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Coleção ESTÉTICA Dirigida por VICTOR KNOLL Série OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA Coordenação de ALEXANDRE EULALIO Vol. 11 Capa de SÉRGIO LÚCIO Titulo: Letras Berolina tipo médio- Vinheta: Ilustração de um manual de Quiromancia (século XX): os planetas que regem os dedos da mão. 1981 Todos os direitos reservados LIVRARIA E EDITORA POLIS L TDA. 04138- R. Caramuru, 1196- Te!.: (011)275-7586 São Paulo BRITO BROCA obras reunidas 11 Ensaios da mão canhesfra Cervantes Goethe Dostoievski 1\lencar Coelho Netto Pompéia prefácio de Antonio Candido I . POIS Em convênio com o CCSP D1v1sao de B;biiOtPcas rmc INSTITUTO NACIONAL DO LIVF30 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

Brito Broca - Ensaios Da Mão Canhestra

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Brito Broca sobre Dom Quixote

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  • Coleo ESTTICA Dirigida por VICTOR KNOLL

    Srie OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

    Coordenao de ALEXANDRE EULALIO

    Vol. 11

    Capa de SRGIO LCIO Titulo: Letras Berolina tipo mdio-Vinheta: Ilustrao de um manual de Quiromancia (sculo XX): os planetas que regem

    os dedos da mo.

    1981 Todos os direitos reservados LIVRARIA E EDITORA POLIS L TDA. 04138- R. Caramuru, 1196- Te!.: (011)275-7586 So Paulo

    BRITO BROCA obras reunidas 11

    Ensaios da

    mo canhesfra

    Cervantes Goethe Dostoievski 1\lencar Coelho Netto Pompia

    prefcio de Antonio Candido

    I. 3P-0i227~Q POIS Em convnio com o

    CCSP D1v1sao de B;biiOtPcas

    rmc

    INSTITUTO NACIONAL DO LIVF30 MINISTRIO DA EDUCAO E CULTURA

  • f"'nV

    BRITO BROCA 1904-1961

    OBRAS PUBLICADAS

    Americanos. Curitiba: Guafra, 1944 Raul Pompia. Sio Paulo: Melhoramentos, 1956 A Vida Literria no Brasil - 1900

    1!' edilo- RiodeJaneiro: ServiodeDocumentalodoMEC, 1956 2!' edilo- Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1960

    3!' edilo - Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1975 Horas de Leitura. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957 Machado de Assis e a Politica e Outros Estudos. Rio de Janeiro: Organizalo Simes,

    1957 Pontos de Referncia. Rio de Janeiro: Servio de Documentalo do MEC, 1962 Letras Francesas. Slo Paulo: Comisslo Estadual de literatura, 1966 Memrias. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1968 Romnticos, Pr-romnticos, Ultra-romnticos. Sio Paulo/Brasllia: Polis/INL, 1979

    TRADUOES

    I. S. Turgueniev - guas de Primavera (em colaboralo com Georges Serzoff). Sio Paulo: Biblioteca 1M Autores Russos, 1932

    Jean Babelon - O Conquistador (A Vida de Fernando Cortez). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1941./2!' ed. Idem, ibidem, 1958

    Melchior de Vogil - O Romance Russo. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1943 Gregorio Maral!.on - Tibrio (Histria de um Ressentimento). Rio de Janeiro: Jos

    Olympio, 1944 Herdoto- Histria. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1948 Voltaire- Stltes. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1948 Prosadores Franceses (em colaboralo com Wilson Louzada). Rio de Janeiro: W. M.

    Jackson, 1948 I. S. Turgueniev - O Primeiro Amor. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1949

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    Sumrio

    Prefcio, Antonio Candido, 7 Este volume, Alexandre Eu/alio, 11 O Destino de Tolstoi, 13 Notas sobre a Casa dos Mortos, 33 O Mistrio Thomas De Quincey, 47 Crime & Castigo, 61 Dostoievski e O Idiota, 75 O Engenhoso Fidalgo Miguel de Cervantes, 89 O Claro-Escuro de Lagerkvist, 129 A Viagem Maravilhosa de Goethe, 139 Alencar: Vida, Obra e Milagre, 155 Coelho Netto, Romancista, 177 Raul Pompia, 199 Introduo Literatura Brasileira, 243 ndice Bibliogrfico, 305 ndice Onomstico, 311

  • Vrias cidades espanholas, entre as quais Madri, Toledo e Sevi-lha, pretenderam, durante muito tempo, ter sido o bero de Cervantes. Mas em 1752 Frei Martin Sarmiento descobriu uma pista que parecia segura. Na Histria de Argel, do Padre Haldo, publicada em 1612, Cervantes aparecia como filho de Alcal de Henares. Encaminhadas as pesquisas para os arquivos dessa cidade, descobriu-se o registro de ba-tismo do autot de Dom Quixote. Ficou, assim, fora de dvida, haver ele nascido ali a 28 de setembro de 1547, dia de So Miguel, por isso mesmo que recebera o nome desse santo.

    O av de Cervantes era magistrado, tendo ocupado vrios cargos de importncia; mas o filho, Rodrigo, insurgindo-se contra a austeri-dade do lar paterno, abandonou-o, indo casar-se com uma moa de nobre linhagem, mas pobre, Leonor de Cortinas. Desfavorecido de qualquer amparo, j que o pai desaprovara o casamento, teve de procurar um meio de vida qualquer para sustentar a familia, que se tor-nou, dentro em pouco, numerosa. Ei-lo a exercer o oficio de cirurgio, equiparado ao dos barbeiros na poca, e a lutar com toda sorte de dificuldades. Procurando melhorar de situao, vai mudando de resi dncia, e j possui trs filhos quando se instala em Alcal de Henares, onde vem ao mundo o quarto, que se chamar Miguel.

    At hoje, apesar de to vastos e minuciosos estudos, continuam a ser controvertidos muitos dados sobre a vida de Cervantes. Como passou a infncia e a adolescncia? Pouco se sabe, com exatido, a res-peito. No resta dvida de que o pai continuou a mudar de residncia, sempre procura de melhoria para uma vida de trabalhos e privaes. Na companhia dos outros irmos- foram sete, ao todo- o pequeno teria crescido ao deus-dar, sem cuidados nem conforto, familiari-zando-se, desde muito cedo, com as brutalidades do mundo. Uma familia pobre, em permanente nomadismo pelas cidadezinhas dessa Espanha de Filipe II ... Onde estudou o jovem Miguel? Teria feito um curso regular na Universidade de Salamanca, na de Sevilha ou na de

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    Alcal? Um contemporneo, Tamayo de Vargas, chamou-o de "enge-nho leigo", mas no se pode negar que, se no fez qualquer curso universitrio, conseguiu, pelo menos, reunir vasta cultura literria. o que se depreende de sua obra, e ningum que a conhea poder neg-lo. Parece certo, no entanto, haver estudado Gramtica e Ret-rica em Madri, em 1568, na escola de Juan Lpez de Hoyos, quando escreveu uma elegia em verso pelo falecimento de Dona Isabel de Valois, esposa de Filipe II. Tambm em Madri, ainda bem jovem, teve uma profunda impresso ao assistir s representaes do grupo teatral de Lope de Rueda, passando este por lhe haver despertado a seduo das Letras.

    Na Itlia Renascentista

    Cursasse ou no escolas, a verdade que possua grande conhe-cimento dos meios estudantis nesse tempo, em que (na Espanha, como em outros pases da Europa) os estudantes formavam uma classe parte, com sua tica e seus costumes muito bem caracterizados. Jean Babelon aventa a hiptese de Cervantes, na mocidade, haver deixado a famlia para ir servir a el-rei, como soldado, semelhana de vrios jovens que lhe aparecem nos livros. Estudantes, aventureiros, bomios, soldados, mendigos, bandidos - eis toda a humanidade heterclita com a qual o autor do Dom Quixote teria entrado em contacto desde a infncia. Viveria eternamente sob o signo da insegurana e da aven-tura. E que aventura mais palpitante do que conhecer novas terras? Viajar seria um dos primeiros sonhos a inflamar o esprito de Cervan-tes. Pois surgia a oportunidade para realiz-lo. O prelado italiano Jlio de Aquaviva vem a Madri apresentar os psames do Papa a Filipe II pela morte do filho deste ltimo, e, aproveitando a ocasio, fazer certas queixas contra as autoridades espanholas de Milo, empresa esta que no pde levar a cabo com xito. Esprito culto, dado s artes e s letras, o prelado relaciona-se com os intelectuais de Madri, entre os quais Lpez de Hoyos, mestre de Cervantes, que lhe teria indicado o discpulo como um servidor leal e inteligente. Com vinte e dois anos, Cervantes parte para a Itlia na qualidade de camareiro de Aquaviva. Foi certamente uma viagem maravilhosa. A Itlia vivia uma das suas pocas mais notveis, em pleno Renascimento, no apogeu das artes e das letras: Ariosto, Maquiavel, Aretino, Tasso, Cellini, Tintoretto, Da Vinci! ... H pouco morrera Miguel ngelo. Cervantes - suas obras o provam- embebeu-se profundamente da cultura italiana da poca, e no El Licenciado Vidriera nos d conta de algumas peregrinaes que

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    realizou atravs da Pennsula. Empolgado pelo estudo e pela contem-plao da beleza, qual o motivo que o levar a abandonar o ambiente magnfico da Itlia renascentista para alistar-se nas tropas pontifcias que iam combater os infiis? No nos esqueamos de que era tambm do prprio esprito da Renascena esse sentimento total da vida: con-templao e ao. Os perigos da guerra seriam uma experincia indis-pensvel formao "humana" de Cervantes. Recordemos a frmula ento em voga: vivere pericolosamente.

    "El Manco de Lepanto"

    Contra o avano dos turcos, que ameaavam a Europa, foi cons-tituda uma Liga formada pela Repblica de Veneza, o Papa Pio V e a Espanha, reunindo-se as respectivas esquadras em Messina, sob o comando supremo de Dom Joo d' ustria. Com um reforo vindo de Sabia e Gnova, rumam elas para Corfu e da para Lepanto, onde se d o formidvel choque com a esquadra inimiga, mais ou menos igual em nmero de navios e com superioridade de homens. Depois de uma luta terrvel, as naus crists alcanam a vitria, salvando a Europa da invaso. De Cervantes, sabe-se que se bateu com extraordinria bra-vura, recebendo vrios ferimentos, inclusive um na mo esquerda, que a deixou inutilizada para la gloria de la diestra. Tornara-se um heri. Dom Joo d' ustria felicitou-o. E, apesar dos ferimentos e da mo le-sada, toma parte em outros combates, como o de Na varino e o de Tnis. Incorporado ainda s foras pontifcias, retorna Itlia, e, ao cabo de cinco anos de vida militar, experimenta tambm o desejo de voltar Espanha. Decerto, j iam longe as ressonncias do herosmo, e o nome de Cervantes agora no era mais do que o de um simples soldado, com a mo esquerda imprestvel: "el manco de Lepanto". Obtendo licena, parte em companhia do irmo Rodrigo, levando recomendaes do Duque de Sesa e de Dom Joo d' ustria para que o promovam a capito. A galera Sol, num grupo de trs naus, deixa o porto de Npoles a 20 de setembro de 1575. Nela vai Cervantes, decerto cheio de esperana, contando com a recompensa do governo espanhol por to leais e hericos servios. Mas, seis dias depois, em alto mar, naves turcas atacam as galeras; duas destas ltimas conseguem escapar, e justamente a Sol, em que viajavam Cervantes e o irmo, aprisionada pelos corsrios do albans Mami.

