BRUNO REGINA-O Ovo Da Serpente

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  • Unicamp DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS CURSO DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    TESE DE DOUTORADO

    OO OOvvoo ddaa SSeerrppeennttee Monoplio da Terra e Violncia na Nova Repblica

    Regina Angela Landim Bruno

    2002

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    REGINA ANGELA LANDIM BRUNO

    O OVO DA SERPENTE.

    MONOPLIO DA TERRA E VIOLNCIA NA NOVA REPBLICA

    Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada ao Departamento de Sociologia do

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob

    orientao da Profa. Maria de Nazareth Baudel Wanderley

    Este exemplar corresponde verso final da tese defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em ___/___/___. Banca Examinadora: Profa. Dra. Maria de Nazareth Baudel Wanderley (orientadora) Prof. Dr. Francisco de Oliveira Prof. Dr. Guilhermo Raul Rubem Prof. Dr. Octavio Ianni Profa. Dra. Regina Clia Reyes Novaes

    Maro 2002 Campinas, SP

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH UNICAMP

    Bruno, Regina Angela Landim. V p O ovo da serpente. Monoplio da terra e violncia na Nova

    Repblica / Regina Angela Landim Bruno. - - Campinas, SP: s. n. , 2002. Orientadora: Maria de Nazareth Baudel Wanderley Tese (doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Agricultura e Estado Brasil. 2. Proprietrios de terras Brasil 3. Empresas rurais 4. Brasil Poltica e Governo. I. Wanderley, Maria de Nazareth Baudel. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

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    Resumo

    O perodo da Nova Repblica, em especial o ano de 1985, parecia reunir elementos que poderiam, seno romper, pelo menos dar incio a um processo capaz de estabelecer novos limites ao monoplio fundirio. nos anos 80, no contexto da democratizao e do agravamento dos conflitos de terra, que a bandeira da reforma agrria ganha maior visibilidade. , tambm, quando irrompe um novo movimento de ocupaes de terra que, apesar de todas as dificuldades e impasses, gradativamente vai se afirmando como instrumento de presso em favor da democratizao da propriedade e da luta por direitos. No entanto, os acontecimentos que se produziram no ano de 1985 apontam o contrrio: o que se assistiu foi uma mobilizao patronal rural, sem precedentes na histria, contra as demandas de democratizao da propriedade e integrao dos trabalhadores rurais ao novo processo produtivo e ao exerccio da cidadania.

    O objetivo do nosso trabalho apresentar, tendo como referncia o debate na grande imprensa, uma reflexo sobre a nova identidade e a nova retrica patronal, que se constituram no bojo da reao dos grandes proprietrios e empresrios rurais em torno do debate sobre a reforma agrria da Nova Repblica e as lutas por terra. H um habitus social dos proprietrios e empresrios rurais intimamente ligados a nossa formao histrica e que amide se produzem e se reproduzem juntamente com as transformaes da sociedade brasileira. a juno de novas e velhas formas de agir e pensar, de permanncias e novidades, que ir compor a nova identidade patronal, contida na designao, ns, os produtores e empresrios rurais.

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    Abstract

    The Nova Repblica (New Republic) period, especially the year 1985, seemed to have elements that could, if not break, at least start a process of establishing new limits to the monopoly of land. Its in the 80s, in the context of democratization and of worsening of land conflicts that the claim on land reform became more visible. Its also when arose a new movement of land occupations that, despite all difficulties and deadlock, gradually became an instrument of pressure in behalf of the property democratization and of the struggle for rights. Nevertheless, the events of 1985 showed the opposite: there was a landowner mobilization, with no precedents in history, against the demands for land democratization and rural workers integration to the productive process and to the citizenship exercises.

    The purpose of this work is to present - having the debate in media as a reference - a reflection on this new identity and the new landowners rhetoric, that came out in the context of the great landowners and rural employers reaction to the debate on Nova Repblica land reform and to the struggle for land. There is a social habitus of landowners and rural employers intimately linked to our historical background and that often produces and reproduces itself with the changes of the Brazilian society at the same time. It is the link of new and old forms of acting and thinking, of continuities and novelties, that will constitute the landowner new identity, defined by the statement, We, the producers and rural employers.

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    Se quisermos compreender a linguagem, teremos de fingir nunca ter falado, submet-la a uma reduo sem a qual ela nos escaparia mais uma vez, reconduzindo-a quilo que ela nos significa, olh-la como os surdos olham aqueles que esto falando, comparar a arte da linguagem com as outras artes de expresso, tentar v-la como uma dessas artes mudas. possvel que o sentido da linguagem tenha um privilgio decisivo, mas tentando o paralelo que perceberemos aquilo que talvez o torne impossvel ao final. Comecemos por compreender que h uma linguagem tcita e que a pintura fala a seu modo.

    Merleau-Ponty Signos

    A importncia de Nhonh Gaita cresceu sobre o corpo da mulher que ele assassinou a facadas por adultrio. Uma aurola o acompanha, a aurola da terra, do cho da provncia. Suas fazendas esticavam-se tamanhas e to distantes, que s o avio satisfaz a sua vigilncia de dono. Possui packing-houses, fazendas de caar, fazendas de pescar, fazendas de criar, fazendas de cana, engenhos e moinhos, laranjas, laranjas, laranjas, jaboticabas, jaboticabas, jaboticabas, terras, terras, terras, dinheiro, dinheiro, dinheiro. Para ele foram feitas todas as estradas, todos os clubes, todas as Iracemas, todos os mdicos, (...) os capangas, os delegados de polcia, os jornais, os governos.(...) Passa escrituras, escrituras, escrituras, assina cheques, cheques, cheques...

    Oswald de Andrade Marco Zero II- Cho

    Haver injustia como haver morte Fernando Pessoa

    Obras completas

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    Agradecimentos

    Este trabalho o produto, parcial, de uma longa trajetria acadmica permeada por inmeras redefinies do objeto de estudo, interrupes e retomadas em torno de uma mesma problemtica: a questo agrria no Brasil. Ao longo desses anos, diversas pessoas e instituies contriburam para a minha formao acadmica ou colaboraram decisivamente na elaborao desta tese.

    Eduardo Diatay Bezerra de Menezes (Universidade Federal do Cear) ensinou-me, talvez sem o saber, a buscar sempre ampliar o campo de leitura, mesmo quando discordamos dos pressupostos do autor.

    Maurcio Vinhas de Queiroz e Brbara Freitag (Universidade de Braslia) foram decisivos na minha formao sociolgica. Maurcio incentivou-me a compreender a importncia dos conflitos agrrios que despontavam na mdia, apesar da censura poltica e Brbara iniciou-me nas obras de Marx.

    Posteriormente, a interlocuo acadmica com os professores e alunos do Institut des Hautes tudes de l'Amrique Latine - Paris III, em especial Jacques Chonchol e Michel Gutelman, acerca das experincias de reforma agrria na Amrica Latina ampliou o meu conhecimento sobre os impasses e as controvrsias da poltica de reforma agrria.

    Manuel da Conceio, lder campons no Maranho exilado na Sua, foi seguramente uma figura marcante em minha trajetria ao relatar a sua experincia de vida e das lutas por terra no Brasil.

    Desse perodo restou-me a certeza de que a questo agrria uma questo essencialmente poltica e de que o conhecimento um processo coletivo, social e histrico, mesmo quando situado no quadro particular de uma sociedade e de uma poca.

    Na Unicamp, os seminrios do doutorado com professores Maria de Nazareth Baudel Wanderley, Roberto Cardoso de Oliveira, Vilmar Faria, Maria da Conceio D'Incao, Carlos Brandro e Marilena Chau, assim como a discusso com os colegas de curso, Leonilde, Maria Antonieta, Alosio, Carlos, Cremilda e Dalcy, abriram-me novas perspectivas metodolgicas e tericas importantes.

    Maria de Nazareth Baudel Wanderley, minha orientadora e amiga, alm do respaldo institucional, incentivou-me e problematizou inmeras das questes aqui enunciadas, em especial a precedncia da propriedade fundiria no Brasil e a vitalidade das classes patronais no campo, chamando a ateno para determinados recortes sociais e ideolgicos dessa classe acuada, mas ainda socialmente muito forte e capaz de falar.

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    Com Vladimir Palmeira e Leonilde Medeiros (CPDA) mantive um dilogo rico e instigante que deixou fortes marcas na construo desta tese.

    Vladimir convenceu-me da importncia de saber ouvir as classes e grupos dominantes como uma das dimenses constitutivas do pensamento crtico e da compreenso da sociedade, e mostrou-me a necessidade de formular com mais cuidado a questo do atraso, sobretudo a idia de que o atraso no necessariamente se constitui em um anacronismo, ao contrrio, existem situaes em que o moderno perpetua formas de atraso. Por exemplo, diz ele, Pedro, o Grande, foi o principal incentivador do desenvolvimento da manufatura na Rssia, mas, para isso, no s estendeu a servido ao progresso industrial, como a fortaleceu e recorreu a expresses e smbolos identificados com o atraso, mesmo quando queria expressar novas concepes e novas idias. A grande diferena que Pedro o Grande, apostava na mudana, queria a reforma e, nesse sentido, travou uma luta cultural contra o atraso.

    Com Leonilde, amiga de todas as horas e minha principal interlocutora na reflexo sociolgica, mantive (e mantenho) um dilogo constante, cotidiano, sobre as minhas (e nossas) descobertas e impasses, sem falar na sua rica e acurada anlise a respeito da questo agrria, do sindicalismo rural e dos movimentos sociais no campo. A sua contribuio encontra-se registrada na elaborao deste trabalho, em especial a idia de que os processos sociais so relacionais.

    Com Regina Novaes Reyes (ICFS/UFRJ) e Nelson Giordano Delgado (CPDA) tive discusses substanciais que me levaram a rever meus temas e recortes. Regina discutiu comigo o projeto inicial e fez-me ver a importncia da noo de habitus como explicativa dos processos sociais em questo, auxiliou-me na definio do objeto e mostrou-me o quanto era importante a minha tentativa de criao de uma nova fonte: a grande imprensa. Tanto Vladimir como Leonilde e Regina me ajudaram a sistematizar a idia de uma imprensa como campo de disputa, poltica e de mercado.

    Nelson, sempre marcando tempos e fronteiras quando eu os ultrapassava, tambm auxiliou-me na discusso sobre o atraso e o moderno, alm de ajudar-me na sistematizao inicial dos captulos e convencer-me de que eu deveria abandonar a espera de um momento ideal e incorporar a tese ao meu cotidiano.

    Ins Cabanilha de Souza, doutoranda do CPDA e co-responsvel pela pesquisa sobre Sistemas de Gerenciamento da Reforma Agrria - Siger (MDA-FAO/Incra) estimulou-me e acompanhou de perto a elaborao desta tese, seja discutindo algumas questes como, por exemplo, o clientelismo no Brasil, seja assumindo, nesta fase final (juntamente com Marcelo Min Dias, doutorando do CPDA), a coordenao da pesquisa.

