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Um estranho no ninho O avião inglês Bristol 170 foi empregado no Brasil pela Real com grandes esperanças de bom desempenho, mas os constantes defeitos técnicos encurtaram muito seu uso em nosso país. Mas, de qualquer forma, ele conseguiu tornar a Real conhecida no mercado. Por: Mário Sampaio Ilustração: Murillo Martins FLAP INTERNACIONAL 80 FLAP INTERNACIONAL 81

Bristol 170 · 2019. 8. 4. · Um estranho no ninho O avião inglês Bristol 170 foi empregado no Brasil pela Real com grandes esperanças de bom desempenho, mas os constantes defeitos

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Page 1: Bristol 170 · 2019. 8. 4. · Um estranho no ninho O avião inglês Bristol 170 foi empregado no Brasil pela Real com grandes esperanças de bom desempenho, mas os constantes defeitos

Um estranho no ninho O avião inglês Bristol 170 foi empregado no Brasil pela Real com grandes esperanças de bom desempenho, mas os constantes defeitos técnicos encurtaram muito seu uso em nosso país. Mas, de qualquer forma, ele conseguiu tornar a Real conhecida no mercado.

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Por: Mário Sampaio Ilustração: Murillo Martins

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O Bristol 170 foi um dos aviões utilizados pela aviação comercial brasileira após a Segunda Guer-ra Mundial como uma forma de encontrar uma alternativa aos DC-3 que dominavam o mercado.

Naquela ocasião, o transporte aéreo estava começando a ocupar uma importante posição, uma vez que o País passava por um processo de industrialização e a economia crescia rapidamen-te. As alternativas à aviação eram poucas, já que as rodovias pavimentadas eram limitadíssimas, as estradas de ferro apresentavam serviços ruins e a marinha mercante estava desfalcada.

Em acréscimo, havia uma grande e barata oferta de aviões excedentes de guerra, repre-sentada principalmente pelos DC-3. Essa série de condições favoráveis levou à constituição de diversas novas empresas aéreas, entre as quais se destacou a Redes Estaduais Aéreas Ltda. (Real).

O dinamismo de seu criador, o comandante Linneu Gomes, levou a companhia, que iniciou suas operações no começo de 1946 com o Dou-glas DC-3, a procurar aviões que a destacassem no mercado.

Na Grã-Bretanha, a fábrica de aeronaves Bristol havia lançado em 1945 o que seria o pri-meiro avião de transporte britânico do período pós-guerra: o Bristol 170. Esse bimotor podia levar 36 passageiros (contra 21 a 28 do DC-3) e apre-sentava características que pareciam interessantes e levaram à sua escolha pela Real.

O Bristol 170Durante a guerra, a indústria aeronáutica bri-

tânica se dedicou principalmente à fabricação de caças e bombardeiros, deixando a produção de avi-ões de transporte para os americanos. Entretanto, antes de terminar o conflito, as autoridades locais já haviam verificado que seria impossível concorrer no mercado internacional sem ter modelos com-petitivos. Para sanar esse problema, foi criado um comitê para levantar necessidades de mercado e estabelecer as características das aeronaves a serem produzidas no pós-guerra.

A Bristol Aeroplane Company se envolveu em

dois projetos advindos das exigências formuladas pelo denominado Comitê Brabazon: o Brabazon para até 150 passageiros, com oito motores e enormes dimensões; e o Britannia, um rápido tur-boélice de longo alcance. Mas a fábrica inglesa viu a necessidade de produzir um avião de transporte de passageiros e cargas menor, que fosse simples e de introdução rápida e barata.

O projeto evoluiu ainda durante a guerra para atender a necessidades militares, em especial a campanha de Burma (hoje Myanmar). A ideia era produzir uma aeronave robusta e de fácil acesso

O Bristol 170 era bem maior que os DC-3 até então operados pela Real.

A Real foi uma das primeiras operadoras do Bristol 170 e teve sérios problemas técnicos com o avião.

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wayfarer, com nariz fixo e porta na lateral traseira para passageiros.

