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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico http://slidepdf.com/reader/full/buber-martin-o-socialismo-utopico 1/101  1 - , 1 Pr6xi'mo lançamento A Tragédia Grega Albhl Lesky l 1 1 : Nasceu êste · livro da intenção de expor, geneticamente, as teorias a que Marx e s marxistas denominaram de ~ i a l i s mo utópico" e particularmente, seu postulado de uma reno vação da sociedade através da renovação de seu tecido celu lar. Dentre o vasto material, pareceu ao autor dever incluir o que fôsse pertinente ao estudo da idéia . Faltava, porém, abrir uma outra. perspectiva: a das ~;.ds va;-. de n a- lização da idéia; tentativas auda , zes 1 P.l\S soblematicu. E sobretudo uma tentativa em parti  n L . •vou o autor u ~ r é v r êste livro. /

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1

-,

1

Pr6xi'mo lançamento

A Tragédia Grega

Albhl Lesky

l

1

1

:

Nasceu êste · livro da intenção de expor, geneticamente, as

teorias a que

Marx

e s marxistas denominaram de

~ i a l i s

mo

utópico"

e

particularmente, seu postulado de

uma

reno

vação

da

sociedade através da renovação

de

seu tecido celu

lar.

Dentre

o vasto material, pareceu

ao

autor dever incluir

o que fôsse pertinente

ao

estudo

da

idéia•. Faltava,

porém, abrir uma outr a. perspectiva: a d as

~ ; . d s v a ; - .

de

n a-

lização

da

idéia; tentativas auda,zes

1

P.l\S

l  

so

blematicu.

E

sobretudo

uma

tentativa

em

parti  nL. •vou o

autor

u

~ r é v r

êste livro.

/

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Coleção Debates

Dirigida por J.. Guinsburg

Conselho Editorial: Anato Rosenfeld , Anita Novinsky,

Aracy Amaral , Boris Schnaiderman, Celso Lafer, Gita

K. Ghinzberg, Haroldo

de

Campos, Maria

de

Lourd

es

Santos Machado Regina Schnaiderman, Rosa R.

Krausz, Sabato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.

Equipe

de

realização: Pola Civelli, tradução; Geraldo

I

Gerson de

Souz

a, revisão; Moysés Baumstein, capa e

trabalhos técnicos.

Martin Buber

O Socialismo Utópico

~ ~

l

9 J Editôra Perspectiva

~ i • •

São Paulo

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fUND. U

NIV

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B IBL tOTEC

Título

do

original:·

Der uto

pische Sor ialismus

Univ

; rsi

da

de

Estad

ual e Ma

rin

i

i

\ilfüfülfü

t

1

0000013315

Copyright by

RAFAEL BUBER

Direitos exclusivos para a língua portuguêsa:

EDITORA PERSPEÇTIVA S.A.

v. Bríg. Ltifs Antônio 3.025

São Paulo

1971

SUMARIO

Prólogo . .   . .   .  

I O Conceito .

 

.

 

l I

O

Assun

to .

 

.   . .

Os Primeiros .   .

IV Proudhon . .

 

.

 

V K ropotkin .   .   .

 

V 1 Landauer .

 

.

VII

Tentativas i · . . .

 

.   .   .

VIII ·Marx e a Renovação da Sociedade . . .   .

l X Lênin e a Renovação da Sociedade . . . .

X Outra Experiência .   ..  .   . .

XI Na Crise

.   .

 

.

 

.

 

. .

XII

Entre a Sociedade e o Estado

7

9

17

27

37

53

63

77

1 3

125

59

173

185

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\

\

PRó

LOGO

, Este livro nasceu da intenção de expor, geneti

camente, as teorias a que Marx e os marxistas.denomi

naram de socialismo utópico'; e, particularmente, seu

postulado de uma renovação da sociedade através da

renovação de seu tecido celular.

m

lugar de apre

sentar uma visão global da evolução de uma idéia,

prefer• ir delineando o quadro de uma idéia no

pr

oces

so de seu desenvolvimento.

Par

a a formação de um

quadro dêsse gênero, assim como para todo quadro

em geral; a questão fundamental é decidir o que deve

ser omitido. Dentre o vasto material, pareceu-me que

apenas o que fôsse pertinente ao estudo da idéia deve

ri

a

ser incluído.

O

imJ?Ortante não são as afluências,

7

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mas a corrente única

na

qual, finalmente, desembocam.

Emergindo do decorrer

da

História do Espírito, sur

ge-nos à frente a própria idéia.

1

Faltava ainda abrir uma outra- perspectiva, se bem1

que

de

caráter mais restrito: a das tentativas

de

reali

zação da idéia; tentativas audazes, mas problemáticas.

Somente depois poder-se-ia expor, criticamente, a re- '

lação teórica e prática do marxismo com a idéia da

renovação estrutural, relação que,

no

princípio do livro, 1

1

,

só poderia ser indicada

à

guisa

de

introdução.

Õ

·

mente então, e a partir dêsse ponto, é que eu poderia

falar de

uma

tentativa em particular, cujo conheci-

mento direto me impeliu a escrever êste livro: Fiel

J,

ao meu propósito, não a descrevi nem relatei; limitei-

j

me a esclarecer sua conexão intrínseca com a idéia,

na qualidade de uma tentativa que não malogrou.

Um capítulo final resume minhas próprias relações ]

com a idéia, relações que, até aqui, só haviam sido

expressas nas entrelinhas.

Era

preciso, ademais, assi- .

nalar também

sua

importância para o

m o m n t ~

histó

rico atual.

MARTIN BUBER

1

j

I

1

8

l

L_

,

\

I O CONCEITO

Um dos capítulos do Manifesto Comunista que

maior influência exerceram e continuam a exercer sô

bre as gerações, foi o intitulado Socialismo e Co

munismo Crítico-Utópicos{'.

Marx

e Engels,

como

se sabe, foram encarregados

pela Liga dos Justos

de

formular

uma

profissão

de

é comunista um projeto de Moses Hess fôra rejei

tado

devido

à

oposição de Engels); seria êste um

importante trabalho preliminar

para

a convocação, em

1848,

de

um Congresso Comunista Geral e

da

União

de todos os Oprimidos . Dela deveria constar também,

por instrução da diretoria da Liga, a posição

em

face

dos partidos sociais e comunistas'', isto

é,

a delimitação

9

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r

Jas

diferenças essenciais entre as tendências afins.

Com

isso ·visava-se sobrctuqo aos fourieristas, "êsses homens

superficiais", corno são chamados no ·projeto de decla-

ração que o órgão centra\ apresentou ao Congresso da

Liga, em Londres.

No

projeto elaborado por Engels,

na

ocasião, ainda

não

se fala em socialistas ou comu

nistas "utópicos", mas somente em homens que pro

põem grandiosos sistemas de reforma", "que, a pretex

to de reorga

ni

zar a sociedade, pretendem conservar as

bases da sociedade atual e, portanto, essa mesma so

ciedade"; por êsse motivo, são qualificados de "socia

::_

listas burgueses" aos quais é preciso combater, cftiãli-

ficação que, .na redação definitiva, foi· aplicada espe-:

cialmentc a .Proudhon. Entre o projeto de

En

gels e a

forma final, redigida essencialmente por Marx, há

enorme diferença. Os "Sist

em

as" - entre os quais são

incluídos os de Saint-Simon, Fourier e Owen (no pro

jeto de Ma rx eram citados também Cabet, Weitling e

até

m e s l l } ~ B a b e ~ f como autores de sisten;as semelhan

tes) -

f.,ao

considerados frutos de uma epoca cm que

a indústria e, portanto, também o proletariado, ainda

não se h:>·  :am desenvolvido./ Foi a im possibilidade de

compreen<j_cr e dominar o problema "P-rcletariado" que

deu azo ao aparecimento dêsses sistemas, que

pode

riam ser imaginários, .ffintá

stic QJ>

e ..utúp.kos .e que,

no

fundo, propunham a abolição de uma

~ . r . c n ç - ' L d c

~ s s e s que

~ s t a v a .apc;;;-s e ç a n d o a

  P.LOCCSSn ::fill.

e que, um dia, iria provccar a ''transformaçl g_geral

da

s c c i e d

a d e Aqui, Marx limita-se a formular nova

mente o que pouco an tes havia proclamado nu obra

polêmica ~ o n t r a P r o u d h o n ":bsses teóricos são uto-

pistas; devem procurar a ciência em seu espírito, pois

ainda não chegaram

ao

ponto

de

poder compreender

os fatos que

se

desenrolam ante seus olhos e converter

-

se em

seus porta-vozes". A crítica às situacõcs vi

gentes, sêbre a

qu

al são construídos os

s í s t e m ~ s ,

cons

titui, não há dúvida, valioso material de il.ustração; mas,

ao longo

d Q J . ( Q _ ~

bjstórico, tudo o

que

ela contém

de positivo está fadado a perder seuJ:'.alo.r_prático.._u.µ1

wstificaç.1o teórica. .

Só poderemos

aq

uilatar o caráter político dessa

declaração dentro do movimento socialista-comunista

de então, se considerarmos que ela se dirigia contra as

O

concepções que haviam imperado na pr?P;.ia " Liga dos

Justos" e que foram suplantadas pelas. ideias de M ~ r x .

Doze anos após a p u b l i , ~ a ç ã o .do M a m f e ~ t o Comunista,

Marx qualificou-as de doutrina

r ~ t a

. o n n a p ~ r

uma "mescla de socialismo ou comurns1 ;1o

f r a n c o - m g ~ s

e filosofia alemã", à qual êle . 9 P J I D 1 ª ~ c . Q 1 J l p r e e n s ~ o

científica da sociedade b u r ~ ~ o m o u ~ c a . . ba:e teo

n

ea

sustentávéI". O que Marx p r e t d i ~ , c ~ t ? o , era

ãemonstrar que não se trata de levar a pratica .um

sistema utópico qualquer, mas

de

colaborar. _:onsc1en

temente

no

processo histórico

de

transformaçao

da

so

ciedade

que sL v

_wfíca...ante os nossos olhos". ,; orta.n

to, o capítulo

do Manife sto que im

pugnav.a o utopis

_ }Q." tinha o significa

do

de

um

~ t o de p o I 1 t : c

1 ~ t e r ~ a ,

na acepção mais genuína· da .palavra; c l t u r v1tono

samente a luta

que Marx

, secundado por Engels, sus

tentara inicialmente dentro da própria Liga dos Justos"

(e

que agora se chamava "Liga dos C o m u n i s t a s ) ~

tra as demais tendências que se denominavam a si

mési

ii:.i

s, ou que eram denominadas por outras, de co

munistas. \Ç}_t.êr,mo "utópico" foi o último

,e

o .mais.

,afiado dardo desfechado nessa luta.

Eu disse acima: "secundado por Engels" . Con

tudo, não podemos deixar

de

aludir, aqui, a algumas

frases que, cêrca de dois anos antes

da redação do

Manifesto, Engels escreveu como intróito

à

sua tradu-

.ção de

um

fr::iem ento das obras póstumas de Fourier.

Também aí se fala das doutrinas que, no Manifesto,

são rejeitadas como utópicas; t&mbém aí Fourier, Saint

-Simon e Owen são citados; t;unbém

distingue-se

entre a v_liosa crítica à

so

ciect"de_yigente e a

c s g _ ~ e _

matizaçãq:, muito menos importante, da sociedadeJii

tura. Antes, contudo, e s c r ~ v e r a Engels: O

que

os

f r a n c e s e s e os inglêses

disseram há dez, vinte e mes

mo há quarenta anos e o disseram muito bem, de manei

ra

muito clara, numa bela linguagem - os alemães só

agora, hú questão de· um ano, aprenderam e hcgeliani

zaram ou, na melhor das hipóteses, tornaram a desce-

. bri-lo a posteriori, p u b l i c ~ n d o - o de u

ma

forma muito

pi

or

e mais abstrata,

~ o r n o se

fôsse uma descoberta

totalmente nova". E Engels acrescenta

li

teralmente:

Não excluo disso os meus próprios trabalhos". A luta,

portanto, é também contra o p r í o passado. Não

11

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r

l

bstante, mais importante ainda é a seguinte sentença:

Fourier constrói o futuro, após haver examinado devi

damente o passado e o presente . Isto deve ser con

frontado com o que o Manifesto alega contra o utopis-

mo. E não devemos nos esquecer que o Manifesto

foi escrito apenas dez anos após a morte de Fourier.

O

que Engels, trinta anos após o Manifesto, diz

em seu livro contra Dühring, sôbre aquêles mesmos

três grandes utopistas'', e o que pouco depois incluiu,

com alguns complementos,

na

obra

ie Entwicklung

des Sozialismus von der Utopie zur Wissenchaft

(Evo

lução do Socialismo

da

Utopia à Ciência), que tanta in

fluência exerceu, constitui mera elaboração do que já

figura no Manifesto.

O

que de imediato nos surpreen

de é que êle torne a ocupar-se somente dos mesmos

três homens, fundadores

rl

socialism9'', justa

mente dos que

er m

utopistas , pv.tque não podiam

ser outra coisa, numa época em que a produção capi

talista ainda se achava pouco desenvolvida / aquêles

que se viam obrigados a ''construir imaginàriamente os

elementos de uma sociedade nova,

ja

que êsses ele

mentos ainda

não

se manifestavam palpàvelmente

na

própria sociedade antiga . Não teriam aparecido, nos

trinta anos decorridos entre o

Manifesto

e o

A nti-Düh

ring, socialistas que,

na

opinião

de

Engels, merecessem

a

denominação

de

utopistas e fôssem

ao

mesmo tempo

dignos de atenção, mas aos quais não se poderia con

ceder aquelas circunstâncias atenuantes,

uma

vez que,

em sua época, as relações econômicas

se haviam de

senvolvido e os problemas sociais

não

mais se -acha

vam ocultos ? De Proudhon,

para

mencionar apenas o

maior

(um

de seus livros anteriores, As Contradições

Econômicas ou a Filosofia da Miséria fôra combatido

por Marx, ainda · antes

do Manifesto em

sua famosa

polêmica), havia surgido, entrementes,

uma

série de

obras importantes

qu

e não poderiam ser ignoradas por

uma doutrina ·'científica das relações e dos problemas

sociais. Figurava também êle

(de

cuja obra impug

nada por Marx, o Manifesto Comunista toma, não obs

tante, o conceito ele utopia socialista ) entre os uto

pistas e, precisamente, entre aquêles que não poderiam

ser justificados? Se bem que no

Manif

estv seja citado

c o n ~ o

exemplo dos scciali.stas conservadores

ou

bur-

12

gueses :Marx cm sua. obra polêmica, declara que

P r o u d h ~ n e s t a ~ a

muito abaixo dos socialistas, porque

não possui suficiente coragem e entendi_mento para ele

var-se acima

do

horizonte

da

burguesia, nem mesmo

especulativamente . Após a morte de : ~ o u d h ? ~ Marx

asseverou, primeiramente num necrolog10 oflc1al que

se via compelido a endossar tôdas as palavras

de

seu

J

u

iz

· o anterior e um ano mais tarde, numa carta, rea-

' ' d

l

firmou

qu

e Proudhon ocasionava

um

gran e.

1:ia

e

que com

sua

pseudocrítica ·e

s u ~

pseudo-opos1çao aos

utopistas seduzira a juventude e os t.rabalhadores. Um

ano mais tarde, porém,

e

nove anos antes

da

compo

si

çã

o do

Anti-Dühring

escreve

~ s

numa das sete

críticas que publicou anônimamente sôbre o primeiro

volume do Capital, que Marx pretendia

_

ar

às ~

cias socialistas a base científica

qu

e nem Fourier, nem

Proudlrone nem Lassalle hãVfãffiConseguido

dar

até

então , de onde se depreende, claramente, que catego

ria

a t r i b u í ~

a Proudhon, apesar

de

tudo. Se nos repor

tarmos à época que precedeu a polêmica de Marx,

veremos, por exemplo, que em Marx e Engels

(na

Sagrada . lília)

i a m

encontrado, na obra de

Proudhon acêrca da propriedade,

um

progresso cientí

fico que revoluciona a economia política e que, pela

primeira vez, -foniapossível uma verdadeira ciência da

economia política . Proudhon , prosseguem

os

autores,

além de escrever no intcrêssc p r o l e t á r i o ~ era

um

proletário e sua obra

é um

manifesto científico

do

proletariado francês

de

importância- históri

  . E

mais: num axtigo anônimo datado

de

maio

de

1846

- cêrca de meio ano antes

de

iniciar a redação

da

polêmica -

Marx

o designa como comunista , num

contexto de onde se depreende que, aos seus olhos,

P r ~ u d h o n

ainda

era um

comunista representativo. Que

tena ocorrido nesse íntérim para induzir Marx a mudar

tão·

~ a ~ i c a l m e n t e _ ~ p i u i l i . o ?

É

verdade

.q

ue as

C

;.

tradictwns de Proudhon vieram a lume mas essa obra

-

 

nao . representa, absolutamente, uma modificação subs-

t ~ n ~ r n l de suas concepções. Até mesmo a violenta.po

lem1ca contra a Utopia comunista (têrmo com que

~ r ? u d h ~ n

refere

ao

que nós . designamos de cole

hv1smo ) nao passa

de uma

forma elaborada

da

crí

tica

à

communauté que consta

do

primeiro tratado -

  3

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tão ~ a l t e c i d o por Marx - sôbre a propriedade (1840).

Mas, antes da publicação das Contradictions,

Pr

oudhon

e j e i t ~ r a um

convite de Marx para tra_balhar em cola

boração. A situação se nos torna mais clara, quando

lemo's o que Marx escreveu a Engels em julho de

1870

,

após a deflagração da guerra: Os franceses preci

sam

de

porretes. Se os prussianos v ~ n c e r e m , a centra

lização do state power se

proveitosa pa

ra

a cen

tralização da classe operár

ia

alemã. A predominância

dos alemães deslocaria

da

França para a Alemanha o

centro de gravidade do movimento operário da Europa

Ocidental; basta comparar o movim

ento

de ambos os

países ·de 1866 até hoje, para vermos que a c 1 ~ s s e

o p ~ r á r @ - 1 l e m ã

é

superioL.à..J:rancesa do_p..Qnto_je } 1 s t ~

te6ric9_

( .

por sua organização. Sua preponderanc1a

sôbre

a francesa,

no

cenário mundial, seria ao mesmo

tempo a preponderância de

nossa

teoria sôbre a de

Proud

hon

etc."

Trata-se

pois, eminentemente, de

um

atitude política. Pode-se, portanto, considerar como

conseqüência lógica o fato de E;igels, logo depois,

numa

polêmica contra Proudhon S?bre a Questao ~

radia), qualificá-lo de puro diletante, de opos1c1on.1sta

inepto e ignorante

em

_economia,

que

exorta

e se lastima

lá onde nÓSdemonstramos". Ao mesmo tempo, Prou

dhon

é nitidamente tachado

de

utopista: o mundo

melhor" que êle constrói é espezinhado já em sua

nascente pelos tacões em marcha

do

progresso in-

dustrial".

Prolonguei-me um tanto

sôbre

êsse a s p e c t ~ > , por

ser a melhor maneira

de

esclarecer um ponto impor

tante. l,nicialmente, Marx e

En

gels davam o nome d.e

utopistas àqueles cujas idéias_precederam .o desenvolvi

mento decisivo

da

indús.t.r..ia,

do

proletariado e

da

luta

de classes, e os quais não

poderiam ,

por isso, levar

êstes fatôres

em

co

nsideração.

~ s t e J i

o r m e n t e ,

êsse-

conceito foi aplicado i n d ~ s t a m e n ~ e a todos aquêles

que, segundo Marx e- Engels, não queriam ou não

podiam ou não podiam nem queriam l

evar

em conta

ês

ses fatôres. D esde então, a denominação

..:_utopista:'

pas

sou .a

se

r a

arma

mais p.oderosâ-da-1uta-do-marxismo

contra o socialismo não-marxista. Não há mais a preo

cupaçãõâe

demonstrar, a todos os momentos, que a

própria opinião é mais correta que a

do

adversári

o.

Via

4

I ·

de regra, por princípio, é exclusivamente no propno

campo que

se

encontra a ciência e, conseqüentemente ,'

a verdade; também, por pringpio, no

camRQ_Q{10Sto

e J.;:

contra-se e x c l u s v a m ~ t ç a J i t q p f i l e, conseqüentemente,

o ên:O: ~ í i l l i õ s s a época, ser "utopista'..'.. significa não

'estãfà do moderno desel}YPlvirnento industrial;

o que seja o moderno desenvolvimento industrial en

i n a - n o s o

ma

rxismo. A respeito daqueles utopistas

"pré-históricos": Saint-Simon, Fourier e Owen, ir-

mava Engels

em

1850,

na

Guerra dos Camponeses

Alemães, que o socialismo teórico alemão jamais es

queceria que se apoiava sôbre. os ombros dêsscs

ho m

ens

"que, apesar de tôdas as suas fantasias e

de

todo··o

seu utopis.mo, figuram entre os pensadores ~ r p -

po

r tantes

de

tôdas as éaocas, tendo antecipado inúme

s-vcrãaaes cu1a

exati ão hoje verificamos cientifica

mente".

Não

coghàm, porém, os marxistas, da possi

bilidade - o que constitui

um

a política conseqüente

- de que, também_hoj.e,.. p o s s a m e x i s t ~

conhecidos

ou

.desconhecidosL.ffi e_estejam antecipando

verdíl;.des cuja exfil s ão será verif@da pe]a_ciênci.ado'

futuro; ou, que a ciência" atual - ou melhor, uma

tenaênc

ia cie

nt

ífica

que se

identifica

c ~ m

a ciência

em

geral, como não raras vêzes sucede - esteja simples

mente decidida a considerá-l

as

inexatas, como já o fêz,

a seu tempo,

corri

os fun

dador

es do socialismo".

Aquêles eram utopislas precursores; Gstes são utopistas

<Wstrutores. Aquêles pr_g:>aravam o caminho para a

ciênci.i; estes o b l o q u e i a l l . ~ f e h z m e n t ê basta

ro

tulá-los de -utopistas para torná-los inócuos.

Permitam-me citar uma pequena experiênc

ia

pes

soal como exemplo dêsse método de pulverizacão d.o

adversário yor meio ..9a

r.otulaçã.Q. No

dia de Pen te

-êostcs de

19

2 8

, Tea

lizou.-se em Heppenheim, onde eu

então residia, um debate

1

entre dele

ga

dos socialistas

procedentes, principalmente,

de

grupos religiosos,

em

tôrno da possibilidade

de

se tornar a fomentar as fôr

ças internas

do

homem, sôbre as quais se apóia a fé

na

renovação socialista. Ao tomar a palavra, discÕrri

sôbre as questões normalmente n e g Q g ~ n c i a d a ~ e suma

mente concretas da descentralização e da forma de

trabalho.

Não se

deve rotular de utópico", disse eu,

d

( ) As

atas,

intitul11da.s

"Socialísmo

à

base

da

Fé , foram publí·

ca as cm Zurique, em 1929.

15

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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 aquilo em que

a i n d ~

não_pusemos nossa fô rça à a ~ ·

Isso não me impediu de ser alvo de uma observaçao

crítica por parte do presidente que, p l e s n 1 e n t ~ clas

sificou-me entre os utopistas, encerrando, com ss_o, o

assunto.

Mas, para que o socialism? saia d ~ s s e beco sem

saída em q u ~ se meteu, é preciso exammar o verd:i

deiro teor do têrmo utopistas:'.

6

II. O ASSUNTO

Já à primeira vista se nos torna patente o que

possuem em comum as utopias que figuram na história

da humanidade: elas são quadros ou imagens, e indu

bitàvelmente, quadros de algo que não existe, que

e

apenas imaginárib.- ueratmenfe, costuma-se conside

rá-las quadros-fanta,sia, mas isso não basta para defini

-l

as

. . uma_ an_ :asia

q u ~ o

div

c:

ga ,

~ j _ _ _ ~ ~

de lap para outro, 1mpUISionada por_ QCo rrênc1as

alternantes, mas que se centraliza com firmeza-tectõ

nica em um _elemento primordial e or iinário, o qmrt

d e v e r á _ . s ~ l a b o r a d o p o r _ e s s a

  t a s i a .

E êsse elemento

Primordial é um desejo. A imagem utópica é um

quadro do que deve ser , e o qm} seu autor desejaria

1

7

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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que viesse a ser. Costuma-se dizer também que as

utopias são imagens de_çl_es_ejQs mas isso, tampouco,

esgota o assunto.

Ao

falar em imagem

de

desejo, pen

samos em algo que sobe das profundezas do inconscien- '

te em forma de sonho, de sonho de vigília ou de ve

leidade , que ataca de surprêsa a alma desprevenida

e que, talvez mais tarde, seja assim chamado pela pró

pria alma e ampliado

por

ela. Através

<la

história

do

espírito, o desejo utópico gerador de imagens, embora

esteja, como tudo o que cria imagens, enraizado nas

profundezas,

nada

tem a ver com o instinto

ou

com a

a u t o g t t i s f ~ i i . 2 . : . . . :Ble se acha ligado a algo de super

pessoal que se comunica com a alma, mas que não se

acha condicionado por ela. O que aqui predomina é

o anseio pelo que é

ju§Jp

anseio que se experimenta

na

visão religiosa

ou

filosófica como revelação ou

idéia e que, por sua essência, não pode se realizar

no indivíduo mas somente na comunidade humana.

A visão daquilo que deve ser, muito embõfa--às vêzes

pareça ser independente

da

vontade pessoal, não pode

ser separada

da

atitude crítica em face

da

atual ma

neira

de

ser

do

mundo humano. O sofrimento que nos

causa um sistema absurdo prepara a alma

para

a visão

e o que esta

reforça e aprofunda a compreensão

da inexatidão

do

êrro. O desejo

de

que a visão se '

realize dá forma à imagem.

Na

revelação, a visão

do qu

e é justo se consuma

1

'

na

imagem de uiri t mpo perfeito: com.o escatologia

messiânica.

Na

idéia, a visão do justo se consuma

na

cmagem de

um esp.aço

perfeito: como utopia.

Por

sua

s s ê n c i a a primeira transcende o aspecto social, ocu

pando-se do

hom

em como criação, e até mesmo como

produto cósmico; a segunda permanece circunscrita ao

âmbito da sociedade, mesmo que, por vêzes, iné:lua em

sua imagem uma transformação interna do homem.

Es

catologia significa consumação da criação; utopia, de- ,

senvolvimento das possibilidades latentes

na

comuni

dade humana, de se concretizar uma ordem justa .

Há ainda uma outra diferença majs importante. Para

a escatologia - embora ela em sua forma elementar,

profética, prometa ao 1homem uma participação ativa

na

vinda da redenção _ _ o ato decisivo vem

de ~ i m a ;

para a utopia, tudo se acha submetido à vontade cons

ciente

do

homem, : podendo-se mesmo considerá-la

8

\

\ '

imagem

da

sociedade esboçada como se não eXistissem

outros fatôres al;m dessa vontade. Nenhuma das duas,

porém, paira pelas nuvens, Assim como pretendem

despertar ou intensificar em seu ouvinte ou leitor a

relação crítica com o presente querem também lhe

mostrar a perfeição, imbuída

da

fôrça luminosa

do

ab

soluto; mas

para

· atingir essa perfeição

é

preciso trilhar

um caminho ativo no presente. E

aq

uilo que, como

conceito, poderia parece r impossível suscita, como ima

gem, to

do

o poder da fé, determinando o propósito e o

plano. Isso se

torna

possível pelo fato

da

imagem estar

associa

da

a fôrças subjacentes nas profundezas

da

reali

dade. A escatologia, quando profética, e a utopia, ·

quando filosófica, possuem

um

caráter realista.

A era

do

Iluminismo e a que se lhe seguiu desapos

saram, progressivamente, a escatologia religiosa de sua

esfera de ação; no transcurso de dez gerações tornou-se

cada vez mais difícil para o homem acreditar que, em

dado momento futuro,

um

ato divino redimiria o mundo

dos homens, isto

é

tornaria lógico o absurdo e harmô

nico o desarmônico; essa incapacidade cresceu

de

mo-

.

do

considerável, até se converter, pràticamente, numa

impossibilidade física, tanto nos homens de crença re

ligiosa como nos incrédúlos, apenas com a diferença

de que, nos primeiros, essa incapacidade permanece

encoberta à consciência, por continuarem vinculados à

tradição. Por óutro lado, a era da técnica da máquina

e da eclosão dos antagonismos sociais exerceu pro

funda influência sôbre a utopia. Sob o influxo d'a

orientação pantécnica do espírito, também a.utopia, nãc

raro, torna-se de alto a baixo técnica; a vontáde cons .

ciente do homem, s ô ~ r e a qual sempre se fundamentou,

é

agora compreendida em

~ ~ ~ i c g

assim como

. à natureza, pretende-se dominartam em a sociedade

por meio do cálculo e da construção técnicas. Essa

sociedade, porém, com suas contradições, apresenta-se

agora

ao

homem como questão inelutável; todo pen-

1

sarnento e todos os planos sôbre o futuro são forçados

a buscar-lhe

uma

solução também

na

utopia, ,o plane

jamento político e cultural cede o passo diante da ta-

refa

de

se traçar uma ordem correta para a sociedade.

Mas, neste ponto, o pensamento social evidencia

sua

categoria superior frente

ao

pensamento técnico: a ·

utopia que se entrega à fantasia técnica só encontra

9

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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abrigo em

um

gênero romanesco bastante pobre,

onde ainda mal descobrimos algo

da

fôrça imaginativa

das grandes utopias antigas; de outra

parte

, aquela que

empreende a tarefa de esboçar os planos de

uma

edifica

ção perfeita da socieda

de

transforma-se, pelo contrário,

em sistema e essa utopia, êsse sistema social utópico ,

recolhe então tôda a fôr

ça do

messianismo desapossado.

O sistema sócial do socialismo e comunismo modernos

tem, como a escatologia, o caráter

de anun

ciação e

proclamação. ·

f:

verdade

que

Platão

agira impelido

pelo anseio

de estabe

lecer

uma

realidade conforme a

idéia, e até o fim de sua existência buscou,

com

in

cansável paixão, instrumentos humanos

para

a

sua

rea

lização. Mas é

só com

o socialismo moderno

que

se

inicia êsse entrelaçamento intensivo

de

doutrina e ação,

de

projeto e experiência. P

ara

Thomas Morus ainda

foi possível mesclar ensinamentos sérios

com

um

jôgo

sem compromissos, e alternar

com

superior ironia a

exposição de instituições

muito

absurdas

com

outras

que êle antes deseja do que espera que sejam imita

das.

Para

Fourier, isso

á não

é possível; nêle, tudo é

conseqüência prática e determinação lógica, visto que

o que importa é sair definitivamente de uma civiliza

ção

que, longe de

se

constituir no destino social do

homem, não passa

de uma

moléstia infantil .do gênero

humano .

A impressionànte polêmica

de Marx

e F.ngels fêz '

com

que, tanto dentro como fora do marxismo, o têr

mo ·•utópico passasse a ser aplicado

co

rrentemente a

um

socialismo que apela

à raz

ão, à justiça e

à

vontade

do homem

de

ordenar

uma

sociedade .desarticulada ,

ao

invés de limitar-se a apresentar

à

consciência ativa

o que

as

condições

de

produção

haviam

preparado

dialeticamente. Considera-se como utópico todo

so

- •

cialismo voluntarista, o que, de modo algum, significa

que esteja isento

de

utopia o socialismo que a êle

se

opõe, e que poderia ser classificado de ,necessitarista,

por declarar que sua única exigência é 'que se faça o

necessário para

que

sobrevenha a evolução. Os ele

mentos utópicos que êste contém são, evidentemente,

de

outro

gênero e afetam a outra ordem

de

idéias.

Já mencionei que a fôrça

da

escatologia despojada

se

transformou

em

utopia

na

época

da

Revolução

Fran-

cesa. Ma s, como já indiquei, existem duas formas

2

fundamentais ' de escatologia: uma profética, que faz

depender a preparação da redenção

__

em qualquer

momento dado e em

proporç

ões imprevisíveis - da

fôrça da resoluçã<? de todo homem a quem se dirija;

uma apocalífúca, para a qual o processo de redenção foi

fixado desde a eternidade

em

todos

os

pormenores,

com

suas datas e prazos, e para cuja realização os homens

servem apenas de instrumento. Contudo, pode-se sem-

pre

re

velar, descobrir  antecipadamente o inalterável

aos homens, indicando-lhes a função

que

lhes compete.

A primeira dessas formas fundamentais procede de Is-

rael; a segunda, do antigo Irã. As diferenças, com

parações, combinações e sepa

ra

ções entre elas cons

tituem

uma parte

importante

da

história interna

do

cristianismo.

Na

secularização socialista da escatolo-

gia,· ambas

atuam

separadamente: a forma essencial- ,

mente profética, em alguns dos sistemas dos chamados

utopistas; a apocalíptica, especialmente no marxismo (o S

que não significa que êste não tenha absorvido algum

elemento profético que foi, porém, subjugado pelo apo-

..

calíptico). A fé

no

caminho em que a· humanidade,

através do êrro, atinge sua superação, assume em Marx -  >

a forma de dialética hegeliana

quando se

utiliza de .,

uma investigação científica dos processos ·

de

produção.

Mas a visão das revoluções vindouras - assim como

;.

das passadas -

  dentro

da cadeia .

da

necessidade <:

absoluta'', como diz Hegel, não foi tomada dêste últi-

mo. A atitude fundan1ental apocalíptica de Marx é mais

p u r ~ e. ma.is intensa que a

de

Hegel, que carece um i'-

autentico impulso para o futuro. Com razão, assinalou

Franz Rosenzweig que Marx se manteve mais fiel do

que o · próprio Hegel à crença ]legeliana no destino

hjstórico: ninguém como êle foi caPãz

de ver

onde,

ê õ ~

que

forma despontaria

no

céu

da

História a

época

da

consumação . O ponto

em

que o ímpeto

apocalíptico-utópico de Marx se desencadeia e conve

rte

todo conceito econômico e científico

em

. pura utopia,

é quando fala da transformação de tôdas as coisas que

se su ederá à revolução:social. A utopia dos chamados

utopistas

é

pré-revolucionária, a marxista é pós-revo

lucionária. A extinção do Estado, o salto da hu

manidade

do

reino

da n e c e s s i d ~ d e

para o

da Jiberd11de"

continua a fundamentar-se

na

dialética, mas

não

tem

n ~ s ciepU \E.ac.. Como

diz

qm

pens

ador

marxista,

l 3 . : 2 : t . . ~ ~ - . . . fo

21

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parte, envofv

er

o povo com doutrinas. Não incorramos

no

êrro do seu compatriota Martim Lutero que, depois

de haver derrubado a teologia católica,. dedicou-se, sem

perda de tempo, e fazendo grande alarde de excomu

nhões e anátemas, a fundar uma teologia protestante

Não nos convertamos, pelo fato de estarmos à frente de

um

movimento, em chefes de

uma

nova intolerância;

não

nos

comportemos como apóstolos

de

uma nova reli

gião, mesmo que essa religião seja a da lógica e da

razão". Embora êle aqui se refira, essencialmente, ao

método político, muitas declarações

de

Proudhon ates

tam que êfo também via a meta sob fl luz da liberdade

· e

da

diversidade. Cinqüenta anos após essa carta,

Kropotkin resume a idéia fundamental

do

objetivo nu

ma única frase: o desenvolvimento máximo da ind ivi

dual

id

ade de

verá

combinar-se

com

o desenvolvimento

má.ximó da associação espontânea, em todos os seus

aspectos, em todos os graus possíveis, e para

JS

fins

mais variados:

uma

associação em ·

tr

ansformação con

tínua, que traga em ·si mesma os elementos de .sua

duração e que, em todos os momentos, adote as formas

que melhor correspondam à aspiração de todos".

Era

exatamente o que queria Proudhon

na

maturidade .

do

seu pensamento. Pode-se

ob

jetar que a

meta.

final

marxista não é essencialmente diferente; aqui,

po

rém,

abre-se

um

abismo (que só poderá ser superado por

meio daquele · utopismo marxista especial) entre a

transformação futura que se realizará algum dia, e quem

sabe quanto tempo após o triunfo definitivo da revolu

ção, por um lado

e,

por outro, o caminho que conduz à

revg µção e à época subseqüente à revolução, caminho

caract

er

iza

por um

centralismo total e que não

tolera nenhum aspecto ou iniciativa que não sejam os

seus. Misteriosamente, a uniformidade como caminho

feva à diversidade corno meta final; e, misteriosamente,

a coação como caminho leva à liberdade como meta

final.

9

socialismo "utópi

co

não-marxista, pelo con

trário, busca

um

caminho substancialmente idêntico à

sua meta . inal. E le nega a crer que, confiando no

"salto" que será dado algum dia, se deva preparar, c

trementes, o contrário daquilo que se deseja alcançar;

acredita que é preciso criar, desde já, atmosfera

possível e necess ária para a·

tr

ansformação futura. 1::1e

não acredita no salto R_Ós-revolucionário, e sim na con-

  4

;

.•

1

tinuidade revolucionária, ou melhor: numa êontinui

dade dentro

da

qual a revolução significa somente o

cumprimento, a libertação, a ampliação de uma reali

dade que, dentro do possível,

se desenrolou.

' Encarada por outro ângulo, essa diferença poderá

\ ser ainda melhor escJarecida. Quando examinamos o

1

caráter da sociedade capitalista onde surgiu o socialismo,

e-

observamos que se trntn de

uma

sociedade estrutural-

 

m e n t e pobre e que

se

tornará cada vez mais pobre.

Por estrutura de uma sociedade deve-se entender sua

iqueza

em

organismos sociais ou comunai

s.