    Luciano Padro, Marcelo Min e Ins Cabanilha, doutorandos do CPDA, alm de apoio e da amizade, colaboraram no trabalho final de sistematizao, reviso e impresso desta verso.

    O CPDA (professores e alunos), apesar de todas as dificuldades advindas da imensa precariedade do ensino universitrio no Brasil, seguramente um espao por excelncia de interlocuo acadmica. Roberto Moreira ajudou-me a compreender o Norbert Elias e o debate terico a renda da terra. Ana Clia Castro, sempre generosa, possibilitou-me o acesso aos presidentes das associaes patronais e por ser uma

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    economista interdisciplinar, forneceu-me alguns escritos sobre habitus. John Wilkinson, em um determinado momento, fez-me ver que aos olhos dos proprietrios de terra a reforma agrria da Nova Repblica significava a reedio do debate e do movimento pelas reformas de base do fim dos anos 50 e 60. Renato Maluf, esteve presente em vrios momentos da elaborao deste trabalho, seja disponibilizando material sobre o Oeste Catarinense, seja comentando sobre o empresariado brasileiro e partilhou da minha eterna indagao acerca da natureza do atraso e do moderno.

    No decorrer da dcada de 80, vrias pessoas contriburam para a minha reflexo sobre a Unio Democrtica Ruralista (UDR) quando ainda no tnhamos clareza de seus contornos e desdobramentos, e o fizeram, seja disponibilizando material, seja apoiando-me ou apontando-me alguns aspectos importantes que no os havia percebido. Nesse sentido, quero agradecer ao prof. Jos de Souza Martins (USP) seguramente o meu principal interlocutor na reflexo sobre a questo patronal no Brasil, Moacir Palmeira (Museu Nacional), Zander Navarro (UFRGS), Ivan Ribeiro (in memoriam), Maria Emlia Pacheco (FASE), Neide Esterci (IFCS/UFRJ), Ligia Sigaud (Museu Nacional), Vilma Figueiredo (UnB), o Jornal dos Sem Terra, o Ncleo de Altos Estudos da Amaznia da Universidade Federal do Par (NAEA), Clia Tolentino (Unesp), Leda Benvolo de Castro (UFMG) e Nair Costa Nuls (UFMG).

    Beneficiei-me ainda, nos anos 80, das discusses coletivas do Programa Movimento Campones e Igrejas do Centro Ecumnico de Documentao e Informao (Cedi), do qual faziam parte Aurlio Vianna Jnior, Clara de Assis Evangelista, Leonilde Srvolo de Medeiros, Luciano Nunes Padro, Maria Ceclia Irio, Mariana Pantoja Franco, Neide Esterci, Regina Novaes e Roberto Jos Novaes, e dos debates do Grupo de Estudos sobre Movimentos Sociais no Campo, do Projeto de Intercmbio de Pesquisa Social e Agricultura (PIPSA).

    Na atividade de pesquisa contei com o apoio institucional da Anpocs - Dotao Anpocs/CNPq . Posteriormente, fui beneficiada com os recursos do Programa Ensino e Pesquisa sobre a Reforma do Estado (Capes) e com os recursos do Programa Nacional de Ncleos de Excelncia - Pronex (MCT). Para o levantamento e sistematizao dos dados colhidos, contei, em momentos diferenciados, com a colaborao de Suzana Pessoa Soares, Clara de Assis Evangelista, Valria Rodrigues, Ana Milhomem (PIBIC), Ins Cabanilha e Roseli Bueno de Andrade.

    O afeto, a solidariedade e o incentivo de inmeros amigos e amigas - to importante quanto as contribuies tericas - foram, para mim, fundamentais.

    Gostaria de agradecer de corao minha filha Isabel (Bel) Bruno Palmeira, a meus pais Roberto Bruno (in memorian) e Maria Lgia Landim Bruno e minha famlia.

    Agradeo tambm a Vladimir Palmeira, Marcelo Werneck, Pedro cinema Duarte, Glria Maria Moraes, Maria Helena Cerqueira, Ivone Costa de Souza, Isabel Newlands, Maria Clara Abalo Ferraz, Sonia Cruz, Nelson Delgado, Ins Cabanilha, Leonilde Medeiros, Raimundo Santos, Silvana de Paula, Luciano Nunes Padro, Marcelo Min Dias, Doraci Cabanilha, Roseli Bueno de Andrade.

    Minha dvida pessoal para com as amigas de sempre e professoras Ana Maria Fernandes e Fernanda da Fonseca Sobral, ambas da UnB, que se empenharam na

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    obteno da minha documentao de mestrado, necessria minha reintegrao Unicamp.

    Foi no convvio privilegiado com estas pessoas que consegui elaborar este trabalho.

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    Sumrio

    Introduo 12 Captulo 1- Abrindo velhas feridas 36 1.1 Rumo democracia 36 1.2 O discurso oficial 50 1.3 Uma guilhotina armada sobre os produtores rurais 50 1.4 Um terreno minado 65 Captulo 2- Comeou a grita 73 2.1 Em busca de uma soluo sem traumas 75 2.2 A grita 78

    2.2.1 Pela preservao da atividade produtiva 88 2.2.2 A disputa pela representao patronal 91

    2.3 A retaguarda da grande propriedade: polticos e assessores presidenciais 95 2.4 Volta Idade Mdia 102

    2.4.1 Os modernos fazendeiros desbravadores ou Miguel Arcamundo, o ignorado? 111

    Captulo 3- Propriedade e violncia 123 3.1 Uma barraca de lona preta 124 3.2 Se o problema imolar vidas, que comecemos logo 132

    3.2.1 A desapropriao induz invaso! 141 3.2.2 Essa coisa de reforma agrria comunismo 143 3.2.3 Quem so os agitadores do campo? 145 3.2.4 A violncia no campo 147

    3.3 Nenhuma violao ser tolerada 155 3.3.1 No h pontos intocveis no PNRA 157 3.3.2 Paz no campo 162 3.3.3 O medo das conseqncias trgicas 164

    3.4 O poder da imprensa 167 3.4.1 A vez dos leitores 168 3.4.1.1 Outrora ...e sempre 176 3.4.1.2 Acrescentar!, nunca substituir 186 3.4.1.3 Reforma agrria, uma questo poltica 200

    3.4.2 O campo jornalstico: diversidade e disputas 211 Consideraes finais 228 Bibliografia 238

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    INTRODUO

    A grande expanso capitalista no campo nos ltimos vinte anos foi, tambm, a expanso de contradies, semeou a empresa, a fazenda, a grilagem, a injustia, a

    brutalidade. E semeou, tambm, a resistncia, semeou novas significaes para velhos atos, novos atos para velhas significaes, novos atos e novas significaes. Encheu a

    terra de mistrio, de enigmas e, tambm, de desvendamentos, de descobertas.

    Jos de Souza Martins

    Existem determinados momentos na histria que parecem expressar por si um conjunto de acontecimentos redefinidores de processos sociais mais abrangentes. Assemelham-se a situaes em que vrios fatos se entrelaam enunciando o prolongamento de processos sociais seculares ou indicando novos impasses e exigindo novas direes (Sahlins,1990). O perodo da Nova Repblica, em especial o ano de 1985, poderia ser considerado como um exemplo desses momentos emblemticos que expressam questes histricas maiores.

    nos anos 80 que a bandeira da reforma agrria volta ordem do dia, ganha maior visibilidade e se mantm na cena poltica at hoje (Palmeira,1994). , tambm, quando irrompe um novo movimento de ocupao de terras que, apesar de todas as dificuldades e impasses, gradativamente vai se afirmando como instrumento de presso em favor da democratizao da propriedade da terra e da luta por direitos. ainda nesse perodo que tem incio a constituio de novos pressupostos sobre a questo agrria, marcando, assim, o fim de uma viso de reforma agrria que inspirou, por 20 anos, os movimentos sociais no campo e as vrias verses do pensamento reformista no Brasil (DIncao,1990). Os anos 80 tambm prenunciam o esgotamento da poltica de crdito e de incentivos fiscais implementada durante os governos militares um dos pilares do modelo de modernizao da agricultura.

    Todos esses fatos e a prpria conjuntura de transio poltica pareciam reunir elementos que poderiam, seno romper, pelo menos dar incio a um processo capaz de estabelecer novos limites ao monoplio fundirio e fora poltica da grande propriedade no Brasil. No entanto, os acontecimentos que se produziram no ano de 1985, sob o governo da Nova Repblica, apontam o contrrio: o que se assistiu foi uma mobilizao patronal rural contra as demandas de democratizao da propriedade da terra e as novas formas de integrao dos trabalhadores rurais ao processo produtivo e ao exerccio da cidadania. Organizados como classe, grandes proprietrios de terra e empresrios rurais, em especial das regies modernizadas do Sul e do Sudeste, reagiram contra qualquer tentativa de democratizao da propriedade da terra, fazendo ruir as

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    possveis alternativas abertas com a transio e a mobilizao dos trabalhadores rurais por uma reforma agrria.

    A conjuntura de democratizao e de transio poltica jogou um papel fundamental na reao patronal e na constituio de um campo de conflito agrrio. O processo de transio se, de um lado, fez aflorar a bandeira da reforma agrria e imprimiu uma nova feio s lutas por terra, de outro, contribuiu para a radicalidade da reao patronal rural e potencializou o medo dos grandes proprietrios quanto possvel efetividade de uma reforma agrria no Brasil. Os grandes proprietrios de terra esperavam que a defesa da reforma agrria por parte da Aliana Democrtica e da Nova Repblica permanecesse s retrica, como declarou Flvio Brito da Confederao Nacional da Agricultura (CNA) na imprensa, mas se surpreenderam com a criao do Ministrio Especial da Reforma Agrria (Mirad), a elaborao de uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA), da qual participaram a Confederao Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contag) e setores da Igreja Progressista, e as aes de ocupao dos trabalhadores rurais sem terra. Rapidamente, disseminou-se nas associaes e nos sindicatos patronais a idia de que, no contexto da democratizao, seria possvel uma profunda e radical transformao da estrutura fundiria. Ao mesmo tempo, difundia-se a certeza da inevitabilidade de uma verdadeira guerra no campo devido, sobretudo, revitalizao do movimento de ocupaes, crescente importncia das oposies sindicais que comearam a se articular atravs da Central nica dos Trabalhadores (CUT) e possvel radicalizao do movimento sindical dos trabalhadores rurais reconhecido, na poca, como a principal fora social organizada no campo.

