12
BREVES ABORDAGENS SOBRE ECOLOGIA, ANTROPOLOGIA, SOCIEDADE E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS DHS/PPGERHA/UFPR CURITIBA, 2018

BREVES ABORDAGENS SOBRE ECOLOGIA, …blueelephant.net.br/resources/Texto sobre Ecologia, Antropologia... · Possibilismo Ambiental. Determinismo Ambiental Fundamenta-se na ideia de

Embed Size (px)

Citation preview

BREVES ABORDAGENS SOBRE ECOLOGIA, ANTROPOLOGIA, SOCIEDADE E CIDADANIA

PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS DHS/PPGERHA/UFPR

CURITIBA, 2018

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

2

CAPÍTULO I: ECOLOGIA Conforme Dodson et al. (1998), o termo ecologia foi proposto pelo professor alemão Ernst Haeckel, em 1869, a partir de sua leitura do clássico A Origem das Espécies, 1859, de Charles Darwin. Neste clássico Darwin argumenta sobre a aparente autorganização da natureza referente à observada relação entre plantas e animais, assim como a relação destes com seu entorno ambiental. Haeckel, portanto, denominou ecologia como a área de estudo destas relações. Diante desta construção histórica, ecologia pode ser definida como uma área da ciência que estuda basicamente as relações que se estabelecem na natureza entre seus componentes vivos, bióticos, e não vivos, abióticos (Santos, 2015). Cumpre destacar que a etimologia da palavra ecologia tem raízes gregas, sendo a palavra “oikos” respectiva à casa e “logos” referente a estudo. Logo, ecologia consta do “estudo da casa”. É interessante, neste ponto, observar a reflexão de Odum e Barret (2007) quando comparam os termos ecologia e economia. Dado que economia tem sua etimologia também baseada na palavra grega “oikos”, além da palavra “nomia”, que significa gerenciamento, tem-se que economia trata, portanto, do “gerenciamento da casa”. Desta forma, argumentam tais autores, as disciplinas ecologia e economia deveriam ser tratadas de forma complementar e não de forma antagônica como normalmente ocorre.

Assim, na esteira destas reflexões destacadas por Odum e Barret (2007), os mesmos apresentam interpretações mais robustas sobre o tema considerando os avanços filosóficos e científicos observados nos séculos XX e XXI. A teoria dos sistemas, por exemplo, possibilitou lançar um olhar sistêmico sobre a natureza, fato que redundou na elaboração de fundamentos mais sólidos para melhor entendê-la. Foi possível, portanto, conceber níveis de organização através de uma hierarquia biótica desde os genes até as comunidades a qual, em vital relação com o meio abiótico estruturado pela matéria e energia, configuram os biossistemas, conforme pode ser observado na Figura 01 (Santos, 2015).

Figura 01: Configurações dos biossistemas (Adaptado de Odum e Barret, 2007 por Santos, 2015)

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

3

Conforme a Figura 01 observa-se que o âmbito investigativo da ecologia sobre as inter-relações no meio biótico, assim como as relações entre este e o meio abiótico, compreende os organismos, as populações, as comunidades, os ecossistemas, as paisagens, os biomas e a biosfera. Nesta estrutura é clara a hierarquização pelo grau de complexidade dos biossistemas uma vez que uma população é o agrupamento de organismos de uma dada espécie, comunidade é um grupo de populações de diversas espécies enquanto o ecossistema é o primeiro nível onde ocorrem as relações nos ambientes bióticos e abióticos. Nesta crescente sequência de complexidade tem-se que os ecossistemas formam paisagens e estas integram os biomas. Toda esta cadeia complexa, por fim, configura a biosfera a qual o ápice de relações entre a totalidade dos meios biótico e abiótico existentes (Santos, 2015). Portanto, o ecossistema é o primeiro nível onde ocorrem efetivamente as relações ecológicas, ou seja, aquelas próprias do meio biótico além daquelas entre os meios biótico e abiótico. Em outras palavras, trata-se do nível ecológico em que primeiramente se identifica o ciclo da matéria e o fluxo de energia que são estruturantes e mantenedores de tais. O ciclo de matéria abrange a circulação de nutrientes necessários à vida e o fluxo de energia embasa-se fundamentalmente sobre a energia solar, ainda que outras fontes naturais de energia igualmente sejam utilizadas como a eólica, as fósseis, a hídrica, etc.

