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207 Manoela Hoffmann Oliveira 1 Diego Augusto Maia Baptista 2 O escritor alemão Bertolt Brecht (1898-1956) viveu em tempos conturbados, época das duas guerras mundiais e do nazismo, sendo obrigado ao exílio durante 15 anos (1933-1948) com sua fa- mília. Com a fundação do Berliner Ensemble, em 1949, na Berlim oriental, sob a intendência de sua mulher, a atriz Helene Weigel, o autor pôde final- mente desfrutar de condições adequadas para de- senvolver seu trabalho. Ao longo de sua trajetória, Brecht sempre pro- moveu e participou regularmente de conversas e debates públicos ou restritos aos seus colaborado- res diretos, conferências e transmissões de rádio sobre questões relativas às suas peças e encenações e ao teatro em geral. 3 O diálogo foi utilizado como um verdadeiro método de teorização, ultrapassan- do o caráter ocasional, refletindo um esforço de construção coletiva e “dialética” do conhecimento e a posição política do autor. Assim, o conjunto dos diálogos brechtianos tem o status de parte au- têntica da reflexão estética do artista. 1 Manoela Hoffmann Oliveira: doutoranda em Ciências So- ciais (Unicamp) e tradutora. 2 Diego Augusto Maia Baptista: doutorando em Sociologia (Unicamp) e tradutor. 3 A relevância do gênero diálogo em Brecht é inequívoca. Para uma lista dos registros, suas diferentes característi- cas, tipos, funções e formas de transmissão, ver: KNOPF, J.: Gespräche. In Brecht Handbuch, v. 4. Stuttgart-Weimar, 2003. Sobre a dramática de tipo A Mãe, de Bertolt Brecht. (Tradução e Apresentação) À época do registro ora publicado, Brecht vivia exilado na Dinamarca (1933-1939). 4 Por intermé- dio do colaborador e camarada Hanns Eisler, que escreveu a música de diversas peças de Brecht, in- clusive para A Mãe, e de Victor Jerry Jerome, da divisão de Agitprop do partido comunista norte- americano, o grupo de teatro Theatre Union, de Nova Iorque, decidiu levar ao palco a peça A Mãe, traduzida pelo escritor Paul Peters e depois enviada a Brecht. Paul Peters adaptou a peça de modo naturalis- ta, fato que imediatamente desagradou Brecht, que havia despendido grandes esforços para “evitar na- turalismos”, pois para ele, “o movimento dos tra- balhadores necessita de formas grandes e simples” (BRECHT apud HECHT, 1998, p. 457), de modo que, assim como estava o texto, Brecht não con- cordaria com sua encenação. Esse foi o início de uma relação tumultuada e conflituosa com o Thea- tre Union, em que Brecht foi, em diversas ocasiões, deliberadamente desrespeitado com uma audácia e insistência que hoje nos surpreendem. O centro da disputa era justamente o naturalismo repudiado por Brecht: “Já estou até o pescoço com a velha trivialidade [Spielerei] naturalista. Isso se ajusta à lâmpada a óleo, mas não à luz elétrica” (BRECHT apud HECHT, 1998, p. 457). 4 Nosso relato das circunstâncias baseia-se em HECHT, W. Brecht Chronik 1898-1956. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998. Repertório, Salvador, nº 19, p.207-212, 2012.2

Brecht e a Dramática Do Tipo a Mãe, De Gorki - Tradução

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    Manoela Hoffmann Oliveira1Diego Augusto Maia Baptista2

    O escritor alemo Bertolt Brecht (1898-1956) viveu em tempos conturbados, poca das duas guerras mundiais e do nazismo, sendo obrigado ao exlio durante 15 anos (1933-1948) com sua fa-mlia. Com a fundao do Berliner Ensemble, em 1949, na Berlim oriental, sob a intendncia de sua mulher, a atriz Helene Weigel, o autor pde final-mente desfrutar de condies adequadas para de-senvolver seu trabalho.