Pode-se

dizer que uma sociedade é ricamente estruturada, quan-

do ela se organiza com base em sociedades autênticas,

isto é, em comunidades de ação e trabalho e em suas

subseqüentes agrupações. O que Gierke d iz

do

movi

mento unido

de

cooperativas.

da

Idade Média, pode-se

dizer de tôda sociedade _ricamente estruturada:

Ela

se caracteriza por uma tendência a ampliar e expandir

as associações, a formar outras que abranjam as coope

rativas menores, a form

ar

federações de associações iso

ladas, e amplas federações de conjunto, que abranjam

as federações particulares". Sempre que analisamos a

estrutura de uma sociedade dêsse gênero, encontramos

o tecido celular "sociedade", isto é,

um

agrupamento

maciço de sêres, uma convivência de criaturas huma

nas dotada de ampla autonomia e que se forma e refor

ma a partir

de

seu interior. A sociedade, por sua pró

pria natureza, l .ãO

é

constituída de indivíduos isolados,

mas de unidades societárias e seus agrupamentos. Pela

coação

da

economia e do Estado capitalista, essa essên

cia se foi alterando progressivamente, de sorte que o

moderno processo de individualização se . efetuou em

forma de desintegração. As antigas formas orgânicas

. . . .

contmuaram a existir em seu aspecto extenor, mas per-

deram seu sentido e sua alma: converteram-se em tessi

tura decadente. Não só o que se chama as massas, mas

tôda a sociedade é

amo

rfa, invertebrada, pobre

de

es

trutura. Não é por meio das associações resultantes da

união de interêsses econômicos ou espirituais - das

quais é o partido o mais forte - que êsse mal poderá

ser sanado. Se os homens se unem nessas' associações

não é mais por similit

ud

e de existência, e em tôdas elas

se busca inutilmente a compensação para as formas de

comunidade perdidas. · Contra êssc estado de coisas, que

5

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faz com que a sociedade se ponha em contradição col

sigo mesma, os socialistas utópicos , em número cres

cente, aspiraram a uma reestruturação da sociedade -

não;. como pretende a crítica marxista,

no

intuito român

ticq::de renovar fases evolutivas

superadas, mas

com

o

aúxílio das tendências descentralizadoras per-ceptfveis

no

seio

do

processo social e econômico

e,

também, com o

auxílio da rebelião mais profunda, que vai crescendo

paulatinamente

na

alma

do

homem, a rebelião contra a

solidão

em

massa ou coletiva.

Victor Hug__u h m ou a utopia de a verdade ma

tutina . O anseio espiritual chamado socialismo utópi

co, que parece condenado a permanecer divorci_ado de

·sua época, prepara a futura estrutura da sociedade:

prepara'', já que não existe

um

curso da

Hi

stória ne

cessário em si, independente da decisão do homem.

Essa tendência, evidentemente,

terá que

conservar as

formas comunitárias ainda existentes e animá-las com

um

nôvo espírito. Sôbre o porta l do centralismo mar- ·

xista acha-se gravada, por tempo indeterminado, a ins

crição com que Engels definiu, certa ocasião, a tirania

do

mecanismo automático de uma grande fábrica :

Las-

ciate ogni autonomia voi ch entrate

( renunciai a tôda

autonomia, vós que entrais ). socialismo utópico 

luta pelo máximo de autonomia comunÁtária possível,

dentro de uma reestruturação da sociedade.

.S possível haver realizações ilusórias

do

socialis

mo, onde a verdadeira convivência

dos

homens se mo

difique muito pouco , dissera eu, naquela assembléia

socialista de

1928. A

verdadeira convivência só po

derá prosperar quando os homens experimentarem, dis

cutirem e administrarem, em comum, os fatos reais de

suas vidas,

onde existam verdadeiros núcleos de ha

bitação e verdadeiras cooperativas de trabalho. Na ex

periência russa,

por

exemplo, vemos que as relações

entre os homens permanecem essencialmente inaltera

das quando

se

inserem numa organização de poder so

cialista-centralista, que determina

a

vida das pessoas e

a vida dos grupos sociais naturais. Naturalmente,

não

podemos e nem queremos voltar ao comunismo agrário

primitivo e nem

ao

estado corporativo do cristianismo

medieval. Sem

qu

alquer romantismo e, vivendo no pre

sente, temos

que

edificar

uma

autêntica comunidade

com os materiais renitentes

do

nosso momento histó

rico .

6

\

III.

OS

PRIMEIROS

·

Já assinalei a existência, no socjalismo utópico '}

de um elemento de edificação e planejamento orgânico

que procura reestruturar a sociedade e, isso, não após

a

extinÇão da ditadura

do

proletariado

num

futuro

indeterminado, mas aqui

e

agora, a partir das condições

atuais. Se isso de fato acontece, é preciso que a histó

ria do

socialismo utópico possa mostrar

a

linha evo

lutiva dêsse elemento.

Na história

do

socialismo

utó

pico  destacam-se

. rês ·pares de pensadores ativos, agrupados nessa dispo

sição em função da geração a que pertencem: Saint- :

-Simon e Fourier, Owen e Proudhon, Kropotkin e

Lan-

dauer.

Em

meio ao segundo dêsses pares, acha-se o

7

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marco decisivo que separa a primeira fase dêsse socia

lismo - contemporânea dos

prin

cípios

do

grande capi

talismo - da segunda, contemporânea de s ~ u apogeu.

Na

primeira fase, cad a pensador contribui

com

um úni

co

pensamento construtivo, e seus pensamentos se jus

tapõeín, embora

de

início permaneçam estranhos e ina

cessíveis entre si;

já na

segunda, Proudhon e seus suces

sores rea.lizam a

ampla

síntese, a idéia. sintética da

reestruturação. Cada estágio ocupa um lugar imper

mutável.

A

fim

de

esclarecer as relações de idade,

co

nvém

citarmo·s algumas cifras. Saint-Simon nasceu doze anos

a n t ~ s . .de_Fourier e faleceu doze anos antes dêle.

Não

obstante; ambos pertencem à mesma geração, a que

nasceu antes da grande Revolução Francesa e se extin

guiu antes _1848; a única particularidade é

qu

e Fou-

rier, o

ma

is jovem, ainda pertence em sua essência ao

século XVIII, ao passo que o µiais velho, Saint-Simon,

já pertence ao século XIX. Owen- nasceu

ant

es da Re

vqlução. Proudhon na época das vitóriãs napoleónicas;

por seu nascimento, portanto, pertencem a gerações di

ferentes, mas a

m o r t e

que' para ambos sobreveio entre

1848 e 1870, toma a uni-los numa única geração. Isso

se repete com

Kr

opo

tkin, nascido antes de

1848,

e

Landauer, nascido em 1870, ambos falecidos pouco

após a primeira guerra mundial.

Saint-Simon - de quem Lorenz von Stein, o funda

dor da ciência d a Sociologia, com razão afirma ter sido

" o pr imeiro a entender em parte, e  

parte

adivi

nh

ar

o poder, os elementos e as contradições da sociedade

(isto

é, da

sociedade como tal, em sua diferença

do

Es

tado) . - traz a primei

ra

contribuição, que_ também foi

a mais importante de sua época. A "crise pubertária

-em que se encontra o gênero hu

ma

no significa para êle

que "le régime industriei", a constituição dos produto-

res, t

erá

de assumir o comando. Podemos também for

mulá-lo

da

seguinte maneira: a cisão do conjunto so

cial em duas ordens essencialmente diferentes e

anta-

gônic

as

entre si , ou seja, a ordem coercitiva

do

Estado

e a ordem espontânea da sociedade, terão de ser substi

tuídas por uma estrutura uniforme. Até agora, a socie

dade foi regida por um "govêrno"; mais adiante, será

governada por uma ad ministração" que não deverá ser

confiada, como aquêle, a uma camada oposta à socie-

  8

d a ~ e e integrada por, · · ~ g i s t ~ e militares, mas aos lí

deres naturais

da

p r o p

~ . 2 . Q C t e d a d e ,

aos chefes

de

~ u a

produção. Que não mais ocorra, como

n ~ s r e v o l ~ ç ? e s

históricas, que um grupo de governantes se1a subst1tu1do

por

o u t r o ~ o fato de a polícia continua:_ sendo necessária

não significa que deva haver um governo como o que

existiu até agora. "

Para

os produtores, não há o menor

interêsse em ser saqueados por uma classe de parasitas,

ao invés de outra. . . Claro está que a l

ut

a final entre

a massa _

de

_ parasitas e a

mas sa

dos

produtores

é que

i

-ciecidir

se

êstes continuarão a ser vítimas daqueles

ou se assumirão a direção suprema da sociedade". O

ingênuo convite formulado por Saint-Simon

aos

senho

res trabalhadores"

para

que elejam como chefes aos

seus diretores, visando fundir numa única classe os ca

pÜalistas ativos con:i os proletários,   c l u i a < espeito

de seu alheamento da realidade, a visão de uma_ordem

futura onde ·não exista

outra

dir

eçã

o senão a necessária

para as próprias funções sociais, e onde a política venha

a ser realmente o que deve ser segundo a definição

de

Saint-Simon: a ciência da p r o d u ç ~ o ou seja, dos

pré-requisitos favoráveis a esta. Os governos, por sua

essência, não podem fazer essa política: ''o govêrno

sempre

pr

eju

di

ca

a indústria,

quando

se imiscui nos

negócios desta, e a prejudica mesmo quando procu

ra

est imulá-la". Somente

com

a superação do "govêrno",

como tal, será possível tirar a sociedade da "extrema

desordem"

em

que se encontra, do estado de nação que,

sendo "essencialmente industrial", possui um govêrno

"essencialmente feudal" e

da

divisão em duas classes:

"uma que manda e outra que obedece (o saint-simo

nista Bazard, após a morte

de

seu mestre, em 1829, for

mulou-o

de

maneira ainda mais acerba: "duas classes:

os exploradores e os explorados ). A época atual é

de

tr

ansição, não

de um

tipo

de

govêrno para outro·,

mas

de uma

ordem aparente

para uma

ordem verdadei

ra, na qual " Q trabalho se tenha convertido em fonte

ele tôdas as virtudes" e ''o Estado na irmandade dos

trabalhadores" (fórmula dos saint-simonistas).

Este

pusso não pode ser dado por

uma

única nação, pois se

ria combatida pelas demais; é preciso inst

aurar

em tôda

a

Europa

o "sistema industrial" e aniquilar o sistema

fo

udal,

que

subsiste sob sua forma burguesa. Isto é o

que

i n t - S i m o n

cha

ma

de europeísmo  . Contudo,

9

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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êle não pretende com isso modificar unicamente as re

lações entre os diretores e os dirigidos, pois compreende

muito bem que a modificação deverá estender-se a tôda

a estrutura interna da sociedade. No momento em que

a constituição industrial estiver "madura", ou seja, no

momento em que a sociedade estiver madura para ado

tá-la, ela "poderá ser estabelecida com certa precisão

através desta condição fundamenta : que os indivíduos

da grande maioria da população se tenham incorpo- ,

rado a associações industriais, mais ou menos numero

sas, entrelaçadas de duas em duas, ou de três em três

etc., por vínculos industriais, de molde a permitir a ins

tituição de um ' sistema geral em que essas associações

se dirijam para um grande fim industrial comum, sendo

que elas mesmas se coordenarão de acôrdo com as suas

funções". Neste ponto, Saint-Simon se ·aproxima muito

·da idéia da reestruturação. O que lhe falta é a concepção

das unidades sociais genuínas e orgânicas, sôbre as quais

possa ser edificada essa reestruturaç

ão.

O conceito de

"associação industrial" não basta para isso. Saint-Simon

pressentiu, mas não percebeu a importância que tem a

pequena unidade social na transformação da sociedade.

Já para Fourier, essa unidade sor.ial é tudo.

:Ble

acredita haver descoberto "o segrêdo

da

associação",

vendo nêle "o segrêdo

da

união de interêsses" - fór

mula que provém da mesma época (por volta de

1820)

em que Saint-Simon dava forma definitiva ao seu "sis

tema industrial". Com razão ooservou Charles Gide que

Fourier, com isso, se estava pronunciando contra o le

gado da Revolução Francesa, que impugnava o direito

de associação e proibia o sindicato. E que .êle certa

mente, se opôs a êsse legado porque, com a destruição

da hierarquia das antigas corporações, surgiu o princí

pio "anárquico" da livre concorrência, princípio que

como predisse em 1843 Considérant, o discípulo mais

importante de Fourier, em seu Manifesto sôbre os prin

cípios do socialismo (que ao que parece influenciou o

Manifesto Comunista, iria redundar na criação de

uma situação diametralmente oposta

à

que se pretendia

com a sua implantação, ou seja: na

g a n i ~ a ç ã o

geral

de grandes monopólios, em todos os ramos". O que

Fourier opõe·a êsse princípio

é

l'association communale

sur le terrain de la production et de la consommation

(como o formula o próprio Considérant em

1848),

ou

3

st:

ja a formação de unidades sociais comúnais baseadas

na ; elação de produção e consumo. Isso significa re

fo rmar a comuna rural, que é encarada como l élement

atvéolaire de la societé - conceito que, naturalmente,

tamb ém não se encontra em Fourier, mas na escola

influenciada por Owen (a quem Fourier não quis ler).

Somente a associação livre e espontânea, escreve êle

eô1 1848, p o ~ ç ~ s o l v e r o g r a n d ~ problema do futuro,

"o problema da organização da nova ordem, da ordem

ern-que o individualismo se combina espontâneamente

ao coletivismo

(sic) ".

Somente através dêsse caminho

"será possível chegar

à

terceira e última evolução eman

ci

padora

da

história". Assim como a primeira conver

teu

os

escravos em servos e a segunda

os

servos em

trabalhadores assalariados (concepção que já encontra

mo

s em Bazard em 1829), a terceira induzirá

supres

são do proletariado, à transformação dos trabalhadores

as

salariados em assóciados". Em vão, porém, procura

remos a realização concreta dos princípios de Fourier

nus

exposições que êle faz de seu sistema

ou nos

esbo

ços de seus projetos. íSeu F.alanstério foi comparado a

um grande hotel e, de fato, apresenta certa semelhança

c

om_

aquêles hotéis contemporâneos que suprem, na

medida do posslvel, a maior parte de suas necessidades

cem produção própria; só que aqui, são qs ptóprios hós

pedes a se encarregarem da produção, e em lugar das

poucas normas de conduta que, via de regra, se encon

tram em todo quarto de hotel, existe uma lei exata e

sem lacunas que, embora proporcione certos estímulos

e deixe intacta por princípio a liberdade de decisão

regula a vida diária em todos os seus detalhes. A

i n s ~

tância.suprema, o Areópago, não ordena, limitando-se

a dar instruções, e cada grupo "age segundo a sua von

tade"; mas essa vontade não pode divergir em absoluto

do Areópago, pois êste representa a

puissance d'opi-

mon . Por mais bizarra que nos pareça essa lei em mui

tos aspectos, ela contém idéias importantes e

focu

ndas,

como a da alternação de atividades heterogêneas, noção

que já p ~ e f i g u r a na "divisão de trabalho no tempo", de

Kropotkm. De outro lado, porém, e justamente quando

encarado por êste ângulo, o Falanstério se apresenta

como instituição sumamente anti-socialista. Adivisão de

traba lho que toca ao pobre Lucas durante um dia estivo

leva-o do estábulo para o jardim, dêste para a ceifadora,

3

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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a horta, a manufatura etc., ao passo que a divisão do

dia de trabalho

do

rico

Mondor

leva-o

do

desfile in

dustrial para a caça, desta para a pesca, a biblioteca,

as refinarias etc.

Quando

lemos que os pobres deve

riàm gozar de um bem-estar graduado para que os ricos

sejam felizes ,

ou então

que somente através

da "mais

extrema desigualdade das riquezas é que se chega a

êsse belo acôrdo da generosidade , que consiste na

renúncia dos ricos à maior parte de seus dividendos em

favor do trabalho e do talento, constatamos que essas

unidades cunhadas

na

matriz

de uma

fantasia mecânica

não têm o direito de ser as células de uma nova ordem ·

justa. Já por

sua

uniformidade - em cada peça se

re

pete o mesmo esquema, a mesma maquinaria, a despei

to

de

tôda a enganadora diversidade interior - elas

seriam totalmente inadequadas

para

uma reestruturação

da sociedade. A

"harmonia

universal de Fourier, que

abrange o cosmo e a sociedade, rege apenas as relações

entre os indivíduos que vivem juntos,

não

entre as uni

dades (embora alguns tenham chegado a imaginar

uma federação de falanges ). O sistema

não

se ocupa

das relações entre as unidades. Cada qual constitui

um

mundo à parte, idêntico aos demais, mas elas não são

regidas pelas leis

de

atração vigentes

no

universo; não

se associam, não formam unidades superiores

e

nem se

riam capazes de fazê-lo, pois, diversamente dos indiví

duos, são iguais umas às outras. Como não se

comp

le

mentam, tampouco podem-se han;nonizar. O pensamen

to de Fourier

deu

forte impulso ao movimento

cooperativista e às suas obras, particularmente às ·asso

ciações de consumidoi:es;

mas

a idéia .construtiva do

•·socialismo utopista

só pode

adotá-lo superando-o.

Em

1822 vinha a

lume

a obra principal de Fourier,

o Tratado da Associação Agrícola Doméstica;

em

1821

e 1822, l e Systeme lndustriel de Saint-Simon, e é de

1820 o Comurúcado ao Condado e Lanark, de

Robert

Owen, publicado

em

1821,

que

é a exposição definitiva

de

seu

"Plano"

.

Mas

a Théorie des Quatre Mouve-

ments et des Destinées Générales, de Fourier, apareceu

em 1808, De la R éorganisation de l Société Européenne

da Saint-Simon

em 1814

, e ·  m 1813 e 1814,

A

New

View of Society, a fundamentação teórica dos planos

de

Owen.

Se

continuarmos retrocedendo alguns anos,

tropeçaremos, em princípios do século,

com

a primeira

3

obra de Saint-Simon, onde já se anuncia a crise iminente

d

humanidade, e

com

o artigo de

Fourier

sôbre a

har

monia universal, que

pode

ser considerado o primeiro

esbôço de sua doutrina. Ao mesmo tempo, porém, en- ·

contramos Owen em atividades

puramente

práticas, .JlO

cotonifício

de

New

Lanark,

onde criou instituições so

cia is exemplares. Sua doutrina, ao contrário das de

Saint-Simon e u r i e r é resultado dessas tentativas e

experiências práticas.

Ela

é, conhecesse Owen

ou

não algo das teorias de Fourier, sua réplica a estas, do

ponto

de

vista

da

história

do

espírito, é

a

solução empí

rica n f r ~ n t a n d o a solução especulativa. Aqui, pode-se

classificar

como

orgânicas

as

unidades sociais

sôbre

as

qua is se

pr

etende reconstruir a sociedade; são comuni

dades de número limitado, erigidas sôbre uma base agrí

cola, apoiadas no i:-r.incípio da associação

de

trabalho,

de consumo e de propriedade, assim como de igualda

de de privilégios  e

onde

todos os membros deverão ter

" Í f _ t ~ r ê s s e s

mútuos e comuns  . Já, aqui, podemos ver

como Owen, diferentemente de Fourier, alcança

a

com

preensão dos requisitos elementares

da

comunidade au

têntica, entre os quais não figura, necessàriamente nem

de maneira exclusiva, a proprie

dade

comum, e .sim uma

forma , união e

de

. associação

de

bens e, tampouco,

~ e c e s s a n a m e n t e uma igualdade de consumo, e sim uma

igualdade de direitos e facilidades. A

"vida

comunitá

ria , diz Tonnies das formas históricas da comunida

de  - ou seja, da convivência duradora e genuína 

dos h?mens - "é propriedade e usufruto mútuos, e é

Ipropnedad_e e

u s ~ ~ u t o ~ e

bens comuns . Ou, em outras

P ª ª ~ r a e admm1straçao em

comum

, na qual podem

existir. bens pessoais fora dos comunais, apesar de que,

em

virtude da constituição da economia comum (de

1 man_eira muito diferente do esquema

de

Fourier),

as

diferenças de propriedade permaneçam dentro de li

mites muito reduzidos, e, em conseqüência da reciproc .

d a ~ e

do

auxílio

mútuo

e

da

colaboração, em sentido

l mais geral, -

mútuo

dar e rec eb er - vem a se realizar

' aquilo que aqui. se denomina "propriedade e usufruto

mútuos , ou seja, participação adequada

dt

cada mem

bro na vida _dos demais. justamente nessa concepção

se. baseia o plano de Owen. (Posteriormente, êle

ira .mais além, incluindo "a comunidade de bens e a

soc1ação cooperativa

entre

os supremos princípios do

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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projeto da colônia.) :lile

não

ignora que, para rea lizá

-la,

é necessária ·

uma

grande atividade educativa.

Até

agora ninguém foi educado

de

acôrdo

com

princípios

que permitam proceder unificadamente, salvo

para

de

fender-se ou

para

destruir a outros.

Uma

necessidade

giualménte imperiosa obrigará agora os homens a

educarem-se

para

agir em conj

un

to,

para

criar e man

 

r.

  Owen..1iabe

que

o

que se

pretende

em

definitivo

é

uma transformação de tôda a

ordem

social

e

especial

mente, das relações

entre

governantes e governados.

Até

hoje, o interêsse dos que governam

semp

re pareceu,

e nos atuais sistemas sem

pre

parecerá, contrário ao da

queles aos quais governam. Isso continuará sendo

assim,

e

nquanto o

homem perm

anecer individualiza- ·

do , enquanto a sociedade não

se

edificar à base de viu-

.culações autênticas entre os indivíduos.

Essa

transfor

mação será efetuada, antes, em cada uma das aldeias

comunais projetadas, expandindo-se, mais tarde,

para

at

ingir a totalidade. A comissão que dirige cada aldeia

'.'fo

rmará

um govêrno local permanente e habilitado ,

que não se oponha

às pe

ssoas governadas,

mas

este

ja

lntimamente vinculado com elas . Os problemas que

Owen

~ e n o m i n a

de

a

relação das novas instituições

com

o govêrno do país.e com a sociedade antiga con

tinuam a existir,

sem

sombra de dúvida; mas des

sa

de

nominação

a

sociedade' 'antiga

á se depr

eende,

e l a ~

ramente, que Owen imagina a nova sociedade crescen

do em m io

à antiga e

reno

vando-a

por

dentro. · Assim

sendo, diversas etapas evolutivas da nova sociedade de

verão coexistir, necessàriamel)te. Vamos encontrar um

exemplo característico nesse senti

do

,

no

projeto dos es

tatutos inspirado por Owen, da Associação de tôdas as

classes de tôdas as nações , fundada

em

1835,

que

logo

passou a se

chamar

o ~ . so_cialistas , denominação

q@

então surgia pela primeira vez. Das três repartições

dessa associação, as duas inferiores

não têm

outra fun

ção que a

de

sociedades

de

consumo,

ao

passo que a

terceira deverá constituir-se numa irmandade que forme

uma classe única de produtores e consumidores, onde

as

diferenças serão apenas de idade, e

onde

não haverá

sacerdot

es

advogados, militares, vendedores

nem

com

pradores . Isso, certamente, é utopia,

mas

do tipo

especial sem o qu

al

não há ciência capaz de transfor

mar a spciedade.

4

A trajetória evolutiva que vai de Saint-Simon a

Fourier e a Owen

não é um

processo cronológico. :asses

três homens, a quem Engels denomi

na

os fundadores

do

socialismo, exer

ceram

suas

at i

vidades mais ou menos

ao mesmo tempo; poder-se-ia dizer que, nessa evolução,

êles constituem fases de superação simultâneas. Saint

-Simon começa: a sociedade deve passar de

uma

ordem

dual

para outra

unitária; a direção de

co

nju

nto

deve

ser efetuada com base nas próprias funções sociais, sem

que

se lhe

sobr

eponha a ord

em

política, como camada

à

parte

de

essência diferente.

Ao

que

contestam tanto

Fourier como Owen, dizendo

que

isso

é possível e

permissível, a partir de uma sociedade que coordene a

produção e o consumo, isto

é,

que seja composta por

,unidades em

que

ambos se relacionem diretamente, e

por

comunidades menores

que

trabalhem em grandes

proporções

para

o própri9 consumo. A resposta .de

Fourier diz que

cada uma

dessas unidades deve

ser

cons

tituída como a sociedade

atua

l,

no

que se refere a bens

e necessidades dos indivíduos, m as passando do anta

gonismo para a h

ar

monia, ~ e i n t o entrosamento

'dos instintos e das atividades.

f resp

os

ta

de Owen, pelo

contrário, diz que a transformação da sociedade deve

·operar-se

tanto

em sua

estrutura

tot

al, como

em

cada

uma de suas células: somente uma ordem justa em cada

unidade

poderá

servir de fundamento para uma ordem

justa total. Nisso consistem os alice

rc

es

do

socialiSmo.

5

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IV. PROUDHON

Quando as contradições d comunidade e d de

mocracia, uma vez descobertas, tiverem o mesmo des

tino das utopias de

Saint-Simon e de Fourier - escreve

Proudhon em 1844, numa carta - então o socialismo,

elevando-se ao

nív

el de uma ciência, o socialismo que

nada ma is é senão economia política, apoderar-se-á d

sociedade, impulsionando-a com poder irresistível para

o seu destino ulterior. . . O socialismo ainda não tem

consciência de

si

mesmo; êle hoje se chama

o m u n s

mo.  A primeira frase recorda, em mais de um aspecto,

formulações ulteriores feitas por Marx. Três meses an

tes dessa carta ser escrita, Marx encontrara-se em Paris

com Proudhon, que era quase dez anos mais velho do

7

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que êle, e ambos mantiveram conversações

que se

pro

longavam até altas horas da noite.

Apesar de ,

Proudhon não

querer voltar aos sistemas

utópicos e de se

opor

firmemente aos princípios es

senciais dêsses sistemas, continuou, não obstante, com

a

linha evolutiva iniciada

por

êles.

Mas

retomou essa

linha

desde o início, d e s e n v ~ l v e n d o

num plano

mais

·«levado, em

que

todo o anterior

está, pressuposto.

:'-temorizava-o, porém, profundamente, a idéia de que

ele mesmo pudesse acrescentar um nôvo sistema aos an

teriores. Não tenho nenhum sistema - escrevia

em

1849 -

não quero nenhum, rejeito terminantemente

essa insinuação.

O

sistema da humanidade só será

conhecido no final da humanidade . . . o que me impor

ta

é conhecer êsse caminho e,

se

me fôr possível desbra

vá-lo. O verdadeiro Proudhon difere muito

do Prou-

dhon que Marx

combateu

em sua Polêmica

e antes

disso, numa

carta

dirigida a

um

_amigo russo; diÍere

do

homem para quem, como diz a

carta

categorias e

a_bstrações são os fatos primordiais ; "as fôrças impul

sivas

que

fazem a História , basta modificá-las

para

q ~ e ~ c o r r m modificaç,ões

na

vida real. Essa hegelia

mza

ça

o de Proudhon e totalmente gratuita. N.ingyém_procurou, mais sincera e vigorosamente

do

que Prou-

dhon, o segrêdo da realidade social de sua época. "As

categorias eco

nôm

icas ,

_ç,2(plica

Marx

em

sua

Polêmica

.

não

passam de expressões teóricas das relacões s o c i a i ~

da

pro

dução"; e .

:oudoon, pelo contrário: considera

relações apenas como a encarnação dos princípios

teóncos. Quanto às relações sociais concretas - pros

segue Marx foram produzidas pelos homens, da

me

sma

maneira como os tecidos, as telas etc.

Com

ra

-

zão, escreveu Proudhon

na

margem de seu exemplar da

Polêmica:

E exatamente o

que

eu digo. -A_soç,iegade

produz as leis e os materiais de sua experiência  . Numa

obra posterior,

O Princípio Federativo (1863),

quese

conta

entre os seus trabalhos mais maduros for

mula êle. o mesmo conceito

com outra

p e r s p ~ c t i v a

quando diz que a razão orienta o movimento histórico

p.11ra

: a lib:_rdade, m ~ s com a condição de que leve

em

.cons1deraçao a qualidade das fôrças e respeite as suas

JeiS .

O b o r r o ~ q u ~ Proudhon tem aos sistemas provém

de sua relaçao fundamental com a realidade social.

8

Ele vê essa realidade em suas contradições e contrastes

e não tem repouso enquanto

não

consegue compreen

dê-Ias e articulá-las. Proudhon era

um

homem que

tinha a fôrça e a coragem de submergir na contradição

·e

uportáAa._ Sem se

perde

nela como pretende Una

muno, que

por

esse motivo o compara a Pascal,

permanecia dentro dela o

tempo

necessário

para

com

preendê-la em

tôda

a.

sua

crueldade, o tempo neces

sário

para

resolver, mentalmente,

"a luta

dos ele

mentos, o antagonismo das antíteses , tempo que,

por

vêzes, se prolongava excessivamente, se tomarmos

em

consideração a brevidade da existência humana. O

que Unamuno diz de Pascal - que sua lógica não era

dialética, mas polêmica - pode-se dizer também de

Prcudhon

até

certo ponto; mas não se

pode

dizer. que

Proudhon - como

Unamuno diz

de Pascal - · não

procurava

uma

síntese entre a tese e a antítese. O

que ·F:roudhon procurava não 'era uma síntese no sen

tido hegelia

no

, ou

uma

negação da negação; êle busca

VI.

como diz

em uma carta de 1844,

i'des réso

lutions synthétiques de toutes les contradictions  (r

e

soluções sintéticas para tôdas as contradições). Isso

significa

que

êle estava

à

procura de

um

caminho

que

pudesse conduzir

para

fora

do

labirinto das contradições

reconhecidas e consun.rndas, das antinomias sociaís,

como dizia êle, desto.cando

~ s s e

conceito da esfera

gnoseclógica de

Kant

para a sociológica.

Te

se

e

antíte

se

eram, para

êle, categorias

gue não

se encarnam

em

épocas históricas distintas; elas coexistem. De Hegel,

êle tomou

um

certo formalismo, .mas muito pouco de seu

conceito histórico. >rondhon

(a

d..es{leito de tôdas as

suas. incursões históricas) não

era um

pensador his

tórico, mas

um

crítico social; nisso residia s

ua fôrça

e também sua limitação. compreensão dos erros

c ~ n t i d o s

na

realidade social constitui,

para

êle, a pre

missa gnoseológica que o leva a encontrar o caminho.

J?aí

por

que desenvolvidas, negando-se a elevar qual

t1tendências desenvolvidas, negando-se a elevar qual

quer das duas ao absoluto.

"Tôdas

as idéias - es

creve êle

na

Filosofia

do

Progresso

(

1851) -

sJio _

falsas, isto

é,

contraditórias e irracionais, quando to

madas

numa

acepção exclusiva. e absoluta. ; tôda ten

dência à exclusividade, ao imobilismo, é uma tendência

à

ruínu. Assim como

não

se pode considerar a im-

39

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presc.ndibilidade da regência de algum fator espiritual,

também não se pode fazê-lo com os fatôres materiais.

PLQudhon não acredita ·numa cega providência te

rr

ena,

procurando salvar a hulJlanidade através de transforma-

ções técnico-materiais, nem num espírito humano au

tárquico que inventa sistemas absolutamente válidos

para impô-los aos homens.

Para

êle, o verdadeiro

caminho

da

humanidade consiste em libertar-se de

crenças errôn as no absoluto:, em e s c p ~ ao d o m í n i ~

da fatalidade. " O homem nao

quer

mais ser mecani

zado. Suas aspirações dirigem-se

para

a desfataliza

ção. Daí provém também a repugnância geral contra

tôdas as utopias

de

organizações políticas e

de

credos

sociais", e menciona como exemplos (185 ). Owen,

Fourier e o saint-simonista Enfantin, mas também

Auguste Comte.

Nenhum princípio histórico - afirma Proudhon

- pode resumir-se, suficientemente, num sistema espe

culativo. Todos êsses princípios precisam ser inter

pretados e podem ser interpretados exata ou errônea

mente, e as interpretações influem, direta

ou

indireta

mente, sôbre o destino histórico do princípio. A di

ficuldade, porém, é que em nenhuma época houve um

único princípio regente.

Todos os

_princípios - e s

creve Proudhon em sua

obra

póstuma sôbre cesarismo

e cristianismo -

sªo

conteÍnpQrâneos, tanto na Histó

ria ' como na razão. Sucede apenas que, em épocas

diversas, êles possuem fôrças diferentes, quando com

parados uns aos outros. Quando um princípio luta po r

sua hegemonia , é importante que êle entre na cons

ciência e atue sôbre a vonta

de

dos homens em tôda

a sua verdadeira essência, sem distorções. A " idade

social" anunciada com a Revolução

Franc

esa - idade

precedida por

um

período de transição, a

era

das

col')stituições", do mesmo modo como a época de

Augusto precede a era cristã, à guisa de renovação,

mas sem atingir a profundidade

da

existência -

carac-

teriza-se pelo predomínio

do

princípio econômico sôbre

o

da

religião e do govêmo.

:Bste é

o princípio que,

com

o nome de socialismo, tumultuará. a

Europa

com

uma nova revolução e que, após haver constituído a

república federativa dos Estados civilizados, organizará

a unidade e a solidariedade da espécie humana

em

da a superfície do globo terrestre". O mais importante,

4

hoje, é compreender o princípi? e c o n ô ~ i c o em ~ u a ver

dadeira essência, a f m de ~ v 1 ~ a ~ conflitos fatais entre

êle e a distorção desse pnnc1p10, que usurpe o seu

conceito.

Como já dissemos, Proudbon não se Limitou a pros

seguir na linha evolutiva do socialismo "utópico"; êle

tornou a percorrer essa linha desde o início, mas de

modo que o anterior surgisse elaborado e reforma_do.

f:le não

parte

especificamente do ponto em que Samt

-Simon se dete'{e;

de

uma maneira nova, muito mais

am

pla e

que

pe_?etra muito mais

p r ? f _ . i n ~ a m e n t e .

na

realidade social, ele torna a fazer a

ex1genc1a

de Saint

-Simon, de

um

regime baseado

na

economia e determi

nado pela

sua

organização. Saint-Simon parti a

da

reforma do Estado; Proudhon, .da transformação

da

so

ciedade. Só...se_pode lograr uma verdadeira reforma

da sociedade, partindo de uma modificação radical das

relações entre a ordem social e a polític;a. Não se trata

· mais de substituir uma constituição política por outra,

mas de fazer

com

que, em lugar da organização políti

ca imposta autoritàriamente à socie?ade, ~ d v e n h a

organização proveniente da própria s o c i e ~ a d e . .A

causa primordial - · diz Proudhon -

de

todas as -

regularidades

que

afligem a sociedade.'

da

opressão

?o

s

cidadãos e da

ruína

das nações, reside

na

centraliza

ção exclusiva e hierárquica dos podêres públicos . . .

é.

preciso acabar o quanto antes com ê \se monstruoso

parasitismo." :Ble não explica desde quando e

por

que

essa necessidade se tornou tão premente, mas podei:e

mos complementá-lo, fàcilmente,

se

n?s a t i v c r ~ o ~ a

duas coisas.

}?,cimeira

  . enquanto a sociedade foi rica

mente estruturada, enquanto se edificou sôbre diversas

comunidades e federações de comunidades, uma e ou-

tras de grande vitalidade, o Estado foi uma m ~ ~ a l h a

que obstruía a vista e impedia os passos, penmtmdo,

porém, que dentro de seu recinto a vida comunitária

espontânea

se

formasse e

se

movimentasse;

com

o em

pobrecimento dessa estrutura, o Estado foi-se converten

do em

cárcere. S ~ g u n d a : essa mesma sociedade,

po-

bremente estruturada, despertou-se na Revolução Fran-

cesa, adquirindo consciência

de

si mesma, consciência

de seu ser como sociedade, em contraste com o Estado

e, hoje, só pode esperar que sua reestruturação se pro:

duza, restringindo o Estado - essa ordem estranha a

4

Page 22: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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sociedade - ao exercício exclusivo das funções que

a própria sociedade não possa levar a cabo, e que a

direção dos negócios seja entregue em mãos da pró

pria sociedade trabalhadora, que criará os .seus próprios

órgãos. A delimitação

da

função do Estado

é

questão

de vida ou morte para a liberdade, tanto coletiva como

individual." Aqui já se percebe, claramente, que o

pensamento fundamental de Proudhon não é individua

lista. O que êle opõe ao Estado não é o indivíduo como

tal, mas o indivíduo em dependência orgânica

de

seu

grupo, sendo êste considerado como união voluntária

de indivíduos. "Des

de

a Reforma e, particularmente,

desde a Revolução Francesa, um nôvo espírito ilumi

na o mundo. Depois que a liberdade fêz frente ao

Estado e que seu ideal se propagou universalmente,

compreendeu-se que liberdade não é

um

problema

individual, e sim grupal." Nas primeiras obras

de

Proudhon, ainda prepondera uma espécie de indivi

dualismo, mas êle não ignora que: "Mediante o mono

pólio, o gênero humano tomou posse

do

globo. terrestre;

mediante a associação, se converterá em seu verdadeiro

amo". No curso

da

evolução de Proudhon, o indivi

dualismo, porém,

(a

despeito de .tôdas as ressalvas do

autor em favor

da

pr.opriedade rústica individual) re

trocede cada vez mais em face de uma concepção em

que as relações problemáticas entre a pessoa e a tota

lidade se equilibram através do grupo -; - comunidade

ou associação - amplamente autônomo e cheio de

vida, pela fôrça das relações· internas. Sem que Prou

dhon chegasse a expressar o ponto de vista estrutura

lista como tal, veremos que dêle se aproxima cada

vez mais: seu anticentralismo se converte, cada vez

mais, em comunalismo e federalismo (que, evidente

mente, como êle escreve numa

carta de

1863, "fervera

durante 30 anos em suas

veias ),

isto é, torna-se cada

vez mais estruturalis ta. A grande centralização -

escreve êle em 1860 - deve desaparecer, "substituída

por institu ições federalistas e por costumes comunais".

e notável, aqui, a combinação que êle faz das "insti

tuições" que pretende criar e das formas de comunidade,

os

costumes" que devem ser conservados. · Se obser

varmos a posição que Proudhon adota na questão do

sufrág

 o

universal, veremos quão intensamente êle sen

tia o caráter amorfo da ordem

da

sociedade atual. O

4

sufrágio. universal - lemos no

o p ú s c t I ~

A

S o i u ç ~ o

do

roblema Social 1848) - é uma espec1e de atomismo,

por meio do qual o

l ~ g i s l a d o r

não

p o d e n d ~

deixar 9ue

0

povo fale como umdade corpórea, convida os cida

dãos a expressar sua opinião por cabeça, viritim da

mesma forma como o filósofo epicurista explica o

pensamento, a vontade e o entendimento, por ~ o m b i -

nações de átomos". O direito de

s u f r á ~ i o pr

ecisa de

um "princípio de o r g a ~ z a ç ã o , . como ?1sse P.roudhon

no discurso que profenu

na

Assemblé

ia

Nacional de

1848.