    Aos olhos dos grandes proprietrios de terra e empresrios rurais, todo esse processo instaurado com a Nova Repblica significava a reedio do debate e do movimento pelas reformas de base do fim dos anos 50 e incio dos 60. Aps 21 anos de relativa tranqilidade, o fantasma da reforma agrria, mais uma vez, retomava a cena poltica. Era imperativo, pois, vir a pblico para fazer prevalecer seus interesses e organizar-se para enfrentar a nova conjuntura que se anunciava. E, em meio reao patronal, progressivamente vai se conformando e ganhando maior visibilidade, no cenrio poltico nacional e na grande imprensa, uma nova identidade patronal rural, uma nova retrica de legitimao e de dominao assentada na complementaridade de prticas polticas e de smbolos antigos e novos, atrasados e modernos.

    O objetivo do nosso trabalho apresentar, tendo como referncia o ano de 1985, uma reflexo sobre a nova identidade patronal que se constituiu a partir da mobilizao dos grandes proprietrios de terras e empresrios rurais em torno do debate sobre a reforma agrria da Nova Repblica e a luta pela terra. a juno de novas e velhas formas de agir e pensar, de permanncias e novidades, que ir compor a nova identidade dos grandes proprietrios de terras e empresrios rurais, contida na designao ns, os produtores e empresrios rurais modernos e racionais.

    Expressando o atraso temos, sobretudo, a concepo de propriedade como direito natural e ilimitado e a violncia como prtica de classe. Simbolizando os novos argumentos e prticas, destacam-se a defesa dos modernos padres de rentabilidade e competitividade, a necessidade de uma viso sistmica do desenvolvimento, o uso do lobby e o imperativo da gesto e da qualificao empresarial como condio de reproduo social e como prtica poltica.

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    O peculiar da sociedade brasileira, como de outras sociedades, est em sua prpria histria, diz-nos Jos de Souza Martins, para quem a nossa sociedade marcada pela persistncia do passado que se esconde, e s vezes se esconde mal, por trs das aparncias do moderno (Martins,1994:11). Segundo o autor:

    H, no contemporneo, a presena viva e ativa de estruturas fundamentais do passado. De modo que os fatos de hoje acabam se mostrando como fatos densamente constitudos pela persistncia de limitaes e constrangimentos histricos que definem o alcance restrito das condutas transformadoras (...). So estruturas, instituies, concepes e valores enraizados em relaes sociais que tinham pleno sentido no passado, e que, de certo modo, e s de certo modo, ganham vida prpria. (...) sua mediao que freia o processo histrico e o torna lento (idem:14).

    Entretanto, avalia Martins, o atraso no um mero resqucio que o desenvolvimento supera, mas um processo social que amide se renova a partir de relaes sociais modernas (Martins,1986a). Ou seja, ele produzido e reproduzido pelas prprias condies do desenvolvimento. Nesse sentido, ele estruturante, isto , possui um certo significado e tem uma sustentao social e econmica (Fernandes,1981:17). Inmeros foram os processos sociais que, ao longo do tempo, realimentaram ou foram realimentados pela contemporaneidade do atraso e do moderno. So desafios histricos que encadeiam o presente e o passado numa mesma realidade. So processos que tambm conformam e refletem um habitus e a instituio de determinados perfis humanos prprios. E, ao mesmo tempo, transformam a reflexo sobre a formao e desenvolvimento da sociedade brasileira num tema crucial e polmico. Diz Florestan Fernandes,

    O que ou no histrico determina-se ao nvel do significado ou da importncia que certa ocorrncia (ao, processo, acontecimento, etc.) possua para dada coletividade. O histrico tanto se confunde com o que varia, quanto com o que se repete, impondo-se que se estabeleam como essenciais as polarizaes dinmicas e que orientem o comportamento individual ou coletivo dos atores. (...) Sob este aspecto, o elemento crucial vem a ser o padro de civilizao que se pretendeu absorver e expandir no Brasil (Fernandes, 2000:1509-1510).

    Juntamente com a expanso do grande capital no campo e as transformaes da sociedade brasileira, os grandes proprietrios de terra e empresrios rurais recorreram e atualizaram continuamente o atraso como elemento conformador de sua linguagem e de sua prtica poltica. As modificaes impressas na sociedade propiciaram a emergncia de novos atores econmicos e sociais que, longe de eliminar de vez ou de tornar anacrnicas velhas estruturas e processos, a eles se imbricam. Novos sujeitos polticos e novos sistemas de dominao e de legitimidade vo sendo construdos concomitantemente com a produo e reproduo de velhos sistemas, atores e estruturas.

    Ainda preexiste, como um dos fundamentos da defesa do monoplio fundirio, uma determinada concepo de propriedade que permeia, de forma marcante, as argumentaes e aes dos grandes proprietrios de terras e empresrios rurais a noo de propriedade como direito natural, absoluto , considerada pelas elites agrrias como sendo a forma antiga e segura de se criar riqueza e se obter reconhecimento poltico, status e prestgio estvel. Direito incontestvel, algo naturalmente herdado e

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    adquirido pelo trabalho, da grande propriedade fundiria teria partido a determinao dos valores sociais da sociedade brasileira, em especial a respeitabilidade, a audcia, a honradez, a bravura, a moral e o destemor para enfrentar a adversidade. So atributos que, em certo sentido, carregam consigo e atualizam aquilo que Oliveira Viana denomina os elementos ideolgicos do domnio (Oliveira Viana, 2000).

    A defesa e o exerccio do direito de propriedade com se no houvesse limites instituem uma determinada leitura sobre a funo social da terra, fundam uma viso elitista e excludente dos trabalhadores rurais e priorizam o papel do Estado como o guardio dos interesses patronais rurais. A terra no concebida pelos grandes proprietrios como um bem limitado e no reprodutvel. H uma imensa dificuldade em se reconhecer a dimenso social da propriedade. Aos seus olhos, as medidas de democratizao da propriedade assentadas no interesse social perdem seu fundamento societal e passam a ser vistas como uma injustia. Nesse sentido, h uma transfigurao da noo de uso social da terra, em que o conceito de produtivo assume novas e inusitadas caractersticas. Despido de sua dimenso social, o direito propriedade da terra associa-se violncia e os trabalhadores rurais sem terra so vistos como meros assaltantes de banco1.

    Essa concepo latifundista da propriedade (Martins, 2000), que desponta como um dos princpios orientadores da nova identidade patronal rural e se apresenta como o elo de solidariedade dos grandes proprietrios de terra, congrega, poltica, social e simbolicamente, o conjunto das classes e grupos dominantes no campo. Ser grande proprietrio de terras rene uma multiplicidade de significados que unifica todos, apresenta-se como um dos elementos estruturantes dos costumes e contribui para o resgate do passado ou o refazer a memria como restaurao das tradies, continuamente renovadas. Tradies inventadas, como diria Hobsbawn e Ranger, e surpreendentemente atualizadas (Hobsbawn e Ranger,1984).

    Associada noo de propriedade como direito absoluto, vimos a defesa da violncia explcita como prtica de classe. Pegar em armas para defender o monoplio fundirio no uma novidade e sempre fez parte da prtica da grande propriedade fundiria no Brasil. No imaginrio social, o grande proprietrio de terras historicamente representado com uma arma na cintura, milcias e capangas, e as mortes e os assassinatos no campo amide funcionaram como uma das marcas da luta pela terra. O recurso violncia se baseia, sobretudo, em uma determinada concepo de mundo, que pouco se diferencia daquilo que Faoro denominou como sendo o rstico militarismo e a caudilhagem da conquista de seus ancestrais, os senhores territoriais (Faoro,1981:17) e Fernandes caracterizou como a violncia como tcnica de controle do escravo (Fernandes, 1981:19). De uma classe social onde a honra e a violncia dos saques se confundem (Mercadante, 1973:24).

    Mas, ao longo dos embates em torno da reforma agrria e intimamente associados s velhas palavras e antigas prticas coletivas, vo se conformando, nos anos 80, novos argumentos e novas prticas, assentados na necessidade de preservao e aperfeioamento do patamar produtivo ento alcanado e no imperativo de uma maior rentabilidade.

    1 Na realidade so considerados piores do que assaltantes de banco. Estes, pelo menos, levam o dinheiro mas no levam o banco. Assemelhar-se-iam mais a ladres de cavalo.

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    Contudo, o que imprime um novo significado linguagem e prtica patronal o fato de que, diferentemente de momentos anteriores, se est argumentando a partir de uma agricultura modernizada e integrada, que instituiu a grande empresa capitalista rural e agroindustrial e estabeleceu um novo patamar produtivo e tecnolgico no campo. Apesar de um processo incompleto, com base nas transformaes da agricultura e da sociedade que se vai configurando uma nova maneira de pensar um conjunto de questes relativas problemtica fundiria e auto-identificao dos grandes proprietrios de terra e empresrios rurais no Brasil. Uma nova matriz discursiva, capaz de reordenar as argumentaes ou articul-las de um outro modo, logrando que os indivduos e as categorias sociais dominantes no campo se conheam e se reconheam na nova linguagem e participem da construo de uma nova identidade de classe (Sader,1988).

    A realidade de uma agricultura enfim modernizada, como diria um de seus principais porta-vozes, contribuiu para conferir uma nova significao e legitimidade ao discurso patronal sobre a questo agrria, sobretudo porque j no mais se podia responsabilizar o grande proprietrio de terras pelo atraso da sociedade brasileira um dos principais supostos dos anos 60. Para as elites agrrias, o latifndio finalmente desvencilhava-se da camisa-de-fora, que, durante dcadas, o considerara obstculo estrutural modernizao e industrializao no Brasil.

    Em nome de uma agricultura modernizada, a reforma agrria considerada um velho assunto ideolgico, sem nenhuma fundamentao econmica e terica condizente com a realidade. A reforma agrria encarada como radical porque, no contexto da modernizao e do desenvolvimento, representa uma ameaa atividade produtiva e ao imenso esforo dos empresrios e produtores rurais em montar uma estrutura de abastecimento, gerar divisas para o pas e criar milhes de empregos. A denncia da penalizao da agricultura desponta, porm, modificada em seus argumentos e se orientando, acima de tudo, para as exigncias da internacionalizao do capital e a urgncia de uma maior competitividade para fazer face globalizao. A reiterao da vocao agrcola do Brasil, antes defendida como o destino natural do pas, passa a ter como base o primado da disponibilidade de recursos naturais no novo reordenamento entre as naes.

