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Aresta da Prudência Bruno Peron

Bruno Peron - Aresta Da Prudência

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Bruno Peron, Aresta Da Prudência, Julho de 2014

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  • Aresta da Prudncia Bruno Peron

  • ARESTA DA PRUDNCIA

    Bruno Peron

    Brasil Edio do Autor

    1 Edio Julho de 2014

  • PERON LOUREIRO, Bruno. Aresta da prudncia. Brasil,

    Publicao Autnoma, Livro Eletrnico, 1 Edio, Julho de

    2014. Fonte: .

    No necessrio pedir autorizao ao autor desta publicao

    para consulta, gravao em disco, divulgao,

    encaminhamento a outros leitores e reproduo dos captulos

    e trechos contidos nela desde que se atribua devidamente o

    crdito da obra ao autor e fonte.

  • NDICE

    Prefcio............................................................................................................ 1 1. Organizao noticiosa da Amrica Latina........................................... 3 2. Gonzo da educao................................................................................ 6 3. Juventude como sujeito de transformao..........................................9 4. Investimentos em cincia e tecnologia................................................ 12 5. CEALC e a integrao na Amrica...................................................... 15 6. Reflexes sobre qualidade de vida........................................................ 18 7. Bibliotecas, livros e criatividade............................................................ 20 8. Revista ArteSur........................................................................................ 22 9. TEIb e hbitos culturais......................................................................... 24 10. SIDACULT e o cultivo humano.......................................................... 26 11. Mais Cultura, mais expresso................................................................ 29 12. Programa Ibermedia e indstria cinematogrfica.............................. 32 13. Cultura do dinheiro................................................................................. 34 14. Civilizaes Mac-Cola............................................................................ 36 15. Usinas culturais e mediaes................................................................. 38 16. Mercantilizao de propriedade intelectual......................................... 40 17. De Jamaica ao continente americano................................................... 42 18. Acmulo de sedimentos......................................................................... 45 19. Indianismo de Fausto Reinaga.............................................................. 47 20. Conferncia de Bandung e o neo-desconforto.................................. 50 21. Mecanismo do clique.............................................................................. 52 22. Cultura em contas satlite...................................................................... 54 23. Arquiplago dos transportes................................................................. 56 24. Desenvolvimento humanista................................................................. 59 25. Atlas do Desenvolvimento Humano................................................... 61 26. Drama dos haitianos............................................................................... 63 27. Da verdade dos fatos Comisso da Verdade................................... 66 28. Partida de golfe no canavial................................................................... 69 29. O vale-tudo da Vale S.A........................................................................ 71 30. PEC 416: Cultura na berlinda............................................................... 74 31. Pegadas do dinossauro........................................................................... 76 32. PNE 20112020 e o xis da questo..................................................... 78 33. Fundo para a integrao cultural no MERCOSUL........................... 80

  • 34. Indicadores de segurana pblica......................................................... 83 35. Comunidade e formas de estar juntos................................................. 85 36. Poltica do Banco do Sul........................................................................ 87 37. Ourivesaria do carter............................................................................ 89 38. Cinismo imigratrio no Brasil............................................................... 91 39. nibus paulistanos em brasa................................................................ 94 40. Acordo de Residncia e latino-cosmopolitismo................................. 97 41. Cotas universitrias, debates e perguntas............................................ 99 42. Matizes de segregao............................................................................ 102 43. Nativos em territrio estrangeiro......................................................... 104 44. Aliana militar na Amrica do Sul........................................................ 107 45. Renda para um Brasil carinhoso........................................................... 110 46. Venezuela e a Misso MERCOSUL.................................................... 112 47. Concesses e tarifas eltricas................................................................ 114 48. Brasil e frica na cooperao Sul-Sul.................................................. 116 49. Propsito do esclarecimento................................................................. 119 50. Amostra, consagrao e mrito............................................................ 122 51. Zumbi, mrtir dos Palmares.................................................................. 125 52. Territrios da cidadania e da economia-mundo................................. 127 53. Esperanto e hegemonia lingustica....................................................... 130 54. Poltica do acordo ortogrfico.............................................................. 133 55. Nos caminhos de Benjamin Constant................................................. 136 56. Conhecer, integrar e desenvolver......................................................... 138 57. Rodas da produtividade......................................................................... 140 58. Praas dos Esportes e da Cultura......................................................... 142 59. Elementos norteadores.......................................................................... 144 60. Que significa estar informado............................................................... 146

  • Aresta da Prudncia

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    PREFCIO

    resta da prudncia um chamamento mudana. J que fiz crticas custicas nalguns livros anteriores, e por vezes at pessimistas, desta

    vez introduzo uma srie de textos em que acreditei no poder da transformao. Tive precauo para evitar descaminhos na maneira de pensar sobre o Brasil que, noutras ocasies, renderam-me linhas destrutivas e sentimentos desesperanosos.

    Nesta compilao de textos que escrevi de novembro de 2011 a fevereiro de 2013, observo o Brasil como um pas de convergncias culturais, tnicas e polticas. Ao contrrio do que muitos acreditam, nossa modernidade no uma repetio incompleta de civilizaes ultramarinas. Atravs da pardia e de passos originais, o Brasil inventa sua prpria modernidade e desdobra-se num cenrio de expectativas compartilhadas. Porque sempre foi um lugar de transformaes, eu no perderia esta carona no bonde que passa, por maiores que sejam as desavenas entre seus passageiros.

    Tive esta motivao logo que decidi passar mais uma temporada fora do Brasil em planos de estudos. Assim fui Inglaterra, um lugar onde, ao contrrio do Mxico, nunca me senti bem-vindo. Talvez este sentimento, que amide foi de ojeriza frente indiferena, tenha sido um incentivador da brandura do meu olhar em relao ao Brasil como um lugar de convergncias amistosas, calorosas e solidrias. Somo a esta impresso minha disposio de olhar somente as coisas boas da ilha aonde fui parar, em especial as flores na primavera e as rvores que resistem intrepidamente ao inverno rigoroso. A completude antropolgica desta experincia viria quando eu retornasse ao solo brasileiro, onde os abraos so acolhedores e as pessoas se enxergam.

    Portanto, Aresta da prudncia traz um conjunto de textos com contedo construtivo para reflexes sobre o Brasil contemporneo em termos de cultura, educao e integrao. Minha recomendao, como alertei acima, de que seus textos sejam lidos como se o leitor abrisse um convite transformao que se espera do pas. Com um passo a mais, seria possvel ainda situar-se como um ser ativo das mudanas em pauta e no s como espectador passivo. Afinal o Brasil um todo orgnico, que se oxigena com a ponderao e a sensatez daqueles que esto em vias de cidadanizar-se.

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    Alguns textos contribuem explicitamente para esta finalidade que acabo de esclarecer: Juventude como sujeito de transformao, Acmulo de sedimentos, Desenvolvimento humanista e Ourivesaria do carter. Se entendermos o mundo como uma grande escola, toda experincia ser vlida para que nos tornemos hoje seres melhores do que ramos ontem. Assim mudaremos de turma juntamente com outros estudantes que tambm tenham xito nas provas. Seguiremos com pacincia. J que falo da transformao do Brasil num pas melhor, aproveito para insinuar nosso papel neste processo.

    Sem hesitao, entendo que a prudncia um combustvel e um remdio. Ela encoraja e cura. Ela nos enche de nimo e nos alivia as dores da ansiedade. Espero, com os textos de Aresta da prudncia, que o leitor se valorize e confie em sua capacidade de transformar. O sustentculo mais importante desta tarefa j se regala pelas bnos da natureza. Boa leitura.

    Bruno Peron Loureiro

    Londres, 24 de junho de 2014.

  • Aresta da Prudncia

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    1. Organizao noticiosa da Amrica Latina

    ercorre a Amrica Latina um desejo de democratizao da comunicao e da informao que surge da demanda de meios alternativos e da

    insatisfao com a concentrao do poder de comunicar e informar nas antenas de transmisso das empresas privadas. Os meios pblicos e comunitrios tm sido os protagonistas da mudana em curso.

    Em outubro de 2010, um grupo de jornalistas e participantes do 3 Congresso Mundial de Agncias de Notcias em Buenos Aires, Argentina, sugeriu a criao de um organismo que aglutinasse as agncias estatais de notcias da Amrica Latina em torno de interesses comuns. Em junho de 2011, formou-se em Caracas, Venezuela, a Unio Latino-americana de Agncias de Notcias (ULAN).

    Esta organizao noticiosa, como ficou conhecida, compe-se de nove agncias estatais de notcias no continente americano: Prensa Latina (Cuba), Agencia Guatemalteca de Noticias (Guatemala), NOTIMEX (Mxico), ANDES (Equador), Agencia Venezolana de Noticias (Venezuela), Agencia Boliviana de Informacin (ABI), Agncia Brasil (Brasil), Agencia de Informacin Pblica de Paraguay (Paraguai) e Tlam (Argentina).

    A defesa deste organismo internacional faz-se com base no desenvolvimento de uma comunicao plural com o fito de promover a integrao entre os pases da regio. Os discursos de integrao gradualmente assimilam desafios diferentes dos que tinham nos primrdios do panamericanismo ou do latino-americanismo. Reconhece-se mais recentemente o papel da imprensa e da televiso como artifcios abrangentes e eficientes para alcanar fins econmicos e polticos.

    Assim, tudo tem faltado menos um televisor funcionando no lar ou uma janela comunicativa e informativa aos fatos que advm da falcia do jornalismo independente e objetivo. Os meios de comunicao transformam-se em recursos disputados pelo Estado e os setores comerciais para alcanar as maiorias que, de outro modo, so inatingveis.

    A ULAN surge, portanto, com o objetivo de subsidiar a democratizao da comunicao na Amrica Latina e atualizar o discurso de integrao regional. Parte considervel deste trabalho, porm, j se realiza

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    pelos meios privados de comunicao, aos quais se atribui o crdito por fazer chegar a informao a um grande nmero de ouvintes, leitores e espectadores.

    O fator diferencial dos meios pblicos o de democratizar e pluralizar a informao segundo o critrio de divulgao global dos pontos de vista latino-americanos e a luta pela justia social que interessa mais base que cpula. Quero dizer que, de maneira mais especfica, as agncias estatais pretendem fidelizar mais os anseios coletivos dos povos americanos.

    O mote destas agncias e da ULAN a defesa do interesse pblico que se entende aqui como algo pertencente a e controlado por todos atravs da representao mais fiel da viso de nossos povos. Um dos desafios da ULAN o de criar novas formas de encontro e de espaos pblicos pelos meios de comunicao, visto que estes h algum tempo tm substitudo as reunies calorosas em praas pblicas.

