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Bridget Asher PROVENÇA O LUGAR MÁGICO ONDE SE CURAM CORAÇÕES PARTIDOS Tradução de Maria Georgina Segurado

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Bridget Asher

PROVENÇA O LUGAR MÁGICO ONDE SE CURAM

CORAÇÕES PARTIDOS

Tradução de

Maria Georgina Segurado

PRIMEIRA PARTE

Desde a morte de Henry, tenho andado constantemente a perder coisas.

Perdi chaves, óculos de sol, livros de cheques. Perdi uma espátula e encontrei -a no congelador, juntamente com um pacote de queijo ralado.

Perdi um recado para a professora do terceiro ano de Abbot, a explicar que lhe perdera o trabalho de casa.

Perdi as tampas das pastas de dentes e dos frascos de com-pota. Livrei -me destes artigos de boca aberta, sem tampa, a apanhar ar. Perdi escovas de cabelo e sapatos – não apenas um do par, ambos.

Deixei casacos em restaurantes, a carteira debaixo da cadeira em cinemas, as chaves junto à caixa registadora da farmácia. Depois, ficava um momento sentada no carro, desorientada, a tentar perceber exatamente o que estava errado e voltava ao estabelecimento, onde a rapariga na caixa as fazia tilintar acima da cabeça.

Recebia telefonemas de pessoas que tinham a gentileza de me devolver os objetos. E, quando as coisas sumiam – pura e simplesmente sumiam –, reconstituía os passos e depois perdia -me. O que faço aqui neste minimercado? Porque voltei à charcutaria?

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Perdi o contacto com pessoas amigas. Tinham bebés, defen-diam teses, preparavam exposições de arte, davam jantares festivos e faziam churrascos no quintal…

Perdi, sobretudo, a noção de enormes períodos de tempo. Os miúdos na paragem do autocarro, no bairro, na turma, na sala de aula, na equipa de futebol juvenil de Abbot iam cres-cendo, a pouco e pouco, ao meu redor. Abbot também conti-nuava a crescer. Tinha imensa dificuldade em aceitá -lo.

Perdi também a noção de pequenos períodos de tempo – os fins das manhãs, das tardes. Por vezes, quando levantava a cabeça, já escurecera lá fora, como se alguém tivesse apagado a luz. Na realidade, a vida prosseguia sem mim. Essa conscien-cialização ainda me apanhava desprevenida, mesmo passados dois anos, muito embora este aspeto se houvesse tornado um hábito, um simples facto inevitável: o mundo continuava a girar e eu não.

Por conseguinte, não deveria ter ficado surpreendida quando Abbot e eu já estávamos atrasados para o encontro das damas de honor na manhã do casamento da minha irmã. Tínhamos levado a manhã a jogar Maçãs para Maçãs1, atividade interrom-pida pelos telefonemas da Cake Shop.

– Jude… Jude, fala mais devagar. Quinhentas tartes de limão?Levantei -me do sofá aonde Abbot comia o terceiro gelado de

água da manhã – daqueles que vêm em cores garridas dentro de tubos de plástico que é preciso abrir com uma tesoura e que, por vezes, nos fazem engasgar. Até este pormenor é doloroso: Abbot e eu estamos reduzidos a comer sumo gelado embalado em plástico.

1 Jogo de 4 -10 participantes, no qual se utilizam dois baralhos de cartas de cores diferentes (vermelho e verde). Os jogadores recebem cartas com palavras (um substantivo, uma expressão ou um gerúndio), que têm de fazer corresponder a um adjetivo escolhido por um dos outros jogadores. (N. da T.)

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– Não, não, tenho a certeza – prossegui. – Teria anotado o pedido. No mínimo… Merda. Provavelmente a culpa é minha. Queres que passe aí?

Henry não fora somente meu marido; fora também meu sócio. Eu mesma crescera produzindo pastelaria delicada, encarando a comida como uma espécie de arte, no entanto, Henry convencera -me de que a comida é amor. Tínhamo--nos conhecido durante o curso de culinária, e pouco depois de Abbot nascer, lançámo -nos noutro trabalho gratificante: a Cake Shop.