  • 94 OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

    Cativeiro na Arglia

    Comea, ento, uma das principais e mais dolorosas etapas da vida de Miguel de Saavedra: o seu cativeiro na Arglia. So cinco anos de trabalhos, torturas e sofrimentos, suportados com estoicismo e resignao crist, e dos quais retira ele uma experincia que lhe ser fundamental na criao literria. Mais tarde, atravs de toda a obra cervantina, vamos encontrar, com freqncia, traos, evocaes, mar-cos desse dramtico perodo. No somente enfrentava corajosamente a situao, como procurava reerguer o nimo dos companheiros de cati-veiro, amparando-os e socorrendo-os por todos os meios que tinha ao alcance. Na Espanha no deixava de haver interesse pelos prisioneiros. O pai de Cervantes chega a dirigir-se ao Rei, para ver se consegue o resgate dos dois filhos. Mas os mouros pediam avultadas somas. Fugir seria um dos recursos. A idia de fuga constitua, alis, a obsesso dos cativos, e Cervantes chega a tent-la quatro vezes, com outros prisio-neiros. Ora a traio, ora um golpe errado, tudo concorre para o fracasso, e vemos o futuro autor do Dom Quixote mais preocupado com a sorte dos companheiros do que consigo mesmo, sacrificando-se por eles a ponto de, na hora do castigo, declarar-se o nico responsvel, procurando atrair sobre si toda a culpa. J era qualquer coisa seme-lhante ao quixotismo do seu heri.

    Afinal, os irmos que se encontram na Espanha conseguem reunir uma boa soma e envi-la para o resgate de Miguel e Rodrigo. Os mouros libertam apenas Rodrigo; a liberdade de Miguel custava mais caro e o dinheiro no chegava. Acontece que Cervantes, devido s repetidas tentativas de fuga, acha-se agora sob a dependncia direta do Bei de Argel, que faz exigncias desmedidas. Toca a suportar ainda por algum tempo o cativeiro. A vocao literria e potica do prisioneiro nessa poca j se havia manifestado, e no de estranhar, segundo o depoimento de um dos companheiros, procure ele amenizar as tristes horas do cativeiro fazendo versos. Supe-se mesmo tenha comeado ali a composio da pastoral Galatia, obra que lhe mereceu tanto carinho e na qual ps muito de suas esperanas de artista.

    Havia de chegar o dia da liberdade. Trouxe-a, em maio de 1580, a misso redentorista de Frei Juan Gil. Os sacerdotes se tinham pro-posto a retirar o maior nmero possvel de cristos das mos dos infiis, e, ao cabo de negociaes laboriosas, Cervantes pode ser includo no nmero dos libertos. Os inimigos, que nunca lhe faltaram na priso, ainda agora o assediam. O ex-dominicano Blanco Paz procura caluni-lo em cartas enviadas Espanha, nas quais lhe atribui procedimento

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    censurvel durante o cativeiro. No sem dificuldade que Cervantes consegue destruir a conjura.

    Retomava ptria, afinal, com trinta e trs anos apenas e preco-cemente maduro. Se muito havia sofrido, muito tambm havia visto e aprendido.

    Que lhe esperava em Madri? Aps o regozijo da retomada de contacto com a famlia, a certeza de que todos continuam ainda mais pobres, sacrificadas as economias no resgate dos dois irmos. Dom Joo d' ustria, protetor de Miguel, morre, e o "maneta de Lepanto" no encontra quem lhe recompense o mrito. Volta s fileiras e, em-bora sem o posto de capito com que contava, encarregado de desem-penhar uma misso reservada em Or.

    Mas esse ano de 1581 seria de grandes acontecimentos na penn-sula. Morto Dom Sebastio de Portugal, em Alccer-Quibir, Filipe II reivindica o trono desse pas, para o qual julgava ter mais direito, enquanto neto de Dom Manuel, o Venturoso, do que Dom Antnio, Prior do Crato, o pretendente nacional, filho bastardo do Infante Dom Lus. Regressando do norte da frica, Cervantes enviado para Por-tugal, j ocupado pelas tropas do Duque de Alba. Enquanto o Prior do Crato, vencido na resistncia que oferecera, fugia para a Frana, a terra lusa caa sob o domnio espanhol. Cervantes passou algum tempo ali, tudo nos indicando que simpatizou particularmente com a paisa-gem portuguesa. Em Lisboa decorrer, mais tarde, parte da ao de sua novela Persiles e Segismundo. Compreende ele que j nada mais pode esperar da carreira militar, em que no lograra o ambicionado e merecido posto de capito.

    Interldio Pastoral

    Em 1584 abandona a farda. Est agora em Madri, sem recursos, apenas animado por um sonho: o de concluir e publicar a pastoral Galatia. Certamente, de h muito viria sentindo a necessidade de cumprir o destino de escritor, aspirao bem difcil nessa poca em que as letras constituam privilgio dos nobres e s algum, sombra dos grandes, poderia cultiv-las. Assim mesmo, deposita grande esperana na sua Galatia. No mesmo ano de 1584 a obra aparece, dedicada a Ascanio Colonna, general das tropas pontifcias da Santa Liga.

    No precisaremos recordar aqui as caractersticas desse gnero literrio que esteve em voga durante os Sculos 16 e 17 na Europa. A pastoral atendia a uma necessidade de repouso, de tranqilidade, de vida pacfica e feliz, aps as guerras da Idade Mdia: era a volta a um

  • % OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

    ambiente ednico, o repetido apelo da famosa "idde do ouro", que os homens sempre sentiram atravs dos sculos. Dpois dos romances de cavalaria, em que o heri luta encamiadamefitej desafiando todos os riscos e perigos para conquistar sua eleita, a pastoral representava a doce consolidao dessa conquista na paz iluminada dos campos, fora do tumulto e da ferocidade das competies humanas.

    Por isso mesmo, esse gnero literrio surge no momento em que os romances de cavalaria entram em decadncia. Na realidade, a pas-toral j havia sido cultivada entre os gregos por Longus e Tecrito, mas no Sculo 16 qe ela reaparece com nova estrutura, para predominar em toda a Europa. O Ameto de Boccio precede a Arcdia de Sanna-zaro, ponto de partida da chamada invaso dos pastores na literatura europia. Foi, certamente, o xito extraordinrio da Diana, de Jorge de Montemaior, na pennsula, que levou Cervantes, em meio de to duros trabalhos e atribulaes, a arquitetar e escrever Galatia. Como em todas as obras dessa natureza, a intriga gira em tomo de um idio entre pastores. No caso, vemos Elcio apaixonado por Galatia, amada tam-bm por Erasto, que acaba se resignando com o fracasso de suas pretenses. Elcio seria uma transposio da personalidade de Cer vantes, e Galatia a de Dona Catalina Palacios, com quem o escritor se casava nesse mesmo ano de 1584, na parquia de Santa Maria, em Esquvias. Hiptese fundada no fato do autor haver dedicado a obra futura esposa.

    Galatia esteve longe de obter o xito que Cervantes esperava, embora no fosse um trabalho inferior. Somente a o autor no conse-guiu, como lograria, mais tarde, nas Novelas Exemplares e sobretudo no Dom Quixote, superar o gnero.

    Infelizmente, o casamento no trouxe tambm para o antigo sol-dado de Lepanto uma perfeita acomodao afetiva. Tinha uma filha ilegtima, Isabel, que acaba trazendo para casa - circunstncia que, talvez, tivesse concorrido para o desentendimento entre os esposos.

    No fundo, Cervantes no o tipo do homem do lar, sempre entretido com a mulher e os filhos. H nele o trao anrquico de um bomio, corredor de aventuras.

    Em 1585 morre-lhe o pai. Deixando a mulher em Esquvias, vai ele freqentar em Madri tertlias literrias. Comea a seduzi-lo o teatro, e datam da suas primeiras incurses na literatura dram-tica.

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    Pelas Estradas da Espanha

    Mas preciso viver, as letras no do dinheiro, e movido por essa inexorvel necessidade de subsistncia, Cervantes se v obrigado a aceitar um dos empregos que menos se coadunavam com sua ndole. Procurando vingar a morte da rainha catlica Maria Stuart, Filipe II prepara uma poderosssima esquadra para atacar a Inglaterra protes-tante de Isabel. Na foz do Tejo renem-se cento e sessenta navios poderosamente equipados com mais de vinte e dois mil soldados: a "Invencvel Armada". A alimentao desse enorme contingente exige a "requisio de vveres em toda a Pennsula". Cervantes obtm o cargo de comissrio real do abastecimento. uma funo profundamente antiptica, cujo exerccio no podia deixar de causar-lhe o maior constrangimento: ele, o homem cordial, solidrio com os sofredores e os humilhados, encarnao da generosidade cavalheiresca do heri que havia de imortaliz-lo, transformado num publicano odioso. A pre-sena dos comissrios era sempre anunciada com alarme; tomavam-se freqentes as reaes por parte dos camponeses, dos quinteiros, sobre-tudo dos pequenos proprietrios1rurais que queriam guardar a colheita a fim de vend-la por melhor preo. De onde a necessidade das amea-as e a interveno dos esbirros. Ei-lo a percorrer a Andaluzia, nessa misso antiptica, sob as ordens de Dom Diego Valvidia, Juiz no Tri-bunal Real. Mas embora sofrendo com o desajustamento do emprego, no pode deixar de tirar partido do nove campo de experincia, que se desdobra sua frente. todo o cenrio do Dom Quixote que vai buscar ele nessas jornadas, andando por caminhos speros, topando com os tipos mais variados e extravagantes, fazendo alto nas vendas beira da estrada, dormindo em hospedarias, onde se renem forasteiros vindos dos mais diversos pontos do pas a contar histrias estranhas e casos mirabolantes. So dias cheios e movimentados, em que o escritor rene muito do material, que vai depois transpor nos quadros picarescos das Novelas Exemplares e de sua obra-prima, o Dom Quixote.

    Certamente, no lhe faltam reveses e contratempos. No desem-penho do cargo, tem, por exemplo, um desentendimento com a Igreja, o que no deixava de ser coisa muito perigosa na poca, e com dificul-dade consegue livrar-se das conseqncias. Por excesso de zelo, ia sendo ameaado de excomunho.

    Destroada a "Invencvel Armada" pelo efeito de uma tempes-tade, que nas guas da Mancha dispersara os navios, favorecendo a reao dos ingleses ("mandei combater homens, no Elementos" dissera Filipe II), cessa naturalmente a arrecadao de vveres.

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    Em 1593, Cervantes deixa o cargo. Uma idia vem tentar-lhe a fibra de aventureiro: emigrar para as ndias Ocidentais, onde se fa-ziam, da noite para o dia, tantas fortunas. Envia uma petio ao presi-dente do Conselho das ndias, na qual, depois de declinar todos os servios prestados ptria, solicita um emprego, que poderia ser uma contadoria em Nova Granada, o governo da Provinda de Soconusco, na Guatemala, a contabilidade das galeras de Cartagena ou a corre-gedoria de La Paz. A resposta negativa explicita: Busque por ac en qu se le haga merced.

    Crime em Valladolid

    Desvanecera-se o sonho da Amrica. Restava ir-se arranjando por ac, como melhor pudesse. E o recurso era continuar no cargo antiptico e espinhoso de comissrio, desta vez para a arrecadao de impostos. Tratava-se de um mister delicado: o manuseio do dinheiro pblico, num homem pouco rigoroso e metdico, como Cervantes, podia acarretar suspeitas de concusso. o que acontece desgraada-mente com o autor de Galatia. V-se ele preso trs vezes devido irre-gularidade nas prestaes de contas: uma em Castro del Ro e duas em Sevilha. lanado ao crcere, sem nenhuma contemplao, em meio de ladres e vagabundos da pior espcie. Teria comeado ou escrito toda a primeira parte do Dom Quixote na priso de Sevilha, nesse lugar "donde toda incomodidad tiene asiento y donde todo triste rudo hace su habitaci6n"? o que se supe, mas at hoje no est suficiente-mente provado. De qualquer forma, seduziu posteridade imaginar esse quadro de Cervantes, entre as paredes de um crcere, tra la per-duta gente, formulando sua mensagem de sonho, ironia e perdo para os homens.