    J a identidade ns, os produtores e empresrios rurais nos remete a algumas referncias bsicas. Em primeiro lugar, expressa, de fato, novas necessidades advindas da modernizao da agricultura. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que o comportamento pblico e o coletivo dos grandes proprietrios de terra e de seus porta-vozes so reveladores das mudanas que afetaram o meio rural e a sociedade, assim como do modo como essas mudanas foram tratadas. Em segundo, apesar de fortalecidas pela modernizao da agricultura, as elites agrrias esto rebatendo a idia do improdutivo e negando a imagem da improdutividade e da especulao que o movimento social procura lhes atribuir. O discurso do produtor e empresrio rural , tambm, para se legitimar como empresrio e capitalista, no sentido mais completo do termo, porque se trata, no terreno poltico, de eliminar a imagem negativa da ineficincia que a marca dos grandes proprietrios de terras no Brasil. H uma terceira referncia muito importante, pois por meio dela que os grandes proprietrios fundirios se contrapem aos que esto demandando terra e desqualificam os trabalhadores rurais: a de que eles, como produtores e empresrios, so dotados do saber e do capital.

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    Os anos 80 despontam como um outro momento da desqualificao dos trabalhadores rurais. No mais a imagem do preguioso ou do jeca-tatu (Martins, 1981; Trindade, 1999) 2 que est em questo, e, sim, a do incapaz de apreender e usar os novos recursos tecnolgicos, produto da modernizao da agricultura, que o momento da acumulao exige de todos (Medeiros,1999). A imagem a do trabalhador que no tem a qualificao necessria. Sem saber e sem capital lhe restaria a alternativa de trabalhar para os outros. A desqualificao vem compensada com o velho e conhecido discurso dos benefcios sociais, direitos e formas de integrao, associado ao novo propsito de transform-los em gestores de seus prprios negcios. Alm do mais, a presena de um amplo movimento de ocupaes de terras sinalizando, politicamente, para a emergncia de novas formas de organizao no campo, fez com que outras designaes fossem incorporadas imagem do trabalhadores rurais. Alm de preguiosos e incapazes, eles tambm so considerados gananciosos e especuladores, interessados to-somente no lucro fcil.

    Ao lado da construo de uma nova linguagem de classe, novos expedientes de ao poltica so criados, por exemplo, o uso do lobby e do marketing, a formao de uma assessoria de experts em comunicao e propaganda e a utilizao da imprensa como palco constante e privilegiado de produo de smbolos de classes.

    Permanece, contudo, a defesa da violncia explcita como direito histrico da classe, ao mesmo tempo em que se argumenta ser ela um problema inerente ao mundo moderno. A defesa da violncia num contexto histrico em que ela condenada socialmente teve como recurso para justific-la o direito de propriedade existente no Cdigo Civil.

    A nova retrica patronal dos anos 80 significou, tambm, uma tentativa de redefinio das relaes das classes e grupos dominantes no campo entre si, com o Estado e a busca de novos espaos na sociedade, num momento em que a transio e suas possveis alternativas se lhes afiguravam como uma das principais questes. H, ainda, uma luta por uma representao pblica e legtima desses setores sociais. Por sua vez, no mais o discurso puro e simples da defesa da propriedade latifundista da terra em si, e, sim, da grande propriedade parte constitutiva dos complexos agroindustriais, situando-se, portanto, em um contexto mais amplo que a justificaria.

    Existem, igualmente, maior complexidade no tecido social e uma nova configurao das estruturas de classe no campo, expressas no s pela emergncia de novas elites agrrias (convivendo com as velhas elites) e ampliao e diversificao dos espaos de interlocuo e de representao patronal, mas tambm pela existncia, no Brasil, de uma burguesia agrria moderna, consolidada e estabelecida base e smbolo de um modelo de modernizao concentrador e excludente. Uma burguesia agrria,

    2 Representao caricatural do trabalhador da rea rural brasileira, o jeca-tatu se inscreve entre os mais expressivos tipos criados em nossa literatura, sobretudo nos anos 50 e foi objeto de intenso debate na imprensa. Questionava-se a importncia , convenincia e abrangncia do caboclo acocorado e indolente retratado inicialmente por Monteiro Lobato. Posteriormente, do contato de Monteiro Lobato com as teses do movimento de saneamento rural, cristalizou-se a idia de um jeca anemido, doente, mas capaz de se regenerar com o auxlio da cincia (Trindade,1999:134). Euclides da Cunha oscila em apresent-lo Quasmodo e Hrcules, entre a altivez do sertanejo e a permanncia da imagem da preguia a raiz dos vcios da terra, fruto da bebedice, parasita, piolho da terra (Trindade,1999: 137).

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    renovada e ampliada pelas polticas de incentivos fiscais do governo militar (Martins, 1997:viii).

    Nesse sentido, possvel falarmos de uma nova gerao poltica no campo, gestada, ao longo do processo de modernizao da agricultura, em especial no interior das associaes por produto e multiproduto, dos sindicatos patronais e no cooperativismo empresarial. So lideranas que obviamente no tiveram expresso poltica nos anos 60 e que na conjuntura dos anos 80 tm o poder de aglutinar, em defesa do monoplio da terra, tanto os setores mais tradicionais que no organizam a sua atividade econmica com base em uma pauta racional, moderna, de valores e de condutas (Martins, 1986a:123), como as categorias sociais ligadas agroindstria e s grandes cooperativas empresariais. Abrigam-se nessa nova identidade patronal os grandes proprietrios de terras e empresrios rurais; as grandes cooperativas empresariais; inmeros setores a jusante e a montante das cadeias agroindustriais, em especial os fornecedores de insumos e implementos agrcolas; cafeicultores e usineiros; empresas de reflorestamento, produtores de cacau e sojicultores. Figuras como os Lunardelli, os Bueno Vidigal, identificados pela imprensa como empresrios investidores com interesses agrrios no sul do Par, os Almeida Prado, os Cerqueira Csar, os Toledo Pizza e os grandes pecuaristas. Estes ltimos, historicamente considerados a expresso do atraso e da improdutividade, mas que nos 80 atualizaram o seu discurso e despontaram como promotores do desenvolvimento ecologicamente equilibrado e da competitividade ecolgica empresarial.

    Uma nova gerao poltica no campo, muitas vezes moderna pela tecnologia, porm ainda atrasada na concepo de propriedade, que reorganiza novos smbolos e prticas, ao mesmo tempo em que atualiza velhos argumentos e antigas formas de agir. Uma gerao, como diria Florestan Fernandes, portadora de processos sociais que o passado implica e particularmente empenhada em manter e em renovar ou modificar para melhor manter (Fernandes,1981:17).

    , especialmente, com base nessa nova retrica de legitimidade que as elites agrrias, em 1985 e nos anos subseqentes, detiveram a iniciativa poltica e a ofensiva, estabelecendo, assim, os parmetros do debate sobre a reforma agrria ao exigirem a intocabilidade da propriedade produtiva e o respeito a quem est produzindo.

    Em meu trabalho, pretendo analisar como determinadas idias, linguagens e prticas dos grandes proprietrios de terra e de seus porta-vozes tornam-se argumentos e transformam-se em libis de classe e qual o papel da imprensa nesse processo. Nesse sentido, gostaria de apreender como os grandes proprietrios de terra e seus porta-vozes interpretam, interpelam e influem nos acontecimentos do perodo; entender a forma pela qual os argumentos so construdos e utilizados; e ver como se d a relao entre elites agrrias e os demais grupos sociais e o Estado.

    A tica mais geral sob a qual desenvolvo o trabalho a de que a reao patronal dos anos 80 contribuiu para a constituio de nova identidade patronal, que pode ser lida como um momento do processo de formao de classes. Ou seja, envolve mediaes, contradies, conflitos e transformaes. A minha hiptese central a idia de que, nos anos 80, a reao dos grandes proprietrios de terra e empresrios rurais ao PNRA e s lutas por terra foi um momento por excelncia do processo de reproduo

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    das classes e grupos dominantes no campo e de renovao de suas condies de explorao e dominao.

    Poderamos nos perguntar at que ponto possvel pensarmos em classes sociais. Certamente, nem todas as aes coletivas dos grandes proprietrios expressam momentos de construo da classe, mas difcil entendermos os acontecimentos de meados dos anos 80 sem o recurso reflexo sobre a categoria classe social. Em Marx, sobretudo em seus escritos histricos, podem ser encontrados os suportes bsicos da noo de classe como processo histrico, produto de experincias partilhadas, das relaes antagnicas e de seus movimentos de produo e de reproduo. Marx, ao se debruar sobre as experincias revolucionrias de 1848, devido, talvez, sua grande sensibilidade e preocupao em entender a essncia para alm das aparncias, consegue exceder-se e romper seus prprios pressupostos, relativizando, assim, a centralidade da luta de classes como explicativa e definidora do conjunto dos processos sociais, e no reduzindo os acontecimentos s determinaes econmicas fundadas nas relaes de produo.

    H, tambm, um outro momento, igualmente importante, de sua reflexo sobre a diviso da sociedade e sua estruturao em classes. Na Ideologia Alem, Marx no s opera com a noo de classe como processo histrico e relacional (logo dessubstancializada e contextualizada) como tambm desenvolve as idias de necessidade, determinao e liberdade como fundamentos da concepo de uma histria aberta que se auto-estrutura. A estrutura estabelece a necessidade da determinao e, ao se reproduzir, a de libertao. Ou seja, as estruturas so dinmicas, e o carter antagnico dos interesses a base da possibilidade de transformao e produo das classes (Oliveira, 1987).

    Posteriormente, Thompson e outros autores (Thompson, 1987; Hobsbawn, 1987; Bourdieu, 1983), dialogando com o pensamento de Marx e com a teorizao de Gramsci sobre a poltica como uma dimenso essencial do movimento histrico, recuperaram a noo de classes sociais como processo histrico. De um modo geral, eles defendem que as dimenses simblicas e polticas tambm podem ser entendidas luz da anlise sobre as classes sociais. Enquanto Bourdieu procura pr em relao a objetividade da infra-estrutura e a subjetividade de suas representaes, Thompson evidencia o peso da livre disposio dos homens para agir numa dada situao histrica3:

    Por classe, entendo um fenmeno histrico, que unifica uma srie de acontecimentos dspares e aparentemente desconectados, tanto na matria-prima da experincia como na conscincia. No vejo a classe como uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre afetivamente (e cuja ocorrncia pode ser demonstrada) nas relaes humanas. (...) A classe definida pelos homens enquanto vivem sua prpria histria e, ao final, esta sua nica definio (Thompson,1987:9).

    3 Uma das crticas mais instigantes e ricas ao pensamento de Thompson a de Perry Anderson em seus artigos para a New Left Revew. Segundo o autor, a dificuldade fundamental da anlise de Thompson sobre as classes sociais a nfase na auto-construo das classes pelos indivduos, em detrimento das condies que lhes so objetivamente dadas. Em ltima anlise, o lugar da vontade na explicao dos processos histricos.

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    Thompson, ao criticar a noo de classe como uma categoria esttica (um dos traos, segundo ele, da tradio sociolgica), tambm resgata a noo de relao e a dimenso relacional dos processos histricos. Segundo ele, a classe uma relao histrica, que acontece quando alguns homens como resultado de experincias comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opem) dos seus (Thompson,1987:10).