Para efeitos de investigação científica, um ecossistema é considerado uma unidade aberta que apresenta uma entrada, um conteúdo e uma saída. Pela entrada aportam matéria e energia, sendo a matéria tanto na forma de nutrientes quanto na forma de organismos imigrantes. Em seu conteúdo ocorrem as relações ecológicas sendo a matéria em parte reciclada internamente, via geração ou eliminação de organismos, e em parte extravasada pela saída na forma de nutrientes e também organismos. Já a energia tem um fluxo unidirecional cuja principal fonte na entrada, conforme anteriormente comentado, é o sol, enquanto as formas de saída são o calor e armazenada na matéria.

Especificamente quanto aos organismos, estes igualmente estabelecem uma cadeia entre si em termos de movimento da matéria e energia. Assim, estes organismos são denominados como produtores, consumidores e decompositores. Os organismos produtores são aqueles que, seja pela fotossíntese, seja pela quimiossíntese, transformam energia em biomassa. Dado que estão no início de um processo no qual a energia é utilizada na sua forma bruta, tais organismos são considerados autótrofos pois geram sua própria matéria orgânica para seu alimento e crescimento. Os organismos consumidores, de sua parte, não geram o próprio alimento e utilizam, portanto, o alimento pronto. Neste sentido são conceituados como heterótrofos. Os decompositores igualmente são organismos heterótrofos, mas que alimentam-se de organismos já mortos. Neste processo de decomposição a matéria orgânica é sintetizada em elementos químicos, como os nutrientes, e são liberados para o meio abiótico encaminhando assim a reciclagem dos mesmos.

Desta forma, nesta cadeia alimentar que se configura, a matéria passa por um processo de ciclagem. Por outro lado, a energia bruta inicial, cuja a principal fonte é a solar, é reduzida a cada etapa desta cadeia, condição esta que configura o já mencionado movimento unidirecional de energia disponível, sendo aquela não disponível dispersada ao ambiente sob forma de calor. Este processo, cumpre ressaltar, consta da 2a Lei da Termodinâmica (Lei da Entropia), segundo a qual "em todo processo de transformação de energia haverá degradação de sua forma condensada (disponível) para uma forma dispersa (não disponível)” (Santos, 2015).

A Figura 02 apresenta uma representação de um ecossistema e de suas interações internas e externas, destacando o movimento cíclico da matéria e acíclico da energia.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

4

Figura 02 Representação das interações de um ecossistema (Adaptado de Kormondy e Brown, 2002 por Santos, 2015)

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

5

CAPÍTULO II: ANTROPOLOGIA I Antropologia e Cultura Kormondy e Brown (2002), citam as seguintes definições para antropologia e cultura, a saber:

“A antropologia pode ser definida como o estudo da diversidade biológica e comportamental humana, tanto geográfica quanto temporalmente.”;

“A cultura, de certa forma, é um conjunto de regras para a convivência que inclui comportamento em grupo, valores, linguagem e tecnologia. Cultura é o conhecimento adquirido, em oposição ao que é herdado através da genética, e é passada através de gerações por processos de socialização”.