    As aes da ULAN coordenam-se basicamente pelo intercmbio de contedos jornalsticos (o stio oficial da ULAN na Internet dispe de atualizaes de notcias de suas agncias), fortalecimento do sistema informativo, organizao de eventos e troca de experincias (a ULAN tem promovido seminrios sobre meios pblicos), e ofertas alternativas porosidade das empresas privadas transnacionais da comunicao.

    Empresas privadas extra-continentais frequentemente nos vendem notcias sobre ns mesmos ou nos oferecem vises deturpadas das realidades latino-americanas. A ULAN pretende aumentar nossa participao nos contedos noticiosos sobre Amrica Latina que circulam globalmente e mudar esteretipos. Um destes a relao inseparvel entre delinquncia e as imagens rotineiras de nossos pases.

    Na tarefa de construo de uma Nova Ordem da Informao e as Comunicaes, agncias de notcias comunitrias, cooperativas e religiosas solicitam o ingresso ULAN. Estas agncias tm esperana de somar-se ao processo de democratizao da comunicao e oferecer alternativas de contedo que sejam mais educativas e menos sensacionalistas.

    Algumas das agncias estatais de notcias da Amrica Latina existem h dcadas, como Prensa Latina (Cuba) e Tlam (Argentina), mas o desejo de mancomunidade e o discurso a favor de sistemas pblicos de comunicao

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    intensificam-se e alentam os sentimentos dos que cremos na tica e na sensatez da comunicao e da informao.

    Se a imprensa no tiver o mnimo de compromisso e responsabilidade no manejo da comunicao e da informao, ela servir para denegrir homens pblicos, eleger presidentes-marionetes, aplicar golpes de Estado, legitimar guerras e encobertar assassinatos de ditadores. Merecemos algo diferente.

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    2. Gonzo da educao

    or que no se d a ateno devida educao infantil? Famlias descuidam seu papel como educadores de crianas e adolescentes e

    incumbem proles insustentveis ao Deus-dar ou ao Estado-prover.

    As crianas e adolescentes desenvolvem-se em sociedades de comunicao e informao, e adquirem destrezas distintas das que se requeriam nas geraes anteriores. Um jovem de dez anos maneja com facilidade a maioria das funes de um aparelho celular recm-lanado, enquanto um adulto de cinquenta engatinha no uso das novas tecnologias.

    A juventude a fase mais delicada e vulnervel de formao do carter. nela que os pais e outros entes envolvidos no processo educativo devem oferecer o melhor de si para a tarefa reprodutiva e evolutiva a que se sujeitaram e pela qual se fizeram responsveis.

    No por acaso sustento medidas radicais de controle de natalidade em pases subdesenvolvidos a fim de que as famlias propiciem s crianas e aos adolescentes todo o carinho e os recursos necessrios para a construo de seres dignos e cientes de seus direitos e deveres.

    As polticas governamentais brasileiras por vezes desprezam a formao da criana como construtora de uma nao forte e exemplar. Em vez de buscar parcerias com gestores de outras polticas pblicas sociais, acabam por tratar a criana to pontualmente como o mdico ocidental extirpa o efeito fsico das doenas e despreza as causas emocionais.

    Logo surgem polticas pblicas de aprovao automtica nas escolas de ensino fundamental, criao de cursos que preparam o jovem para ser mo-de-obra braal e mal remunerada o resto da vida, e formao de laos estranhos da educao com certas iniciativas que tm transformado o prestgio dos estudantes de colgios pblicos em vira-latas atrs de sucatas.

    preciso ser hbil, probo e responsvel para lidar com polticas pblicas educativas voltadas aos jovens. Isto se deve a que se recrudescem os interesses privados sobre a esfera pblica e a tentativa de omitir tambm o idioma portugus atravs do ensino bilngue desde muito cedo e em prol quase sempre do ingls, a lngua mundialmente autorizada.

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    As crianas tm conscincia tardia daquilo que seus educadores lhes inculcam desde idades imaturas, destarte as mudanas de orientao religiosa e as rebeldias serem to frequentes na adolescncia. uma temporalidade da formao que demanda ofertas benficas e variadas para estimular a criatividade, e o acompanhamento dos responsveis.

    No raro que as crianas sugiram ideias e aes diferentes das de seus familiares e passem esporadicamente a educ-los como se houvesse inverso de papis. Tenho acompanhado polticas municipais que visam a educar as crianas para o trnsito muito antes da habilitao a fim de que se gere um efeito multiplicador.

    A considerao das crianas como esperana de um mundo melhor no subtrai a importncia que atribuo s outras faixas etrias, que culminam no herosmo dos idosos em superar as vicissitudes e os desafios da vida. Estes fenecem e levam consigo enciclopdias biogrficas e experincias profundas da existncia, raramente captadas pelas geraes subsequentes e entranhadamente embebidas nas fontes modernas de informao.

    As trilhas do processo educativo so amplas nalguns trechos e sinuosas noutros porque os gestores nem sempre se dispem a acompanhar a conjuntura cultural e os desafios emergentes que tornam o giz um monitor em preto e branco.

    comum escutar que os jovens leem pouco e a falta deste hbito os tem emburrado, porm nunca se leu tanto como na era atual. Esta transpassa-se pelos meios de comunicao e informao, como mensagens de texto em celular, legendas de filmes, bate-papos virtuais, e publicaes de amigos em redes sociais.

    Este diagnstico, porm, poderia situar-se melhor nos tempos atuais desde que se critique o contedo das leituras e como elas contribuem (ou no) para a formao cvica num perodo to vulnervel desta gerao.

    Crianas devem crescer com oportunidades variadas e instrues para fazer a escolha menos passvel de arrependimento. Assim se evita a fatalidade de ter que seguir um ofcio e no outro de seu interesse e se lhes reserva a responsabilidade sobre seus pensamentos e atos.

    H que fazer uma aposta na dignidade das crianas atravs de ateno especial, que ignore laos sanguneos e a presuno de que o problema da

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    educao no Brasil resume-se nos salrios baixos dos professores do sistema pblico de ensino.

    Muitas vezes vivel inverter os papis de quem ensina e quem aprende.

    A finalidade desta inverso o intercmbio de carncias e demandas.

    O gonzo da educao articula as crianas com a sublimao do ser humano.

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    3. Juventude como sujeito de transformao

    trivial dizer que o futuro de nossa Amrica Latina depende de suas crianas e adolescentes. A despeito dos esforos incontidos de quem

    aposta nesta afirmao, o grupo populacional a que me refiro tem sido negligenciado por famlias que desconhecem o papel educador que possuem e por polticas ineficientes e multiplicadoras da cultura do comodismo.

    Crianas e adolescentes tm nascido e crescido na embriaguez de avanos tecnolgicos incessantes, do aumento populacional incontrolvel e da perda de referentes educativos que serviam. Explico cada fenmeno.

    Em idade cada vez mais precoce, os jovens manuseiam funes complexas de aparelhos celulares, notebooks, iPods e tablets com tanta facilidade como a gerao imediatamente anterior andava de patins e skate, jogava pio, pulava amarelinha ou brincava de esconde-esconde na rua. Estaro mais seguros em casa enquanto experimentam uma realidade virtual?

    Na contramo da estabilidade populacional de pases europeus, a Amrica Latina tem pouco a ensinar em termos de controle de natalidade, a menos que a natureza nos oferea algum terremoto, inundao ou outro desastre natural. No o desejo por esta via, contudo.

    O principal destes trs fenmenos e, em certa medida, um dos causadores dos outros dois o que responderia pergunta seguinte com propriedade: quem passou a cumprir papel de educadores? Enquanto se discute se a juventude brasileira deve ou no passar mais tempo na escola, pais e professores influem cada vez menos que atores e anfitries de programas de televiso.

    Parte considervel desta juventude estuda por compulso em lugares pouco motivadores (algumas vezes hostis), e ainda trabalham para pagar suas despesas domsticas. Quando se os interpela sobre a razo de laborar em idade to tenra, comum que respondam que seus pais obrigam-nos a esta condio. E l se vai outro bando pedir dinheiro no semforo ou vender quinquilharias nas ruas.

    Da se deduz que a transio para a delinquncia apenas um passo dos que tentam burlar uma situao imposta pela famlia desde cedo. Logo

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    surgem os preconceitos que criminalizam e marginalizam a juventude que se veste de maneira determinada, rene-se em tal ou qual lugar, fala com grias prprias, e provm de bairros especficos da cidade.

    O que soa bvio para alguns agentes educadores (familiares, professores, lderes religiosos, etc.) nem passa pela cabea de outros, que acabam fazendo novas vtimas de um sistema que nos tira muito e devolve pouco.

    A legislao brasileira ampara-se em Pactos pela Infncia, no Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069, de 1990), e no artigo 227 da Constituio Federal de 1988. Este prev que a famlia, o Estado e a sociedade tm o dever se garantir as condies bsicas para que as crianas e os adolescentes cresam dignamente.

    A lei admirvel, pertinente, inclusiva. Quem a cumpre?

    A juventude no deixou de ser sujeito de transformao neste mundo e nem espero que abdique desta posio seno que a funo dos jovens tem sido associada a figuras de consumo e imaturidade que desmerecem o vigor que sempre os caracterizou. O pior sucede quando a juventude cai no conto que a desqualifica.

    Provoca indignao que muitos cedam s tentaes das drogas e do dinheiro fcil, recebam poucas e ms instrues de seus principais educadores no lar e no bairro, frustrem-se em seus anseios profissionais por falta de estmulos e para cumprir duras exigncias domsticas, e atravessem a juventude com experincias exguas que caracterizam esta fase memorvel.

    H os que buscam a juventude nos interstcios da nostalgia, pois esto seguros de que a viveram na poca em que no havia jogos eletrnicos nem vdeo-conferncia, e em que o sensacionalismo dava seus primeiros passos. Outros envelhecem to rapidamente que mal lhes dar tempo de recordar a infncia que tiveram.

    Ensaiar sobre a juventude na carruagem do sculo XXI implica retom-la como agente de transformao sem medo de reconhecer que a luz que resplandecer no mundo vindouro, iminente e regenerador vir das crianas e adolescentes que desenvolvam sua criatividade e seus talentos.

    Por fim, a grande responsabilidade sobre a prole est nas mos dos progenitores e no do Estado. Este deve catalisar as relaes em sociedade a

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    fim de evitar que a juventude como sujeito de transformao vire sinnimo de delinquncia, marginalidade e imaturidade.