O governo britânico resolveu apoiar o progra-ma para torná-lo mais competitivo, em especial frente aos excedentes de guerra americanos que invadiam o mundo e tinham baixo preço de aqui-sição. Para tal, cobriu os custos de fabricação dos gabaritos e do ferramental de produção e comprou os dois protótipos iniciais. A intenção era facilitar as exportações, gerando receitas para o país.

O primeiro protótipo ficou pronto em 2 de dezembro de 1945 e tinha a configuração freighter, com piso reforçado, mas ainda sem as portas dianteiras. Em 30 de abril de 1946 voou o segundo protótipo, já na versão wayfarer, para passageiros. Após testes que geraram uma mu-dança na posição do plano horizontal da cauda, o 170 recebeu em junho de 1946 o certificado de aeronavegabilidade, o primeiro concedido a um avião civil britânico no pós-guerra.

O terceiro protótipo do 170 voou também em junho de 1946, na versão cargueira, e no começo de agosto iniciou uma viagem de demonstração pelas Américas. O avião cruzou o Atlântico Norte, com quatro escalas, até alcançar a cidade de To-ronto, no Canadá. Lá, ele começou um périplo de quase 50.000 quilômetros, que se estendeu pelas três Américas, terminando em São Paulo (onde foi avaliado seguidamente) e no Rio, onde chegou a 15 de dezembro de 1946. Esse Bristol 170 seguiu viagem para o Canadá, sendo depois alugado à Venezuela, antes de retornar à Grã-Bretanha.

O primeiro wayfarer de produção em série (após quatro protótipos) deveria efetuar uma nova viagem de demonstração à América do Sul (Rio, São Paulo e Buenos Aires), após a qual seria entregue à Real, que comprara três unidades desse avião. Foram instalados três tanques extras no solo. A Bristol empregou os perfis de asas do

antigo avião Bombay, aliados a uma nova fusela-gem. Foram escolhidos os motores radiais Hercules de 1.675 HP, fabricados pela divisão de motores da própria Bristol e que haviam acumulado expe-riência na guerra.

A fuselagem adotada tinha paredes laterais retas, permitindo obter uma largura constante na maior parte da cabine de passageiros. O nariz tinha formato rombudo e previsão para instala-ção de portais frontais divididos ao meio (que abriam para os lados), auxiliando a entrada de veículos civis e militares. A cabine de comando foi instalada no alto da fuselagem, com acesso através de uma escada no lado direito interno da fuselagem.

A fábrica Bristol avaliou que, como o avião voaria principalmente etapas curtas, não seria necessária a adoção de trem de pouso retrátil. Para o fabricante britânico, a limitação que seria feita à velocidade, pelo maior arrasto, seria compensada pelo menor peso estrutural. Além disso, o trem fixo deveria apresentar menores problemas de manu-tenção, além de eliminar o sistema hidráulico, já que os flaps e freios eram pneumáticos.

Após estudar os mercados civil e militar, a Bristol decidiu que seriam feitas duas versões do avião: o freighter, com a porta no nariz e dedica-do ao transporte de cargas civis e militares; e o

O Bristol 170 foi muito utilizado na Europa para o transporte de automóveis e oferecia uma rampa para acesso direto dos mesmos.

A Real tinha grandes expectativas em relação ao Bristol e investiu muito na publicidade do avião.

O comandante Linneu Gomes (à direita na foto) fundou a Real e a transformou na maior empresa aérea da América Latina antes de vendê-la.

A cabine de comando do Bristol era larga e espaçosa, mas os pilotos consideravam o avião mais difícil de voar que o DC-3.

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de combustível na fuselagem para possibilitar a travessia do Atlântico Sul da África ao Brasil.

A aeronave de prefixo G-AHJB (que deveria se tornar o PP-YPF) partiu para o voo de translado com um piloto da Bristol e demais tripulantes da British South American Airways, que já conheciam bem a rota. Mas, apesar dessa experiência, duran-te a travessia de Bathurst (Gâmbia) para Natal, os pilotos não conseguiram fazer contato com o radiofarol dessa última cidade e se perderam. O avião fez um desvio de rota de 720 quilômetros para o sul e, ao terminar o combustível, efetuou um pouso noturno de emergência próximo a um navio mercante americano. Felizmente, a ameris-sagem foi bem-sucedida e todos os tripulantes se salvaram. A aeronave, graças aos tanques vazios, flutuou ainda por longo tempo.