    Ao longo de sua trajetria, Brecht sempre pro-moveu e participou regularmente de conversas e debates pblicos ou restritos aos seus colaborado-res diretos, conferncias e transmisses de rdio sobre questes relativas s suas peas e encenaes e ao teatro em geral.3 O dilogo foi utilizado como um verdadeiro mtodo de teorizao, ultrapassan-do o carter ocasional, refletindo um esforo de construo coletiva e dialtica do conhecimento e a posio poltica do autor. Assim, o conjunto dos dilogos brechtianos tem o status de parte au-tntica da reflexo esttica do artista.

    1 Manoela Hoffmann Oliveira: doutoranda em Cincias So-ciais (Unicamp) e tradutora.2 Diego Augusto Maia Baptista: doutorando em Sociologia (Unicamp) e tradutor.3 A relevncia do gnero dilogo em Brecht inequvoca. Para uma lista dos registros, suas diferentes caractersti-cas, tipos, funes e formas de transmisso, ver: KNOPF, J.: Gesprche. In Brecht Handbuch, v. 4. Stuttgart-Weimar, 2003.

    Sobre a dramtica de tipo A Me, de Bertolt Brecht. (Traduo e Apresentao)

    poca do registro ora publicado, Brecht vivia exilado na Dinamarca (1933-1939).4 Por interm-dio do colaborador e camarada Hanns Eisler, que escreveu a msica de diversas peas de Brecht, in-clusive para A Me, e de Victor Jerry Jerome, da diviso de Agitprop do partido comunista norte-americano, o grupo de teatro Theatre Union, de Nova Iorque, decidiu levar ao palco a pea A Me, traduzida pelo escritor Paul Peters e depois enviada a Brecht.

    Paul Peters adaptou a pea de modo naturalis-ta, fato que imediatamente desagradou Brecht, que havia despendido grandes esforos para evitar na-turalismos, pois para ele, o movimento dos tra-balhadores necessita de formas grandes e simples (BRECHT apud HECHT, 1998, p. 457), de modo que, assim como estava o texto, Brecht no con-cordaria com sua encenao. Esse foi o incio de uma relao tumultuada e conflituosa com o Thea-tre Union, em que Brecht foi, em diversas ocasies, deliberadamente desrespeitado com uma audcia e insistncia que hoje nos surpreendem. O centro da disputa era justamente o naturalismo repudiado por Brecht: J estou at o pescoo com a velha trivialidade [Spielerei] naturalista. Isso se ajusta lmpada a leo, mas no luz eltrica (BRECHT apud HECHT, 1998, p. 457).

    4 Nosso relato das circunstncias baseia-se em HECHT, W. Brecht Chronik 1898-1956. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998.

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    Brecht, prevendo as dificuldades de encenao da pea original, diante das quais o diretor inseriria descries do meio e criaria uma atmosfera natura-lista, oferece-se para dirigir a pea. Era fundamen-tal que o contedo poltico da pea fosse encenado na forma pensada por ele.

    Margarete Steffin foi encarregada por Brecht de transmitir a Eisler, em Nova Iorque, as seguintes condies para que o projeto de apresentar a pea pudesse ser levado adiante: a manuteno da verso original; que Brecht fosse o diretor; e o pagamento dos custos da sua viagem com os dividendos obti-dos. Tal deciso foi tambm uma resoluta tentativa de impedir a repetio do fiasco de A pera dos Trs Vintns, acontecido em Nova Iorque dois anos antes.

    A direo do Theatre Union envia ento Ma-nuel Gomez para Svendborg, com a misso de en-trar em acordo com Brecht. Ambos se entendem sobre a concepo da pea e fecham um contrato para a representao de A Me. Nele constava que nenhuma parte da pea poderia ser suprimida sem o consentimento de Brecht, que depois da reso-luo informa detalhadamente Paul Peters sobre como o texto deveria ser estabelecido.

    Em outubro de 1935, Brecht viaja para Nova Iorque. As primeiras complicaes causou-lhe o jovem e inexperiente diretor de 23 anos, Victor Wolfson, que era da opinio de que a pea deve-ria ser encenada segundo a concepo do grupo e sem a influncia de seu autor. Apoiado pelo teatro, Wolfson no transferiu a direo da pea para Bre-cht. Os atores, por sua vez, eram demasiadamen-te fracos. Diante da franca irritao de Brecht, o teatro resolve proibi-lo de dar instrues durante os ensaios, o que evidentemente no foi obedecido por Brecht.