    O pacto educador e formador firma-se no cerne da famlia.

    Aqueles que ensejam a fecundao esto prontos para a tarefa?

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    4. Investimentos em cincia e tecnologia

    Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) informou que a Coreia do Sul investe mais em cincia e tecnologia que todo o

    conjunto da Amrica Latina. Outras fontes de informao notificaram tambm que este Tigre Asitico multiplicou por quarenta a renda per capita em pouco mais de sessenta anos e colhe os resultados de sua pujana econmica.

    Basicamente o governo sul-coreano tem investido parte considervel do oramento que resulta de seu crescimento econmico em setores estratgicos para sua insero na globalizao. A produo industrial em ascenso na Coreia do Sul fomenta as polticas pblicas em educao e incluso digital e vice-versa de tal modo que os profissionais emergentes devolvem estes investimentos ao pas e alam a alavanca da economia.

    Para efeito de comparao, a Coreia do Sul investiu 3,7% de seu Produto Interno Bruto em cincia e tecnologia em 2007, enquanto a mdia latino-americana foi de 0,7%, segundo o BID. O Brasil, dentre os pases da regio, tem sido o maior promotor da cincia com mais de 1,1% do PIB. Somos, assim, espectadores do triunfo das empresas sul-coreanas na Amrica Latina: Hyundai, Kia Motors, LG, Samsung, e quem sabe qual ser a prxima.

    Ainda, a Coreia do Sul aderiu-se ao BID em maro de 2005 e tem participado de vrios projetos de assistncia ao desenvolvimento econmico na Amrica Latina. Ainda, este pas asitico doou US$ 200 milhes ao BID para aplicao em projetos de reduo da pobreza, apoio a pequenos negcios, e transferncia de conhecimento em cincia e tecnologia.

    Os pases latino-americanos participam timidamente do cenrio mundial em pesquisa e desenvolvimento, no que se refere percentagem dos recursos de cada pas e ao nmero de publicaes em revistas cientficas. Algumas de nossas universidades, sobretudo as argentinas, brasileiras, chilenas e mexicanas, destacam-se entre as colocaes como as melhores no mundo e tm conquistado espaos mais notrios.

    Segundo a revista IDB America, a melhoria na qualidade de vida das pessoas e a competitividade na economia global dependem de quanto um pas investe em cincia, tecnologia e inovao. Estes investimentos quase sempre trazem retornos positivos, mas em prazos mdios e longos.

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    Gestores pblicos de orientaes ideolgicas diversas reconhecem a importncia do investimento em capacitao humana, embora alguns s o faam como pr-requisito do desenvolvimento econmico de um pas, ou seja, porque o setor produtivo demanda maior qualificao de seus profissionais para ganhar competitividade no mercado internacional.

    Justifica-se o aumento de recursos destinados a cincia e tecnologia como caminho mais sensato para a melhora da qualidade de vida na Amrica Latina e no mundo. Inventos facilitam a comunicao entre as pessoas, fazem-nas viver melhor, e curam doenas.

    O governo brasileiro finalmente reconheceu que 1,1% do PIB um investimento que no saciaria o desejo nem da sombra do Brasil adamastoriano. O Ministrio da Cincia e Tecnologia lanou o programa Cincia sem Fronteiras, que se props a fomentar, entre 2011 e 2014, a mobilidade internacional de pesquisadores brasileiros, a despertar o senso de inovao, e a qualificar a mo-de-obra de jovens cientistas para que trabalhem no Brasil.

    Espera-se, com esta medida, dirimir parte dos obstculos seguintes pesquisa e ao desenvolvimento em cincia e tecnologia: escassez de recursos e de polticas pblicas estratgicas; articulao deficiente entre pesquisa e setor produtivo; e falta de mecanismos de proteo propriedade intelectual.

    Para esta finalidade, preciso convencer os beneficirios tradicionais dos recursos pblicos de que no h dinheiro para todos. Em seguida, os pases latino-americanos devero investir mais em setores estratgicos a fim de inserir-se em condies melhores no sistema anrquico internacional do cada um por si.

    No chegaremos longe enquanto formos dependentes da boa vontade de pases que, como a Coreia do Sul, aproveitaram bem seus recursos e treinaram seus filhos para a inveno e o trabalho. Estes pases oferecem-nos auxlios diminutos em nossos projetos de desenvolvimento, e chegam com empresas bem consolidadas em busca do que temos em troca.

    O arrependimento do que se deixou de fazer vo. Pior que isto assumir o papel passivo de meros zappers de um televisor da Samsung, usurio de um computador da LG ou motorista de um moderno Hyundai

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    Elantra. Queremos maior presena da Amrica Latina nos avanos da cincia e da tecnologia.

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    5. CEALC e a integrao na Amrica

    rinta e dois chefes de governo da Amrica, com excluso de Canad e Estados Unidos, aprofundam os ideais de integrao do Grupo do Rio

    foro que existe desde dezembro de 1986 e da Cpula da Amrica Latina e o Caribe (CALC), que teve o primeiro foro em dezembro de 2008 na Bahia com o tema Integrao e Desenvolvimento.

    A CEALC (Comunidade de Estados da Amrica Latina e do Caribe) emergiu em fevereiro de 2010 durante um encontro de estadistas na Cpula da Amrica Latina e o Caribe (CALC) em Playa del Carmen, Mxico. Deste paraso caribenho dura realidade social de nossos pases, o organismo intergovernamental recm-nascido pressagia mais uma ao a favor da reformulao das relaes continentais e do sistema internacional.

    Menciono intencionalmente ao em lugar de projeto porque finalmente reunimos elementos para transitar da proposta prtica dentro do conceito atvico de integrao.

    Este mecanismo integrador mal nasce e h os que desqualificam sua misso como meramente declarativa, destituda de pragmatismo, e fruto de projetos polticos particulares que pouco interessariam a naes de economias fortes, como Brasil e Chile. mister comear pelos contras antes de enumerar os prs a fim de afirmar minha viso contrria a estas posturas prvias e meu otimismo em relao a estes organismos nosso-americanos.

    Embora alguns dos estadistas da CEALC se acanhem de reconhecer a finalidade deste organismo devido a relaes que eles mantm com pases da Amrica do Norte (por exemplo, atravs de tratados de comrcio livre e de auxlio humanitrio), a CEALC surgiu precipuamente como alternativa s agendas e deliberaes da OEA (Organizao de Estados Americanos).

    Precedentemente criao da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa Amrica), a UNASUL (Unio das Naes Sul-americanas) e a CEALC, a OEA havia sido a nica organizao intergovernamental de pretenso continental na Amrica desde 1948. Nossos pases estiveram, portanto, vulnerveis a discutir e acatar ditames oriundos de um organismo com sede em Washington, capital dos Estados Unidos.

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    Algumas tentativas de nomear a emergncia dos organismos latino-americanos e caribenhos acompanham a dificuldade de institucionalizao e aprofundamento das propostas. H os que se arriscam aos neologismos do regionalismo, por exemplo, quando se referem ao nosso processo como ps-liberal ou ps-neoliberal, no entanto alguns governantes adeptos do Estado mnimo apoiaram a criao da CEALC.

    Continua sendo difcil obter consenso nas definies programticas e principalmente nos planos de ao destes organismos. Mas estas diferenas de opinies e posies polticas no nos impedem de reforar os denominadores comuns na luta por uma insero mundial mais autnoma e, j que o tema enfoca a Amrica, pela definio de agendas prprias.

    fato que boa parte das reunies entre estadistas no mbito de organismos intergovernamentais redunda em discursos formais e declaraes de boas intenes, porm vejo a CEALC mais como continuidade de um projeto que um broto que surge do nada. A crise financeira mundial sinalizou para que a Amrica Latina e o Caribe tenham cautela com a reformulao das estratgias continentais da Amrica do Norte porque esta regio nrdica tem perdido espao comercial em suas relaes com o Sul.

    Apesar de o bolivarismo venezuelano ser um dos principais sustentculos da CEALC, a Venezuela mantm petro-relaes proveitosas com Estados Unidos e no permite que os discursos oficiais firam o grande negcio que traz retorno oramentrio s polticas sociais. Cuba tambm depende dos investimentos de empresas estadunidenses e das remessas financeiras de cubanos que vivem na Amrica do Norte.

    A CEALC no anula o papel da OEA, mas enfraquece a influncia continental desta organizao na medida em que descentraliza as discusses e as deliberaes que antes s se faziam em seu mbito. A recusa de Cuba em 2009 ao convite de ingresso OEA refora a importncia de desenvolvermos organismos prprios e no incidir em falcias.

    A crtica mais pertinente que se faz CEALC e aos demais organismos latino-americanos e caribenhos a de como estimular a participao cidad de modo que a sociedade envolva-se amplamente na definio de agendas regionais de debates e formulao de polticas.

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    [17]

    preciso reduzir a distncia entre cidados comuns e detentores do poder de deliberar em foros e reunies de organismos intergovernamentais. Temos que despertarmo-nos participao direta (sem representantes), por mais que eles jurem promessa de fidelidade aos interesses da maioria.

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    6. Reflexes sobre qualidade de vida

    Fundo de Populao das Naes Unidas (UNFPA, da sigla em ingls) previu que a populao mundial seria de sete bilhes at outubro de

    2011. A preocupao em torno do aumento populacional tem sido constante em meus escritos. Como se assegurar qualidade de vida a tantas pessoas?

    A resposta orienta-se pelo conceito de qualidade de vida, que mutante, subjetivo e distinto de quantidade. Fontes infindveis de informao atribuem sentidos a esta expresso, cuja importncia se evidencia no calor das sociedades modernas.

    Este destaque deve-se a que se confunde o sentido do conceito com os avanos tcnicos, que trazem muitas vezes novos desafios e denigrem a qualidade de vida. O automvel deixa de ser facilitador dos transportes para tornar-se agente de contaminao atmosfrica, problemas respiratrios e estresse.

    Os conceitos de qualidade de vida costumam abranger aspectos biolgicos (bem-estar, condicionamento fsico, propenso a doenas), culturais (hbitos de infncia, convvios sociais, vicissitudes, meios de formao e informao), e econmicos (renda, capacidade de consumo).

    leviano remeter ao tema sem considerar ao menos estas trs facetas do que atribui qualidade vida, uma vez que a carncia em qualquer uma delas impede o usufruto desta ddiva em sua plenitude.