Isto posto, há questões em aberto, conforme segue: A cultura é uma adaptação humana única?; A cultura é necessariamente adaptativa?; Há conhecimentos deletérios? Tais questões são refletidas à luz da Antropologia Ecológica e da Ecologia Humana. II Antropologia Ecológica Diante das dimensões filosóficas e científicas enfocadas pelas dimensões da ecologia, antropologia e cultura, surge a dimensão da Antropologia Ecológica a qual objetiva estudar a ecologia das populações humanas na busca da compreensão de como as mesmas atuam e sobrevivem em ambientes diversos e de como a ecologia afeta a cultura destas populações. Duas abordagens surgiram neste contexto as quais denominadas Determinismo Ambiental e Possibilismo Ambiental. Determinismo Ambiental Fundamenta-se na ideia de que o meio ambiente delineia e influencia os traços de uma cultura. Consta de uma abordagem histórica, cujos primeiros registros surgem na Grécia Antiga. Predominou ao longo da maior parte da história ocidental com destaque na passagem do século XIX para o XX. O conceito de área cultural, que corroboraria esta abordagem, é que culturas são similares quando desenvolvidas em uma mesma área ambiental. Observar, no entanto, que o determinismo foi influenciado pelo etnocentrismo pois os pesquisadores (predominantemente europeus e norte-americanos) associavam sua cultura melhor ao clima frio, esse admitido como mais desafiador. Possibilismo Ambiental Uma crítica surgida no século XX é que o determinismo sempre apresenta uma visão simplista na qual o ambiente precede a cultura, isto é, molda a cultura. Haveria, portanto, uma relação causal de sentido único do ambiente sobre a cultura. Tal crítica ao determinismo ambiental deu origem ao possibilismo ambiental.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

6

Na abordagem do possibilismo ambiental, o ambiente apresenta-se apenas como limitante da cultura, sendo mais imediata da influência de uma cultura sobre a outra. Assim, para o possibilismo, nas áreas culturais as culturas apresentam similaridades predominantemente relacionadas às conexões históricas quando comparadas às influências ambientais. Resumindo, pelo possibilismo as culturas escolhem alternativas, estas em uma variedade moldada pelo ambiente. Ou seja, a causa inicial da variedade cultural é o ambiente em um processo unidirecional. No entanto na sequência a variação de cada cultura é dada pela própria cultura. Mas a cultura influência o ambiente? III Ecologia Humana 1 Conceito Hanazaki (2006) apresenta o seguinte conceito sobre ecologia humana:

“Dentro da ecologia, a Ecologia Humana pode ser entendida como estudo das relações entre populações humanas e o ambiente e dos fatores que afetam estas relações, geralmente sob uma perspectiva adaptativa ou sob uma perspectiva sistêmica. Os estudos de ecologia humana, baseados em teorias e princípios da ecologia, enfocam temas como estratégias de forrageio, discussões sobre otimização, amplitude de nicho, diversidade de recursos, territorialidade, dinâmica demográfica, estabilidade e resiliência (Begossi, 1993).”

Não obstante, tal conceituação abre espaço para diversas abordagens, estando algumas delas brevemente apresentadas na sequência. 2 Abordagens As abordagens à ecologia humana a serem discutidas a seguir são a ecologia cultural, a ecologia sociológica, a perspectiva psicológica, a etnoecologia, além de perspectivas biológicas e evolutivas, as quais discutidas em Kormondy e Brown (2002). Ecologia Cultural A partir de um núcleo cultural, o qual respectivo ao modo de subsistência do grupo, estabelece-se uma relação interativa com o ambiente e uma relação de sentido único com a organização social e este com a ideologia e religião. Ecologia Sociológica Estabelece uma analogia entre sistemas naturais e humanos como, por exemplo, sociedades urbanas e ecossistemas. No entanto, apesar de serem analogias aceitáveis, críticos defendem que as sociedades não são ecossistemas e entendem a ecologia sociológica muito antropocêntrica. Logo, sugerem uma sociobiologia ambiental a qual ultrapassa a supracitada analogia e busca abordar a interação entre o ambiente e a sociedade. Abordagem Psicológica A perspectiva psicológica ramifica-se nas vertentes ecológica e ambiental. A Psicologia Ecológica objetiva estabelecer correlações entre o ambiente e o comportamento a partir do pressuposto que o primeiro tem significativo poder de coerção sobre o segundo. Já a

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

7

Psicologia Ambiental “avalia a percepção que o indivíduo tem sobre o ambiente e sua relação com os recursos, ameaças e problemas ambientais”, conforme Kormondy e Brown (2002). Etnoecologia Em Hanazaki (2006) é apresentada definição “a etnoecologia é o estudo da ecologia de um dado grupo étnico, algo único na história deste grupo”. Neste trabalho a autora também destaca uma perspectiva importante da etnoecologia, a seguir reproduzida:

“Autores como Berkes (1999) e Berkes et al. (1998) dão ênfase aos conceitos ecossistêmicos nos sistemas de conhecimento de sociedades locais ou tradicionais. Estes conceitos ou noções ecossistêmicas refletem características percebidas localmente, como a unidade natural definida em termos de um limite geográfico e as interações percebidas entre os diversos componentes do sistema. Segundo Berkes et al. (1999), estes sistemas de conhecimento ecológico local são compatíveis com a visão emergente de ecossistemas como imprevisíveis e incontroláveis, cujos processos são não-lineares e possuem múltiplos estados de equilíbrio. Assim, o conhecimento ecológico tradicional pode complementar o conhecimento científico através do fornecimento de experiências práticas derivadas da convivência nos ecossistemas e respondendo a mudanças no ecossistema, numa perspectiva que converge com as propostas de manejo adaptativo (Holling et al. 1998).”

Perspectivas Biológicas e Evolutivas à Ecologia Humana Conforme Kormondy e Brown (2002), o pesquisador Leslie White “argumentava que a cultura é primariamente um mecanismo para coletar e utilizar energia a favor dos humanos, sendo a energia um fator crítico para a manutenção e o desenvolvimento das sociedades”. Kormondy e Brown (2002) citam também Julian Steward quem introduziu a abordagem pela qual as mudanças culturais são direcionadas pela a adaptação de uma cultura historicamente estabelecida a um ambiente particular. Não obstante, os mesmos autores destacam também as contribuições de Coon et al. à abordagem integrada entre a ecologia e a biologia humana, esta em termos da evolução e da adaptação. IV A Integração das Abordagens Biológica e Sociocultural Neste contexto há a emergência do Paradigma da Nova Ecologia no qual há a busca de integração da ideia de adaptação cultural à ecologia, inovando ao focar populações ao invés de focar as culturas. Esta inovação possibilita utilizar os conceitos e métodos da ecologia biológica na ecologia humana. Além disso, este paradigma usa a abordagem sistêmica. Um tema central na nova ecologia é a questão dos problemas ambientais e as relações interativas entre estes e as populações. Já na abordagem ecossistêmica as populações humanas são observadas como integrantes dos ecossistemas e não como uma estrutura análoga a estes ecossistemas. Neste contexto surge a Biologia de Populações Humanas a partir da biologia evolutiva. A biologia das populações humanas busca a investigação de adaptabilidade humana sob uma visão multidisciplinar além dos “processos comportamentais e culturais relacionadas aos problemas ambientais”. Ou seja, pela biologia de populações humanas há uma integração das abordagens socioculturais e biológicas à ecologia humana.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

8

CAPÍTULO III: SOBRE O CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL Extraído de SOCIEDADE CIVIL; Virgínia Fontes, http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/socciv.html

I HISTÓRICO Hobbes (1588-1674) . Nas origens do pensamento liberal descartou o pensamento religioso, . analisou as instituições políticas como resultantes de acordo humano e definiu o Estado como um pacto (contrato). . Adaptava o conhecimento da sociedade a uma ciência natural empirista: partia de um pressuposto imediato – o indivíduo – e dele deduzia uma 'natureza humana' permanente, fixa, 'natural'. . Tais indivíduos seriam naturalmente egoístas, defendendo seu próprio interesse e tenderiam permanentemente à violência, à luta de todos contra todos. . O pacto entre os indivíduos exigia abrirem mão de sua violência 'natural', delegando unicamente ao Estado o poder, ou o controle da violência, agora legitimada, garantindo assim o direito à vida. . Esse pacto não poderia ser rompido, pois o soberano doravante teria o direito de impô-lo contra qualquer ameaça. O Estado era considerado como um 'sujeito', contendo uma lógica própria e uma razão própria. Locke (1632-1704) . manteria essa noção de 'natureza humana', agregando a propriedade como seu atributo fundamental. Como decorrência, o Estado tornava-se o garantidor da propriedade. Rousseau (1712-1778) . apontaria a propriedade privada como base das desigualdades sociais e da violência. Surgimento dos Conceitos de Sociedade Política e Civil . Ainda no pensamento liberal, o pacto estatal implica o surgimento simultâneo de duas novas categorias: uma sociedade política e uma sociedade civil. . A sociedade política seria constituída pelas instituições do poder soberano (os órgãos do Estado), enquanto a sociedade civil seria a base da vida social. . Introduz-se uma cisão insuperável entre o Estado e a sociedade: a sociedade seria 'natural', enquanto o pacto seria uma convenção a ser administrada; a sociedade civil seria o local da vida privada, enquanto a sociedade política se regeria por imperativos distintos (vida, segurança, propriedade, ordem e defesa externa constituiriam a razão de Estado); finalmente, e sua derivação mais problemática, o pacto, embora resulte de uma ação humana, não poderia por ela ser rompido, sob o risco de imediato retorno à barbárie (ou violência). . Para Hobbes, a sociedade civil se subordina ao Estado, o qual deteria todos os poderes (defende um Estado Absolutista). . Com Locke a noção se modifica, pois a defesa da propriedade exigiria que o Estado acatasse as reivindicações dos proprietários: todos os homens integrariam a sociedade civil, mas