O emprego do Bristol 170 no restante do mundo se concentrou em serviços cargueiros civis e militares. Foram feitas novas mudanças au-mentando a área na deriva e asas e incorporando versões mais fortes dos motores Hercules. No mo-delo civil, o grande destaque da vida desse avião foi o transporte de automóveis e seus ocupantes sobre o Canal da Mancha. Para essa finalidade foi criada a versão Mark 32, com nariz alongado. Esse modelo, desenvolvido a pedido da Silver City Airways, podia levar até três carros médios e 12 passageiros. Os automóveis eram dirigidos através de uma rampa que dava acesso à porta dupla dianteira e à fuselagem, enquanto os passageiros (quase sempre ocupantes dos carros) entravam pela

porta lateral, que dava acesso à parte posterior da cabine, onde havia poltronas. Esses voos incentiva-ram o desenvolvimento do turismo automobilístico entre a Grã-Bretanha e o continente europeu, em especial entre 1949 e 1963.

A produção do Bristol 170 sempre teve uma cadência pequena e, em 1958, quando foi en-cerrada, haviam sido entregues 214 unidades. Sua carreira, entretanto, não foi livre de proble-mas técnicos e o principal deles era a curta vida das longarinas das asas, que foi uma deficiência constante entre aviões britânicos do pós-guerra. As longarinas duravam apenas 25.000 horas e sua substituição tinha preço impeditivo, encur-tando a vida econômica do avião. Apenas para comparação de durabilidade, diversos DC-3 e Convair duraram mais de 100.000 horas de voo, sem grandes modificações.

O Bristol 170 na RealA Real começou a voar em fevereiro de 1946

com dois DC-3, mas poucos meses depois sua direção já buscava se diferenciar dos concorrentes que operavam o mesmo tipo de avião.

Nessa ocasião, o Bristol 170 começou a ser oferecido em nosso país e se distinguia por ser bem maior que o DC-3, pela maior capacidade de passageiros e pelo desempenho.

O embarque do Bristol 170, que podia levar até 36 passageiros.

A publicidade mostrava a rota servida pelo Bristol 170, enfatizando as qualidades do avião.

A propaganda da Shell Aviation do Brasil, publicada na revista Flap Internacional, mostrava um caminhão saindo de um Bristol 170 na versão com a porta dianteira de carga, que, portanto, não pertencia à Real.

A foto com o tripulante mostra o tamanho do avião e destaca o trem de pouso fixo.

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A Real, impressionada com os voos de de-monstração do avião, decidiu adquirir três Bristol 170, que com suas dimensões e características poderiam trazer bons resultados.

Os aviões foram comprados por cerca de 120 mil dólares cada um pelo câmbio da época, que correspondia ao preço de dez a 12 DC-3 aos preços do mercado de ocasião. O contrato previa também o envio de três engenheiros da Bristol para ficarem um período no País, dando apoio de manutenção à Real.

Para o translado do segundo avião, o PP-YPD, a Bristol tomou cuidados redobrados, contratando

uma tripulação da Airwork, instalando uma cúpula para o sextante para efetuar a navegação celestial e aparelhos para verificar a derivação sobre o mar, isto além de ter aumentado a capacidade dos tanques auxiliares e o peso de decolagem. Felizmente, o YPD chegou sem maiores tropeços ao Brasil. Após decolar de Londres, fez escalas em Lisboa (onde pernoitou), Rabat (onde novamente pernoitou), Bathurst (Gâmbia) e finalmente Natal, lá chegando no dia 16 de outubro, após oito dias de viagem. Uma tripulação da Real juntou-se ao grupo e o avião seguiu para São Paulo, com escala em Salvador.

O PP-YPD, que recebeu este prefixo após ser vistoriado pelo então DAC, começou a voar a rota Rio-São Paulo-Curitiba em novembro de 1946.

Na véspera de Natal de 1946, o PP-YPE, o segundo Bristol da Real, começou em Londres o translado para o Brasil, onde chegou no dia 30 de dezembro do mesmo ano. Os voos comerciais do YPE foram iniciados em janeiro de 1947, após o avião haver sido inspecionado pelo DAC.