Jude estava connosco desde o início. Era mãe solteira – fran-zina, tagarela, com cabelo curto descolorado e o rosto em forma de coração – uma estranha combinação de beleza e dureza. Fora a nossa primeira funcionária e possuía um jeito natural, um enorme sentido de criação e um conhecimento do mercado. Depois da morte de Henry, tomara as rédeas. Henry sempre se encarregara da vertente comercial e, se não fosse Jude, teria certamente perdido a loja. Jude acabou por se tornar a força motivadora, o meu leme. Não deixou o negócio estagnar.

Preparava -me para informar Jude de que estaria na loja den-tro de meia hora quando Abbot se esticou e me puxou a manga. Apontou para o relógio de pulso, cujo mostrador tinha a forma de uma bola de basebol. Talvez por causa do meu alheamento, Abbot controlava rigorosamente o tempo.

Quando me apercebi de que já passava do meio -dia, gritei:– O casamento! Desculpa, desculpa! Tenho de sair! – e des-

liguei o telefone.Abbot, de olhos arregalados, disse:– A tia Elysius vai ficar fula! – Curvou -se para coçar uma

picada de mosquito no tornozelo. Vestia calções brancos de desporto e o tornozelo parecia estar bronzeado como o de um golfista, só que, na realidade, era sujidade.

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– Não se nos despacharmos! – disse -lhe. – E aplica um pouco de loção de calamina para não te coçares durante a cerimónia.

Corremos feitos uns loucos pela nossa pequena moradia de três quartos. Encontrei um dos meus sapatos de salto alto no closet e o outro no quarto de Abbot, dentro de uma tina cheia de Legos. Abbot ia vestindo a preceito o smoking alugado. Colocava os minúsculos botões de punho enquanto procurava o laço com mola comprado feito e a faixa – escolhera a cor vermelha por ser a que Henry usara no nosso casamento. Não sabia se seria muito salutar, no entanto, não queria chamar a atenção para o facto.

Apliquei a maquilhagem e enfiei o vestido de dama de honor pela cabeça, grata por não ser um daqueles modelos espalhafa-tosos típicos das damas de honor – a minha irmã possuía um gosto requintado e este era o vestido mais caro que alguma vez usara, inclusive que o meu próprio vestido de casamento.

Quando declinara o convite para ser madrinha de casamento de Elysius – ou não seria mais, em sinistro rigor, viúva de casa-mento? –, a minha irmã ficara manifestamente aliviada. Sabia que estragaria tudo. Ligara logo a uma amiga da faculdade, que era licenciada em Marketing, e felizmente fui despromovida a simples dama de honor. Abbot fora recrutado para menino das alianças e, muito sinceramente, nem sequer me apetecia muito o papel de mãe do menino das alianças. Inventara um pretexto de última hora para faltar ao jantar de ensaio da cerimónia, na véspera à noite, e ao dia de tratamento no spa e marcação conjunta do cabeleireiro. Quando o nosso marido morreu, ninguém leva a mal se dissermos: «Não posso ir. Lamento imenso.» Se o nosso marido morreu num acidente de viação, como o meu, podemos dizer: «Hoje não sou capaz de con-duzir.» Podemos limitar -nos a abanar a cabeça e murmurar: «Desculpem.» E as pessoas desculpam -nos, imediatamente,

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como se fosse o mínimo que pudessem fazer por nós. E, se calhar, é.

No entanto, esta situação estava a consumir a minha irmã. Obrigara -me a prometer que estaria em sua casa duas horas antes do casamento. Havia um horário rigoroso a cumprir, que incluía beber cocktails mimosa1 com todas as damas de honor, enquanto cada uma delas formulava um pequeno brinde íntimo. Elysius gosta que o mundo gire todo à sua volta. Não a posso criticar por isso; tinha plena consciência de quão egoísta era a minha dor. O meu filho de oito anos perdera o pai. Os pais de Henry haviam perdido o filho. E Henry perdera a vida. Que direito tinha de usar – sucessivamente – a sua morte como pretexto para me descartar?

– Posso levar o tubo de mergulho? – perguntou Abbot lá do fundo do corredor.

