Brado de Guerra, alm de pratos, colheres e sopa. Ostrabalhadores dizem obrigado e escutam a fala de Joana.

    JOANASomos os soldados de Deus. Por causa de nossos chapus,chamam-nos de Boinas Pretas. Onde cresce a agitao, ondedesponta a violncia, a estamos ns, marchando com tambores ebandeiras, lembrando aos homens que Deus existe, coisa quemuitos esquecem. Ns nos dizemos soldados porque formamos umexrcito, que marcha contra o crime e a misria, contra as forasque nos puxam para baixo. Ela mesma comea a distribuir a sopa.

    Muito bem, agora vocs tomem a sopa antes que esfrie, e ho dever que a vida logo melhora, mas faam o favor tambm de pensarum pouco Naquele que nos d a sopa e todas as demais coisas. Eenquanto estiverem pensando, vero que Ele a soluo definitiva:ambies altas, sim; vulgares, no. Disputar um bom lugar l emcima, e no aqui embaixo. O importante ser o primeiro no cu, eno na terra, que no resolve. Alis, vocs mesmos esto vendocomo precria a felicidade terrena. Ela inteiramente incerta. Adesgraa cai sobre nossas cabeas de repente e sem explicao,como a chuva que nos molha sem que ningum seja culpado.Haveria acaso uni responsvel pelas suas desgraas?

    UMDOSQUEESTOCOMENDOA culpa de Lennox & Cia.

    JOANAMister Lennox possivelmente esteja mais aflito que vocs.Vocs

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    o que tm a perder? Ele est perdendo milhes!

    UMTRABALHADORO caldinho est ralo, mas gua quente faz bem sade.

    OUTRO

    Quem estiver comendo cale a boca e oua as palavras do cu.Porque seno vamos ficar tambm sem a sopinha.

    JOANACalma! Caros amigos, qual ser a razo da sua pobreza?

    UMTRABALHADORA explicao da moa deve ser brilhante.

    JOANAEu vou explicar. A sua pobreza no reside na falta de bens

    terrenos estes no do mesmo para todos , mas na falta deespiritualidade. por isto que vocs so pobres. As satisfaesbaixas a que vocs aspiram, uma janta, a casa arranjada, ocinema, so satisfaes vulgares e materiais, mas a palavra deDeus um prazer mais fino, mais ntimo, mais requintado, vocstalvez no imaginem nada mais doce que um sorvete, mas apalavra de Deus muito mais doce, ela infinitamente doce! Ecomo leite e mel, e quem mora com Ele mora num palcio deouro e mrmore. Gente sem f! Os pssaros que cruzam os cusno tm carteira de trabalho, os lrios do campo no tm emprego,mas Deus lhes d o sustento, para que cantem a Sua glria. Vocss pensam em subir na vida, mas subir para onde, subir de quemaneira?! Ns, Boinas Pretas, fazemos a vocs uma perguntamuito prtica: o que preciso para ser algum?

    UMTRABALHADORUm pistolo forte...

    JOANANo, o pistolo no adianta. Tal vez ajude a progredir, aqui na terra,mas diante de Deus preciso ter muito mais, uma recomendaomelhor, e a vocs no tm nada, porque descuidaram de sua alma.Vocs querem melhorar de vida, mas o que que vocs, ingnuos,

    entendem por melhorar? Pensam que ser usando a fora bruta? Afora leva destruio, e mais nada. Vocs acreditam que,mostrando as garras, conquistam o paraso. Pois eu lhes digo que pora no se vai ao paraso, por a se vai ao caos.

    Um trabalhador entra correndo.

    O TRABALHADORVagou um emprego!Um emprego com salrioNa fbrica nmero cinco!

    um emprego de merda.Corram!

    Trs trabalhadores deixam o prato cheio e saem correndo.

    JOANAEi, vocs a, aonde vo? Quando se trata de Deus vocs no tmouvidos, hem?

    UMABOINAPRETAA sopa acabou.

    OSTRABALHADORESAcabou a sopinha.Era pouca e rala.Mas melhor do que nada.

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    Todos se levantam para ir embora.

    JOANAAcabou, mas que importncia tem isso? Fiquem sentados! Asopeira do cu est sempre cheia e d para todos.

    OSTRABALHADORESVocs vo ou no vo abrirAs suas casas de esfola?Carniceiros!

    Formam-se grupos.

    UMHOMEMComo pagarei a minha casinha to arranjada e midaEm que moramos doze pessoas? DezessetePrestaes esto pagas, mas faltando a ltima

    Estamos na rua e nunca mais veremosO cho de terra batida com capim amareloNunca mais a fumaa empestada de cada diaVir encher de vida o nosso peito.

    OUTROHOMEMnuma rodaAqui estamos com as nossas mos que so psCom os nossos lombos que so carros de transporteE queremos vender as mos e o lomboE no h comprador.

    OSTRABALHADORESE nossas ferramentasGuindastes, prensasTudo est fechado atrs dos muros!

    JOANAVejam s. Eles nem fingem que esto interessados! Comerambem? Faam boa digesto, e muito obrigada por tudo. Mas agoramesmo vocs no estavam me ouvindo?

    UMTRABALHADOR

    Foi por causa da sopa.

    JOANAVamos prosseguir. Cantem!

    OSBOINASPRETAScantamOnde mais negra a batalhaErgue-se um canto de amorIrmos, a glria no falha a voz de Jesus, o nosso Redentor!

    UMAVOZAOFUNDOO Bocarra est empregando gente!

    Os trabalhadores saem, com exceo de algumas mulheres.

    JOANAsombriaVamos guardar os instrumentos .Vocs viram como eles caemfora quando acaba a sopa?A viso deles no vai alm de um prato de comida.Eles no acreditam em nadaS se estiver em sua moIsto quando acreditam na mo.Vivendo na ignorncia do que ser amanhEles no transcendem o terra-a-terra mais rasteiro.S a fome lhes fila de igual para igual.Palavras e cantorias no chegam profundidadeA que eles desceram.

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    Aos circunstantesNs, Boinas Pretas, nos sentimos como se de nossas pobrescolheres dependesse o alimento da metade faminta do planeta.

    Os trabalhadores voltam. Gritos ao longe.

    OSTRABALHADORESna frenteQue gritos so estes? Um povo imenso, vindo dos frigorficos!

    VOZAOFUNDOBocarra e Cridle tambm fecharam!Locaute nas Indstrias Bocarra!

    O REFLUXODOSTRABALHADORESProcurando trabalho a meio caminho encontramosVinda de outro lado outra multido desesperada.Acabavam de perder o trabalho

    E nos perguntavam por trabalho.

    UMTRABALHADOR frenteAi de ns, a massa humana chega de toda parte.O fenmeno colossal. O prprio Bocarra fechou.Para onde vamos?

    OSBOINASPRETASa JoanaVem conosco. Estamos com frio e molhados, e precisamos comer.

    JOANAMas eu quero saber quem o culpado destas desgraas.

    OSBOINASPRETASPra! No te metas! CertamenteVo encher a tua cabea. Na cabea delesH s baixeza. So vadios!

    S pensam em comer e fugir ao trabalho.Nasceram incapazes de um pensamento elevado!

    JOANAMas eu quero saber.Aos trabalhadores Agora me expliquem: porque vocs esto aqui, sem trabalho?

    OSTRABALHADORESO sanguinrio Bocarra est em lutaCom Lennox, o sovina, e por isto passamos fome.

    JOANAOnde mora o Bocarra?

    OSTRABALHADORESNo lugar em que se negociam as boiadasNa chamada Bolsa de Carnes.

    JOANAVou at lPorque eu quero saber.

    MARTAuma das Boinas PretasNo te metas! Quem muito perguntaOuve muitas respostas.

    JOANAEu quero ver o tal Bocarra, que causa tanta misria.

    OSBOINASPRETASNeste caso o teu destino negro, Joana.No te intrometas em disputas terrenas!Quem se mistura tragado.A tua pureza no resistir. Breve

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    Em meio frieza geral estar perdidoO teu pouco calor. A bondade abandonaQuem se afasta do aprisco.De degrau em degrauBuscando sempre mais baixo a resposta que no alcanasDesaparecers na sujeira!

    Porque com sujeira que se fecham as bocasDos que perguntam sem prudncia.

    JOANAEu quero saber.

    Os Boinas Pretas saem.

    III.

    PEDRO PAULO BOCARRA TEM A REVELAODE UM OUTRO MUNDO

    Diante da Bolsa de Carnes.Joana e Marta esperam embaixo, enquanto no alto os magnatasda carne, Lennox e Graham, conversam. Lennox est brancocomo giz. Ao fundo a gritaria da Bolsa.

    GRAHAMAcertou-te o tremendo BocarraO bondoso Lennox! Irresistvel a ascenso daquele monstro a cujo toqueA natureza se transforma em mercadoria e cobra um preoA prpria brisa. Ele capaz de nos revender o que comido est.

    Escombros lhe do aluguis, de carne podreFie tira dinheiro, e se voc lhe jogar pedras certoQue as transforma em dinheiro tambm, e toIncontrolvel este talento para a pecnia, to naturalA monstruosidade que mesmo querendoEle no freia o instinto na sua pessoa.Mas nota que Bocarra delicado e no ama o dinheiroNem suporta a misria, que no o deixa dormir.Por isso o melhor te aproximares deleDizendo: Bocarra, olha pari mim e desarrochaA minha garganta, pensa m tua velhice.

    certo que ele ter um sobressalto. Talvez chore...

    JOANAa MartaS tu Marta vieste comigoAt aqui. Os demaisAfastaram-se com lbios que advertiamComo se eu andasse em extremos estranha advertncia!