    Desempenhando uma profisso rgida e material, Cervantes empregava todo o tempo disponvel na Literatura. Favorecia-o, natu-ralmente, a atmosfera cultural de Sevilha nas ltimas dcadas do Sculo 16- a idade de ouro das letras espanholas. O comissrio de impostos compunha sonetos, comdias, novelas, interessado principal-mente em firmar contratos para a publicao de peas dramticas. Desde menino, quando se impressionara com os espetculos de Lope de Rueda, julgara ser o teatro a vocao natural do seu esprito.

    Em 1604, quando Filipe III, por influncia do Duque de Lerma, transferiu a corte de Madri para Valladolid, Cervantes, fiel ao costume dos escritores, poetas e artistas acompanharem sempre o Rei, em cuja rbita viviam, tambm se mudou com a famlia para l. No lhe foi

    ENSAIOS DA MO CANHESTRA 99

    fcil obter alojamento, dado o acrscimo repentino da populao da cidade: os grandes senhores se instalaram logo nas melhores residn-cias e, como de prever-se, os preos teriam subido; a vida se tornara to cara e difcil quanto faustosa em Valladolid. Dom Miguel, que nessa ocasio, parece, se achava separado da esposa (nem sempre viveram juntos, havendo vrias alternativas de separao), fazia-se acompanhar de uma cunhada, duas irms e a filha natural Isabel. Com dificuldade conseguiu acomodao num dos bairros mal-afamados da cidade: um primeiro andar do qual compartilhava a viva do cronista Esteban de Garibay. Do andar trreo vinham os rumores de uma ta-berna; outros cmodos do prdio tambm estavam alugados e era por toda a residncia uma aglomerao de mulheres em tagarelice e mexe-ricos, enquanto na taberna se aglomeravam bbados e vagabundos. Nesse ambiente de "cortio" alvoroado pela tremenda loquacidade espanhola, era que o pobre Cervantes procurava debalde escrever. Pode-se facilmente imaginar o exaspero em que se via e a dose de pacincia de que precisava revestir-se para suportar tamanha balbrdia. Enquanto isso, as festas se sucediam e o movimento se tornava cada vez maior em Valladolid, aumentando igualmente, com o nmero de fi-dalgos, o nmero de aventureiros, de indivduos suspeitos e de pcaros. Agora era o batizado do Infante recm-nascido que se festejava com grande pompa, recrudescendo o burburinho e a mescla de forasteiros na cidade. Na noite de 27 de janeiro de 1605, nessa atmosfera de agitao, Cervantes ouve gritos na rua: um homem acabava de cair ferido na calada. Socorrem-no vrios moradores do prdio, junta-mente com Dom Miguel, recolhendo-o para dentro. Ao cabo de dois dias, apesar da assistncia solicita das mulheres, o homem vem a fa-lecer. Tratava-se de um tipo de maus antecedentes: Dom Gaspar de Ezpeleta. A justia toma conhecimento do caso, presidido o inqurito pelo juiz Villaroel. As suspeitas recaem sobre os moradores do prdio. Tudo parece indicar que o homem ali viera por causa de alguma das mulheres, sendo vitima de uma represlia passional. A filha de Cer-vantes, Isabel, de maneiras levianas, passava por amante de Dom Gas-par. Toda a famlia Saavedra, implicada no caso, conduzida priso e submetida a prolongados interrogatrios. Como nada se consiga apurar de positivo, restituem-lhe a liberdade, tendo antes, porm, o juiz, o cuidado de fazer recomendaes severas e vexatrias a Cervantes com relao ao procedimento da filha.

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    100 OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

    O Cavaleiro da Triste Figura

    Assim, no momento em que aparecia a primeira parte do Dom Quixote, despertando a maior curiosidade do pblico, o escndalo vinha projetar uma sombra desmoralizadora sobre o nome do escritor. Tal o desgnio implacvel a perseguir o pobre Dom Miguel.

    Desde 1604, Cervantes havia conseguido privilgio para fazer imprimir o Dom Quixote. Mas parece que no lhe foi fcil conseguir editor. Azorn, numa pgina deliciosa, imagina-o, com o grosso ma-nuscrito debaixo do brao, a enfrentar recusas desanimadoras. Lope de Vega, tendo lido a obra, deu sobre ela a pior opinio: Cervantes era um pssimo escritor e o Dom Quixote uma sensaboria. Esse juzo, partindo da maior figura literria da poca, no podia deixar de influir no nimo dos editores; Afinal, em janeiro de 1605, o livro aparece, impresso em Madri, na tipografia de Juan de la Cuesta, para o editor Francisco Robles, estabelecido na mesma cidade. Foi o que hoje chamamos um best-seller. Tem sucesso absoluto. De tal maneira, que no ms seguinte Cervantes j cuidava de obter um privilgio para Portugal, informado do extraordinrio interesse suscitado pela obra ali, privilgio que ven-deu, logo depois, a Francisco Robles. A primeira parte do Dom Qui-xote foi dedicado ao Duque de Bjar. Era costume da poca, em que os direitos autorais rendiam sempre muito pouco, colocarem-se os escri-tores sob a proteo dos nobres e poderosos, dedicando-lhes os livros. Mas, ainda aqui, Cervantes no teve sorte. O Duque de Bjar, por motivos at hoje discutidos, no se dignou a corresponder homena-gem. Segundo uma das verses, o tom satrico do Dom Quixote, suge-rindo a inteno de ridicularizar a nobreza, lhe parecera meio incon-veniente, levando-o a essa absteno cautelosa. De qualquer forma, no podemos deixar de encarar sem ironia a figura desse grande de Espanha, do ilustre fidalgo, cujo nome ficaria inteiramente desco-nhecido pela posteridade, no lhe houvesse inscrito no prtico de um livro o humilde novelista que debalde lhe solicitara a ateno. Cervan-tes tinha 57 anos, quando publicou a primeira parte do romance. Aqui, em plena maturidade, j nos umbrais da velhice, comea verdadei-ramente a carreira do escritor.

    Novos Trabalhos e Andanas

    Em 1606, Filipe III retorna a Madri e acompanha-o mais uma vez Cervantes, indo residir Calle Magdalena, perto da livraria de Robles. Apesar do xito de Dom Quixote, a vida continua a correr-lhe amarga.

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    ENSAIOS DA MO CANHESTRA 101

    Dificuldades financeiras, desgostos de famlia, a certeza cada vez mais desanimadora de que no conseguir realizar plenamente o destino de escritor e artista, tudo isso cava rugas profundas na face cansada do guerreiro de Lepanto. As decepes de Cervantes cQmeam a identi-ficar-se com as do seu heri.

    A filha Isabel, sempre a preocup-lo pela incorrigvel leviandade, agora se toma esposa de Diego Saves dei quila. Morto o marido, dentro de algum tempo, ei-la a contrair segundas npcias com Luis de Molina, comprometendo-se Cervantes a entregar a este dois mil du-cados, como dote. mais uma complicao financeira em que se v o escritor: Molina no passa de um aventureiro sem escrpulos, disposto a explorar o sogro e a tirar todo partido da situao. Exigindo o dote perante os tribunais, obriga o fiador apresentado por Cervantes a entrar com a quantia, o que leva depois o romancista aos maiores sacrifcios financeiros para indenizar aquele. Nesta altura, Dofia Cata-lina, sempre em conflito com o marido, resolve tambm deserd-lo. Em 1609, Cervantes perde uma irm, Andria, que lhe havia prestado sempre carinhosa assistncia, e, dois anos depois, outra, Magdalena.

    Mas, em 1609, ainda encontra novo motivo para amargur-lo. O Conde de Lemos parte para a Itlia, incumbido de uma misso oficial em Npoles, e como era costume na poca leva na sua comitiva grande nmero de intelectuais e artistas. Cervantes espera ser includo entre estes ltimos. H muito tempo que sonhava rever a paisagem italiana, de que conservava to profunda impresso e cuja influncia lhe senti-mos to viva nos livros. Mas o conde no se lembra do autor de Dom Quixote. Apesar do sucesso da obra, Cervantes no passava de um novelista, um contador de histrias, categoria literria que estava longe de possuir grande cotao no Sculo 17, o que deve explicar at certo ponto o gesto do grande senhor, preterindo um autor de tanto mrito a quem se habituara a proteger.

    Amigo de Pcaros

    Na mesma ocasio, agravam-se as rivalidades entre Cervantes e Lope de Vega. De h muito que os dois maiores gnios da poca viviam em conflito, e agora, mais do que nunca, o dio parece erguer-se entre ambos.

    Em 1612 aparecem as Novelas Exemplares, obra que ~ntinua to viva quanto o Dom Quixote, considerada por muitos quase no mesmo plano literrio deste ltimo. So um modelo de novela picaresca, gnero que, como a pastoral, tambm surgiu na Espanha na decadncia do ro-

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    mance de Cavalaria. O pcaro era algo semelhante ao que mais tarde passamos a chamar de bomio, o individuo sem eira nem beira, que vai se defendendo na vida de qualquer jeito, atravs de mltiplas aven-turas, conseguindo sempre se sair bem das mais complicadas situaes. Tipo representativo de uma poca em que o poderio imperial da Espanha comea a declinar e a desordem econmica e moral invade a sociedade. O que caracteriza, porm, os heris picarescos o seu rea-lismo; enquanto as personagens dos romances de cavalaria so todos idealizados, os dos romances picarescos tendem a exprimir as fra-quezas e as misrias humanas. No Dom Quixote vamos ver como Cer-vantes conjugou admiravelmente as faces diversas desses dois tipos de heris. Muito da experincia humana e social do autor se encontra nos tipos extravagantes e bizarros, nas situaes complicadas, nos deli-ciosos flagrantes de costumes das Novelas Exemplares. Sim, exem-plares, porque oferecem exemplos de uma filosofia estica e compla-cente da vida. Os detalhes realistas aqui em nada ficam a dever, na firmeza e na exatido, aos do Dom Quixote. E a inventiva de Cervantes se apresenta em toda sua prodigiosa variedade. As influncias sofridas pelo autor foram diversas: h traos de Apuleio, de Luciano de Sarno-saa, dos antigos; muitas reminiscncias italianas; mas acima de tudo da prpria vida, do muito que viu e viveu por este mundo de Deus que Cervantes retira as suas novelas. Ser preciso lembrar algumas, cuja incorporao se poderia dar, sem nenhuma desarmonia, na seqncia narrativa do Dom Quixote? Quem no conhece, por exemplo, Rinco-nete e Cortadillo e no se recorda das aventuras desses dois picaros, tendo por pano de fundo o ambiente hors-loi de Sevilha? E a figura inesquecvel do Licenciado Vidriera, um desses malucos amveis, cuja sabedoria Cervantes tanto apreciava e iriam ressurgir, muitos sculos depois, nos romances de Dickens?

    No prlogo das Novelas Exemplares o autor manifestava prop-sito de continuar em outro livro as andanas de Dom Quixote. Foi o bastante para que algum, aproveitando-se da idia, impingisse ao pblico, em 1614, a segunda parte das proezas do ingenioso hidalgo, sob a assinatura do licenciado Alonso Femndez de Avellaneda, natu-ral da vila de Tordesilhas. Tratava-se de uma contrafao grosseira com o objetivo nico de explorar o xito do romance de Cervantes, a quem Avellaneda denegria num prefcio insultuoso. O Quixote dessa segunda parte aparece-nos como um maluco vulgar, destitudo do alto sentido idealista com que Cervantes o transfiguru, e o livro parece no ter tido grande repercusso. No obstante, fcil imaginar-se o deses-pero em que ficou Dom Miguel ante essa apropriao indbita de um

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    heri em que ele pusera muito de si mesmo e cujo destino pretendia ainda prolongar.

    O Falso Quixote Qual seria o autor desse falso Dom Quixote? A aluso de Ave-

    llaneda rivalidade entre Cervantes e Lope de Vega, encerrando at uma ameaa por invocar as imunidades eclesisticas do ltimo, fez com que se atribusse ao grande dramaturgo a contrafao. Mas nada se apurou de positivo sobre isso. Falou-se tambm de Tirso de Molina, Ruiz de Alarcn, Frei Luis de Aliaga, confessor de Filipe III; e a iden-tidade de A vellaneda continua a ser at ao presente um dos enigmas insolveis da histria literria.

