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Reflexão sobre alguns conceitos do Círculo bakhtiniano: trabalho de caráter monográfico requerido para avaliação parcial de disciplina concentrada cursada na FCLAr/Unesp.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)PPGLLP da FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS/ARARAQUARA (FCLAR)
Trabalho monográfico de conclusão de disciplinaDisciplina: Estudos do Círculo de Bakhtin: aspectos sobre subjetividade e alteridade.
Profas. Responsáveis: Alessandra Del Ré, Marina Célia Mendonça, Renata Coelho Marchezan.Aluna: Raíssa Medici de Oliveira.
A QUESTÃO DA “ALTERIDADE” PARA O CÍRCULO DE BAKHTIN
INTRODUÇÃO
Diante da tarefa de refletir sobre algum(ns) dos tópicos abordados durante a disciplina
Estudos do Círculo de Bakhtin: aspectos sobre subjetividade e alteridade, deparamo-nos com a
impossibilidade de circunscrever nossa reflexão a um único tópico, isolando-o de outros conceitos,
categorias e noções aos quais certamente se encontraria intimamente ligado. Assim sendo,
colocamo-nos o objetivo de refletir sobre a alteridade, pensando o conceito na sua relação com as
categorias diálogo, excedente de visão, palavra e outras noções que aparecem de forma discreta ao
longo de nosso texto e constituem elementos importantes para a compreensão do que nos
propusemos a tratar: a questão da alteridade para o Círculo de Bakhtin. Para tanto, iniciamos nossa
reflexão abordando o conceito alteridade. Tentamos enfatizar, primeiramente, o que a alteridade
não é para o pensamento bakhtiniano. Em seguida, passamos a discutir a importância da
compreensão do Outro na sua infuncionalidade. Logo depois, abordamos a questão da identidade
enquanto armadilha (nos dizeres de Augusto Ponzio) e pontuamos o perigo das recusas de partilha
na relação eu/Outro. Por último, refletimos o lugar da palavra nessa relação.
ALTERIDADE: o conceito
Em seu livro Ancoragens: estudos bakhtinianos (2010), João Wanderley Geraldi coloca a
alteridade e a dialogia como os dois pilares sobre os quais se alicerça o pensamento Bakhtiniano:
“Sem dúvida alguma, o pensamento bakhtiniano alicerça-se em dois pilares: a alteridade,
pressupondo-se o Outro como existente e reconhecido pelo “eu” como Outro que não-eu e a
dialogia, pela qual se qualifica a relação essencial entre o eu e o Outro.” (2010, p. 105). Para a
compreensão do que é a alteridade para o Círculo de Bakhtin, precisamos, primeiramente,
compreender o que essa relação eu/Outro não é. Nesse sentido, as reflexões bakhtinianas vão contra
o esquema da Teoria da Comunicação, segundo o qual o Outro é apenas um “outro eu”. Émile
Benveniste, linguista estruturalista francês, em sua obra Problemas de Linguística Geral (1976),
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dedica um capítulo ao tratamento da questão ‘da subjetividade na linguagem’ (cap. 21), onde afirma
que “(...) Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu.
Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade – que eu me
torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu.” (1976, p. 286). A oposição latente
entre o postulado daquele linguista e as reflexões do Círculo de Bakhtin reside na concepção de
que, para o Círculo, a relação eu/Outro é irreversível e o diálogo é compreendido muito além da
noção de troca de palavras entre um emissor e um receptor que se revezam numa determinada
situação comunicativa.
Voltando à citação na qual Geraldi postula a alteridade e o diálogo como os dois pilares do
pensamento bakhtiniano concentramos nossa visão sobre o qualificativo ‘essencial’ empregado pelo
autor ao falar da relação entre o eu e o Outro. Cremos que é o termo ‘essencial’ a chave para a
compreensão do conceito alteridade: a relação eu/Outro é ‘essencial’ porque o sujeito constrói sua
identidade somente a partir das relações dialógicas e valorativas com outros sujeitos, opiniões e
dizeres. É nessa direção que Augusto Ponzio1 aponta quando afirma que a identidade é armadilha da
qual só escapamos pela alteridade. Em sua fala, deixa-se entrever a crítica à subjetividade, noção
refutada nas reflexões do Círculo e sobre a qual falaremos mais adiante. Por ora, é necessário
ressaltar que, enquanto sujeito, ‘eu’ só me constituo na relação com a alteridade.
ALTERIDADE: compreender o Outro na sua infuncionalidade
No plano da vida (o plano ético), o Outro, por meio de um excedente de visão, representa o
único lugar possível de uma completude do ‘eu’ que, precisamos lembrar, é sempre inconclusa e
instável. Segundo o glossário2 do GEGe (Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso), excedente de
visão “é a possibilidade que o sujeito tem de ver mais de outro sujeito do que o próprio vê de si
mesmo, devido à posição exterior (exotópica) do outro para a constituição de um todo do
indivíduo” (2009, p. 44). Ainda na definição do conceito, lemos que “Quando alguém atribui a
outro seu excedente de visão, permite-lhe completar-se como sujeito naquilo que sua
individualidade não conseguiria sozinha. Ou seja, não conseguimos nos ver por inteiro, totalmente.