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

9

somente os proprietários poderiam se manifestar plenamente. Os principais pensadores políticos liberais subseqüentes se ocupariam sobretudo do aperfeiçoamento das instituições governamentais, para melhor assegurar as necessidades e/ou exigências dos proprietários. . Ora, uma natureza humana concebida dessa maneira espelha a sociedade burguesa, na qual competem interesses individuais contraditórios, expressos na sociedade civil. Em contrapartida, o Estado – detentor da violência legítima – parece pairar acima da sociedade, assumindo uma dupla feição. Por sua distância de cada interesse singular, seria o garantidor do interesse de todos (a razão do Estado). Pela mesma razão, não deveria imiscuir-se nos interesses privados da sociedade civil (os interesses burgueses) que, ao contrário, deveria assegurar. Marx e Engels, século XIX . demonstram as razões históricas do surgimento de Estados e analisam o caso específico do Estado burguês e capitalista. . Desmantelando a noção de 'pacto', demonstram como o Estado corresponde à necessidade de classes sociais dominantes para assegurar a reprodução de sua dominação. . Assim, explicam a forma real do Estado, a sua aparência e, ainda, os discursos ideológicos ou as apologias do existente. . O Estado é a forma pela qual os diversos interesses das diferentes classes dominantes que historicamente existiram encontram uma forma de unificação interna e se impõem – pelo uso da violência, mas também do convencimento, por meio da ideologia – sobre todo o conjunto social (Marx e Engels, 2007). . Não há nenhuma separação entre Estado e sociedade: ao contrário, o Estado resulta da relação entre classes sociais e, portanto, encontra sua razão de ser nesta relação. . A aparência de separação é a forma pela qual opera exatamente a ideologia. Supor um Estado com lógica própria, distinta daquela que permeia a vida social, permite justificar a perpetuação desta mesma forma de organização da vida social. . demonstram que o pensamento liberal nascente, mais do que compreender o Estado burguês, tomava parte na luta burguesa contra as formas de Estado precedentes e as antigas classes dominantes. . Os liberais consideravam como 'natureza humana' as características predominantes na sociedade burguesa; . ocultavam a existência da relação social de exploração e subalternização entre as novas classes sociais, idealizando um formato para Estado e autonomizando-o; . desconsideravam o processo histórico que levou à instauração de Estados e, ainda mais grave, aboliam o futuro, apresentando o Estado burguês como necessidade eterna. Sua visão de mundo reiterava permanentemente a dominação burguesa e sua forma de Estado. Gramsci . o conceito de sociedade civil é inseparável da noção de totalidade, isto é, da luta entre as classes sociais; . procurou compreender a organização das vontades coletivas e sua conversão em aceitação da dominação, por meio do Estado capitalista desenvolvido, em especial, a partir do momento em que incorpora, de modo subordinado, conquistas de tipo democratizante resultantes das lutas populares. . Assim, a sociedade civil é indissociável dos aparelhos privados de hegemonia – as formas concretas de organização de visões de mundo, da consciência social, de formas de ser, de sociabilidade e de cultura, adequadas aos interesses hegemônicos (burgueses). Assinala a