    O aparecimento do Dom Quixote clandestino teria levado Cer-vantes a apressar a elaborao da prometida segunda parte. Antes, porm, em 1614, publica ele o poema Viagem ao Parnaso, dedicado a Dom Rodrigo de Tapia, filho de um ilustre personagem, consultor do Santo Oficio, e que no possua ento mais do que quinze anos de idade. O poema, inspirado numa obra do italiano Cesare Caporale, mostra-nos o Pamaso assaltado por uma turma de vates medocres, enquanto Apolo, para defender a colina sagrada das musas, envia Mercrio em busca de reforos Espanha. Trava-se, afinal, a batalha decisiva e os maus poetas so derrotados. O intuito de stira a estes ltimos evidente, aproveitando-se Cervantes da alegoria para caus-ticar alguns inimigos, e, em certa altura, reivindicar os prprios m-ritos to mal reconhecidos pelos contemporneos.

    Experincias Teatrais

    O teatro preocupou Cervantes, como j vimos, desde muito cedo, tendo ele alimentado o ideal de se tomar um grande autor dramtico, propsito do qual desistiu quando compreendeu a impossibilidade de competir com Lope de Vega no mesmo terreno. Mas, embora no desse a o melhor do seu talento, trouxe para o gnero algumas valiosas contribuies, numa poca em que a arte teatral no havia ultrapas-sado, na Espanha, os limites formais dos mistrios e dos autos sacra-mentais, com carter essencialmente religioso. As contribuies de Cervantes foram, porm, obscurecidas pelo gnio dramtico de Lope de Vega, cuja obra fecunda e poderosa dominou todo o Sculo de Ouro. O prprio Cervantes reconheceu isso, quando chamou o rival de monstruo de la naturaleza.

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    Escreveu ele tragdias, comdias e entremeses, sendo que algu-mas dessas obras se perderam. Das tragdias, a maior delas a Nu-mncia, no s pelas inovaes tcnicas que apresenta, como pelo poder de sugesto com que tratado o assunto. Enriquecendo um fato histrico - o cerco e a resistncia de Numncia - com alguns detalhes imaginrios, Cervantes fez qualquer coisa de semelhante tragdia antiga. Ainda h quinze anos, adaptada a certas exigncias modernas, foi essa pea representada em Paris. Destacaremos ainda A Viagem de Argel: escrito em data desconhecida, evoca episdios do cativeiro do autor, numa habilidosa transposio cnica. Em 1615 apareceu o volume Oito Comdias e Oito Interldios Novos, nunca represen-tado, onde h composies curiosssimas como O Rufio Ditoso, O Labirinto do Amor e, principalmente, Pedro de Urdemalas, cujo protagonista no outro seno um ancestral do nosso Pedro Mala-zartes.

    Est Cervantes velho, ou antes, precocemente envelhecido e do-ente. De que sofre? Os mdicos falam de vrias molstias, entre as quais a arteriosclerose. O sentimento religioso que decerto nunca foi muito forte no ntimo desse discpulo de Erasmo, se toma agora mais vivo. o momento de pensar nas recompensas divinas, j que as ter-restres falharam completamente. Assim mesmo, ainda escreve. Tem de ultimar o Dom Quixote. No se conformaria em deixar o mundo sem levar at o fim da jornada o cavaleiro manchego. No prlogo das Novelas Exemplares tambm se referia ele a outro livro que pretendia oferecer ao leitor si la vida no me deja. Eram os Trabalhos de Persiles, romance do qual se ocupava, mas que possivelmente teria posto de lado, quando a contrafao de Avellaneda o convencera da necessidade de apressar a segunda parte do Dom Quixote. Concluda esta, voltara, sem dvida, quela obra, s publicada postumamente em 1617 sob o ttulo Trabalhos de Persiles e Segismundo e dedicada ao Conde de Lemos. No nos podemos deter na anlise desse romance que tem admiradores entusiastas e passa por ser uma das maiores expresses do gnio de Cervantes, embora bem menos lido que o Dom Quixote e as Novelas Exemplares. Com reminiscncias de Heliodoro e Ariosto, Cer-vantes bordou uma histria em que o real se consorcia com o fants-tico, de maneira mais original e artstica. Aventuras, idlios, viagens, numa sucesso encantadora de paisagens que se esbatem por vezes no plano de uma geografia maravilhosa; o tecido de uma intriga engenho-samente construda com o senso do romanesco peculiar ao autor do Dom Quixote; e a par de tudo, a observao, o humor, a poesia- eis em duas palavras esse livro no qual Cervantes, segundo Jean Babelon,

    ENSAIOS DA MO CANHESTRA lOS

    mostrou que no podia ser inimigo das novelas e nem acusado de sati-riz-las quem as sabia compor com tanta graa e amor.

    Sepulcro Humilde e Sem Lpide

    Em 1614, ainda, Cervantes consegue o primeiro lugar num con-curso de poemas realizado em homenagem beatificao de Santa Teresa - bem magra compensao para quem se via pobre e enfermo, quase solitrio, sem famlia e sem amigos. Um pequeno regozijo, talvez: o de saber que coube ao velho inimigo, Lope de Vega, ler o poema pre-miado. Por volta de 1615, quando a primeira parte do Dom Quixote j havia sido traduzida na Frana, vrios fidalgos franceses, em visita a Madri, numa misso oficial, perguntam por Cervantes. Como era ele? Como vivia? E ao sab-lo pobre, exclamam espantados: "- Pois a Espanha no fez rico esse homem? No o tomaram pensionista do Estado?"

    Nesse ano de 1615 aparece, afinal, a segunda parte do Dom Quixote. O Cavaleiro da Triste Figura acabava de cumprir inteira-mente sua misso e Cervantes tambm a cumprira, assistindo-o at a morte. O heri morre quando j no v possibilidades de novas aven-turas; o criador sente que s lhe resta morrer quando j se "realizara" plenamente na criatura.

    Toma ele agora o hbito da Ordem Terceira de So Francisco: voto de pobreza e de humildade. Decerto, toda a Espanha se delicia nessa ocasio com a segunda parte do Dom Quixote, mas quem se preocupa com a sorte de um contador de histrias? A 17 de abril, desi-ludido dos homens e bem com Deus, Cervantes recebe a extrema-uno. Dofia Catalina, que se achava separada do marido, vem assistir-lhe os ltimos momentos. Em estado pr-agnico, o romancista ainda consegue enderear algumas linhas ao Conde de Lemos, para morrer no dia 23, um sbado. Enterram-no, como irmo-terceiro, as Madres Trinitrias: um sepulcro humilde e sem lpide.

    "Amadis Morreu! ... "

    Os chamados romances de Cavalaria entraram em voga na Espa-nha nos fins do Sculo 13, precisamente quando j estavam em plena decadncia no resto da Europa e a instituio medieval da Cavalaria, que os inspirava, j tinha mais ou menos desaparecido. Foi uma irrup-o avassaladora na Pennsula Ibrica dessa literatura romanesca, insuflada pela fantasia ferica das canes de gesta do ciclo breto. E/

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    Caballero Cifar, tido como o mais antigo dos romances de Cavalaria espanhis, data dos comeos do Sculo 14, mas com o aparecimento do Amadis de Gaula, atribuido a Ordoftez de Montalvo, em 1508, que o gnero conquista inteiramente o pblico, transformando-se numa obsesso, numa verdadeira mania. Multiplicam-se ento histrias semelhantes, espalhando-se por toda parte e lidas com avidez e entu-siasmo, no atingindo porm nenhuma delas a qualidade literria do Amadis. No fundo, todos os romances de Cavalaria se parecem, obe-decendo aos mesmos poncifs, como se parecem os romances que, s-culos depois, deles descenderam: os do gnero folhetinesco e policial. E se quiserem ter uma idia do que foi a paixo por t~ leitura na poca, lembrem-se da voga do romance-folhetim no sculo passado e do sucesso obtido hoje pelas histrias de detetive.

    Nas novelas de Cavalaria predomina o inverossimil: os heris so falsos, sem contactos humanos, falsas as situaes em que se envolvem e a maneira pela qual as suplantam. Gigantes, bruxas, gnios malficos e benficos, drages, formam a vasta comparsaria dessas narrativas interminveis que inflamavam o crebro dos leitores de ento. O heri sempre um cavalheiro gentil, de bravura incontestvel, generoso e galhardo, saindo pelo mundo em busca de aventuras, a reparar injus-tias e desfazer agravos, animado pelo afeto puro e ardente que lhe inspira uma mulher ideal, a quem ele considera a eleita das eleitas, sintese de todas as virtudes e todos os encantos. As histrias no ter-minam, como as novelas romanescas do Sculo 19, em casamento. O heri da Cavalaria contenta-se em ser compreendido e amado pela rainha dos seus sonhos; isto basta para trazer-lhe a felicidade e com-pensar-lhe os sacrificios a que se submete, com freqncia, nas mais complicadas aventuras.

    Tal gnero, segundo se tem afirmado, no estaria perfeitamente de acordo com as tendncias da alma espanhola, inclinada mais para o pico do que para o romanesco, e o verdadeiro heri da peninsula seria o Cid Campeador e no o Amadis. Tratar-se-ia, assim, de uma lite-ratura de importao que, por circunstncias particulares, se aclima-tara na Espanha. Mas quais seriam, precisamente, essas circunstn-cias: o gosto da aventura, a tentao do desconhecido, a curiosidade de devassar mundos ignorados que vinham levando os navegantes espa-nhis a enfrentar os mares povoados de abismos e de monstros?

    O certo que Amadis e seus inmeros descendentes ali se implan-taram, fanatizando um vasto pblico, no qual no se incluiria apenas a massa dos leitores medianos e incultos; espiritos de elite, como Santa Teresa de vila, tambm pagaram tributo aos romances de Cavalaria,

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    lendo-os com enlevo e at mesmo os escrevendo. E a fantasia dessas narrativas sugestionava de tal forma os leitores que estes chegavam a tomar os heris falsos por criaturas verdadeiras, identificavam-se com eles, sofrendo com os reveses e a desgraa dos mesmos. Um fenmeno de alucinao, freqente, alis, em todas as pocas, nos leitores apai-xonados de romances. E alude-se ao caso de um pai de familia que, ao voltar para casa, encontrou a mulher, os filhos e os criados num estado de indizivel consternao, mal contendo o pranto. Procurando saber do que se tratava, todos lhe deram conhecimento, a um s tempo, do descalabro irreparvel: "Amadis morreu! Amadis morreu! ... " 1

    Semelhante fanatismo no podia deixar de inquietar os espiritos sensatos, os eruditos, os moralistas, os que faziam a literatura tida por verdadeira e sria na poca - e, sobretudo, as autoridades eclesis-ticas, os telogos incumbidos de zelar pela paz das almas e a sanidade dos espiritos. Tais heris deviam parecer-lhes, naturalmente, invenes do diabo para perturbar as imaginaes e lev-las ao pecado. No entanto, fosse porque os prprios ministros da Igreja se interessassem pelas proezas de Amadis e seus pares, fosse porque lhes parecesse justa certa tolerncia com a necessidade de diverso das massas, o certo que s muito tarde, no Concilio de Trento, foram recomendadas s

    (1) Observar a similitude desse episdio com o que Jos de Alencar narra no fragmento autobiogrfico Como e Porque Sou Romancista: "Lia-se at a hora do ch, e tpicos havia to interessantes que eu era obrigado repetio. Compensavam esse excesso as pausas para dar lugar s expanses do auditrio, o qual desfazia-se em recri-minaes contra algum mau personagem ou acompanhava de seus votos e simpatias o heri perseguido.

    "Uma noite, daquelas em que eu estava mais possudo do livro, lia com expresso uma das pginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabea baixa, levavam o leno ao rosto, e poucos momentos depois no puderam conter os soluos que rompiam-lhes o seo.