– Prepara um saco com roupa para um dia e traz o equi-pamento – disse -lhe, enfiando coisas numa pequena mala de viagem só para mim. A minha irmã morava apenas a vinte minutos – um percurso rápido de Tallahassee à região rural em Capps – no entanto, queria que a família passasse a noite junta. Era uma oportunidade para captar a atenção da minha mãe e a minha, e mantê -la durante o máximo tempo possível, para reviver a forte ligação que existira em tempos entre nós as três. – Podes mergulhar de manhã com o avô.

Abbot saiu a correr do quarto, deslizando pelo corredor até à minha porta, ainda com as peúgas de desporto calçadas. Segurava a faixa numa mão e o laço comprado feito com mola na outra.

– Não consigo que estas coisas adiram! – reclamou.

1 Bebida constituída por uma mistura de champanhe e sumo de laranja, podendo levar Triple Sec ou Cointreau. (N. da T.)

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O colarinho engomado chegava -lhe às bochechas, como se estivesse mascarado de conde Drácula para o Dia das Bruxas.

– Não te preocupes com isso. Traz tudo. – Eu estava às vol-tas com o fecho de um colar de pérolas que a minha mãe me emprestara para a ocasião. – Haverá lá senhoras com energia nervosa suficiente e nada que fazer. Elas compõem -te.

– Aonde estarás? – perguntou -me com uma pontinha de ansiedade na voz. Desde a morte de Henry, Abbot desenvolvera sintomas de ansiedade. Começara a esfregar energicamente as mãos, um novo tique, ligeiramente frenético, uma simulação do ato de lavar vigorosamente as mãos. Desenvolvera as característi-cas de uma misofobia1. Tínhamos ido a um terapeuta, no entanto, não servira de nada. Fazia -o quando estava ansioso e também quando notava que eu ficava meditabunda. Pro curava conter -me na sua presença, mas, pelos vistos, não tinha muito jeito para fin-gir boa disposição, e o meu falso otimismo deixava -o ainda mais nervoso do que a minha cisma – um círculo vicioso. Agora que o pai morrera, sentia -se mais vulnerável no mundo? Eu sentia.

– Estarei com as outras damas de honor, a fazer as coisas que as damas de honor têm de fazer – tranquilizei -o. Foi neste momento que me lembrei de que devia ter preparado um brinde. Escrevera algumas palavras num guardanapo na cozi-nha e, claro, perdera -o entretanto, e agora, não me conseguia recordar de nada do que escrevera. – Que coisas bonitas deveria dizer à tia Elysius? Preciso de arranjar algumas palavras alusivas ao momento.

– Ela tem uns dentes muito brancos e compra presentes muito bons – referiu Abbot.

– Beleza e generosidade – afirmei. – Acho que consigo basear -me nisso. Vai correr tudo bem. E vamos divertir -nos!

1 Medo doentio da sujidade, das contaminações ou dos contactos. (N. da T.)

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Olhou -me, para ver se estava a ser sincera, tal como um advogado olharia para o cliente a fim de ver se está ou não a enganá -lo. Acostumara -me a este tipo de inspeção. A minha mãe, a minha irmã, as minhas vizinhas, amigas e até clientes da Cake Shop perguntavam -me como estava, ao mesmo tempo que procuravam perceber se a minha resposta era verdadeira. Sabia que devia ter seguido em frente. Devia ter -me esforçado mais, alimentado melhor, feito exercício físico, conhecido pessoas. Sempre que saía, tinha de estar preparada para uma emboscada de algum conhecido bem -intencionado pronto a mostrar sen-timentos de compaixão e tentar incutir ânimo, fazer perguntas e dar conselhos. Tinha as respostas ensaiadas: «Não, a sério, estou ótima. O Abbot e eu estamos muito bem!»

Detestava, de igual modo, ter de recorrer a esta rejeição da piedade na presença de Abbot. Queria ser sincera com ele e, simultaneamente, protegê -lo. E, claro, não estava a ser honesta. Era o primeiro casamento a que ia desde a morte de Henry. Sempre fora daquelas que choram nos casamentos, mesmo nos de pessoas que não conhecia bem, até nos casamentos transmitidos pela televisão. Agora tinha medo de mim própria. Se chorava copiosamente num anúncio sobre um casamento, como reagiria a este?