~ s s e

princípio só pode alicerçar-se sôbre uma

estruturação efetiva da sociedade. A conservação d o ~

grupos naturais - escreve Proudhon. 1863 - e

de suma importância para o exercício da faculdade

de sufrágio: é o pré-requisito essencial do voto Sem

ela, toma-se impóssível a franqueza, a espontaneidade

e a significação clara e

i n e q ~ í v o c a d ? ~

votos . .: A

destruição dos grupos naturais,

na

atividade eleitoral,

seria a destruição moral da própria nacionalidade, a

negação da idéia revolucionária." A fundamentação

amorfa das eleições tem

por

objetivo nada menos

do

que a extinção

da

·vida política das, cidades,

o m ~ n ~ s

e departamentos, pretendendo, atraves dessa destnuçao

de tôda autonomia municipal e regional, deter a expan

são do sufrágio universal". O corpo

da

nação fica en

tão reduzido a um conglomerado de moléculas, a um

"monte de

conduzido

por um

pen 'amento superior

a êle, o pensamento central. Procurando a

u n i d a d ~

sacrificamos a própria unidade". Somente q u a n ~ o for

expressão de uma estruturação b a s e a d ~ na r e ~ h ? a d e

o sufrágio universal, que atualmente e a asfma da

consciência pública, o suicídio da soberania do povo  .

se tornará racional, moral e revolucionário. Antes, po

rém, é preciso que se "organize uma ? i ~ t ~ i ? u i ~ ã o equi

librada dos serviços e

se

anulem os pnvileg1os· . r o u -

dhon não ignora absolutamente que,

para

o federalismo,

o

verdadeiro problema não

é

o político, mas o eco

nômico". A fim de tornar a confederação indestrutí

vel" diz êle convém esclarecer que o direito econô

m i c ~

é

a " b ~ s e do direito federativo e

de

tôda ordem

política". A transformação

do

direito econômico de

penderá

da

resposta a duas perguntas que se i m p o r ã ~

às associações dos trabalhadores: se o trabalho, por s

mesmo, pode financiar as emprêsas como u a l m e n t e

43

Page 23: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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o faz o cafpital e se a propriedade e a direção

da

s

emp

rêsas podem ser coletivizadas. Da resposta que

se der a essas duas perguntas - diz Proudhon em seu

notável livro

Manual do Especulador da Bôlsa ( 1853)

- dependerá todo o futu ro dos trabalhadores. Se a res

posta

f ô ~

afüma

tiva

1

um

nôvo mundo

se abrirá para

a humanidade; s.e for negativa, o proletário já sabe o

que o espera. Que se encomende a Deus e à

lg reja, pois neste vale

de

lágrimas

não

há espeqmça

para êle.  O projeto de Proudhon para a resposta

afirmativa

é

o mutualismo

em

.

sua

forma

mad

ura.

Existe mutualidade, reciprocidade - escreve êle -

quando numa indústria todos os trabalhadores

ao

i nvés de

trab

alharem para um empresário que lhes ~ a g a

f 1 c a ~ d o

com

seu produto, trabalham

uns para

os outros,

fabncando um

produto co

mum, cujos lucros dividem

entre si. Estendamos, agora, o princípio de mutuali

dade

que une

o trabalho

de cada

grupo às associações

de trabalho concebidas como unidades, e teremos criado

u ~ n a

form31_

de

c i v i l i ~ a ç r i o

que, de qualquer ponto de

vista, pohtico, econom1co ou estético, se distinguirá

totalmente das civilizações anteriores. Esta é a so-

lução do problema que Proudhon formula da seguinte

maneira: ) odos associados e todos livres . Mas

para que

isso

se

dê,

é

preciso que a associação

não se

converta em sistema impôsto; pelo contrário, os homens

só devem associar-se às cooperativas

de

trabalhadores

como rebanhos de

produção

- escreve

Proudhon

em

1864 -

  quando as exigências

da

produção, o baratea

mento dos produtos, as necessidades de consumo e a

segurança dos próprios produtores o requeiram . As

s o c i a n d o ~ s e dessa ? 1 ª ~ e i r a os trabalhadores estarão ape

nas

a,propna raison d s choses

e poderão, em

consequencia, conservar sua liberdade no seio da as

s o c i a ç ã ~ " · ~ e n d o

esta

sua

maneira de pensar, Prou

dhon so podia opor-se, em 1848, às oficinas sociais

f i n a n c ~ a d a s pelo Estado, exigidas

por

Louis Blanc

(e,

posteriormente, por LassaJle em têrmos análogos). Ne-

las, P r o u d h ~ n só.vê uma nova forma de centralização.

Dessa maneira, diz ele, haveria um número

de

grandes

a s s o c i ~ ç ? ~ onde o operariado ficaria arregimentad

e, def1mt1vamente , escravizado pela razão de Estado

fraternidad_e, como neste momento está prestes a

se-lo pela razao

de

Estado

do

capital. O que ganha-

 

riam

com

isso a liberdade, a feJicidade geral, a civili

zação? Nada. Teríamos apenas mudado os grilhões

e a idéia social

não

teria caminhado um pass

o;

conti

nuaríamos a estar sob o mesmo domínio arbitrário,

para

não dizer sob o mesmo fatalismo econômico .

Proudhon exprime, aqui, a concepção que tornamos a

encontrar vinte anos depois, em form teórica, na gran

de

obra de

Gierkc. Somente a associação livre -

diz

Gierke - · cria comunidades onde subsiste a liberdade

econômica. Os organismos

que

surgem por iniciativa

e estruturação

de

seus próprios

mem

bros elevam, junta

mente

com

a vida

com

unal reconstituída, a vida indi

vidual de seus membros.

Conseqüentemente, o centralismo comunista tom

;1

para Proudhon, um aspecto de variante do absolutista,

levado a

um

monstruoso e desapiedado grau de perfei

ção. :Bsse sistema ditatorial, autoritário e aoutriná

rio

parte

do princípio de que o indivíduo está subordi

nado, por natureza, à coletividade. Somente dela pro

vém o seu direito à vida. O cidadão pertence ao

Estado como o filho à família, está em seu poder e sob

seu domínio, in manu  e lhe deve submissão e obediên

cia em tôdas as coisas . Por tudo isso se compreende

que

Marx (numa

frase destinada à

Polêmica

onde aca

bou não sendo incluída) tenha afirmado que Proudhon

é incapaz de compreender o movimento revolucioná

rio , assim como se compreende, igualmente, que Pro u

dhon (numa anotação de seu diário) se refira a Marx

como tênia

do

socialismo .

No

sistema comunista,

o patrimônio coletivo acabará com tôda propriedade,

tanto a pessoal como a comunal e corporativa; a asso

ciação universal acabará absorvendo tôdas as associa

ções particulares, a liberdade coletiva por devorar tôdas

as liberdades corporativas, locais e privadas. 'Em

1864,

Proudhon define -o sistema político do comunismo cen

tralista

com

estas memoráveis

pa

lavras: Uma demo

_cracia compacta, aparentemente baseada

na

ditadura

das massas,

mas

onde estas não têm mais poder que

o necessário para assegurar a submissão geral, de

acôrdo

com

as seguintes fórmulas e princípios tomados

do antigo absolutismo: Indivisibilidade

do

poder pú

blico; centra

Hzaç

ão absorvente; destruição sistemática

ele todo pensamento individual, quer corporativo quer

local, por . considerá-lo agente destrutivo; polícia in-

  5

/

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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quisitorial .

Proudhon

pensa

que

não estamos muito-

11 distantes do comunismo centralista puro, tanto político

como econômico,

mas

está convencido de 'que, após

uma

última crise, à invocação de novos princípios, terá

início um. movimento em sentido contrário .

O livro (concluído pouco antes

de sua morte) onde

figuram essas palavras e ao qual Proudhon atribuía

especial importância como exposição

da

idéia tia nova

democracia , intitula-se

Da Capacidade Política das

Classes Operárias e sua redação, co'nforme êle diz, foi

inspirada no Manifesto dos Sessenta proclamação elei

toral de

um

grupo

de

operários,

cuja

maioria

era

parti,.

dária das idéias de Proudhon ( 1861). f:sse manifesto

é

o quarto

na

série dos quatro Manifestos socialistas

(o primeiro é o Manifesto

clo S

Iguais de Babeuf, o se

gundo o do fourierista Considérant, o terceiro o

Ma-

ni

sto

Comunista

e é o primeiro saído das fileiras

do próprio proletariado. Nessa declaração, em que

Proudhon

saudava um

despertar

do socialismo' .

na

Fran

ça e uma revelação

da

consciência corporativa

na

classe operária, pede-se, entre outras coisas, a insti

tuição de uma Câmara sindical,

mas

não - como em

estranho ofuscamento propuseram alguns (aqui rea-

parece a concepção

de

Saint-Simon) - composta de

patrões e operários: O que pedimos é uma câmara

composta, exclusivamente, de operários eleitos através

do

sufrágio universal,

uma Câmara

do

Trabalho .

Essa

exigência evidencia, nitidamente, a evolução

que se

pro

cessou

no

pensamento social desde Saint-Simon até

Proudhon.

Na

senda que vai

da

concepção de uma reorgani

iação da

sociedade à çoncepção

de sua

reestruturação,

Proudhon deu o passo decisivo: Constituição indus

trial'' não significa ainda estrutü.ração, mas federa

lismo

a implica.

· Proudhon distingue dois_ tipos de estrutura que

se

entrelaçam: a econômica, ou seja, a federação

de

gru

pos de trabalho , denomfuada por êle federação agro

-industrial'', e a política,

que se

baseia

numa

descentra.:

lização

do

poder,

na

divisão

da

autoridade, na conces

são

da

maior soberania·possível às comunas e corpora

ções regionais,

na

substituição -

até

onde fôr possível

-

da

burocracia, por uma gestão

de

negócios mais

elástica, mais direta, que brote orgânicamente dos gru;

6

pos naturais. A ' ciência constitucional  pode ser resu

mida, segundo Proudhon, três postulados.

: 8

preciso:

1

Q

formar grupos reduzidos, relativamente soberanos,

e uni-los em corporações; 29 __ _ organizar o govêrno

em

cada Estado federado, separando

os

diferentes ór

aãos, o

que

significa: dentro

do poder

público, dividir

que

possa ser dividido, determinar o

que

possa

ser

determinado, distribuir,

entre

dive.rsos órgãos ou fun

cionários, tudo o que tenha sido dividido ou determina

do, rodear a administração pública

de

tôdas as condi

ções propícias ao contrôle público; 39 -

ao

invés de

dissolver os Estados federados ou autorhlades provin

ciais e municipais,

numa

autoridade central, f ~ z r com

que esta se limite a cuidar

da

iniciativa geral e da ga

rantia e vigilância mútuas . A vida da · sociedade se

consuma na fusão

de

pessoas em grupos e

de

grupos em

federações. Assim como vários homens

que

unem os

seus esforços produzem

uma

fôrça coletiva superior em

qualidade e intensidade à soma de suas respectivas fôr

ças, assim também vários grupos de

tr

_balho, relacio

nados entre si

por

intercâmbio,

produzem uma

potência

de ordem superior  que deve ser considerada, particu

larmente, como sendo o poder social . Mutualismo,

organização

da

economia baseada

na

reciprocidade de

serviços e federalismo, organização

da

ordem política

baseada na irmandade dos grupos, são só dois dos as

pectos

da

mesma estrutura.

Med

iante o agrupamento

das fôrças imlividuais e a vinculação entre os grupos,

tôda a

nação

adquire figura corpór

ea.

E as nações

constituirão uma verdadeira hui:nanidade, como federa

ção de federações.

Proudhon

ocupou-se do probl

ema

de como concre

tizar a idéia de descentralização, especialmente em sua

Teoria do

Regime

Fiscal (

1861 ) , onde êle afirma

não

ignorar ·que a centralização política

tem as

suas vanta

gens, mas em troca

de

sacrifícios. Ela deslumbra a

nação, não

só por

satisfazer à vaidade coletiva,

mas

porqu

e

a razão

das criaçças e

do

povo

procura

em

tudo a. unidade, a simplicidade, a uniformidade, a iden

tidade, a hierarquia, assim como o támanho e a massa ;

por isso é que a centralização, de cujo modêlo nasce

ram tôdas as nações antigas,

se

converteu

em

meio

eficaz de disciplina. O povo gosta

1

de idéias simples

tem

razão. Infelizmente, essa simplicidade só pode

47

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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ser encontra

da

nas coisas elementares e o mundo, a

sociedade e o homem compõem-se

de

elementos

i n d i s

solúveis, de princípios o p o s t ~ s e

de f ô r ç ~ s a n t a ~ ô ~ c . a s .

Organismo significa ~ o m p l e ~ 1 d a d e , p u r ~ b d a d e

s1gnif1ca

contradição, antagonISmo, mdependencia. O sistema

centralista pode ser ~ m i t o bonito por sua ~ a n d ~ z a

simplicidade e expansao, mas falta- lh

e

uma coisa:_ nele,

0

homem

não mais se pertence a s1 mesmo, nao

se

sente, não vive,

não

é tomado em consideração. A

idéia, porém, e a exigênc

ia de_ um

sistema que

homem

possa pertencer-se a

s1

mesmo, sentir-se

s1

mesmo e viver de um sistema que o tome em conside

ração como

i ~ d i v í d u o , não

se acha relegada à livl'e

especulação, mas está ligada aos fatos e

t e n d ê n c i ~ s

de

nossa realidade social.

No

moderno Estado consti

tucional, os diferentes grupos não necessitam de or

dens

para

realizar muitas coisas; êles são capazes de

se reger a si mesmos, sem outra inspiração que a

de

sua

consciência e de sua razão .

Em

qualquer Estado or

ganizado, segundo os princípios do direito moderno, a

ação do govêrno vai sofrendo uma diminuição progres

siva

uma

descentralização.

Uma

evolução paralela

p o d ~ ser observada

na

economia. O progresso

da

téc

nica em nossa era (questão a que Proudhon

alude

em 1855, em sua obra sôbre a reforma do sistema fer

roviário, mas que só se atualizou muito depois de sua

morte com

a

motorização do transporte e o projeto

de

eletrificar a produção) tende a tornar desnecessária a

concentração · da população em grandes cidades; co

meça a processar-se a dispersão das massas, assim como

seu reagrupamento . O pêso político terá que pas.sar,

paulatinamente, das cidades para os novos grupos

agrícolas e industriais .

Proudhon, contudo, não é absolutamente

de

opi

nião q

ue

o processo

de

descentralização_ já esteja ma

duro nos diversos setores; pelo contrário: no terreno

político, êle observa

na

consciência .e

na

~ o n ~ a d e

do

homens um movimento oposto,

de im

portancta trans

cendental. Uma febre de centralização - escreve êle

em 1861 - invade o mundo; dir-se-ia que os homens

estão cansados do que lhes resta

de

liberdade e não têm

outra aspiração senão perdê-lo . . . Será a necessidade

de autoridade que se manifesta por tôdas as partes, o

fastio

da

independência

ou

apenas a incapacidade

de

8

reger a si mesmo? Contra essa febre , contra

~ ~ s a grave enfermidade do espírito hun_iano não

ou

tro remédio senão as fôrças construtivas, reestrutura

doras que regem o que

há de

mais profundo no home

m.

Sua

~ x p r e s s ã o

é . a

I ? ~ i a , da

qual diz

P r ~ u d h o ~

final

de uma obra

pohttca datada

de

1863: Essa ideia

exjste,

á

está circulando , mas é preciso

q ? ~

ela

s a ~ a

das entranhas

da

situação

para

poder

adqomr

potencia

realizadora.

Na

magnitude

de

seu intelecto, Proudhon, de modo

algum, supunha que essa .situação estivessAe i ~ i n e ~ t e .

Por algumas

de

suas cartas, sabemos como ele tfi';agma

va o futuro imediato: Não nos enganemos mais: A

Europa está cansada de orden;_i e de pensamentos; : ia

está ingressando

na era da

força bruta, do desprezo

pelos princípios . E

na

mesma carta:

E

então será

deflagrada a guerra entre as seis grandes nações .

Alguns meses depois: Virão os massacres e a pros

tração que

se

seguirá a êse derramamento

de

sangue

será espantosa. .

Não

veremos os feitos

da

nova era,

estaremos lutando

na

noite. Devemos estar preparados

para suportar essa vida sem demasiada tristeza, cum

prindo com .o nosso dever. Socorramo-nos, apelemes

uns aos outros nas trevas e, sempre que houver ocasião,

façamos justiça .

E

encerrando: Atualmente, a civi

lização se encontra numa crise que

tem uma

única ana

logia

na

História: a crise

que

determinou o advento do

cristianismo. Tôdas as tradições estão esgotadas, tôdas

as doutrinas

de fé

abolidas.

Por

outro lado, o nôvo

programa ainda não está pronto quero dizer, ainda ~ ã o

penetrou na consciência das massas; eis o que conside

ro como decomposição. ~ s t e é o momento mais cruel

na existência das 'sociedades . . . Abrigo muito poucas

ilusões e não tenho esperanças

de

que, amanhã.  como

por um passe

de

mágica, ressuscit; a

l i ~ e r d ~ d e . :

.

Não, não; a decadência>

por um

penodo CUJO ftm

nao

posso calcular e que não durará menos

de uma

ou duas

o-eráções tai é a nossa sina. mim, tocará ver s o ~

'

.

Md

mente o mal; morrerei em me10 as trevas . as e-

. vemos cumprir o nosso dever . Nesse mesmo .ano,

escreveu ao historiador Michelet:

Só poderemos se

guir avante., através de uma revolução total nas idéias

e nos corações. Você e eu estamos trabalhando nessa

1 \ e v o l ~ ç ã o ;

êste será o nosso orgulho perante a poste.ri-

.  9

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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dade, se esta se lembrar de nós' '. Oito anos antes,

ante a proposta de um amigo para que emigrasse aos

Estados Unidos, respondera nos seguintes têrmos: Di

go-lhe que é aqui, sob o sabre de Bonaparte, sob a

férul-a

dos

jesuítas e sob o binóculo da polícia, que

teremos de trabalhar pela emancipação .do gênero hu

mano. Não há, para nós, céu mais propício nem

·terra mais fértil .

Como Saint-Simon, embora com maiores detalhes

e muito maior precisão, Proudhon colocou, em primeiro

plano, o problema da reestruturação da sociedade, sem

tratá-lo como tal. E assim como Saint-Simon não le

vantou a questão das unidades sociais que poderiam

se,rvir de células para uma nova sociedade, também

Proudhon a deixa essencialmente em suspenso, embora

dela se aproxime muito

mais.

Com Saint-Simon são

os contemporâneos, com Proudhon, os sucessores, que

irão fazer dêsse item o objeto principal de seus planos

e investigações.

O fato de Proudhon não

se

haver ocupado mais

intensamente do problema deveu-se, principalmente, .

à

sua reserva p a r ~ com a associação , uma panacéia

uniforme decretada pelo Estado para todos os males da

sociedade, como foi o caso, por exemplo, da proposta

de Louis Blanc: oficinas sociais que, tanto na indús

tria como na agricultura, seriam fundadas, financiadas

e fiscalizadas· pelo Estado. Não obstante, devem.os

observar

que

as proposições de Louis Blanc -

se

não

por sua intenção, pelo menos por seu caráter - são

socialmente estruturais:· da solidariedade de todos os

trabalhadores na mesma oficina êle passa par a a. so

lidariedade das oficinas numa mesma indúStria e,

daí, para a solidariedade das diversas indústrias. Além

· i s s o êle vê a associação agrícola baseada na união

da ·produção e do consumo: para atender às necessi

dades de todos - diz êle em sua rganização do Tra-

balho (1839) - seriam reunidos os produtos do tra

balho. de todos , que é a forma _omo êle

a possibili-

.dade imediata de uma aplicação mais .radical e completa

do

sistema

da

associação fraternal . As dúvidas de

Proudhon são, como já dissemos, reservas contra

unta nova razão de. Estado , ou seja, contra a·unifor

midade, contra a exclusividade, · contra a coação. A

·for ma associativa lhe parece mais indicada para a

in:..

5# ·

ctústria do que para a agricultura, onde êle queria

conservar a classe camponesa. A despeito

de

tôdas

as

transformações de suas idéias e projetos, neste ponto

manteve-se fiel a um único princípio: o legítimo pro

prietário do sol_ô é aquêle que o cultiva.) E, mesmo na

indústria, a forma associativa só seria aplicada aos

ramos adequados para isso e para determinadas fun

ções. Ele se negava a equiparar uma reorganização da

sociedade com sua uniformização; para êle, ordem sig

nifica a ordem justa da diversidade. Eduard Bernstein'\

tem razão quando diz que Proudhon negava à associa

ção essencialmente monopolista o que concedia à as

socjação mutualista.

·Proudhon tinha

um

horror pro

fundo a tudo o que vie.sse de cima'', ao que en

 \

i1_11..Pôsto ao povo, ao dotado de privilégios. Nesse

contexto, êle temia a proliferaç.ão de novos egoísmos

coletivos, que lhe pareciam mais perigosos do que os

indivíduos. Ele bem via o perigo que ameaça tôda

associação produtora que produz para o mercado livre:

ela corre o risco de

ser afetada pelo espírito do capi

talismo,.pela exploração desapiedada das oportunidades

e conjunturas. Essas dúvidas eram muito pesadas. Ti

nham suas raízes na convicção básica de Proudhon de

que

a justiça vincula e equaliza a liberdade com a

ordem, convertendo-as no critério de um socialismo ge

nuíno. (Segundo êle, há duas idéias: a da liberdade

e. a da unidade ou ordem.

:f:

preciso decidir-se a viver

com as duas, equilibrando-as . O princípio que pode

realizar êsse equilíbrio chama-se justiça.) Mas a forma

estrutural da futura sociedade anunciada por Proudhon,

estrl;ltura por meio da qual ,se consegue o equilíbrio

da liberdade e da ordem e que chamava de federalismo,

exigia que êle não só se ocupasse (como fêz) das

grandes unidades que haveriam de

se

federar, das na

ções, mas também .das unidades pequenas, cuja fusão

federativa constituiria a nação. Proudhon não preen

cheu êsse

r ~ q u i s i t o .

Ele só· poderia tê-lo

p ~ e e n c h i 4 o

se, partindp dêsse problema, tivesse procurado a res

posta· às suas próprias dúvidas, isto

é, se

tivesse dedi

cado o melhor

de

seu pensamento ao problema de como

se

deveria fomentar e organizar a associàção para,

se

não eliminar, pelo menos atenuar o perigo que nela se

?culta. Come :> não o fêz em grau su{iciente, por mais

importante que seja o passo· dado nesta direção com o

5

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seu princípio do mutualismo, não encontramos nêle uma

resposta satisfatória

à

nossa pergunta: Quais as uni

dades que devem federar-se numa legítima ordem po

pular? ou melhor: Como devem ser constituídas as

unidades para que possam federar-se numa legítima or

dem popular, numa nova estrutura social justa? Assim

sendo, ao socialismo de Proudhon falta

um

elemento

essencial. Ficamos sem saber se as unidades sociais

subsistentes, inclusive aquelas que ainda conservam seus

antigos princípios geradores, serão capazes de formar,

em seu estado atual, uma associação

justa-

e se

··

as

unidades novas o serão, caso não intervenha nelas,

desde o momento de sua criação, essa combinação de

liberdade e de ordem, como estímulo e como prinCí

pio configurador.

5

V. KROPOTKIN

Neste ponto 'entra em ação Kropotkin. Nascido

na

época - há cem anos - em que Proudhon come

çava a desfechar sua luta contra a injustiça da proprie

dade privada, a propriedade como roubo , êle acei

t_u,_deliberadamente, o legado de Proudhon

para

am·· -.

p ~ l o .

Ao

aceitá-lo, porém, simplificou-o, em parte,

de maneira fecunda e favorável para a causa. Consiste

a simplificação em atenuar a visão que Proudhon tinha ·

das contradições, o que

é

uma perda;.ao mesmo tempo,

contudo, transfere-o para

b

âmbito da História,

o

que

é uma vantagem. Kropotkin

não

é um historiador;

mesmo quando pensa historicamente êle não passa,

no fundo,. de um geógrafo social, de um cronista das

5

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I

1  

situações e das condições da terra, que pensa histori

camente.

Kropotkin simplifica a Proudhon estabelecendo,

ao invés das múltiplas antinomias sociais , a simples

oposição entre os princípios da luta pela existência e

da ajuda mútua. :Ble procura fundamentar biológica,

etnológica e historicamente essa oposição de princípios.

Historicamente, êle a

(influenciado, ·sem dúvida, pe

la exposição da dualidade histórica de Kireievski, de

1852) condensar-se, por um lado, na ordem coercitiva

do Estado e, por outro, nas múltiplas formas de asso

ciação: comarcãs, municipais, gremiais, corporativas e,

assim sucessivamente, até às formas modernas de asso

ciação. Numa formulação (de 1894) exagerada e des

tituída de fundamento histórico, Kropotkin expõe essa

oposição

da

seguinte maneira: O Estado é uma pro

gressão histórica que, em determinada época da vida

de todos os povos, começa a suplantar, lentamente, as

livres confederações de tribos, municípios, uniões de

tribos, aldeias e agremiações de produtores, proporcio

nando um apoio colossal

às

minorias, a

fim

de escravi

zar as massas; é a essa progressão histórica e a tudo

o que :dela deriva que combatemos . Alguns anos mais

tarde (na obra A Ciência Moderna e a Anarquia  cuja

edição francesa completa foi publicada em 1913),

Kropotkin encontrou uma _formulação mais correta,

mais em conformidade com os fatos históricos. Atra

vés de

tôda a História

de

nossa civilização - diz êle -

confrontaram-se duas tradições opos.tas, duas tendên

cias: a romana e ·a popular; a tradição imperial e a

federalista; a tradição autoritária e a libertária. E, em

vésperas

da

revolução social, essas duas tradições tor

nam a se

co

nfrontar.  Aqui (certamente por influência

de Gierke, que denomina os princípios antagônicos de

domínio e livre associação), êle apresenta, a par de

uma.

p e r s ~ e c t ~ v a

histórica, o ponto de vista de que o

c?nfhto histórico entre os dois podêres espirituais con

tmua a processar-se . ambém no seio

do

movimento so

cial: entre o socialismo centralista e o federalista.

o

conceito de Estado de Kropotkin é, obviamente,

muito ilmitado. :Sle não hésita em identificar o Estad()..

centralista com o Estado em geral. Na História,

t e m o ~

não apenas o Estado como torquês que destrói a essên-

54

eia das pequenas associações, mas também o Estado

como estruturá dentro da qual estas se agrupam; não

somente o grande Leviatã  , cuja autoridade, segundo

Hobbes, é baseada no terror, mas também a grande

mãe

nutrit. nte que amamenta carinhosamente seus fi

lhos, as comunidades; não somente a machina machi-

n rum

que converte tudo o que lhe pertence em acces

sórios mecânicos, mas também a communtcas commu·

nitatum a fusão das comunidades, onde os membros

que as integram podem desenvolver uma vida própria

e autônoma,

em

comum . Por outro lado, Kropotkin

está certo quando diz que o nascimento do Estado cen

tralista moderno (que êle apresenta, errôneamente, co

mo o Estado em si) não é anterior ao século XVI, à

época em que

se

consumou a derrota das cidades li

vres , através da anulação de todos os ontratos livres:

comunidades de aldeia, ligas ae artesãos, irmandades,

confederações da I d a d Média . O inglês Maitland,

historiador do Direito, escreve: Podemos afirmar com

certa segurança que, em fins

da

Idade Média, operou-se

uma grande mudança nas idéias referentes aos agrupa

mentos dos homens . Foi, então, que o Estado abso

luto

se

confrontou com o indivíduo absoluto . Como

diz Gíerke,

o

Estado soberano e o indivíduo sobe(ano

entraram em luta para definir os limites de seu direito

natural e tôdas as corporações

i n t e r m e d i á r i a ~

foram

rebaixadas à condição de estnituras legalistas

e

mais

ou menos ~ r b i t r á r i a s até serem, finalmente, completa

mente destruídas . Por fim, resta apenas o Estado so

berano que, à méàida que se vai tecnicizando, devora

a tudo o que é vivo. Tudo o que é orgânico &ucumbe ·

ante o mecanismo de comando rigidamente centrali

zado, edificado a expensas da inteligência humana, que

pode ser dirigido com o simples movimentar de uma

alavanca no painel de distribuição . (Assim descreve

Carl Schmitt, o engenhoso intérprete do totalitarismo,

ao Leviatã.) Aquêle que considera mais importante

não a segurança dos indivíduos - finalidade para a

qual o Leviatã é tido como jndispensável - mas a

renovação da substância comunitária do gênero huma

no,

terá

de

combater tôda doutrina que defenda o cen

tralismo. Não há superstição mais perigosa - diz

Figgís, o historiador da Igreja - que o atomismo polí-

 

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ocorreu há sete séculos com os mineiros alemães - a

História nos adverte que,

na

nova estrutura social,

preocupemo-nos restringir o egoísmo coletiv.o. Kro

potkin não é

eego

-a êsse perigo. :E.le ~ a b e , por

exempl_o

(em

MutuaLAid, 1902),

que o· movunento cooperati

vista moderno, cujo caráter, em SU3;8 origens, era essen

cialmente de ajuda mútua, muitas vêzes degenerou num

"individualismo de capital

por

ações", .fomentando um

"egoís

mo

cooperativo".

Kropotkin viu, com absoluta clareza, aquilo a que

Proudbon

se referira: que

uma

comunidade socialista

só pode edificar-se com base

numa

dupla união inter-

/ comunal, ou seja,

na

federação de comunidades regio

nais e

na

federação de comunidades de trabalho, que

possuam, entre si, numerosos· pontos

de

contato e de

apoio - ao que êle, às vêzes, acrescenta

um

t e r c ~ i r o

princípio: o agrupamento comunal que

se

. efetua por

livre e espontânea vontade. em sua autobiografia

(1899)

que êle descreve melhor o quadro

da

nova

sociedade,

na

passagem em que se refere às concepções

básicas

da

"Federação

do

Jura'', organização anarquis

ta-comunista, fundada por Bakunin, da qual Kropotkin

participou em

1877

e nos anos subseqüentes.

Nas

atas

da

Federação

do

Jura não encontramos. nenhuma for

mulação que se possa comparar às suas, e é

de

pressu

por que as idéias

de

Bakunin, que nunca foram es

boçadas a não ser de passagem,

tenham atingido essa

maturidade no espírito

de

Kropotkin com o decorrer

dos anos combinando-se às de Proudhon. "Nas na

ções civilizadas, - escreve êle em sua autobiografia

- observamos o germe

de uma

novà forma social que

deverá substitu

ir

a antiga Essa sociedade será cons

tituída p r grande número

de

associações, que

se

unirão

para tudo quanto requeira um esfôrço comum: fede

ração de produtores para todos os tipos de produção,

comunidades

para

o consumo, federação dessas comu

nidades entre si e federação das mesmas om os grupos

de produção; finalmente, grupos mais amplos que

abrangerão todo

um

país e até mesmo vários, consti

tuídos por pessoas que trabalharão em conjunto

para

suprir necessidades econômicas, espirituais e artísticas,

que não estejam delimitadas a

um

determinado territó- ·

rio. Todos êsses grupos associarão os seus esf?rços por

58

eio de um acôrdo mútuo . . . Será estimulada a inicia

~ v a pessoal e-combatida

tôd_a

tendência à . u n i f ~ r m i ? a d ~

e à centralização.

E s s ~ s o c 1 e d ~ d e ,

a d ~ m a 1 s , .

nao

~ 1 c a r a

enrijecida

ell?-

formas fixas e

~ m u b v e 1 s

pois s7 ra

um

oraanismo vivo, em desenvolvimento constante. Nem

uoftormidade nem fixação definitiva; tal

é

o sadio sen

timento fundamental

de

Kropotkin. Deve-se aspirar,

como êle diz (

1896) ,

ao

ma

is completo desenvolvi

mento da individualidade, associado ao máximo desen

volvimento

da

livre associação, em todos os.

a s ~ e c t o ~ ,

em todos os graus possíveis,

para

todos os fms imagi

náveis:

uma

associação em mutação constante, que tra

ga em si mesma os elementos

de

sua continuidade e

que melhor se .adap:em _ no momento, ao múltiplo

fôrço

de

todos".

E,

a guisa de complemento, Kropotkin:

ainda insiste em 1913: "Imaginàmos a estrutura da so

ciedade como um todo que jamais chega a constituir-se

definitivamente".

Uma estrutura dêsse gênero significa: extrair

do

povo o máximo espontaneidade social e política pos

sível

no

momento. ~ s s e sistema, que Kropotkin deno-.

1ninou de comunismo (nome usurpado pela "negação

de

tôda

liberdade", impugnada por Proudhon) e ao

qual seria mais exato. e s ~ g n a r de "comunismo

e d e ~ ~ -

lista",

"I 2..

p.Qde ser imposto. Sem a

c o l a b o r ~ ç a ~ d i ~ -

ria e contínua

de

todos, êle

não

pode subsistir; .ficana

asfixiado

numa

atmosfera de coação oficial. Con ;e

qüentemente, se não criar um contato permanente entre

todos visando a -solucão de milhares e milhares de as-

'

.

-

suntos comuns, êle não pode existir, assim como

não

poderá sàbreviver se as mais minúsculas unidades -

a rua,. o bairro, o distrito, o município L

não

tiverem

vida local e independente". O socialismo terá que en

contrar sua própria forma de relações politic.as. . .

uma maneira

ou

de outra, êle terá

de

ser mais popular

e estar mais próximo ao Forum

do

que o regime

pàr-

lamentarista.

Terá

g_ue depender menos da rcpresenta

cão e se tornar mais self-governmen.t . Particularmente

;leste ponto, vemos que, o que Kropotkin realmente

combatia não era o sistema estatal em si, mas o sistema

. . \

atual em tôdas as suas formas e q u ~ sua anarquia ,

·como a de Proudbon,

é

antes

uma

acracia, ou seja, au

sência de domínio, não de govêrno.

A

anarquia, -

59

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escreveu Proudhon em 1864 numa carta - se é que

posso

me

exprimir nesses têrmos,

é

uma forma de

o-

vêrno ou organização,

na

qual o princípio de autorida

de, as instituições policiais, as medidas preventivas e

repressivas, a buroGracia, o regime fiscal etc., ficam

reduzidos à sua expressão mínima . Essa, no fundo,

é

também a

op

inião

de

Kropotkin. Como nos indicam

as importantes P,alavras menos (representação)   e

mais

(self-government) ,

êle sabe que, quando existe

uma

vontade autêntica

de

reestruturar a sociedade, não·

é

a aplicação de

um

princípio abstrato o que importa, e

sim dirigir sua realização, reconhecer os limites que as

ci

rcunstâncias momentâneas impõem à execução

da

obra, limites que especificam o que deve e o que pode

ser feito.

~ l e

sabe o quanto deve ser intensa e pro

funda essa vontade: tôdas as relações entre os indiví

duos e entre as multidões podem ser acertadas . Mas,

êle sabe também que isso só poderá ser alcançado se

se despertar

ao

mesmo tempo a espontaneidade social,

indicando-lhe a direção em que possa desdobrar-se.

Que uma transformação decisiva

da

sociedade não

pode produzir-se sem' unia revolução,

é

fato evidente

para

Kropotkin. Para Proudhon também o era. l::ste

sabia perfeitamente que, sem revolução, não poderia

realizar-se a formidável tarefa que -

já no

livro que

Marx

atacou

por

ser pequeno burguês - êle propu

nha às classes trabalhadoras:

fazer

surgir das entranhas

do

povo, do seio

do

trabalho, uma autoridade maior

'

uma realidade mais poderosa, que inclua o capital e o

Estado e os submeta . :f:le via nas revoluções, confor

me um

discurso que proferiu em 18

48

num brinde à

revolução, manifestações sucessivas de justiça na hu

manidade  e considerava o Estado moderno como an

ti-revolucionário

por

princípio . O que êle discut

ia

era

(na

conhecida carta dirigida a

Marx)

a tese segundo a

qual nenhuma reforma é possível sem que haja

um

golpe de Estado e que é preciso utilizar a ação revo

lucionár

ia

como instrumento

para

alcançarmos a re

forma social . Em decorrência, contudo, de algumas

e x p ~ r i ê n c i a s

decepcionantes, êle passou a prever a tra

gédia das revoluções e, cada vez, com maior convicção.