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    Eu te agradeo, Marta.

    MARTATambm eu te preveni, Joana.

    JOANA

    E vieste comigo.

    MARTAVoc saber reconhec-lo, Joana?

    JOANATenho confiana que sim!

    Cridle aparece no alto.

    CRIDLE

    Por fim, Lennox, o tempo em que voc rebaixava preosAcabou. Voc mordeu o p. Agora fecho os portes e esperoA recuperao do mercado. Lavo meus matadourosEngraxo as facas e mando trazer umas tantas mquinasNovas, que poupam muito salrio. um novo sistema, da mxima inteligncia.Suspenso em tela de arame, o suno sobeAo andar mais alto onde comea a ser abatido.Com leve ajuda o animal se precipita das alturasSobre as facas. Entendeu? O suno corta-sePor conta prpria e transforma-se em salsicha.Assim, caindo de etapa em etapa, abandonadoPela sua pele, que se transforma em couroSeparando-se de seus plos que sero escovasE deixando enfim os seus ossos - futuraFarinha o suno impele a si mesmoRumo lata de conserva. Entendeu?

    GRAHAMEntendi. Porm, qual ser o destino das latas? Malditos tempos!O mercado est impraticvel, abarrotado de mercadorias.O comrcio, que florescia, parou.A vossa briga de foice em mercados repletos

    Arruinou os preos, como em sua luta de morteOs bfalos estragam os pastos que disputam.

    Aparecem Bocarra e seu corretor Slift, juntamente com outrosindustriais do enlatado. Atrs dele, dois detetives.

    OSINDUSTRIAISAgora ver quem agenta mais!

    BOCARRALennox mordeu o p.A Lennox Reconhea que voc

    [est liquidado.E agora que Lennox deixou de existir, conforme

    [o nosso contratoCridle, voc ficar com o negcio da carne.

    CRIDLEDe fato, Lennox deixou de existir. MasO tempo do mercado favorvel tambmE por isto, Bocarra, dez milhes por tuas aes muito!

    BOCARRAO qu? O preo estAqui no contrato! Aqui, Lennox, digaSe isto no um contrato e se o preo escrito outro!

    CRIDLESim, um contrato feito nos bons tempos.

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    BOCARRALennox, olhe voc: este contrato diz alguma coisa sobre temposruins?

    LENNOXNo.

    Lennox sai.

    BOCARRAseguindo-o com os olhosQuer me parecer que ele est aflito.E eu que, mergulhado nos negcios (Oxal no fosse assim!),Nada notei. Animalesca vida de negcios!Tenho nojo, Cridle.

    Cridle sai. Enquanto isto Joana faz sinal a um detetive e lhe dizalguma coisa.

    O DETETIVEMister Bocarra, tem um pessoal a querendo lhe falar.

    BOCARRAUm populacho esfarrapado, no ? Com cara invejosa, no ?Inclinados violncia, hem? Diga que no estou.

    O DETETIVE gente da organizao dos Boinas Pretas.

    BOCARRAQue organizao essa?

    O DETETIVEEles so numerosos e bem implantados nas classes baixas, e tmboa reputao. So chamados os soldados de Deus.

    BOCARRAJ ouvi falar. Nome estranho, os soldados de Deus... o que queeles querem?

    O DETETIVE

    Eles dizem que querem falar com o senhor.

    Enquanto isto continua a gritaria na Bolsa: bois 43, porcos55, vacas 59 etc.

    BOCARRAEst bem, diga que vou receb-losMas diga tambm que no quero ouvir nadaQue eu no tenha perguntado, que ficamProibidas lgrimas e cantorias, especialmente as tristesDiga enfim que a minha disposio melhora

    Caso eu tenha a impresso de que se trataDe gente cooperativa, contra a qual no consta nadaE que no quer nada de mim que eu no possa dar.Mais uma coisa: no diga que o Bocarra sou eu.

    O detetive vai para onde est Joana.

    O DETETIVEEle vai falar com vocs, masVocs no perguntam nada, s respondemQuando ele perguntar.

    Joana dirige-se a Bocarra.

    JOANAO senhor o Bocarra.

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    BOCARRAEu no. Aponta para Slift. ele.

    JOANAaponta para BocarraO senhor o Bocarra.

    BOCARRANo, ele.

    JOANA o senhor.

    BOCARRAComo voc me reconheceu?

    JoanaPorque a sua cara a mais sanguinria.

    Slift ri.

    BocarraVoc est rindo, Slift?

    Graham foge enquanto isso.

    BOCARRAa JoanaQuanto vocs recebem por dia?

    JOANAVinte centavos, alm de roupa e comida.

    BOCARRAUmas roupas velhas e uma sopa das mais ralas, hem, Slift?

    SLIFTSim senhor, roupa velha e sopa rala. Que coisa...

    JOANABocarra, por que voc impede os trabalhadores de trabalhar?

    BOCARRAa SliftEles trabalham sem ganharNo estranho? Coisa semelhanteEu nunca havia ouvido. TrabalhamA troco de nada e no se zangam. Seus olhos no refletemO medo da misria e do relento.A JoanaVocs, Boinas Pretas, so gente estranha.No vou perguntar o que vocs esperam de mim.Eu sei que a massa ignorante me chamaBocarra o sanguinrio e diz que Lennox foi

    Vtima de um golpe meu ou que desgraceiA vida de Cridle, que alis no pessoa estimvel.So aspectos da vida de negcios que francamente

    [no dizem respeitoA vocs. Mas h um assunto em que a vossa opinioMe interessa. Tenho a inteno de abandonar esse negcioSangrento muito em breve, abandon-lo completamente.Por qu? Porque outro dia e este caso vai apaixon-los

    [vi morrerUm vitelo. Me comovi tanto que decidi abandonar tudoE vender a minha parte da fbrica. Vale doze milhes

    Vendi por dez a ele aqui. No lhes parece acertadoE conforme com o vosso desejo?

    SLIFTDepois do infeliz viteloChegou a vez do prprio Cridle

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    De ser abatido.Est conforme com o vosso desejo?

    Risadas dos industriais.

    BOCARRA

    Riam. Sua risada no me abala.VereiAdiante como choram.

    JOANAMister Bocarra, por que o senhor fechou as portas

    [do matadouro?Eu quero saber a razo.

    BOCARRANo extraordinrio que eu tenha largado moDe um grande negcio, s porque sangrento?

    Diga que foi bem feito e que voc gostou.No, no diga, estou sabendo e reconheo que paraAlguns foi um desastre, ficaram sem trabalhoEu sei. Infelizmente foi inevitvel.Mas gente ruim e vulgarAlis o melhor ignor-los, mas me diga:No fiz bemAo largar mo deste negcio?

    JOANAEu no sei se voc est perguntando a srio.

    BOCARRADeve ser porque a minha maldita voz foi treinadaPara disfarar, e voc, por isto, seiQue no gosta de mim. No diga nada.Aos outros

    Sinto como se a brisa me trouxesse notcia de[um mundo diferente.

    Me dem dinheiro, seus carniceiros, me dem aqui[um dinheiro!

    Ele toma todo o dinheiro a todos e o entrega a Joana.Toma, menina, para os pobres!

    Mas saiba que no sinto obrigao algumaE durmo passavelmente bem. Por que esta minha ajuda? STalvez porque gostei de seu rosto que to ingnuoEmbora voc j tenha vivido vinte anos.

    MARTAa JoanaEu no acredito nas intenes dele.Perdoa, Joana, mas agora eu tambm vou emboraPorque eu mesma achoQue tambm voc devia deixar isso tudo.

    Marta sai.

    JOANAMister Bocarra, isso uma gota d'gua no deserto. O senhor nopode ajudar de verdade?

    BOCARRAVocs digam em toda parte que aprovo a vossa atividadeE quisera que existissem mais como vocs. EntretantoEsta questo dos pobres est mal colocada.E gente ruim. O ser humano no me comove

    Eles no so inocentes, so carniceiros eles tambm.Vamos mudar de assunto.

    JOANAMister Bocarra, o que se diz nos matadouros que a culpa damisria do senhor.

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    BOCARRAEu tenho compaixo, mas plos bois. O ser humano ruim.Os homens no esto maduros para o teu plano.Antes de transformar o mundo preciso transformar o homem.

    Espera um instante!Ele fala baixo com Slift.D mais algum dinheiro a ela, quando ela estiver sozinha!Diga que para os pobres, seno ela tem vergonhaE no aceita. Mas depois veja o que ela compra.Se isso no bastar, e eu quisera que no basteVoc a levaAo matadouro e lhe mostraOs pobres, como so ruins e animalescos, cheios de traio

    [e covardiaE mostra que a culpa deles mesmos.

    Talvez isso ajude.A JoanaEste Sullivan Slift, o meu corretor, que vai lhe mostrar

    [uma coisa.A SliftE fique sabendo que para mim quase intolervel

    [que exista genteComo esta menina, sem nada de seu alm de uma boina pretaE vinte centavos, e sem medo.

    Bocarra se afasta.

    SLIFT a JoanaEu no quisera saber as coisas que voc quer saberMas se voc quiser sab-las passe aqui amanh.

    JOANAacompanhando Bocarra com os olhosEste no um homem mau, este o primeiroA quem nossos tambores tiraram o sonoE que escuta o nosso chamado.

    SLIFTsaindo

    No te metas, ouve este conselho, com as criaturas do matadouro, urna gente infame, na verdade a escria do mundo.

    JOANAEu quero ver.

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    IV.