Não consegui encarar Abbot. Se o fizesse, perceberia que estava a fingir. Vamos divertir -nos? Só esperava ser capaz de sobreviver.

Aproximei -me do espelho de corpo inteiro que Henry colo-cara na parte de dentro da porta do meu closet. Henry estava em todo o lado, no entanto, quando surgia uma lembrança – o espelho tombara quando estava a tentar instalá -lo e por pouco não se partira ao meio – fazia um esforço para não me agarrar a ela. Era um sinal de fraqueza. Devia concentrar a minha atenção em algo pequeno e concreto. Tentava naquele momento – num

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derradeiro esforço – colocar o colar de pérolas com a ajuda do meu reflexo.

– Gosto mais quando não usas maquilhagem – comentou Abbot.

Deixei que a fiada de pérolas caísse na mão em concha, enrolando -se. Era o tipo de observação que Abbot poderia ter ouvido ao pai. Seria possível recordar -se de ter ouvido o pai fazer semelhante comentário? Henry afirmara preferir a minha cara ao natural; às vezes, murmurava, tal como o resto de ti. Apercebi -me de que parecia muito mais velha do que há dois anos. Veio -me à ideia a expressão dominada pela dor – como se a dor nos pudesse dominar e deixar uma marca indelével. Virei -me para Abbot.

– Anda cá – disse -lhe. – Deixa -me olhar para ti.Coloquei o colar de pérolas em cima da mesa de cabeceira,

dobrei -lhe o colarinho, compus -lhe o cabelo e apoiei as mãos nos ombros ossudos. Olhei para o meu filho – os olhos azuis, iguais aos do pai, com as pestanas escuras. Tinha a pele tri-gueira de Henry e também as faces rosadas, muito embora não passasse de um rapazinho. Adorava o queixo saliente e os dois dentes do tamanho dos de um adulto – que pareciam tão estranhos na boca ainda pequena.

– Estás muito bonito – disse -lhe. – Fabuloso.– Um menino das alianças fabuloso?– Isso mesmo – respondi.

Abbot e eu estacionámos ao fundo do acesso serpenteante de gravilha da casa da minha irmã, passando cuidadosamente por uma imensidão de carrinhas – do catering, da florista, do enge-nheiro de som. O acesso prolongava -se para lá da piscina e do campo de ténis de terra batida e transformava -se em relva entre

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o estúdio de construção recente e o velho celeiro. Elysius ia casar--se com um encantador e tímido artista de reputação nacional chamado Daniel Welding e, apesar de estarem a viver juntos há oito anos, sempre me surpreendera a grandiosidade do lugar a que chamavam lar – e, naquele momento, apresentava -se ainda mais imponente. O casamento propriamente dito realizar -se -ia no relvado em declive, por onde Abbot e eu avançávamos então, o mais rapidamente possível. Encontrava -se cheio de filas de cadeiras ligadas entre si por faixas de tule, e a troca dos votos teria lugar ao lado da fonte de inspiração japonesa, onde havia uma latada entrelaçada com flores. Fora instalada uma pista de dança temporária em parquê debaixo de uma enorme tenda branca com três braços.

Abbot trazia a sua bagagem num saco de lona oferecido por uma biblioteca local. Dava para ver a faixa e o laço com mola enfiados no meio do equipamento de mergulho – o tubo, a máscara e as barbatanas, que haviam sido oferecidos pelo meu pai. Eu tentava puxar a pequena mala de viagem com rodas. Ia oferecendo resistência atrás de mim, como um cão velho e teimoso.

Avançámos rapidamente para o estúdio, a fim de deixarmos a bagagem, só que estava fechado. Abbot encostou as mãos em concha ao vidro e espreitou lá para dentro. Daniel trabalhava em telas enormes e o estúdio anexo tinha tetos altos, bem como um cavalete que recolhia no chão. Assim, escusava de se empo-leirar em escadotes para chegar às partes superiores. Havia um sofá no sótão que se transformava numa cama de casal, onde por vezes fazia uma pausa para repousar a meio do dia e onde Abbot e eu passaríamos a noite. As obras de Daniel vendiam extraordinariamente bem, por isso se pode permitir a casa, os dois acessos, o relvado em declive, o cavalete retrátil.