A r à g é ~ j a

consiste no fato de que as revoluções, quan

do

consideradas em relação à sua meta

positiva, têm

resultados

ex

atamente opostos aos desejados

pe

los re-

60

volucionários mais .honestos e ardorosos e isso, sempre

que a aspiração não tenha sido previamente configura

da

de

modo que a ação revolucionária só necessite con-

'

quistar o espaço necessário

ao l)eU

livre desenvolvimen-

to. Dois anos antes de sua morte, Proudhon declarava

com amargura:.

Foi

a luta revolucionária que nos deu

a centralização  . Tampouco, essa idéia é desconheci

da

por Kropotkin. Mas êle

ac

redita piamente que basta

jnfluir sôbre a fôrça revolucionária

par

a impedir que a

revolução resulte num nôvo centralismo igualmente

mau, sen

ão

pi

or

e,

para

possibilitar que a revolução,

o povo - os camponeses e os operários citadinos -

comecem

edificar,

po

r si mesmos, o t

ra

balho constru

tivo .

Par

a nós, portanto, trata-se

de inaugurar

a re

volução social, através do comunismo. Kropotkin

ignora, como Bakunin, o fato básico

de

que, no terre

no social, contràriamente

ao

que sucede com o político,

a

revqlução

não

possui fôrça criadora, e sim

uma

fôrça

de dissolução,

de

libertação e

de

inversão

de

podêres,

ou seja, que ela só pode libertar, consumar e fortalecer

o que

se achava previamente configurado no seio

da

~ o c i e d a d e

pré-revolucionária; assím como ignora que

a

hora da

revolução, no que se refere à conversão so

cial, não é

uma

hora

de

concepção, mas de nascimento

- desde que tenhá havido concepção

anteric:ir.

Na

doutrina de Kropotkin, naturalmente, há tam

bém elementos básicos que acentuam a importância

da

estruturação

pré

-revolucionária. Assim como, ém seu

livro sôbre a ajuda mútua, êle mostra a existência de

resquídos das antigas formas

de

comunidade em nossa

sociedade, ao mesmo tempo em que cita exemplos

de

solidariedade atual mais ou menos destituídos de for

ma, também

na

obra

Fields, Factories and Workshops

(1898, edição ampliada em 1

912),

partindo de pres

suposições puramente econômicas e

da

psicologia do

trabalho, êle traz uma contribuição importante

ao

qua

dro de uma nova unidade social, apropriada para servir

como célula geradora

de uma

sociedade nova no seio

da antiga. Aqui,

à

exageração progressiva

da

divisão

do

trabalho e

da

especialização, êle opõe o 1>rincípio

de uma integração

do

trabalho, a combinação de

uma

agricultura i

nt

ensiva com

uma

indústria descentraliza

~ . . J ' l R s e

sentido,

ê l ~

esboça o quadro de uma aldeia

Kt:ü : ~ 1 . ~ i l ~ / 0 0

. ·

6

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edificada: ao mesmo tempo, sôbre o campo e a fábrica,

aldeia onde os

mesmos

homens trabalham alternativa

mente em ambas as atividades, sem que isso implique,

absolutamente, num retrocesso de técnica. Pelo contrár

rio, tudo i

sso

será efetuado em estreita vinculação

õ -

a

evolução técnica mas de maneira tal que o homem

usufrua de seus direitos como ser humano. Kropqtkin

sabe que tal modificação não pode ser completamente

realizada  dentro

do

sistema atual

da

sociedade;

e

não

obstante, êle planeja não só para amanhã,

mas

também

para o presente. Ele insiste em que todo esfôrço so

cialista

que

visa modificar as atuais relações entre o

capital e o trabalho se converterá

em

malôgro, se não

levar em consideração a tendência para uma integra

ção ; insist

e

também, em que o futuro desejado por

êle é possível agora, realizável agora . Daí à exigên

cia de que

se

inicie imediatamente a reeitruturaçao da

sociedade, não há mais que um' passo e um passo cer

tamente decisivo.

6

VI. LANDAUER

Landauer deu um passo além de Kropotkin. E

êsse passo consiste, sobretudo, numa indagação sôbre

1 1.

essência do Estado. O Estado não

é

como diz Kro

•potkin, uma instituição que possa ser destruída por

uma revolução.

O

Estado é uma situação, uma rela

ção entre .os homens, um modo dos homens se condu

zirem

uns com

os outros. Para destruí-lo,

é

preciso

restabelecer novas relações, comportar-se com

os

demais

e

uma outra maneira. Atualmente,

os

homens con-

vivem numa relação estatal , oú seja, numa relação

que torna necessário o sistema coercitivo do Estado, que

. é por êste representado. Esse sistema, portanto, só po

derá ser superado à medida que a atual relação entre

63

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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os homens fôr sendo substituída por outra. Essa outra

relação

é

por Landauer denominada povo .

f.

uma

união entre homens que existe, de fato, mas que ainda

não se converteu em associação e federação, que ainda

não chegou

a.

ser

um

organismo superior. À medida

que

os

homens, sôbre .a base do processo

de

produção

e circulação, .voltarem a unir-se como povo

e

desen

volverem-se conjuntamente, nui:n organismo de inúme

ros órgãos e membros , é que o socialismo, que hoje

vive apenas no espírito e no desejo de alguns homens

d i s p e ~ s o s

poderá se tornar realidade, e não no Estado

mas ''fora, à parte dêle , o que vem a significar: junto

ao _Estado. Todavia, essa consolidação não significa,

como já -dissemos, fundação de algo nôvo, mas atuali

zação e reconstituição de algo que sempre existiu,

d

comunidade que coexiste, de fato, com o Estado, em

bora soterrada

e

devastada. Algum dia se saberá

que o socialismo não

é

a invenção de algo nôvo, mas o

descobrimento de algo existente, que se desenvolveu.

Assim sendo, o socialismo pode tornar-se realidade

m

qualquer• época, desde que um número suficiente de

nomens o deseje. A realização do socialismo não de

pende do grau de evolução técnica, se bem que ela,

naturalmente, começará e

se

desenvolverá em confor

midade com o nível técnico, do qual tomará·os aspectos,

mas a realização depende dos

~ o m e n s

depende de seu

espírito. O socialismo é possível e impossível em gual:

quer

é p o c a posSível, qnando

existem

os

homens que .

Õdesejam, ou melhor, gue o p r a t i c a m ~

i m p . ~

quando

os

homens não o

querem._o.u.._apenas

pretendem

qlrerê=to, sem que possam realizá-lo.

Dêsse discernimento das relações entre o Estado

e a comunidade depreende-se um ponto .importante.

Pràticamente, vemos que não pode tratar-se da alterna

tiva abstrata entre Estado ou não-Estado . O princí

pio da limitação a duas alternativas é essencial para as

decisões legítimas pessoa ou do grupo;

é,

eqtão, que

tudo o que seja intermediário, conciliador, se torna im

puro e impurificador, conseguindo apenas turvar, con

fundir, entorpecer. Mas ªsse mesmo princípio se con

verte obstáculo quando, no processo de executar a

resolução tomada, só se admite o absoluto, desvalori

zando-se a parcela realizável no momento. Se o Es-,

6

tado

é,

realmente, uma relação que

pode ser destruí

d com o estabelecimento de outra, é justamente à me

dida que se avança para uma nova relação que êle irá

sendo destruído.

A fim de comprendeermos bem o problema,

é pre-,

ciso dar um passo a mais. Estado (como Landauer

salientou posteriormente)

é

um

status

um estado., Os

homens que, em

dado rt10menl0,

convivem em

determi

nado espaço,

são capazes, até certo ponto, de se unir

da maneira devida, de observar espontâneamente uma

ordem justa e de reger, por ela,

os

assuntos comuns.

A linha

que, em qualquer momento,

limita

essa capa

cidade, constitui a base do Estado naquele momento.

Ou, dito com outras palavras:

a

medida da incapacidade

para usufruir de uma ordem justa determina a medida

da coação geral. De fato, o âmbito do Estado sempre

ultrapassa, em maior ou menor grau, - quando não o

f z acentuadamente - o nível que, naquele momento,

corresponderia ao da coação legal. A diferença que

·existe entre o Estado por princípio e o

de

fato, dife

rença que denomino plus-Estado, explica-se pelo

fato histórico, segundo o qual -0 poder acumulado não

abdicará de seus privilégios se não fôr obrigado a fa

zê-lo.

:l;:Ie

se nega a adaptar-se ao aumento

de

capa

cidade para uma ordem espontânea, enquanto esta não

exercer, sôbre êle, uma pressão suficientemente forte.

A base do poder por princípio extinguiu-se, mas não o

poder em si, enquanto não fôr destituído. O morto do

mina, assim, ao vivo. Vemos , diz Landauer numa

passagem, que o que está morto para o nosso espírito

exerce um poder vivo sôbre o nosso corpo . A tarefa

que se depreende dessa situação para os socialistas,

ou seja, para aquêles que procuram a reestruturação da

sociedade, é fazer

com.

que o domínio real · do Estado

retroceda até o limite do Estado por princípio. E é

isso o que ocorre, graças à criação e renovação da es

trutura orgânica genuína, mediante a união de pessoas

e famífias em diversas comunidades e a destas. em fe

derações. É essa expansão e não outra coisá o que

destrói o Estado, suplantando-o; evidentemente, de

ve-se suplantar apenas a parte do Estado que, em dado

momento, resultar supérflua; infundada. Uma ação

que fôsse além dêsses limites seria ilícita e ·estaria des

t.inada

ao malôgro, já que, ao ultrapassá-los, ficaria des-

65

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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tituída do espírito construtivo para as tarefas subse

qüentes. Deparamo-nos, aqui, com a mesma proble

mática que Proudhon já descobrira e reconhecera sob

outro prisma: uma associação carente do necessário es

pírito comunitário, que não seja suficientemente vital,

não substitui o Estado pela sociedade, mas traz o Es

tado em si mesmo e o que ela faz não pode ser outra

coisa senão Estado, ou seja, política de poder e expan-

sionismo, sustentada por uma burocracia.

Igualmente importante, porém, é que para Lan

daucr, como

dissemos, o estabelecimento

da

socie

dade "fora" e "junto" ao Estado vem a ser, substancial

mente, "o descobrimento de algo existente e que se de

senvolveu". Além do Estado, existe realmente uma co

munidade, "não

um

a soma de indivíduos isolados mas

uma solidariedade orgânica, que se estenderá a diversos

grupos, até formar uma espécie de abóbada". Todavia,

a realidade da comunidade deve ser despertada, extraí

da de sob a crosta do Estado. Mas isso só poderá ocor

rer, quando se . perfurar essa crosta, atravessando a

acomõdação interior dos homens ao Estado, e desper

tando a realidade primitiva que sob ela dormita. "Esta

é

a tarefa dos socialistas e dos eventos que êstes origi·

naram e provocaram ·nos povos: a de começar a afrou

xar o endurecimento dos ânimos, para que o que se

encontra submerso reaflore à superfície, para que o

verdadeiramente vivo, que hoje parece estar totalménte

morto, possa desdobrar-se e crescer novamente." Os

homens assim renovados poderão, por sua vez renovar

a sociedade. E como saberão, por experiência, que o

que se manifestou

em

suas almas nada mais é que o

antiqüíssimo fundo comunitário, incorporação à nova

estrutura tudo quanto se tenha conservado de autêntica

forma de comunidade. A uma mulher que queria que

o casamento fôsse abolido, escreve Landauer numa

carta: "Seria loucura querer 'abolir' as poucas formas

de

vinculação que nos restam. Necessitamos de

for-

ma, não de informidade. Precisamos de tradição .

Quem edifica, não em vão e por capricho, mas legiti

mamente e visando o futuro, age mercê de uma anti

qüíssima tradição que lhe

é

confiada e que lhe confere

podêres. Por aí compreendemos a razão pela qual Lan

dauer não

desi

gnou com um nôvo nome a "outra" re

lação que o homem pode contrair, ao invés da estatal.

denominando-a simplesmente de "povo". Nesse "povo"

figura também a mais íntima realidade do que se deno

mina nação, ou seja, o que resta quando se descru;ta a

estatização, a politização: a comunidade de essência. a

comunidade de ser na pluralidade.

~ ~ ~ a s e m e l h a

n ç ~ ,

essa igualdade dentro do desigual, essa p r o p ~ i e ~ a d e uni

ficadora que liga entre ·

si

os membros do ·povo, êsse

espírito comum, é um f ~ t o P ? S ~ t i v o Não o .PC:rcais

vista ó homens livres, o soc1al1stas. O soc  hsmo, Ih

b e r d ~ d e e justiça, só pode tornar-se realidade em meio

àqueles que, de há muito, se correspondem e um so

cialismo não pode implantar-se em abstrato, mas numa

diversidade concreta em conformidade com as harmo

nias dos povos." Aqui se põe, a descoberto, a verda

deira relaç?o entre nação e socialismo: a s ~ m e l h a n

dos conaciónais quanto à maneira de ser, linguagem,

patrimônio de trãdições, memória de um destino co

mum, é constante predisposição para uma existência

comunitária e, tão-somente edificando essa existência,

é que os povos podem ser reconstituídos. . S ? ~ e n t e

um renascimento dos Povos que parta do prmc1p10 da

comunidade poderá trazer a salvação." E também

concretamente, Landauer fat. depender a nova mani

festação - embora em forma rudimentar - de formas

comunitárias antigas e da possibilidade de guardá-las,

renová-las e desenvolvê-las. "Hoje, como em qualquer

época, o reformador radical

poderá modificar aquilo

que já existe. E, por isso, convém q u ~ as comunas rn·

gionais tenham sempre a sua demarcação, que uma

parte das terras seja éomunal e a outra constitua o pa

trimônio familiar, para a casa, pátio, jardim e campo."

Landauer ademais, conta igualmente com a profund i

·memória 'do solo das unidades comunais. "Muitas coi

sas há às quais podemos vincular o que ainda é capaz

de produzi; formas vivas de espírito

vivo.

Comunida

des rurais com resquícios da antiga propriedade comu

nal, cuja demarcação original, que.

séculos se con

verteu

em

propriedade privada, ainda p e r m n ~ c e m na

lembrança de camponeses e peões; instituições comu

nitárias para o trabalho do campo e o artesanato." Ser

socialista.significa ~ s t a r em contato vital com a vida e

o espírito comunitário. da época, estar alerta e reconhe

cer, com olhar imperturbável, o que dêles ainda .se en-

  7

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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contra na

profundidade de nossa vida desprovida de

comunidade e, sempre que fôr possível, enlaçar forte

mente ao perdurável as novas formas criadas.

Mas

significa também: abster-se

de

traçar esquemàticamente

os

caminhos;

saber

que,

na

vida

do

homem e

da

comu

nidade, pode ocorrer que a linha reta entre dois pontos

talvez seja a mais longa; compreender que o verdadeiro

caminho para a realidade socialista não se deduz ape

nas do que sabemos e planejamos,

mas

também

do

des

conhecido e

do

incompreensível,

do

inespera

do

e

do

que

não

se

pode

esperar; significa viver ativamente,

na

medida do possível, de acôrdo

com

êsses ditames. Em

detalhe - diz

Landauer em

1907 - nada sabemos

realmente sôbre o nosso caminho imediato; êle pode

passar pela Rússia,

mas t m b ~ m pela

índia. A única

coisa que podemos saber

é que

o nosso caminho

não

passa pelas tendências e lutas

do

dia-a-dia,

mas

pelo

desconhecido, pelo que

jaz na

profundidade e pelo

re

pentino .

Referindo-se a Walt Whitman, o poeta .

da

demo

cracia heróica a

quem

traduziu,

Landauer

compara-o a

Proudhon, -

com

quem Whitman, segundo Landauer,

tinha muitas afinidades espirituais - dizendo que am

bos uniam

em

si o espírito conservador e o revolucio

nário, o individualismo e o socialismo. O mesmo

se

pode

dizer

do próprio

Landauer. O que êle tem

em

me nte é, decisivamente,

uma

conservação revolucioná

ria: seleção revolucionária dos elementos

da

entidade

social, dignos

de

ser conservados, adequados

à

nova

construção.

A partir disso, temos que ver, em Landauer, -

o homem que provinha

de uma

família judia burguesa

do sudoeste da Alemanha e que soube chegar, incom

paràvelmente

mais

próximo

do

que Marx, ao proleta

riado e à vida proletária -

um

revolucionário. Seus

projetos

de

co

lonização sciciaHsta foram,

re

petidaqien

te, atacados pelos marxistas, sob a alegação

de

que equi

valiam a isolar-se

numa

ilha

de

bem-aventurança, afas

tada do mundo

da

exploração

humana

e

da luta

im

placável contra ela desfechada, uma ilha

de

onde se

contemplariam, passivamente, os tremendos aconteci

mentos mundiais.

Não

pode haver acusação mais

injusta. Tudo.o que Landauer planejou, pensou, disse

8

ê escreveu, quer se tratasse de Shakespeare, quer de

mística

alemã

e, principalmente, tudo quanto esboçou

sôbre a realidade socialista a ser edificada, estava im

pregnado de sua imensa fé na revolução e

de

seu pro

fundo anseio

por

ela. ''Queremos, acaso, isola

r-n

os

na felicidade? escreveu êle

numa carta

( i911).

t

viver

para

nós mesmos o que, acaso, desejamos? Não

q'ueremos fazer todo o possível e desejar o impossível,

por

amor

aos povos? .

Não

queremos o todo, a revolu

ção? Mas a luta pela libertàção· que se estende para

além de tôdas as épocas e

à

qual êle

o nome

de

revolução, sàmente poderá dar frutos quando descer

sôbre nós o espírito que não se chama revolução

mas

regene

ração ;

e, dentro

da

revolução maior, as revolu

ções isoladas surgem,

para

Landauer, como um

banho

de fogo

do

'espírito, assim como a própria revolução

é,

em última instância, uma regeneração. No fogo, o

arrebatam

ento

e a fraternidade dêsses movimentos agres

sivos - diz Landauer no livro A .Revolução que escre

veu

em 1907

a

pedido meu

- - despertam, continua

mente, a imagem e o sentimento da união positiva,

através

da

qualidade unificadora do amor, que é fôrça·

sem essa regeneração passageira, seria impossível pros

seguir vivendo e acabaríamos

por

sucumbir. pre

ciso, porém, reconhecer que, embora a utopia seja de

uma beleza extraordinária,

não

tanto pelo

que

diz,

mas

pela m neira como o diz, os resultados da revolução,

finda esta,

não

se diferenciam em

muito do

que existia

anteriormente''. A fôrça

da

revolução reside

na

rebe

lião e

na

negação; ela não pode, com seus meios polí

ticos, resolver os problemas sociais.

E,

referindo-se

à

Revolução Francesa, prossegue Landauer: Contudo,

quando uma revolução chega, como essa,

à

espantosa

situação

de

se achar rodeada por inimigos internos e

externos, as fôrças ainda vivas

da

negação e da destrui

ção acabam voltando-se

contra

si mesmas; o fanatismo

e a paixão

se

convertem em desconfiança e em sêde de

sangue ou, pelo menos,

em

indiferença

ante

o horror

dos assassínios; e, em breve, o terror

à

morte passa a

ser o único meio

para

que os detentores

do

poder con

servem

seu

domínio provisório . Assim foi (escreve

Landauer

dez anos mais tarde, a respeito

da

mesma

revoluÇão, prosseguindo no mesmo ponto de

vista),

que os representantes mais fervorosos da Revolução,

69

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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não importando o grupo a que tenham sido final.mente

lançados pela maré tempestuosa, acreditaram e quise

ram,

em

seus momentos

de

maior discernimento, que a

Revolução trouxesse consigo

um

renascimento

da

hu

manidade; mas tal não se deu êles impuseram obs

táculos uns aos outros, lançando-se a culpa mutuamen

I ? e l ~ fa o

da

R:volução se haver aliado à guerra, à

v1olenc1a

a opressao e

ao

poder autoritários e

à

polí

tica". Entre êsses dois pronunciamentos, vésperas

da

1 Guerra Mundial, em julho de 1914, Landauer ex

pressava a mesma crítica,

de

_orma particula.nnente

atual. "Não nos enganemos mais; - escreve êie - os

países atualmente chegaram a um ponto tal que as

agitações revolucionárias, quando se chega finalmente

a avaliar os seus resultados, serviram apenas para am

pliar o campo

de

domínio

do

poder nacional capitalista,

a que denominamos imperialismo. As convulsões re

v o l u c i o n á r i ~ s

mesmo que tenham, em

sua

origem, os

tentado as côres

do

socialismo, acabaram sendo fàcil

mente

<:_analizadas

para

a corrente

da

política,

por um

~ a p o l e a o

u_m

a ~ o ~ r

ou

um Bismarck e isso porque

todas essas 10surre1çoes nada mais eram senão instru

mentos

da

revolução política

ou da

guerra nacional.

Elas

não

podem servir

de

instrumentos

da

transforma

ção

socialista, porque os socialistas, no fundo

não

pas

sam de românticos, que se utilizam dos

m e i ~ s de

seus

inimigos; êlcs não empregam e

nem

sequer conhecem

os meios para transformar em realidade o nôvo povo

e a nova humanidade". Contudo,

em 1907, Lan

d a u ~ r baseando-se em Proudhon, tirara dessa teoria a

segumte conclusão: "Chegará o tempo em que se verá

melhor o que Proudhon, o maior dos socialistas, disse

em

p a l a v r ~ s incomparáveis, se bem que hoje relegadas

ao esquecimento: que

não

existe a menor semelhança

entre a revolução social e a revolução política e que,

emoora a revolução social não possa nascer e prosse

guir existindo sem revoluções políticas diversas, ela é,

no entanto, uma edificação pacífica, um organizar

à

~ a s e de um

espírito nôvo e

para um

espíri

to

nôvo e-

nada

mais". E prossegue: "Não obstante, como

d i ~ s e

Gottfried Keller: o último trunfo

da

liberdade será dis

secado. As revoluções políticas deixarão o terreno lite

ralmente livre, em todos os sentidos. Concomitante

mente, porém, já estarão preparadas as instituições onde

7

como as associações comarcãs e tantas outras institui

pode existir a liga das sociedades que administrarão a

economia, liga destinada a resgatar o espírito que é

prisioneiro

do

Estado". Mas essa preparação, a ver

dadf'.ira "transformação

da

sociedade, só poderá so

brevir com o amor, o trabalho e a paz".

Para

tanto, é

preciso, obviamente, que o espírito que se pretende

"resgatar"

exista nos homens em proporções sufi

cientes, a im de que preparem as instituições e reali

zem a revolução como libertação

do

solo para elas.

Novamente, Landauer invoca a Proudhon, o qual disse

aos revolucionários,

na

época revolucionária de 1848:

"Se o fizerdes, ó revolucionários, realizareis uma grande

transformação". Mais tarde, decepcionado, foi obriga

do

a fazer algo muito diferente

do

que repetir as pala

vras

da

revolu'ção.

Tudo

tem sua época e tôda época

que se segue à revolução é uma época pré-revolucioná

ria

para

todo aquêle cuja vida não se deteve no grande

momento

do

passado. Proudhon prosseguiu vivendo,

apesar

e

sangrar por mais de uma ferida.

E,

então,

pensou: se o fizerdes eu disse a êles, mas por que não

o fizeram? A resposta que encontrou consta de tôdas

as suas obras posteriores. Vertida para a nossa lingua

gem, diz: porque faltou o espírito".

Devemos a Landauer outro esclarecimento impor

tante com respeito a Kropotkin.

Para

que a revolução

política sirva à .social são necessários três itens. Pri

meiro: os revolucionários devem estar firmemente im

buídos

da

vontade

de

libertar o terreno para edificar

sôbre êle o patrimônio comunitário existente, até con

vertê-lo numa federação de sociedades. Segundo: ·o

patrimônio comunitário deve estar preparado em ins

tituições, mercê das quais possa ser consolidado após

a libertação

do

terreno. E terceiro: a preparação deve

ser efetuada

com

autêntico espírito comunitário.

Nenhum dos socialistas anteriores reconheceu, tão

profundamente com Landauer, a importância dêsse ter

ceiro' eleme.pto, o "espírito", para a nova existência

social. B preciso, porém, ter em mente o que êle en

~ e n d i a por isso. Não se julgue poder compreender a

realidade espiritual como produto e reflexo da material,

como

mera

"consciência" determinada por um "ser"

que capta as relações técnico-econômicas, mas reconhe

cer, nessa realidade espiritual, uma entidade de caráter

7

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peculiar que se acha em ação recíproca com o ser so

cial, sem que,

por

isso, possa ser suficientemente expli-

cada em nenhum ponto

por

êste. ·

"Atinge-se

um

elevado grau de cultura, - diz

Landaucr - quando as diversas estruturas sociais, que

são exclusivas e que coexistem independentemente umas

das outras, se acham impregnadas de

um

espírito unifi

cador, que não se aloja nessas estruturas e nem procede

delas, mas que as rege autônomamentc, e como fato

na-

tural. Para dizê-lo em outras palavras: só se consegue

um elevado grau de cultura quando a unidade das várias

tormas de organização e de estruturas superindividuais

não

é

uma ligação exterior' imposta pelo poder mas um

espírito inerente aos indivíduos que

u l t r p s s ~

os inte

r ~ s s e s materiais,e. terrenos". Como exemplo, Landauer

cita

ª lda?e

Media cristã (efetivamente, a única época

da

H 1 s t 6 n ~ do

Ocidente que, nesse aspecto, se pode

c ~ m p a r a

as

grandes culturas do Oriente). Landauer

n ~ o a ve r e p ~ e ~ e n t a d a

por

estas ou aquelas formas de

v 1 ~ a comumtana, como as comunidades de aldeia, as

ü d ~ s

~ o r p o r a ç õ e s

e irmandades profissionais, as

-

g ~ s . c 1 ~ a ? m a s c o m ~

tampouco, pelo regime feudal, pe

l 1s

igrejas e mosteiros ou pelas ordens

de

cavalaria; ela

se caracteriza por êsse "conjunto

de

autonomias inter

ligadas'', formando uma "sociedade de sociedades". O

que conciliava tôdas essas configurações altamente di-

f

.

d

e r ~ n c r n

as e as agrupava

numa

unjdade superior

a

pro1etar-se para o alto, como uma pirâmide cujo vértice

não se constituía no domínio a pairar invisível no es

paço, era o espírito que, do caráter e da alma dos indi

v duos, animava a tôdas essas estruturas e que, fortale

cido por elas, tornava a refluir para os homens". Po

de-se invocar êsse espírito comunitário numa época

como a nossa, numa época em que, por falta de espí

rito, prevalece o espírito

de

poderoso fascínio de alguns

poucos indivíduos,

numa

época de individualismo e,

conseqüentemente,

de

atomização das massas desarrai

g a d . ~ s

e desintegradas, numa época sem espírito e, con

sequentemente, sem verdade?" É uma "época de deca

dência e, portanto, de transição" . Assim sendo é nela

.

' '

e

JUStamente

nela, que se conjura o espírito a que apa-

reça.

:Bsses

conjuras são as revoluções. Mas o que

prepara o advento

do

espírito

é

a realização. "Assim

7

como as associações comarcãs e tantas outras institui

ções de estratificação unificadora existiam antes de se

rem preenchidas pelo espírito, o qual as transformou no

que vieram a significar

na

época cristã, e assim como

existe uma maneira de

andar antes que existam as per

nas, sendo que êsse andar é que irá construí-las e for

má-las, assim também

não

será o espírito que nos colo

cará no caminho, mas o nosso caminho

é

que fará o

espírito surgir à nossa frente". :asse caminho, porém,

significa

que

os homens que chegaram à compreensão

de

que

é

impossível continuar vivendo assim, devem

agrupar-se em federações e colocar o trabalho a serviço

de seu consumo. Em colônias, em associações, sofren

do

privações". O espírito que impulsiona essas pessoas

as induz a

t r ~ l h a r

o seu caminho comum, e é única e

exclusivamente, por êsse caminho, que êle poderá se

transformar em

um

nôvo espírito comunitário. "Nós,

os socialistas, queremos

dar

ao espírito a realidade e o

clima

para

que êle, como espírito unificador, conduza

os homens

à sua

comunidade. Nós, os socialistas, que

remos materializar e corporificar

espírito, queremos

pô-lo em ação, e é, precisamente assim, que espiritua

lizaremos os sentidos e a vida terrena." Contudo, para

que assim ocorra, é preciso manter o fogo do espírito

cuidadosamente aceso nas colonizações, não permitindo

que se extinga. Somente mediante o espírito vivo são

possíveis essas realizações ; sem êle, serão uma mira

gem. Mas, se o espírito .éstiver vivo nelas, poderá esten

der-se a tôdas as instituições cooperativas e associati

vas que, sem êle, não passam de recipientes vazios, de

instituições utilitárias sem qualquer finalidade. "

Qu

ere

mos levar as cooperativas, cujas fo rmas socialistas são

destituídas de espírito, queremos levar os sindicatos,

cujo heroísmo

é

destituído de meta, para o socialismo e

para as grandes exi;eriências ." O socialismo, diz Lan

dauer (1915), é a tentativa de levar a conveniência

dos homens

para

a união em liberdade, em tôrno

de um

espírito comum, isto é, da religião". Esta

é

a única

p a s s a g ~ m onde êsse pensador, que sempre rejeitou tôda

a simbologia religiosa de nossa época e tôdas as suas

proclamações de fé, pronuncia o têrmo "religião" nesse

sentido positivo e unificador - como expressão da

meta

por

êle aspirada: a união

na

liberdade, em tôrno

de

um espírito comum.

7

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ça definitivas

para

· um reino milenar ou, para tôda a

eternidade, mas de criar um grande equilíbrio geral e .

a vontade

de

reestabelecer, .periàdicamente, êsse equilí

brio. . 'Então soarão as trombetas por tôda, a extensão

de vossas temi.s ' A voz do espírito .é a trombeta

A rebelião como regime, a transfon:nação e reorgaru

zação como norma constante, a ordem através

do

espí

rito como propósito; essa era a grandeza e a sacralida

de da sociedade organizada por Moisés. É

disso que

necessitamos novamente: de

uma

nova regulamentação

e de uma revolução através do espírito, que não fixe,

definitivamente, as coisas e as instituições, mas que se

declare a si mesma como permanente. A revolução

deve ser um ingrediente da. nossa ordem social, o fun

damento do nosso regime''.

7

VII.

T NTÀ

TIVAS

' O mesmo método simplista utilizado para deno

minar de "utópicos"

os

primeiros

s o c i ~ s t a s

serviu pa

ra

classificar como "românticas" as duas grandes ondas

de movimento cooperativista

q ue por

volta de 1830 e

e

1848, inflamaram a melhor parte dos trabalhad9r:es

· da Inglaterra e

da

França. Essa denominação (român

ticas) n.ão

é

mais .justa que a outra, se

por

ela se en

t ~ n d e uma conçepção de vida embalada pelos sonhos

e apartada da realidade. Essas coi:rentes eram a expres-,

são das profundas crises que acompanharam a mecani

zação da economia moderna, tanto quanto o foram

moviment()s ·políticos: o cartismo

na

Inglaterra e as

duas revoluções na França. Mas, diversamente destas,

77

1

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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que aspiravam a modificar o regime político e a posição

do

poder, os mo:vimentos cooperativistas pretendiam

começar pela -citação de uma realidade social, sem a

qual nenhuma modificação das relações jurídicas pode

conduzir à realização do socialismo.

:f:les

foram acusa

dos de sobrestimar a participação do homem na trans

formação e subestimar a das circunstâncias. Mas, para

·se conhecerem as possibilidades

do

homem,

numa

deter

mjnada situação, não

outro meio senão exigir dêle .

um esfôrço extraordinário para modificá-la. As formas

heróicas do regime cooperativista esperavam·

de

seus

membros, não

dúvida,

uma

lealdade e uma abnega

ção que êles não possuíam, ou na qual, pelo menos, não

podiam perseverar; tal fato, porém,,

de

modo algum

significa que a lealdade e a abnegação só possam veri

ficar-se em épocas excepcionais

de

revoluções políticas,

e que estejam ausentes

da

rotina

da

vida econômica.

NãÕ .

é

difícil ridicularizar os iniciadores

do

movimento

·cooperativista heróico, por haverem colocado

"o

ho

mem ideal em lugar

do

real . Entretanto, o homem

real se aproxima

do

ideal , justamente. quando se

exige dêle a execução

de

tarefas para as quais se julga

va

que fôsse incapaz, ou

para

as quais êle mesmo se

julgava incapacitado.

Não

do

indivíduo se pode

dizer que êle cresce com objetivos mais elevados , ou

melhor, que

pode

crescer com êles. O que r e a l m   n t e

importa

é a

meta,

a consciência da mê

t a ê-

a

vontade

de

alcançá-la. A época heróica

da

cooperativa moder

na

buscava a transformação da sociedade; a mecânica

vê apenas o êxito das diversas eroprêsas cooperativistas.

A primeira malogrou,

mas

nem por isso se

pode

con

denar seu caminho e, tampouco, sua meta; a segunda

registrou grandes êxitos,

mas

êstes não podem, certa

mente, ser considerados ioroo etapas necessárias para

o alcance do objetivo. .

Um

paladino do regime coope

rativista burocratizado· expressa-se a respeito

do

regime

primitivo nos seguintes têrmos: Manifestemos todo o

nosso respeito e admiração por essas almas humildes e

crentes, guiadas pela chama

da

convicção social . ·

Reconheçamos, porém, que o •heroísmo não constitui,

por

.si

mesmo, um estado de ânimo apropriado para

conduzir aos êxitos econômicos . Não

dúvida, mas

reconheçamos igualmente que os triunfos econômicos

8

não constituem,

por si

sós,

uma·· o n q u i s t a

adequada

pa

ra conduzir

à

reestruturação

da

sociedade humana.

Comparemos alguns dados das duas épocas dêsse

movimento, no que se refere às três formas principais

de cooperação (prescindindo das cooperativas de cré

dffo) : cooperativa

de

consumo, cooperativa

de

produ

ção

e cooperativa integral Vollgenossenschaf t , ba

seada

na

união

da

produção e

do

consumo. Epoca

de

1830: em 1827 é fundada a primeira cooperativa

de

consumo inglêsa, em sentido moderno, sob a influência

das idéias

do

Dr. William King;

em

1832, a primeira

cooperativa.

de

produção francesa, erigida segundo os

planos

de Bucl::tez

e, entre ambas, a experiência de colo

nização de Owen e seus sequazes, o norte-americano e

os inglêses. :f:poça

de

1848: primeiramente a coopera

tiva de consum6 dos tecelões de Rochdale, seguida

p e ~

Ias oficinas nacionais

de

Louis Blanc e outras afins

e, finalmente, cõmo sátira, a tragicômica emprêsa

" cá-

ria" de

Cabet

verdadeiro

utopista

em

sentido negativo,

edificador social destituído

de

uma compreensão pro

priamente dita dos fundamentos humanos) às margens

do Mississipi. Todavia, como tentativas de realização

do

socialismo utópico, só iremos comentá-las quando a

finalidade desta obra assim

o

exigir.

Tanto

Çin.g

_c,omo Buchez

~ r a m

médicos e ambos,

- ao contrário Owen, ,que transformou

a

luta con

tra n religião

numa

das principais missões

de

sua vida

- cristãos fervorosos; aquêle protestante, êste católico.

:Bsse

fato não é destituído de importância. Para Owen,

o socialismo

era

fruto

da

razão;

p ~ r a

King

e

Buchez,

a realização dos ensinamentos

do

cristianismo no do

mínio

da

vida pública. Ambos -consideravãm, como diz

Buchez, chegado o momento de transformar em ins

tituições sõciais as doutrinas

do

cristianismo. Esse

sentimento religioso fundamental_ xerceu

uma

profunda

influência sôbre tôda a atitude

de

ambos e, em King,

-

qu

.e se achava

numa

posição muito próxima

à

dos

quacre..§,

com os quais colab.orava - também

na

·to

nalidade

de

suas palavras. Sentimos nêle a preocupação

concreta, direta e íntima pelo próximo,

para

com sua

alma

e

sua

vida. ·

Quando ·se evocou, em nossa época, o nome de

King, tirando-o

do

esquecimento a que se achava rele-

  9

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gado, êle passou a ser considerado, com razão, como

o primeiro e o maior dos teóricos cooperativistas inglê

ses. Sle possuía, ademais, o dom da palavra pertinente,

deixando clara, para todos, a essência

do

que dizia.

Em tôda a literatura sôbre as cooperativas, nada co

nheço que desperte,

ao

mesmo tempo, uma impressão

tão popular e clássica como os 24 pequenos c a d e r ~ g §

da revista

The Cooperator

gue King escreveu e_editou

de 1828 a 1830,

para

instruir àqueles que atuavam a

favor de suaSi idéias. Sle possui, ademais,

uma

com

preensão socialista roais profunda

e, ao

mesmo tempo,

mais clara que todos os seus contemporâneos, exceção

feita a William Thompson, que

era

mais científico

mas

tAambém mais abstrato.

~ 1 ? $

parte

do

trabalho, que

e}e considera como sendo a raiz da ~ v o r e , _eja qual

fqr o tamanho que ela alcance". O traba ho, "nesse

sentido, é tudo". As classes trabalhadoras "possuem

o monopólio dêsse artigo". Nenhuma fôrça poderá pri

vá-las dêle, pois todo poder não vai além

do

poder

de

canalizar o trabalho das classes trabalhadoras?'. O que

falta a estas é capital, ou seja, dispor

de

máquinas e

da possibilidade de sustento enquanto trabalham. Mas

capital foi feito pelo trabalho" e nada é em si

mesmo"; para ser produtivo, é preciso que êle torne a

se vincular ao trabalho.