    O CORRETOR SULLIVAN SLIFT MOSTRA A JOANADARK A MALDADE DOS POBRES: SEGUNDADESCIDA DE JOANA S PROFUNDEZAS

    Na regio dos matadouros.

    SLIFTAgora, Joana, vou te mostrarQuanto so mausOs que despertam a tua compaixoA qual descabida.

    Caminham ao longo do muro de uma fbrica, em que est escritoBocarra & Cridle, Indstrias de Carne. O nome Bocarra estriscado em cruz. Dois homens saem por uma portinhola. Slift eJoana ouvem a sua conversa.

    CONTRAMESTREa um mooQuatro dias atrs um homem chamado Luckerniddle caiu nacaldeira; como no conseguimos parar as mquinas a tempo, abarbaridade aconteceu e ele rolou para dentro da mquina depreparar toicinho; esto aqui o palet e o chapu dele, queocupam um cabide no vestirio e causam m impresso. Sumacom eles. Talvez fosse bom queim-los, o melhor queimar j.Eu te digo estas coisas porque sei que voc de confiana: se

    acharem esta roupa eu perco o meu emprego. Assim que a fbricareabrir voc naturalmente fica com o lugar de Luckerniddle.

    O RAPAZPode ficar sossegado, Seu Smith.

    O contramestre desaparece pela portinhola.

    O RAPAZD pena este homem, que agora um toicinho perdido no mundo,mas d pena tambm o palet dele, que ainda est bom. O nossa-amizade agora est enlatado e no precisa mais de casaco. Mas euaqui preciso. Fico com ele e caguei.

    Veste o casaco e embrulha o dele prprio num jornal.

    JOANAvacilaEstou me sentindo mal.

    SLIFTEste o mundo como ele . Ele aborda o rapaz. De onde sarameste palet e este bon? Pertencem a Luckerniddle, o homem quesofreu um acidente.

    O RAPAZPor favor, no conte a ningum. Eu devolvo tudo imediatamente.Estou muito decado. H um ano, interessado em ganhar o extrade vinte centavos que eles pagam na sesso de fertilizantessintticos, fui trabalhar na triturao de ossos. Fiquei mal dopulmo e das plpebras. A minha fora de trabalho no mais amesma: desde fevereiro estive empregado s duas vezes.

    SLIFTNo tire esta roupa. Na hora do almoo venha cantina sete.Voc ganha um dlar e um prato de comida se explicar Dona

    Luckerniddle a origem do palet e do bon.

    O RAPAZPatro, isto no uma brutalidade?

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    SLIFTE, se voc no estiver precisando!

    O RAPAZPode ficar sossegado, patro.

    Joana e Slift seguem adiante.DONA LUCKERNIDDLEclama, sentada diante da fbricaVocs a dentro, o que fizeram ao meu marido?H quatro dias, saindo para o trabalho, ele dizia:Hoje de noite quero uma sopa quente! E at hojeEle no voltou! O que vocs fizeram ao meu marido,Carniceiros! H quatro dias estou aquiNo frio, nem de noite eu saio, esperando, mas no me dizemNada, e meu marido no volta! Mas fiquem sabendoQue no saio enquanto ele no voltar, e se tiverem

    Tocado nele, ai de vocs

    Slift aproxima-se dela.

    SLIFTO seu marido viajou, Dona.

    DONA LUCKERNIDDLEQue histria de viagem essa!

    SLIFT

    Vou lhe dizer uma coisa, Dona, ele viajou, e muito desagradvelpara a fbrica a senhora ficar a dizendo bobagens. Ns vamosfazer uma proposta senhora, uma proposta a que por lei ns nosomos obrigados. A senhora pra de procurar o seu marido, ealmoa de graa em nossa cantina durante trs semanas.

    DONA LUCKERNIDDLEEu quero saber o que houve com meu marido!

    SLIFTNs estamos dizendo senhora que ele viajou para So Francisco.

    DONA LUCKERNIDDLEEle no viajou para So Francisco, houve alguma coisa com ele,que vocs esto querendo esconder.

    SLIFTSe esta a sua idia, Dona, a senhora no pode aceitar nossacomida e precisa processar a fbrica. Pense bem. Amanh euestou na cantina sua disposio.

    Slift volta para onde est Joana.

    DONA LUCKERNIDDLEEu preciso recuperar o meu marido. Eu no tenho mais ningumque possa me sustentar.

    JOANAEla no vem.Vinte almoos no so poucoPara um faminto, masNo so tudo.

    Joana e Slift passam adiante. Chegam a uma cantina e vem dois

    homens que espiam por uma janela.

    GLOOMBAquele ali que est comendo o contramestre que acelerou otrabalho e me fez perder os dedos na fresa. Ns vamosprovidenciar para que o cachorro nunca mais encha o bucho s

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    Ser que no h mesmo outro lugar? Ouvi dizer que o serviodessa mquina perigoso para pessoas que cansem facilmente. Sea mo chochila, a lmina pega os dedos.

    GLOOMBTudo mentira. A senhora no imagina como o trabalho

    agradvel. A senhora vai botar as mos na cabea e perguntarcomo pode as pessoas contarem histrias to bobas a respeitodesta fresa.

    Slift ri e leva Joana embora.

    JOANAAgora estou quase com medo de continuar, com medo do queainda no vi!

    Entram na cantina e vem Dona Luckerniddle falando com o servente.

    DONA LUCKERNIDDLEcalculandoVinte almoos... da eu podia... da eu voltava e tinha...

    Ela senta-se mesa.

    O SERVENTESe a senhora no for comer no pode ficar aqui.

    DONA LUCKERNIDDLEEstou esperando algum que deve vir hoje ou amanh. Qual o

    prato de hoje?

    O SERVENTEErvilhas.

    JOANA

    L est ela.Pensei que ela no cedesse, mas ainda assimEu temia que amanh ela viesseE o fato que ela se apressou mais do que nsE j est aqui nossa espera.

    SLIFTV voc mesma levar a comida a ela, talvez ela pense melhor.

    Joana busca a comida e a leva a D. Luckerniddle.

    JOANAA senhora j est aqui?

    DONA LUCKERNIDDLE porque faz dois dias que no como.

    JOANAMas a senhora estava sabendo que ns vnhamos hoje?

    DONA LUCKERNIDDLENo sabia.

    JOANAAgora h pouco ouvi dizer que houve alguma coisa com o seumarido, e que a culpa da fbrica.

    DONA LUCKERNIDDLE

    Vocs voltaram atrs? No vo mais me dar os vinte almoos, isso?

    JOANAMas eu ouvi dizer que a senhora se entendia bem com o seumarido! Me disseram que a senhora no tem ningum alm dele.

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    DONA LUCKERNIDDLE, j faz dois dias que no como nada.

    JOANAA senhora no quer esperar at amanh? Se a senhora desistir,ningum vai procurar o seu marido.

    Dona Luckerniddle se cala.

    JOANANo coma.

    Dona Luckerniddle arranca-lhe o prato e come com avidez.

    DONA LUCKERNIDDLEEle viajou para So Francisco.

    JOANAOs depsitos esto atulhados de carneQue no se vende e vai apodrecerPorque ningum a quer.

    Entra o rapaz com o palet e o bon.

    O TRABALHADORBom-dia, aqui que eu vou almoar?

    SLIFT

    V sentar-se perto daquela mulher.

    O trabalhador senta.

    SLIFTpor trs deleQue bonito este bon. O trabalhador o oculta. Voc ganhou depresente?

    TRABALHADOR comprado.

    SLIFTComprado? Onde?

    TRABALHADORNo comprei numa loja.

    SLIFTEnto onde foi?

    TRABALHADOR

    Era de um homem que caiu na caldeira.

    Dona Luckerniddle sente-se mal. Ela levanta e sai.

    DONA LUCKERNIDDLEdiz ao servente enquanto saiDeixe a o prato. Eu volto. Agora eu venho almoar todos os dias.Pergunte quele homem ali.

    Sai.

    SLIFT

    Ela vir aqui durante trs semanas para comer, sem levantar osolhos do prato, como um animal. Voc viu, Joana, que a maldadedela infinita?

    JOANAE como voc domina

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    De uma lata de carne. O estmago deste pasPassou da conta em matria de carne e de latasE agora est virado.

    SLIFTO que escrevem os teus amigos de Nova York?

    BOCARRATeorias. Se dependesse delesO ramo da carne ia inteiro para o brejoDurante semanas a fio at a sufocao geralE depois a carne ficava toda comigo.Bobagens!

    SLIFTEu morreria de rir se de fato os amigos de Nova York agoraFurassem o protecionismo sulista causando

    Um fenmeno de altaDe que ns ficssemos fora.

    BOCARRAE suponhamos que fosse assim! Voc teria o peitoDe arrancar um fil a tanta misriaAgora que esto todos atentos como guiasAos nossos mnimos movimentos? Este peito eu no teria.

    OSATACADISTASAqui estamos os atacadistas com montanhas de latas

    E depsitos cheios de boi congeladoE queremos vender os bois enlatadosE ningum quer comprar!E nossos fregueses, os restaurantes e aouguesEsto com carne congelada pelas tampasImplorando compradores e bons garfos!

    Ns no compramos mais nada!

    OSINDUSTRIAISAqui estamos os industriais do enlatado com matadouros

    [e galpesE estbulos cheios de bois, as mquinas, as prensas e as caldeiras

    Gastando vapor, e os rebanhos comendo e mugindo enquantoNo viram carne enlatada. E ningum quer carne enlatada.Ns estamos perdidos!