    Aps quase um ms de sua chegada, o tea-tro comunica que ser necessrio fazer cortes na pea, pois quer apresentar dela uma verso redu-zida. A situao no era melhor para Eisler, que teve tambm discordncias sobre a msica, mais precisamente, sobre a qualidade dos dois pianistas impostos pelo teatro. Depois de pesados protes-tos de Brecht e Eisler e apenas com a mediao do partido comunista americano o teatro resolve acatar o acordo previamente estabelecido, compro-metendo-se a no fazer cortes no texto original.

    Prosseguem os trabalhos.Sobre a primeira apresentao dos ensaios,

    Brecht comenta em carta a Helene Weigel: foi ruim, tecnicamente precria e, sim, foi diletante em muitas partes (BRECHT apud HECHT, 1998, p. 464). Brecht e Eisler so personae non gratae na estreia da pea, em 19 de novembro de 1935, no Civic Repertory Theatre, um teatro com 1.100 lu-gares. Ambos escrevem, por fim, um memorando direo do Theatre Union, no qual declaram que a apresentao fora, poltica e artisticamente, um fracasso ainda que, apesar de tudo, deva seguir sendo apresentada. A pea foi encenada 36 vezes.5

    O dilogo ora traduzido pertence ao contexto desse conturbado processo da montagem america-na de A Me.6 Mas, diferentemente do que sugerem o ttulo redacional e as circunstncias relatadas aci-ma, a conversa no se d exclusivamente em torno de questes especficas da pea (e nem h qualquer referncia direta a problemas da montagem norte-americana), Brecht cita inclusive outras peas de sua autoria para ilustrar os temas abordados.

    Assemelhando-se a uma entrevista, a conversa conduzida por Jerome e conta tambm com pe-quenas intervenes de Eisler. A tematizao pre-sente no dilogo articula-se em trs nveis: 1) dos elementos tcnico-formais da composio brechtiana; 2) da concepo esttica da dramaturgia brechtiana; 3) da perspectiva poltica que fundamenta as anterio-res. Essa estrutura corresponde ao seguinte agru-pamento dos assuntos tratados: 1) o emprego da parbola ou alegoria / o coro / a dico (verso,

    5 Mais informaes sobre o teatro onde ocorreram as apre-sentaes, entre novembro e dezembro de 1935, e a ficha completa da montagem americana de A Me podem ser encontradas em Internet Broadway Database. Disponvel em: . Acesso em: dia ms abreviado. ano. As peas que estiveram em cartaz, antes e depois de A Me, no teatro Civic Repertory, com o mesmo grupo Theatre Union, foram apresentadas muito mais vezes.6 O dilogo aconteceu em ingls, foi transmitido por meio de protocolo e traduzido para o alemo texto que usamos como base para a traduo. At onde pudemos averiguar, o registro original em ingls no chegou a ser publicado. Nem Hecht nem Knopf informam a data e o local em que o en-contro aconteceu, sabe-se apenas que foi em algum momen-to, entre outubro e novembro de 1935, em Nova Iorque.

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    prosa, dialeto); 2) o antinaturalismo; 3) o interes-se pelas relaes e comportamento dos homens / carter didtico da arte / separao de classes. A conversa concentra-se nos referidos elementos de composio; Brecht posiciona-se em mais de um momento contra o naturalismo; a perspectiva de fundo est presente ao longo da conversa.

    Sobre a dramtica do tipo A Me*Bertolt Brecht, Hanns Eisler, V. Jerome (Nova Ior-

    que, 1935)

    Jerome: Eu gostaria de escrever um artigo com-parando os mtodos dramatrgicos de MacLeish e Brecht. Vejo certas relaes entre eles. Seria de grande ajuda se o senhor pudesse dar algumas in-formaes sobre determinados pontos. MacLeish tambm tem um coro, ele tambm usa versos. O mtodo de versificao , ao seu modo, igualmen-te nico. Ele usa simbolismo. O senhor tambm usa?