– Ele está ali dentro! – referiu Abbot.

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– Não pode estar. É o dia do casamento.Abbot bateu à porta e o vulto de Daniel apareceu por detrás

do vidro, escancarando -a. Tinha ombros largos, estava sempre bronzeado, cabelo salpicado de cinzento -prateado. Possuía um nariz imponente que assentava ligeiramente arqueado e proe-minente no rosto – um rosto elegante. Tirou os óculos, apoiou o queixo no peito, fazendo com que as pregas se dobrassem à semelhança de um pequeno acordeão, e olhou para mim, des-composta mas com um belo vestido, e Abbot, com o smoking ainda sem os acessórios. Sorriu rasgadamente.

– Ainda bem que chegaram! Que tal vai isso, Abbot?Atraiu Abbot a si, deu -lhe um abraço apertado. Era do que

Abbot precisava, de abraços apertados, de afeto vindo de sujeitos paternais. A minha especialidade eram as beijocas na testa, no entanto, vi quão feliz ficara por Daniel o levantar do chão. Abbot esboçava naquele momento um sorriso tolo. Daniel também me abraçou. Cheirava a produtos caros – géis para o cabelo e sabonetes importados.

– Tens autorização para estares aqui? – perguntei -lhe. – Estás vestido como se te tivesses evadido de um casamento.

Abbot contornou Daniel e entrou no estúdio como sempre fazia – com uma expressão de medo. Adorava as escadas estrei-tas para o sótão, a máquina de café expresso, as vigas à mostra e, claro, adorava as telas enormes em várias fases de desenvol-vimento, encostadas às paredes.

– Tive uma ideiazinha, de modo que resolvi vir até aqui – explicou Daniel. – Acalma -me ficar a olhar.

– Não devias ter os sapatos calçados? – observou Abbot.– Ah, sim. – Apontou para um par de sapatos ali perto.

– Sabes, sujar a roupa de tinta é uma coisa, mas os sapa-tos são feitos à mão. Um sapateiro no deserto mandou -me ficar de pé em cima de pó, descalço, e fez um par de sapatos

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especificamente para os meus pés, a partir dessa impressão. – Eram tipos de histórias como estas que ele e Elysius tinham, um sapateiro no deserto a medir pés descalços em pó.

Abbot correu para os sapatos, no entanto, não lhes tocou. Sabia que lhe apetecia, só que os sapatos andam em contacto com o chão e este está cheio de germes. Teria de ir imediata-mente lavar as mãos à casa de banho. Não bastaria o gesto de simulação.

– Aonde está a Charlotte? – inquiriu Abbot, regressando para junto dos quadros.

Charlotte era filha de Daniel, do primeiro casamento. Daniel passara por um divórcio desagradável e pela luta pela custódia de Charlotte, e jurara nunca mais tornar a casar – não por-que não lhe agradasse, mas, mais precisamente, porque ficara escaldado. Alguns meses depois da morte de Henry, mudara de opinião. Claro que existia uma correlação natural – o que levaria alguém a querer cimentar o amor, a não ser a lembrança da fragilidade da vida?

– Está lá em cima na casa – e depois virou -se para mim e acrescentou – a tentar passar despercebida.

– Como é que ela está? – perguntei.Charlotte tinha dezasseis anos e atravessava uma fase punk

que deixava Elysius alarmada, muito embora o punk tivesse passado de moda. Agora havia novos termos para tudo.

– Está a estudar para os exames de acesso ao ensino supe-rior, mas não sei, parece -me um pouco… desanimada. Bem, estou preocupado. Sou o pai dela. Preocupo -me. Percebes o que quero dizer.

Olhou para mim como se conspirássemos. Queria dizer que eu sabia bem o que era ter filhos, ao passo que Elysius não. Era algo que nunca confessaria exceto desta forma encapotada.