    OSCRIADORESE ns, criadores?Quem compra a nossa criao? Os bois e os porcosEsto nos currais comendo o milho que caroE nos vages de transporte que so caros eles comemTambm e nos galpes das estaes que comem aluguisL esto eles comendo sempre.

    BOCARRAE agora so rejeitados pelas prprias facas.A morte volta as costas criaoE fecha a oficina.

    OSINDUSTRIAISgritando com Bocarra, que l um jornalTraioeiro Bocarra, no suje o prato onde voc come!Pensa que no sabemos quem muito em segredo lanaMais carne ao mercado e empurra as cotaes para o abismo?H dias voc est liquidando carne!

    BOCARRACarniceiros desaforados, chorem no colo de sua mePorque enfim cessou o choro da carne martirizada!Voltem para casa e digam que um ao menosDentre vocs, siderado pelo clamor dos bois,

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    Preferiu ouvir a vossa grita a ouvir o grito deles!Eu quero o meu dinheiro e paz para a minha conscincia!

    UMCORRETORaos berros na porta da BolsaQueda vertiginosa na Bolsa de Valores!Aes postas venda em pacotes enormes.

    Cridle Sucessor de Bocarra & Cia arrasta para o fundoAs cotaes do ramo da carne.

    O tumulto se instala entre os industriais da carne. Avanam paraCridle, o qual est branco como giz.

    OSINDUSTRIAISAgora, Cridle, voc vai se explicar, olho no olho! Voc estliquidando aes a preo irrisrio?

    OSCORRETORES

    A cento e quinze por ao!

    OSINDUSTRIAISVoc tem merda na cabea?Voc quer se matar, mas est assassinando os outros!Seu cago! Criminoso!

    CRIDLEapontando BocarraEssa conversa com ele.

    GRAHAMcolocando-se frente de Cridle

    Quem pesca em guas turvas no caso no Cridle um outro, e os peixes seremos ns!Tem gente querendo aambarcar o ramo da carneInteiro, a jogada grande. Responda, Bocarra!

    OSINDUSTRIAISa BocarraCorrem boatos, Bocarra, de que ests cobrandoA dvida de Cridle que j vacila e CridleEle prprio se cala e aponta o dedo para voc.

    BOCARRA

    Se eu deixasse o meu dinheiro um minuto mais que fosse nasmos deste Cridle, que me confessou ele prprio estar quebrado,quem dentre vocs me levaria a srio como homem de negcios?E o que eu mais desejo que vocs me levem a srio.

    CRIDLEaos circunstantesH quatro semanas contadas fechei um contrato com Bocarra. Elecedeu a parte dele no negcio, um tero do total, por dez milhesde dlares. Hoje fico sabendo que naquela mesma tarde ele emsegredo passava a vender gado a preo vil, estragando mais aindao mercado que j estava frouxo. Em nosso contrato Bocarra se

    reservava o direito de exigir o dinheiro quando quisesse. A minhaideia era pag-lo vendendo uma parte das prprias aes dele, queestavam a bom preo, e usar as outras para levantar umemprstimo. Mas a a bolsa baixou. Hoje a parte de Bocarra novale dez milhes, vale trs, e o negcio inteiro em vez de trintamilhes vale dez. Estes dez milhes so o valor exato da dvidaque Bocarra quer que eu pague da noite para o dia.

    OSINDUSTRIAISVoc manobra contra o Cridle de quem noSomos aliados e, no entanto a sua manobra nos atinge

    Em cheio como voc sabe muito bem. VocEstragou o comrcio inteiro, o qual por sua vez o grandeCulpado pelo preo ridculo de nossas latasDe carne barata como areia em conseqnciaDa guerra de preos em que voc estrangulou Lennox.

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    BOCARRANingum mandou matarem tanto, Carniceiros frenticos! Agora quero o meu dinheiroNem que vocs tenham que mendigar. QueroO meu dinheiro! Tenho outros planos.

    OS

    CRIADORES

    Lennox est por terra. Cridle vacila. E BocarraVai embora com o dinheiro dele!

    OSPEQUENOSESPECULADORESAi de ns, os pequenos especuladores nuncaLembrados. Grande espetculo a quedaDe um colosso, mas a platia empolgada no vOnde ele cai nem quem ele esmaga ao cair.Bocarra, o nosso dinheiro!

    OSINDUSTRIAISOitenta mil latas a cinqenta, e tem de ser j!

    OSCOMPRADORESNem uma s!

    Silncio. Ouvem-se os tambores dos Boinas Pretas e a voz deJoana.

    A VOZDE JOANAPedro Paulo Bocarra! Onde est o Bocarra?

    BOCARRAQue tambores so estes? QuemPronuncia o meu nome?Logo aqui, ondeAs caras no tm disfarce e esto lambuzadas de sangue!

    Entram os Boinas Pretas. Cantam o seu hino de guerra.

    OSBOINASPRETAScantamAteno, ateno, ateno!Eis ali um homem falido.

    Vede esta moa reduzida a trapo!E o pranto deles no foi ouvido.Calem-se as buzinas, cesse o ronco dos motores!Pelo amor de Deus, algum atenda os sofredores!Mas ser possvel que vocs no enxerguem nada? um vosso igual, no lixo na calada!Despregai os olhos do prato de sopaE com Jesus recordemosO pobre sem roupa.Dizem vocs que nada disso resolveMas ns respondemos que a injustia perde o p

    Se marcharmos unidosCheios de f.Canhes e tanques j saram ruaAvies em quantidadeE cruzadores esto de prontidoPara dar ao faminto um pedao de po.Pois o vosso nmero, pobres da terraDe to horripilanteFar do governo o nosso ajudante.Em frente, pois, ao assalto, o corao sem rancores!Pelo amor de Deus, algum atenda os sofredores!

    Enquanto isto prossegue a batalha na Bolsa. Apesar dela, asgargalhadas vo ganhando terreno, acompanhando as ofertas.

    OSINDUSTRIAISOitenta mil latas pela metade do preo, mas com pagamento vista!

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    OSATRAVESSADORESNem uma s!

    OSINDUSTRIAISNeste caso, Bocarra, estamos liquidados.

    JOANAOnde est o Bocarra?

    BOCARRANo se mexa, Slift! Graham, MeyersFiquem na minha frente.No quero ser visto aqui.

    OSCRIADORESNesta Chicago inteira no se vende um boi.

    Este o dia da morte do estado de Ilinois.Pagando preos dia a dia mais altos vocs nos levaram criaoDe mais e mais boisQue agora ningum quer comprar.Voc, Bocarra, cachorro, o culpado do desastre.

    BOCARRAChega de negcios por agora. Graham, o meu chapu.

    [Preciso sair.Cem dlares pelo meu chapu.

    CRIDLEMaldito seja. Cridle sai.

    JOANAatrs de BocarraNo v embora, Mister Bocarra, e oua o que tenho a lhe dizer. Socoisas que todos podem ouvir. Silncio. No fujam, sei que os

    senhores no gostam que ns, os Boinas Pretas, apareamos aquino quartel de seus negcios e segredos. E estou informada tambmdas trapaas por trs do preo da carne. Mas se vocs pensam quenada disto se saber, enganam-se muito, agora e no dia do JuzoFinal, quando tudo vir a pblico, e quero ver a sua cara quando oSenhor Nosso Pai descansar os olhos grandes em vocs e

    perguntar: Onde esto os meus bois? O que fizeram com eles?Vocs ofereceram carne ao povo a preo acessvel? Onde foi parara carne que desapareceu? Contrafeitos, vocs inventaro respostascomo aquelas que publicam nos seus jornais, onde, alis nem tudoque est escrito verdade, enquanto os bois estaro mugindo nosmil lugares onde vocs os esconderam para lhes elevar o preo aoinfinito, e o mugido deles testemunhar contra vocs na presenado Todo-Poderoso.

    Gargalhadas.

    OSCRIADORESNs, os criadores, no vemos motivo para riso. Tributrios quesomos do bom e do mau tempo no vero

    [e no invernoAcreditamos em Deus maneira antiga.

    JOANAE agora um exemplo. Se algum constri uma barragem contra airracionalidade das guas e mil pessoas ajudam com o trabalhodas suas mos e aquele algum recebe um milho em pagamentoe a barragem cede to logo as guas chegam, afogando todos que

    trabalharam e muitos mais o que o homem que constri essetipo de barragem? Vocs diro que um homem de negcios, ou,conforme for, um sem-vergonha, mas ns dizemos a vocs queele um tonto. E vocs todos, que encarecem o po etransformam num inferno a vida dos homens, at que estes setransformem em diabos, vocs so uns tontos, pobres e tristes

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    tontos, e nada mais!OSCOMPRADORESaos gritosCom a vossa desconsideradaCorrida de preos e imunda sofreguido de lucroVocs cometem suicdio.Tontos!

    OSINDUSTRIAISMais tontos so vocs!No h quem possa com as crises!Inexorveis pairamSobre ns as leis da economia, essas desconhecidas.Em tremendos ciclos retornamAs catstrofes da natureza!

    OSCRIADORESAlgum nos estrangula, no digam que o responsvel

    [no ningum. maldade, uma refinada maldade!

    JOANAE por que tanta maldade no mundo? Nestas condies no podiamesmo ser diferente. Se o cristo obrigado a arrancar ao vizinhoo po de que necessita, para no falar na manteiga, e se at para oindispensvel o irmo tem de lutar contra o irmo, natural queos sentimentos nobres desapaream do peito humano. Mas vamossupor que amar ao prximo no fosse nada mais que servir ofregus. Logo o Novo Testamento fica fcil de entender e clara

    a atualidade dele, mesmo em nossos dias. Servir o fregus! O que servir, seno amar o prximo? preciso entender bem estaexpresso! Meus senhores, voz corrente que os pobres tmpouca moral, e verdade. Nos barracos l embaixo quem reina a imoralidade em pessoa, e com ela a revoluo.