Hoje

em dia, essa combinação ,

se processa "comprando e vendendo o trabalhador, co

mo a

um

animal". A verdadeira combinação, a "qnião

natl}ral", poderá ser realizada pelas próprias classes

trabalhadoras,

mas

estas o ignoram.

No

entanto, elas

sàmente

p o d e r ã ~ ~ a l i z á - l a ,

se se agruparem, coopera

rem, formarem um capital comum e se tornarem inde

pendentes. King adere, apaixonadamente, à idéia

da

cooperação como forma

de

produção de trabalho, ante

riorjÍlente formulada por Thompson. "Assim que os

trabalhadores se unirem, tendo por bi:tse o trabalho,

ao invés do capital, o rebuliço causad  . n.gitará o pó,

espalhando-o para todos os lados, e a poeira, certa

mente, cegará a mais de um empresário". Se os traba

lhadores se unirem em ·cooperativas, poderão adquirir

as ferramentas e as máquinas de que necessitam e se

converter no próprio sujeito da produção. E poderão,

igualmente, adquirir terras. King esclarece nitidamente

que, para êle, a cooperativa

de

consumo é apenas um

início e que sua meta, como a de Thompson, é a coo-

8

perativa ':integral". Assim que a "sociedade", ou seja,

a cooperativa

de

consumo, dispuser

de

capital suficien

te, poderá "adquirir terras, viver nelas, cultivá-las,. ex

trair os produtos que desejar, satisfazendo assim a tô

das as suas necessidades de alimentação, vestuário e

alojamento. A sociedade . passará, então, a chamar-se

1

comunidade". King incita igualmente os sindicatos a

adquirir terras com suas economias, instalando nelas

os seus membros desempregados, em comunidades que

tendam a satisfazer as próprias necessidades. Essas

comunidades não abrangerão mais apenas determinados

interêsses e fup.ções

de

seus associados, mas tôda a sua

vida, desde que queiram e possam viver em comum.

Mas, ainda que a comunidade de vida só possa desen

volver-se, reãlmente,

na

cooperativa integral, já deverá

existir

como

disposição psíquica

no

relacionamento dos·

membros da cooperativa de consumo. Com isso, King

não se refere apenas a

uma

solidariedade impessoal,

mas a uma relação pessoal que, embora geralmente

permaneça latente, esteja

pronta para

atualizar-se a

qualquer momento,

numa

"simpatia" que "age com

novas energias, podendo, ocasionalmente, elevar-se até

o entusiasmo".

Por

isso, deverão ser admitidos apenas

os membros capazes de

t l

entrosamento.

a r ~

King,

a lei fundamental

da

cooperação consiste em estabele

cer relações autênticas entre os homens. "Quando

alguém ingressa

numa

sociedàde cooperativa, contrai

uma nova relação com seus semelhantes e essa relação

se· converte, de imediato,

em

objeto

de

tôda sanção;

tanto moral como religiosa." Claro está· que essa exi

gência ideal, "heróica", não pôde ser mantida poste

riormente, ante o crescimento

do

número

de

membros

da cooperativa de consumo, o incremento

da

técnica e

da

burocratização. Mas

i s ~ o

se deveu também

à

insu

ficiência da cooperativa parcial, considerada do ponto

de vista

da

reestruturação da sociedade.

Quando William King,

em

1830, suspendeu a

p. J-

blicação

do Cooperator

haviam surgido, por influência

de

suas doutrinas, 300 sociedades, cuj,a maioria, porém,

não sobreviveu por muito tempo, por falta unidade

e cooperação ativa entre os membros" e devido ao "es

pírito de egoísmo" que nêles imperava, como se expri

miria

um

de seus líderes perante o Congresso de 1832.

O desenvolvimento decisivo das cooperativas de con-

81

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entre cooperativas, o trabalho conjunto de vários gru

pos e institutos cooperativos, empreendida, inicialmen

te, pelos Pioneiros e, subseqüentemente, pelos que se

uniram a êles. Em sua

História das Doutrinas Coo-

perativistas diz a êsse respeito o investigador romeno

Mladenatz, ins.12irando-se obviamente, em Proudbon:

O

princípio do federalismo surge de modo natural da

mesma idéia que constitui a base do sistema coopera-

tivista. Assim como, na sociedade cooperativa, as

~ s s o s se unem para satisfazer, em comum, a certas

necessidades, unem-se também diversas células coope

rativas sob o princípio

da

solidariedade para exercer

determinadas funções, sobretudo as de abastecimento

~ r ~ ~ u ç ã o . Aqui, t o r n ~ m o s a encontrar o princípio

pnm1tivo da reestruturaçao da sociedade, se bem que

naturalmente as sociedades de consumo como tais -

como cooperativas que unem apenas determinados in

terêsses

dos

homens, mas não suas vidas - não pare

çam adequadas para se constituir em células de uma

nova estrutura.

A moderna cooperativa de consumo que se con

verteu em ree,lidade indiscutível na vida econômica de

nossa época, originou-se das idéias do socialismo utó

pico . Nos planos de William King é perfeitamenteperceptível a intenção de chegar à grande realidade

s o c ~ ~ s t a , mediante a criação de ·pequenas realidades

socialistas em constante fusão e expansão.

Ao

mes

mo tempo, porém, King percebeu, nitidamente a re

volução técnico-econômica que se iniciara em s ~ a épo

ca. : ;:le descobriu a importância essencial da máquina

e .a aceitou, rejeitando todos os ataques contra ela co

loucura e

c r ~ m e .

Mas descobriu também que

os

mventores, que sao trabalhadores, destroem a si mes

mos e aos seus companheiros com os seus maravilho

sos inventos , pois vendem-nos aos seus amos

para

trabalharem contra êles, ao invés de retê-los

em

seu

poder

para

fazê-los trabalhar

om

êles . Por isso,

naturalmente,

é

preciso que o povo trabalhador se

constitua

em ~ o o ~ e : _ a t i ~ a s Os

trabalhadores pos

suem bastante mtehgenc1a para fazer tôda a maquinaria

do mundo, mas ainda não tiveram inteligência suficien

te para fazer com que ela trabalhe a seu favor. Para

King, a organizaÇão da cooperativa de consumo não

passa, pois, de uma simples etapa. para a cooperativa

de produção; também esta, por sua

vez

const1tu1 uma

etapa para a estruturação cooperativista da vida

em

sua totalidade.

Um século depois de haver surgido, a. cooperati

va

de consumo conquistou uma parte importante da

humanidade civilizada; contudo, as esperanças que King

nutria a respeito de seu desenvolvimento intrínseco ainda

não se realizaram. É bem verdade que,

em

muitos

lugares, as associações de consumo se dedicaram a

produzir para as próprias

11ecessidades

e,

às vêzes

em

larga escala. Isso se verificou, sobretudo,

na

Grã

-Bretanha, onde

as

duas gigantescas associações de ven

da por atacado, das quais a inglêsa foi considerada a

maior emprêsa comercial da Europa , exploram am

plas extensões de terra de sua propriedade e financiam

importantes indústrias (embora seus funcionários não

ten

ham uma participação direta nos lucros). Também

verdade que, como salient<?U Fritz Naphtali com ra

Lão

existe a tendência a se aprofundar, cada vez mais,

na produção por conta própria. Isso, porém, não sig

nifica que estejamos mais próximos de um enlace

orgânico entre produção e consumo, em forma de co

munidade completa, embora contemos com certos

exemplos notáveis: o de algumas grandes associações de

consumo ou suas federações que se organizaram como

c o o p e r a ~ i v a s de produção em diversos ramos ou se

incorporaram às

existentes. No entanto, trata-se aí

apenas de organização técnica, e não da realização de

uma autêntica idéia cooperativista; tampouco, a fusão

de associações locais, mesmo nos casos em que assu

miu próporções amplas, conservou um caráter federa

tivo autêntico. Na maioria das vêzes, as pequenas

cooperativas se transformaram, como disse alguém há

poucas décadas, de centros autônomos de solidarieda

de social

em

simples massas de membros e seus ne

góCios

em meras sucursais da grande organização.São óbvias as vantagens técnico-econômicas dessa or

ganização. O grave, porém, é que aqui não existiu

nenhuma fôrça que se empenhasse

em

preservar, no

seio das diversas cooperativas, o grau de autonomia,

compatível com as exigências técnico-econômicas, em

bora

em

alguns outros lugares, como por exemplo na

Suíça, se procurasse coibir a perda da alma e, até

mesmo, a corrupção da essência da cooperativa, atra-

85

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vés

de

uma descentralização sistemática. O funciona

"' ento · da ~ a í o r i a

das

grandes instituições cooperati

vistas se foi assemelhando, cada vez mais

ao

das

·capitalistas e, em muitíssimos casos, o p r i ~ í p i o da

burocracia chegou a suprimir totalmente o exercício

voluntário dos cargos anteriormente exaltado, como o

bem mais precioso e indispensável do movimento coo

p e r a t i v ~ s t a Isso pode s e ~ o ~ s e r v a d o particularmente,

nps p.aises em que

se

verificou, ·por

parte

das associa

ções de consumidores, uma cooperação crescente com

o Estado e os municípios. Nesse sentido, Charles Gide,

com tôqa razão, recordava a fábula do lôbo disfarçado

em pastor. e manifestava o receio de que, ao. invés de

cooperativizar o Estado, se viesse a "estatizar" as

cooperativas. O espírito de solidariedade só poderá

manter-se verdadeiramente vivo, enquanto os indiví

duos conservarem, entre si,

uma

vinculação yital. Fer

dinand Tônnies disse, certa feita, que a transição das

cooperativas

de

consumo. para o abastecimento comum

e, a seguir, para a produção de suas próprias neces

sidades, "assegurava a base de uma organização eco

nômica, em notório contraste

com

a ordem social'

atual", e que o

intuito

era o de,

por

êsse meio, abalar

os alicerces

do

mundo capitalista''.

Mas

o "intuito de"

jamf .is poderá converter-se em realidade, se as formas

do capitalismo continuarem a infiltrar-se nas ativida-

des cooperativistas. · ·

Buchez, que logo depois

de

King planejou e

es

 :

timulou, na França, a fundação de cooperativas de

ptodução, também é, no fundo, um socialista "utópi

co". A reforma comunista que se impõe - escreve

em 1831 em sua revista, L Européen - haverá de

efetuar-se mediante a

associação

dos trabalhadores."

Para

Bucbez - que, embora católico praticante, pas

sara pela escola

do

saint-simonismo onde ocupava uma

posição muito .próxima

à

do socialista radical Bazard

- a produção

é

tudo e a organização do consumo

não chega a significar para êle, sequer, uma etapa.

Em sua opinião, a cooperativa de produção - que

êle, por compreender menos do que King a evolução

da técnica, concebe mais

no

sentido

do

artesanato que

no da indústria mod erna -' - conduz diretamente à or

dem socialista. Os trabalhadores

de

um ramo se

8

unem, juntam . suas economias, tomam empréstimos,

produzem por conta própria, restituem através de mui

tas privações, o capital emprestado, garantem mutua

mente um salário idêntico e deixam os l u ~ r o s em um

fundo comum,

de

sorte que a oficina cooperativa se

converte numa pequena comunidade industrial." U ne

pétite communauté industrie

ll

e -

aqui, aproxima-se

Buchez da concepção de King, no sentido de que uma

society pode converter-se numa community, com a

única diferença de que o primeiro atribui tal caráter

à

simples cooperativa de produção,

ao

passo que King,

com uma compreensão mais profunda, só vislumbra essa

possibilidade para a cooperativa integral. Finaliza com

a fórmula simples, demasiadamente simples: "Se to

dos

os

trabalhadores procederem assim, o problema

social ficará solucionado". Perfeitamente cônscio de

que com isso, de modo algum, ficava solucionado o

grande problema da propriedade das terras, êle recor

Jia

à

fórmula: A terra para o camponês, a oficina para

o trabalhador", sem compreender a gravidade

da

ques

tão referente à . ransformação social da agricultura.

Ao contrário

de

King, êle

não

percebia o problema

da

evolução para a cooperativa integral, o problema deci

sivo

da

reestruturação. Buchez,

por sua

vez, com

uma

sagacidade notável, percebeu muitos dos perigos que

ameaçam, internamente, o caráter e a missão socialistas

da

cooperativa de produção e, sobretudo, um: a ]2.r9ms

siva diferenciação, dentro

da

cooperativa em expansão

crescente, que

se

forma entre os sócios que a fundaram

e os trabalhadores que se vão integrando a ela, dife

renciação que imprime, indubitàve

lm

ente, à coopera

tiva, por mais que esta manifeste sua profissão

de

socialista, o caráter de apêndice

da

ordem capitalista.

A

fim

de eliminar êsse perigo, Buchez, no programa

modificado que publicou depois das primeiras experiên

cias práticas (em fins de ' 1831 ) , p ~ o p õ duas medidas:

o "capital social", formado com base

na

reserva de

uma

quinta parte dos lucros obtidos, deve ser propriedade

inálienável e indivisível

da

cooperativa, a qual deverá.

declarar-se indissolúvel e renovar-se continuamente,

mediante a aceitação. de novos membros; a cooperativa

não deverá ocupar, por mais de um ano, trabalhadores

- estranhos como assalariados, devendo, ao fim dêsse pra

zo, aceitar'novos sócios,

na

medida em que êstes se tor-

8

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narem necessários. (Num contrato exemplar publicado

em 1840 po

ll L

Atelier, a revista dos adeptos de Buchez

o prazo se reduz a um período de prova de três

mese,,s.

A respeito do primeiro dêsses dois pontos, dizia Bu

chez que, sem êsse capital, a cooperativa passaria a "ser

semelhante a qualquer outra sociedade mercantil. Ela

seria proveitosa unicamente para os fundadores, e pre

judicial para todos.

os

que não houvessem formado par

te dela desde o princípio, visto como se converteria, de

finitivamente, em meio de exploração nas mãos dos

primeiros" .Bsse ponto do programa tinha a finalidade,

como se observou com razão, de criar um capital que

acabaria por "absorver todo· o capital industrial do país,

fazendo, assim, com que as cooperativas de trabalhado

res se apropriassem de todos os meios de produção".

Aqui, tornamos a encontrar aquêle elemento ' ' u t ó p i ~ o .

Mas, afinal, o que _ m.IDs prjtico.: _procurar criaT a rea

lidade social mediante a 're-ª_lidade sócial, cujos_

direito_s.

são .defendidos e ampliados através de métodos p _ o l í t ~

cos, ou -pretender cria r realidade social i'lnit:ameqte

através da varinha mágica da política? evidente que

êsses princípios foz:am observados de maneira muito

irregular pelas cooperativas fundadas sob a influência

de Buchez. E, vinte anos depois, o princípio do capi

tal indivisível era tão discutido que seus adeptos tiveram

de sustentar uma luta difícil e essencialmente infrutífe

ra, em defesa do princípio que se destinava a "trans

formar a propriedade" e colocar "o capital sob o domí

nio do trabalho", para que a instituição da cooperativa

beneficiasse a tôda a classe

o p e r ~ i a e

não apenas a

alguns membros afortunados que, graças a ela, se con

verteram de assalariados em capitalistas". E, justamente

na mesma época, 1852, lemos num informe da Society

or Promoting Working Men Association · (Sociedade

para promoção das associações de operários) que, na

Inglaterra, ocorria mais

º ll:

menos o mesmo. Mas,

dessas experiências - bem como de outras análogas

.efetuadas na .Idade Média e, também, de experiências

similares da história das associações de consumo -

sômente se pode deduzir que o único modo de solu

cionar, se bem que apenas paulatinamente, a proble

mát.ica

. interna das cooperativas e o poder do princípio

capitalista que a elas se impõe, é a cooperativa integral,

com todos

os

meios que possibilita. ·

:B possível que Í ouis Bland tel ha sido i ~ l u e n c ~ a -

1

:

d pelas idéias de Bucnez, a despeito de se

d1stanc1ar

d ~ l e em alguns pontos i ~ p o r t a n t e s . . Não obstante, o

· portante não foi ter pedido o auxílio do Estado para

im "oficinas sociais" que pretendia fundar ( 1841) -

as

. . .

como fêz Lassalle, postenormente, para as suas coope-

rativas de produção, alegando que "o que falta

aos

pro

letários para que se emancipem são os instrumentos de

trabalho e o Govêrno tem o dever de lhos propor

cionar". .Bsse foi um êrro fundamental e, no caso

de Louis Blanc, uma franca

c o n t r a d i ç ~ o

lógica, v.isto

que não se pode esperar

q u ~ .

um

f l º ~ e r n o 9-ue. r ~ p :

senta determinada ordem pohtlca de

v ~ d ~

a mshtu1çoes

destinadas a destruir (tal era a opmiao c l a r ~ l l l : e n ~ e

expressa por Blanc) essa m e ~ ~ ª ordem. A i;na1

ona

anti-socialista do govêmo proVtsono de 1848 agm coe

rentemente, quando subtituiu o plano de Blanc por uma

caricatura fazendo, finalmente, malograr também a

esta. I s s ~ entretanto, não afeta a essência da reforma

social p l a ~ e j a d a por Blanc. Muito mais importante.é

a essência centralis ta de seu programa. Éle pretendia

que tôdas

as

grandes indústrias constituíssem

~ u ~ a

associação única, agrupada em torno de uma oflcma

central. bem verdade que êle dava um toque de

fe

deralismo a essa idéia, - no fundo saint-simonista -

ao pedir que a solidariedade de

t o ~ o s os t r a ? ~ l h a d o r e s

de uma oficina fôsse adotada por todas as

o f ~ c m a s

den

tro de um ramo industrial, constituindo-se, finalmente,

na solidariedade de todos os ramos industriais. Mas.

o que êle entendia por s o l i ~ a r i z a ç ã o e r ~ na r e a l i d a ~ e

a organização de um orga:iism? f,ei:trabzado, com m

tuitos monopolizadores. N ao

ha

duVIda q u ~

B ~ ~ n ~

que

ria atacar em suas raízes

a

concorr'ência

11irr11t.ada

,

"êsse princípio covarde e ~ r u t a l ' ' , . como o d ~ n o ~ m o u

certa ocasião na Assembléia Nacional,.

se1a,

.1mp:;:

dir que a concorrência coletiva .su?stitu1sse a ,md1v1-

dual. De fato, êsse

é

o perigo principal

q u ~

alem das

discriminações internas, ameaça a c ~ o p e r a t i ~ a de p;o

dução.

Um

bom exemplo dêsse perigo .nos e

o f e r ~ c 1 d o

pela carta de um chefe

~ o v i m e n t o

c o o p e r n ~

v i s t a

socialista-cristão inglês, r e d 1 g ~ d a nessa m e s ~ a e ~ o c a

onde êle diz que as cooperatrvas de produçao cnadas

por êsse movimento estão "animadas por um espir.it.o

de concorrência ávido de ganâncias", e que elas asp1-

89

I

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L

ram simplesmente a uma "competição mais promissora·

que a permitida pelo sistema atual". Buchez e seus

partidários reconheceram êsse perigo, mas negaram-se

a combatê-lo através do monopolismo, que lhes parecia

ainda mais perigoso, pois significava o enrijecimento,

o fim de tôda evolução viva. Assim, propunham, pelo

contrário, que

a

concorrência entre as cooperativas fôs

se disciplinada e regulamentada pela federação das

próprias cooperativas. Aqui, temos uma federação

livre em vez da fusão proposta

por

Blanc. Contudo,

é preciso reconhecer que a idéia federalista, enl Blanc,

torna a surgir, rompendo

a

envoltura centralista, so

bretudo depois de haver malogrado o plano de ajuda

do Estado. Ele elabora o plano de Buchez de fundo·

de reserva, destinando-o a "realizar o princípio

de

ajuda mútua e solidariedade entre as diversas oficinas

sociais". Mas, ao passar do plano da íniciativa esta

tal para o das cooperativas livres, êle não vê outro

caminho para atingir essa meta senão o da f e d e ~ a ç ã o

começando côm as cooperativas já existentes. Estas

deverão entrar em acôrdo e nomear

um

comitê central

que organize em todo o país a mais importante de

tôdas as subscrições:

a

subscrição para abolir o prole

tariado". Emborà essas palavras estejam a meio ca

minho entre o sublime e o ridículo,

a

incitação

ao

pro

letariado, para que se suprima a si mesmo mediante

a cooperação, não

é

destituída de seriedade prática e

não deixou de ter a sua importância

para

a época

subseqüente. E, em fins de · 1849, vemos que Blanc

aprova a Un on des associations f aternelles a fede  -

ração formada

por

mais de 100 cooperativas com o

p r ~ p ó s i t o

de realizar a mutualité du travail de seu ad

v e r ~ á r i o Proudhon. :Ble justifica essa aprovação dizen

do que essa Union também se propunha a uma "cen

tralização dos assuntos de foterêsse comum". Geral

mente, encontramos em Blanc várias idéias que per

tencem

à

tradição viva e ao contexto do socialismo

"utópico". Ble pressente que, no .futuro, a cooperativa

de produção irá transformar-se em cooperativa inte

gral, o que King prognosticou também para a coopera

tiva de consumo.

Por

isso, êle agora quer criar co

lônias comunitárias, exatamente como a Union des

associations fraternelles

por êle elogiada., que queria,

9

a título

de

federação fundar "colônias agrícolas e in

dustriais" em grande escala.

Para

tanto, Blanc parte cla

necessidade

t ~ n i c o - e c o n ô m ~ c a da

produção_ em ?1as

sa: é preciso implantar o sistema de produçao a g r i c ~ l a

em massa, combinando-a com a associação e a proprie

dade"· e êle quer transferir as indústrias, na médida

do p o ~ s í v e l ,

para

o campo e "e?1açar

?

_trabalh? in

dustrial com o agrícola". Tambem aqui e antecipada

a idéia

de

Kropotkin de

uma

?ivisão de

n:aba_lho.

no

tempo e da combinação da agricultura, da mdustna e

do artesanato

na

moderna comunidade rural.

A despeito da opressão que as federações de ;-oo

p e r a t i v a s ~ .

i m e d i a t ~ m e n t e

sofreram

por

parte das . orças

reacionárias surgiu na França, nos anos subsequentes,

grande n ú ~ e r o de novas

c ~ o ~ e r a t i v a s

de produção.

Até os médicos e os farmaceuticos se .associaran; em

cooperativas (embora neste caso? naturalmente . nao se

trate

de uma

autêntica cooperativa

de

. produçao,

uma

vez que aqui não se pode f ~ l a r de um tra?aJho em

comum).

~ f ô r ç

do entusiasmo_ o o p e r a t i v 1 s t ~

breviveu à revolução. Nem sequer, as persegmçoes

e dissoluçõeS- de muitas cooperativas depois do golpe

de

Estado conseguiram sufocar o

m o ~ i m e n t o .

.

O

ver

dadeiro perigo que as

a ~ e a ~ a v a

.provmha,.

aq.m

:orno

na Inglaterra, de seu propno seio: a c a p l t ~ b ~ a ç a o a

paulatina transformação em s o c i e ? , a d e ~ ~ a p 1 t a h s ~ a s _

s ~ m i c a p i t a l i s t a s .

Em

1850, os s o c ~ a h s t a s c n s t a ~ s

inglêses iniciavam

um

e s f ô r ~ o entusiasta p ~ r a cr:ar

uma grande 'rêde

de

cooperativas

de

produçao, a fim

de que, "'pouco a pouco, tôda a produção de ben.s de

consumo se organizasse em forma de- cooperativas,

fixando-se os preços por comum acôrdo, através .

eliminação da concorrência mútua.". Quarenta an?s

depois, Beatrice Webb comprovou que, c o ~ exceçao

de

oito cooperativas que permaneceram mais

ou

me

nos fiéis

ao

ideal de

uma

"irmandade

de

trabal?ado

res" _ se bem que a maioria, ainda assim, contivesse

um

~ u t r o

ponto duvidoso -   t ô d ~ s a p r e s e n . t a v a ~

~ m a

assombrosa diversidade de orgamzaçoes

a n s t o c r a t 1 c a ~

plutocráticas e monárquicas''. Cincoenta anos depolS

de

Louis Blanc, encontramos

na

França uma

c o o ~ e r a

tíva de produção típica nesse sentido: a dos ,fabrican

tes

de lentes ·que, ao lado de um pequeno numero de

9

Page 47: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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  ssociés e de outra aproximadamente igual de adhérents

empregava um número dez vêzes maior de assalariados.

Não obstante em tôdas

as

partes encontramos belos

exetnplos

de

luta interior

em

pr?I . do socialismo:. Elas

assumem por vêzes aspectos trag1cos, mas contem, ao

mesmo t ~ m p o , algo' de profético. A cooper.ativa de

produção foi com razão, considerada como filho pre

dileto e motivo de aflições de todos aquêles que es

peram do movimento coorcrativista algo de essencial

para a redenção

da

ilumanidade . No entanto, se ,n?s

ativermos aos fatos, poderemos compreender, facil

mente, por que um paladino das a ~ s o c i ~ ç ~ e s de consu

mo

qualificou de totalmente antt-socialtstas em sua

essência

as

cooperativas de consumo que trabalham

para o mercado livre, uma vez que os produtores, es

tabelecidos por e para

si

mesmos, sempre. e em.

t ô ? ~ s

as circunstâncias, terão interêsses separatistas, md1v1-

duais ou grupais . Mas, a prescindir do exagêro, o

que cada formulação pretende é justamente qu.e as

c o ~

operativas de produção não se

estal;>eleçam

para

mesmas . Para impedi-lo, tendem, conjuntamente, dois

grandes princípios: a combinação de produção e con

sumo na cooperativa integral e o federalismo.

O desenvolvimento das produções de consumo

obedece a uma progressão numérica. Hoje em dia,

grande parte da humanidade civilizada de n e i ~ mui

to

característica, fora dos Estados Unidos) esta orga

nizada em cooperativas, no que se refere ao co_nsume.

Por outro lado, o desenvolvimento das cooperativas

de produção (refiro-me .apenas. à c o ~ p e r a t i v ~ s de pro

dução industrial

em

sentido mais restrito, e nao. a todas

aquelas associações parciais, s o b r ~ ~ u d o a ~ r í c o l ~ s . que

se propõem, exclusivamente,. a f a c ~ l t a r e

mte?s1f1car

a

produção

individual) segue uma lmha em ziguezague

que, em conjunto, dificilmente apresenta uma tendên

cia ascendente. Surgem, con:stantemente, novas coo

perativas e, como

as

de maior vitalidade quase sempre .

se passam para , o campo do c a p i ~ a l i s ~ o não existe

continuidade. a com a cooperattva mtegral ocorre

um fato diferente· seu desenvolvimento, se é que se

pode falar

em

tal,' apresenta o aspecto de uma multi

dão de pequenos círculos que carecem de uma verda

deira vinculação. A fundação de associações de con

sumo e cooperativas de produção teve sua origem em

92

amplos movimentos que se propagaram de um lugar

para o outro. A fundação de colônias, no sentido da

cooperativa integral, teve, na maioria das vêzes, um

quê de esporádico, de improvisado, sem transcendên

cia ulterior. Ao contrário daquelas, faltou-lhes o que

Franz Oppenheimer denominou de fôrças de ação a

distância . Não porque algumas delas não tenham da

<lo

o que falar, mas

é·

que seu puder de atração era in

dividual e não deram vida a novas células comunitá

rias. Na História das colônias cooperativas ainda não

se encontroq uma tendência federativa, nem na Europa

(com exceção da Rússia soviética que carece, porém,

da base essencial de uma autêntica autonomia e da

livre decisão) nem nos Estados Unidos. As associa

ções de consumo que apresentavam um· desenvolvimen

to firme e constante federaram-se, o mesmo ocorrendo,

via de regra, com as cooperativas de produção agrícola:

as cooperativas de produção industrial fizeram-no de

modo descontínuo, com altos e baixos, e

as

colônias

comunitáiias jamais se federaram. Seu destino não obe

dece

à

sua vontade. Originalmente, não queriam iso

lar-se, mas isolaram-se. Queriam converter-se em

exemplos a serem imitados, mas não passaram de ex

periências interessantes. Queriam constituir..:se em co

meços dinâmicos e explosivos

da

transformação social,

mas cada uma delas fêz, de si tnesma, um fim. A

causa dessa diferença entre

as

cooperativas de consumo

e produção, por um lado, e

as

integrais, por outro, pa

rece-me residir numa diferença essencial do ponto de

partida. As cooperativas de consumo e de produção sur

giram de determinadas situações que eram, mais ou me

nos, as iµesmas para tôda-uma série de localidades e

fá .

bricas, de sorte que, desde o princípio, já existia o

germe para uma influência recíproca entre

as

diversas

experiências que se fizeram para dominar a situação

e, com isso, o germe para sua subseqüente federação.

Ademais, os planos que deram origem à fundação

d ~ s -

sas cooperativas não provinham de reflexões gerais,

mas de problemas com que os planejadores

se

defron

. ararri em face das próprias situações. Podemos obser

var êsse processo, nitidamente, em King e

em

Buchez

que já eram federalistas por princípio. Buchez chegou

a pensar, inclusive, numa agrupação federativa para

ós

sindicatos

que.

propôs. Tanto num como noutro caso,

93

Page 48: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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os planos visam suprimir

um d e ~ e r m i n a d o e s t a ~ o

de

miséria e têm caráter local por aspirarem à soluçao dos

problemas, justamente

onde se m a n ~ f ~ s t a m .

: E s ~ e s

planos podem ser classificados como top1cos, ou s.eJa,

locais, já que, por

sua

essêncill, refere.m-se a d.etermma

das localidades, àquelas onde se mamfesta1? proble

mas. similitude

de

problemas, em l ~ c a i s

d ~ t e : e n t ~ s

propicia a possibilidade de que se

n : ~ h z e a

fusao

fe

deralista até se atingirem estruturas gigantescas, como

0

são ;lgumas federações atuais de associações

de

consumo.

Coisa fundamentalmente diferente

s u c e d ~ ,

em

g e ~

ral, com as cooperativas i n t e ~ r a ~ ~

tiJ?O

colôma. Aqui

vemos, repetidamente, como a ldeia

d t t ~

os seus ter

.

mos, .

independentemente .ou · da .

~ t u a ç a o m o l l e n t a ~ e ~ ,

mas sem qualquer relaçao essencial com locais def1m-

dos ou com suas exigências. Seu esbôço é desenhado no

ar para, a seguir, ser projetado s_ôbre ~ t e r r a . Sua

figuração _ quer surja de cons1deraçoes especulatrv:as,

adotando. uma

forma

esquemática, como. em Fourier, .

quer se cristalize

. d ~ e x p e r i ~ D : c i a s d e t e r m m ~ d a s ,

· adap

tando-se aos requ1s1tos empmcos,. como .em ?wen

não procura solucionar determmada s1tuaçao e, sim,

criar situações novas, independentemente

?e

l u g ~ r e ~

e

de p r o b l e m ~ s locais.

O

m e l h ~ r exemplo e

c o n s t i ~ m d o

pelas colonizações no estrangetr? .

" e ~ e c ~ s o , nao

se

trala

de

uma emigração

em

marcha, orgamzada e re

gulamentada sociallsticamente. A q ~ i ao i m p ~ l ; > 0 de

emigrar; acrescenta-se outro:

?

deseJo,.. de p a r t t . c 1 p ~ r

da

realização

de uma

ordem social. esse desejo e fre

qüentemente reprimido pelo dogmatismo . u m ~ orga

nização que se. julga a única acertada, a

u ~ 1 ~ a 1.usta

e

a única verdadeira, e cujas rigorosas e x 1 g e n c 1 ~ s se

opõem, às vêzes, como única fôrça coesiva à

. X : e ~ r g e n t e

relação entre seus membros . ·

(De

fato,

d1f1c1Jmente

basta a comunidade ideológica

para

fundamentar'

uma

comunidade de vida.

Para

isso, é necessário que haja

uma vinculação mais profuhda, procedente do ser do

homem.) A colôn.ia que permanece fiel à dogmática .

corre o risco de entorpecer-se e a que cresce rebelando

-se ·contra ela, o de dissolver-se, porque ambas

c a ~ e -

cem

da

fôrça modificadora e correrora que advém

da

compreensão das condições,

do

condicionamento. ~ i :

9

do impera o dogma, obtém-se o isolamento

da

colônia;

0

exclusivismo da única forma acertada impede a

união com outras colônias (embora sejam de ideolo

< ias

afins). Em

cada

uma delas, seus crentes estão

plenamente convictos de que

sua

realização inigualá

vel é única e incondicional. Contudo, mesmo quando

0

dogmatismo é menos rígido, a colônia - fechada

espiritual e económicamente - também sucumbe, so

bretudo em pais estrangeiro,

ao

destino

do

isolamento,

da ausência

de

vinculação e

da

ineficácia. Tudo isso,

entretanto, não seria

tão

determinante, se uma grande

fôrça educativa, ajudada pela vida e pelo destino, as

segurasse, à vontade e

ao

sentimento comunitários, a

vitória sôbre o egoísmo inerente, ou melhor, se êste

pudesse elevar-se por meio daquela a uma forma supe

rior. Geralmente, porém, o egoísmo coletivo substi

tui, até certo ponto e conscienciosamente, o egoísmo

individual. Quando êste ameaça, em determinado mo-

.menta, desfazer a coesão interna

da

cooperativa, aquê

le, associado não

raro ao

dogmatismo, impede que se

forme uma autêntica relação comunitária entre a coo

perativa e outras cooperativas, entre a cooperativa e o

mundo.

A maioria das experiências

de

colonização que

conhecemos fracassou ou se extinguiu, e não somente

as dos comunistas, como julgam alguns. As emprêsas

áe -séitas religiosas, naturalmente, constituem exceção,

pois sua vitalidade só deve ser entendida dentro da

fôrça de fé

do

grupo e somente como

m a n i f e s t a ç ã ~

parcial dessa fôrça. É cara.cterístico que aqui, e so

mente aqui, surja a

fonna

federativa, como ocorre com

a seita russa dos Duchoborsis

do

Canadá,

ou

dos

u -

terite B r e t h r ~ n .

I<ropotkin é muito injusto, portanto,

quando atribui o malôgro das experiências de coloni

zacão 'comunista ao fato de que se basearam num im-

. pnÍso de caráter religioso, ao invés de considerar, sim

plesmente, a comuna como

um

modo

de

consumo e

produção

ordem econômica . Foi, justamente, nos

casos em que a colônia surgiu como manifestação de

uma autêntica exaltação religiosa que considerava sua

existência como o início

do

reino

de

Deus, e não sim

plesmente como

um

pobre substituto

da

religião que

ela, ger.almente, demonstrou sua fôrça p e r s e ~ e r a n t e .

9

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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1 i

1

Entre as ca.usas do malôgro

da

maior parte das

experíências de colonização mencionadas por Kro

potkin

á duas especialmente dignas de nota que, no

fundo

não passam de uma só: seu isolamento da socie

dade e o isolamento entre as próprias colônias. Kropo

tkin engana-se quando atribui uma dessas causas

à

pe

quenez da comuna, argumentando que, n u ~ a comuna

pc:quc:na seus membros, alguns anos depois, acabam

aborrecendo-se de uma convivência tão íntima; entre as

colônias que se conservaram durante muito

t ~ m p o

ve

mos colônias pequenas ao lado de outras maiores. No

entanto êle tem razão quando exige a federação para

compen'sar a pequenez dos grupos. O fato de passibi

litar a passagem dos membros de uma coloma para

outra - fator decisivo para Kropotkin - não passa,

na realidade de um dos vários. efeitos favoráveis da

.

,

federação. O que é fundamentalmente importante a

federação em si,

é

que

os

grupos se completem e

aJU-

dem mutuamente, é a corrente de vida comunitária en

tre êles que se fortalece com o intercâmbio. Não menos

importante, contudo, é que as

Acolônias

tenham :Vincu-

lações, se bem que de outro genero, com a sociedade

em g e r a ~ não só porque necessitam de um mercado

para seu excedente de produção, não só porque a ju

ventude, como diz Kropotkin, não tolera o isolamento,

mas porque as colônias, quando não possuem aquela

fé messiânica especial, precisam influir no meio am

biente para poder

vive.r.

Quem traz uma m e n ~ a g e m

precisa expressá-la, não necessàriamente por meio da

palavra, mas com sua existência. ·

A

uma pergunta formulada por círculos c o l o ~ i ~

tas, Kropotkin respondeu com uma carta aberta dm

gida a todos os grupos interessados em colonização.

Nessa carta, êle insistia qQe uma entidade copiunitá

ria que quisesse ser digna dêsse nome deveria basear

-se no princípio da associação de famílias independen

tes entre si que combinassem suas fôrças. Com isso,

êle

queria dizer que o grupo individual á devia nas

cer, federativamente, da fusão das mais minúsculas

unidades comunitárias. Para que o movimento federa

tivo se desenvolva, além do grupo, é necessário que

haja espaço. Na obra A Ciência Moderna e a

n r-

quia,

diz Kropotkin que a experiência deveria ser

feita num território e acrescenta que êsse território

96

deveria abranger cidade e campo. Novamente, é pre

ciso classificar os motivos econômicos dentro do gran

de motivo social. Uma autêntica vida de comunidade

significa multiplicidade de funções e ação recíproca

tre elas, não redução, nem estrangulamento. Todavia,

não basta que uma cidade se converta em comuna ,

como parece supor Kropotkin. Se ela se defrontasse,

desarticula.da e socialmente amorfa, com a complexa

organização

da

federação de aldeias, acabaria, forçosa

mente tendo um efeito negativo.

e

preciso que ela se

articuie a

si

meSll1a

que se transforme numa federação

de cooperativas, para poder manter relações verdadei

ramente frutíferas com o campo. No planejamento eco

nômico de nossa época, decorrente, quase sempre, de

considerações de caráter técnico-organizatório, encon- .

tram-se algumas sugestões notáveis nesse sentido. ·

Do

curso problemático das m u i ~ a ~ experiências de .coloni

zação efetuadas até agora, limitar-nos-emos a citar, de

sua ampla e instrutiva História, um exemplo caracte

rístico: a primeira fundação dêsse gênero feita por

Owen e a única que foi obra pessoal sua: ~ e w Har

mony'', em Indiana.