    Brecht: No.Jerome: O simbolismo muito forte em Ma-

    cLeish, um elemento metafsico. no senhor tam-bm?

    Brecht: Espero que no.Jerome: O senhor est dizendo que no utiliza o

    mtodo da simbolizao?Brecht: No. Mas h um determinado mtodo

    que eu por vezes utilizo. No , porm, o da sim-bolizao o da parbola. Eu no a utilizo em A Me, mas sim em outra pea, Cabeas redondas e cabeas pontudas.

    Jerome: O senhor julga uma alegoria...Brecht: Sim, pense na alegoria da vinha na B-

    blia, nas alegorias de Buda, Marx, Engels, Lenin...Eisler: Sobre a subida da alta montanha, Le-

    nin ou quando ele fala sobre Rosa Luxemburgo (guia)...

    Brecht: ...ou sobre Paul Levi (caa raposa, es-tandartes vermelhos).

    Eisler: Ou aquela com o carro, os bandidos, as pistolas e o assaltante.

    Jerome: O filho prdigo. Ou: o cordeiro dos pobres, a histria que Davi contou de Natan para explicar o caso de Urias.

    Brecht: Esse o mtodo que eu emprego.Jerome: Como voc o utiliza? Mas, primeiro,

    deixe-me dizer: h um dramaturgo que tambm utiliza a alegoria: Strindberg, em O Pai, o incio da pea o dilogo entre o pai e o criado de est-bulo etc., que culmina na frase do criado de estbu-lo: Mas eu sei que meu filho?

    Brecht: Sim, isso uma parbola.Jerome: Um prlogo em forma de parbola.Brecht: Voc tambm a tem em O sonho a

    histria da filha de Indra.Jerome: Tambm em Ibsen, O construtor...Brecht: Mas representada de modo naturalista

    demais. Deixe-me dizer assim: o objetivo de uma parbola demonstrar com clareza as relaes e o comportamento dos homens uns com os outros. Na alegoria voc pode ver muito claramente se o comportamento deles til ou no. Eu me inte-resso pelas relaes e pelo comportamento dos homens. Por isso, construo diante deles homens que se comportam de modo certo ou errado. Eles veem algum fazer algo de errado e a consequncia um fracasso.

    Jerome: Esse o mtodo cinematogrfico.Brecht: Bem..., mas o mtodo cinematogrfico

    no est essencialmente interessado no comporta-mento dos homens. Dou um exemplo ao senhor: tome minha pea Cabeas redondas e cabeas pon-tudas. Eu invento uma terra habitada por dois tipos de homens, duas raas, uma com cabeas redondas, outra com cabeas pontudas. Um dia chega um ho-mem em um momento muito feliz e diz: Eu quero dividir esta terra em dois tipos de homens, os de cabeas redondas e os de cabeas pontudas, isso condiz com um ponto de vista racial. Essa diviso prestou-se muito bem para os ricos e muito mal para os pobres. A forma da pea a parbola.

    Jerome: O senhor no utiliza esse mtodo em A Me?

    Brecht: No. No h alegoria em A Me.Jerome: O senhor utiliza em todas as suas peas

    um coro ou s em A Me?Brecht: No em todas.

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    * ber die Drammatik vom Typ Mutter. In HECHT, W. (org.): Brecht im Gesprch - Diskussione und Dialoge. Ber-lin: Henschelverlag, 1977. Copyright: Bertolt-Brecht-Er-ben / Suhrkamp Verlag 1975. Traduo: Manoela Hoffmann Oliveira e Diego A. M. Baptista

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    Jerome: Por que o senhor utiliza o coro em A Me?

    Brecht: No de fato um coro particular. O coro pode assumir muitos papis. Nos coment-rios pea A Me acrescento outros tipos de coros que no ocorrem em A Me. [L o trecho sobre coros dos Comentrios ]

    Jerome: Em outras palavras: o coro o profes-sor.

    Brecht: Sim o coro determina o comporta-mento do espectador. Nos exemplos sobre o uso do coro como mencionado nos comentrios so colocados pequenos coros na plateia. Suponha que o senhor est no teatro e um homem senta-se ao seu lado; no transcorrer da pea, ele coloca questes, critica, elogia, informa-o...