Apesar das grandes expectativas que a Real tinha sobre o avião, a operação do mesmo trouxe grandes desilusões. A construção britânica de aviões comerciais ainda estava engatinhando e

as soluções técnicas eram algumas vezes esdrúxu-las. As características de voo eram inferiores às esperadas e a operação apresentava aspectos desabonadores.

Apesar das grandes dimensões externas, o Bristol tinha a largura interna menor que os tur-boélices da década de 1960, tendo, entretanto, a vantagem de ter paredes retas. Para os passa-geiros, uma surpresa desagradável foi o alto nível de ruído na cabine e o fato de, em dias de chuva, as goteiras serem abundantes sobre as poltronas.

Para os pilotos, os pousos eram considerados muito mais difíceis que os do DC-3. O atuador de

O Certificado de Navegabilidade brasileiro do PP-YPD estava válido quando o avião parou de voar em maio de 1947.

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freio era um manete semelhante ao utilizado em bicicletas e ficava no manche. E o freio pneumático era delicado.

O trem de pouso, que era fixo para não apresen-tar dificuldades, na verdade quebrava com facilidade. E os motores Hercules acumulavam problemas.

Aliás, as empresas aéreas competidoras, um pouco assustadas no início com a concorrência do Bristol, apelidaram o avião de Pirata da Perna de Pau. Uma alusão ao trem fixo e a uma música de carnaval da época.

Os defeitos mecânicos se acumularam e a Real tinha dificuldades em manter os dois aviões em voo. A utilização mensal máxima obtida foi com o PP-YPE, de apenas 113 horas num único mês, e nos demais os dois aviões voaram menos que 100 horas cada. Após voar pouquíssimo em maio, junho e julho de 1947, o YPE, que entrara em operação em janeiro daquele ano, parou de operar definitivamente em agosto. O PP-YPD, que

entrara em serviço em novembro de 1946, fez seu último voo em maio de 1947.

Na verdade, o Bristol 170, conforme a opinião de um técnico do setor, foi um avião mal projetado e pior fabricado. Pelo menos no início de sua carreira.

Para finalizar as operações do B 170 na Real, os motores Bristol Hercules necessitavam de revisão geral com apenas 500 horas de uso contra cerca de 1.000 nos motores de DC-3 na época. E para a operadora este foi o ponto final de sua relação com o B 170. Sob o ponto de vista de desempenho, o avião também deixou a desejar. A velocidade média alcançada era inferior à obtida pelo DC-3 (um reflexo do trem fixo) e o consumo de combustível era 22% mais elevado. Isso significa dizer que, mesmo que tecnicamente a aeronave fosse bem-sucedida, os custos unitários seriam superiores aos do DC-3 que pretendia substituir.

Em outubro de 1947 os dois Bristol foram re-tirados de serviço oficialmente e em julho de 1948 a Real pediu licença para reexportá-los. Como os mesmos não se encontravam mais em condições de voo, foram desmontados e vendidos para o ferro-velho. A Bristol concordou em pagar cerca de 30 mil dólares por todos os motores, alguns instrumentos e sobressalentes dos aviões, antes das estruturas remanescentes serem desmanteladas em setembro de 1948.

Harro Fouquet, que foi diretor da Real e depois por muitos anos da Varig, disse que o Bristol 170, apesar de seus sérios problemas, teve o benefício de projetar o nome da Real no cenário nacional. A empresa em 1948 alcançou uma frota de dez DC-3 e em 1956 já era a maior companhia aérea brasileira, com mais de 100 aeronaves.

O curioso é que um livro britânico quando se refere à passagem do 170 no Brasil não descreveu as sérias dificuldades técnicas do avião e declarou que o avião foi retirado de serviço por problemas financeiros da Real. A evolução da empresa nos anos que se seguiram mostrou bem que, se houve problema na ocasião, foi somente do avião.

A Real produziu um folheto onde realçava as qualidades do avião.

O mapa mostra a viagem de demonstração do Bristol 170 feita pelo fabricante através das três Américas.

O interior do folheto acima.

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