:e.te

c9mprou a propriedade da

seita dos separatis tas ' imigrada da Alemanha, que, em

vinte anos de trabalho, lhe haviam conferido alguma

prosperidade. A aceitação de membros efetuou-se sem

distinção. O .grande economista alemão Friedrich List

anotou então em seu Diário Americano: Os elemen-

' ' . .

tos não parecef(l ser dos m e l h o r e ~ . Em primeiro

lugar, a organização da nova comumda.de base?u-se na

completa igualdade dos membros;

s e n ~ o ,

por

e ~ s e

m o ~

tivo denominada também de comumdade

da

igualda-

. '

de . Ao fim de dois anos, depois que alguns grupos se

separaram, foi ·preciso tentar t r a n s f o ~ m a r a comunidade

numa federação de pequenas sociedades.

Contudo,

também êsse plano de transformação e outros

a n ~ o g o s

fracassaram. Quando Owen regressôu de uma viagem '

à Inglaterra e tornou a ver a colônia, depois de três

anos de existência, foi obrigado a confessar que era

prematura a exp,eriência ·de unir; para que convivessem

como uma comunidade familiar,,

um

grande número de

desconhecidos que não haviam sido previamente educa

dos para essa finalidade e que os hábitos sistema

individual haviam demonstrado ser excessivamente

9

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obra comum, como na época heróica do movimento

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cooperativista ou, então, em momentos de crise em que

indivíduos que, ordinàriamente, permanecem na obs

curidade da vida privada, colocam--se, abnegadamente,

no plano da vida pública, lutando pela necessidade de

muitos. Mas, desde que as compras em. comum se

converteram em negócio, cuja responsabilidade é trans

ferida a empregados , deixaram

de

unir essencial

mente aos homens. A união passa a ser tão i m p r e c i s ~

e impessoal que não se pode mais falar em células da

comunidade e de sua fusão numa estrutura orgânica

complexa,

nem

sequer quando, ao armazém coopera

tivo; se associa também a organização cooperativa de

um setor parcial qualquer da produção. Essa idéia foi

expressa, com particular clareza; no livro The National

{Jeing do poeta irlandês George William Russell (que

escrevià

com

o pseudônimo A.E. ), obra que, escrita

com autêntico patriotismo, versa sôbre a transformação

social da Irlanda: Não basta organizar os camponeses

de

um distrito, visando uma úníca finalidade - quer

se trate·de uma sociedade .de crédito, de uma coopera

tiva leiteira, de uma fábrica de presunto ou de um ar :

mazém cooperativo (aqui devemos a c r e s c ~ n t a r ou

uma instituição que reúna tôdas essas atividades).

Tôdas essas coisas podem e devem ser elementos ini

ciais. Mas,

'Se

elas

p.ão

desenvolverem e absorverem

em sua organização todos os negócios do povoado, não

terá sido criado um

autêntico organismo. social. Quando

alguns indivíduos se unem como consumidores para

faier compras em comum, êles se põem em contato

apenas riesse ponto. Não existe uma identificação geral

de interêsses. . .

À

união especializada desenvolve,

exclusivamente, a capacidade de rendimento econômi

co. A evolução da humanidade, para além de seu nível ·

atual, depende, totalmente, de sua aptidão para criar e

unir autênticos organismos sociais.

a

exatamente isso

o que entendo por ·reestruturação orgânica da so

ciedade.

A cooperativa de produção é, ·em si, muito mais

apropriada do que a associação de consumo, para to

mar parte em

semelhante reestruturação, isto é, para

servir como célula de uma nova estrutura. A produção

em comum

exige

muito mais do homem do que a aqui-

100

sição em comum para seu consumo individual e requer

muito mais de suas energias vitais e de seu tempo. O

homem, como produtor, tem, naturalmente, muito mais

disposição para unir-se ativamente aos seus semelhan

tes do que o homem como consumidor e está mais ha

bilitado a formar, com êles, unidades sociais vivas.

Isso

é

válido para o empresário,

desde que,

através

da união, êle se tome mais forte para o desenvolvi

mento e a realização de sua atividade produtora,

do

que era ou poderia ser isoladamente; mas é particular

mente válido para o próprio trabalhador,

pois,

graças

à união, é que êle se toma realmente forte para êsse

mister. Depende, apenas, que êle tenha consciência

vital dessa perspectiva e acredite em suas possibilidades

práticas. Como já vimos, entretanto,

êle

sucumbe fà

cilmente nessa estradá, por obra

de

uma espécie de

fatalidade, à tentação de fazer

com

que os outros tra

balhem para êle. Se a associação de consumo, no plano

técnico-organizativo, sucumbe, exteriormente, à forma

capitalista, o mesmo se verifica internamente com a

cooperativa de produção, no nível estrutural e psico

lógico. A cooperativa de produção,· entretanto, é mais

acessível a uma federação autêntica e não apenas técni

ca. Contudo, mesmo nos círculos que mais entusiàsti

camente defendem a reforma social, por meio das coo

perativas de produção, subestima-se a importância de

cisiva das pequenas unidades orgânicas e sua expansão

orgânica para uma federação. Pudemos constatar êsse

fato há vinte anos, no socialismo das guildas inglêsas.

· Por um lado, concebeu-se a audaz inovação de conver

ter o Estado em sistema dual, composto pela ·organi

zação complexa e organizada dos produtores e pela

delegação unida que representaria a totalidade dos

consumidores. Por outro

lado,

no entanto, logo se evi

denciou que . os elementos das guildas n a c i o n a i s ~ · -

que compreendiam todo um ramo da indústria - par

tidários da

regiment tion into single

f

ellowship o all

t ~ 1 o s e

who are employed in any given industry

e que

amda nutriam idéias totalmente saint-simonistas, eram

rnuito mais fortes que os partidários das guildas lo·

cais'', isto é, pequenas unidades orgânicas e sua fede

ração. Para que o princípio

da

reestruturação orgânica

?e torne decisivo, é necessário o influxo da cooperativa

ll1tegral, na qual se unem produção e consumo e que,

101

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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na produção, a indústria se combine com a agricultura.

Por

muito tempo que possa decorrer, antes que ela se

converta, decididamente,

na

célu

la

da nova sociedade.

é importante que a cooperativa Integral edifique, ime

diatamente,

um

vastíssimo complexo de centros magné·

ticos

de

ação, enlaçados entre si.

Uma

autêntica refor·

ma interna da sociedade, que tenha perspectivas de ser

d_uradoura, .somente

poderá

ser conseguida através da

união de produtores e consumidores, ambos

co

nstituí·

dos

em

unidades cooperativas autônomas e distintas -

união

cuja

vitalidade e fôrça socialista

poderão ser

asseguradas através de

uma

multiplicidade de coopera

tivas integrais, atuando conjuntamente e que, graças

füa

função

nt

ética, exerçam

uma

influência concilia

dora

e unificadora.

Para

isso, entretanto, é necessário Que,

ao

invés

das

experiências isoladas e condenadas por sua nàtu

reza ao isolamento e

que

vêm lutando mais de

um

século

por

sua existência, sejam criados vastos conjun

tos de colonização, territorialmente projetados e fede

rativamente organizados, destituídos de rigidez dogmá

tica, que permitam a coexistência

de

unidades socia,is

diversas, mas sempre 'visando o conjunto .e a nova tota

lidade orgânica.

1 2

VIII.

M RX

E A

RENOV ÇÃO

D

SOCIED DE

Vimos

que

a finalidade do chamado socialismo

utópico é substituir, tanto quanto possível, o Estado

pe

la

sociedade e, efetivamente,

por uma

sociedade

autêntica que não seja

um Estado

dissimulado. Para

o advento

de

uma

sociedade autêntiêa

são

necessárias

as seguintes condições: ela não pode constituir-se de

um agregado de indivíduos que

não

estejam estreita

mente vinculados

entre

si, pois

sua

coesão, nesse caso,

só poderia ser mantida à custa de

um

princípio político

de domínio e coação; deve compor-se de pequenas so

ciedades comunitárias e das federações dessas mesmas

sociedade ·e tanto as relações entre os membros dessas

1 3

l i

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sociedades, como as das sociedades e federações entre

si, devem ser determinadas,

na

medida do possível, pelo

princípio societário e pelo de vinculação íntima, cola

boração e auxílio mútuo. Dito com outras palavras:

somente uma sociedade profundamente estruturada

poderá substituir ao Estado.

~ s s e

objetivo,

por

sua

própria natureza, não pode ser alcançado, exclusiva

mente, através de uma mudança

na

ordem do govêmo/

isto é, daqueles que retêm o poder em suas mãos e, ·

tampouco, unicamente através de uma modificação no

sistema da propriedade, a saber, dos detentores dos

meios de produção; nem por qualquer instituição

ou

lei que regule, exteriormente, as formas sociais de vida

e, tampouco, pela ação conjunta de todos êsses meios.

Todos· êles são necessários- em determinadas fases da

transformação, ficando naturalmente implícito que não

deve resultar, daí, um sistema coercitivo que regula uni

tàriamente o todo, pois êsse sistema impediria o flo

rescimento do elemento fundamental, que é a esponta

neidade e a configuração interna, assim ·como da diver

sidade indispensável para a formação de uma sociedade

autêntica. O fator realmente necessário e imprescin

dível, a ponto de todos os outros servirem apenas para

complementá-lo e concretizá-lo, é justamente a forma

ção

da

própria sociedade· autêntica, baseada,

em

parte,

em

sociedades já existentes cuja forma ·e sentido é pre

ciso renovar e, em parte, em outras que deverão ser

criadas. Qanto mais uma tal sociedad(f existir ou se

encontrar latente no momento em que se iniciarem as

transformações externas, tanto mais ràpidamente será

possível ·tomar realidade o socialismo

no

nôvo sistema,

evitando-se o perigo de que o princípio do poder, em

sua forma econômica, política, ou

em

ambas, torne a

introduzir-se e que, sob a aparência de novas leis e

instituições, as relações humanas, ou seja, a própria

vida, fiquem tão deslocadas e desfiguradas como sob o

regime capitalista. Essas modificações do sistema polí

tico e econômico significam,

para

a realização do socia

lismo,

nada

mais e nada menos, a eliminação indispen

sável dos obstáculos. Sem a modificação do sistema

político e econômico, o socialismo permanece apenas

em idéia, impulso e experiência isolada; mas, sem a

reestrnturação efetiva da sociedadtf, a modificação do

104

i s t c existente será apenas uma fachada sem casa.

m

nenhuma circunstância, porém, deve-se considerar

a modificação do sistema em primeiro lugar, colocan

do-se, a seguir, a reestruturação da sociedade. Uma

sociedade que se transforma pode, não há dúvida, criar

os órgãos de que necessita

para

impor-se, d e ~ e n d e r s e

e eliminar os obstáculos; mas a modificação e x c l u s ~ v a

da relaç

ão

do poder não àia uma nova sociedade capaz

de superar o princípio do poder em si. Para o socia

lismo utópico , as células de reestruturação mais im

põi tantes são as cooperativas, em suas diversas formas.

Quanto mais êle progride na elucidação de sua idéia,

tanto mais claramente surge a função diretriz da coo

perativa integral, abrangendo produção e consumo.

Para essa idéia, a cooperativa não constitui um fim em

si, nem sequer quando nela· se alcança uma ampla rea

lização do socialismo. Muito mais importante

é

formar

a substância que, ãtravés da nova ordenação, será li

.berada, investida de seu direitb e vinculada à união das

diversificações. O socialismo utópico pode ser con

siderado

tópico,

justamente nesse sentido: êle não é

ãtópico'', pois deverá realizar-se dado momento,

em determinado lugar e em determinadas coµdições e

pr

ecisamente aqui e agora , dentro das possibilidades

viáveis aqui e agora. A realização local, porém, n u ~ c a

significa,

para

êle, mais do que um pont? de partida

- como se foi evidenciando, cada vez mais, no desen

volvimento da idéia - um comêço , algo que deve

existir p·ara que a realização consolide,

para

que se

conquiste a liberdade e a valtdade, para que a nova

sociedade parta dêsse comêço , de tôdas as células e

daquelas que surgirem em seu seio.

A partir dêsse ponto, formularemos a Marx e ao

marxismo as perguntas decisivas sôbre meta e cammho

Desde sua primeira formulação socialisfa, até a

plena maturidade .de seu

p e n s a ~ e n t o ~ r ~

c o r ~ c e b e

a meta de uma maneira Que muito se avmnha a do

socialismo utópico . á en agôs

to

de 1844,

êl

e es

crevia (no artigo A 1wtações Críticas : A revolução

em geral - a derrubada do poder e x i s t e ~ t e a disso

lução do regime anterior - é um

~ t o p o h t 1 ~ 0 .

·

Co tu-

do, sem revolução não se pode por o soc1ahsmo em

prática. :

Ble

necessita dêsse ato político, enquanto me-

1 5

I

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c ~ s ~ i t de d ~ s ~ r u i ç ã o e dissolução. Mas, lá onde prin

c 1 ~ 1 a ~ u a .

a t i v 1 d a d ~

organizadora, onde aflora sua pfó

pna

fmahdade, sua alma, o socialismo desprende-se de

sua envoltura política . Isso deve ser confrontado com

o seguinte trecho que data de princípios do mesmo ano

Sôbre a Questão Judaica :

Somente quand0 o ho·

mem t i ~ e r descoberto e organizado suas iorces propres

como forças sociais (portanto, não é necessário · como

diz Rousseau, modificar a natureza do homem, tÍrar-lbe

s u a ~ forces. propres e conferir-lhe outras que tenham

c a r a t ~ r

so:iat)

e, _conseqüentemente, não mais separar

s a. força social em forma de fôrça política (i.e.,

n ~ o ? 1 ~ 1 s e s t a b e l , e ~ e r o Estado como organização do

prmc1p10 de domm10), somente então é que poderá ser

c o n s u ~ ~ d a a emancipação humana . Visto como para

Marx, Jª desde aquela época, o regime político é apenas

a expressão e o resultado do domínio

de

classes, é na·

tural que desapareça com a supressão destas. Justa..

mente por isso, o homem que não está mais separado

do homem e da comunidade deixa de ser o homem

político. Isso, porém, não é considerado meramente

~ o r n o

c o ~ s e q ü ê n c i a de, desenvolvimento posterior

a r e v o ~ u ç a o ; pelo contrario, como afirma Marx naque

les dois trechos, a revolução como tal,

i.

e.

a revolu

ção em sua função puramente negativa, dissolvente .

constitui o derradeiro ato político. Quando tem início à

atividade organizadora no terreno

preparado

pela re·

v o l ~ ç ~ o , isto

é, .

u ~ ~ d o co n:1eça a função positiva

do

s?cialtsn;o, º prme1p10 p0httco é suplantado pelo so·

cial; o amb1to em que se aplica essa função deixa de

ser o âmbito do poder político exercido pelo homem

sôbre o homem. A formulação dialética demonstra.

sem deixar margem a dúvidas, qual é a sucessão dos

fatos reais, do

ponto

de vista de -Marx.

Por

um lado.

q

ato político

da

revolução social acaba não só com e

Estado

de classes, mas com o Estado em geral, come

estrutura

de

poder,

ao

passo que, pelo contrário, a re

~ o l ~ ç ã o políticá, como tal, é j u s ~ a m e n t e a que o ins·

titm em elemento de interêsse comum, isto é em ver

d a d e i r ~ J?stad? · Por outro lado, a atividade organi·.

z a d o ~ a , isto e, .a reconstrução da sociedade, só começa

depois de se naver consumado a total subversão

do

poder existente. A atividade organizadora anterio r à

revolução constitui, para êle, apenas a organização da

/

1 6

tum. Aqui, vemos com tôda clàreza o ·que é que une

Marx ao socialismo utópico :. a vqqtade de substituir

o princípio político pelo social e o que

o

separa dêle:

seu ponto de vista, segundo o qual essa substituição só

pode efetuar-se através dos meios políticos, mediante

um puro suicídio, por assim dizer, do princípio político.

Essa

opinião tem profundas raízes na concepção

· dialética que Marx faz da História e que recebeu sua

formulação clássica quinze anos depois,

no

prólogo à

obra Sôbre a Crítica da Ecorwmia Política.

Não

obstante,

no

capítulo final da

Polêmica

con

tra Proudhon, parece formular-se uma restrição não

destituída

de

importância:

No

curso de seu desenvol

vimento, a classe operária substituirá a anterior socie

dade burguesa por uma associação que excluirá as clas

ses e o seu antagonismo e não mais haverá um poder

político propriamente dito, visto como o poder político

é justamente o resumo oficial

le

résu é

officiel) do

antagonismo

no

seio da sociedade b u r g u e ~ a . Não

existirá mais poder político pràpi'iamente dito

-

o

que significa: não haverá poder político no sentido de

expressão e resultado

do

domínio de classes, o que é

óbvio, uma vez que se tiver, realmente, chegado

à

su

pressão desta. Mas será o proletariado, realmente, a

última classe que, ao se apoderar

do

poder, acaba

com o domínio

de

classes em geral? Ou melhor: não

poderá, no seio de um proletariado vitorioso, formar-se

uma nova diferenciação social que,

embora

ainda não

se denomine exatamente classe, .conduza,

não

obstante,

a uma nova posição de domínio? A b s t r n o s ~ e m o s

dessa questão, pois ela, evidentemente, não se apresen

tou a Marx. Resta, porém, uma questão não menos

grave, qual seja, a essência e a extensão do poder polí

tico impropriamente dito'', isto é, do poder político

que não mais se apóia no domínio de classes . e que

prossegue existindo depois da supressão destas. Não

haveria a possibilidade

de gue

êsse poder,

ao

invés

de

tornar-se menos, se tomasse,

ao

contrário, mais sensí

vel do que aquêle gue se apóia no domínio de classes?

.E isso, sobretudo, enquanto persistir a luta pela de

f o s ~ da revolução , isto é, enquanto a humanidade tôda

não chegar a suprimir, de fato, o domínio de classes,

ou ainda, possivelmente, enquanto ela não tiver se iden-

1 7

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porém reconhece-se ser êle o verdadeiro caminho con anteriores, seu verdadeiro segrêdo , enfim, era o fato

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ducente a essa transformação,

com

a condição indispen

sável de que a classe operária' conquiste o poder polí

tico. Marx, pràticamente, aproxima-se aqui, de

ma-

neira notável, da idéia da reestruturação, sem aceitá-la

em princípio. A êsse respeito, devemos mencionar .que

êle percebeu, nitidamente, o perigo de as cooperativas

se

transformarem em simples sociedades anônimas bur

guesas, tendo recomendado, ademais, a solução apro

priada: que todos os operários que nelas trabalharem

obtenham a mesma participação.

Contudo, menos

de

três meses· antes

da

realização

do Congresso de Genebra, Marx escreve a Engels sôbre

as tendências dos franceses,. manifestadas num debate

do

Conselho Geral da Internacional: '.'Stirnerianism0

proudhonizado. Dissolver tudb em pequenos grupos ou

comunas, formando,

por

sua vez, uma 'associação',

mas não um Estado . Aqui manifesta-se, indubitàvel

mente a corrente centralista

da

idéia de Marx, se bem

que de maneir a apenas alusiva. O federalismo de

~ q d h a n ao qual êle combate,

não

pretende, absolu

tamente, dissolver tudo em comunas,

mas

conceder uma

autonomia relativamente ampla às comunas existentes

e agrupá-las em federações, cuja união se

cónstit1;1iria

numa

forma de comunidade mais orgânica

do

que o

Estado atual. Marx, pelo contrário, declara-se firme

partidário do Estado como tal.

Entretanto, cinco an0s mais tarde,

um

aconteci

mento revolucionário mais pujante que todos os ante

ríores e oriundo de

outra

fonte, a Comuna de Paris, iria

influir novamente sôbre a concepção

de

Marx.

Numa

de suas obras mais importantes, a Alocução do Conse-

lho

Geral d

Internacional

sôbre

a

Guerra

Civil na

França

(por

êle redigida), é esboçapo o quadro da

estrutura da atividade e das intenções

da

Comuna. O

fato de 'a fidelidade histórica dêsse quadro ter sido

posta em discussão não importa

ao

caso; o quadro cons

titui uma confissão sumamente imp ortante

para

o nosso

tema

que

estuda as mudanças

de

posição de

Marx

no

que tange à formação de uma nova sociedade.

O que aos olhos de

Marx

distinguia a Comuna,

sob todÓs os aspectos, de todos os e m p r e ~ n d i m e n t o s

• De Sllrner, pseudônimo de Kaspar Schmidt, filósofo anarquista.

N. da

T.)

11

de constituir-se essencialmente num govêrno da classe

operária''. Isso deve ser

i n t ~ r p r e t d o

ao pé da letra.

Marx alude a um govêrno não somente instituído pela

classe operária, mas também exercido por ela. A Co-

muna é o autogovêrno dos produtores . A represen

tação, eleita mediante sufrágio universal pelo povo de

Paris, e cujos membros, submetidos às instruções con

cretas de seus eleitores, poderiam ser destituídos a

qualquer momento, deveria ser não

uma cooperação

parlamentar, mas operária, executiva e legislativa si

multâneamente . A mesma organização era prevista

para

todos os municípios da França, inclusive

para

as

aldeias mais insignificantes. Os municípios rurais

deveriam administrar seus assuntos comuns

no

Parla

mento do distrito e as Assembléias distritais enviariam,

por

sua vez, deputados à Delegação nacional. Ao invés

do poder centralista do Estado, com seus órgãos oni

prese·ntes , legado da monarquia absoluta, deveria sur

gir uma e p ú b l i c amplamente descentralizada. f\s

poucas, mas importantes funções ainda atribuíveis a

um

govêrno central seriam confiadas a funcionários comu

nais, isto é, rigorosamente responsáveis . A descentra

lização, porém, não significaria uma at0mização e, sim,

uma reconstituição da unidade nacional sôbre uma base

orgânica, uma reativação das energias sociais do povo

e conseqüentemente, de todo o organismo da nação.

O

regime comunal teria devolvido

ao

corpo social tô

das as fôrças que, até então, eram consumidas pelo

monstro parasitário, o 'Estado', que

se

nutre da socie

dade e entorpece seu livre movimento. S6 com êste

ato já se teria

dado

andamento ao renascimento da

França . É evidente que Marx não se refere aqui a

determinadas fo.n:nas históricas de Estado, mas ao Es

tado em geral. Pelo fato de o govêrno local autô

nomo

ser

aceito como algo natural , o poder

do

tado torna -se supérfluo . Nenhum dos socialistas

' 'utópicos

se

expressa,

no

que tange a êsse ponto, em

têrmos mais r d i c ~ s

do

que Marx.

Contudo, a estrutura política da Comuna nada

mais é, para Marx,

do

que a ante-sala

do

fator autên

tico e decisivo, o prelúdio da grande transformação so

Cial a que seria conduzida

por

sua disposição e

por

seus plãnos, se não houvesse sido aniquilada. Marx vê

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dições existentes. Engels replica a essa pretensa

xi-

escreve a Marx de Genebra

para

perguntar-lhe, como

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gêocia: Acaso os senhores

viram.

uma . r e v o l u ç ~ ~ ?

A

revolução é indubitàvelmente, a coisa mrus

a u t o n ~ a -

.

ria que existe . Se isso significa que a luta revolucio

nária, como tal, deve ser. efetuada debaixo

de

ordens

e sob uma disciplina severa, estall':os acôrdo; _mas,

se significa que, na época revoluc1onána, que nao

pode saber

u a n ~ o

t e r m ~ 0 ; a r ~ a totalidade

da

populaçao

deverá ser dominada, 1hm1tadamente, por

uma

von

tade autdritária em todos os domínios do pensamento e

da

vida, é incompreensível como, dessa fase,, P?ssa haver

um caminho evolutivo conducente ao socialismo.

Quatro anos após a obra sôbre a coinmune

na

carta em oue formulou uma sev

era

crítica

ao

projeto

do

P r g g r m ~ a

do

Congresso de

Unificação

Gotha,

Marx reitera suas reservas contra as cooperativas com

a flagrante tendência política de

pôr em

d ú v i ~ a u.m dos

pontos fundamentais do programa dos parttda:1os

Lassalle, para privar assim de base a trapsaçao com

êles. verdade que Marx pronuncia, a q ~ i somente

contra a fundação de sociedades co.operativas

º

auxílio do Estado  e que admite ainda como finali

dade socialista a produção coopera.tivista; mas expres-·

sões como

cura

milagrosa específica , movimento

sectário e mesmo trabalhadores reacionários , com

referência ao programa de Buchez, são suficientemente

evidentes.

Não

obstante, o parágrafo que

tratava

das

associações

de

produç,

ão

com crédito do Estado foi

aprõvado pelo Congresso.

Nada, porém, rios pemiite ver tão a fundo a ati

tude ambivalente de Marx no que tange à transfor

mação interna da sociedade e seus requisitos prelimina

res, como' sua correspop.dência de 1881 com Vera

Zasulitsch.

A publicação d ~ s s documentos por

i ~ o v

é

de

suma importância, pois nêles travamos

c o n h ~ c 1 m

n t o

com os rascunhos feitos

por

Marx, alguns muito deta

lhados, para sua carta

de

r e s p o s t ~ . Os rascunhos

ocupam na publicação mais

de 90.0

linhas, com nume

rosas rasuras, çorreções e acréscimos; a carta, cêrca

de 40.

Vera Zasulitsch mulher dos grandes problemas

e dos gandes m o m e ~ t o s , como a d e n o ~ n a Stepniak;

114

autor d O .Capital - cujo primeiro volume goza de

gran

de

popularidade

na

Rússia,

e

que desempenha um

papel especialmente importante nas discussões sôbre a

reforma agrária e sôbre a comunidade

rural

russa -

quais, em sua opinião, são as perspectivas

da

comuni

dade rural pa

ra

o porvir. Trata-s e - dii ela. -

de

uma questão

de

vida e morte

para

o partido socia

lista russo,

da

· qual depende, também, o destino pessoal

dos socialistas revolucionários. Será a comunidade ru

ral - uma vez liberada do· excesso de contribuições e

impostos, bem como dos atos arbitrários

da

administra

ção - capaz de desenvolver-se em sentido socialista,

isto é de organizar progressivame

nt

e e sôbre uma base

coletivista a produção e a distribuição de bens? Neste

caso, o socialista revolucionário deverá dedicar-se com

tôdas as fôrças

à

libertação

da

comunidade rural e ao

seu desenvolvimento .

Ou

- como sustentam alguns

que se consideram marxistas e que invocam a Marx -

estará a comunidade rural, como forma arcaica , con

denada à ruína

pe

la história e o socialismo científico?

Nesse caso, os socialistas que procurariam, inutilmente,

calcular em quantas décadas o solo russ.o passaria das

mãos

do

camponês

para

a burguesia e em quantos

séculos o capitalismo na

ssia poderia chegar a

um

grau

de

desenvolvimento semelhante

ao

do Ocidente

europeu, teriam que

se limitar a difundir o

socialismo

entre os operários das cidades, cujo número aumentaria

constantemente, nutrindo-se com a massa dos campo

neses, os quais, em conseqüência da dissolução das

comunidades

de

aldeia, seriam lançados às ruas das

grandes cidades

em

busca de salários:'. Aqui, como se

pode observar, o problema consiste em

nada

menos .do

que saqer se é possível confiar numa atividade socialista

na Rússia durante as próximas gerações. 1'eve

a

Rússia

seguir o caminho do Ocidente europeu, onde o grande

capitalismo, em seu aspecto culminante, dissolve neces

sàriamente as formas arcaicas de comunidad.e, não

restando outro recurso senão o de ·preparar, para a

época ainda longínqua da industrialização, um núcleo

do proletariado urbano consciente

de

sua classe? Mas

se, pélo contrário, graças às suas peculiares instituições

agrárias, existe outro caminho para a Rússia,

um

cami

nho à margem

da

dialética histórica universal, um cami-

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dições existentes.

Por

outro lado, entretanto, êle assi

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nala, expressamente, uma pequena peculiaridade da

comunidade

rural russ

a que a torna impotente e inca

paz de qualquer iniciativa histórica : seu isolamento.

Ela

é um

microcosmo localizado  e

não

existe qual

quer laço entre a vida

de um

a comuna e a

de

tôdas as

demais. Dito com outras palavras: o de que Marx sente

falta 'aqui, mesmo sem empregar o. c o ~ c e i t é a ten

dência

à federação.

Essa peculiaridade - diz êle -

não é característica

de

tôdas as agropações désse tipo

mas, em tôdas as partes onde se encontra, permitiu

nas comunas um déspotismo mais ou menos central .

Somente em meio a uma elevação geral será possível

romper o isolamento

da

comunidade rural russa. Seu

estado atual

é

econômicamente insustentável

(por

ra

zões que Marx

não

especifica):

para

salvar as comu

nas russas é necessário

uma

revolução russa , mas esta

deverá sobrevir no momento oportuno e

co

ncentrar

tôdas as suas fôrças

para

assegurar o livre progresso

da comunidade

rur

al  . E ela, então, se desenvolverá

comme él é

ment

régénérateur de la société russe

et

comme élément de supériorité sur les pays asservis par

le régime capitali

ste

(como

elemento regenerador da

sociedade russa e como elemento

de

superioridade sô

bre os países dominados pelo regime capitalista).

Na breve carta que Marx, realmente, enviou a

Vera Z a s u l i ~ - : h

a indicação

de

duas passagens

O

Cap.ital

relacionadas à questão, é seguida de uma única

frase, onde diz: A análise empreendida

n'O Capital

não oferece, pois, razão alguma a favor ou contra a

vitalidade da comunidade

rura

l, mas o

es

tudo especial

que lhe dediquei e cujo material procurei nas fontes

originais convenceu-me de que essa comuna

é

o ponto

de apoio da regeneração social na Rússia. A fim de

que ela possa funcionar como tal, entretanto,

pre

ciso

antes de mais

nada

eliminar as influências nocivas que

nela penetram de todos os lados, assegurando-lhe a

seguir as condições normais

para

um desenvolvimento

espontâneo .

A base

da

argumentação

é

aqui extremamente re

duzida, de modo

qu

e a única conclusão apresentada só

pode ser compreendida em seu sentido literal.

Es

se

processo, porém, é aparentemente inevitável, pois os

118

prós e os contras apresentados nos rascunhos são cer

tamente irreconciliáveis. Teoricamente'', Marx a f i r ~

mava 'a posibilidade de

um

desenvolvimento pré-revo

lucionário da comuna no sentido desejado mas,

na

prá

tica,

f ~ z i a sua

salvação depender de que a revoluçãc

sobrev1esse

a

tempo. O fator político, neste ponto como

nos demais, é obviamente decisivo, havendo

o

receio

de

que o trabalho construtivo possa reduzir o vigor do

ímpeto revolucio

ná r

i

o

E, como a êsse fator político,

em Marx,

não co

rresponde ao discernimento

da

impor

t â n c i

da

reestruturação

da

sociedade, os prós e os con

tras tive

ram

de ser ao fim substituídos por

uma

frase

que

Vera

Zasulitsch, dificilmente, poderia considerar

como resposta à suá .pergunta decisiva. Como dizia

~ f ô n ~ i e s

em vida,

Marx

era um oráculo a quem, ,

freguentemente, se consultava em vão, deví

do

à ambi

güida?e de suas respostas. De qualquer modo, Vera

Zasuhtsch,

ao

perguntar se o socialista revolucionário

deveria dedicar tôdas as suas energias

à

libertação

da

comuna e a seu desenvolvimento, não conseguiu obter

da

carta de Marx - que para ela representava a auto

ridade máxima - uma resposta afirmativa. Não muito

depois

(no

prefácio à tradução russa, publicada em

1

884,

do Des

envo

lvimento do Socialismo da Utopia

à Ciência

de Engels),

Vera

Zasulitsch escrevia algumas

frases sôbre a comunidade rural, onde se notam as con

seqüências da consulta fei ta ao oráculo de Marx: a

paulatina dissolução da propriedade comunal- é inevi

tável, o futuro imediato da Rússia pertence

ao

capita

lismo, mas a revolução socialista do Ocidente acabará

também com êle no Oriente e, então, os remanescentes

das instituições da propriedade comunal poderão

p r e s ~

tar à Rússia um grande serviço . Engels, em 1822, em

seu prefácio à adição russa do Manifesto Comunista

igualmente traduzido por

Vera

Zasulitsch, abor

da

maneira

um

tanto diferente a questão - obviamente

formulada sob influência de Marx - de se a comuni

dade

rural

russa que, certamente, já era uma forma

bastante decomposta da pr imi tiva propriedade comunal

do

solo , poderia transformar-se diretamente numa

forma superior, comunista, de propriedade do solo, ou

se

deveria passar previamente pelo processo de disso

lu

ção conhecido pelo desenvolvimento histórico do

119

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solução da Assembléia do Partido, em Hannover, 1899,

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o

Partido adota uma atitude de neutralidade

em

face

da fundação dessas cooperativas de economia, considera

a função dessas cooperativas como o meio apro

priado de educar

â

classe operária para a gestão autô

noma de seus interêsses, mas não lhes atribui uma im

portância decisiva para a libertação dos grilhões da

t:scravidão assalariada .

E,

em Magdebur

g

1910, não

se reconhece nas cooperativas de consumo um meio

de

auxílio eficaz

para

luta de classes, como ainda se

declara que a atividade cooperativista, em geral, cons

titui

um

complemento eficaz da luta política e

sindic.a

l

para melhorar

a

situação da classe operária .

Essa linha em ziguezague por um setor geográfica

e objetivamente limitado, se bem que importante, deve

ser considerada como o símbolo da trágica falha evolu

tiva do movimento socialista . Com seu grande poder

de atração e organização, êle arregimentou o proleta

riado ao seu redor, atuando

com

grandes fôrças com

bativas no ataque e na defesa dos campos político e

econômico. Entretanto, o motivo essencial de sua con

vocação organizada e Juta - · ou seja, a formação da

nova estrutura social - não foi o verdadeiro objetivo

de

sua consciência, nem a autêntica finalidade de sua

atuação. O que Marx exaltava na Comuna de Par

is

não 1

foi

aceito, nem executado pelo movimento marxista.

ÊSte não

procurou

formas

precursoras já.

existentes

da

nova sociedade; não se empenhou seriamente em -

mentar, influir, dirigir, coordenar, federar

as

experiên

cias já realizadas ou que estavam em vias de formação

e nem efetuou o trabalho conseqüente de dar vida a

células e mais células e a federações e mais federações

de comunidade viva. A despeito da fôrça poderosa de

que dispunha, não se empenhou em dar forma à nova

existência social do homem, a quem se pretendia liber

tarpor meio

da

revolução.

24

IX. E A RENOVAÇÃO

DA

SOCIEDADE

Assim como o princípio de uma renovação interna

da sociedade, mediante a renovação de seu tecido celu

lar, não ·encontrou na doutrina de Marx um terreno

propício para a propagação da própria idéia, tampouco

o encontrou

na

grande tentativa contemporânea de pôr

em prática essa doutrina que foi um esfôrço admirável

e profundamente problemático

da

vontade

h ~ a n a

~ s t ponto negativo, tanto na experiência como na

doutrina, é justificado, como vimos, para a época pré

-revolucionária mediante a alegação de que, sob o do

mínimo do capitalismo, não poderia operar-se nenhuma

regeneração, mesmo que fragmentária. Todavia, para

25

a época posterior à revolução, tanto aquela doutrina

as únicas teses válidas e as únicas ordens decisivas;

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li

como esta experiência explicam. que é Ütópico querer

esboçar a forma que adotará a sociedade. A utopia

- escreve Engels (1872) - sµrge quando ousamos,

baseando-nos na situação existente, traçar. de antemão

a forma

em

que poderá resolver-se tal ou qual anfa

gonismo da sociedade existente. Em Marx - diz

Lênin - não encontramos o menor indício de utopismo

no sentido e que êle

invente a nova sociedade, ou de

q w ~

C,º":Ponha

e n s ~ a imaginação. Contudo, por

mais

mute1s

que

se1am

esses quadros da fantasia

é

de

i m p o ~ t â n ~ i a fundamental que

ª

idéia a que nos ~ p e g a -

m o ~

i ~ p n m o rumo que devera tomar a ação. A idéia

socialista, quer em Marx, quer em Lênin . salienta a

necessidade de uma estrutura da nova sodiedade com

· base em 'pequenas sociedades, estreitamente unidas por

um trabalho e uma vida comuns e em suas federações.

Nem Marx, nem Lênin, entretanto, inferem daí uma

norma clara e unitária para a ação.