    Jerome: Ento, o coro o mentor?Brecht: Sim e nesse caso, um tipo de par-

    metro. As experincias no palco diante de voc e sobre voc devem ser generalizadas, os processos ali diante de voc devem ser criticados.

    Jerome: Eu me interesso pela natureza didtica do coro; deixe-me colocar esta questo: voc no a assume dos antigos, utilizando-a da mesma for-ma?

    Brecht: No.Jerome: Seria uma adoo mecnica. Eu gos-

    taria de abordar conceitos de outra categoria, e o senhor me dir como pensa a respeito.

    Brecht: Eu gostaria de dizer, primeiramente, que o coro antigo a princpio idealista. Tome o prprio Eurpedes. Aristfanes tambm tem em suas comdias coros idealistas, embora os proces-sos sejam muito realistas.

    Jerome: Eu quero expor as coisas de que fala Engels em seu Origem da famlia. A questo das foras armadas. No comunismo primitivo, as foras armadas no eram um grupo especiali-zado, eram o povo. Era o povo que combatia as foras naturais, e o povo era armado. Na sociedade da propriedade privada, os donos da propriedade, porque so minoria, tm um exrcito armado para defender sua propriedade da maioria deserdada, do povo desarmado. Esta constelao, minoria ar-mada contra povo desarmado, d em escravido, feudalismo, capitalismo. Por vezes, o exrcito re-crutado ou arregimentado como na China.

    Brecht: Convocao de massas.

    Jerome: Na ditadura do proletariado, nessa fase transitria at o comunismo cientfico, voc tem o exrcito vermelho, que representa as foras ar-madas; e o exrcito vermelho tem de ser tomado como movimento, no sentido em que o exrcito o povo. Ele no um poder para proteger a pro-priedade, mas sim, um exrcito que chegou posse da propriedade. No comunismo (futuro), quan-do guerra mundial e guerra civil forem abolidas, o exrcito ser novamente mobilizado contra as foras naturais, tal como no comunismo primitivo. Tese anttese sntese em um estgio mais ele-vado. Agora, eu gostaria de saber: houve o drama grego com o coro, a partir do qual mais tarde se desenvolveu o drama sem coro. Agora o senhor traz o coro de volta. Qual a sntese?

    Brecht: Essa uma questo muito importante, mas primeiro precisamos falar do desenvolvimento do drama antigo at o drama burgus refiro-me aqui ao drama com um heri; no quero fazer dis-tino se se trata de um drama com ou sem coro. A primeira fase do drama que nos conhecida indica apenas o coro. Depois, o corifeu. squilo. Depois, dois corifeus. Os portadores do enredo [Handlung]. No quero agora tentar construir um esquema e depois quero falar da ampla variedade quanto ao emprego do coro. Mas quero dizer que vemos agora, novamente, o elemento coral trazido ao primeiro plano e o indivduo surgindo mais no plano de fundo. Temos talvez a fase em que o indi-viduo est no caminho de volta ao coletivo. Aonde isso vai dar, no podemos dizer ainda. Eu gostaria de dizer algo sobre as diferentes formas de coros que utilizei. O senhor conhece o coro em A Me. H outro tipo de coro em A medida. Uma terceira verso o senhor pode encontrar em Santa Joana dos matadouros. Aqui, sempre que o coro aparece, representa coletivos; voc tem o coro dos trabalha-dores, mas tambm o dos capitalistas, voc tem o coro dos comerciantes de gado e o coro dos com-pradores todos eles grupos com interesses gerais. Cada grupo tem sua prpria fala. Se voc observar isso, voc tem ao fim da pea uma representao (demonstrao) de idiomas. Os grandes fabrican-tes de carne, por exemplo, usam versos brancos shakespeareanos como linguagem dos indivduos burgueses ricos. a gria dessa camada social tal como ela j foi classicamente estabelecida na lite-

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    ratura. Como exemplo, lerei, da primeira cena da pea, a primeira linha de um dilogo entre o gran-de Pierpont Mauler, um fabricante de carne, e seu companheiro Cridle:

    Cridle: Por que est to lgubre, querido Pier-pont?