    "Com a voz afogada pela comoo e a vista empanada pelas lgrimas, eu tambm, cerrando ao peito o livro aberto, disparei em prantos, e respondia com palavras de consolo s lamentaes de minha me e suas amigas.

    "Nesse instante assomava porta um parente nosso, o Rev. Padre Carlos Peixoto de Alencar, j assustado com o choro que ouvira ao entrar. -Vendo-nos a todos naquele estado de aflio, ainda mais perturbou-se:

    "- Que aconteceu? Alguma desgraa?!- perguntou arrebatadamente. "As senhoras, escondendo o rosto no leno para ocultar do Padre Carlos o pranto,

    e evitar os seus remoques, no proferiram palavra. Tomei eu a mim responder: "- Foi o pai de Amanda que morreu!- disse, mostrando-lhe o livro aberto." Como se v, aquele tipo que Thibaudet chamou de "lecteur de roman" em todos

    os tempos foi sempre o mesmo. E na verdade, as novelas de Cavalaria no eram outra coisa seno os romances de capa-e-espada da poca de Cervantes.

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    autoridades eclesisticas vigilncia contra a propagao dessas novelas. Mas, ento, j muitas vozes, como a dos humanistas Juan V alds e Luis de Vives, as tinham condenado pelas mentiras, as tolices e os absurdos que divulgavam.

    quando aparece, em 1605, a primeira parte do Dom Quixote. E presenciamos esta coisa verdadeiramente estranha, esta coisa inespe-rada e desconcertante: as proezas de um legtimo heri de Cavalaria, em lugar de emocionar, de comover, de fazer chorar, como no caso dos que lamentavam a desgraa de Amadis - fazem rir, rir desabala-damente, saudavelmente. Eis a prodigiosa operao realizada por Cer-vantes no gnero: deslocou-o do plano fantstico para o real; desen-cantou os heris imaginrios, transformando-os em seres humanos, de carne e osso. E o que comovia, quando apelava para a ingenuidade do leitor, despertava o riso agora ao falar-lhe inteligncia.

    Ponto de Partida

    Stira? Procurara Cervantes desferir um golpe de morte contra os romances de Cavalaria? Esta verso, aceita por muitos e corrente du-rante longo tempo, tudo nos mostra hoje, no presente estado dos estudos cervantinos, no ser bem exata. Dom Miguel amava, na essn-cia, os romances de Cavalaria, ou melhor, o substrato romanesco dessas obras; mas sendo um esprito critico, no podia aceit-las, tal como eram concebidas e realizadas. Dai o seu propsito de modificar, trans-formar e no destruir o gnero, cujo fundo o encantava, incorporando-lhe um elemento preponderante at ento desprezado pelos autores: a realidade. Parece-nos justa at certo ponto a concluso de Josu Mon-telo, em recente ensaio sobre Cervantes e os Moinhos de Vento, quando considera o Dom Quixote uma stira ao leitor crdulo. Sim, Dom Miguel procurou antes zombar do leitor que acreditava piamente nas faanhas estapafrdias dos heris de Cavalaria do que ridicularizar estes ltimos, ou melhor, o gnero. Basta observarmos o seguinte: sendo cmico, Dom Quixote no chega um s momento a ser propria-mente ridculo. Julgamos que isto deixa transparecer, muito bem, a verdadeira inteno de Cervantes.

    Decerto, a obra , pelo feitio, pelo desenvolvimento, pela cate-goria dos tipos e a naturez~ das situaes, um romance de Cavalaria. Cervantes teve o cuidado de seguir mesmo o modelo tpico do Amadis de Gaula. Quem conhece este ltimo, ver a todo momento qual a razo de muitos gestos do Quixote, ou da ocorrncia de determinados episdios: era porque Amadis fazia assim e porque no referido romance

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    se encontram casos semelhantes. No entanto, a mudana de perspec-tiva completa; os ingredientes especificas do gnero ganharam uma expresso nova. Sente-se, tambm, alguma semelhana com outro ramo de fico que comeava a ganhar terreno na Espanha, na poca, e foi, igualmente, cultivado por Cervantes nas Novelas Exemplares, como j vimos: o picaresco. No Dom Quixote aparecem muitos picaros e presume-se at no tivesse o autor, no comeo, maior objetivo do que o de escrever uma dessas "novelas exemplares". As aproximaes esto longe, porm, de criar uma identidade; Cervantes aproveitou-se so-mente de elementos picarescos, para vitalizar a obra no sentido do hu-mano e do real. So influncias semelhantes a outras que podemos ai assinalar; pelo feitio, o Dom Quixote um romance de Cavalaria. ~ e no - acrescentaremos - porque o autor superou genialmente todas as possibilidades do gnero, para dentro de novas dimenses realizar coisa inteiramente indita: aquilo que Heine chamou o ponto de par-tida do romance moderno. F~cilmente constataremos isso no simples cotejo de uma pgina do Dom Quixote com tudo quanto se fez de melhor em matria romanesca at os comeos do Sculo 17. Pela tc-nica da narrativa, a construo, a fora dos caracteres, o movimento, a superioridade da obra de Cervantes imensa. Basta dizer que ningum l mais hoje, a no ser por curiosidade erudita, as novelas de Cavalaria e as pastorais, ao passo que o Dom Quixote se toma cada vez mais atual, lido avidamente e reinterpretado por sucessivas geraes. Cervantes teve, pode-se dizer, a intuio do que seria futuramente o gnero que s no Sculo 19 adquiriu foros de "nobreza", para revestir-se em nossos dias de uma importncia extraordinrili. Substituiu ele, por exemplo, a narrativa linear, mais prpria do conto, pela narrativa em vrias di-menses que , pode-se dizer, especifica do romance. O que hoje cha-mamos de roman -fleuve, j existe no Dom Quixote, cuja ao se desen-volve numa espcie de desenrolamento fluvial.

    Retrato da Espanha

    Mas a maior conquista do "maneta de Lepanto" foi certamente a impresso de vida, quer nos personagens quer no ambiente, que o ficcionismo at ento no lograra dar. As novelas de Cavalaria, como as pastorais, decorriam no plano de uma geografia imaginria e ferica. No Dom Quixote, pela primeira vez, o leitor vai encontrar um pais em sua realidade geogrfica, social e psicolgica. a Espanha dos fins do Sculo 16, perfeitamente reconhecivel em tudo: na paisagem, na arqui-

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    tetura, nos tipos, nos trajes, nas instituies, nas menores particula-ridades da vida quotidiana. Se o fidalgo manchego, sob o signo do ideal que o arrasta, transfigura certos aspectos dos lugares por onde, de pas-sagem, se envolve em peripcias inesquecveis, isso no impede o roman-cista de caracterizar muito bem tais stios, a ponto de se poder refazer, em nossos dias, o itinerrio de Dom Quixote. Os personagens desem-penham um papel orgnico no ambiente em que evoluem. Muitas das atitudes, dos gestos, das resolues e, principalmente, dos equvocos do Quixote so condicionados pela realidade ambiente da Espanha de ento. Por que facilmente sua imaginao se exalta e confunde ele os moinhos de vento, at hoje freqentes naquelas paragens da Mancha, com gigantes terrficos? Porque eram, ento, uma novidade na Es-panha, tendo sido ali introduzidos em 1575. Por que desce Dom Qui-xote na cova de Montesinos? Porque essa cova existe, de fato, no local onde a situa Cervantes, e at hoje qualquer pessoa pode repetir a proeza do heri manchego. A singularidade de to estranha escavao no podia deixar de tentar o Quixote, como o aceno de uma nova aventura. Assim, muitos outros procedimentos dos personagens decor-rem do meio que os circunda, enquanto vrios episdios da vida espa-nhola nesse fim de sculo neles se refletem. Tambm os tipos no so inventados; Cervantes conheceu-os, toda a humanidade que ele ps no livro foi a humanidade com que cruzou de aldeia em aldeia, nas an-danas fatigantes de cobrador de imposto. Vrias verses existem sobre os modelos de Alonso Quijano, de Sancho Pana, dos duques que aco-lhem o Cavaleiro da Triste Figura e o fazem, juntamente com o escu-deiro, alvo de toda espcie de burlas. E se o Quixote no foi, na reali-dade, o fidalgo de Dom Rodrigo Pacheco, "obscuro e luntico", cujo retrato se encontra na igreja de Argamasilha de Alba, com a seguinte dedicatria: Por haberle librado de una gran frialdad que se le cuaj6 dentro dei cerebro; se no foi, muito menos, certo fidalgo de Esquvias, Alonso Gutirrez de Quijada, parente de Cervantes por afinidade, como quer o erudito Rodriguez Marin - o certo que ele se explica, historicamente, por um tipo comum nesse fim de sculo em que j se prenunciava a decadncia da Espanha: o do fidalgo pobre a sonhar com aventuras e conquistas na sua aldeia natal. O ciclo dos desco-brimentos e a formao do imprio colonial espanhol permitira o enri-quecimento, da noite para o dia, de uma infinidade de emigrantes, muitos dos 'quais sem nenhum ttulo de nobreza, enquanto na me-ptria, onde a crise comeava a esboar-se, iam ficando, reduzidos a condies cada vez mais precrias, fidalgos para os quais o sonho constitua a nica compensao. Dom Quixote seria um desses nobres

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    desfavorecidos a encontrar um derivativo precioso na leitura dos ro-mances.

    Mas no se limita Cervantes a retratar a Espanha por fora; penetra-lhe no fundo da alma, e toda a psicologia do povo pode ser observada, nas mnimas particularidades, nesse livro genial. Quem viaja, ainda hoje, pela Pennsula, surpreende, a todo momento, nas ruas, nos bares, nos hotis, no carregador que lhe vem apanhar as malas na estao, reaes que o levam a pensar logo em tipos e episdios do Dom Quixote. Na continuidade histrica dos seus caracteres nacio-nais, sem alteraes sensveis no decorrer de trs sculos, o povo espa-nhol prossegue vivendo a obra de Cervantes. Legou este, assim, aos romancistas futuros, entre muitas outras lies, esta, de uma impor-tncia extraordinria: a fixao do universal, atravs do nacional, e, mais particularmente, do regional. As ligaes ntimas com o solo, o meio, a raa no constituem limitaes para uma criao romanesca; antes, ser mesmo por a que o criador poder atingir mais plenamente a humanidade. O Dom Quixote se integrou no mundo, na medida em que se conservou genuinamente espanhol.

    Inmeras pesquisas tm sido feitas sobre as fontes do livro de Cervantes, e no raro, em nossos dias, surgirem estudiosos a des-cobrir aqui e ali novas pistas.

    De maneira geral, podemos dizer que a principal fonte da obra a prpria experincia do autor, de uma riqueza profunda. Cervantes tirou o Quixote de si mesmo; os temperamentos de ambos possuem a mais estreita afinidade: eterno idealista a confundir moinhos de vento com gigantes, a correr aventuras, numa existncia nmade e cheia de reveses, atribulada e sem descanso, foi tambm a de Dom Miguel.

    Mas esse homem que passou, por muito tempo, perante a poste-ridade, como um "engenho leigo", e cuja cultura est hoje compro-vada, evidencia no Dom Quixote variadssimas influncias, quer dos antigos, quer dos modernos. No faltou quem descobrisse nos episdios do referido romance certo paralelismo com passagens da Eneida, de Virglio; Thomas Mann vai buscar origens cervantinas nO Asno de Ouro, de Apuleio e em novelas da antigidade clssica; Vicente de los Rios chega a entrever uma verdadeira imitao da Ilada. As influn-cias da Renascena italiana, sobretudo da novelstica, so bem mar-cantes. Ramn Menndez Pidal assinala num conto de Sacchetti o tipo de um velho tambm dominado pela mania da cavalaria e cujas proezas apresentam muitos pontos de semelhana com as do Quixote. Quanto s diversas burlas de que so alvo o engenhoso fidalgo e o escudeiro no passam de uma tendncia muito comum na vida social italiana renas-

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    centista, e de que chegou a ocupar-se demoradamente Castiglione, no livro II Cortegiano. Da literatura espanhola tambm se tomam visiveis, entre outros, traos do Romancero, havendo sobejos motivos para se afirmar que foi num esquecido Entrems de los Romances que Cer-vantes encontrou a idia principal do livro. E, acima de tudo, convm no esquecer, o Dom Quixote bafejado pela atmosfera renascentista e pelo humanismo de Erasmo. Da acomodao destas i11.fluncias no espirito da Espanha catlica provm justamente o barroquismo do ro-mance, caracterizado por alguns dos mais modernos tratadistas.