    O Brasil assiste a um momento contraditrio de seu desenvolvimento, visto que a pujana de sua economia no se tem convertido em rendas bem distribudas devido ao modelo de explorao de mo-de-obra e de recursos naturais. H um encanto injustificado por atores (como muitas empresas transnacionais) que no pensam no cvico e no pblico.

    No obstante, o Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas (IPEA) divulgou um estudo que aponta aumento de 146% nos gastos sociais do governo federal de 1995 a 2009. As reas envolvidas so: educao, trabalho, sade, habitao, entre outras.

    Agrega-se que o Ministrio do Trabalho acusa que houve aumento de contratao de estrangeiros no Brasil. O pas emitiu, no primeiro semestre de

    O

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    2011, 26,5 mil autorizaes de trabalho, que se concentram nas reas de infraestrutura, engenharia e tecnologia.

    O Brasil possui insero privilegiada nas relaes internacionais em comparao com outros pases historicamente colonizados e explorados devido capacidade ingente de produzir riquezas e export-las. No entanto, o Brasil indispe-se internamente com os problemas clssicos do subdesenvolvimento.

    Como conciliar a qualidade de vida dos brasileiros com a remessa exportadora de nossos melhores alimentos e insumos industriais, enquanto a misria e o descaso ainda assombram as favelas e nos encarecem os recursos que testificariam em vez de desmentir nosso lugar como pas emergente?

    A cooperao internacional em vez da subservincia tem sido a opo de ministros e chefes de Estado para melhorar a qualidade de vida ao combater a fome, a guerra e a pobreza. inconcebvel que se tenha tantas opes de consumo nas regies mais avanadas tecnicamente enquanto noutras preciso caminhar quilmetros com baldes de gua na cabea para saciar a sede da famlia.

    Economistas criaram o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 1990, que mede a renda per capita, a expectativa de vida e a educao (ndice de analfabetismo e matrcula escolar) dos pases. A classificao baseia-se na variao de 0 a 1, sendo mais positiva e medio que se aproxima do 1.

    O entendimento de qualidade de vida requer desanuviar confuses e dogmas que recheiam o conceito a fim de que a insero de cada um dos sete bilhes de pessoas seja a mais ativa e saudvel possvel.

    Podemos e devemos ser agentes do processo de desenvolvimento que contempla os aspectos biolgicos, culturais e econmicos descritos anteriormente. A alimentao saudvel, os meios de convvio, os bons pensamentos e a interao poltica reduzem a culpa do acaso e nos conferem responsabilidade maior sobre o grau de qualidade com que vivemos.

    Clichs so vlidos para esta finalidade, como o de agir localmente e pensar globalmente, pois somos mais dependentes de processos de alm-mar.

    Quem delibera sobre sua qualidade de vida: voc ou o acaso?

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    7. Bibliotecas, livros e criatividade

    oda vez que se rememora o diagnstico do pouco que se l no Brasil, os interessados no tema se questionam: como incentivar a leitura de livros

    e que direo devem tomar as polticas pblicas no setor de literatura?

    O risco que se tem corrido o de relegar o papel de incentivo leitura somente s indstrias editoriais e transformar as bibliotecas pblicas, que um dia convocaram leitores, em depsitos de livros ou espaos de que o leitor se olvidou em prol das convenincias digitais.

    Muitos resistem a despender tempo no transporte e arriscar-se a no encontrar o material literrio que desejam. Portanto, optam pela facilidade e praticidade dentro do lar de ler mensagens de redes sociais ou dos infindveis campos de busca do Google que levam direto ao ponto. maior o nmero de quem adota posturas como esta, enquanto o interesse de gestores e pesquisadores da cultura tambm aumenta.

    Karine Pansa, presidente da Cmara Brasileira do Livro (CBL), recorda que houve aumento do nmero de livros vendidos em territrio nacional nos ltimos anos apesar da queda do faturamento desta indstria. Deduz-se, de maneira geral, que houve barateamento dos livros e aumento da leitura no Brasil.

    H incentivos da economia que facilitam o acesso ao livro, mas no mudam os hbitos culturais enquanto no se conformam polticas de prazo longo que incentivem a leitura e associem esta atividade com o prazer e o desenvolvimento da criatividade.

    A Secretaria Estadual de Cultura de So Paulo organizou o quarto Seminrio Internacional de Bibliotecas Pblicas e Comunitrias, de 22 a 24 de novembro de 2011 no SESC Pinheiros, na capital paulista. Alguns temas da programao foram: acessibilidade, acervo digital, biblioterapia, redes sociais. H uma tentativa, deste modo, de associar o hbito de leitura a outras atividades que melhorem a sade e despertem o prazer.

    Este Seminrio trouxe palestrantes de alguns estados brasileiros e tambm de Chile, Colmbia, Alemanha e Portugal. O desgnio do evento foi discutir sobre o incentivo leitura e a disseminao de informao em vrios

    T

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    meios de comunicao. Trata-se, no entanto, de dois desafios distintos. O primeiro prev, em certa medida, a reverso de uma tendncia que o segundo gerou de fazer as pessoas lerem de tudo em qualquer lugar menos livros. L-se mais que em qualquer outra poca, mas de fontes diversas e contedos amide duvidosos quando no comerciais e superficiais, ou seja, que no despertam o senso crtico.

    A Internet e os aparelhos eletrnicos mantm as maiorias ocupadas com leituras de uma forma que no se concebia at pouco tempo atrs. Portanto, devem-se atualizar as estratgias que as bibliotecas elaboram para convocar pblicos, ainda que seus edifcios sejam obra da arquitetura mais moderna. Uma delas a de fornecer acesso gratuito a Internet.

    Urge, primeiramente, a identificao das transformaes pelas que passam: 1) a indstria editorial, em que se estabelecem monoplios; 2) os hbitos de leitura, em que se priorizam fontes determinadas de textualidades sobre outras; e 3) o balano das polticas governamentais a fim de que realmente nos incentivem a ler produtos literrios de boa qualidade.

    As trocas de experincias so proveitosas para que os projetos de incentivo que deram certo em determinada cidade ou pas se apliquem noutros contextos. A propsito, o Brasil contou com uma banca na Feira Internacional do Livro em Guadalajara, Mxico, de 26 de novembro a 4 de dezembro de 2011.

    A importncia das bibliotecas e dos livros persiste em quem acredita nestes como fonte de criatividade, conhecimento e raciocnio, e naquelas como espaos que ofeream algo mais que um catlogo recndito de palavras espera de sua descoberta.

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    8. Revista ArteSur

    Amrica Latina manifesta crescentemente a qualidade de sua produo artstica e criativa e reconhece as potencialidades que ainda tem para

    desenvolver. Ainda, seus produtores e promotores esforam-se para dinamizar este registro e inserir suas obras em circuitos com os que, h pouco tempo, nem se sonhava.

    Os meios de interligar produo, circulao e consumo da cultura tm sido ainda escassos, o que se deve em parte falta de experincia e financiamento, mas a regio tem obtido xito relativo nesta tarefa e tem diversificado sua estratgia.

    A segunda edio da revista ArteSur sobre artes visuais apresentou-se no fim de novembro de 2011 na ALBA Cultural, em La Habana, Cuba. Este nmero da revista contm documentos, desenhos e imagens de museus importantes dos pases membros da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa Amrica). Estes pases so: Bolvia, Cuba, Equador, Nicargua, Venezuela e algumas ilhas caribenhas.

    As publicaes desta revista so bilngues (em espanhol e ingls) e provavelmente sero anuais. O patrocnio vem do Fundo Cultural da Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa Amrica (Fondo Cultural de la Alternativa Bolivariana para los Pueblos de Nuestra Amrica).

    Ismael Gonzlez, coordenador do programa ALBA Cultural, salientou a funo da revista ArteSur de despertar a ateno sobre as artes visuais desde o pensamento radical no contexto latino-americano e caribenho. um esforo comum entre gestores culturais da nossa regio para reduzir a hegemonia dos pases do Norte na definio dos rumos mundiais de arte e criatividade. At ento o contedo destes termos havia sido associado quase integralmente ao que se produzia nos pases chamados desenvolvidos.

    A revista expressa seu ideal integrador dos povos do Sul, promove redes de intelectuais, e considera alguns documentos e ideais de personagens de renome no latino-americanismo. Gera, ainda, espaos de dilogo e confrontao entre artistas visuais latino-americanos e os de outras regies desde uma perspectiva descolonizadora e anti-hegemnica.

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    O projeto ambiciona oferecer uma alternativa em artes visuais quilo que emana de centros e instituies pertencentes a pases que se achavam mais desenvolvidos e determinavam as tendncias no setor, o que devia ou no ser apreciado, e atribuam critrios valorativos sobre o campo artstico. O comit editorial da revista ArteSur luta tambm contra as inclinaes excludentes e totalizadoras do mercado.

    Rubn del Valle, diretor da revista ArteSur, relembrou tambm o esforo dos promotores deste projeto editorial de divulgar as produes artsticas da Amrica Latina ao pblico a fim de que a revista seja tomada em conta. No demais recordar a amplitude das artes visuais, que envolve arquitetura, desenho, escultura, filme, fotografia, moda, pintura, animao grfica, etc.

    Projetos como o da revista ArteSur desenvolvem um potencial imenso da Amrica Latina na medida em que desloca a nfase de produo a circulao e consumo de seus bens culturais. preciso aproveitar as conexes internacionalistas que se nos abrem, mas sem qualquer tipo de desprezo e negligncia das culturas que no so nossas sob o risco de reincidir num desacerto que se quer abolir.

    Assim, enveredamo-nos nessas conexes com estratgias discursivas muito diferentes das que tiveram os colonizadores e hegemnicos, que hoje mastigam uma crise de mercado e especulao financeira que eles mesmos ensejaram. Contamos com que este vento econmico negativo que assola sobremaneira o mundo desenvolvido nos vergaste com intensidade menor.

    A Amrica Latina dispe de alternativas naquilo que produz e na sua estratgia de divulgao. Por que esperar mais tempo para que nossas artes visuais tornem-se conhecidas, dignas de prmios internacionais e se saiba mais de ns alhures?

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    9. TEIb e hbitos culturais

    s governos latino-americanos finalmente reconhecem que faltam polticas para aparelhar eficaz e suficientemente os Estados em

    comparao com a estrutura galopante de instituies privadas (e que tendem a concentrar capital e investimentos) para acompanhar as mudanas atuais de produo, circulao e consumo culturais.