    Mas eu lhes pergunto: como podem os pobres ter moral, se

    eles no tm nada? isto mesmo, como no ser roubo qualquercoisa que eles peguem? Meus senhores, a fora moral precisa defora aquisitiva, e basta aumentar a fora aquisitiva para aparecera fora moral. Vejam que por fora aquisitiva eu entendo uniacoisa muito simples e sem mistrio, estou pensando em dinheiro,cm salrio, o que nos traz de volta s questes prticas: se vocscontinuarem assim, essa carne vai ficar toda para vocs, porque opessoal l fora est sem fora aquisitiva.

    OSCRIADORESdescontentesAqui estamos com os nossos boisQue ningum est comprando.

    JOANAVocs ficam a de camarote, os grandes figures, certos de que assuas trapaas no sero descobertas e no querendo saber da misrial fora. Mas olhem aqui para eles, que vocs maltrataram e deixaram

    no estado que est se vendo, eles em quem vocs no queremreconhecer os seus irmos, venham para frente, os vergados eatribulados, venham para a luz do dia. No sintam vergonha.

    Joana mostra aos freqentadores da Bolsa os pobres que esto com ela.

    BOCARRAgritaTirem isso daqui.

    Ele desmaia.

    VOZAOFUNDOPedro Paulo Bocarra desmaiou.

    OSPOBRESEste cara o culpado de tudo!

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    Os industriais da carne desvelam-se por Bocarra.

    OSINDUSTRIAISTragam gua para Pedro Paulo Bocarra! Um mdico para Bocarra!

    JOANAVoc, Bocarra, me mostrou a maldadeDos pobres, e eu agora lhe mostroA pobreza dos pobres. Distantes de vocsE distantes, por isso mesmo, dos indispensveis bens materiaisVivem, l onde no vai a vista, aquelesQue forados por vocs pobreza e penria carecemDe comida e roupa a tal pontoQue distam, tanto quanto de vocs, de tudo quantoTranscenda a fome e os costumes mais animais.

    Bocarra volta a si.

    BOCARRAEles ainda esto aqui? Por favor, afastem essa gente.

    OSINDUSTRIAISOs Boinas Pretas? Voc quer que eles saiam?

    BOCARRANo, os que esto atrs deles.

    SLIFT

    Ele no abre os olhos enquanto eles no sarem.

    GRAHAMEnto voc no gosta de v-los? Mas foi vocQuem os deixou nesse estado.Voc fecha os olhos, mas

    Nem por isso eles desaparecem.

    BOCARRAPor favor, afastem essa gente daqui. Eu compro!Ouam todos: Pedro Paulo Bocarra est comprando!Para que eles tenham trabalho e se afastem daqui.Eu compro: oito semanas de produo de carne enlatada.

    OSINDUSTRIAISEle comprou! O Bocarra comprou!

    BOCARRAAo preo do dia!

    GRAHAMinterpelando-oE o que estiver estocado?

    BOCARRAdeitado no choEu compro.

    GRAHAMA cinqenta?

    BOCARRAA cinqenta!

    GRAHAMEle comprou! Ouam todos, ele comprou!

    CORRETORESusando megafonesPedro Paulo Bocarra sustenta o mercado da carne. Conforme rezao contrato ele absorve o estoque inteiro do cartel da carne aopreo do dia que de cinqenta e absorve tambm dois meses deproduo a partir do dia de hoje, igualmente a cinqenta. Em

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    quinze de novembro o cartel da carne entrega a Pedro PauloBocarra no mnimo quarenta mil toneladas de carne em conserva.

    BOCARRAE agora, amigos, por gentileza me tirem daqui.

    Bocarra sai carregado.

    JOANAParabns, o cavalheiro vai descansar!Ns aqui suando como burro de carga em nosso

    [trabalho missionrioE vocs a em cima metendo os ps pelas mos!Ouo dizer que Mr. Bocarra deseja que eu no fale? OraVejam, quem o senhorPara fechar a boca ao bom Deus? Ao boi que trabalhaNingum tem o direito de amarrar o focinho!

    Eu falo sim senhor.Aos pobresSegunda-feira vocs voltam ao trabalho.

    OSPOBRESNunca antes vimos gente assim. Mas os dois que estavam com elens quase no estranhamos. Tm cara muito pior que a do prprioBocarra.

    JOANAPara despedida cantaremos O po faltar no vai.

    OSBOINASPRETAScantandoO po faltar no vaiA quem no Cu se fiaJesus o nosso pai,Exemplo e alegria.

    No h frio no h fomeSe cantarmos o seu nome Jesus o nosso rei.

    OSCOMPRADORESO homem est ruim da cabea. O estmago deste pas Tomouuma indigesto de carne em lata e agora est virado. E o homemmanda enlatar mais carne Que ningum vai comprar. Este j era.

    OSCRIADORESMuito bem, o preo agora outro, miserveis carniceiros!O nosso boi vai custar o dobroPorque vocs precisam dele. Nem um tosto a menos.

    OSINDUSTRIAISDACARNEFiquem com tudo e engulam! Ns no queremos nada.Pois o contrato firmado aqui diante de todos

    papel e s. O homem que o firmouNo estava em seu juzo. Ele no levantaUm tosto de So Francisco a Nova YorkPara esse negcio de tatu.

    Os industriais saem.

    JOANAMas aqueles que buscam seriamente a palavra de Deus e opensamento Dele, e no s as cotaes da bolsa, e suponho quetambm aqui exista gente honrada, que faz negcios na f do

    Senhor, coisa contra a qual absolutamente no somos, enfim,estes venham domingo ao nosso servio religioso. Rua Lincoln, apartir das duas, a msica comea s trs, e a entrada grtis.

    SLIFTaos criadoresO que Bocarra promete ele cumpre. Irmos, que momento! O

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    mercado volta vidaO pior j passou, a crise est vencida.Benditos os empregadores, benditos os empregadosQue fbrica tornara felizes e congraados.A voz da razo ouvida com maturidadeTrouxe o bom senso nossa sociedade.Abram-se os portes, funcione o parque industrialE no trabalho que se entendem proletariado e capital.

    OSCRIADORESao encontro de Joana, na escadaTua nobre fala e presena causou entre ns, criadores,Muita impresso e vrios aquiEsto profundamente abalados. Tambm nsSofremos horrivelmente.

    JOANASaibam que estou de olho

    No Bocarra, ele despertou, e vocsQuando a necessidade apertarVenham comigo, buscar a ajuda dele.Ele agora no vai mais descansarAt que estejam todos melhor.Isto porque nas mos dele que est o remdio e por istoOlho nele.

    Joana e os Boinas Pretas saem, seguidos pelos criadores.

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    VI.

    DESENTOCANDO BICHINHOS

    No centro financeiro da cidade, a casa do corretor Sullivan Slift,que pequena e tem duas entradas.

    BOCARRAno interior da casa, com SliftTranque as portas, Slift, ponha aqui uma luz, e examine bem omeu rosto. E verdade que est tudo na cara?

    SLIFTTudo o qu?

    BOCARRABem, a minha profisso.

    SLIFTO comrcio de carne? Bocarra, voc levou a srio as falas daquelamulher?

    BOCARRAQual a fala dela; Eu nem ouviPorque atrs andava uma gente horrorosa de caraMiservel, daquela misria que prenuncia um tipo de friaQue vai nos varrer a todos, fiquei impressionadoDemais. Slift, agora

    Vou dizer o que realmente eu penso de nossos negcios:Assim como est na pura base de comprar e venderE os homens depenando uns aos outros friamenteEu acho que no vai dar. Eles so numerosos demaisOs aflitos clamando, e o nmero deles cresce.O que os nossos matadouros j viram passar no tem

    [mais perdo.

    Quando eles nos pegarem vo nos deixar na caladaComo jornal rasgado. Ns todos aquiJ no vamos morrer na cama. Antes dissoVo nos acuar contra o muro como se fssemos uma

    [matilha de lobosE limparo o mundo de nossa presenaE de nossos seguidores.

    SLIFTEles confundiram a tua cabea! parte Vou convenc-lo a comerum fil mal passado. Esta moleza uma doena antiga dele, ques vezes volta. Talvez um gosto de sangue lhe devolva o juzo.

    Slift pe um fil na frigideira.

    BOCARRAs vezes eu me pergunto

    Por que me comovem estas falas irreais e bisonhasA mesma e eterna demagogia muito cacete e mal ensaiada. talvez porque so trabalho gratuito, dezoito horas diriasNa chuva e com fome.

    SLIFTEm cidades como esta, que embaixo esto pegando fogoE so glidas nas alturas, no faltamNunca uns poucos para falar de uma coisa e outraQue podia estar melhor.

    BOCARRAMas o que , o que esta fala? Quando nestas cidadesSempre incendiadas e no bramido da corrente humanaEternamente descendo aos infernos o meu ouvido distingueUma das tais vozes, uma voz talvez ingnua, mas isenta

    [de bestialidade

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    Slift, para mim como se uma barra de ferro me fulminasse[os rins

    Em plena corrida. E mesmo isto que acabo de dizerSlift, como tudo o mais, so evasivas, poisO que me apavora no Deus, outra coisa.

    SLIFTOutra coisa?

    BOCARRAUma coisa que fica, no acimaUma coisa que fica abaixo de mim, E o que est desfalecendoNos matadouros e talvez no resista a mais uma noiteE, no entanto se avolumar pela manh, eu tenho certeza.