    O Cavaleiro e o Escudeiro

    Que procurou exprimir Cervantes no Dom Quixote? Possui o livro um sentido oculto? Ser uma construo alegrica de que o autor lanou mo para dizer certas coisas que no lhe convinha enunciar de outra maneira? A fantasia dos intrpretes tem chegado a extremos ina-ceitveis. Houve quem descobrisse uma stira a Filipe II e quem encon-trasse um ataque habilmente disfarado Igreja. Para outros, o Qui-xote seria a Poesia e Sancho a Prosa, residindo no conflito entre estas duas formas de expresso do espirito humano o sentido do romance. E por ai afora.

    Mas a idia principal para a posteridade, na personificao da qual o Cavaleiro da Triste Figura e o escudeiro se desligaram do livro, foi, como se sabe, a seguinte: a oposio entre o Sonho e a Realidade; o Espirito e a Matria; o Ideal e a estreiteza do comodismo burgus. Ora, esta concepo antittica dos dois personagens, que se consagrou na sabedoria das naes, um tanto simplista. Ser reduzir Quixote e Sancho a tipos de uma s pea, como mais tarde se apresentaria a generalidade dos heris romnticos na formosa antitese do bom e do mau, do invejoso e do desprendido, do inocente e do pervertido, etc. E o convencionalismo de um personagem, o que o distancia da humani-dade resulta, sobretudo, dessa planificao: o bom, conservando-se sempre bom, numa nica direo; o mau, igualmente mau. No mbito da natureza humana, as coisas, como se sabe, no se passam assim: o homem feito de elementos vrios e desencontrados; em toda alma em que palpita sonho, h sempre lugar para um pouco de materialidade, e mesmo no individuo mais estpido nem tudo matria e solicitao fisica. Cervantes compreendeu isso, concebendo o Quixote e o Sancho como criaturas essencialmente humanas e no como padres idealistas. Procurou estabelecer menos uma oposio entre ambos do que um acordo. O desenrolar do romance se processa no sentido de um grada-

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    tivo entendimento entre o fidalgo e o escudeiro, e a interpenetrao de influncias resultantes do convivio dirio demonstra que nem o sonho do Quixote o envolvia numa aura opaca e impermevel, nem as limi-taes do Sancho o impediam de alar-se, por vezes, aos pramos do sonho. No que se refere ao escudeiro, ser mesmo um exagero tom-lo como um ser estpido e boal, supondo-se que Cervantes pretendera faz-lo o prottipo da materialidade. Sancho , principalmente, o bom-senso e no a estupidez. Seu propsito constante, o de corrigir as loucuras e os desvarios do amo, trazendo-o das nuvens para a terra firme e no precisamente da beleza para a fealdade. Pois o escudeiro, no fundo, tambm se mostra sensivel s coisas belas, revelando, desde cedo, uma secreta simpatia pelo sonho, pronta a desenvolver-se ao contacto do Quixote. A admirao que logo lhe desperta o amo, atravs de todos os disparates, j constitui o indicio de um espirito nada rude ou tacanho. O que os dois tipos melhor nos sugerem a sintese de tendncias dispares da natureza humana. O Quixote e o Sancho mais propriamente se completam do que se repelem. Precisamos da qui-mera, mas no podemos viver s do sonho, porque estamos sujeitos s injunes terrenas; no auge da exaltao, ouvimos o apelo do Sancho, a chamar-nos para a comodidade de algumas jeiras de terra, onde, em santa paz, possamos cultivar, como Candide, o nosso jardim.

    Para figurar esse jogo de tendncias, Cervantes tinha, natural-mente, que exagerar. O sonho em Dom Quixote se transforma em lou-cura - uma loucura que o afeta, entretanto, apenas sob determinado aspecto: o da Cavalaria Andante. Visto por esse prisma, o mundo lhe parece inteiramente diverso do que , na realidade. Saindo, porm, dai, o fidalgo manchego se mostra um espirito perfeitamente lcido. Culto, educado, fino, inteligente, Dom Quixote um homem encan-tador, de extrema delicadeza, cordialissimo. Entender-se- com todo o mundo contanto que no lhe oponham razes nem obstculos naquilo que o empolga. S se mostra intransigente e absurdo no seu ideal, colocado no plano da loucura, e por ai que entra rudemente em choque com a realidade ambiente. Ei-lo pelas estradas da Mancha a reparar injustias e a desfazer agravos. Mas acontece que suas inter-venes so sempre desastrosas, e at os individuos a quem beneficia se revoltam contra ele, como no caso dos gals. Por qu? Porque o mundo no feito medida do nosso ideal. Se nele h muita coisa errada, se est mesmo quase tudo errado, esses erros se articulam de tal forma numa ordem aparente, que pretender corrigi-los, ignorando a entrosa-gem que os rege, provocar a desordem e as mais perigosas reaes. Tal o que acontece com Dom Quixote. Onde ele intervm ao impeto do

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    ideal obcecante, vai tudo de mal a pior e uma confuso dos diabos de que o pobre fidalgo sai sempre cheio de arranhes e ferimentos, com os ossos moidos de pancadas. Nem por isso se lhe abate o nimo. Causa-nos estranheza a resistncia prodigiosa do Quixote s pancadarias de que vitima; mas a grande fora interior do Ideal lhe minora as dores e lhe faz cicatrizar depressa as feridas. Os reveses se sucedem durante muito tempo, sem que o cavaleiro revele qualquer trao de desfaleci-mento. Para tudo encontra explicao e a tudo justifica na perspectiva do sonho. De nada lhe vale a evidncia, nem os argumentos mais convincentes. A evidncia dos outros no a dele. E aqui, como bem acentua Paul Hazard, Dom Quixote se mostra uma perfeita encarna-o do Idealismo, tal como o compreendia Plato e cuja voga se fez sentir durante a Renascena. O mundo do fidalgo manchego se resume em "Idias". Pouco importa que lhe mostrem a realidade aparente, o aspecto objetivo das coisas: ele s as v subjetivamente, pelas idias que delas tem ou que delas formou. Fala assim uma linguagem incom-preendida pelos que o rodeiam, circunstncia que no plano histricose justifica pelo fato do personagem pertencer a uma poca de transio, em que se dava verdadeira transmutao de valores. Era o heroismo medieval, a belicosidade das justas e dos torneios, o panache da Cava-laria que ele trazia para um mundo em que comeava a formar-se a burguesia, com seu esprito prtico e cmodo.

    "Homem de Pouca F!"

    Escudado no sonho, Dom Quixote se mostra de uma temeridade sem-par. No h perigo capaz de intimid-lo, nem mesmo a lev-lo a tomar qualquer espcie de precauo. Sua f em si mesmo de natu-reza a remover montanhas. No ser possvel v-lo sem uma aurola, em certos momentos, em que, depois de invocar o nome de Dulcinia del Toboso, investe gloriosamente contra gigantes e trasgos, seguro da vitria, embora saia quase sempre derrotado. E h uma passagem do livro que nos parece a culminncia da carreira herica do fidalgo mao-chego. quando ele, depois de vencer o Cavaleiro dos Espelhos (dis-farce do bacharel Sanso Carrasco), se dispe a enfrentar, no mais perigos imaginrios, e sim lees verdadeiros, num rasgo de coragem sobre-humana realmente comovedor. A proeza ultrapassava todos os limites e o pobre Sancho fica a duvidar de se a loucura do amo suplan-taria semelhante prova. De lgrimas nos olhos, pede-lhe para desistir da idia, e at o leitor se inquieta, receando pela sorte do personagem que o vem divertindo atravs de pginas to deliciosas. Mas Dom

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    Quixote se avulta e domina no pinculo do sonho. Leezinhos a mim? J algum observou que a vitria sobre o Cavaleiro dos Espelhos lhe aumentara a confiana em si mesmo. Leezinhos a mim? Como todos, ao lado, no escondam o terror, ele tem para um deles palavras iguais s que Cristo proferiu, por mais de uma vez:"- Homem de pouca f!" impossvel no sentir a nossa inferioridade diante do Dom Quixote nesta altura. O seu brado se estende ao leitor, a quantos tm ou tiveram medo algum dia. Abre-se a jaula, e com espanto dos que haviam fugido, lamentando a sorte do fidalgo, o leo se recusa a sair.

    Queda na Realidade

    Este episdio poder ser considerado o ponto mais alto da exal-tao herica de Dom Quixote. Daqui em diante ela comea a declinar. Por maior que seja a fora do Sonho e do Ideal, estes acabam por esgotar-se, por consumir-se, quando no encontram na vida real ne-nhum apoio. Mas, medida que o fidalgo, ao cabo de tantos tropeos, tantos reveses, nos quais ele insiste em ver apenas vitrias, passa a sentir as solicitaes materiais do repouso e do senso prtico, o escu-deiro, contagiado pela febre do amo, entra tambm a delirar. No se esquece ele da Ilha cujo governo Dom Quixote lhe prometera, e tres-varia com ela, como este com Dulcinia. Cria o acaso circunstncias capazes de dar a Sancho a iluso perfeita do ambicionado poder. Rece-bidos no castelo dos duques, onde permanecem algum tempo, servindo de palhaos para os hospedeiros, armam estes, entre outras tantas farsas, a da investidura de Sancho no governo da Ilha Barataria. So pginas das mais sutis e profundas do romance, na qual vemos Dom Quixote formular, com admirvel clarividncia, um perfeito cdigo politico nas recomendaes que faz ao escudeiro. Delirando como o amo, considerando a Ilha uma realidade, Sancho mostra-se, entre-tanto, o tipo do governante exemplar: honesto, justiceiro, equnime. Pela necessidade de acabar com a burla, os duques determinam a simulao de uma revolta, e eis Sancho surpreendido em meio da noite pelos rebeldes. Tomando conhecimento da situao, no hesita ele em renunciar: reconhece que no nascera para governador e sente-se feliz em livrar-se da maada e retomar antiga liberdade. S fizera a justia e o bem, cumprira estritamente o dever; da a recompensa que encon-trara: o povo em armas insurgia-se contra ele.

    Mas podia dizer de cabea erguida: pobre entrara para o governo e pobre saa. Qual o politico que no ser tentado a um exame de

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    conscincia e a algumas reflexes amargas aps a leitura deste epis-dio?

    Os ltimos passos de Dom Quixote pelas estradas da Espanha tm qualquer coisa das derradeiras peregrinaes de Cristo pelas pla-nicies da Judia. um espirito a arder, a esvair-se no ideal, com o pressentimento secreto do fim prximo, mas resolvido a no transigir, a no fugir jamais ao destino a que se imps. Comea, talvez, a deli-near-se no seu intimo a conscincia de uma certeza desalentadora de que a f nem sempre basta. E quando ele caminha para o segundo encontro com o bacharel Sanso Carrasco, agora sob o disfarce do Cavaleiro da Branca Lua, j leva o moral abatido, no o mesmo homem do primeiro duelo, em que o vencera.