    A preocupao que surge, porm, de que pases externos Amrica Latina administrem as indstrias comunicacionais, parte das quais eles mesmos criaram, e deixem-nos, portanto, com poucas iniciativas prprias. Este processo tem ocorrido atravs do ibero-americanismo e da fundao de organismos multilaterais com sede na Espanha.

    Os intercmbios culturais tm sido mais intensos devido aos novos suportes digitais e ocorrem entre os nveis local, nacional e global. Desde este diagnstico, organismos sediados fora da Amrica Latina, mas com atuao forte em nossa regio, possuem entendimento preciso destes processos e, portanto, elaboram polticas e projetos aos novos hbitos culturais que, por vezes, ultrapassam o cenrio sobre o qual os governos projetam suas aes.

    Dentro deste contexto, criou-se, h quase vinte anos, a Televiso Educativa e Cultural Ibero-Americana (TEIb) como um programa de cooperao das Cpulas Ibero-Americanas de Chefes de Estado e de Governo. A TEIb surgiu da II Cpula Ibero-Americana em Madri, Espanha, entre 23 e 24 de julho de 1992, onde se reuniram presidentes de vrios pases deste mbito de cooperao. O embrio deste Programa provm do projeto Comunicao para a Cooperao e apresentou-se Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) no ano anterior a fim de ofertar um servio pblico de televiso.

    O Programa continua ativo e aberto s transformaes de poca quase duas dcadas depois de sua fundao. Enfoca os cidados de pases ibero-americanos destarte se distancia do af de rendimentos que norteia os atores geralmente envolvidos em empreendimentos deste gnero e almeja a promoo de identidades prprias nos mbitos da cincia, cultura e educao atravs da coproduo, difuso e intercmbio de contedos audiovisuais. Este

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    programa ciente, por conseguinte, do papel dos meios de comunicao principalmente a televiso no desenho da cidadania.

    Qualquer organismo que associe a cidadania ao seu contedo programtico tende a ponderar, minimamente que seja, sobre os desafios de educar as pessoas para usufruir responsavelmente dos benefcios da televiso, a Internet e os aparelhos de convergncia digital (celulares, computadores portteis, iPods, tablets) sem o risco de que sejamos digeridos pela tecnologia.

    A TEIb dispe de infraestrutura avanada e parcerias internacionais para transmisso de seu contedo, que tambm interessa a agentes privados. Sua programao alcana quatro continentes (Amrica, Europa, sia e frica) em vrios suportes (televiso analgica, televiso por satlite, televiso por assinatura, Internet, rdio). Paraguai aderiu-se recentemente ao Programa.

    Organismos com sede na Espanha tm feito pelos pases latino-americanos o que papel de nossos Estados e instituies civis. Apesar disso, agentes privados tambm esto aptos a patrocinar o interesse pblico, como o que diz respeito ao coletivo, o compartilhamento e o encontro tolerante entre as pessoas por mais distintas que elas sejam.

    Ainda, a TEIb foi um dos patrocinadores da criao do Canal Ler de televiso na Internet, que visa a fomentar a leitura nos pases ibero-americanos atravs dos novos formatos digitais. Esta iniciativa demonstra que o Programa est bem sintonizado com as mudanas dos meios digitais. Surgem os adeptos do livro eletrnico e dispensa-se o papel.

    Como melhorar o nvel de cidadania das pessoas atravs dos novos hbitos culturais digitalizados, mediatizados e tecnologizados? Quem poder assumir a dianteira nesta tarefa premente sem se dominar por intenes privadas? A resposta indicar um caminho para a transformao educativa que faremos e pela qual passaremos nas prximas dcadas.

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    10. SIDACULT e o cultivo humano

    epidemia de VIH (Vrus de Imunodeficincia Humana) estourou no incio dos anos 1980. De acordo com dados da UNAIDS (programa

    das Naes Unidas sobre a imunodeficincia adquirida, da sigla em ingls), 34 milhes de pessoas encerraram 2010 com este vrus no sangue.

    Neste cenrio ainda pouco promissor sobre o fim de disseminao da doena no mundo, surgiu o projeto Rede Regional SIDACULT, uma iniciativa do setor cultural do escritrio da UNESCO (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e Cultura) em La Habana, Cuba. O projeto organiza pesquisas culturais e sociais sobre a epidemia de VIH no nvel nacional e tambm em outros pases caribenhos.

    A SIDA (Sndrome da Imunodeficincia Adquirida) inquieta os cientistas desde os primeiros diagnsticos em torno de trinta anos atrs devido ao desafio da descoberta da cura e aos avanos medicinais que resultariam desta faanha.

    Milhes de portadores do vrus ainda no sabem que o so e que qualquer enfermidade leve pode mat-los sem o recurso ao coquetel anti-retroviral, embora o acesso aos medicamentos tenha-se ampliado na direo da universalizao.

    Os vrus exercem fascnio na microbiologia devido falta de consenso sobre se so ou no formas de vida, visto que se constituem basicamente de uma cpsula proteica e material gentico (que pode ser ADN ou ARN), ou seja, so menos complexos que uma clula.

    A despeito da controvrsia sobre seu estado biolgico, o VIH tem provocado dificuldades inmeras em profilaxia e tratamento da doena e a SIDA volta periodicamente a compor as pautas de debate entre gestores de sade, educao, planejamento, sociedade e, ultimamente, cultura.

    O projeto Rede Cultural SIDACULT dispe de propostas artsticas e de promoo cultural para preveno e tratamento de VIH/SIDA atravs de um espao de dilogo e intercmbio de experincias e informaes. Sua proposta implica uma via solidria para desenvolver medidas preventivas e inclusivas a partir dos efeitos do vrus.

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    Profissionais de reas distintas unem-se para lutar contra a epidemia desde contextos particulares de suas comunidades, regies e pases de origem. O projeto com escritrio em Cuba possui cinco reas temticas: Arte, Comunicao, Educao, Cincias Sociais, e Cincias Naturais. H orientaes a jornalistas interessados na proposta sobre como lidar com o tema na imprensa e redigir reportagens educativas e colaborativas.

    A Rede Regional SIDACULT define-se como um grupo associativo e no lucrativo que se dedica a oferecer uma resposta multidisciplinar ao desafio que a epidemia de VIH/SIDA lanou aos cientistas, os portadores do vrus e os profissionais envolvidos. O que mais chama ateno neste projeto o enfoque cultural sobre um tema que se limitava esfera sanitria.

    A proposta do SIDACULT em Cuba, portanto, levou em considerao os estudos da UNAIDS, que indicaram o Caribe como um dos principais focos epidmicos de VIH no mundo, a tendncia profiltica da medicina cubana (que investe em medidas educativas) e a disposio solidria e aberta ao dilogo que inerente aos profissionais caribenhos. A mesma agncia das Naes Unidas divulgou que o Caribe a segunda regio mais afetada (240 mil portadores do vrus) depois da frica Subsaariana. Outra informao de que havia, em 2010, quase dois milhes de soropositivos na Amrica Latina e no Caribe, enquanto o Haiti tinha, neste mesmo ano, a maior proporo de infectados com 2,2% de sua populao.

    A autonomia relativa que temas culturais conquistaram no meio acadmico-profissional no anula o elo estratgico que os gestores culturais estabelecem com outros campos do conhecimento e de atuao profissional, como a sade. A multidisciplinaridade oferece solues mais fecundas para alguns problemas da humanidade do que as propostas que se discutem com ferramentas de uma nica disciplina. No se trata de prescindir completamente de uma ou de outra seno combinar o que cada uma tem para oferecer.

    Milhes de portadores de VIH revigoram-se com a fruio da arte e a criatividade, quando no so agentes criadores das mesmas. Noutras palavras, estas pessoas recebem alento para frear a ao do vrus atravs do cultivo humano quando se imaginava que o diagnstico meramente sanitrio lhes tiraria todas as esperanas e lhes fadaria a um destino lgubre.

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    Da preveno ao tratamento, o VIH/SIDA um tema que nos estimula prudncia, de um lado, e solidariedade, de outro. No h como evitar a questo como se ela fosse irrelevante. Tampouco se prope uma soluo ao problema sem considerar o papel frtil da cultura.

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    11. Mais Cultura, mais expresso

    governo federal no Brasil usou indicadores de desigualdade e excluso (por exemplo, de como os brasileiros leem pouco ou raramente vo a

    museus) para elaborar sua poltica do Mais Cultura. O Programa teve incio em 4 de outubro de 2007 e reconhece a cultura como necessidade bsica pelos mesmos princpios como nos alimentamos e nos vestimos.

    A cultura, atravs do Programa mencionado, insere-se no rol de polticas sociais que tm a finalidade de reduzir as desigualdades sociais e a pobreza no Brasil. Gestores de cultura apropriam-se desta estratgia em polticas pblicas na medida em que ela se ancora em mbitos que recebem oramentos maiores do governo, como educao e sade. O oramento do Mais Cultura foi de R$ 2,2 bilhes entre 2007 e 2010.

    Notam-se algumas diferenas entre demandas culturais. Uma prope-se a promover uma expresso cultural pouco conhecida da periferia, que poderia ser uma oficina de armao de pipas e tcnicas de empin-las, para atender aos caprichos de um grupo. Outra de um pedido de financiamento governamental que vem da mesma prtica, mas com o argumento de que ela reduzir o nmero de pedintes nos semforos e nas entradas dos restaurantes. Qual das duas ter maior capacidade persuasiva para o governo?

    Este argumento reflete a abrangncia e o atrativo de uma poltica cultural que depende dos usos que se podem atribuir a ela e que transcendam a mera expresso simblica que residiria, por assim dizer, na beleza de ver uma pipa volitar no cu azul ou no sorriso de uma criana que ganhou os materiais (bambu, papel, linha, cola) para faz-la.

    O Programa Mais Cultura prev a articulao de trs dimenses: Cultura e cidadania; Cultura e cidades; Cultura e renda. O desenvolvimento econmico, destarte, no ser o nico aspecto contemplado. Ainda, busca-se a participao da sociedade civil para que manifeste suas carncias e demandas em relao a aparatos e meios que viabilizem a expresso de suas culturas.

    O Mais Cultura prev acordos com instncias municipais e estaduais de governo, organizaes internacionais e de sociedade civil. A parceria com bancos (Banco do Brasil, Caixa Econmica Federal, Banco Nacional do

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    Nordeste, Banco da Amaznia, Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social, e Banco Interamericano de Desenvolvimento) se faz devido ao carter pblico das instituies.