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

10

ampliação dos espaços de luta de classes nas sociedades contemporâneas, em sua íntima vinculação com o Estado. . Seu objetivo é contribuir para superar o terreno dos interesses (corporativo) e o de uma vontade plasmada pela vontade estatal, defendendo uma sociedade igualitária (Gramsci, 2000 e 2001). . Estado ampliado significa maior convencimento, mas não elimina a coerção. Seu momento predominantemente consensual ocorre por intermédio da sociedade civil - aparelhos privados de hegemonia. Disseminam-se entidades associativas que formulam, educam e preparam seus integrantes para a defesa de determinadas posições sociais e para uma certa sociabilidade. . A dominação de classes se fortalece, ao dirigir e organizar o consentimento, a começar por frações da classe dominante, e estendendo-se aos subalternos. Sistematiza-se a interiorização das relações sociais existentes como necessárias e legítimas, culturalmente sancionadas. O estreito vínculo entre sociedade civil e Estado explica como a dominação poreja em todos os espaços sociais, educando o consenso e ocultando o dissenso, forjando um ser social adequado aos interesses (e valores) hegemônicos e aplicando a coerção aos renitentes. II ATUALIDADE . Há intensas lutas na sociedade civil (no sentido formulado por Gramsci), que também se traduzem em disputas em torno do próprio conceito. Entidades mantidas por setores empresariais (como associações empresariais, fundações e think tanks) retomaram o conceito liberal e se apresentaram como 'sociedade civil', como se fossem distintas e contrapostas ao Estado (e aos governos) dos quais participam. . O termo Organização Não-governamental, cunhado na ONU em 1945, fluido e ambíguo, contribuiu para diluir o sentido social dessas entidades. A expressão ONG, embebida na lógica liberal, enfatiza uma suposta cisão entre a vida social e o Estado, velando suas relações. Obscurece as diferenças entre suas matrizes sociais e, sobretudo, o vínculo com as classes sociais. . O forte impulso de mundialização do capital a partir da década de 1980 acompanhou-se de propostas de redefinição para o conceito de sociedade civil que procuraram rejuvenescer sua matriz liberal. Partindo da divisão bipolar do liberalismo tradicional (Estado vs sociedade civil), propunham uma divisão tripolar, com a coexistência de setores (mundos ou esferas) estanques na vida social: sociedade civil (voluntária e virtuosa), mercado (competitivo) e Estado (burocracia). . Essa argumentação abandonava explicitamente a compreensão da totalidade da vida social e, portanto, a dinâmica das relações sociais sob o capitalismo, que crescentemente unificava sob seu comando o conjunto da existência. . Em seu formato atual, amplamente difundido, identifica sociedade civil e 'terceiro setor' (Montaño, 2003). Nesse mesmo registro, no Brasil, a defesa de entidades 'privadas porém públicas' atingia três objetivos:

1. contribuía para eliminar as conquistas populares no interior do

Estado (redução das políticas públicas universais), reclamando recursos públicos para tais entidades privadas;

2. como apologia das 'qualidades' de eficiência e eficácia do mercado quando devotado ao 'bem público'; e,

3. como a admissão da propriedade privada e do Estado como insuperáveis.

. O âmbito direto da associação de trabalhadores, como sindicatos, foi alvo de intenso ataque sob o período neoliberal, mas também as demais entidades e associações populares se encontraram sob condições de luta profundamente desiguais, frente aos copiosos

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

11

financiamentos despejados por setores empresariais e entidades internacionais (Garrison, 2000). . A partir da década de 1980 no Brasil, disseminou-se uma intensa mercantilização da filantropia que redundou numa efetiva política de contenção e apassivamento de suas reivindicações (Fontes, 2006). . Na década de 1990, reconfigurou-se uma pedagogia da hegemonia de novo tipo – de 'terceira via' (Neves, 2005). O Estado, longe de encolher, ampliava-se através de extensa rede capilar de 'parcerias' privado-pública e de FASFIL – Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos (BRASIL, 2005) - formuladoras e executoras de políticas públicas, em inúmeros casos com recursos igualmente públicos. . Tais remodelações do conceito de sociedade civil, aprofundando seu sentido liberal, divulgavam uma apreensão do mundo segmentada,

..isolando as formas associativas do chão concreto da produção e reprodução da vida social, das formas renovadas de subordinação do trabalho e dos trabalhadores; ..abandonavam a crítica da totalidade social. ..Ao mesmo tempo, participaram ativamente da reconfiguração da hegemonia do grande capital contemporâneo.