– O que vai ser este? – indagou Abbot.

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Todos os quadros eram abstratos, de uma forma caótica, mas Abbot estacara diante de um particularmente desordenado, com grandes traços carregados, desesperados e intencionais. Era como se houvesse uma ave aprisionada algures no quadro – uma ave que buscava a liberdade.

Daniel olhou para o quadro.– Um barco distante com as velas desfraldadas – explicou.

– E perdido.– Precisas de te animar! – disse baixinho a Daniel.Apoiou uma mão no meu ombro.– Olha quem fala – murmurou. – Estás a criar? – Era para

mim uma honra que Daniel considerasse o meu trabalho de chefe pasteleira como uma arte. Não se podia dizer que, para si, a arte devesse ser elitista. Era de opinião que devia pertencer a todos nós, e ficava sempre fascinado com o meu trabalho. E, naquele momento, falava comigo de artista para artista. – Precisas de voltar a criar. Não existe melhor forma de chorar a morte.

Fiquei surpreendida por falar tão abertamente, mas também aliviada. Estava farta de compaixão.

– Ainda não recomecei, por enquanto – redargui.Anuiu, com ar solene.– Abbot – chamei –, temos de ir.Dececionado, Abbot veio ter comigo. Disse a Daniel:– Os teus quadros fazem as pessoas sentir -se tristes, mas

não sabes porquê.– Uma excelente definição de arte abstrata – observou Daniel.Abbot sorriu e esfregou as mãos, depois, caindo em si,

enfiou -as nos bolsos. Daniel não se apercebeu, mas eu sim. Abbot estava a aprender a disfarçar o seu problema. Era um avanço ou um recuo?

– Estou atrasada para os cocktails mimosa – disse.

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Daniel olhava para uma tela inacabada. Virou -se para mim.– Heidi. – Hesitou. – Tive de retardar a lua -de -mel por uns

dias para terminar o trabalho para uma exposição. A Elysius está alvoroçada. Quando a vires, lembra -lhe de que sou boa pessoa.

– Fica descansado – respondi. – Podemos deixar isto aqui? – perguntei, olhando para a minha mala e o saco de Abbot.

– Claro – respondeu.– Anda, Abbot – disse, desemaranhando o laço e a faixa do

equipamento de mergulho.Abbot correu para a porta.– É mesmo muito bom ver -vos aos dois – observou Daniel.– A ti também – retorqui. – Parabéns pelo casamento

iminente!

Como Elysius e Daniel estavam a viver juntos há oito anos, o casamento afigurava -se uma estranha consequência. Para mim, Elysius e Daniel tinham um casamento, que, por sinal, era duradouro. Todavia, para a minha irmã o casamento era monumental e, naquele momento, ao atravessar o relvado luxu-riante com os rastos para cá e para lá de um trator corta -relva largo, que haviam deixado a relva às riscas, senti -me imensa-mente culpada pelo meu desinteresse.

Devia, pelo menos, ter aceitado fazer o bolo de noiva. A minha reputação de excelente designer de bolos já tivera o seu auge. Pessoas em toda a Florida continuam a ligar com um ano de antecedência ou mais para a Cake Shop a fim de conse-guirem uma vaga na agenda. Os casamentos tinham sido uma especialidade. No entanto, pouco depois da morte de Henry, remetera -me ao fabrico de queques e quadradinhos de limão às primeiras horas da manhã e ao atendimento ao balcão. Desistira dos bolos de noiva – eram demasiado esgotantes, ocupavam

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demasiado tempo. A meu ver, eram ingratos, por subestimarem o amor. Agora, sentia vergonha de não me ter oferecido para fazer o bolo de Elysius e Daniel. Seria a minha prenda, a única coisinha que tinha para dar.

Olhei para a série de janelas, a cozinha e a sala de jantar iluminadas com uma tonalidade dourada -brilhante, e estaquei.