    SLIFTNo queres mais carne, querido Pedro Paulo? Lembra que agora

    tu podes comer com a conscincia tranqila, pois a partir de hojeno tens ms nada a ver com o assassinato das reses.

    BOCARRAAchas que devo? Talvez eu pudesse.Ser que j sou capaz?

    SLIFTCome alguma coisa e d um balano na situao, que no boa.Voc hoje comprou a totalidade do existente em matria delatas, sabia?

    Estou vendo, Bocarra, o fascnio com que meditas sobre oteu portentoso natural, mas permite que eu exponha brevemente atua situao, o lado externo, inessencial, da vida.

    Em primeiro lugar, compraste ao cartel da carne um estoquede quinze mil toneladas. Dentro de poucas semanas voc devercoloc-las no mercado, em cujo estmago hoje no h lugar para

    uma nica lata. Voc pagou cinqenta a unidade, mas o preo vaidescer a no mximo trinta. Em 15 de novembro, quando o preoestiver a trinta ou vinte e cinco, o cartel da carne te entregar maisquarenta mil toneladas quele mesmo preo de cinqenta.

    BOCARRAEstou perdido, SliftEstou liquidado, eu comprei carne! Slift o que foi que eu fiz!Slift, trago nos ombros a carne toda do mundo.Tal qual um Atlas trpego, carregado de toneladas de latariaVou direto para a misria. Hoje mesmo pela manhEram numerosos os que agonizavam; e euFui at l, para contemplar-lhes a falncia e rirE lhes dizer que j no existia ningum to tontoA ponto de comprar carne em lata.E l estava eu quando ouo a minha voz dizer:

    Eu compro tudo.Slift, comprei carne, estou perdido.

    SLIFTO que te escrevem os amigos de Nova York?

    BOCARRAEles me aconselham a comprar carne.

    SLIFTA comprar o qu?

    BOCARRAA comprar carne.

    SLIFTEnto por que essa choradeira, se foi carne o que voc comprou?

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    BOCARRA, eles me aconselham a comprar carne.

    SLIFTMas o que voc fez, voc comprou carne.

    BOCARRA verdade, eu comprei carne, mas compreiNo por causa do que est escrito nesta cartaQue est errada e pura teoria, no por motivosBaixos, mas porque aquela pessoa me fulminou, juroQue mal passei os olhos na cartaQue s hoje cedo veio s minhas mos.Olhe ela aqui: Querido Pedro Paulo!.

    SLIFTcontinuando a leitura

    As novas hoje so boas, saiba que o nosso dinheiro j comea adar frutos: na Cmara dos Deputados haver muitos votos contraas tarifas interestaduais, de modo que parece aconselhvel, caroPedro Paulo, comprar carne. Amanh voltaremos a escrever.

    BOCARRAEsta corrupo pelo dinheiro outra coisaQue no devia existir. FacilmenteEstouram guerras com tais pretextos, e milharesPerdem a vida por causa de dinheiro sujo.Caro Slift, pressinto que estas novas no trazem nada de bom.

    SLIFTDepende de quem forem os missivistas. Subornar, suprimirtarifas, declarar guerras No para qualquer um. gente capaz?

    BOCARRA gente com liquidez.

    SLIFTQuem so?

    Bocarra sorri.

    SLIFTNeste caso os preos talvez voltassem a subir?Escaparamos com ferimentos leves.E uma perspectiva, no fosse a muita carneDos criadores, que oferecida ansiosamente no mercadoFar que os preos voltem a baixar. No, BocarraNo entendo a carta.

    BOCARRA

    Vamos imaginar o seguinte: algum roubouE algum o pegou. O primeiro est perdidoA no ser que cause uma segunda desgraa.Se o fizer, est do outro lado.A carta (que est errada) exige (para estar certa)Um tal crime.

    SLIFTUm crime?

    BOCARRA

    De que nunca serei capaz. Porque eu agoraQuero viver tranqilo. Ganhem os outrosCom este crime, e ganhar eles vo.Bastaria comprar a carne disponvel por aConvencer os criadores de que h carneEm excesso no mercado, lembrando-lhes que Lennox

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    Fechou, para ento lhes comprarTudo o que tiverem. Sobretudo isto:Comprar aos criadores toda a carne que tiverem, aOs logrados naturalmente passam a ser eles, no, euNo quero nada com isto.

    SLIFTVoc no devia ter comprado carne, Pedro Paulo!

    BOCARRA, no vai dar certo, Slift.Eu no compro um chapu, um sapato que sejaEnquanto no sair desta histria, e me dou por felizSe sair dela com cem dlares de meu.

    Tambores. Entra Joana, acompanhada dos criadores e de algunstrabalhadores.

    JOANAVamos desentoc-lo como um bichinho. Vocs fiquem do lado del, enquanto eu canto do lado de c. Ele vai sair por ali, para meescapar, porque ele j no gosta de me ver. Ela ri. Nem a mim,nem aos que me acompanham.

    OSCRIADORESpostam-se diante da porta da direita.

    JOANAdiante da porta da esquerdaVenha c para fora, Mister Bocarra, preciso falar-lhe a respeito da

    misria dos criadores de gado do estado de Illinois. Esto comigotambm alguns trabalhadores que querem saber o dia dareabertura da fbrica.

    BOCARRASlift, onde fica a outra porta, eu no quero encontr-la, nem

    sobretudo os que esto com ela. E tambm no vou abrir fbricanenhuma agora.

    SLIFTSaia por aqui.

    Os dois passam por dentro da casa para a porta da direita.

    OSCRIADORESdiante da porta da direitaVenha c para fora, Bocarra, voc o culpado de nossa desgraa,somos mais de dez mil criadores em Illinois e estamos sem sada.Voc vai ter que comprar o nosso gado.

    BOCARRAFecha a porta, Slift! Eu no compro.Eu que j estou arcando com toda a carne enlatada da terraVou pr nas costas tambm o gado todo de Srius?

    Atlas, que mal e mal pode com o nosso planeta, no podeAjudar a carregar Saturno.Haveria quem me comprasse o gado?

    SLIFTPossivelmente Graham, que precisa de carne verde.

    JOANAdiante da porta da esquerdaNo sairemos daqui enquanto a situao dos criadores no estiverresolvida.

    BOCARRAPossivelmente Graham, de fato, este precisa de gado. Slift, saia ediga a eles que vou pensar dois minutos.

    Slift sai.

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    SLIFTaos criadoresPedro Paulo Bocarra est examinando o pedido de vocs. Elepede dois minutos para refletir.

    Slift volta a entrar.

    BOCARRANo vou comprar. Ele comea afazer clculos. Slift, eu compro.Slift me traga tudo que se parea a boi ou porco, que eu compro,tudo que cheire a banha, que eu compro, e pode me trazer toda equalquer mancha de gordura, que eu sou comprador, ao preodeste dia, que cinqenta.

    SLIFTVoc, Bocarra, no compra um chapu que sejaMas compra todo o gado de Illinois.

    BOCARRA, vou fazer esta ltima compra. Est decidido, Slift.Suponha:Ele desenha a letra A na porta de um armrio.Algum faz urna bobagem, A uma bobagem.Foi o corao que o levou a fazer a bobagem.Por cima ele agora faz B, e B tambm uma bobagem.Mas acontece que A e B juntos do certo.Deixa entrar os criadores, gente boaQue trabalha pesado e se veste com decnciaE cujo aspecto no me apavora.

    SLIFT sai e dirige-se aos criadoresPara salvar o estado de Illinois e impedir o naufrgio de seusfazendeiros e criadores, Pedro Paulo Bocarra se decidiu a comprartodo o gado que esteja venda. Todavia os contratos no podem serfeitos em nome dele, porque o nome dele no deve ser mencionado.

    OSCRIADORESViva Pedro Paulo Bocarra, que est salvando o negcio dos criadores!

    Eles entram na casa.

    JOANAfalando alto, para que eles ouamDiga a Mister Bocarra que os Boinas Pretas agradecem em nomede Deus. Aos trabalhadores Se os que compram o gado e se os quevendem o gado esto satisfeitos, vai haver po tambm para vocs.

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    VII.

    OS MERCADORES SO EXPULSOS DO TEMPLO

    A casa dos Boinas Pretas.

    Os Boinas Pretas esto sentados em volta de uma mesa compridacontando as esmolas recebidas. O dinheiro das vivas e dosrfos est em latinhas.

    OSBOINASPRETAScantamDai aos pobres e s crianasQue tm frio e no tm poDai esmolas a JesusQue vos traz a salvao.

    PAULUS SNYDER, tenente dos boinas pretas levanta-se

    muito pouco!Dirigindo-se aos pobres mais ao fundo, entre osquais Dona Luckerniddle e Gloomb. Vocs outra vez! Agora nosaem mais daqui? Os matadouros esto abertos e trabalhando!

    DONA LUCKERNIDDLEQue idia! Os matadouros esto fechados.

    GLOOMBCorreu o boato que iam abrir, mas no abriram.

    SNYDER

    No cheguem to perto da caixa.

    Ele faz gestos para que se afastem. Entra Mulberry, oproprietrio da casa.

    MULBERRYO que est havendo com o meu aluguel?