    A relevncia da viso de Thompson sobre o tema das classes sociais est precisamente em no tom-las como coisa, nem estabelecer como devem ser as classes, mostrando, ao contrrio, que elas se constituem historicamente de formas diferentes. Diz o autor:

    Existe atualmente uma tentao generalizada de supor que a classe uma coisa. No era esse o significado em Marx, em seus escritos histricos (...). Ela, a classe operria, tomada como tendo uma existncia real, capaz de ser definida quase matematicamente uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporo (relao) com os meios de produo. Uma vez isso assumido, torna-se possvel deduzir a conscincia de classe que ela deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua prpria posio e interesses reais. H uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas defasagens e distores culturais constituem um incmodo, de modo que mais fcil passar para uma teoria substantiva: o partido, a seita ou algum terico que desvenda a conscincia de classe, no como ela , mas como deveria ser (Thompson,1987:10).

    Em Thompson tambm a noo de classe como categoria histrica comporta duas dimenses: a classe pensada com referncia a um contedo histrico real, empiricamente observvel nessa acepo, o termo classe nasce com a sociedade industrial do sculo XIX, pois s nela podem ser observadas instituies, partidos e culturas de classe (Ridenti,1994:44) e a classe como categoria heurstica ou analtica, para organizar a evidncia histrica que tem uma correspondncia direta muito menor (idem). Sob essa perspectiva, haveria uma nfase, de Thompson, noo de luta de classe. Ou seja, o conceito de classe inseparvel daquele de luta de classe:

    As classes no existem como entidades separadas que procuram e encontram um inimigo de classe, para ento comear a lutar. Ao contrrio, as pessoas encontram-se em uma sociedade estruturada de determinadas maneiras (crucial, mas no exclusivamente, em relaes de produo), elas passam pela explorao (ou pela necessidade de manter poder sobre aqueles que elas exploram), elas identificam pontos de interesse antagnicos, comeam a lutar em torno dessas questes e no processo de luta elas se descobrem como classes, elas vm a conhecer essa descoberta como conscincia de classe. Classe e conscincia de classe so sempre o ltimo, no o primeiro, estgio no processo histrico real (Thompson,1987:149 apud Ridente,1994:44).

    Ao me remeter teoria das classes sociais estou ciente dos inmeros riscos e implicaes existentes, em especial o risco de uma aplicao mecanicista ou de no saber apanhar a multiplicidade de determinaes que fazem o concreto (Oliveira,1987:9), alm, claro, dos limites e das imprecises existentes no interior da

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    prpria teoria e de sua transformao em doutrina. H, tambm, como j assinalou Novaes, o risco da utilizao de teorias macro e do uso de conceitos que pressupem um determinado grau de abstrao, no estudo de grupos sociais restritos e localizados no tempo e no espao (Novaes,1997). Por esse prisma, haver sempre o perigo de os conceitos tornarem-se meramente alusivos e se substiturem quilo que tm por funo explicar. Entretanto, concordo com Regina Novaes quando afirma que simplesmente evit-los no parece ser tambm a soluo (...) o importante procurar dialogar com esses e outros conceitos, fazendo-os referncias analticas, explicitando o seu contedo e a sua relevncia para compreenso dos dados que sero apresentados (Novaes,1997:6).

    De uma outra perspectiva, o processo de construo de uma nova identidade patronal me remete, ainda, noo de habitus, aqui entendido como sistema de predisposies socialmente constitudas que orienta o pensar e o agir. Segundo Bourdieu, o habitus funciona como saber social incorporado. So estruturas estruturadas e estruturantes.(...) E constituem o princpio gerador e unificador do conjunto das prticas e das ideologias caractersticas de um grupo de agentes (Bourdieu,1987:191).

    Para o autor, o habitus sempre produto de uma aquisio pretrita, que pode ser feita, seja atravs da famlia, seja atravs do convvio em determinados grupos sociais, mas sobretudo no sistema de ensino. O habitus historicamente pensado e transmitido pelo sistema de ensino, diz Bourdieu.

    O habitus tambm concebido, por Bourdieu, como objetividade interiorizada, ou seja, algo adquirido de fora para dentro e, ao mesmo tempo, interioridade exteriorizada, como predisposio para agir em funo daquele habitus. So basicamente as situaes em que o sujeito ou os grupos sociais trazem o subjetivo para fora. J que o habitus possui essa dupla dimenso e como todo agente social portador de um habitus, ento, o consenso, para Bourdieu, seria a confluncia, no necessariamente de habitus, mas desse duplo movimento. Nesse sentido, o consenso em Bourdieu difere do conceito de hegemonia em Gramsci para quem o consenso passaria por uma questo modal: a produo da hegemonia. No entanto, os dois tm em comum a idia de que o consenso sempre construdo4. Bourdieu, ao operar a noo de habitus, tambm diferencia a histria incorporada da histria reificada. Esta ltima significaria, como o prprio nome aponta, a histria materializada em emblemas e signos. J a histria incorporada seria a que todo sujeito social traz dentro de si, adquirida por vivncias e representaes pretritas5 (Mendona,1993).

    4 Para Bourdieu o consenso sempre construdo a partir das relaes entre os agentes de um mesmo campo em funo do poder simblico, do poder de conhecer e de construir o mundo. E a condio de existncia do poder simblico est exatamente no fato de ser ignorado, o que significa ser reconhecido: o efeito de des-conhecimento do poder simblico , ao mesmo tempo, a condio de seu reconhecimento, diz Bourdieu (Bourdieu,1998). 5 Comentando sobre o assunto, Sonia Mendona afirma que em certo sentido Bourdieu opera com os mesmos pressupostos de Marx do 18 Brumrio quando afirma que os mortos comandam os vivos. Entretanto, no caso de Bourdieu, os que comandam os vivos no sentido da histria incorporada so, simultaneamente, agentes de fantasmas e ao mesmo tempo atores presentes. Ou seja, os indivduos e grupos sociais atuariam esses fantasmas pelo habitus e, nesse processo, os transformariam no seu prprio devir.

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    Muito antes de Bourdieu, Norbert Elias j havia recorrido noo de habitus, entendido como saber social incorporado ou estrutura da personalidade social dos indivduos. O conceito de habitus em Elias foi pensado sobretudo com o objetivo de contornar a habitual dicotomizao entre indivduo e sociedade. Ele considerava enganador o velho hbito de usar os termos indivduo e sociedade como se representassem objetos distintos. O seu princpio orientador a idia de interdependncia entre essas duas dimenses da realidade. E o habitus permitia fazer a ligao entre as duas dimenses, descrevendo a maneira como so individualmente incorporadas as modalidades de percepo e de ao coletivamente desenvolvidas no sistema de interaes. Elias v na individualidade a expresso da maneira particular, bem como o grau, em que a forma de comando psquico de um indivduo se distingue dos outros (...) De sorte que a sociedade no somente o fator de caracterizao e de uniformizao, tambm o fator de individualizao (Elias,1994:51). Portanto, para Elias, o habitus compreende tanto os comportamentos individualizados como os partilhados pelos outros membros de um mesmo grupo, depositrios e atores de uma identidade coletiva. tambm a concretizao das relaes efetivamente praticadas entre nveis muito heterogneos da experincia (Heinich, 2001:131-132).

    Segundo o autor, no h uma identidade-eu sem a identidade-ns, o que varia o padro da relao eu-ns, que se apresenta como parte integrante do habitus social de uma pessoa e, como tal, est aberta individualizao (Elias,1994:152). Entretanto, a identidade-ns e a identidade-eu dos indivduos no so nem evidentes nem to imutveis quanto pode parecer primeira vista. So processos dinmicos mas no ocorrem da noite para o dia. Implicam processos que, com freqncia, atravessam muitas geraes (idem, 1997:177 e 186). Diz Elias:

    Cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma composio especfica que compartilha com outros membros da sociedade. Possuem um habitus. Esse habitus, a composio social dos indivduos, como que constitui o solo de que brotam as caractersticas pessoais mediante as quais um indivduo difere dos outros membros de sua sociedade (...). Alguma coisa brota da linguagem comum que o indivduo compartilha com outros e que , certamente, um componente do habitus social um estilo mais ou menos individual inconfundvel que brota da escrita social. (...). A identidade eu-ns representa a resposta pergunta quem sou eu como ser social e individual? (...) O nome e o sobrenome indica a pessoa tanto como indivduo singular como membro de um determinado grupo, sua famlia. (...) D a cada pessoa um smbolo de sua singularidade e uma resposta pergunta sobre quem ela a seus prprios olhos, ele tambm serve de carto de visita. Indica quem se aos olhos dos outros. Por este prisma, a existncia da pessoa como ser individual indissocivel de sua existncia como ser social (Elias,1994:151e 171).

    Elias enfatiza ainda que o habitus, apesar de se remeter ao passado, no se apresenta como algo fixo ou esttico, implica continuidades e rupturas: O habitus muda com o tempo, precisamente porque as fortunas e experincias de uma nao (ou de seus agrupamentos constituintes) continuam mudando e acumulando-se (Elias,1997:9).

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    Norbert Elias essencialmente o pensador da interdependncia dinmica entre os processos sociais o fio condutor do conceito de configurao social6. Um dos momentos mais ricos de seu trabalho a preocupao em estabelecer as conexes existentes entre o desenvolvimento de um determinado habitus e o processo histrico de formao de uma sociedade. Tal postura lhe possibilita incorporar reflexo uma conjuno de fatores sobretudo sociais e polticos, conjunturais e estruturais como, por exemplo, o peso da dinmica de constituio das classes sociais e dos Estados nacionais no processo de formao do habitus. Ao mesmo tempo, lhe permite operar com vrias dimenses e manifestaes advindas do habitus, tais como as noes de habitus partilhado, habitus nacional e habitus tradicional; o arraigamento (efeito trava) de determinados habitus em momentos de mudanas sociais no programadas e a imensa dificuldade em se erradicar ou denunciar a desigualdade social, quando naturalizada pelo habitus.

    Para Elias, quanto mais a desigualdade se torna natural pelo habitus, mas ela parece normal, e logo difcil de erradicar e at de denunciar (cf. Heinch:50). E as manifestaes de desigualdade variam de acordo com o desenvolvimento histrico de uma nao, de um povo. Por exemplo, na Holanda, dado o carter eminentemente burgus do desenvolvimento, a igualdade passou a ser lema dos holandeses, apesar de manter a desigualdade entre si e com as camadas inferiores. Ou seja, o povo holands cultiva a desigualdade e ao mesmo tempo tem averso a determinados smbolos que expressam a desigualdade humana (Elias,1997 : 24-25).