. Em contrapartida, a análise das formas concretas das organizações e entidades constitutivas da sociedade civil – tal como formulada por Gramsci – permite avançar criticamente na compreensão da expansão capitalista no mundo e no Brasil contemporâneos. Diversos estudos revelam a imbricação crescente entre aparelhos privados de hegemonia de base empresarial e Estado, tanto em sua configuração histórica (por exemplo, Mendonça, 1998; Bianchi, 2001) como em seus modos de manifestação atual (Martins, 2007), demonstrando como a sociedade civil – assim como o Estado ao qual se vincula – permanecem espaço de acirrada luta social e, também, luta de classes.

FILOSOFIA DA CIÊNCIA E CIDADANIA PROFESSOR DANIEL COSTA DOS SANTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA DE RECURSOS HÍDRICOS E AMBIENTAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

12

CAPÍTULO IV: SOBRE O CONCEITO DE CIDADANIA Conforme Maria Eduarda dos Santos, em sua publicação Que Cidadania? Tomo II, a discussão sobre a atualidade do conceito de cidadania se impõe. Assim, tal autora pondera: . “As tecnologias de informação e comunicação têm potencialidades para facilitar o exercício da cidadania e ao aproximar o cidadão da informação”. No entanto pode haver exclusão pelo não acesso a estas tecnologias; . A sociedade está organizada de forma que a valorização da eficiência e os mecanismos de controle impõem obediência em detrimento da ênfase à reflexão crítica; . A globalização em suas várias vertentes, as ideologias estimuladas (competitividade, eficiência, consumo, etc.), o recrudescimento de realidades indesejáveis (aumentos do desemprego, do individualismo, da exclusão, do estímulo à competitividade e ao consumo, etc) têm implicado na necessidade de revisão, por parte das sociedades, dos conceitos de cidadania; . As mudanças das relações entre os indivíduos, entre os indivíduos e a sociedade e entre os indivíduos e o Estado tem colocado em xeque os conceitos tradicionais de cidadania; . Assim, aos novos fatores que conduzem a uma revisão do conceito de cidadania, a saber,

. a emergência de novos direitos civis,

. o maior reconhecimento da necessidade de entender e aceitar a diversidade social,

. o surgimento da necessidade de se considerar uma cidadania além fronteiras,

. as falhas do Estado em representar e atender a sociedades,

. à redução do debate na esfera pública,

. ao autoritarismo persistente,

. ao aumento do controle pelas tecnologias de informação,

. ao permanente interesse do poder político em manter-se apenas no campo processual e instrumental,

a cidadania emergente reponde com:

. incipiente democracia participativa, fraca participação pública e fortalecimento do individualismo; . analfabetismo político e cívico, ignorância política, opinião pública pouco esclarecida, acrítica e apática; . ceticismo quanto ao poder de cada um para contribuir ao coletivo; . violência e agressividade desviante o debate público que objetivamente vislumbraria um bem comum; . confusão intelectual para compreensão, dependência excessiva da mídia para formar opinião, fragmentação dos saberes em todas as áreas, dificuldade de expressão, de argumentação e de decisão, propensão aos dualismos redutores; . consumo compulsivo e disposição em atender normas sociais impostas de forma acrítica; . expansão de comportamentos de risco à saúde e ao bem estar individual e coletivo, falta de reconhecimento à diversidade, aumento da violência e da exclusão, etc.

Desta forma, em síntese, as causas para o déficit de cidadania seriam:

a desilusão com a modernidade, as posturas aéticas do poder público, a globalização que descaracteriza as culturas, a identificação dos direitos civis aos do mercado, o impacto das tecnologias e informação e comunicação, a manipulação da mídia e a educação que não promove cidadania.