    SNYDERMeus queridos Boinas Pretas, caro Senhor Mulberry, estimadoauditrio! No que diz respeito difcil questo das finanas, umaboa causa fala por si, embora necessite de alguma publicidade. Atagora, a nossa pregao tem se dirigido aos pobres e aospauprrimos, na suposio de que os mais necessitados da AjudaDivina seriam tambm os mais abertos palavra de Deus, alm deformarem uma grande massa, que o que resolve.Inexplicavelmente a experincia nos tem mostrado que estascamadas sociais manifestam bastante dureza em relao ao Senhor. possvel, contudo que procedam assim porque no tm nada deseu. Por via das dvidas eu, Paulus Snyder, resolvi convocar emvosso nome as famlias prsperas e cotadas de Chicago, para quenos ajudem sbado prximo, quando tentaremos uma ofensiva

    frontal contra a descrena e o materialismo nesta nossa cidade,sobretudo nas camadas nfimas. O dinheiro que levantarmos servirentre outras coisas para pagar o aluguel atrasado que o nossoprezado senhorio, Mr. Mulberry, tem tido a gentileza de no cobrar.

    MULBERRYSeria deveras bem-vindo, mas no seja por isso.

    SNYDERBem, agora vamos todos ao trabalho, alegremente, e esfreguem,sobretudo o saguo da entrada.

    Os Boinas Pretas saem.

    SNYDERaos pobresDigam, os trabalhadores continuam pacientes? Eles ainda noesto dizendo coisas subversivas contra o locaute?

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    DONA LUCKERNIDDLEDesde ontem a gritaria grande, porque eles souberam que asfbricas receberam encomendas.

    GLOOMBMuitos j esto dizendo que sem violncia no haver trabalhonunca mais.

    SNYDERconsigo mesmoAs circunstncias so favorveis. Se os magnatas da carne foremrecebidos a pedradas e se refugiarem aqui, vo nos dar ouvidos.Aos pobres Vocs podiam pelo menos cortar a nossa lenha!

    OSPOBRESNo tem mais lenha, Seu Major.

    Entrada dos magnatas Crdle, Graham, Meyers e do corretor Slift.MEYERS isto que eu me pergunto, Graham: onde est o boi?

    GLOOMBEu me pergunto a mesma coisa: onde estar o boi?

    SLIFTEu tambm.

    GRAHAMNo diga, tambm voc? A mesma coisa o Bocarra?

    SLIFTA mesma coisa o Bocarra.

    MEYERSAnda por a um suno que est comprando tudoE que bem sabe que temos compromissoPassado em cartrio de entregar carne enlatadaE que, portanto precisamos do boi.

    SLIFTQuem ser?

    GRAHAMd-lhe um soco no estmagoBrincalho!Voc quer enganar algum? Diga ao PedrinhoQue desta vez pode no dar certoEle ps o dedo no nervo da vida.

    SLIFTa SnyderVocs o que querem de ns?

    GRAHAMd-lhe outro socoO que ser que eles querem, Slift?

    Slift exagera no gesto de quem d dinheiro.

    GRAHAMVoc acertou, Slift

    MEYERSa SnyderPode mandar bala! Eles se sentam nos genuflexrios.

    SNYDERno plpitoNs, os Boinas Pretas, soubemos que h cinqenta mil homensparados e sem trabalho nos matadouros. E tambm que vrios jesto reclamando, dizendo que est na hora de fazerem algumacoisa. Alis, quando este ou aquele busca os culpados pelo

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    desemprego dos cinqenta mil, o nome dos senhores vem baila.Eles vo acabar lhes tirando as fbricas e dizendo: vamos fazercomo os bolcheviques e tomar as fbricas em nossas mos paraque todos tenham trabalho e comida. Pois hoje voz corrente quea desgraa no natural como a chuva e que ela organizada poruns poucos que tiram proveito dela. Bem entendido, a intenodos Boinas Pretas dizer aos pobres que a desgraa inevitvelsim senhor, como a chuva, que ningum explica de onde vem, eque o sofrimento o destino deles, pelo qual mais adiante serorecompensados.

    OSTRSINDUSTRIAISPara que falar em recompensa?

    SNYDERA recompensa de que falamos paga depois da morte.

    OSTRSINDUSTRIAISQuanto vocs querem pelo servio?

    SNYDEROitocentos dlares por ms, para pagar a sopa quente e a msicachamativa. Em nossa pregao prometeremos tambm que osricos sero castigados quanto estiverem mortos.

    Os trs riem s gargalhadas

    SNYDER

    E tudo isto por apenas oitocentos dlares por ms!

    GRAHAMPara que tanto, rapaz. Pea quinhentos!

    SNYDERSetecentos e cinqenta ainda seria possvel, desde que...

    MEYERSSetecentos e cinqenta j mais razovel. Enfim, digamosquinhentos.

    GRAHAMVocs no podem deixar por menos de quinhentos.Aos outros a quantia certa.

    MEYERS frenteConfessa, Slift, as boiadas esto com vocs.

    SLIFTBocarra e eu no compramos um tosto de gado, to certo comoeu estar sentado aqui. Deus est de prova.

    MEYERSa SnyderQuinhentos dlares? muito dinheiro. Quem vai pagar tudo isso?

    SLIFTE, o senhor precisa achar algum que lhe d isso tudo.

    SNYDERClaro, claro.

    MEYERS

    No ser fcil.

    GRAHAMConfesse, o Pedrinho est com os bois.

  • 7/22/2019 BRECHT Bertolt a Santa Joana Dos Matadouros

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    SLIFTrindo tudo malandro, doutor Snyder.

    Todos riem, salvo Snyder.

    GRAHAMa MeyersO homem no tem senso de humor. No estou gostando.

    SLIFTVamos ao principal. De que lado o senhor est: do lado de c dabarricada, ou do lado de l?

    SNYDEROs Boinas Pretas esto acima do conflito, senhor Slift. Portanto,do lado de c.

    Entra Joana.

    SLIFTChegou a nossa Santa Joana do Mercado de Carnes!

    OSINDUSTRIAISgritando com JoanaNo estamos nada satisfeitos com a senhora, nada; por que asenhora no leva um recado nosso ao Bocarra? Consta que asenhora influente e que ele come na palma de sua mo. Ocorreque no h boi na praa e que desconfiamos do Bocarra. Everdade que ele faz tudo que a senhora pede? Diga a ele paradesentocar as boiadas. Olhe, se a senhora conseguir, pagamos

    quatro anos de aluguel aos Boinas Pretas.

    JOANAviu os pobres e assustou-seO que vocs esto fazendo aqui?

    DONA LUCKERNIDDLEvem frenteOs vinte almoos esto comidos.No se enfurea por me ver de novo aqui.Com prazer eu desapareceria de sua vista.E isto a crueldade da fome, que satisfeitaEmbora, no deixa de voltar.

    GLOOMBvem frenteEu te conheo, fui eu quem insistiuPara que voc trabalhasse na fresaQue me levou o brao. Hoje eu faria coisa pior.

    JOANAPor que vocs no esto trabalhando? Se eu arranjei trabalho para vocs!

    DONA LUCKERNIDDLEPois sim, os matadouros esto fechados.

    GLOOMBCorreu que eles iam ser abertos, mas no foram.

    JOANA aos industriaisEles ento continuam espera?Os industriais se calam.E eu pensando que estivessem abrigados.Esto debaixo de neve h sete diasE esta mesma neve que os mata os escondeDa vista dos outros homens. Que to facilmente

    Eu pudesse esquecer o que todos gostamos de esquecerPara estarmos tranqilos! Basta algum dizerQue o pior j passou e ningumFaz questo de verificar.Aos industriais.Pois o Bocarra no comprou carne de vocs? Comprou, a meu

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    pedido! E nem assim vocs abrem as suas fbricas?

    OSTRSINDUSTRIAISNo tem dvida, ns quisemos abrir.

    SLIFTMas antes disso vocs querem depenar os criadores!

    OSTRSINDUSTRIAISComo vamos comear o abate, se no h boi na praa?

    SLIFT

    Quando compramos carne de vocs, o Bocarra e eu supusemosque vocs fossem retomar o trabalho, e que os trabalhadores emconseqncia pudessem comprar essa mesma carne. Agora quemvai comer a carne que ns compramos de vocs? Para quemcompramos carne, se os que tm estmago no tm dinheiro?

    JOANA

    J que a ferramenta de trabalho dessa gente so as imensas fbricas einstalaes que vocs controlam, pelo menos deixem o trabalhadorentrar, porque seno ele est liquidado, o que alis no deixa de serurna explorao, e se os mseros, acuados at onde possvel, novem sada salvo o cacete, para dar na cabea de seus perseguidores,a ento vocs enchem as calas, eu j notei, a se lembram dareligio, para botar panos quentes, mas Deus ainda tem amor-prprio e no vai servir de criado para limpar a imundcie que vocsdeixaram. Eu me mato de correr entre uns e outros, convencida de

    que ajudando em cima ajudava tambm os que esto por baixo,como se houvesse uma espcie de unidade e todos remassem nomesmo barco, mas fui uma grandssima tonta.Para ajudar os que so pobres, parece que s mesmo contra vocs.Mas verdade ento que vocs no tm respeito nenhum pelosemblante humano? Nesse caso, pode ocorrer que vocs prprios

    j no sejam reconhecidos como humanos, que sejam vistos comoferas, as quais preciso caar no interesse da ordem e dasegurana pblica! Vocs s tm a coragem de vir casa de Deusporque esto cheios de ouro, ganho todos ns sabemos onde ecomo, desonestamente. Mas vocs bateram porta errada, vocstm que ser expulsos daqui, expulsos a pau. Sim senhores, nofaam essa cara, um homem no deve ser tratado como um bicho,mas vocs no so homens, fora daqui, e depressa, que seno eufao uma bobagem, no me segurem, eu sei muito bem o queestou fazendo, infelizmente durante muito tempo eu no soube.