    A cidadania vincula-se aos processos que ocorrem nas cidades e aos direitos cvicos que nos garantem necessidades bsicas, entre elas o de acesso a culturas e sua preservao ao longo das geraes. A noo de desenvolvimento que emana de instituies progressistas a que foge da univalncia do crescimento econmico e adota posies a favor da realizao das potencialidades humanas. Desenvolvimento no seria sinnimo, deste modo, de aumento do Produto Interno Bruto, mudana da taxa de juros, alterao do padro de emprstimos, ou concesso de crditos.

    No se alcanou, at o momento, o estgio desejado e muito menos o ideal normativo, uma vez que as notcias sobre o Ministrio da Fazenda continuam focalizando o que se considera importante nas sees intituladas Brasil ou Nacional nos meios de comunicao. Enquanto isso, a crise financeira recheia os tpicos das sees Internacional ou Mundo, como se tudo estivesse em escombros.

    Algumas aes do Mais Cultura envolvem a criao e promoo de bibliotecas e espaos de leitura, cinema, museu indgena, brincadeira e jogos, e microprojetos na Amaznia. Ressalta-se a tendncia descentralizadora da produo cultural subjacente neste Programa, que recorda o muito que se produz em todo o Brasil a despeito da representatividade baixa nos meios de comunicao. Seria pouco ainda se tivssemos um canal de televiso para expressar as particularidades de cada bairro.

    triste lembrar que vultos de dinheiro pblico transferem-se a projetos culturais com a interveno de lbis infatigveis atravs de leis de renncia fiscal. Um deles o que transforma a corporao transnacional Globo no mecenas do cinema brasileiro, que logra exibio, depois de tanto suor, nas grandes salas de cinema ao lado dos filmes hollywoodianos. A crtica no desmerece que ela tenha produo de qualidade excelente, no obstante.

    O Mais Cultura joga com uma estratgia descentralizadora da produo cultural, traz cena grupos marginalizados e balana o eixo de poder que determina o que considerado cultura e o que no , o que pode-se expressar e o que no pode.

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    Ainda cedo para afirmar se houve mudanas estruturais no desenho e na eficcia das polticas culturais no Brasil, mas vale reconhecer que as polticas de Estado (e de outros agentes envolvidos) redefinem a importncia da cultura e elevam-na em sua pauta de aes.

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    12. Programa Ibermedia e indstria cinematogrfica

    ue desafio a avalanche do cinema estadunidense prope para a minguante produo flmica latino-americana: resistir influncia

    massacradora do mainstream dos estdios de Hollywood, que controlam ao menos as instncias de produo e circulao de pelculas at que cheguem s grandes salas de exibio, ou elaborar estratgias que melhorem a competitividade da cinematografia de nossa regio visando insero no circuito internacional?

    neste contexto de disputas industriais no setor cultural que surgiu o Programa Ibermedia. Ele incentiva a coproduo de filmes entre pases ibricos (Espanha e Portugal) e latino-americanos (Argentina, Bolvia, Brasil, Colmbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, Guatemala, Mxico, Panam, Peru, Porto Rico, Repblica Dominicana, Uruguai e Venezuela) para cinema e televiso mediante emprstimos para a realizao de projetos e a criao de um espao audiovisual ibero-americano.

    Deste modo, as pretenses do Programa multilateral transcendem o nvel da cooperao, que costuma caracterizar a maioria dos acordos internacionais, ao sugerir a coproduo. Supe-se que o empenho das partes maior quando desenvolvem projetos em cumplicidade do que atravs da mera troca de experincias e de outras tantas palavras.

    O Programa Ibermedia resulta de decises da Cpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, realizada em Margarita, Venezuela, em novembro de 1997, embora a proposta tenha sido apresentada na Cpula de 1995 em Bariloche, Argentina. O Programa vincula-se categoria de poltica audiovisual da Conferncia de Autoridades Cinematogrficas Ibero-americanas (CACI). O Comit Intergovernamental do Programa, que rene especialistas da rea de cinema, sustenta quatro linhas de atuao: 1) Apoio coproduo de filmes ibero-americanos; 2) Apoio distribuio e acesso a mercados; 3) Desenvolvimento de projetos de cinema e televiso ibero-americanos; e 4) Apoio a programas de formao de profissionais da indstria audiovisual ibero-americana (http://www.ancine.gov.br/fomento/ibermedia).

    Publicam-se dois editais anuais para o financiamento de projetos via Programa Ibermedia, cujo incentivo financeiro provm majoritariamente das

    Q

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    contribuies dos Estados-membros e de parceria com as agncias, conselhos e instituies que administram o audiovisual em cada pas integrante. O Brasil, por exemplo, dispe da Agncia Nacional do Cinema (ANCINE) e da Secretaria do Audiovisual, que pertence ao Ministrio da Cultura (MinC).

    Alm da transferncia de nfase de cooperao a coproduo, o Programa Ibermedia tambm possui polticas para as etapas de distribuio e recepo de filmes, como consta numa de suas quatro linhas de atuao. A preocupao com a completude do processo (produo, distribuio e recepo) se deve insuficincia de apenas investir na criao e na realizao de cinematografia latino-americana se no houver estratgias para faz-la circular e ser vista.

    Vale mencionar que o cinema mais exitoso de nossa poca, o dos Estados Unidos, controlado por leis de mercado, enquanto as polticas de Estado e incentivos fiscais impulsionam o da Amrica Latina para que sobreviva. Ainda que tenham sido as mais promissoras, as indstrias cinematogrficas de Argentina, Brasil e Mxico teimam em resistir hegemonia da estadunidense como se a produo latino-americana estivesse numa posio de subalternidade em vez de rever as estratgias de insero que permitiriam seu xito.

    O Programa Ibermedia e as instituies envolvidas revigoram as polticas culturais que daro chance para que a Amrica Latina desenvolva sua indstria cinematogrfica em todas as suas etapas e supere o momento rduo de luta pela sobrevivncia.

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    13. Cultura do dinheiro

    endita a poca em que o dinheiro deixar de ser um artifcio de deturpaes, ganncias e vaidades, resgatar a finalidade de sua criao,

    e voltar a ser unicamente facilitador de trocas de valores, cujo procedimento era feito pelo escambo (troca de bens ou servios).

    Haver um tempo em que migrantes no sairo em busca de trabalho, uma vez que seus lugares de origem saciaro a demanda, o dinheiro no ser o objetivo precpuo do labor, porquanto estaremos mais dispostos a oferecer sociedade aquilo que mais saibamos fazer sem o risco de no ter com que pagar as contas de cada ms.

    Deixaremos, ainda, de testemunhar a malversao do dinheiro, o desperdcio em bens materiais suprfluos, o consumismo, e o bloqueio que muitos sentem por no poder comprar o bsico de que precisam para subsistir dignamente. Punge que muitos vivam abaixo da linha de pobreza.

    A concentrao de dinheiro continua apontando vtimas e formando delinquentes. A Polcia Civil apreendeu notas de Reais e Euros que somam mais de R$ 3 milhes numa manso em rea nobre do Rio de Janeiro, em dezembro de 2011. A ao faz parte da Operao Dedo de Deus, que prev priso de criminosos, inclusive polticos, tambm de alguns estados nordestinos.

    O dinheiro corrompe o homem ou este faz uso indevido daquele?

    H situaes inapelveis em que o cidado tem que trabalhar quase forosamente a troco das notas que lhe traro sustento, mas h que cuidar-se para que a obsesso pelo dinheiro no escravize o trabalhador a ponto de que se tenham trs ou mais empregos, viva-se para a acumulao, e negligenciem-se outros aspectos da vida, to caros para sua qualidade.

    Pelo dinheiro, migrantes sujeitam-se a trabalhos rduos a fim de que paguem, ao menos, as despesas de sobrevivncia. Quando possvel, remetem parte de seus proveitos s famlias que deixaram alhures.

    A partilha da riqueza brasileira constitui um dos grandes desafios em polticas pblicas nos anos vindouros. Guido Mantega, ministro da Fazenda, anunciou que o Brasil termina 2011 como a sexta maior economia mundial

    B

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    com um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 2,4 trilhes e que s no supera o de Estados Unidos, China, Japo, Alemanha e Frana.

    O discurso dos economistas e lderes deste setor louva a insero do Brasil em grupos de comrcio e foros internacionais importantes, mas no nos exime o esforo de mudar a cultura do dinheiro, que tanta aflio causa nas mentes indefesas e despreparadas. uma tarefa global.

    Os jovens, assim, no podem crescer associando o acmulo de dinheiro com o sucesso profissional, como se o primeiro fosse condio necessria do segundo. preciso oferecer juventude opes menos materialistas que lhe permitam vencer na vida sob o risco de que, do contrrio, d-se um jeito de enriquecer se no for pelas vias formais e legais. A famlia desenha o ponto de partida do trajeto educativo.

    A crise que assola o mundo desenvolvido evidencia que o uso do dinheiro no deve ser levado ao extremo, sobretudo o que circula em operaes financeiras veladas, discretas e que enchem o bolso de banqueiros. A Fitch Ratings, agncia do Norte que avalia riscos de investimentos, previu em dezembro de 2011 que o crescimento da zona do Euro seria de apenas 0,4% em 2012, o que indica uma contrao expressiva em relao ao 1,6% do ano derradeiro.

    A cultura do dinheiro tem-se prolongado ao longo dos sculos com o ideal de acumulao, expanso e reproduo capitalistas atravs do mercantilismo dos metais preciosos, a revoluo industrial e os movimentos financeiros globais.

    O componente material (a cdula e a moeda) indissocivel do imaterial (como obter dinheiro? o que fazer com ele? suficiente o que ganho? de quanto preciso? quanto h que trabalhar? quanto necessrio para ter uma vida digna? etc.).

    A sociedade, por fim, precisa reformular seus valores a fim de que as pessoas se orientem mais pela confraternizao, a sade fsica e mental, a contemplao das belezas naturais, o cultivo da educao, e o prazer em ter conhecimento e trocar experincias.

    O dinheiro voltar, assim, a ser mero objeto de trocas em vez de malfeitor do imaginrio.

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    14. Civilizaes Mac-Cola

    crise que enfrentamos hoje no financeira, mas civilizatria. reducionista a afirmao de que a economia culpada de tudo, como se

    ela fosse mais um atributo da natureza que regula as relaes humanas. Das expresses de comida-lixo ao papel decepcionante das empresas por trs dos processos de transnacionalizao, o dficit das civilizaes atuais.