Em

ambos, o

elemento centralista da política revolucionária suplanta

o elemento descentralizador da nova construção. Para

ambos, o êxito

da

revolução depende de uma ação for

temente centralizada e isso, como já vimos encerra um

conteúdo ao· qual não se pode

m e n o s p r e ~ r

que

falta é que se trace, continuamente, o limite entre as

necessidades ·dessa ação e as tarefas possíveis de for

maçãu descentralizadora

da

sociedade (que

não

redun-

, dem em prejuízo da ação), entre aquilo que exige a

realização da idéia e aquilo que a própria idéia exige,

entre as pretensões da vida política da revolução e os

direitos de uma vida socialista 'incipiente. Marx e

Lênin, via de regra, se decidem essencialmente a favor

da política, isto é, do· centralismo: Marx, na teoria e

em suas diretrizes para o movimento; Lênin, na prática

revolucionária e na reorganização do Estado e dà eco

nomia. É verdade que isso pode ser atribuído em gran

de parte à Situação, às dificuldades com que se defron

tou o movimento socialista e aos problemas especiais

que o regime soviético teve de superar. Acima de tudo,

porém, manifesta-se aí uma concepção e uma tendên

cia que e n . c o n t r ~ m o s em Marx e em Engels e que fo-

ram herdadas por Lênin e Stálin: concepção de um

centro absoluto da doutrina e da ~ Q . _ q u a l ,partem

26

--- -

--

·-

concepção de uma ditadura dêsse centro disfarçada

em

ditadura do proletariado . Ou, para dizê-lo

em

outros

têrmos: tendência de perpetuar a política centralista da

revolução em detrimento das necessidades descentra

listas do socialismo incipiente. Par a Lênin ·foi mais

fácil seguir essa tendência, graças justamente àquela

s i t u _ a ç ã ~ onde e evidenciava, nltidamente, que a revo

Juçao amda nao chegara ao seu fim. A contradição

existente entre a reivindicação de

M ~ r x ,

de que o prin

cípio político seja substituído pelo social, por um lado,

e a persistência de fato do domínio do princípio polí-

. tico, por outro, é dissimulada sob a afirmação de que

a

revolução ainda não chegou ao fim: -Aqui, evidente

mente, não se toma

em

consideração que o socialismo,

para

~ , a ~ x , a b a n d o : ° ~

sua envoltura política quando

tem zruczo sua atividade ..organizadora . Oculta-se,

aqui, uma problemática encoberta nada menos do' que

pela concepção materialista da história. Para esta a

política é simplesmente avaliação e expressão da l ~ t a

de classes e, com a supressão do Estado de classes o

princípio político fica destituído de base. A luta mortal

empreendida pela única doutrina e ação válidas contra

qu,alquer outra concepção· do socialismo não pode :::er

considerada apolítica; ela precisa, por exemplo, apre

sentar como ilegítimo qualquer outro socialismo, estig

matizando-o de resíduo de ideologias burguesas. En

quanto

exi 'itir

outra concepção do socialismo a revolu- ·

ção não terá terminado e o princípio FOlÍtico ainda

nãç:i poderá ser substituíd.o pelo princípio soci.al, embo

ra já

t ~ n h

sido iniciada a atividade organizadora. O

poder político, no sentido impróprio , pode tornar-se,

em sua pretensão centralista, mais amplo, mais radical,

mais totalitár io do que o poder político

no

sentido·

próprio jamais o foi. Isso, como já dissemos, não

equivale:. a afirmar que Lênin tenha sido simplesmente

centralista.

Em

certo' aspecto, êle o foi menos do que

Marx, encontrando-se mais próximo de Engels do que

êste. Mas seu pensamento e sua vontade eram domi

~ a d o s , ·como· em Marx. e Engels, pelo motivo da polí

tica revolucionária, ficando reprimido o motiv0 vital e

social que exigia uma vida comunal descentralizada·, de

modo que a preponderância dêste último foi apenas

27

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constante para a ação descentralizadora. A . e r a n Lên in e s } ~ i v - s e ao verdadeiro problema da ação

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r

t

espiritual recebida por Lênin trazia seu

se1p

dis

córdia: política socialista .de revoluçao sem v1tahdade

socialista.

Lênin como se sabe; procurou superar essa pro

blemática

da

doutrina de Engels, insistindo energiea

mente em que

a '

1

supressão,,

se

refere ª? Estado ~ u ~ -

ouês

e a

extinção aos resíduos

do

regime proletano

~ p ó s a revolução socialista . O Estado, como poder

especial de repressão , é

i n d i s p e n s á v e ~ ,

segundo ~ n g e , l s ,

para a

repressão

da b u r g u e s ~ a , c:u

seJa,

c ~ m o

ditadura

do

proletariado, como orgamzaçao cei:itrahzada de seu

poder.

E

indiscutível que, nisso,

Lêmn. o n c o r ~ a

a intenção de Marx (e de Engels) ; .com razao, . ele

invoca a frase em que Marx (1852) d1z que essa dita

dura constitui

uma

transição

para

uma sociedade sem

classes. Contudo,

para

o

Ma

rx

de

1871,

para

o entu.

siasta da Comuna a descentralização já deveria estar

.

.

sendo preparada em

~ : i o

ao centraltsmo n e . c ~ s s a n o

para

a ação revolucionana e, quando

E n g e ~ s ~ i ~ i a ql.le

a

nacionalização dos meios

de

prodt:tção s1gruflcava a

supressão do Estado.

c o m ~

E s t ~ d o , referia-s.e aos.

r ? - .

cessos deeisivos

CUJOS

efeitos imediatos

tenam m1c10

assim que se concluísse a ação revolucionária.

Lênin enaltece

em Marx

o fato de,

em

1852,

êste ainda

não

perguntar concretamente o que deverá

ser colocado em lugar

da

máquina cslatal que se p r ~ -

tende demolir,,. Isso lhe foi ensinado, como Lênm

expõe a seguir,

pe

la Comuna

de

Paris.

Mas

a Comuna

de

Paris foi a realização

da

idéia de homens que se

formularam essa pergunta de maneira muito concreta.

Lênin enaltece em

Marx

o fato dêste ater-se estrita

mente

à

base objetiva da experiência histórica .

Mas

a experiência histórica da Comuna se tornou possível,

justamente porque, no espírito dos r e ~ o l u c i o n á r i o s

a p a ~

xonados, vivia a imagem

de uma

sociedade descentrali

zada, desestatizada em alto grau, que êles

se

propuse

ram a converter em realidade. Os pais espirituais

da

Comuna possuíam justamente aquela linha conceptual

tendente

à

descentralização, que não se encontra

em

Marx e Engels, e os chefes da revolução de .1871 ten

taram, embora com meios insuficientes, começar a

rea-

.

lizá-la em plena revolução.

13

mediante uma fó1mula dialética: Enquanto

hounr

Estado, não haverá liberdade.

Quando

houver liber

d a d e ~

não haverá mais Estado .

A

dialética obscurece,

aqui, o problema essencial: examinar, dia a dia, qual,;o

máximo

de

liberdade que hoje pode e deve ser permi

tido, averiguar quanto

Estado

ainda é necessário

hoje, extraindo sempre as conseqüências práticas. Pre

sume-se que, enquanto o homem fôr como é,

nã0-

pode

rá absolutamente, haver liberàade e existirá sempre

Esta do , ou seja, coação. O que importa, dia a dia,

é

não mais Estado

do

que o necessário, não menos

l -

berdade

do

que a admissível. Liberdade significa, do

ponto de vista social, liberdade para a comunidade l -

vre, comunidade independente

da

coação

do

Estado.

Cla ro est á - diz Lênin - q ue não

se

pode, ab- ·

solutamente, determinar o momento a partir do qual se

processará a extinção. Isso

não

está absolutamente

claro. Quando Engels diz que, ao apoderar-se dos meios

de produção, o

Esta

.

do

se converte

no

representante,

de

fato, de tôda a sociedade, tornando-se portanto auto

màticamente supérflu.o, deduz-se ser êsse justamente o

momento em que deveria começar a extinção do Estado.

Se ela não começa aí,

então

fica demonstrado

que

à

tendência

a

suprimir o

Estado

não faz realmente

parte

da

ação revolucionária como fator determinante.

Por

tanto, não se

pode,

absolutamente,

esperar dessa revo

lução e ·de suas conseqüências uma extinção ou ·mesmo

.uma r ~ d u ç ã o

do

Estado. O poder não abdica quando

não é obrigado a isso por um poder contrário.

Em

setembro de í 917, Lênin declara: que a ques

tão mais premente e atual de política

de hoje

é a

transformação

de

todos os cidadãos em trabalhadores

e empregados de um único grande 'sindicato', ou seja,

de todo o Estado . A sociedade tôda - prossegue

- convert e- se

em

um

escritório e

uma

fábrica

com

o

mesmo trabalho e o mesmo salário. Isso, porém, nos

faz lembrar aquelas palavras de Engels, já eitadas, sô

bre o

caráter

tirânico

do

mecanismo automático de uma

grande fábrica, em cuja entrada houvesse uma placa

com os seguintes dizeres:

Lasciate

ogni autonomia, voi

ch'entrate.

E verdade que,

para

Lênin, essa disciplina

de fábrica não passa de

uma

etapa necessária para a

131

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Lênin, naturalmente,

não

ignorava que

os

Conse

lhos eram uma organização essencialmente descentralis

''.Devemos

ser

centralistas,

ma

s há

m o m ~ n t o s

o

preceito oposto: Devemos ser descentralistas, federa

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ta.

Tôda

a Rússia - diz êle em abril de

1917

está coberta

por

uma rêde

de

órgãos governamentais

autônomos locais.  As medidas especificamente revo

lucionárias - abolição

da

polícia, abolição

do

exército

regular, armamento de tôda a população - podiam ser

executadas também pelo govêrno autônomo local e é

isso Q que importa. Ble não dedica uma única palavra

e, aparentemente, um único pensamento. sequer,

à

pos

sibilidade de que êsses órgãos,

uma

vez cumprida a ta

refa, poderiam e deveriam fundir-se

com

base

numa

descentralização e funcional.

Para

a implantação

e

fortalecimento

da

administração autônoma,

não

outra

finalidade senão a de política da revolução: rea

lizar, r b i t r à r i

e n t e ~

a administração

autônoma

ig

nifica impulsionar a revolução . f: evidente que, nes

se contexto, fala-se também, embora passageiramente ,

em

um motivo social: a comunidade rural. Esta, que

significa

a

autonomia total ,

a

ausência

de

tôda tutela

superior , é muito adequada

para

a classe camponesa

(afirmar

que

nove

entre dez camponeses deveriam

estar de acôrdo

com

ela foi, diga-se

de

passagem, um

êrro fundamental). E seguem-se os esclarecimentos:

Devemos ser centralistas,

mas

momentos

em que

a

tarefa é transferida

para

a província; devemos deixar

às diversas localidades

o

máximo de iniciativa. . . So-

mente o nosso partido apresenta soluções que dão, real

mente,,

impulso à revolução.

À

primeira vista, é in

compreensível como êsse centralismo necessário possa

conciliar-se com essa autonomia total. Mas, ap6s

uma

observação mais atenta, notamos que essa compatibi

lida

de

reside

no

fato de o ponto de vista absolutamen

te dominante ser o da política ou estratégia revolucio

nária: também essa autonomia

é

elemento integrante de

um programa de ação e

não

conseqüência prática de um

conceito estrutural. Esta, principalmente, é a razão

pela

q u<l;l

a exigência programática d a

a

usência de tôda

tutela superior - exigência, não

para

um desenvol

vimento pós-revolucionário, mas que deverá

ser

execu

tada em 111eio à revolução, como algo destinado a

impulsionar a revolução - se converteu

tão

ràpida

mente em seu extremo oposto.

Uma

atitude verdadei

ramente socialista teria escolhido, em lugar do precei

to

:

36

listas ·autonomistas,

mas

há momentos em que a tarefa

' .

principal

é t r n s f e r i ~

~ ~ r o centro, porque assim

?

exige a ação revoluc1onana.

Tenh

amos, porém, o cm

dado

de

evitar que suas pretensões se estendam

para

além

de

seus limites objetivos e temporários .

Para

melhor compreendermos a contraposição entre

centralis

mo

e os momentos mencionados,

é

preciso

ter

em mente que

na

província, como salientou o próprio

Lênin, chegou-se freqüentemente à formação de

ccr

munas, particularmente nos centros proletários , ou

melhor, que

a

revolução comunal local progrediu .

As

palavrãs

de

ordem

estão

em conformidade com êsses

fatos.

Uma

palavra de ordem como a seguinte,

que

se

seguia àquela descrição

d8:

situação - Comunas .loca.is,

isto é, completa autonomia local

com

poder arb1tráno,

sem polícia, sem ·funcionários, autocracia das massas

e operários e camponeses armados - foi e permane

ceu, por mais que invocasse

a

experiência

de

Paris, uma

palavra de ordem de cunho político revolucionário, isto

é,

um

objetivo que não visava essencialmente

à

implan

tação

de

uma estrutura descentralizada

da

sociedade,

depois

de

ultrapassada a revolução: o fundamento de

cisivo é sempre o centralismo. Não podemos deixar de

ficar profundamente impressionados ao lermos,

no

mes

mo projeto de Lênin (de

maio

de

191

7), a proposição

para

que se tome por modêlo a província e se conver

tam em

comunas

os

subúrbios e bairros das grandes

cidadts. Contudo, tampouco essas medidas têm

outra

razão

de

existência se

não

a

de

impulsionar a revolução

e propiciar

uma base

mais segura para a concentração

de

todo o poder político nos Conselhos ( Somos

minoria,

as

massas ainda

não

confiam

em

nós'', dizi\l

Lênin, mais ou menos

na

mesma

época).

Lênin é,

inegàvelmente, um dos maiores estrategistas revolucio

nários de todos os tempos; o que o converte

numa

figura

problemática é sobretudo o fato de a estratégia revolu

cionária

para

êle, assim como a política revolucionária

para

Marx,

se

haver convertido na s

upr

ema lei,

não

somente

da

ação,m as também

do

pensamento. Pode-se

alegar que foi precisamente essa a base de seu êxito;

mas cabe certamente a essa atitude - a par

com

um

37

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Nesse artígo, Lênin enumera pela primeira vez

os

diversos motivos que, a seu ver, imprimiram aos Con

evidentemente, não pensava assim. E, alguns dias mais

tarde a expressão brinquedo reaparece

em

curioso

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selhos sua importância fundamental. A ordem em que

cita êsses motivos é particularmente característica de

seu ponto de vista:

19)

A nova máquina estatal , que

substitui o exército permanente pela Guarda Vermelha,

confere ao próprio povo o poder armado. 2<>) Estabe

lece um vínculo íntimo, indissolúvel e fàcilmente con

trolável entre a direção e as massas. 39) Acaba com

a burocracia, permitindo eleger e destituir. 4Q Me

diante o contato que estabelece com as diversas pro

fissões (Lênin, mais tarde, formula-o de maneira mais

exata: profissões e unidades de produção) , facilita

as

reformas mais importantes. 5<>) Organiza a vanguarda

destinada a elevar e educar as massas. 6<.>) Entrela

çãrido a função legislativa com a executiva, combina as

vantagens do parlamentarismo com as da democracia

direta. Em primeiro plano, aparece aqui o poderio

político revolucionário; em segundo plano, a organi

zação das reformas e, em terceiro, a forma do Estado.

A questão referente à possível importância dos Con

selhos para uma transformação da estrutura social não

é abordada.

Contudo, na opinião de Lênin, só foi possível aos

Conselhos superar o problema que se lhes apresentava,

12.orque

os

bolchevistas - se apossaram de sua direção,

preenchendo a nova forma com um conteúdo concreto

de ação, ao passo que antes, pelo contrário, os revolu

cionários sociais e os mencheviques os haviam degra

dado ao nível de locais sub-reptícios, que chegavam a

apodrecer e descompor-se ainda em vida . Só de

pois de

se

apoderar do poder político - prossegue

Lên in - é que os Conselhos poderão, realmente, pro

gredir, desenvolvendo plenamente suas disposições e

capacidades, pois, do contrário, nada têm a fazer; são

simplesmente células geradoras e não

é

possível con

tinuar sendo célula geradora por muito tempo)

ou

brinquedos . Essa frase é notável por mais de uma

razão. No que tange à imagem das células geradoras,

impõe-se, inevitàvelmente, a pergunta sôbre se Lênin

nunca pensou que os Conselhos poderiam amadurecer

mediante crescimento e articulação até se converterem

em células de um organismo'social _enovado; mas Lênin,

14

cont;xt-0 nas teses de Lênin para uma conferência em

Petersburgo, onde diz: Tôda a experiência das duas

revoluções, a de 1905 e a de 1917, nos confirma que o

Conselho de Deputados de Operários e Soldados só

tem realidade como órgão de sublevação, como órgão

do poder revolucionário. Afora essas tarefas, os Con

selhos não passam de brinquedos . Aqui podemos ver

claramente ·qual é o único aspecto que realmente im .

porta a Lênin. Naquele momento, é evidente que êle

deveria insistir no

as

pecto atual; mas o exclusivismo

com que o faz, não permitindo sequer ·a idéia de que os

Conselhos possam ter uma tarefa autônoma e dura

doura, fala -em têrmos inequívocos. Acrescente-se que,

aqui, ressurgem quase litera1mente as frases de 1915:

órgãos de sublevação e somente em conexão com

a sublevação . O que quer que Lênin tenha investiga

do e meditado sôbre

os

Conselhos, nos dois anos em que

se converteu

no

Lênin histórico, para êle continuaram

sendo meios para o fim révolucionário. Que não so

mente

os

Conselhos existiam por amor à revolução,

mas também. - em um sentido mais profundo, mais

elementar - que a revolução existisse por amor aos

Conselhos,

nem

sequer lhe passou pela cabeça. A par

tir dêsse fato - refiro-me não ao Lênin como pessoa,

mas ao tipo e ao espírito que nêle se manifestarain de

modo exemplar - pode-se

~ n t e n e r

que

os

Conselhos

tenham fracassado tanto na realidade como na idéia,

Que o lema de Lênin, Todo o poder para os

.

Con

selhos , foi concebido exclusivamente no sentido da

política revolucionária se nos torna ainda mais patente

quando, naquele artigo, lemos a proclamação: Não

estarão os 240.000 membros do Partido

dos

Bolche

vistas eni condições de governar a Rússia no interêsse

dos pobres e contra

os

ricos? Todo o poder aos

Sovietes não significa, pois, no fundo, senão: To

do o poder para o Partido através ' dos Sovietes - e

.nesse aspecto. de política revolucionária e mesmo de

política partidária, nada há que aponte para o outro

aspecto, o socialista-estrutural. Pouco depois, assegura

Lênin que o,s bolchevistas são centralistas por convic

ção, por seu programa e por tôda a tática de seu parti

do . O centralismo; portanto, apresenta-se não como

141

puramente tático, mas

c o ~ o

questão de princípio. . O

Estado prolétário dizem - de ve ser e n t ~ a l t s t a

Lênin,

predSf :mente

no mesmo discurso - con

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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Os

Conselhos conseqüentemente, devem subordinar-se

1

ao govêmo poderoso ; o que resta, porém, de sua rea-

lidade autônoma? Ora, também a êles se concede um

centralismo especial: contra sua união por .ramos

de produção , contra sua centralização , nenhum bol

chevista tem o que objetar. Mas Lênin, ao que parece, ·

não suspeita que essas uniões só têm caráter socja

lista e construtivo q u ~ d o se produzem espontâneamen

te, de baixo para cima, quando não são propriamente·

uniões, mas fusões, quando há um processo não centra

lista, mas federativo.

Na proclamação de Lênin População dez dias

após a tomada do poder, lemos: Vossos Sovietes, a

partir de agora, são órgãos do poder público, órgãos

revestidos de podêres, órgãos determihantes . As ta

refas que, pouco depois, são designadas aos Conselhos

referem-se essencialmente ao contrôle. Isso, em si, ba

·seava-se na situação, mas

era

muito pouco: faltava

o contrapêso positivo.· Tais instruções não podem bas

tar para que os Conselhos desenvolvam plenamente

suas disposições e capacidades .

:b

verdade que

Lênin, na assembléia do Partido, em março de 1918,

repete suas idéias sôbre o nôvo tipo de Estado sem

burocracia, sem polícia, sem exército regular , mas

acrescenta: Na Rússia .isso foi recentemente inicia

do e

mal

iniciado . Seria um êrro grave supor que

a culpa cabe unicamente à execução insuficiente de

um

projeto suficiente: ao próprio projeto faltava a

substância vital. Em nossos projetos - diz Lênin,

à guisa de esclarecimento - ainda há muitas coisas

tôscas, 'incompletas. Contudo, o fato realmente grave

e fatal

fo

i que a direção, que não era somente política,

mas também espiritual, não tivesse dirigido os sovietes

para seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento.

Aq

uêles que criaram

as

comunas -.- prossegue Lênin

- não as compreenderam.  Is

so

nos faz pensar no

que êle disse

um

dia após seu regresso

à

Rússia: Não

comprendemos

os

·Conselhos . Na realidade,

pG1'ém,

.

nem êle

os

compreendia ainda em sua essência - só

que não queria compreendê-los nesse aspecto.

42

testando a Bukharin, que exigia que o programa in

cluís

se

uma caracterização

da

ordem socialista - de

clara: Não podemos caracterizar o socialismo. Que

aspecto tomará o socialismo quando adotar sua

fo

rma

definitiva, não sabemos e nem podemos adiantar  .

E,ste

é,

indubitàvelmente, üm raciocínio marxista. Mas

é justall1,ente aqui que

se

evidencia com clareza histó

rica a limitação

da

ideologia marxista em suas relações

com uma realidade que se está formando ou em vias

de formação. O fator potencial, que para

seu

desen

volvimento necessita ser fomentado por uma idéia de

es trutura social, continua a ser ignorado. Evidente

mente, pode-se não saber que aspecto tomará o so

cialismo , mas pode-se saber que aspecto se deseja que

êle tome e essa sapiênqia assim como êsse desejo, ou

seja, essa vontade consciente, influi na realização - e,

quando se é centralista, é precisamente êsse centralismo

o que influi na realização. Na História coexistem sem

pre, mesmo quando variam as proporções de fôrça,

tendências evolutivas centralistas e descentralistas.

Aquela pela qual se pronunciar a vontade consciente,

dotada do poder adquirido, será de importância essen

cial para o resultado - e_ é muito raro e düícil que

uma vontade dotada de poder renuncie ao centralismo.

Haverá al_ go mais natural e consistente do que uma

vontade centralista que

ignora o elemento potencia]

descentralista nas estruturas de que se utiliza? Os ti-

jolos com os quais

se

edificará o socialismo - diz

Lênin - ainda não foram fabricados. Em

seu

centra

lismo, êle não viu e nem reconheceu qúe

os

Conselhos

eram

êsses

tijolos

e,

como não os ajudou a isso, êles

não

se

converteram em tijolos.

Pouco após a Assembléia do Partido, diz Lênin

no primeiro projeto para as Teses sôbre

s

Tarefas

Imediatas do Poder Soviético 

num capítulo que não

foi

adotado na redação definitiva: Somos a favor do

centralismo democrático. . .

Os

adversários do centra

lismo sempre apontam a autonomia e a federação como

meios de luta contra as contingências do centralismo.

Na realidade, o centralismo democrático não exelui,

absolutamente, a .autonomia mas, pelo contrário, pres

supõe sua necessidade. Nem mesmo a federação

43

(Lênin refere-se aqui somente

à

federação política)

se opõe, de qualquer modo, ao centralismo democrá

id

ade da transição . Nos anos subseqüentes, Lênin

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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tico. Numa ordem democrática e, em escala maior,

num Estado organizado em conformidade com o prin

cípio dos Sovietes, a federação será sempre apenas uma

etapa transitória

para

um centralismo verdadeiramente

democrático . Observa-se que. Lênin não pensa, abso

lutamente.  em restringir o· princípio centralista ao fe

deralista. :Ble quer, apenas, - de seu ponto de vista

revolucionário - tolerar uma realidade federal até que

esta se dissolva no centralismo. Sua tendência e sua

diretriz ,são, portanto,, inequ1vocamente centralistas. E

não

é

essencialmente diferente o que êle pensa a res

peito da autonomia local.

'Ble

recomenda admiti-la

até certo ponto e conferir-lhe suas atribuições, mas só

até. o limite em que se

inicl.am

as decisões propriamente

ditas e,. portanto, as instruções centrais. Tôdas essas

estruturas populares e sociais têm apenas uro valor po

lítico, estratégico, tático e provisório. Nenhuma delas

tem o

al.,ltêntico

direito à existência,

um

valor estrutural

autônomo, nenhuma pode ser membro vivo de um.a

entidade comunitária

em

formação, nenhuma deve ser

preservada e·fomentada' para o futuro a que se aspira.

Um

mês depois de Lênin ditar aquêle projeto, os

comunistas de esquerda s ~ i n l r m os danos que,

para os germes do socialismo, representava

·

fato de

a forma da administração do

Estado

desenvolver-se em

direção ao centralismo b'l,lrocrático,

à

supressão da auto

nomia dos sovietes 10cais e à renúncia efetifa ao tipo

de Estado-comuna que

é

regido por baixo - o mes

mo tipo, em suma, que Lêoin,

em

seu discurso, dizia

ser o tipo do poder soviético. Hoje, não pode haver

mais dúvida quanto a

q u ~ m

naquela época, tinha ra

zão ao julgar a situação e a tendência da evolução:

Lênin ou seus críticos. Todavia, o próprio Lênin o

soube no final

e

sua vida. As referências à Comuna

de Paris são cada vez mais raras após aquêle discurso;

até cessarem por completo. ..

Um

ano

após a revolução de outubro, declarava

Lênin: Na Rússia, a máquina burocrática foi total

mente aniquilada . Mas, em fins de 1920, êle

o n s i ~

dera a república soviética um Estado de operários com

eXérescências burocráticas , a que denomina de

a

rea-

  44

não podia deixar de constatar que a proporção entre

as excrescências e o tronco do qual brotavam se torna

ra mais desfavorável e que as investidas para o estado

em que deveria consumar-se a transição se tornaram

mais insignificantes.

Em

fins de 1922, no relatório

Cinco Anos de Revolução Russa e Perspectivas da Re-

volução Mundial apresentado ao

IV

Congresso da n-

ternacional Comunista, Lênin diz simplesmente: Ado

tamos a antiga máquina do Estado . :f:le.

se

consola,

na certeza de que dentro de alguns anos seria possível

modificar, radicalmente, a máquina. Essa esperança

de Lênin não se concretizou e nem poderia concreti

zar-se partindo de suas presimposiç

õe

s. ble pensava ,

essencialmente, em formar e empregar novas fôrças

mas o problema

era

estrutural, não pessoal.

Uma

bu

rocracia não se modifica porque mudatn os nomes que

a compõem e os indivíduos mais bem preparados que

saem das escolas soviéticas e faculdades operárias su

cumbem à sua atmosfera.

A verdadeira decepção de Lênin foi

com

a inalte

rável atividade da burocracia .que, embora certamente

não em suas pessoas, mas

na

tenaz persistência de seus

objetivos, tornou a mostrar-se mais forte gue o princí

pio revolucionário. :Ble parece não haver investigado

a causa

mãis profunda

do

fenômeno, o que

é

bastante

cumpreerisível. A revolução de outubro foi uma revo

lução social apenas no sentido de que modificou, até

certo ponto, a ordem e estratificação sociais, suas

formas e instituições; mas uma revolução verdadeira

mente social deveria ir mais longe e investir a sociedade

de seus direitos em face do Estad0. Com referência a

êsse problema, Lênin indicou que a extinção do Estado

se produziria numa evolução cujo momento histórico

não podia ser

p r e ~ i s d o

e cujo processo ainda não

podia ser imaginado. Mas reconheceu que uma parte

da missão poderia ser realizada no presente, através

da determinação de uma · tarefa imediata para o pro

grama 'de ação dos ·dirigentes, apresentando como a

nova forma do Estado, cuja realização deveria ser ini

ciada imediatamente, o Estado-comuna . Marx, con

tudo, caracterizara claramente êsse Estado como a

li -

bertação mais completa possível das cadeias do princí-

145

pio político, por parte da sociedade trabalhadora.

Assim que a ordem comunal das coisas se implantou

dora

qu

os havia produzido. A ditadura

do

prole-

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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'

em Paris e nos pontos centrais secundários - escre

veu - o antigo govêrno centralizado deveria haver

cedid

o,

também nas províncias, ante o govêrno autô

nomo dos produtores. Essa transição do princípio

político para o social que,

na Fr

ança, se elaborou ba

seado ideologicamente no pensamento social desde

Saint-Simon até Proudhon, foi proclamada por Lênin

como sendo a diretriz essencial para a atividade orga

nizadora da direção, mas ela não se converteu nessa

diretriz. O p

ri

ncípio político tornou a estabelecer-se

em formà modificada, onipotente e

os

perigos externos

que realmente ameaçavam a revolução serviram-lhe de

amp

la

justificativa. Que naquelas circunstâncias não se

poderia empreender uma demolição radical do princí

pio

p o l í t i ~ o

pode permanecer como fato incontestável.

Mas teria sido possível a implantação de uma diretri

z,

segundo a qual se ampliariam, cada vez mais,

os

lim

i-

tes de poder do princípio social, na medida em que o

permitissem as circunstâncias. O que ocorreu foi o

con

tr

ário. Os representantes do princípio político, isto

é, · substancialmente

os

revolucionários profissionais

que haviam assumido o poder, velaram

ciosame11te

para

que não se restringisse sua esfera de comando. ver

dade que ampliaram suas fileiras com pessoas capaci

tadas procedentes do povo, pfeenchendo com elas

as

lacunas que se produziam, mas aquêles que se incor

poraram à direção ficaram marcados até o âmago de

suas almas pelo princípio político; cónverteram-se

em

substância do Estado e deixaram de ser substância da

sociedade. Os que resistiam a. essa transformação não

conseguiam manter-se ou renunciavam ao seu propó

si

to. O poder do princípio social não deveria intensi

ficar-se. O govêrno autônomo dos produtores -

surgido antes da ·revolução e que começou a manifes

tar-se, espontâneamente, durante a mesma - e sobre

tudo

os

sovietes locais, apesar de tôda a aparente liber

dade de manifestação e deliberação, foram privados de

poder pelo domínio do partido que, com seus diversos

métodos, visíveis

ou

invisíveis, em tudo

os

obrigava a

conformar-se cotn a doutrina e vontade da central, a té

que pouco restou da seiva daquela fôrça popular cria-

  46

. tariado é de fato uma ditadura ao Estado sôbre a

sociedade e, certamente, uma ditadura desejada, ou

pelo menos tolerada, pela imensa maioria do povo.

porque êste espera que assim venha a consumar-se a

anelada n ~ v o l u ç ã o social. A burocracia, que tanto

mo-

Jes

tava a Lênin, justamente porque êle desejaria abo

Ji

J

a,

- ·para êle, o Estado-comun

a

era no fundo o

Estado desburocratizado - é apenas um f n ô m ~ n o

inevitável, concomitante com a autocracia do princípio

político.

Notável é que, dentro do próprio Partido, tenham

surgido continuamente novas tentativas para quebran

tar essa autocracia. A mais interessante, por provir

dos

operários industriais, é, a meu ver, a oposição dos

operários de março de 1921 que proclamou a tese de

que ·

os

órgãos centrais para a administração· de tôda

a economia política deveriam ser eleitos pelos p r o d ~ t o -

res unidos em federações profissionais. Isso ainda não

significa, absolutamente, um govêrno autônomo. de pro

dutores . mas é um passo importante nesse sentido, em

bora não tenha um caráter genuinamente descentrali

zador. Lênin refutou êsse desvio anarco-sindicalista ,

dizendo que uma união dos produtores só poderia ser

aceita p o ~ um marxista, numa sociedade destituída de

classes, numa sociedade composta exclusivamente por

operários, na qualidade de produtores.

Na

Rússia, en

tretanto, além dos resquícios

da

época capitalista, ainda

existiam duas classes: a dos camponeses e a dos ope

rários. Conseqüentemente, enquanto o comunismo não

estiver consumado, convertendo todos

os

camponeses

em

operários, não se pode pensar numa administração

autônoma da economia, na opinião de Lêoio. Dito

com outras palavras (visto como a consumação do co

munismo coincide com a total extinção do Estado) :

não se pode pensar numa redução radical

do

poder

interior do Estado, enquanto. êste não tiver exalado o

último suspiro. Êsse paradoxo tornou-se uma verda

deira máxima de conduta para _a

direçJio

do

regime

soviético. Somente a pa

rt

ir daí é

que·

se pode com

preender, em conjunto, a atitude mutável 'de Lênin no

que se refere ao regime cooperativista.

47

Não

pretendemos, todavia, criticar as contradi

ções. O próprio Lênin, já em 1918, não sem razão

ilha em meio à sociedade capitalista, não passava evi-

d

t

d U

l . .

entemen e e ma O a mas a cooperativa que,

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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insistia em que, sempre que uma nova classe surge na

ar

ena histórica como regente da sociedade, verifica-se

um período de experiências e vacilações para a escolha

de novos métodos que correspondam à nova situação.

Três anos mais tarde, êle acrescenta, inclusive, que

o

movimento se desenrola invariàvelmente em zigue

zague'', como o demonstra a História das revolu

ções . ~ l e não tomou em consideração .·que tudo isso

é

indubitàvelmente certo

para

as revoluções políticas;

mas que quando, pela primeira vez na História Univer

sal, o elemento da transformação social intervém em

proporções tão amplas, o gênero humano - tanto o

povo que atravessa o processo como os povos que

são testemunhas dos acontecimentos - anseia por vis

lumbrar, em tôdas as experiências e vacilações, um

prenúncio claro do futuro, a tendência

para uma

exis

tência socialista que significa: uma comunidade basea

da

na

liberdade. No caso em questão,

por

mais ex

traordinário que lhe parecesse o que sucedia, êsse pre

núncio não se manifestou e a atitude mutável de Lênin,

com referência ao regime cooperativista, constitui· uma

prova a mais de que

a

referida tendência não existe.

Durante o período pré-revolucionário, as coope

ratjvas, para Lênin, não passavam de lamentáveis

meios paliativos dentro da sociedade burguesa e agen

tes do espírito pequen9-burguês. Um mês antes da

v o u ç ã o

de outubro, em face da grave crise econô

mica que se abatia sôbre a Rússia, êle propunha. o

agrupamento obrigatório da população em cooperati

vas de consumo, como uma das primeiras medidas re

volucionário-democráticas a serem tomadas. Em ja

neiro do ano seguinte, escreveu rio esbôço de um de

creto : Todos os cidadãos devem pertencer a uma coo

perativa

de

consumo local e as cooperativas de con

sumo existentes serão nacíonalizadas .

Em

vários se

tores do Partido, essa exigência foi interpretada e apro

vada como medida

para

eliminar as cooperativas, pois,

como se exprimiu com razão um teórico bolchevista, a

afiliação voluntária era considerada a característica es

sencial de uma cooperativa. Mas Lênin não era dessa

opinião. Segundo êle, a cooperativa, como pequena

48

após a supressão do capital privado, abrange tôda a

sociedade

é

socialismo . Daí, que a incumbência do

poder soviético seja converter todos os · cidadãos, sem

exceção, em membros de uma· cooperativa creral do

Estado, numa única e ime;:nsa coope.rativa ;ornum .

O que não foi dito

é

que o princípio da cooperativa

perdia., assim, todo o seu conteúdo de autonomia e até

mesmo sua existência como princípio, limitando-se a

ser uma instituição do Estado, forçosamente centralista

-burocrática, sob

um

nome cujo significado ficara d

es

virtuado.

A

realização dêsse programa foi empreendida

n o ~

a ~ o s

subseqüei;it-es:

tôdas as cooperativas

foram

refundidas sob a direção das associações de consumo

que, no fundo, se converteram em órgãos estatais de

di stribuição de mercadorias. Não obstante, dois anos

depois de haver formulado as tarefas do poder sovié

tico , Lênin não quis efetuar, de imediato, a naciona

lização radical e opunha-se àqueles que pretendiam,

abertamente, substituir as cooperativas

por

uma rêde

única de organizações · governamentais. Seria ótimo,

~ - ª ~ é i m ~ o s s í v e l , afümou Lênin, querendo dizer que

t imposs_

1vel

por enquanto  . Ao mesmo tempo, po

rem, contmuou a ater-se fundamentalmente

ao

conceito

da

cooperativa como tal e declarou, invocando Marx

e sua própria atitude no Congresso

da

Inter:nacional

de.

Copenhagen ( 191O), - onde insistiu no efeito socia

l i z a ~ t e . que teria a cooperativa, após a expropriação dos

capitalistas - que a cooperativa poderia ser um meio

para a edificação de um nôvo sistema econômico. Seria

preciso encontrar novas formas cooperativistas que

correspondam às condições econômicas e políticas da

ditadura do proletariado e facilitem a transição para

o verdadei:o centralismo socialista . Uma instituição

que é, essencialmente, cerne e embrião da descentra

li

zação social, deveria converter-se, portanto, no ele

mento construtivo de um nôvo centralismo total de

cunho socialista . E evidente que Lênin, aqui, não

parte de conjeturas teóricas mas das exigências práticas

do momento que, como se sabe, era sumamente grave

e requeria os mais enérgicos esforços. Quando Lênin,

numa formulação que recorda os postulados dos uto-

  49

pistas e anarquistas - e .que inverte seu sentido -

exige que a cooperativa de produção se una

à

de con

fvas ser muito natural que a máquina estatal coope

r ~ t i v Í s t a funcionando de acô.rdo com um plano fixo.