    Elias tambm procura entender como as relaes de poder influenciam na formao dos sentimentos e considera que a manipulao dos sentimentos em relao ao Estado e nao, ao governo e ao sistema poltico, uma tcnica muito difundida na praxis social (...) Em todos os Estados nacionais, as instituies de educao pblica so extremamente dedicadas ao aprofundamento e consolidao de um sentimento baseado na tradio nacional (Elias,1994:171).

    O habitus social de uma pessoa encontra-se diretamente ligado ao perfil da sociedade na qual ela est inserida e faz parte, diz Elias. Nesse sentido, aquilo que parece ser uma caracterstica de um determinado grupo social, envolve, na realidade, caractersticas mais abrangentes. Por sua vez, a famlia, os grupos sociais, os Estados nacionais expressam-se em peculiaridades do habitus social dos indivduos que os compem (Elias,1994:171). Ele faz parte da estrutura de personalidade originria de todo indivduo humano (Elias, 998:114)

    Como expresso de processos sociais, o habitus encontra-se intimamente ligado natureza das configuraes sociais. Em sociedades pouco diferenciadas talvez o habitus social tivesse uma camada nica. Enquanto que nas sociedades complexas, ele tem muitas camadas. do nmero de planos interligados de uma sociedade que depende o nmero de camadas entrelaadas no habitus social de uma pessoa, diz Elias (Elias,1994:151). Haveria tambm uma certa camada do habitus social que costuma ter especial proeminncia. Trata-se da camada caracterstica da filiao a um determinado grupo social de sobrevivncia, como por exemplo uma tribo ou nao o carter

    6 Elias no est preocupado em definir qual instncia dominante, mas como as relaes sociais se cruzam e se combinam. O centro de seu raciocnio baseia-se na relao entre os diferentes processos sociais, na configurao social.

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    nacional. E a sua preocupao em entender como o desenvolvimento do habitus nacional alemo possibilitou o violento surto descivilizador da poca de Hitler levou-o a apurar as possveis conexes entre o habitus e o processo de formao do Estado na Alemanha (Elias,1997).

    Ainda em Os Alemes, Elias nos mostra como certas peculiaridades do processo de formao do Estado alemo tiveram particular significao na compreenso do habitus alemo na constituio de ns7 de processos parciais entrelaados. Ele tambm procura mais uma vez mostrar que as emoes e as disposies vividas no plano individual se devem a processos coletivos de incorporao, amplamente inconscientes. Nesse sentido, o habitus poderia expressar desde comportamentos mais aparentemente individualizados, aos mais partilhados pelos outros membros de um mesmo grupo, depositrios de uma identidade coletiva como a identidade nacional (Heinich,2001:132).

    Em seu livro A sociedade dos indivduos, ele tambm observa que, diante de situaes de mudana social no-planejadas de um estgio em direo a outro, que pode ser inferior ou superior, as pessoas afetadas por essa mudana se agarram ao estgio anterior em sua estrutura de personalidade, em seu habitus social (Elias, 1994:172). Segundo Elias, isso depende inteiramente da fora relativa da mudana social e do arraigamento e portanto da resistncia do habitus social saber se e com que rapidez a dinmica do processo social no planejado acarretar uma reestruturao mais ou menos radical desse habitus, ou se a feio social dos indivduos lograr xito em se opor dinmica social, quer tornando-a mais lenta, quer bloqueando-a por completo (idem,1994:172). Trata-se do efeito trava. Existiriam basicamente dois principais elementos responsveis pela persistncia de um determinado habitus social. Em primeiro lugar, a fora da transmisso familiar e geracional, da socializao de normas e valores transmitidos de pai para filho e de gerao para gerao. Em segundo, a idia de que aquela constelao de habitus constitutiva da sobrevivncia do grupo social: Tem-se a impresso de que a solidez, a resistncia e o arraigamento do habitus social dos indivduos numa unidade de sobrevivncia aumenta medida que se alonga e

    7 Dentre os ns ele identifica, em primeiro lugar, a localizao e as mudanas estruturais (lingsticas) no povo alemo (por exemplo, em comparao com os pases vizinhos, o povo alemo s posteriormente falou alemo). Em segundo lugar, temos as lutas de eliminao entre grupos: certas unidades estatais ou tribais foram derrotadas em confrontos violentos, vivem sombra de seu grandioso passado e tm dificuldade de negar o seu prprio declnio. Em terceiro, o maior nmero de rupturas e descontinuidades no processo de formao do Estado alemo, quando comparado com outros pases; e, finalmente, em quarto lugar, a histria da expanso de modelos militares em setores da classe mdia alem (Elias,1997:17-21-25).

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    encomprida a cadeia de geraes em que certo habitus social se transmite de pai para filho, afirma o autor8.

    E mesmo que a forma social que d funo social ao habitus e aos costumes tenha desaparecido, h uma preservao da identidade-ns tradicional. Existem vrias modalidades de preservao do habitus que por sua vez dependem de inmeros fatores sociais e polticos: integrarem-se9 aos novos processos sociais; renunciarem a uma parcela de sua identidade e, portanto, do habitus tradicional de seus membros; ou preservarem a identidade, por meio de um processo de encapsulao social, mantendo de uma forma cristalizada os seus modos de vida, religio, tradio, estrutura de poder etc., mas, ao mesmo tempo, estabelecendo alguma relao com a sociedade (Elias 1997:177). Ele considera como traos figurativos estruturais responsveis pela persistncia de um habitus social a permanncia maior e comumente vitalcia de muitas relaes humanas e a existncia de uma balana ns-eu em que o ns tem clara preponderncia sobre o eu, e que freqentemente exige a subordinao incondicional de eu ao ns, do indivduo ao grupo-ns(idem,1977:177).

    Quanto ao segundo aspecto, a idia do habitus concebido como constitutivo da sobrevivncia de um grupo social e, portanto, arraigado e persistente, Elias ressalta que as funes de sobrevivncia, seja de um grupo social, seja da sociedade, so histricas. Se antes a unidade primordial de sobrevivncia era a tribo, hoje, a humanidade inteira que agora constitui a ltima unidade eficaz de sobrevivncia10 (Elias,1977:184). Por sua vez, as imposies do habitus social so criadas pelos seres humanos e no se resumem a uma questo de valores, antes, concernem fixao dos sentimentos e comportamentos individuais numa associao humana com importantes funes de sobrevivncia mesmo depois de essa associao haver cedido boa parte de suas funes a um nvel mais elevado de integrao (idem:184).

    no contexto da reflexo sobre o efeito trava que Elias discorre mais detalhadamente acerca da tradio. Segundo ele, a fora da tradio no decorre to-

    8 Diz Elias: Antes de chegarem os europeus, na maior parte das tribos indgenas os homens em posio de domnio eram os que traziam (...) a marca social de guerreiros e caadores. As mulheres eram coletoras e ajudavam de muitas maneiras na ocupao central dos guerreiros e caadores. A unidade primordial de sobrevivncia, o nvel mais elevado de identidade-ns, era a tribo. (...) Assim, a identificao pessoal do indivduo com a tribo era to natural quanto necessria. A ela, como mais elevada unidade e fonte de sentido coletiva, ajustava-se o habitus social, o carter social ou a estrutura social de personalidade do indivduo. Mas eis que a realidade se modificou. Numa longa sucesso de guerras e outras formas de luta pelo poder, os descendentes dos imigrantes europeus transformaram-se nos senhores da terra. Constituram uma organizao social num plano mais complexo de integrao o Estado. Os ndios (...) continuaram a existir como formao semicristalizada.(...) Fazia muito tempo que quase todas as condies naturais e sociais que haviam moldado sua estrutura social tinham desaparecido, mas, no habitus social dos indivduos, em sua estrutura de personalidade, a estrutura social extinta sobrevivia e, ajudada pela presso da opinio pblica dentro das tribos e pela educao, era transmitida de gerao a gerao (Elias,1997:173). 9 Para Elias, mesmo quando um grupo social assimilado no processo de desenvolvimento ainda permanecem fragmentos do habitus tradicional. 10 O autor nos fala que por mais forte que tenha sido a tendncia, no curso do desenvolvimento histrico recente, individualizao (identidade-eu) , os traos da identidade grupal nacional aquilo que ns chamamos carter nacional constituem uma camada do habitus social engastada muito profunda e firmemente na estrutura de personalidade do indivduo. (...) Ela , semelhana da lngua, slida e firme, mas tambm flexvel e est longe de ser imutvel (1997:171).

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    somente da inrcia das tradies que deslizam cegamente de era em era, mas, tambm, porque a imagem de fases pretritas da nossa sociedade, por mais distorcida ou deformada que possa ser, continua vivendo na conscincia de geraes subseqentes servindo involuntariamente como um espelho onde cada um pode ver-se a si mesmo (Elias,1997:59)

    Posteriormente, ao refletir Sobre o tempo, Elias nos aporta novos elementos para a compreenso do habitus social, em particular o modo como as pessoas concebem os seus habitus. Segundo ele, os grupos sociais chegam a acreditar que as representaes que forjam para si, a partir de sua perspectiva, so compartilhadas pela totalidade dos homens. Por outro lado, determinadas percepes so to profundamente arraigadas, constituem a tal ponto um atributo de sua personalidade, que lhes extremamente difcil ver nela o resultado de experincias de carter social. (...) Eles tendem a considerar aquilo como sua realidade prpria (Elias,1998:108).

    Existem vrios pontos em comum na reflexo de Bourdieu e de Elias. Os dois consideram que todo agente social portador de um habitus e concebem o habitus como produto de uma aquisio pretrita e como um saber social incorporado. Tanto Elias como Bourdieu esto preocupados com a questo da cultura e mostram que as predisposies naturais, os comportamentos e a conscincia moral so socialmente construdos, portanto especficos aos grupos sociais. Elias e Bourdieu trabalham o habitus como uma noo operatria e esto igualmente empenhados com a reflexo no campo da sociologia do conhecimento. Enquanto Elias, como vimos anteriormente, pensa a noo de habitus no contexto da relao entre indivduo e sociedade, Bourdieu recorre ao habitus com o intuito de superar o antagonismo entre objetividade e subjetividade. Diz Bourdieu:

    A noo de habitus exprime sobretudo a recusa a toda uma srie de alternativas nas quais a cincia social se encerrou, a da conscincia (do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc. (...) Sair da filosofia da conscincia sem anular o agente na sua verdade de operador prtico de construes de objeto, diz o autor (Bourdieu:1998:60)11. Segundo ele, trata-se de retomar o lado ativo do conhecimento prtico como Marx sugerira nas Teses sobre Feuerbach e que a tradio materialista, sobretudo a teoria do reflexo, tinha abandonado (idem:61).