Precisamos do outro para nos completar”. Ponzio destaca que essa relação com o Outro não deve
ser vista como funcional: seria egoísmo pensar o Outro como meio, como “instrumento” por meio
1 Muitas das vezes em que nos referirmos a Augusto Ponzio sem explicitar obras de referência, estaremos partindo de anotações pessoais feitas durante o Seminário Internacional “A OBRA DE BAKHTIN E DO CÍRCULO NA CONSTRUÇÃO DE UMA METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E DO DIÁLOGO”.2 Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
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do qual ‘eu’ conseguiria constituir-me, completar-me. Portanto, a relação eu/Outro deve ser vivida
como infuncional:
A infuncionalidade da vida de cada um enquanto marcada por um corpo mortal diz que, apesar de qualquer identificação minha com esse ou aquele projeto, apesar da minha eficiência e utilidade para a produção de algo, eu permaneço fundamentalmente infuncional; e cada um de nós sabe que, quando ama ou é amado realmente, é justamente a essa infuncionalidade, a esse excesso, em suma, à alteridade de cada um, que o amor é voltado. Isso sabemos: os nossos afetos pelo outro são tão mais verdadeiros quanto mais prescindem de valer para essa ou aquela coisa, e são voltados ao outro na sua absoluta alteridade, na sua infuncionalidade, pelo seu valer por si, como fim absoluto. E eu farei falta a todos os meus queridos não pelo que soube dizer e fazer. (2012, p. 80)
Tal infuncionalidade do ‘eu’, do ‘Outro’, da própria vida, coloca a relação eu/Outro, mais
uma vez, como ‘essencial’. Em um dos seus vários exemplos, Ponzio reflete sobre o nascimento e a
morte de cada indivíduo: minha data de nascimento não faz parte da minha experiência, faz parte da
experiência de vida do Outro. Assim também minha morte não faz parte da minha experiência:
quem sofrerá minha morte senão o Outro? Tanto meu início como meu fim é, portanto, parte (da
vida) do Outro. A necessidade do Outro para a compreensão da minha própria vida, para a
compreensão das minhas próprias ideias coloca a essencialidade do diálogo com o Outro. Devo
dialogar com o Outro porque meu ponto de vista só emergirá da interação entre minhas palavras e
as palavras do Outro. O diálogo se coloca aqui como a impossibilidade da indiferença,
impossibilidade de evitar o Outro. É nesse sentido que Bakhtin fala em não-álibi da existência: pelo
fato de ser único e ocupar um lugar único na existência, o ‘eu’ não pode escapar da sua
responsabilidade existencial: enquanto sujeito responsável, é chamado a responder eticamente pelos
seus atos. Nas palavras de PONZIO (2010, p. 36):
O “não-álibi no existir” coloca o eu em relação ao outro, não segundo uma relação indiferente com o outro genérico e enquanto ambos exemplares do homem em geral. Trata-se, ao invés, de um envolvimento concreto, de uma relação de não indiferença, com a vida do outro, com o próprio próximo (tal proximidade não tem nada a ver com a distância espacial), com o próprio contemporâneo (em que a contemporaneidade não tem nada a ver com a atualidade), com o passado e o futuro de pessoas reais.
ALTERIDADE: o perigo das recusas de partilha na relação eu/Outro
Ao considerar a relação dialógica como essencial na constituição dos seres humanos é
preciso, conforme nos alerta Geraldi (2009, p. 105), não imaginá-la sempre desprovida de conflitos.
Os conflitos na minha relação com o Outro são o reflexo das nossas naturais diferenças, já que cada
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sujeito é um sujeito singular, “irrepetível”. Mas “Diferença não é sinônimo de desigualdade”,
pontua Geraldi (2009, p. 114). E, segundo o autor, são com diferenças que muitas vezes
escondemos desigualdades. Vivemos a era das desigualdades e, sob a máscara da globalização que
se propõe ao paradoxo de ampliar o mundo ao mesmo tempo em que o reduz encurtando as
distâncias, encontramo-nos diante de territórios fragmentados que combinam familiaridade e
estranheza. Nesses territórios, buscar semelhanças entre diferentes deveria ser a ordem do dia, mas
o que encontramos é sempre uma necessidade de aprofundar as diferenças e construir, com algumas
delas, ‘identidades’. É isso o que o capitalismo contemporâneo faz: fabrica a diferença, forja
identidades em benefício da construção de nichos de mercado (idem, p. 153). Assim também,
grupos ‘identitários’ dentro dos quais as diferenças são reduzidas e a diversidade ideológica é
mínima, num ato de depredação e recusa na relação com a alteridade, veem o que lhes é externo
como um inimigo “contra o qual unir-se e contra quem lutar” (PONZIO, 2008, p. 22). Segundo
afirma Geraldi (2009, p. 114) muitas do que denominamos “diferenças sociais” são produções
dessas desigualdades, dessas “recusas de partilha”. Nesse ponto, interrogamo-nos sobre a noção de
subjetividade e recorremos mais uma vez ao glossário do GEGe para compreender o termo nas
reflexões do Círculo. Verificamos então que a noção de subjetividade, criticada pela obra de
Bakhtin, “implica o limite do ser num “eu” absoluto, de modo que se exclui a relação “eu-outro””.