    Mauler: Lembra-se, Cridle, como ns, h dias

    entramos pelo matadouro, era noite estvamos em nossas novas mquinas em-

    pacotadoras etc. etc.

    Assim falam os grandes indivduos livres (no que concerne explorao). O povo, ao contr-rio, fala em versos como os de Aristfanes versos um pouco atropelados, versos sincopados, e eles s falam em versos quando esto em grupo, o indiv-duo fala em prosa.

    Jerome: Como o senhor determina aqui no livro os diferentes tipos de versos?

    Brecht: Os grandes indivduos falam em jmbi-co, jmbicos irregulares...

    Jerome: Pentmetros...Brecht: Sim, no modernizados.Jerome: E aqui? (verso do trabalhador).Brecht: Estes so versos livres, sincopados.Jerome: MacLeish tambm utiliza formas mis-

    tas de mtrica. O ritmo fundamental da dico do povo americano diferencia-se muito do britnico. O ritmo britnico jmbico, o ritmo do povo ame-ricano troqueu.

    Brecht: Para ns, a dico determinada apenas pela perspectiva de classe.

    Jerome: Deve-se depreender disso que o senhor quis emprestar mais dignidade a um grupo?

    Brecht: No. A funo s assinalar a classe.Jerome: MacLeish no utiliza diviso mtrica,

    ele utiliza, por assim dizer, a quantidade da divi-so. Unidades de slabas, unidades de acentos em vez de arranjos mtricos. (Exemplo: He'll say pro-poerly so / Never again will it come / everywhere I looked for him). Pnico extraordinariamente in-teressante. MacLeish d ao coro trs acentos. Aos banqueiros, cinco acentos. Por causa dos cinco acentos, os banqueiros possuem naturalmente uma caracterstica mais completa, enquanto o coro dos

    despossudos fica annimo. Os banqueiros so am-plamente melhor delineados. Indivduos de carne e osso; os desempregados, que ele trata de modo simptico, so mostrados meia-luz do desenvol-vimento. Seu guia um homem cego.

    Eisler: Em Brecht, o guia teria sempre a melhor vista.

    Jerome: A teoria dele que o guia um profeta; para ver o futuro, ele no precisa da viso. Seus ver-sos so muito bonitos (exemplo: a passagem Like pebbles into a pool), belo ritmo.

    Brecht: Eliot tambm tem isso. H coisas belas na obra de Eliot, por exemplo, em A terra deserta.

    Jerome: Mas ele no utiliza o mesmo mtodo.Brecht: , todo esse mtodo muito esquisito.

    Eu iria preferir sempre o mtodo histrico. Eu atri-buiria s diferentes classes a dico que lhes com-pete historicamente.

    Jerome: Eu gostaria de perguntar-lhe como o senhor resolveria este problema: supondo que o se-nhor escreva em ingls aqui nos Estados Unidos uma pea sobre os negros, um drama histrico, no em 1905, mas sim em 1800, e o senhor escre-va um drama heroico de alcance pico, um drama da tradio revolucionria dos negros o que o senhor faria com a linguagem? Qual linguagem o senhor empregaria como caracterstica? Primeiro: o senhor escreveria em versos?

    Brecht: No, seguramente no. O indivduo fa-laria sempre em prosa. Em grupos, falariam nesse ritmo livre, sincopado, gestual eu no faria ne-nhuma exceo com os negros, nenhuma distino entre negros, chineses ou irlandeses revoltosos.

    Jerome: Mas se os negros falam em um dialeto, o do sul em 1800 o senhor escreveria em diale-to?

    Brecht: No.Jerome: Como o senhor resolveria as necessi-

    dades de verossimilhana? Aqui, a verossimilhana exige o dialeto.

    Brecht: Eu empregaria um dialeto se ele tivesse um papel poltico. Um exemplo a seriam os do-nos das plantaes; quando fazem negcios, falam ingls puro. Aqueles que eles querem privar (calo-tear, explorar) poderiam falar em dialeto. Caso se exigisse do espectador que ele aprendesse que um dialeto separa diferentes classes, somente a eu em-pregaria o dialeto. Se no, em lugar algum.