    Joana utiliza o cabo da bandeira para expuls-los. Os BoinasPretas aparecem nas portas.

    JOANAFora daqui! Vocs querem transformar a casa de Deus num chiqueiro?Numa segunda Bolsa de Carnes? Fora daqui! Vocs no tm nada que

    pr os ps aqui. No queremos ver essas caras aqui. Voc so indignose eu ponho vocs para fora. Apesar do seu dinheiro!

    OSTRSINDUSTRIAISComo no. Mas conosco vo-se embora, modesta eirreversivelmente, quarenta aluguis mensais. Menos mal, poistodo tosto nos ser necessrio, aproximam-se tempos tremendos,nunca vistos no mercado de carnes.

    Saem os industriais e Slift, o corretor.

    SNYDERcorrendo atrs delesFiquem, meus senhores, no vo embora, ela no tem procuraode ningum! E uma pobre infeliz! Ela vai ser despedida! Ela faro que os senhores mandarem!

    JOANAaos Boinas Pretas

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    Ficou tudo um pouco esquerdo por causa dos aluguis. Mas istopouco importa. A Dona Luckerniddle e a Gloomb Sentem-se aquiatrs, eu vou trazer uma sopa para vocs.

    SNYDERde voltaVai, convida os pobres para a ceia e servegua de chuva e belas palavrasUma vez que tambm o cu no lhes traz consoloUma vez que tambm o cu s lhes traz neve.Sem qualquer humildade soltasteAs rdeas ao teu primeiro impulso! NadaMais fcil que expulsar o impuro com altivez.Voc torce o nariz para o po que ns precisamos comer.Voc no s pergunta como ele foi feito, comoAinda por cima quer um pedao. Vai, anglicaSai na chuva e continua a ser justa perdida na neve!

    JOANAIsso quer dizer que eu devo tirar o meu uniforme?

    SNYDERDevolva o seu uniforme e faa a sua mala! Saindo desta casa vocleva essa gentinha que voc nos trouxe. Voc atraiu s gentinha eescria, e agora vai fazer parte dela. V buscar as suas coisas.

    Joana sai e volta com uma pequena mala. Est vestida como umamoa pobre do interior.

    JOANASaio em busca do rico Bocarra, a quemOs pavores e os bons sentimentos assaltamPara que ele nos ajude. No voltareiA vestir uniforme nem esta boina pretaNem voltarei a esta casa querida

    Dos cnticos de graa e das iluminaes enquantoNo tiver ganho e convertido nossa causaIntegralmente o rico Bocarra.Embora o dinheiro como um cncer malignoPossa ter deformado o ouvido e a prpria compleioHumana dos ricos de modo a exil-los e torn-losSurdos nas suas alturas aos gritos da aflio!Pobres aleijes!No meio dos quais, ainda assim, h de se encontrar um justo!

    Sai.

    SNYDERPobre ignorante!E isso que voc no v: integradosEm campos colossais defrontam-sePatres e empregados

    Frentes em luta: no h conciliao.Vai, corre de um campo a outro, conciliadora e mediadoraNo serve a nenhum e naufraga.

    MULBERRYentrandoVocs j esto com o dinheiro?

    SNYDERComo se Deus no tivesse com que pagar o aluguel desta suamodesta morada na terra, aluguel que est caro, Mr. Mulberry.

    MULBERRYPagar, exatamente, disso que se trata! O senhor disse a palavracerta, Mr. Snyder! Se Deus que est no cu paga, muito bem. Masse no paga, no d. Se Deus no pagar o aluguel at sbado denoite, Ele vai para a rua. Estamos entendidos?

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    VIII.

    DISCURSO DE PEDRO PAULO BOCARRASEGUNDO O QUAL O CAPITALISMO E ARELIGIO SO INDISPENSVEIS

    Escritrio de Bocarra.

    BOCARRAAgora, Slift, chegou o diaEm que o bondoso Graham e os outrosTodos que especulavam na baixaSero obrigados a comprar a carneQue eles nos devem.

    SLIFT

    Eles no vo pagar barato, porqueTudo que muge nos mercados de Chicago neste dia de hoje gado nosso.E os sunos que eles nos devem somos nsQuem vai lhes vender. A vai sair caro.

    BOCARRAE agora solta a matilha de teus compradores, Slift!Para que enervem o mercado com a sua busca furiosaDe tudo que lembre de perto ou de longe uma vacaOu um porco a fim de empurrar os preos para cima.

    SLIFTH novidades da tua Joana?No mercado de carneCorre o boato de que voc dormiu com ela.Desmenti categoricamente. Desde que ela nos expulsou

    A todos do templo, no se ouviu mais falar nela como se a escura e tremenda Chicago a tivesse engolido.

    BOCARRAGostei da simplicidadeCom que ela ps vocs para fora. Aquela no tem medo de nadaE se acaso eu estivesse lTambm seria posto na rua, o que eu amoNela, o que amo naquela casaE que gente como eu eles no admitem.Slift, empurre o preo para oitenta, vamos reduzir estes GrahamsA mingau, onde afundaremos o nosso pS pelo gosto de recordar o seu molde.Eu no solto um grama de carne poisDesta vez lhes tiro o couro definitivamenteComo do meu natural.

    SLIFTAlegra-me, Bocarra, que voc tenha vencidoA fraqueza dos dias passados. E agoraVou ver como eles compram gado.

    Slift sai.

    BOCARRAO certo seria arrancar de vez o couroA esta cidade maldita para explicarO negcio da carne rapaziada.

    Gritaro depois que foi "criminoso".

    Entra Joana com uma mala.

    JOANABom-dia, Mister Bocarra. O senhor difcil de encontrar. Por

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    enquanto vou deixar as minhas coisas ali. que no estou maiscom os Boinas Pretas. Houve desentendimentos entre ns. Aachei que era uma ocasio para procurar Mister Bocarra. Agoraque no tenho o desgaste do trabalho missionrio, me sobra maistempo para os casos individuais. E penso, com sua licena, meocupar um pouco do senhor. Sabe, eu j havia notado que osenhor mais aberto que muitos outros. Estes sofs antigos so osmelhores. Para que o lenol em cima? Nem dobrado direito eleest. O senhor dorme aqui mesmo no escritrio? Eu pensava quemorasse num daqueles palacetes. Bocarra se cala. Mas o senhortem toda a razo, economia se faz nas pequenas coisas como nasgrandes, mesmo sendo o rei dos frigorficos. No sei por que,quando vejo o senhor me vem cabea o episdio de Deus nossoPai que busca Ado no paraso e chama: Ado, onde ests?. Osenhor est lembrado? Ela ri. Ado, para variar, est escondidoatrs de umas moitas, enfiado at os cotovelos no sangue de umanovilha, e nesse estado que ele ouve a voz de Deus. Ele faz de

    conta que no est ali. Mas Deus no deixa por menos e insiste:Ado, onde ests?. E Ado, mortificadssimo e com as faces emfogo, responde: Voc me busca logo agora que matei a novilha.No diga nada, eu sei muito bem, eu no devia ter feito isso.Enfim, a sua conscincia hoje talvez no esteja comprometida,hem Mister Bocarra?

    BOCARRAA senhora ento no est mais com os Boinas Pretas?

    JOANA

    No estou. E meu lugar tambm no mais l.

    BOCARRAE a senhora tem vivido de qu?

    Joana cala.

    BOCARRATem vivido de nada. Faz tempo que a senhora no est com osBoinas Pretas?

    JOANAOito dias.

    BOCARRA solua no fundo da cenaTransformada a esse ponto, em s oito dias!Onde esteve? Com quem falou? O que ter sidoIsto de que falam as marcas no seu rosto?A cidadeDe onde ela vem, eu ainda no a conheo.Ele traz comida numa bandeja.Vejo voc muito transformada, olhe aqui um prato.Eu no vou comer.

    Joana olha a comida.

    JOANAMister Bocarra, depois que expulsamos os ricos de nossa casa...

    BOCARRA... o que eu apreciei muito e achei justo...

    JOANA... o proprietrio dela, que vive do aluguel, disse que nos despeja

    sbado que vem.

    BOCARRASei, e a situao econmica dos Boinas Pretas piorou?

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    JOANA isso, e achei que a ocasio era boa para procur-lo. Ela comeaa comer com sofreguido.

    BOCARRANo tem dvida. Eu vou ao mercado e levanto o dinheiro que forpreciso. Vou mesmo, e digo mais, eu levanto esse dinheiro nemque seja para arrancar o couro nossa cidade. Eu fao isso porvocs. O dinheiro naturalmente est caro, mas eu levanto.Vai sertudo conforme o seu gosto.

    JOANASim, mister Bocarra.

    BOCARRAVoc v at l e diga a eles que o dinheiro sai, at sbado ele sai.O Bocarra vai levant-lo. Diga que ele acaba de ir ao mercado de

    carnes para levant-lo. Faltou sorte na questo dos cinqenta mildesempregados, no foi o que ns queramos. No deu paraarranjar o trabalho para eles na hora. Mas para voc eu fao umaexceo: os seus Boinas Pretas sero poupados, eu levanto essedinheiro. V e diga isso a eles.

    JOANAVou, mister Bocarra!

    BOCARRAEst aqui no papel, por escrito. Tome.

    Tambm eu lamento que eles estejam paradosNos matadouros esperando por um trabalho que no bom.Cinqenta milEspalhados plos ptios e que nem de noite saem mais daqui.Joana pra de comer.O fato que neste negcio

    Se trata do ser e do nada: ouSou o mais forte de minha class