    Derrotado, Dom Quixote sente-se no dever irremovivel de cum-prir a palavra empenhada ao adversrio, renunciando para sempre a brandir a lana. essa uma passagem essencialmente dramtica, e no h quem no se comova com a dbcle do Cavaleiro da Triste Figura. Procurando ainda de qualquer forma ~scorar-se no sonho, Dom Qui-xote imagina, como uma precria compensao, a possibilidade de reviver a existncia buclica dos pastores da Arcdia e convoca Sancho para essa nova aventura de natureza pacifica, sem armas e sem lutas. Era ainda um esforo para sublimar a renncia, a dura realidade da derrota, num ideal romanesco. Mas, debalde formula ele o projeto. De regresso ao lugarejo natal - esse regresso que se reveste da mais profunda tristeza-, Dom Quixote adoece gravemente. Nem poderia ser outro o desfecho de um revs to aniquilante. Na doena recupera o juizo, e com isso retorna realidade: reconhece no ser mais Dom Qui-xote e sim Alonso Quijano, o Bom; toma conscincia de toda a vida prosaica que o rodeia e conforma-se com ela. Conforma-se paTa morrer num ltimo gesto de defesa contra um mundo demasiado pequeno, em cuja estreiteza se precipitara.

    E vem-nos a idia, a quase certeza, de que, aps a morte do amo, Sancho, definitivamente contaminado pela loucura deste ltimo, no poder mais acomodar-se no ambiente rotineiro da aldeia; no tardar ele a abandonar a tranqilidade, a segurana, o conchego calentoso de Teresa Pana e retornar ao lombo do asno paciente, saindo de novo pelas estradas da Mancha, alucinado, a reconduzir, num pacto de fide-lidade, o facho que Dom Quixote, vencido, deixou cair por terra, na corrida para: as estrelas.

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    Inglaterra e Frana

    Publicada em 1605 a primeira parte do Dom Quixote, no tar-dariam os dois personagens principais a destacar-se do livro para comear a viver com vida prpria, incorporando-se ao folclore univer-sal. bem expressivo o fato de, no ano seguinte, numa festa no Peru, separado do Velho Mundo por uma distncia que as dificuldades de comunicao tornavam bem maior do que hoje, aparecerem as figuras de Dom Quixote com o seu escudeiro.

    As possiveis afinidades do humor ingls com o clima da obra de Cervantes teriam concorrido para que a primeira traduo do famoso romance aparecesse na Inglaterra, em 1611, assinada por Thomas Shelton. E mais ou menos na mesma poca, numa comdia intitulada The Knight ofthe Burning Pestle, Beaumont e Fletcher denunciavam evidente influncia do Dom Quixote.

    Mas na segunda metade do Sculo 17 o interesse pela obra declina tanto na Inglaterra como na Frana e na Espanha. Cria-se, ento, a verso errnea de haver ela contribuido para a decadncia da Espanha, de ter, pelo ridiculo, vibrado um golpe de morte na bravura que escrevera a epopia dos conquistadores. O nmero das edies declinava e o livro fica mais ou menos esquecido.

    No Sculo 18, porm, assistimos a um magnifico renascimento do Dom Quixote. Os ingleses Smollett, Fielding e Sterne, adiantando-se na evoluo do gnero romanesco, procuram inspirar-se na obra de Cervantes. Depois de uma adaptao teatral, que no encontrou ainda um ambiente de compreenso por parte do pblico, Fielding lana, com xito, A Histria das Aventuras de Joseph Andrews e de Seu Amigo Abraham Adams (1742), no qual confessa ter feito uma imitao de Cervantes. Richardson tornara-se notvel pelos seus romances em que exaltava a virtude. Em Pamela, mostrava ele uma criatura resistindo vitoriosamente a todas as insinuaes do pecado que a assediavam. Fielding, tomando essa heroina como falsa e convencional, ope-lhe Joseph Andrews como uma pardia semelhante que Cervantes opu-sera aos heris das novelas de cavalaria.

    Tambm fortemente impregnado dos processos e da atmosfera do Dom Quixote o outro romance de Fielding, j traduzido para o portugus, Tom Jones (1749), em que toda a paisagem social da Ingla-terra se vai desenrolando aos olhos do leitor, atravs das aventuras do protagonista, como a Espanha do Sculo 16 na obra de Cervantes. O objetivo de Fielding foi sempre o mesmo do deste ltimo: reconduzir o romance do idealismo facticio para a realidade.

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    Smollett, que publicou uma traduo inglesa do Dom Quixote, e no prefcio de Roderick Random, doutrinando sobre o romance, enca-receu vivamente a contribuio de Cervantes para o aperfeioamento do gnero, revelou, de maneira bem sensvel, a influncia do mesmo em Aventuras de Sir Launcelot Greaves. Reminiscncias acentuadas dos heris cervantinos ainda vamos encontrar no Tristram Shandy (1759), de Steme.

    No perodo romntico, Byron insistiu na tese de ver no Dom Quixote um golpe mortal em tudo quanto a Espanha tinha de nobre e belo. Ficaram famosos os versos do canto XII do Dom Juan, em que o poeta diz que, de todos os romances aquele o mais triste, e tanto mais triste quanto nos faz sorrir. Para concluir, pergunta se se trata de uma brincadeira triste, um enigma, um sonho de glria. E Scrates -diz ele - no seria o Quixote da sabedoria?

    O fidalgo e o escudeiro reaparecem no admirvel Pickwick Pa-pers, de Charles Dickens. Mster Pickwick, esse homem de rosto co-rado, tendo qualquer coisa de uma criana grande, verdadeiramente o tipo do Quixote ingls, sem possuir, no entanto, a amplitude humana do heri de Cervantes. Com seu criado Sam Weller, uma dupla simp-tica e saudvel, l vai ele pelas hospedarias da Inglaterra vitoriana, numa srie de aventuras pitorescas e inesquecveis. Dickens teria lido o Dom Quixote, pela primeira vez, aos nove anos, datando da a admi-rao pelo livro que iria influenci-lo. Muitos outros tipos do escritor ingls, como o Mster Dick e Micawber do David Copperfield so de natureza cervantina, e deles se depreende a concluso de que mais vale, muitas vezes, o delrio dos lunticos do que a pretensa sabedoria dos burgueses. Na novelstica inglesa dos dias atuais podemos entrever descendncias quixotescas no delicioso romance picaresco de John Priestley, The Good Companions.

    Na Frana, Csar Oudin, depois de publicar uma traduo da novela O Curioso Impertinente, includa, como se sabe, no Dom Qui-xote, traduziu todo o livro, editado em 1614. Nesses dois pases, como na Alemanha e na Itlia, onde se fizeram outras tradues em 1621 e 1622, a obra conquistou logo milhares de leitores apaixonados. Uma aceitao to grande no podia deixar de determinar logo, a par das influncias, verdadeiras imitaes. nesta ltima categoria que deve-mos colocar, por exemplo, na Frana, Le Berger Extravagant, de Charles Sorel (1627), eLes Folies Romanesques ou Le Quichotte Mo-derne, de Marivaux. No primeiro romance, Sorel procurou fazer com a novela pastoral, e particularmente com a Astre, de Honor d'Urf, o que Cervantes havia feito com o romance de Cavalaria: uma pardia.

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    Como j vimos, a pastoral conheceu tambm uma grande voga nos fins do Sculo 15 e comeo do 16, exercendo os seus heris sobre os leitores uma sugesto semelhante dos heris da Cavalaria.

    No prprio Dom Quixote temos uma comprovao disso, quando vemos o fidalgo vencido formular o projeto de se tomar pastor, e, juntamente com Sancho Pana, reviver o ambiente factcio da Arcdia. Pois foi essa nova mania que Sorel, a exemplo de Cervantes, carica-turou no Le Berger Extravagant, figurando um indivduo que, ado-tando o nome potico de Lsio, vai reproduzir a existncia sentimental e buclica dos heris da Astre, num recanto campestre, nos arredores de Saint-Cloud, em Paris.

    Coisa mais ou menos no mesmo gnero, estendendo-se, porm, a pardia a outros setores, o Le Quichotte Moderne, de Marivaux.

    Lembraremos ainda duas teatralizaes da obra de Cervantes, feitas por Guyon Gurin de Bouscal, sendo uma delas uma comdia com o ttulo: Le Gouvernement de Sancho Pansa (1642). Tambm a troupe de Molire representa em 1660 uma adaptao cnica do Dom Quixote, na qual o papel de Cavaleiro da Triste Figura encarnado pelo grande escritor-ator. Mas, da impresso que teria causado o Dom Quixote em Molire, parece constituir um suficiente testemunho a pea Le Misanthrope, em que o tipo de Alceste surge como uma transplan-tao do heri cervantino na corte de Lus XIV.

    No precisarei insistir aqui no "quixotismo" desse tipo, um dos mais clebres da galeria molieresca, a sua misantropia resultante de um amor excessivo verdade e do desejo insistente de corrigir os erros humanos. No propsito de ser sincero e justo, no transigir jamais com a mentira, Alceste - que encara a sua amada Celimne mais ou menos como uma nova Dulcinia - acaba por sofrer toda sorte de reveses, decidindo-se, afinal, completamente desiludido da humanidade, a fu-gir para o deserto.

    Tambm Le Misanthrope suscitou o problema j suscitado pelo romance de Cervantes: obra cmica ou triste? Personagem ridculo ou comovente? Guardadas, porm, as distncias, a influncia indiscu-tvel.

    O apogeu do Classicismo no era porm de molde a incentivar a voga do Dom Quixote. Ela se incrementar no Sculo 18. Lesage, que traduziu o Dom Quixote de Avellaneda, superestimando a contra-fao deste ltimo, no pde, de qualquer forma, subtrair-se s influn-cias de Cervantes. Embora se encarte no gnero picaresco e o heri prin-cipal descenda diretamente do Lazarilho de Tormes, o Gil Brs de Santilhana possui estreito parentesco com o Dom Quixote.

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    O entusiasmo pelo her6i cervantino no "sculo filos6fico" francs torna-se, alis, extraordinrio. A ele se referiram, por mais de uma vez, Montesquieu, Diderot, Grimm, Helvetius, Holbach, Madame d'Epi-nay, Madame du Deffand, d' Alembert, Voltaire, e so as tradues francesas que concorrem para vulgarizar o Dom Quixote em paises como a Alemanha, onde os livros espanh6is encontravam muito meno-res possibilidades de distribuio do que os franceses.

    Quanto a Diderot, no seu romance Jacques, le Fataliste, Azorin assinala, ao lado da influncia de Sterne, uma outra que lhe parece indiscutivel: a do Dom Quixote. Em que consiste o livro, afinal, seno numa srie de divagaes entre um individuo e o seu criado por cami-nhos algo semelhantes aos que foram percorridos pelo fidalgo man-chego e Sancho Pana?

    Os romnticos franceses tiveram o culto do Dom Quixote. Em Mmoires d'Outre-Tombe, Chateaubriand tira da obra a seguinte con-cluso: de que a felicidade consiste em ignorar o homem a si mesmo e em chegar morte sem haver sentido a vida. Alfred de Vigny, sempre revoltado com a situao do artista na sociedade, incompreendido e desprezado, v no her6i de Cervantes uma vitima do ostracismo a que so votados os grandes homens, quer sejam eles Moiss ou Chatterton. E de Victor Hugo sabe-se que invocou Cervantes em sesses espiritas e pretendia haver conversado com este.

    Lendo o Dom Quixote desde criana - s escondidas, para esca-par ao domnio severo da familia, que no lhe permitia essas leituras ociosas-, citando-o mais tarde no livro De l'Amour, Stendhal tinha em mente, decerto, os her6is e as situaes do grande livro ao conceber La Chartreuse de Parme eLe Rouge et Le Noir. Fabricio dei Dongo um personagem meio quixotesco, e na Chartreuse.,de Parme os aconte-cimentos se precipitam com uma riqueza de movimento que sugere a obra de Cervantes.

    de estranhar-se no houvesse Balzac criado um Dom Quixote francs, ele que possuia tanta fora para faz-lo e se impressionara com o romance, como se conclui de diversas aluses emprestadas a personagens da Comdia Humana. No Pere Goriot, no seu clebre discurso a Eugnio de Rastignac, traando toda uma tica da existn-cia, Vautrin diz: "Eu sou como Dom Quixote, gosto de tomar a defesa do fraco contra o forte".