Ainda na definição do conceito lemos que
Bakhtin refuta essa concepção ao demonstrar que a consciência não pode derivar da natureza, nem a ideologia derivar da consciência. Pelo contrário, a própria consciência toma forma e existência nos signos ideológicos, de modo que o indivíduo somente se constitui, identifica-se e difere-se na relação com o outro. (2009, p.94).
ALTERIDADE: a dialogicidade da palavra
Segundo Bakhtin é através da palavra que uma relação com o outro é possível. A palavra se
define então como a ponte, o elemento de mediação na relação eu/Outro:
A palavra tem sempre uma dupla orientação: em relação ao objeto do discurso, do tema, e em relação ao outro. Ela alude sempre, mesmo contra vontade, sabendo ou não, à palavra do outro. Não há palavra juízo, palavra sobre objeto, palavra objetal, que não seja palavra-alocução, palavra que entra dialogicamente em contato com a outra palavra, palavra sobre a palavra e dirigida à palavra. (PONZIO, 2010, p.37).
Enquanto palavra dialógica, a palavra é sempre um pouco minha um pouco do Outro. “Cada
palavra própria se realiza numa relação dialógica e recupera os sentidos da palavra alheia; é sempre
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réplica de um diálogo explícito ou implícito, e não pertence nunca a uma só consciência, a uma só
voz.” (ibidem).
Convém pontuar que o diálogo com o Outro se estabelece não apenas quando falamos.
Quando ouvimos também estamos em diálogo com o Outro. Ponzio afirma constantemente que a
escuta é o elemento essencial da palavra: a escuta é diálogo. Não um diálogo formal, ou ligado a um
gênero de discurso, mas um diálogo substancial, relação com o Outro, com o encontro de palavras.
Dessa forma, conforme lemos no verbete ‘contrapalavra’ do glossário do GEGe: “nossas respostas
são formuladas a partir da nossa relação com a alteridade, ou seja, são contrapalavras às palavras do
outro. Troco signos alheios por signos próprios. Desta forma é que construo a compreensão.
Compreensão ativa e responsiva.” (2009, p. 24). Pensando assim, concluem os autores, “a palavra já
é alheia mesmo ainda não tendo sida incorporada pelo outro.” É nesse sentido que Ponzio propõe
uma linguística do encontro cujo objeto seja a compreensão, o diálogo. Uma linguística do encontro
que parta de uma noção profunda de encontro, o qual só acontece se ambos os sujeitos ‘que se
encontram’ estiverem abertos ao diálogo.
Um último ponto resta ainda pontuar acerca da categoria palavra: o seu caráter ideológico.
Na teoria bakhtiniana, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Diretamente envolvida
nas relações humanas, a palavra é, segundo Bakhtin (1997c, p. 41 apud SAVENHAGO, 2008, p.
95):
(...) o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos bem estruturados e bem formados. (...) A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.
É por isso que jamais conseguiremos controlar os sentidos de nossas palavras. Usando a
metáfora do espelho, Savenhago (ibidem) comenta que “Mesmo que perca tempo no espelho se
ajeitando para que todos os outros o vejam e falem dele da mesma forma, [o homem] não domina
totalmente as consequências de sua apresentação (ou representação), não controla, em todas as suas
possibilidades, a maneira como será recebido pelo outro.” Uma mesma informação será recebida de
maneiras diferentes por interlocutores diferentes, a depender do conhecimento de mundo, das
expectativas, enfim, dos repertórios que esses interlocutores possuem. “Com isso, os sentidos se
multiplicam, tornando a língua viva, e fazendo com que tudo esteja em diálogo com tudo.” (2008, p.
96). É nesse sentido que digo que preciso do Outro para constituir-me como singularidade, já que
cada um me atribui um olhar único e diferente (do meu próprio olhar e do olhar dos demais). Nessa
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singularidade encontro-me essencialmente em meio social, constituindo-me e ao mesmo tempo
participando da constituição do Outro.
REFERÊNCIAS
BENVENISTE, É. Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976.
GEGe. Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
GERALDI, J. W. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
PONZIO. A. A revolução bakhtiniana: O pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2008.
__________. Dialogando sobre diálogo na perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.
__________. Procurando uma palavra outra. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
SAVENHAGO, I. Jogos de linguagem e de espelhos: uma reflexão sobre a alteridade em Bakhtin. In: Janelas bakhtinianas: refrações, reflexões e rascunhos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008, p. 89-107.