– O que é? – inquiriu Abbot.A minha vontade foi dar meia -volta e vir -me embora. Estava

preparada para isto? Percebi que era como me sentia na vida neste momento, como alguém especado num relvado, no exte-rior de uma casa gigante, a olhar para janelas bonitas aonde as pessoas viviam as suas vidas, enchiam jarras com flores, penteavam -se ao espelho, soltando gargalhadas em acessos rápidos que se elevavam e desapareciam. E ali estava a vida da minha própria irmã, transbordante de felicidade.

– Nada – respondi a Abbot. Agarrei -lhe a mão e apertei -a. Abbot correspondeu e, inesperadamente, afastou -se um passo e puxou -me em direção à casa, cheia de vivos.

Naquele momento, a porta das traseiras escancarou -se e apareceu a minha mãe. Trazia o cabelo castanho -amarelado apanhado no carrapito que era a sua assinatura, e o rosto bri-lhava de uma forma «fresca e jovem». A minha mãe estava a envelhecer maravilhosamente. Tinha um pescoço comprido e elegante, lábios cheios, sobrancelhas arqueadas. Causava bas-tante estranheza ter sido criada por alguém mais belo do que nós alguma vez seremos. Possuía uma beleza régia, contudo, no meio desta postura de realeza, a sua fragilidade parecia mais pronunciada – uma certa suavidade cansada nas expressões.

Os olhos dela incidiram em mim e Abbot ali no relvado.– Tinham acabado de me mandar à tua procura!A minha irmã mandara a minha mãe à minha procura? Isto

era mau. Muito mau, mesmo.

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– Estamos muito atrasados? – perguntei.– Estás a perguntar se a tua irmã está muito zangada?– Já serviram as mini tostas? – inquiri, esperançada que

sim.A minha mãe não respondeu. Atravessou o pátio e desceu as

pequenas escadas. O vestido cor de caramelo agitava -se à sua volta. Tinha um corte elegante que lhe expunha as clavículas. Ela é meio -francesa e acredita na elegância.

– Precisava de sair daquela casa! – anunciou. – E tu foste o meu pretexto. Ordens expressas para te procurar e apressar. – Parecia agitada, talvez um pouco lacrimosa. Estivera a cho-rar? A minha mãe é uma mulher de emoção profunda, mas não daquelas que choram por tudo e por nada. É a definição do termo sénior ativa – exibe um dinamismo que se destina a transmitir satisfação, porém, sempre me deu a impressão de ser uma mulher prestes a explodir. Uma vez, explodiu mesmo, e desapareceu o verão inteiro, mas, depois, voltou para nós. Mesmo assim, quando uma mãe desaparece sem nos levar – mesmo que a razão lhe assista –, levamos o resto da vida a perguntar -nos se poderá voltar a fazê -lo. Convergiu a sua aten-ção para Abbot: – Que lindo rapazinho tu estás!

Ficou todo ruborizado. A minha mãe tinha este efeito em toda a gente – o carteiro atormentado nas férias, o piloto que aparece para se despedir no final de um voo, até um chefe de mesa emproado.

– E tu? – perguntou, afastando -me o cabelo de um ombro. – Aonde estão as pérolas?

– Ainda me faltam os últimos retoques – respondi. – Como está a Elysius?

– Há de perdoar -te – retorquiu de mansinho. Sabia que não seria fácil para mim: uma filha ia ganhar um marido, outra perdera -o, e então, estava a tentar usar de muita cautela.

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– Desculpa ter chegado atrasada – afirmei, sentindo -me cul-pada. – Perdi a noção do tempo. Abbot e eu estávamos…

– Ocupados a escrever o discurso para a tia Elysius – inter-veio Abbot. – Eu estava a ajudar! – Também tinha um ar com-prometido, o meu co -conspirador.

A minha mãe abanou a cabeça. Os olhos estavam marejados de lágrimas.

– Estou toda descomposta! – afirmou, tentando alisar as rugas do vestido e rindo -se depois de forma estranha. – Não sei porque estou a reagir assim! – Apertou o nariz como se para suster as lágrimas.

– A reagir ao quê? – perguntei -lhe, surpreendida pela súbita emoção. – Ao casamento? Os casamentos são absurdos. Causam imensa…

– Não é o casamento – explicou a minha mãe. – É a casa. A nossa casa… na Provença. Houve um incêndio.