    Como veremos no trabalho, h um habitus social dos grandes proprietrios de terras e dos empresrios rurais intimamente ligado ao processo de formao da sociedade brasileira, constituio da propriedade da terra e ao lugar social e poltico ocupado pelos grandes proprietrios de terra no Brasil. So habitus que amide se produzem e se reproduzem juntamente com as transformaes da sociedade. Contudo, permanece em aberto uma indagao que sempre acompanhou a minha reflexo sobre as classes e grupos dominantes no Brasil, qual seja: Em que medida o atraso, elemento constitutivo da nova retrica e da prtica patronal, traduz ou no uma realidade imediata? Existiriam razes no presente que justificam e viabilizam a atualizao de prticas, de experincias, de valores e de crenas do passado? O atraso se constitui em uma necessidade do processo poltico, econmico e social? Como discernir as

    11 E acrescenta, tal noo permitia-me romper com o paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da conscincia, a da economia clssica e do seu hommo economicus que regressa hoje com o nome de individualismo metodolgico (Bourdieu,1998:61).

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    manifestaes anacrnicas daquelas que se produzem e se reproduzem no moderno devido prpria dinmica e necessidade de expanso do capitalismo no Brasil?

    Por sua vez, esse momento de construo da classe e de instituio de uma nova retrica de legitimidade patronal tambm imps, a mdio prazo, a redefinio das possibilidades e dos limites do projeto reformista. De certo modo, as medidas aprovadas sobre o direito de propriedade da terra durante a Constituio de 88 apenas referendam o processo aberto com a reao patronal no primeiro ano do governo da Nova Repblica.

    A reao patronal rural de meados dos anos 80 reveladora de processos sociais que ultrapassam o quadro de sua origem e os limites da questo fundiria propriamente dita e desvenda inmeras questes. Permite-me, por exemplo, apreender o comportamento das elites polticas brasileiras, amide assinalando seus compromissos (voluntrios ou involuntrios) com os interesses dos grandes proprietrios de terra, e perceber o jogo poltico se reorganizando e se reestruturando em torno dos rumos da transio democrtica; contribui para desvendar o perfil da Nova Repblica e o pacto poltico, sob o qual se assentava a transio; e faz ver que, por trs do consenso democratizante, existiam profundas divergncias que dividiam as foras polticas coligadas em torno da defesa da reforma agrria e da participao dos trabalhadores rurais no processo democrtico. Possibilita-me, tambm, conhecer as armadilhas da prpria mquina do governo, perceber a ausncia de respaldo poltico ao projeto reformista da Nova Repblica e a fragilidade do apoio e da mobilizao popular a favor da reforma agrria.

    Os impasses do projeto reformista do governo da Nova Repblica, o recuo na legislao fundiria, as dificuldades das lutas por terra, em que pese a fora poltica da grande propriedade fundiria, no se explicam to-somente pela mobilizao dos proprietrios e empresrios rurais. Ao contrrio, dentro de certos limites, foi fruto de uma escolha feita por aqueles que, naquele momento, estavam no comando do pas. Foi produto de uma transio poltica, como diria Florestan Fernandes na FSP, negociada e elitista e da prpria configurao da sociedade civil.

    Meu estudo o desdobramento de um trabalho anterior sobre a Unio Democrtica Ruralista (UDR)12 movimento patronal que despontou em meados dos anos 80 como reao ao Plano Nacional de Reforma Agrria do governo Sarney e s ocupaes de terra e que, apesar de se ter autodissolvido oficialmente no incio dos anos 90, freqentemente reaparece no cenrio poltico nacional como prtica caracterizada pela intolerncia e pela defesa explcita da violncia, como referncia e sinnimo da mobilizao e do corporativismo, e como smbolo da defesa absoluta do monoplio fundirio.

    No decorrer da atividade de pesquisa sobre a UDR, vrias situaes me fizeram refletir sobre a importncia da imprensa como fonte. Naquele momento, percebi que, se olhasse sistematicamente para ela, poderia apreender novos dados, at ento no visveis, que ajudassem a pensar a questo agrria e patronal.

    12 A pesquisa sobre a UDR foi financiada pela Anpocs/Fundao Ford.

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    Foi possvel perceber, por exemplo, a importncia da imprensa como palco privilegiado dos grandes proprietrios de terra e de seus porta-vozes, para tornar pblicas as suas posies. As lideranas da UDR recorreram, sistematicamente, mdia para a produo de smbolos de classe e socializao de informaes, decises e orientao de como agir em determinadas circunstncias.

    A prpria conjuntura de transio poltica abriu espao para a reapropriao da imprensa pela sociedade civil. uma reapropriao desigual, mas introduz uma dinmica nova. Esse processo contribuiu para potencializar o uso da imprensa, por parte das elites rurais e agroindustriais, como espao privilegiado na construo de uma identidade social e poltica. Grandes proprietrios de terra e empresrios rurais recorreram mdia para atualizar antigos argumentos e enunciar novos temas. o caso do discurso anticomunista e da proposta Brasil, celeiro do mundo. Vale salientar que os enunciadores do anticomunismo no necessariamente esto pensando no anticomunismo em si. Eles podem at nem ter vivido a experincia da guerra fria; no presente que esse tema se torna importante. Os grandes proprietrios de terra trazem esse argumento para a fala atual, como meio de desqualificao da Igreja progressista e da esquerda.

    , tambm, o caso da revalorizao e atualizao da noo de rural, concebida como depositria das tradies mais representativas de nossa sociedade e como portadora dos valores sociais de harmonia, ordem, coeso e solidariedade entre os trabalhadores e patres. Ainda est por ser feita uma reflexo mais cuidadosa sobre o porqu da adeso, ao projeto UDR, de agricultores familiares, assentada nessa idia de mundo rural como expresso da tradio e solidariedade entre as classes, em contraposio ao urbano.

    Percebi, ainda, que a grande imprensa foi a principal aliada dos grandes proprietrios de terra e empresrios rurais na reao ao Plano Nacional de Reforma Agrria da Nova Repblica. Ela se empenhou na funo de formadora de opinio, consciente de sua capacidade de influir sobre os valores e comportamentos da sociedade. Ora ressaltou ou omitiu uma determinada informao, ora buscou direcionar a ateno dos leitores para fatos aparentemente sem maior visibilidade. E, muitas vezes, chegou mesmo a fornecer, atravs de editoriais, os fundamentos analticos e histricos da retrica anti-reformista, orientando a grande propriedade sobre qual a argumentao mais eficaz, naquele momento. Por exemplo: foi o jornal O Estado de So Paulo que primeiro estabeleceu, publicamente, o argumento da reforma agrria como uma poltica anacrnica uma idia fora do lugar, atrasada e, portanto, mera expresso de uma ideologia. Foi o jornal OESP que deu substncia fala da grande propriedade sobre o tema do atraso. A partir de ento, o suposto do retardamento da reforma agrria transformou-se em idia-fora do discurso patronal, veiculado pela imprensa. Foi tambm o OESP que trouxe para os editoriais a discusso sobre a reforma agrria como expresso do comunismo e da estatizao do campo.

    Quase sempre a imprensa posicionou-se, explicitamente, a favor da grande propriedade fundiria como modelo de eficcia econmica e produtiva e mostrou-se hostil aos argumentos e princpios que fundamentavam as vrias vertentes do discurso reformista presentes no embate sobre a reforma agrria. O olhar da imprensa sobre as demandas de reforma agrria repetidas vezes usurpou, escondeu e se apropriou dos fatos. Ela foi particularmente unilateral na abordagem dos eventos e lanou mo de seu

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    poder para manipular notcias que considerava favorveis aos grandes proprietrios. A maioria dos editoriais dos grandes veculos ressaltou os mesmos argumentos dos grandes proprietrios de terra e classificou a posio do governo em favor da reforma agrria como ingnua, simplista e no cientfica, procurando, assim, desqualificar aquelas pessoas diretamente responsveis pela implementao da reforma agrria. Como diria Bourdieu, uma das formas de se livrar de verdades perturbadoras dizer que elas no so cientficas, o que equivale a dizer que elas so polticas, isto , suscitadas pelo interesse, pela paixo, e, portanto, relativas e relativizveis (Bourdieu,1983).

    Na polmica sobre a definio do conceito de produtivo, enquanto o governo recorria imprensa para amenizar a situao, afirmando que as terras produtivas no seriam objeto de desapropriao, os jornais respaldaram os contra-argumentos dos grandes proprietrios de terra, apontando que o Estatuto da Terra, sim, permitiria a desapropriao de terras produtivas, sendo, portanto, inadmissvel que a Nova Repblica se baseasse nesse instrumento como passo inicial da reforma agrria.

    A imprensa tambm exacerbou a fora da mobilizao patronal rural, ainda quando no se tinham claros seus contornos, chamando a ateno para o grito de reao que comea a correr de forma articulada e sai das gargantas dos proprietrios de 409,5 milhes de hectares de terras estocadas que sero totalmente atingidos, ao cabo de quinze anos, caso a proposta venha a ser executada13. Em 1985, quando a reao dos grandes proprietrios aglutinados na UDR era ainda nascente, a imprensa fez a apologia da entidade e muito contribuiu para a construo da imagem de seu presidente, Ronaldo Caiado.

    Mas um dos principais traos da imprensa no trato da questo agrria foi estabelecer uma determinada configurao das matrias, que mais confundiam do que esclareciam o leitor. Por exemplo: numa mesma pgina de jornal, a denncia sobre a violncia e a compra de armas, pelos grandes proprietrios de terras, convive com declaraes de deputados, senadores e representantes patronais rurais, negando o fato e afirmando que a situao est sob controle. Os dados sobre a improdutividade da terra e a concentrao fundiria dividem o mesmo espao com matrias que ressaltam o retrato dos grandes proprietrios como os novos pioneiros do agro. Alis, quase todos os grandes jornais reverenciaram os desbravadores e empresrios bem-sucedidos e aplaudiram os investidores paulistas com interesse fundirio nas regies de fronteira agrcola.

    O reconhecimento da necessidade de uma reforma agrria no Brasil disputa o mesmo espao com reportagens sobre o fracasso das reformas agrrias latino-americanas e as experincias frustrantes no Brasil. E a Folha de So Paulo, numa matria claramente truncada e ambgua, ressaltou do depoimento de Francisco Julio uma das principais lideranas do movimento das Ligas Camponesas to-somente o seu desalento e suas crticas proposta de PNRA da Nova Repblica. Em outros momentos, h uma clara dissociao entre o ttulo da matria e o seu contedo: so inmeros os artigos informando a posio da Igreja e da Contag sobre a reforma agrria, cujo contedo na verdade explicita apenas a posio das elites patronais.