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    Jerome: Deixe-me tomar como exemplo um drama sobre a sublevao dos escravos. Apenas na primeira cena aparecem os donos de escravos que falam um ingls culto. Eles s aparecem na primeira cena; depois temos apenas escravos quase analfabetos. S um dos escravos culto. Como o senhor resolveria o problema da linguagem?

    Brecht: Se esse negro culto no fosse um tipo de guia, eu empregaria dialeto na primeira cena e depois ingls puro. Mas se esse negro um guia, eu deveria primeiro examinar se a diferena na dico de importncia. Se h talvez um ressentimento contra o guia por causa da dificuldade em compre-end-lo ou se ele forado a aprender a linguagem deles etc. Em todos esses casos, o problema da lin-guagem seria central, no seria acessrio.

    Jerome: Supondo que eles o entendam no h um problema de linguagem , como os negros devem falar? Ingls normal?

    Brecht: Ingls normal, absolutamente.Jerome: Verso ou prosa?Brecht: Prosa.Jerome: O guia tambm?Brecht: Todos. Na primeira cena, os propriet-

    rios talvez falassem em versos, mas no conjunto, depois, em prosa.

    Jerome: Versos para os possuidores de escravos, prosa para os escravos; naturalmente, o vocabul-rio deles limitado de modo correspondente ao seu nvel cultural. Mas aqui est a questo: o povo americano est acostumado a ouvir os escravos fa-lando dialeto.

    Brecht: Isso excelente! A introduo em ingls normal ento muito importante. revolucion-rio deixar os negros falarem ingls normal.

    Jerome: O senhor cogita como escreveria? Se-gundo sua teoria pica? Ou como um drama na-turalista?

    Brecht: Eu jamais o escreveria como drama na-turalista. Um escritor naturalista poderia escrever em dialeto. Eu no. O senhor conhece Os teceles, escrita em um belo dialeto. A pea baseia-se em fatos. Eu sempre quis reescrever a pea (utilizando os documentos do inqurito judicial) em alemo normal.

    Jerome: Como uma pea naturalista, sem encur-tamentos?

    Brecht: No. Eu no gosto de peas naturalistas.

    Uma pea naturalista com uma ideia (ideologia) uma perversidade. A pea naturalista assemelha-se a um torro da terra escavada, quantidade material irrisria e naturalmente analisada sob uma deter-minada perspectiva.

    Jerome: De acordo com sua teoria, os escravos teriam um coro?

    Brecht: Talvez um coro dos trabalhadores bran-cos.

    Jerome: Mas no h trabalhadores brancos.Brecht: No momento, no vejo chance a para

    um coro. Se o coro realmente no faz falta, no preciso dele.

    Jerome: O senhor faria a concesso dialtica?Brecht: No, apenas como expresso da luta de

    classes.Eisler: O que os negros acham da dialtica?Jerome: Os negros emancipados enxergam a

    dialtica como um resqucio da escravido.Brecht: Eu penso que devemos nos aproximar

    de modo histrico-poltico do problema da lingua-gem.

    Jerome: claro. Mas a burguesia moderna e versos brancos?...

    Eisler: Em Brecht, a fala da classe burguesa em versos brancos um meio de satiriz-la.

    [Brecht chama a ateno para a ltima cena de Santa Joana dos matadouros, onde os versos no es-tilo do Fausto so a forma adequada para os capita-listas que mostram o mesmo dualismo que Fausto (para cima, aspirar; para baixo, chutar ).]

    Eisler: Usar aqui versos goetheanos tem um efeito depreciativo e agressivo.

    Brecht: A posio em todo processo produtivo determina a linguagem de uma pessoa.

    Eisler: [Conta rapidamente a fbula de Santa Joana.] Como a filha de Indra, que vira moa do Exrcito da Salvao a fim de ajudar a resolver uma greve com bondade ela s ajuda os capitalistas.

    Brecht: A religio facilita o capitalismo.

    ***

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