    No s os hbitos alimentares se degradam na indigesto das marcas, mas os supostos agentes da educao ou do processo civilizador no sabem o que fazer com tanto poder. Perdem-se na banalidade de programas fteis e antieducativos, quando se trata de rdio ou televiso, ou na tentativa de controlar o conhecimento, como os fiscais de direitos autorais da Internet.

    Pouco importa se a referncia a um pas menos ou mais civilizado, cuja categoria to relativa quanto o gosto e o sabor, ou se j foi colnia ou metrpole, ou se pobre ou rico, ou se passivo ou ativo diante do que os banqueiros fazem com o suor dos contribuintes atravs de suas taxas bancrias. Dizem que a culpa sempre dos flagelados, endividados, migrantes.

    A humanidade alcanou uma crise civilizatria sem precedentes.

    Quando se apostava que Estados Unidos e pases da Europa resgatariam os demais da barbrie, do exotismo e do atraso, eles mesmos se confirmaram como artfices da desgraa, corsrios de suas ex-colnias, espoliadores das finanas mundiais, semeadores de multiculturalismos segregacionistas, para os quais a mestiagem mito do terceiro-mundo.

    O Estado perdeu influncia em relao aos demais atores sociais no circuito global, mas no renunciou sua importncia. At mesmo Obama, chefe de Estado da mais mercadolgica das naes atuais, reitera que a salvao vir das polticas pblicas, que regularo os excessos neoliberais. H que considerar que as polticas de empresas transnacionais possuem, amide, impacto maior que as que se elaboram no mbito de governos. A questo que irrompe : o que tais empresas transnacionais fazem com este poder?

    A

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    [37]

    Polticas de pases economicamente avanados frequentemente so mais imperativas que as de organismos internacionais em regies ditas perifricas. Em contrapartida Organizao dos Estados Americanos (OEA), a criao da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) abala esta relao de poder.

    Noutros termos, governos nacionais e organizaes internacionais perpetuam o debate sobre o desenvolvimento em funo de cifras econmicas e favores polticos. Deixam de levar em considerao que a noo de desenvolvimento tornou-se to abrangente a ponto de que os aspectos culturais e sociais so irrenunciveis. A esfera da criatividade , portanto, uma das arestas do desenvolvimento. O reconhecimento que veio depois.

    O problema maior de boa parte das civilizaes atuais o que se transmite em termos educativos de uma gerao para outra. Os ncleos de ensino (casa, escola, vizinhana, etc.) so cada vez mais pressionados por lgicas exgenas que fazem crer que os jovens tm todo o mundo ao seu alcance atravs dos meios de comunicao e outras janelas que se abrem para uns e se fecham para outros.

    Os aparatos de convergncia digital tornam-se to importantes para eles a ponto de substituir as afetividades que costumam dar sentido e vincular as civilizaes. Estas se resumem, deste modo, no princpio Mac-Cola, cuja trama se estabelece no plano superficial do consumismo em detrimento da estrutura vinculante inerente ao processo civilizatrio.

    hora de rever projetos de civilizao engavetados ou entumbados ou arqueologizados. A Amrica Latina possui um nmero de prceres pouco recordados, concepes minoritrias e autctones (o que inclui cosmovises amerndias), e as contribuies do sincretismo e da mestiagem, para seguir o pressgio de raa csmica do mexicano Jos Vasconcelos.

    A tarefa poder ser um resgate daquilo que no se desenvolveu ou uma abertura para um projeto novo e exclusivo na Amrica Latina. Nalgum destes horizontes, ideais outros que o consumismo e o culto ao exgeno devero nortear a humanidade em suas expresses civilizatrias.

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    15. Usinas culturais e mediaes

    Programa Usinas Culturais mais uma poltica que visa a dar utilidade ao mbito da cultura como um meio de se resolver algum embarao do

    desenvolvimento. Muitas vezes se tentam outros recursos antes de ancorar no subsdio cultural. Apesar de certos avanos nos usos de cultura, fica a pendncia de situar o lugar da cultura fora de seu vetor de utilidade.

    O Programa Usinas Culturais uma iniciativa do Ministrio da Cultura que dirige seus investimentos infraestrutura e programao cultural em reas brasileiras consideradas de alta vulnerabilidade social, sobretudo as

    que se envergonham com taxas elevadas de homicdios e outros indicadores de violncia. A finalidade principal desta poltica pblica promover o exerccio dos direitos, os valores da cidadania e da diversidade cultural, e o desenvolvimento local e regional por meio da economia criativa (http://www.cultura.gov.br/usinas/).

    A economia quase sempre determina o que se faz de outras polticas. H gestores pblicos que esperam o setor econmico florescer antes de investir em polticas socioculturais. Desta forma, o Estado tira o corpo da cultura, da moradia e da sade se as finanas no estiverem bem.

    A primeira fase de implementao do Programa, que ocorreu entre 2011 e 2012, beneficiou 134 municpios (envolvendo todas as capitais) e o Distrito Federal. O Programa previu verbas para capitais, cidades do interior e outras que ficam prximas dos grandes centros urbanos. Esperou-se gastar, at 2014, R$ 70,5 milhes com a instalao de 201 usinas culturais. O Programa divide-se em duas etapas: 1) aes infraestruturais (adequao de espaos, aquisio de equipamentos e aes de mobilizao social); 2) aes operacionais de desenvolvimento do projeto e gesto participativa das polticas culturais, em tempo mais longo que o da primeira etapa.

    Em ateno ao procedimento burocrtico, o municpio cuja gesto cultural se interesse no Programa deve preencher o manual para habilitao de propostas, enviar documentos de sustentao da candidatura (fotos do entorno; mapa de localizao; planta do terreno; situao fundiria do espao) e aguardar anlise documental.

    O

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    O Programa, cujo financiamento vem do Oramento Geral da Unio, impulsiona-se antes como reforma infraestrutural de espaos culturais, como se prev na Ao 8886 Apoio e Modernizao de Espaos Culturais do manual. Boa parte das despesas, ainda, costuma direcionar-se a reformas prediais (troca de rede eltrica, manuteno de pisos, etc.).

    O Programa surgiu durante as discusses que ocorreram no Frum Direitos e Cidadania da Presidncia da Repblica, cuja vinculao institucional supe a importncia da proposta, a partir dos objetivos e temas: valorizao da juventude negra; promoo da autonomia das mulheres; educao ambiental e reciclagem; reduo das desigualdades; valorizao da diversidade sociocultural e tnica e da autonomia das pessoas.

    Deste modo, a construo de usinas culturais reflete uma demanda de polticas pblicas que irradia desde o ncleo do Poder Executivo, concentrado em atenuar os conflitos nacionais e promover cidadanias com base nesta pauta. A questo de fundo que tem movido qualquer gesto democrtica de polticas pblicas continua intacta, portanto.

    Esta proposta pretende reduzir o nmero de homicdios por meio de investimentos em cultura, uma vez que um dos critrios para participao no processo seletivo, segundo o item Entes Elegveis e Limites de Propostas

    do manual para habilitao de propostas, que a cidade tenha ndice alto de homicdios. Os critrios seguintes para avaliao das propostas baseiam-se, segundo o mesmo manual, em: maior ndice de violncia; maior atendimento populao de baixa renda; maior densidade populacional; maior carncia de equipamentos pblicos.

    bem-vindo este recurso e mtodos inconvencionais para reduzir a sombra do fantasma das desigualdades e dos gneros de violncia que amedrontam cidados e desafiam gestores pblicos. O combate ocorre noutro plano, embora o mediador dele seja a cultura. No entanto, ficamos ainda sem saber quando a economia efetivamente media a cultura.

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    16. Mercantilizao de propriedade intelectual

    questo dos direitos autorais ou da propriedade intelectual na era da comunicao massiva divide opinies: por um lado, autores e

    patrocinadores queixam-se do descontrole sobre seus trabalhos devido ao descumprimento das leis de proteo autoral; por outro, alguns usurios temem que as conquistas de universalizao da informao sofram retrocesso.

    Esclareo que trs modalidades de licenas protegem os direitos de autor sobre seus contedos culturais: copyright, copyleft e creative commons. Cada uma delas surgiu para atender demandas especficas do

    universo autoral. Varia o grau de controle sobre a obra intelectual.

    O Escritrio de Propriedade Intelectual do Reino Unido (IPO, da sigla em ingls) informa que o copyright (the right to copy ou o direito de copiar) aplica-se ao uso e reproduo, em quaisquer meios, de trabalhos literrios (manuais de instruo, artigos em jornais, programas de computador), trabalhos dramticos (dana, mmica), trabalhos musicais, trabalhos artsticos (pinturas, gravuras, fotografias, esculturas, arquitetura, diagramas, mapas), gravaes de um trabalho (som e vdeo), transmisses de um trabalho, entre outros. O contedo cultural, neste caso, para uso pessoal e nada pode ser feito sem o consentimento do autor.

    O termo copyleft, por sua vez, surgiu em contraposio a copyright para tornar gratuito o uso e, nalguns casos, tambm a modificao de trabalhos intelectuais. O acesso ao contedo cultural, nesta modalidade, no est sujeito a limites. Em sntese, copyleft o direito que prescreve o uso, enquanto copyright o direito que o probe.

    A observncia das leis de copyright no plano internacional tem sido um desafio, ainda que acordos internacionais estabeleam-se entre os pases.

    H os que se dizem afetados pelas restries que se impem circulao livre das artes, das cincias e da criatividade. O conhecimento e o pensamento mercantilizam-se. Um trabalho intelectual, desta forma, compara-se a outra mercadoria qualquer, como uma pea de roupas, uma refeio rpida ou um aparelho eletrnico. Os patrocinadores dos bens culturais resguardam-nos contra uso indevido e furto porque tais bens passam a possuir valor de troca.

    A

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    O creative commons que considerado uma variao do copyleft prov licenas de copyright a usurios ao redor do mundo que sigam certas condies de uso, ou seja, h outros direitos que continuam resguardados. O administrador do creative commons define-se como uma organizao global sem fins lucrativos que oferece ferramentas gratuitas e legais para compartilhamento de criatividade e conhecimento (http://www.creativecommons.org). Diferentemente do que sucede no copyleft, o autor decide sobre a proteo que deseja dar a seu contedo cultural e seu nome deve creditar-se em todas as circunstncias.

    O movimento em defesa do controle dos trabalhos intelectuais que circulam na rede virtual ganha flego devido preocupao dos patrocinadores geralmente corporaes privadas com a reduo de seus lucros, por um lado, e insatisfao dos autores com o crescimento do plgio, por outro. Ambos buscam solues para conter a apropriao indesejada e a pirataria de seus trabalhos pela Internet, cujo meio dilui o controle sobre as rotas, ou seja, de quem baixa ou sobe um arquivo. O contedo cultural torna-se de domnio pblico uma vez que cai na Internet.