    Mas a recriao do her6i cervantino quem ia realiz-la era Al-phonse Daudet, no Tartarin de Tarascon, em que o romancista cari-caturou, admiravelmente, o temperamento exuberante, sonhador e mitmano dos provenais. Daudet fundiu, alis, os tipos de Quixote e

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    Sancho num s6, pois Tartarin participa da natureza do primeiro pelo "mesmo ideal her6ico, a mesma loucura do romanesco e do gran-dioso", embora seja fisicamente gordo, pesado, sensual, cheio de apeti-tes burgueses e exigncias domsticas, como o segundo.

    Quanto a Madame Bovary, de Flaubert, j se disse que um Dom Quixote de saias, procurando, no convivio imaginrio dos her6is romnticos, um refgio para a estreiteza do lar provinciano e burgus. Em diversas pginas da Co"espondncia Flaubert se refere ao Qui-xote, sempre com fervor e deslumbramento. E no esqueamos o enlevo de Anatole France por esse livro, que confessa haver lido, pela primeira vez, em criana.

    Mas houve tambm na Frana inimigos do Dom Quixote. Barbey d'Aurevilly, o mesmo que atacou Goethe, considerou-o uma obra de velho, e Lon Bloy, num exemplo notvel de incompreenso, declarou no poder suportar o ridiculo sobre as grandes coisas, tomando Sancho como a personificao do apetite brutal, continuamente, sistematica-mente oposto ao Sonho.

    Alemanha e Rssia

    Na Alemanha, aparecer inicialmente uma traduo do Curioso Impertinente em 1617, e outra dos primeiros captulos do Dom Quixote em 1621. Se ali o romance no far logo uma carreira to rpida quanto na Inglaterra e na Frana, encontrar, porm, no comeo do Sculo 19, no movimento romntico, um clima de viva compreenso. , por exemplo, uma das maiores figuras desse movimento que, anteci-pando os estudos cervantinos dos ltimos cem anos, ver no autor do Dom Quixote o criador do romance moderno. Tambm outros doutri-nadores do Romantismo, com Frederico Schlegel, se ocupar da obra de Cervantes.

    Goethe no podia permanecer insensvel ao Dom Quixote. No Wilhelm Meister, principalmente na segunda parte, os Anos de Via-gem, mostra ter sido por ele influenciado. O objetivo de Goethe nessa obra, que se tomou um dos padres do ficcionismo germnico, foi fazer o romance de uma educao humana; e que outra coisa o livro de Cervantes seno uma "pedagogia em ao", como o classificou Menn-dez y Pelayo? No podemos deixar de assinalar ainda o importante papel da critica alem contempornea na reinterpretao do Dom Quixote, destacando-se, entre outros, os estudos de Karl Vossler e Ludwig Pfandl.

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    A primeira traduo russa do Dom Quixote de 1776. Logo, porm, que o ficcionismo eslavo consolida suas primeiras posies no Sculo 19, vemos Pchkin, vivamente interessado pelo romance de Cervantes, sugerir a intriga de Almas Mortas a Ggol para que este fizesse com a Rssia algo semelhante ao que aquele fizera com a Espa-nha, uma suma romanesca, em que a terra e gente aparecessem como numa "lanterna mgica". Ggol seguiu o conselho, realizando verda-deira obra-prima, embora incompleta e mutilada. O personagem prin-cipal de Almas Mortas, Tchitchikov, no se parece com o fidalgo man-chego, pois, enquanto este, puro e nobre, ia na esteira do Ideal, o outro, tipo do aventureiro sem escrpulos, procura consumar apenas uma habilidosa escroqueria. Mas na atmosfera, ou melhor, no anda-mento, os dois romances se tocam. Tambm Tchitchikov cruza as estra-das da Rssia, topando com indivduos de toda espcie, atravs das quais se retrata a humanidade do pais, como acontece no romance de Cervantes; e alm disso, o talento caricatural de Ggollembra bem de perto o do autor do Dom Quixote.

    Turgueniev, depois de escrever um curioso ensaio, em que esta-belece um paralelo entre as figuras de Hamlet e Dom Quixote, buscou, sem dvida, neste ltimo os traos de Rudin, protagonista do ro-mance do mesmo nome. Inflamado de idias e projetos, revestido sempre das melhores intenes, Rudin dispersa-se em palavras e em sonhos, sem conseguir transformar em ao nenhum dos seus prop-sitos. um personagem dramtico e comovente, embora no escape a um certo ridiculo, o tipo do inibido para a vida prtica, manietado pelos prprios sonhos. Depois de uma srie de fracassos, num gesto de desespero, no esforo supremo de afirmar-se, vai ele morrer nas barri-cadas, em Paris.

    E ningum ignora: foi o Dom Quixote a principal fonte de inspi-rao dO Idiota, de Dostoievski. O romancista teria pressentido a afinidade do heri cervantino com o que podemos chamar de Idealismo cristo do Prlncipe Michkin. Como o Quixote, acarreta ele os maiores descalabros com a pureza das suas intenes. E, depois de triunfar vrias vezes da maldade, do vcio e do crime, acaba tambm perecendo e encontrando na loucura completa a fuga que o cavaleiro manchego encontrou na morte.

    Itlia, Portugal e Espanha

    Na Itlia, s recentemente Ardengo Soffici nos deu uma revives-cncia do Quixote, no romance Lemmonio Borreo, onde um ex-comba-

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    tente da guerra de 1914 retorna ptria, com a idia de pregar a rege-nerao dos costumes, fazendo-se acompanhar de uma espcie de novo Sancho Pana. E o curioso que no apostolado desses dois personagens muita gente pretendeu ver um prenncio do Fascismo.

    Em Portugal, o Quixote se tornou o objeto de muitos estudos e comentrios, inspirando tambm diversos poetas, embora ningum chegasse a recri-lo num romance. J no Sculo 18, Antnio Jos da Silva, o Judeu, apresentou numa adaptao teatral as figuras do escu-deiro e do amo, e como se trata de autor que pertence tambm nossa Literatura, aludiremos com mais vagar a esse trabalho, logo adiante, quando nos referirmos ao Dom Quixote no Brasil.

    Em 1813 foi representada no Teatro Nacional do Salitre, em Lisboa, um Dom Quixote na Cova de Montesinos, "fico dramtica" de Jos Joaquim Leal, que se escondia sob o anonimato de "hum escritor portuguez", segundo nos afirma Fidelino de Figueiredo. A pea gira em torno do famoso episdio da descida do cavaleiro na cova de Montesinos, onde teria presenciado acontecimentos maravilhosos em cerca de uma hora que lhe pareceram trs dias. Como no conhe-cemos obra, limitamo-nos a registrar a opinio de Alberto Xavier que a julga mediocre, achando que o autor no compreendeu o significado psicolgico do episdio.

    Ocuparam-se do Dom Quixote, em livros ou em estudos esparsos, os seguintes escritores portugueses: Latino Coelho, Oliveira Martins, Tefilo Braga, Consiglieri Pedroso, Teixeira de Queirs, Henrique Lopes de Mendona, Henrique de Vilhena e outros. Oliveira Martins desposa a tese de que Cervantes visou mostrar a decadncia da Es-panha- de que a sua prpria existncia constitua uma ilustrao-, acusando "a teimosia louca num heroismo sem significao nem al-cance".

    Entre os poetas que rimaram sobre a figura do Quixote e Sancho, declinaremos em primeiro lugar Nicolau Tolentino. Aproveitou-se ele do tema para satirizar o Marqus de Pombal, caido em desgraa com a morte de Dom Jos I, o mesmo Marqus, a quem antes havia lison-jeado.

    Gonalves Crespo (tambm este pertencendo s Literaturas portu-guesa e brasileira, ao mesmo tempo) descreve-nos a agonia do Quixote, numa composio potica dos Noturnos; Gomes Leal, esse artista originalissimo to cheio de altos e baixos, oscilando entre o Satanismo e o Cristianismo mais puro, imagina um encontro do fidalgo manchego com So Francisco de Assis, em versos impregnados de um doce li-rismo. E lembraremos ainda as estrofes de Afonso Lopes Vieira, em O

  • 124 OBRAS REUNIDAS DE BRITO BROCA

    Poeta Saudade (Coimbra, 1901), achando mais tristeza no Dom Qui-xote "do que no livro bblico de Job".

    Na Espanha, onde, naturalmente, a obra de Cervantes tem sido mais estudada, constituindo a preocupao mxima de alguns escri-tores como Azorln, que a aprecia inteligentemente sob o duplo prisma de artista e erudito, no ser fcil precisar os traos da influncia do Quixote nos romancistas. Existir ela, sem dvida, em Po Baroja, onde encontramos alguns personagens de nuanas cervantinas. Exis-tira em Prez Galds, o Balzac espanhol, infelizmente to pouco conhe-cido no Brasil. Joaqun Casalduero considerava Cervantes o "mestre indiscutvel" de Galds; mas enquanto o primeiro projetou o conflito entre a imaginao e a realidade metafisicamente, o segundo, de acordo com a poca, f-lo sociologicamente. Onde, porm, na compar-saria humana de Galds, uma revivescncia concreta do Quixote? No protagonista do romance Nazarfn, talvez, onde o autor teria pensado tanto na figura de Cristo quanto a do heri cervantino. Natural de uma cidadezinha da Mancha, como o Quixote, o Padre Nazario Nazarln sai tambm pelo mundo a socorrer os aflitos e os miserveis. Nada tem de seu, distribuindo com os outros tudo que possui, e enfrentando a mal-dade com a indiferena dos santos e dos mrtires. Em vez de um escu-deiro, acompanham-no duas. mulheres penetradas do mesmo esprito de renncia que o leva pelas encruzilhadas da Mancha a distribuir misericrdia e amor. Incompreendido, conduzido ao crcere, sofrendo toda espcie de privaes, Nazarln no pode deixar de lembrar tanto Cristo, de que ele tende a ser uma espcie de imitao, quanto o Quixote.

    Brasil

    em Antnio Jos da Silva, o Judeu, vtima da Inquisio, que vamos encontrar, pela primeira vez, a marca do Quixote em nossa lite-ratura. Sua pea, alis denominada "pera jocosa", composta de duas partes e estreada em outubro de 1733 no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, intitula-se Vida de Dom Quixote de la Mancha. Qual o valor dessa obra? Antnio Jos nada tinha de um filsofo ou de um mora-lista, como acontece com Gil Vicente, de quem se aproxima sob muitos aspectos: escrevia apenas para divertir o grande pblico. Nisso residiu o sucesso de suas comdias, que arrancavam contnuas gargalhadas de uma platia essencialmente popular. Do romance de Cervantes, apro-veitou ele apenas o lado cmico, e, inspirando-se neste, fez uma pea verdadeiramente engraada, sem maior valor literrio, mas que at

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    hoje pode ser lida com agrado. Calculamos o riso que havia de des-pertar num pblico de poucas letras, como os freqentadores do Teatro do Bairro Alto, as faccias de Dom Quixote e de Sancho na inventiva burlesca do malogrado Judeu, inclinando-se, freqentemente, para certo tom rabelaisiano.

    Da, saltando mais de um sculo, vamos assinalar em Machado de Assis um lrico entusiasmo pelo heri de Cervantes. numa poesia de cunho byroniano (que nos conste, ainda no reunida em livro), quando o autor de Dom Casmurro, muito jovem, parecia participar do clima satnico predominante nos romnticos do grupo paulistano. Descobrimo-la nas pginas amarelecidas da Marmota Fluminense, de 12 de abril de 1856. Machado tecia um hino de exaltao ao cognac, terminando com estes versos:

    Cognac inspirador de ledos sonhos, Excitante licor de amor ardente, V ma tua garrafa e o Dom Quixote

    passatempo amvel. Procurando investigar quais os livros de cabeceira do romancista

    de Brs Cubas, num inqurito que este no chegou a responder (ver O Momento Literrio), Joo do Rio apurou serem o Hamlet e Prometeu. No entanto, a poesia acima leva-nos a crer que Ma