    13 FSP, 29.05.85 Comeou a grita (Otaviano Lage).

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    Alm disso, a imprensa procurou imprimir uma determinada leitura do campo de conflito agrrio, pautada quase que exclusivamente na polarizao entre as partes envolvidas. Essa tendncia em retratar os principais opositores, segundo a lgica das acusaes e ataque e defesa, expressa, segundo Bourdieu, uma das propriedades tpicas do campo jornalstico, qual seja a propenso a privilegiar o aspecto mais diretamente visvel do mundo social; isto , os indivduos, seus feitos e sobretudo seus malfeitos, em uma perspectiva que com freqncia a da denncia e da acusao, em detrimento das estruturas e dos mecanismos invisveis (...) que orientam as aes e os pensamentos. Segundo o autor, a lgica da condenao indignada, alm de simplificar os processos sociais, pode levar a uma forma de censura quando s aborda um assunto em funo de imagens, e de preferncia imagens espetaculares (Bourdieu,1998:94)

    No de hoje o poder dos meios de comunicao em moldar os fatos. Darnton nos mostra como a imprensa foi um fator crucial na Revoluo Francesa. Diz ele que quando o jornalismo despontou como uma fora nos negcios do Estado, os revolucionrios sabiam o que estavam fazendo quando carregavam prelos em seus desfiles cvicos e quando reservavam um dia do calendrio revolucionrio para comemorar a opinio pblica (Darnton:1990:92).

    correto afirmar que h manipulao consciente dos fatos, e a unilateralidade tem sido a marca registrada do jornalismo no Brasil. Mas isso no diz tudo; no basta condenar o mau uso da imprensa. igualmente importante ressaltar que nem toda a imprensa e nem toda a avaliao significam um embuste. Ela no existe sem dados e informaes e, para se legitimar, no pode se distanciar da trama dos fatos e dos acontecimentos.

    Por sua vez, esse poder da imprensa no pode ser interpretado como um processo isolado. O retrato e o recorte que ela faz da realidade no so de todo estranho s expectativas e aos valores existentes na sociedade. A imprensa fruto de uma realidade social discriminadora e excludente. Jurandir Costa Freire, em artigo intitulado A inocente face do terror, em que discorre sobre o caso do ndio Galdino (que em 1997 foi queimado, em Braslia, por jovens da classe mdia local, enquanto dormia em um ponto de nibus), afirma: A mdia forma hbitos, claro. Mas nem toda a mdia inescrupulosa, e mesmo aquela mais srdida, no mais das vezes, vende o que estamos dispostos a aceitar. Com relao ao tema da reforma agrria nos anos 80, a meu ver, vrios setores da sociedade - e no apenas suas elites estavam dispostos a aceitar a retrica sobre a incompetncia dos trabalhadores rurais sem terra ou sua incapacidade de se tornarem proprietrios de terras. Esse um raciocnio que faz sentido numa cultura poltica que traz a marca da excluso e do elitismo. Tambm estvamos dispostos a concordar com a idia de uma reforma agrria como anacrnica uma reivindicao fora do lugar porque o peso da ideologia produtivista disseminada na academia dificultou a percepo de que a atualidade da reforma agrria dada pela luta por terras e no se restringe fundamentao economicista.

    Acredito que, ao contrrio, se procurarmos olhar as pginas dos jornais de uma forma mais sistemtica e mais isenta de pressupostos construdos a priori, possvel perceber que a imprensa, mesmo seletiva e parcial, evidenciou outras faces da realidade. Talvez por fora da presso dos setores reformistas, ou at mesmo pela necessidade de informar corretamente, em virtude, por exemplo, da concorrncia e da necessidade de se legitimar, foram inmeros os artigos que ressaltaram a imensa concentrao da

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    propriedade fundiria no Brasil e sinalizaram a necessidade de superar esse impasse. Muito mais perspicaz que os estudiosos da questo agrria, a imprensa antecipou a grita dos grandes proprietrios de terra e, praticamente, todos os jornais chamaram a ateno da opinio pblica para o fato de que a reao ao PNRA viria prioritariamente das regies modernizadas do Sul e do Sudeste, e no dos grotes do Nordeste como avaliaram o Mirad, o Incra e a maioria dos pesquisadores da questo agrria. Ela tambm percebeu e anunciou, antes dos analistas, a crise de representao patronal e seus possveis desdobramentos. Com relao poltica partidria, a grande imprensa evidenciou as ambigidades dos pronunciamentos de deputados, senadores e representantes do Executivo sobre a reforma agrria; retratou o corporativismo e o jogo de interesses pessoais, como elementos constantes da prtica poltica no Brasil, e registrou as inmeras mudanas de opinio e o duplo jogo da classe poltica, aprovando bem alto o que criticavam baixinho. E, sempre que possvel, exps as armadilhas da prpria mquina do governo, as vaidades pessoais se sobrepondo ao interesse pblico, a ausncia de respaldo poltico ao projeto reformista da Nova Repblica e a fragilidade da mobilizao popular pela reforma agrria.

    A grande imprensa, tambm, foi ctica com relao s declaraes de representantes do Executivo: esse raciocnio de que tudo se restringia a uma questo de habilidade, convencimentos e de malabarismos polticos. E mostrou que o melhor caminho tampouco aquele que finge que a presso dos grandes proprietrios de terras no existe, ou algo natural, pois s contribui para confundir a sociedade. Em inmeras ocasies criticou os defensores da reforma agrria pela subestimao da fora da grande propriedade fundiria, ao mesmo tempo em que superestimavam o poder e a representatividade dos trabalhadores rurais, da Contag e da Igreja progressista.

    Aparentemente no foi apenas por fora da denncia dos partidrios da reforma agrria que a imprensa exps o retrato da realidade agrria do pas. Vrios jornalistas empenharam-se em mostrar a concentrao fundiria e a improdutividade, revelando que mais de um quinto do territrio nacional, ou seja perto de 70 milhes de hectares, constitudo por terras ociosas.

    E, apesar de transformarem a violncia em um grande espetculo, descaracterizando, assim, o seu contedo poltico, no momento em que ela explode com mais vigor e crueldade, os correspondentes regionais vo buscar outras verses dos fatos e outros argumentos nas regies onde os conflitos de terra so mais intensos, deixando, dessa forma, vir tona o testemunho dos grandes proprietrios de terra a favor da violncia, ao passo que, em Braslia, seus porta-vozes negam.

    Existem outros recortes de anlise igualmente importantes, mas acredito que seja possvel apreender novas informaes e novos dados at ento no visveis e que ainda no foram tratados com a devida ateno. Por exemplo: mostrar personagens, conhecidos ou annimos, que foram muito importantes no confronto sobre a reforma agrria e tentar apreender como se constitui, no espao pblico da grande imprensa, uma nova linguagem de classe e uma nova identidade patronal.

    Embora vrios estudiosos tenham feito uso da imprensa como auxiliar eu mesma recorri a ela em outros momentos, com esse objetivo , o que me parece ser novo, neste trabalho, o fato de que a trato no apenas como veculo de informao, mas, sobretudo, como um dos principais locus de expresso e de construo da nova

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    retrica e de uma nova identidade patronal e tambm como ator, isto , a imprensa como voz ativa de determinados interesses. Nesse sentido, no um trabalho sobre a imprensa stricto sensu.

    No creio que tudo o que a imprensa veicula sobre a histria seja de fato a histria. Como tambm nem tudo o que explicita acerca da questo agrria expresse a questo agrria. Mas a imprensa pode ser o meio que evidencia, por exemplo, a existncia de um habitus dos grandes proprietrios de terra. Um habitus estruturante (Bourdieu:1989), que tem passado e presente, em que existem permanncias e rupturas e novidades, conformadores dessa nova identidade do patronato rural.

    Foram selecionados os seguintes peridicos: Jornal do Brasil, O Globo, Folha de So Paulo e Estado de So Paulo14. Os demais jornais e revistas, assim como as entrevistas que realizei, s sero considerados em momentos pontuais e significativos.

    Apesar da tendncia geral de legitimar o discurso dominante, a fala da imprensa diversificada. Jornalistas e reprteres so pessoas diferenciadas e as suas posies no necessariamente se casam com a linha editorial dos jornais. Alm disso, no posso analisar com os mesmos critrios os editoriais que explicitam a linha poltica do jornal e os demais artigos e reportagens. Como tambm no posso olhar da mesma forma os artigos dos analistas e a seo destinada aos leitores. H, ainda, uma diferena entre as matrias dos correspondentes regionais e as anlises dos jornalistas sediados em Braslia experts dos meandros do poder. Enquanto os primeiros, talvez pelo fato de se encontrarem mais prximos da diversidade de personagens e da complexidade de prticas e relaes existentes no campo, se empenhavam em observar e retratar o instante, identificar o que estava em jogo ou quais as conseqncias possveis, a postura dos jornalistas de Braslia, ao contrrio, assemelhava-se ao que Bourdieu define como o conhecimento do mundo poltico baseado na intimidade dos contatos e confidncias (ou mesmo dos rumores e mexericos) mais que na objetividade de uma observao ou de uma investigao (Bourdieu,1998:97-8)15.

    vigorosa a idia de que a democracia tem como fundamento uma imprensa livre sem limites de qualquer natureza, exceto aqueles impostos pela tica e pelo bem comum. Uma imprensa desvinculada dos interesses que no estejam justapostos ao bem coletivo, como os olhos e a conscincia de um povo, dizia Marx como editorialista da Gazeta Renana16. Porm a imprensa dos tempos de Marx era uma imprensa rudimentar que imprimia panfletos de uma folha em tiragens quase simblicas. Hoje, a imprensa - o jornal, rdio e televiso cada vez mais se distancia dos padres clssicos que a geraram e se v compelida a migrar para o grande mundo dos negcios, alimentada pelo 14 A escolha dos jornais deveu-se, basicamente, a dois fatores: so peridicos de expresso e de circulao nacional e expressam posies diferenciadas. 15 Bourdieu define dois principais grupos no interior do campo jornalstico: os profissionais dominantes, a Nomenklatura dos jornalistas poderosos ligados por interesses comuns e por cumplicidades de toda a ordem. E, os jornalistas de base, os tarefeiros da reportagem, os menos sacadores, todos os obscuros condenados precariedade. Segundo o autor, so estes ltimos que fazem o que h de mais autenticamente jornalstico no jornalismo, a lucidez evidentemente maior e se exprime freqentemente de forma muito direta, e entre outras coisas, graas a seus depoimentos que podemos ter acesso a um certo conhecimento (Bourdieu,1998:108). 16 Peridico fundado pela vanguarda da burguesia liberal renana. Era considerado como a mais importante tribuna de difuso das idias progressistas da poca. O jornal foi fechado em 1843.

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    interesse de seu pblico consumidor e do mercado. Nesse sistema, a mdia um importante instrumento de circulao da informao e se estrutura como um campo de disputa, poltica e de mercado. Por conta da acirrada concorrncia pelo mercado, e tambm por fora da prpria disputa poltica, freqentemente a grande imprensa, nos anos 80, deixou aflorar as tenses existentes e deu voz aos trabalhadores sem terra e se