    Mais uma dificuldade se soma. Em pases de carncias educativas mais acentuadas, desconhecem-se os direitos de propriedade intelectual ou faz-se mal uso deles. Resulta que, muitas vezes, o usurio desta propriedade no sabe que incide numa falta por violar os direitos de uso ou exercer alguma prtica que esteja proibida por lei.

    Geram-se, neste contexto em que se previne at o conhecimento e o pensamento de extravios, cises que no estavam previstas, uma vez que o leigo poder ser banido de sua tentativa de deixar de s-lo. O autor de contedos culturais, todavia, nem sempre ciente das exigncias de seu patrocinador, que se perpetua na tentativa de mercantilizao do esprito.

    A questo presente se desemaranhar mais pelo transcurso da tica e da sensatez que pela agonia de impulsos que tornam mais desiguais as oportunidades de acesso cultura.

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    17. De Jamaica ao continente americano

    ases hispano-americanos comemoram o bicentenrio de independncia do jugo de sua ex-metrpole ibrica (a Espanha). Cartazes mencionam a

    data histrica em vias e edifcios pblicos a fim de estimular a conscincia e reavivar os ideais de um continente digno e menos conflituoso.

    O prcer venezuelano Simn Bolvar tambm conhecido como Libertador terminou a redao da renomada Carta de Jamaica em Kingston em 6 de setembro de 1815 quando tinha 32 anos sob o ttulo espanhol Un caballero de esta isla e a verso inglesa A friend.

    A missiva no determina um nome a quem se destina, porm especula-se que tenha sido escrita como resposta carta do ingls Henry Cullen a fim de sugerir o apoio da Inglaterra, nao naval poderosa no sculo XIX, causa emancipadora hispano-americana. A ilha europeia atendeu a demanda, mas a contragosto do que Bolvar esperava, o que o moveu a confiar mais na aproximao do precursor Haiti no movimento independentista hispano-americano. O Haiti, que declarou sua independncia temporria em janeiro de 1804, contou com as figuras de Franois Dominique Toussaint Louverture e Jean-Jacques Dessalines.

    Bolvar exerceu funo militar e chegou a Kingston, colnia que se libertaria da Inglaterra em agosto de 1962, aps trs anos de luta a favor da independncia da Amrica Hispnica. Matutou sobre como nossa regio se inseriria autonomamente no mundo aps sua libertao do domnio dos espanhis destruidores, cometedores de barbaridades e crimes sanguinrios, e raa de exterminadores nos termos que Bolvar usou.

    O continente to vasto e imponente que Bolvar reconheceu ter conhecimentos limitados sobre ele, embora cite processos histricos e prceres das provncias do Rio da Prata, virreinato do Peru, Chile, Venezuela, Nova Granada (com a capital em Santa Fe ou na cidade que hoje Bogot, Colmbia), Panam, Guatemala, Mxico, Porto Rico e Cuba.

    Bolvar transmite incerteza e insegurana sobre o que ser do continente americano, que direito teremos e que governos nos regero. Porm ele deseja veementemente a unio entre os pases americanos para a

    P

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    formao da maior nao do mundo na Amrica e a prosperidade das artes e as cincias neste continente.

    Quase dois sculos frente do perodo em que Bolvar escreveu a carta nos poucos meses que passou na Jamaica, vemos que as preocupaes pouco mudaram. Seguimos sem conhecer nossos direitos e deveres e sem saber qual o prximo patrimnio que se entregar aos estrangeiros a despeito dos avanos democrticos. Nossa produo cultural e educativa finalmente tem recebido incentivos para construir naes mais integradas em vez de terrenos de processamento de mo-de-obra desqualificada.

    Mantinha-se convergncia de propsitos no incio do sculo XIX, quando lderes de naes hispano-americanas almejavam, acima de tudo, a autonomia poltica em relao s metrpoles. Estas controlavam o comrcio internacional e o trfico de escravos, e extraam impiedosamente nossas riquezas naturais.

    Bolvar manifestou a conscincia de que havia uma ordem mundial que os pases americanos pertenciam, mas que nos desfavorecia aos latino-americanos como supridores de insumos para o mercantilismo e o capitalismo incipiente que se desenvolvia noutro lugar. Da que a Carta de Jamaica tenha sido um apelo Inglaterra como estratgia para alterar os vetores de poder que nos enlaavam exclusivamente pennsula ibrica.

    A proposta internacionalista e latino-americanista do mencionado militar venezuelano foi inteligente e visionria. No entanto, Bolvar no contava com que o capitalismo ingls assumiria propores to avanadas para o padro da poca que a dependncia poltica cederia lugar dependncia econmica, e o colonialismo daria lugar ao neocolonialismo.

    A Inglaterra foi precisamente o pas onde ocorreram revolues industriais. O apelo de Bolvar foi ao encontro da necessidade inglesa. Para mencionar o caso brasileiro, a Inglaterra encetou a abertura dos portos ao comrcio com as naes amigas e ps fim exclusividade comercial com Portugal. A Inglaterra tambm proibiu o trfico de navios de escravos africanos, e endividou o Brasil com emprstimos financeiros de forma que tivemos que pagar por nossa independncia poltica com libras esterlinas.

    Este efeito no invalida, contudo, o teor da herana do Libertador, que fundamenta cartilhas educativas e programas de governo na Repblica

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    Bolivariana da Venezuela. O presidente Hugo Chvez Fras tomou os ideais de Bolvar como sustentculo de seu projeto de Socialismo do sculo XXI, que um enigma aos olhos dos que no entendem a crise por que passa o capitalismo e ainda creem que este a via nica de desenvolvimento.

    No temo nem negligencio o uso de fontes bibliogrficas antigas e de geraes anteriores quando a informao pertinente e vigente. Bolvar respondeu carta de Henry Cullen enquanto aquele esteve exilado na Jamaica, mas o contedo dirigiu-se a ns mesmos, que somos ferramentas desta transformao das naes americanas e de unio dos povos desta regio.

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    18. Acmulo de sedimentos

    omo no deixaria de ser novidade em cada ano que comea no Brasil, o ps-Carnaval de 2012 rendeu um acmulo de pautas. Durante esta

    festividade, diz-se que o pas no funciona. Desde o tema cambirio, que torna o Brasil ainda mais caro, at o lanamento de um filme-denncia dos crimes ambientais e contra a prpria espcie, a poltica o denominador comum.

    A despeito das promessas de renovao de fim de ano e da disposio declarada dos parlamentares para debater e votar com agilidade sobre propostas de leis (como a do novo Cdigo Florestal), maro o ms em que se acumulam as ideias, os projetos e as loucuras.

    As engrenagens do Brasil movimentam um carro alegrico no que respeita eficincia de decises e capacidade de renovar efetivamente o debate poltico, que se determina por polmicas deslocadas, rumores de vandalismos sociais e imagens descabidas.

    Temas como aborto e unio civil de pessoas do mesmo sexo polemizam os debates polticos e chamam ateno da imprensa. Estes debates ocorrem como se as grandes polticas de desenvolvimento houvessem encontrado um fator comum entre os diversos partidos polticos a ponto de suprimir os tpicos sobre educao, moradia, sade, segurana, etc.

    Ventos da crise de ultramar continuam soprando nestas terras, embora se declare que as obras da Copa do Mundo estejam garantidas independentemente da polmica dos direitos trabalhistas que inibem o direito de greve e outras aes que atrasariam sua concluso.

    O governo brasileiro anunciou novas medidas tributrias para frear a sobrevalorizao do real frente ao dlar estadunidense porque ela tem prejudicado as exportaes brasileiras. O Ministro da Fazenda Guido Mantega referiu-se ao episdio como guerra cambial, sobretudo em relao aos investidores de prazo curto e entrada de dlares no pas, enquanto a presidente Dilma Rousseff nomeou tsunami monetrio a prtica dos pases do Norte para contornar a crise financeira mundial. Esta a apreenso.

    C

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    No fim de fevereiro de 2012, o Ministrio da Educao anunciou o novo piso nacional de R$ 1.451 para professores, um ajuste de 22,22% com base em 40 horas semanais de trabalho, embora a medida no espante o fantasma das greves. O que segura o pndulo da balana da educao sem que ele quebre que os gestores pblicos continuam negligenciando o que precisam fazer e professores seguem acreditando que o aumento de salrios a panaceia para o avano da educao no pas. Por onde comea a revoluo conceitual da educao no Brasil? A distribuio fortuita de aperitivos e biscoitos amenizar a fome, mas no a extinguir. O desafio reside em reformular o modelo educativo a fim de fortalecer a educao primria gerando jovens mais crticos e professores bem preparados e motivados.

    Fala-se tambm das desigualdades regionais de acesso a educao de qualidade e tecnologias de comunicao e informao, que abrem fendas de conhecimento e saber. Alguns territrios da Federao chegam ao absurdo de hospedar relaes primitivas de tratamento humano como se a lei ali no existisse. Funcionam como terras de ningum ou onde vale a ameaa e a bala. Uma ndoa para o desenvolvimento de instituies modernas no Brasil.

    O lanamento, em fevereiro de 2012, do filme Toxic Amaznia, produzido por Vice Media Inc., narra o episdio de assassinato de dois lutadores da causa ambiental no Par e denuncia o descuido em direitos humanos e a inobservncia da lei nalgumas regies do Brasil. Nelas, a explorao madeireira e outras prticas abominadas por ambientalistas e por qualquer outro ser sensvel natureza satisfazem interesses econmicos insaciveis.

    O problema reflete, em parte, a dificuldade de integrar os estados da Federao num todo coerente sem ter que abrir mo de recursos excepcionais, como o treinamento e envio das Foras Armadas para foras-tarefa. Estas tm sido convocadas para vigilar as fronteiras com pases vizinhos e coibir o trfico de armas, cigarros, drogas, veculos, etc.

    Todo ms de maro, o pas costumeiramente abre seus olhos para o amontoamento de problemas e a paralisao de propostas polticas que, se no forem tratados a tempo, sero empurrados ao prximo ano como acmulo de sedimentos de um Brasil em obras.

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    19. Indianismo de Fausto Reinaga

    pensamento europeu sustentou Fausto Reinaga provm da mitologia grega, enquanto o do ndio tem bases cientficas e naturais,

    de relao mtua e respeitosa com a natureza. Contudo, poucos aceitariam que a autoridade da cincia no