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sumo , cita como razão a necessidade de aumentar a

quantidade de produtos; uma experiência de dois anos

demonstrara a conveniência dêsse meio. E, um ano

mais tarde, ouvimo-lo polemizar, violentamente, contra

as cooperativas que, em sua forma antiga, ainda não

superada, constituem um refúgio para a mentalidade

contra-revolucionária . Na famosa obra sôbre o tri

buto em espécie, de princípios de 1921,

êle

assinala,

expressamente, o perigo que encerra uma cooperação

de pequenos produtores: ela fortalece, inevitàvelmente,

o capitalismo pequeno-burguês. Na atual situação da

Rússia - prossegue Lênin - a liberdade e

os direitos

das cooperativas significam liberdade e direitos para o

capitalismo. Seria tolice ou um crime fecharmos

os

olhos ante essa verdade evidente . E mais adiante: O

capitalismo cooperativo, sob o poder soviético, ao con

trário do capitalismo da economia privada, forma uma

variedade do capitalismo de Estado e, como tal, nos é,

por ora, ú J e vantajoso. . . Devemos esforçar-nos por

conduzir o desenvolvimento do capitalismo pela senda

do capitalismo cooperativista . Essa advertência e ins

trução limitava-se a formular verbalmente o que, de

fato, se praticara nos anos do errôneamente chamado

comunismo de guerra (o próprio Lênin, fazendo um

exame retrospectivo, fala em outubro de 1921 do êrro

cometido quando nos decidimos a passar diretamente

para a produção e distribuição comunistas ).

Contudo, acompanhada dos demais efeitos desfa

voráveis da extrema centralizaÇão e em relação com a

Nova Política Econômica que se iniciava, começou a

impor:se, também aqui, uma tendência ao retrocesso.

Dois di as antes daquele discurso admonitório de Lênin,

fôra promulgado um decreto para restabelecer a coo

perativa como organização econômica, em suas dife

rentes formas: de consumo, agrícola e industrial. Dois

meses mais tarde, seguiu-se um decreto que foi o pri

meiro passo para anular, totalmente, a fusão coordena

da de tôdas

as

espécies de cooperativas, na federação

das associações de copsumo

Zentrosojus).

Em fins

do mesmo ano, declarava o presidente dessa federação,

num discurso sôbre a situação e missão das coopera-

15

se tivesse tornado burocrática, imóvel e desprovida de

elasticidade ; _mencionou as vozes que falavam em

libertar a cooperativa da servidão ao Estado e chegou

a admitir que há momentos em que é preciso falar

dessa emancipação . Efetivamente, a população, mui

tas vêzes, compara a organização coercitiva à escravi

dão. A parti r de então, como declarou uma parte auto

rizada a respeito das cooperativas agrícolas, renunciou

-se, total e terminantemente , a qualquer intervenção

governamental nos assuntos das mesmas, ficando a

atuação limitada às outras possibilidades, resultantes do

sistema de capitalismo de Estado, de controlar as

cooperativas mediante a influência econômica , até

que aquelas que não pudessem ou não quisessem adap

tar-se fôssem

d

ilacera

da

s e aniquiladas . De qualquer

modo, providenciou-se para que membros de c o n f i n ~

do Partido interviessem

na

direção, tanto das centrais

como das diversas associações, e que fôssem efetuadas

as

necessárias depurações .entre

os

represe

nt

antes das

cooperativas. ·

Dois anos após seu discurso sôbre o tributo em

espécie, em maio de 1923,

no

longo artigo que escre

veu sôbre o regime cooperativista, Lênin forneceu a

base teórica para o nôvo desenvolvimento que então

se encontrava t:m seu ponto culminante. Ao iniciar

mos a nova poUtica econômica - diz êle - fomos

um tanto precipitados, pois nos esquecemos de pensar

no regime cooperativista. Contudo, êle não mais se

limita a aceitar a cooperativa como elemento necessá

rio

à

economia estatal da época de transição. A coope

rativa é, repentinamente, colocada no ponto central da

nova ordem socialista. O agrupamento cooperativo d,a

população é agora enfatizado por Lênin como a única

tarefa que nos resta . A cooperativização da Rússia

adquire, aos seus olhos, uma importância colossal ,

gigantesca'', ilimitada . Ainda não é - diz êle -

a realização da sociedade socialista, mas é tudo o que

é necessário e suficiente para a edificação dessa socie

dade. E vai ainda mais longe: a cooperativa conver

teu-se não só no requisito prévio da organização social,

mas em sua própria alma. Uma ordem social com-

  5

 

posta de cooperativas esclarecidas - explica êle

- .

com

propriedade comunal dos meios de

prod

ução,

gd

àpenas aparente.

Nem

mes

mo

agora Lênin pensa

na

cooperativa como estrutura espontânea e autô

nom

a,

Page 77: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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ças à vitória do proletariado sôbre a burguesia, isso é

uma ordem socialista.  E conclui:

O

simples

c r e ~ c i -

mento

da

cooperativa significa, pa ra nós, o crescimento

do

socialismo e, Se conseguíssemos a plena coope

ra

tivização, estaríamos pisando com ambos os pés em

terr

eno soc ial ista . Na planejada cooperativa do .Es-

tado que englobaria tudo, Lênin vê a concretização

dos sonhos

das

antigas cooperativas iniciadas com

Robert Owen . Aqui, a contradição entre a idéia

e

a realização

at

inge o seu ápice. O importante para

aquêles

uto

pistas , a começar por Rob

ert

Owen, em

suas idéi

as

e planos

de

associação,

era

o agrup

ame

nt

o

voluntário de homens em pequenas unidades, indepen

dentes

em

sua vida e trabalho comunitários, e

sua

união

voluntária numa comunidade

de

comunidades. O que

Lênin salienta como realização dessas idéias e planos

é exatamente o extremo oposto; é

um

complexo enor

me, inexoràvelmente centralizado,

de

centros de pro

dução

governamentais e repartições governamentais,

um

mecanismo de instituições

de

produção e consumo

burocràticamente dirigidas e engatadas a uma engre

nagem. Não há mais lugar

para

a livre decisão,

para

a livre agrupação,

não

resta sequ

er

a possibilidade de

se sonhar com tais coisas; com sua realização  aca

bou-se o sonho. Em todo caso, essa .era a função que

Lêniri atribuía

à

função cooperativista no

Es

tado e não

o negou naquele artigo, tão avançado em outros aspec

tos, que escreveu oito meses antes

de sua

morte. ate

quis

dar a

base teórica decisiva

ao

movimento que

chegara ao seu mais amplo desenvolvimento e que tra

zia consigo, em todos os setores,

uma

restri

ção

do cen

tralismo; negou-lhe, contudo, - forçado por s

ua

ma-

neira

de

racioci nar - a base da base: o princípio da

li

berdade.

Nessa mudança tão pronunciada de Lênin face

ao regime cooperativista, muitos quiseram ver uma

a

pr

oximação às teorias dos demagogos russos, para

quem

as

formas de união cooperativa latentes ou

re

s

surgidas no povo eram o ponto de partida e o cerne

de uma futura ordem

da

sociedade e aos quais Lênin

combatera durante tanto tempo. Mas a afinidade é

52

crescendo por impulso interno e seguindo sua própria

Jei. O

que

êle esperava, depois

de

tantos esforços pe

nosos

para

unir o povo em um todo que o seguisse

numa

submissão voluntária, depois

de

tôdas

as

decep

ções sofridas com as excrescências burocráticas , mar-

t;ado

pela enfermidade e na

pr

oximidade da morte, era

unir duas coisas incompatíveis entre si: o

Estado

oni

tutel

ar

e a cooperativa

em

pleno florescimento, ou seja,

a coação e a liberdade. Em tôdas as épocas

da Hi

stó

ria, a cooperativa e s

ua

s formas precursoras só pude

ra

m desenvolver-se realmente nos hiatos que escapa

vam ao

poder

do E

stado

e

de

suas formas precursoras.

Um

Estado sem lacunas exclui,

por sua nat

ureza,

um

verdadeiro desenvolvimento

da

cooperativa. A idéia

de Lênin era ampliar o âmbito da cooperativa e unifi

cá-la

de

tal

modo em sua

estrutura, que

ela só se

distin

guisse funcionalmente

do

Estado e que coincidisse ma-

terialmente com êle.

Is

so · equivale

à

quadratura

do

círculo.

Stálin explicou a modificação operada, entre

1921

e 1923,

na

concepção

de

Lênin sôbre as cooperativas,

dizendo que o capitalismo de Estado não conseguira

arraigar-se na medida desejada e que as cooperativas,

com

seus

1

milhões de membros, haviam começado

a. associar-se, 'intimamente, com a nova indústria socia

lista em desenvolvimento. s s o não

dúvida, indica

essencialmen

te

os verdadeiros motivos de Lênin,

mas

não basta para explicar seu repentino entusiasmo pelas

cooperativas.

B

notório, ademais,

que

Lên

in

esperava

que o princípio cooperativista contrabalançasse a buro

cracia

que

tanto o molestava. A cooperativa, entre

tanto, só teria

podido

converter-se em semelhante con

trapêso em sua livre forma original,

não

na forma coer

citiva

de

Lênin,

a

qual dependia

de

uma burocracia

realmente gigantesca .

Como

dissemos, a idéia coercitiva

de

Lênin

não

foi plenamente executada. O movimento

de

retrocesso

co

nduziu finalmente, em maio· de 1924,

ao

restabeleci

mento

da

afiliação voluntária, inicialmente apenas

para

os

cidadãos dotados

de

voz ativa, isto

é,

com

direito a

voto e, em princípios de

1928,

também pa

ra

outros,

53

  b d

nas cooperativas

de

consumo

rur

ais, em

ora

re uzm o

os seus direitos.

Em

fins de 1923, declarava aquêle

nas mesmas proporções, o antagonismo entre a cidade

e o campo seria eliminado em ritmo acelerado . Em

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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pre

sidente do Zentrosojus: Temos

de

reconhecer

11ue

es

ta

transição para a livre afiliação deveria ter sido efe

tuada antes. Teríamos podido enfrentar esta c

ri

se sôbre

uma

base mais firme .

Não

obstante, continuqu-se a

exercer utna coação indireta, mediante o su

pi::imento

preferencial

da

s coupt:'rativas.

Em

192 5, inteiramo-nos

através

do

então presidente

do

Conselho Central de

Sindicatos que,

na

distribuição

de

subvenções e emprés

timos, leva-

se

em conta a afiliação às cooperativas, de

um modo que muito

se

aproxima

ao

da

coação.

E,

dez

anos mais tarde, as cooperativas

ur

banas, que

de há

muito vinham sendo prejudic

ad

as pelas intervenções

governamentais, foram abolidas de um único golpe em

654 cidades.

· O que foi dito basta

par

a demonstrar que o regime

soviético sempre oscilou, pràticamente, entre a imedia

ta

centralização radical e a tolerância temporária de

setores relativamente descentralizados, mas que nunca

nem de modo

ap

roximado converteu em máxima

de

sua conduta a orientação para aquêle fim do socialis

mo formulado

por

Marx: desprendimento

da

envol

tura política . Para completar o que foi dito, podem

trazer-se à baila suas ·d

iv

ersas atitudes durante o plano

qüinqüenal

de

1926-1931 para a coletivização dos

camponeses. Limitar-

me

-ei a citar em ordem cronoló

gica a sucessão

de

algumas manifestações e aconteci

mentos característicos.

Em

fins de 1927,

Molo

tov

assinalou o atraso

da

agricultura e pediu que, para su

perá-lo, fôssem desenvolvidas as coletividades rurais,

valiosas apesar de seus defeitos, em conexão com o

plano geral

de

industrialização.

Em

junho

de

1928,

Stálin declara a necessidade de ampliar com a máxima

intensidade as coletividades existentes e fundar outras

novas. Em abril

de

1929, é lançado

na

assemblé

ia

do

Partido o lema

para

a cria

çã

o, ainda d:ura

nt

e o plano.

qüinqüenal, de um setor de produção socializada que

servisse de contrapêso pax:a a economia individual. A

ação coletivizadora adotou, de imediato, mais ou menos

abertament

e,

formas coercitivas e, inicialmente, pareceu

ser tão

b em

sucedida que Stálin declarou, em fins do

mesmo ano: Se o movimento coletivista prosperasse

4

princípios

de

1930, o Comitê Central do Partido cons

tatou a diminuição qo ritmo previsto no plano e

pr

ocla

mou, energicamente, a necessidade de lutar contra tô

das as tentativas de retardar o movimento.

No

prazo

de três anos, deveria ser levada a cabo a coletivização

completa, através

da

persuasão

e

de outros meios .

Os comitês executivos distritais rivalizaram entre si na

aplicação de suas medidas puramente administrativas;

declarou-se, não poucas vêzes, que o distrito era a

comarca

da

coletivização comple

ta

  e, quando a per

suasão n

ão ba

stava, recorria-se·à ameaça. Não tardou

a

p a t e n t e a r - ~

entretanto, que a im

pre

ssão

de

êxito

total, produzida pe

la

grande proliferação de agrupações

de produção coletiva,

era

ilusória. Os camponeses. rea

giam à

sua

própr

ia

maneira, sacr ificando o gado ou

mesmo sublevando-se e a ação empreendida para eli

minar aos latifundiários de na

da

adiantou, pois, muitas

vêzes, os pequenos proprietários

de

terras faziam causa

comum com êles e o Exército Vermelho espalhou o

descontentamento entre os filhos dos camponeses.

Foi

então que Stálin, em seu famoso artigo A Vertigem

Ante o Exità efetuou a mudança que parecia necessá

ria. A política da coletivização, afirmou êle, baseia-se,

segundo a doutrina de Lênin,

na

voluntariedade.

Não

se pode criar,

à

fôrça, centros

rur

ais de produção cole

tiva. Isso seria estúpido e reacionário

.

Lênin ensi

nara também que implantar o cultivo coletivista do

solo por meio de decreto seria o pior dos absurdos''.

O princípio

da

voluntariedade fôra infringido; o ritmo

da

ação

não

correspondera

ao

do desenvolvimento e

se haviam saltado etapas intermediárias necessárias do

cam

inho que conduz à comunidad.e rura l completa. O

.Comitê Central ordenou, então, que não mais se em

pregassem métodos coercitivos. A .assembléia do Par

tido proclamou, em julho, que a produção

rura

l coletiva

só poderia

ser

edificada com base no ingresso voluntá

rio e que tôda tentativa de aplicar a violência ou a coa

ção administrativa constituía uma violação à diretriz

do Partido e um abuso do poder .

No

outono, o co

missário

da

Agricultura tornou a criticar

os

métodos

brutais e ultra-administrativos que haviam sido aplica-

155

dos

·a

os centros rnrais coletivos e aos seus membros".

Contudo, menos

de

cinco meses mais tarde - quando,

fábrica estatal - sufocou o valor peculiar, o valor

estrutural

da

comunidade aldeã e só poderia tê-lo sufo

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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em

decorrência

da

maior liberdade outorgada,

um

bom

número de camponeses abandonou as colônias coleti

vas, apesar das novas vantagens usufruídas - o

m ~ s -

mo

comissário, referindo-se aos camponeses que nao

haviam aderido ao movimento coletivista, disse em seu

relatório

ao

Congresso:

Com

quem estão êles, com

os kulaks ou com os coletivistas?. . . f possível perma

necer neutro agora?"

Ou

seja: quem não estiver a favor

da

coletivização, está contra o regime soviético. O

Congresso confirmou essa atitude. Nos anos subse

qüentes, após as atenuações impostas pelas crises ali

mentícias, seguiram-se novas medidas vigorosas, até

que, em 1936, cêrca

de 90%

dos camponeses já esta

vam coletivizados, embora apenas uma diminuta fração

'fôsse constituída

de

comunas totais.

A antiga Rússia aldeã subsistiu até

1 9 2 ~ ,

como

formulou acertadamente Maynard.

Do

ponto

de

vista

do

rendi llento econômico, só se

pode

louvar que ela

tenha sido extinta, juntamente

com

seu tradicional sis

tema

de

cultivo

do

solo. Mas, quando examinada sob

o ponto

de

vista

da

estrutura social, a questão se apre

senta em outros têrmos. Analisada

por

êsse ângulo,

vemos ue não

foi

muito indicada. a adoção de uma

política

~ í g i d a para

êsse caso. Impunha-se transformar

as unidades estruturais

exisknles, de modo a que se

acomodassem às novas condições e necessidades, con

servando, não obstante, seu caráter estrutural, sua es

n c i a

como células autônomas. Essa tarefa não foi

levada a cabo. Afirmou-se, 'certamente com razão, que

a idéia marxista, associada à racionalização agrícola em

grande escala, à industrializaçã? e

t e c n i ~ i c a ç ã o

.

agricultura, foi injetada na antiga c o m u m d d ~ aldea

russa que habituara os camponeses

ao

cultivo em

comum do solo. Mas a tendência, motivada por razões

políticas, de converter o cultivo

do

solo .

em

d e ~ a r t a -

mento da

indústria e os camponeses em assalanados

dessa indústria, a tendência a uma economia estatal que

a tudo .abrangesse e controlasse, - para a qual a coo

perativa agrícola representava apenas uma etapa no

caminho

da

comuna total e esta, apenas uma fase de

transição para a sucursal local da seção agrária da

156

cado. Assim como a um indivíduo, não se pode tratar

onipotentemente um organismo social, isto é, como

meio para um fim, sem privá-lo de sua essência vital.

Do

ponto

de

vista

do

leninismo - disse Stálin em

1933

- os centros rurais coletivos, bem como o<;

sovietes, considerados como forma

de

organização,

são

apenas uma arma e

nada

mais que uma arma." Não

se pode, naturalmente, esperar que uma àrvorezinha

convertida em estaca produza fôlhas.

l>or muito mais tempo,

do

que em qualquer outro

povo, conservou-se no russo a inclinação "medieval"

de unir-se em pequenos grupos para uma obra comum.

Do artel, a mais original estrutura social nascjda dessa

inclinação, disse Kropotkin,

quarenta anos, que êle

era a autêntica substância

da

vida camponesa russa;

é

uma união em parte permanente, em parte passageira,

de pescadores, caçadores, artesãos, comerciantes, car

regadores,

depoiytdos à Sibéria, camponeses que acor

rem à cidade

para

trabalhar como tecelões ou carpin

teiros, camponeses que se propõem a explorar, em co

mum, o cultivo

do

trigo

ou

a criação

de

gado, separando

sempre, nitidamente, a propriedade comum e a indivi

dual. Para uma grande idéia de reestruturação, havia,

aqui,

um

elemento construtivo

de

incomparável valor.

A revolução bolchevista

não

o utilizou como

tal.

Não

tinha qualquer aplicação para pequenas comunidades

autônomas.

Entre

os tipos

de kolkhoz

prefe.riu,

no

momento presente'', como diz Stálin, o artel agrícola,

por motivos técnico-econômicos, mas é natural que não

tenha visto nêle mais que

uma

instituição transitória.

Um de

seus melhores economistas teóricos resumiu a

finalidade

do

arte . O cultivo

do

solo - disse êle -

só poderá consic;ierar-se socializado, quando todos os

artéis agrícolas tiverem sido substituídos

por

empreen

dimentos estatais e quando a terra, os meios de produ

ção

e o inventário vivo pertencerem ao Estado centra

lizado. Então, os camponeses, como assalariados

do

Estado, viverão em casas comunais

 .

em grandes cida

des agrárias, centros de maiores demarcações eletrifi

cadas. A imagem ideal, à qual pertence essa represen

tação,

é,

na veràade, o quadro

de

uma sociedade total

57

e definitivamente desestruturada.

J\/Jais

~ i n d a é o

quadro de um Estado que devorou a sociedade.

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O regime soviético realizou grand.es feitos. no ca

m-

po da técnica econômica e outros a 1 ~ d a _maiores,

campo da técnica de guerra. Seus c1dadaos parec . m

aceitá-lo essencialmente por diversas razões; ~ m s

sitivas, outras negativas, umas fictícias e outras reais

e

sua atitude parece compor-se de uina mescla de

vaga resignação e confiança prática. De ~ o d o

ge.ral

pode-se dizer do indivíduo que se ent.rega a esse regime

onde goza

de

tão pouca liberdade de pensamento e

ação: não é possível retroceder m a ~ pelo m e n o ~ no

seritido do rendimento técnico, há progresso. A situa

çã

o muda de aspecto quando examina,

i ~ p a r c i a l -

roente, o que êsse Estado realizou

em

matéria

de

so

cialismo.

Em

postulados socialistas, muito; ·em estrutu

ra socialista, · nada. Que aspecto terá - p e r ~ u n t a ~ a

em 1918, o sociólogo.Max Weber--: aquela

a ~ s o c ~ a -

ção' de que fala o Manifesto Comumsta? Quais sao,

particularmente, as células geradoras de semelhantes

organizações que o socialismo possa apresentar para o

caso de, realmente, lhe surgir a oportunidade de apo

derar-se do poder e dispor as coisas a seu modo?" No

país em que o socialismo, realme;ite,

t ~ v e

essa

o p o r t ~ -

ni

dade, havia células   d o ~ s desse tlpo como, possi

velmente,

em nenhum outro de nossa época; mas elas

não foram desenvolvidas. Todavia, ainda há tempo

para uma mudança e uma transformação - nã? uma

mudança

de

tática, como tão freqüentemente fizeram

Lênin e seus colaboradores, mas uma mudança funda

mental. Para trás não podem voltar; só podem prosse

guir

par

a a frente - mas numa nova direção. Tudo

depende de que ainda existam,

no

fundo, fôrças ' .ue

emerjam à superfície e efetuem essa transformaçao.

Pierre Lerou

x

que parece

ha

ver sido o primeiro a em

pregar a palavra socialismo,_ abia o que dizia quando,

em 1848, dirigiu à Assembléia Nacional

f r a n c e ~ a

as

seguintes palavras: "Se não quiserdes uma comunidade

humana, digo-vos que exporeis a cultura à sina de pa

recer em espantosa agonia".

58

X OUTRA.

EXPER

I:BNCIA

A era do grande capitalismo teve o ·efeito, como

vimos, de desestruturar a sociedade. A sociedade que

a precedeu era constituída de sociedades de diversos

tipos. Possuía uma estrutura complexa e pluralista, o

q_ue lhe conferia uma vitalidade social específica, capa

Cttando-a a o

fe

recer resistência à tendência totalitária

do E s t ~ d o centralista pré-revolucionário, mesmo quan

do vános de seus elementos já apresentavam uma vida

autônoma bastante debilitada. A política da Revolu

ção Francesa, .dirigida contra os privilégios dessas asso

ciações, esmagou a resistência. · A partir de então, o

vo centralismo

do

grílnde capitalismo logrou o que

não lograra o antigo: atomizar a sociedade. O capital

59

que domina as máquinas e, através delas, a sociedade

quer defrontar-se somente com indivíduos, e o Estado

uma nova sociedade. Ambas as f o ~ m a s de cooperativa

passaram por um grande desenvolvllllento, m

as as

co

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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moderno segue-lhe

os

passos, despojando progressiva

mente

os

grupos de .sua vida autônoma. As organiza

ções de luta que o proletariado ergue contra o capital,

a ·econômica sindicato) e a política partido , não

podem, por sua própria natureza, combater êsse

pro-

cesso de decomposição, pois não tem acesso à vida da

sociedade e nem

às

suas bases: a produção e o con

sumo. A passagem do capital para

as

mãos do Estado

tampouco pode ocasionar a reestruturação, mesmo

quando estabelece uma rêde de cooperativas obrigató

rias, pois estas, destituídas de uma autêntica vida autô

noma, são incapazes de converter-se em. células de uma

nova sociedade socia

li

sta.

conteúdo objetivo primordial do movimento

cooperativista consiste, portanto, na tendência à rees

truturação

da

sociedade, à recuperação

da

coesão in

terna sob novas formas tectônicas, numa nova i onso-

ciatio conçociationum. f fundamentalmente falso,. co

mo demonstrei, qualificar de romântica

ou

utópica

~ s s a

tendêncja, pelo fato de, em seus primórdios, ter surgido

algumas

vêzes

associada a reminiscênci

as

românticas e

fantasias utópicas. Ela é total e fundamentalmente tó

pica

e

construtiva, isto

é,

propõe modificações perfei

tamente realizáveis em determinadas condições e com

determinados meios. Psicolôgicamcnte, ademais,

da

se b

as

eia numa eterna necessidade do hom·em, se bem

que freqüentemente reprimida e mesmo anestésiada:

a de poder sentir sua c

as

a como o aposento de

um

edi

fício maior, ao qual pertença espiritualmente, e cujos

mor?dores lhe confirmem sua própria existência como

ser human

o,

atrav

és

da convivência e do trabalho com

êle. Uma união, baseada apenas na convergência de

opiniões e

as

pirações, não pode satisfazer a essa ne

c e s ~ d a somente uma união que se traduza em vida

comunitá

ri

a pode satisfazê-la. Não obstante, a orga

nização cooperat

ivi

sta da produção e a do consumo, se

paradamente, também se revelam insuficientes, pois

. somente compreendem o homem em um determinado

ponto e n

ão

na configuração de sua existência; e, de

vido ao seu caràter meramente parcial e funcional, são

igualmente incapazes de se converterem em células de

16

operativas de consumo só em formas totalmente buro

cratizadas e

as

de

d u ç ã o

em formas

t o t a l t ~ e n t e

especializadas; hoje, e ~ ~ s do que n u ~ ~ a . p o ~ e m

abra

nge

r a vida comumtana. a c ? n s ~ ~ e n c i a desse

fato que impulsiona p ~ a a

f

s m t ~ t l c a para a

cooperativa integral, cuja expenenc

1a

mais p o d ~ r o s a é

a colônia comunitária, na qual se forma uma vida em

comum baseada na união de produção e consumo, de

vendo entender-se por produção n ~ o apenas c ~ l t i ~ o

da terra , mas sua associação orgânica com a mdustna

e o artesanato.

As diversas experiências efetuadas na Europa e

na América, no curso de século e meio em que fun

daram colônias rurais· dêsse gênero, quer de o n e n t ~

ção comunista, quer c o o p e r a t i v i ~ t a em séntido mais

restrito, fracassaram em sua totahdade. Po.r f r ~ c a s s a -

das chamo não só aquelas emprêsas de colomzaçao .que,

após uma existência mais ou menos breve, se desinte

graram totalmente ou adotaram

Ufll

sistema

c a p i t 8 : 1 i ~ t a

bándeando-se para o lado contrário; nessa c ass1f1ca

ção devem ser incluídas,

i g u ~ l m e n t e

a q u e l a ~ que se

co

nservaram isoladamente, pois

a

tarefa genuma, rees

truturadora das novas comunidades rurais começa c ~ m

su

a

federaçao

isto é, com s

ua

união sob o ~ e s m o -

cípio que rege sua estrutura interna. A isso nao se

chegou quase em parte alguma. Tampouco se pode

falar de um êxito socialista nos casos em que, çomo

nos

dukhobors

do Canadá, existe uma união federa

tiva, pois a própria f e d e ~ a ç ã o se m ~ n t é m

i s o l a ~ a

e

pão

· exerce qualquer influência de atraçao e educaçao

s ~ b r e

a sociedade

em

geral; o cumprimento da .tarefa ~ 1 c o u

apenas no comêço. Notável é que Kropotkn:i co 1s1dere

êsses dois fatôres - o isolamento das coloruzaçoes en

tre si e seu isolamento

da

sociedade - como causas

de seu malôgro também em sentido

'Usual.

.

A tarefa socialista só será realizada na m e d 1 ~ a

em que a nova aldeia, que une

as fonna_s

de produç.ao

e enlaça a produção com o consumo, tiver um e f ~ 1 t o

reestruturador sôbre a sociedade urbana que se tornou

amorfa. Esse efeito só será decisivo, quando e sempre

que o desenvolvimento técnico ulterior facilitar e mesmo

161

exigir a descentralização

da

produção industrial.

No

entanto, a moderna colônia cooperativista já pode pos

isenção

de

ânímo e ponderação, cumpre dizer que êsse

é

o único ponto

do

mun

do

em que, apesar de tôdas as

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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suir, hoje,

uma

fôrça

de

irradiação para o interior

da

sociedade urbana. f preciso insistir, novamente, em

que se trata

de uma tendência construtiva e tópica.

Seria romântico e utópico querer dissolver as cidades,

assim como, antigamente, foi romântico e utópico que

rer dissolver as máquinas. Mas é construtivo e tópico

querer articular orgânicamente as cidades

em

estreita

conexão com o desenvolvimento técnico, e transfor

má-las em agregados de unidades menores. Em vários

países,

se começa, atualmente, a dar importantes

passos nesse sentido.

Até onde

me é

dado observar

na

História e no

presente, apenas a

uma

única experiência

de

vulto,

para a

cr

iação de uma cooperativa integral, se pode

atribuir certo êxito

m

sentido socialista. a colônia

cooperativa hebraica da Terra de Israel, com suas dife

rentes formas.

dúvida de que também ela se vê

a braços com

uma

profunda problemática em todos

os

três s etores:

de

relações internas,

de

federação e

de

influência sôbre a sociedade em geral. Não obstante,

ela comprovou sua existência em todos os três setores

e foi a única a consegui-lo.

Em

nenhuma parte,

na

,

história da colonização cooperativa, se encontra essa n-

cansável procura

de uma

forma

de

convivência adequa

da

a êsses grupos humanos, êsse contínuo experimen

tar, sacrificar-se, analisar criticamente e tornar a expe

rimentar, êsse constante brotar de novos ramos do

mesmo tronco, originados

do

mesmo impulso configu

rador.

E,

em nenhuma parte,

essa atitude vigilante

em face da própria problemática, essa contínua con

frontação com ela, essa vontade tenaz de discuti-la e

êsse esfôrço incessante

po

r superá-Ia, que apenas raras

vêzes se manifesta, exteriormente, por meio da palavra.

Aqui, e somente aqui a comunidade em formação ge

rou órgãos

para

o conhecimento de si mesma, órgãos

cujas percepções sempre a conduzem novamente

ao

desespêro. Mas é um desespêro que destrói uma espe

rança sentimental

para

fazer brotar

uma e s p e r ~ n ç a

mais

- elevada,

ou

seja, a esperança que só

g ~ r m i n a

no

solo

do

desespêro e que deixa

de

ser sentimehto

para

tor

oar-se unicamente obra. Por isso, com a mais absoluta

162

falhas parciais, se pode reconhecer um

não-malôgro

- e um não-malôgro certamente exemplar.

A que se atribui êsse fato? O melhor meio para

se conhecer o caráter peculiar dêssa obra de coloniza

ção

cooperativista

é

examinar as causas que a motiva

ram e vice-versa.

·U1J

de seus fatôres tem sido repetidamente assi

nalado: é que a comunidade rural judaica da Terra de

Jsrael deve seu nascimento não a uma· doutrina, mas a

uma

situação, à calamidade, à coerção, às exigências

da

situação. · Oõservou-se que,

na

criação

da kvutzá

(comuna

rural ,

a obra precedeu a ideologia. Isso é

indubitàvelmente verdadeiro, mas

é

preciso fazet uma

ressalva. O que naturalmente se pretendeu foi que

determinados problemas

do

trabalho e

da

organização

que a realidade palestinense

a p ~ e s e n t a : v a

aos coloniza

dores fôssem solucionados mediante a

sua

união. O

q u ~

um

conglomerado avulso

de

indivíduos teria sido

incapaz

de

superar - e que nem poderi a haver tentado

superar naquelas circunstâncias - foi arriscado, ten

tado e alcançado pela coletividade. Mas aquilo a que

se atribui o nome

de

ideologia - prefiro denominá-lo

com uma palavra mais antiga mas não antiquada: o

ideal -

não

era, ~ s m e n t e algo que se pudesse

acrescentar a posteriori e que, a posteriori justificasse

as realidades criadas.

No

espírito

das

primeiras comu

nas pàlestinenses, combinavam-se motivos espirituais

.aos motivos exigidos pelo momento, aos quais, por

ºvêzes, se

me

sclavam curiosamente a reéordação

do

artel

russo, impressões advindas

da

leitura dos chµmados so

cialistas utópicos e a repercussão apenas consciente das

doutrinas bíblicas de justiça social. O importante é

que

êsse motivo espiritual conservou, quase sem exce

ção,

um

caráter maleável, plástico. Havia muitos e

diferentes sonhos para o futuro.

À

frente, vislumbra

va-se urna nova forma de família, mais ampla. Os indi

víduos viam-se, a si mesmos, como sendo a vanguarda

do

movimento trabalhista e, inclusive, como á realiza

ção direta

do

socialismo, como o protótipo de uma nova

sociedade e se propunham como objetivo a criação

de

um nôvo homem e de

um

nôvo mundo. Nada disso,

163

porém, adquiriu a rigidez

de um

programa fixo e con

cluído. Não se trazia, como sempre ocorreu

na

história

formação interior não conseguiu

o m p a n h á

A

medida que Eretz Israel

se

conv

ert

1a de pais _de

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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das coo

per

ativas,

um

esquema que poderia ser

pr

eenchi

do

mas não modificado pelos dados concretos. ideal

produzia impulsos,

mas

não dogmas; estimulava, mas

não impunha.

Todavia, mais importante

do

que tudo isso foi o

fato de existir - por trás daque

la

situação palesti

nense que apresentava problemas

de trab

alho e

de

or

ganização - uma situação histórica, a situação de

um

povo atormentado por uma grande crise exterior e

que a e

la

respondeu com uma grande

tra

nsformação

interior. E essa situação histórica produziu uma elite:

a dos

halutzim

dos precursores, integrada por ele

mentos

de

tôdas as

cl

asses

do

povo e que ultrapassou

essas classes. A forma de vida adequada a essa elite

era

a

da

co

lônia comunitária, não apenas em

um

único

aspecto, mas em tôda a sua gama de matizes, desde a

estrutura social

de

ajuda mútua

à

comuna. Essa era

a fgrma mais apropriada

para

a execução das tarefas

halutzianas centrais e, concomitantemente, a for

ma

em que.o ideal de vida social podia realmente compe

netrar-se na vida nacional. Por seu passado histórico,

era

intdnsecamente impossível a essa elite e à sua for

ma de vida caírem na estática e no isolamento. Suas

tarefas, suas obras, seu espírito iniciador, convertiam

-nas em centros

de

atração e irradiação.

Em

todos os

pont

os, a halutziu t propendia

à

formação de uma co

munidade nacional nova, transformada;

no

momento

em que se bastasse a si mesma, teria renunciado a si

mesma. Era preciso que a colônia comunitária, como

célula nuclear da sociedade em formação, exercesse

uma profunda atração sôbre os homens que a ela se

entregar

am

de corpo e alma; e que

não

só educasse

par

a a autêntica vida comunitária aquêles que se incor- '

poravam, mas que, também, exerçesse

uma

influência

construtiva e estruturadora sôb

re

a periferia

da

socie

dade. A dinâmica histórica determinou o

cará

ter dinâ

mico das relações entre a colônia comunitária e a so

ciedade.

gsse caráter sofreu consideráveis prejuízos, quan

do o ritmo da crise exterior se acelerou e suas formas

de manifestação se tornaram tão radicais que' a

tr a

o

s-

164

aliâ

de ascensão , em um. dos

p a i s ~ s de

m u g r a ç a ~

surgia, ao lado da halutz1ut a u t ê n t 1 c ~ . uma

s e ~ i -

halutziut. À

fôrça de atração

da

coloma comumtá

ria não diminuiu

mas

s

ua

fôrça educativa não estava

preparada para o' enorme fluxo de

ma

terial

h u ~ a n

de

difere

nte

formação e êste conseguiu, algumas vezes,

influir também sôbre a coloração

da

comunidade. E,

simultâneamente, operou-se

uma

t r a ~ s f o r m ~ ç ã o nas re

lações com a sociedade em g e r ~ l . A

m e d i

que esta

se modificava em sua estrutura interna, reduzia-se tam

bém, cada vez mais, a influência transformadora

da

s

células geradoras, sôbre as quais começou a exercer

uma influência nem sempre imediatamente reconhecí

vel

mas que, hoje, se evidencia claramente, pois

a p o d ~ -

rou-se dos elementos essenciais das mesmas e os a

ss1-

niilou.

Na vida dos povos e, particularmente, na vida

dos povos que se

defr<?ntam

com

u m ~

cri

se h i s t ó r ~ c a

é fundamentalmente importante º.surgimento a

.e.

ehtes

autênticas, isto é, não usurpatónas, qualificadas

para exercer uma função central; é preciso que. essas

elites permaneçam fiéis à sua missão frente à

s o c i e d ~ d e

e q

ue

não substituam as. relações coo; ela por relaçoes

consigo mesmas e, finalmente, que saibam completar-se

e renovar-se de modo apropriado ~ u a tarefa.

~ s t e

último ponto implica em duas condiçoes: 9ue as

e b t ~ s

possam influir sôbre seus sucessores naturais,

de

manei

ra que êstes prossigam com

sua obra de m ~ d ? .

adequa

do,

0

que sempre constit4i .

um

pr_?blema dihcil e que,

mediante a eleição e a preparaçao

a ~ r t a . d a ~ o r m e m

umá descendência espiritual

na

qual

se1a

m mclu

1d

os to

dos os elementos habilitados e, se possível, nenhum

outro ou, · quando isto

f

ôr

i n e v i t ~ u e

procure

uma compensação mediante a d e v t d ~

~ f l u 7 n c 1 ~

edu

cativa.

o

destino histórico

da

colomzaçao

1u

da1ca

na

Palestina deu vida à elite halutziana que encontrou

na

·colônia comunitária seu núcleo social. E, com a che

gada dos semi-halutzim   outra on

da do

mesmo ,

tino histórico introduziu nesta elite uma problemat1ca,

ou

melhor,

z com

qu

e desabrochasse nela uma

pr ·

blemática latente que, até agora, ainda

não

consegmu

65

ser dominada e

à

qual será preciso dominar para atin

gir a próxima etapa no caminho de sua tarefa. A tensão

A . im de visualizar a causa do não-malôgro das

colônias comunitárias judaicas

da

Palestina, parti do

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7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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interna entre aquêles que assumem tôda a responsabiJ

bitidade pela comunidade e aquêles que a ela se esqui

vam de tôdas as maneiras, só pode ser superada a par

tir

do interior da comunidade.

O ponto em que irrompe a problemática não é a

relação com a idéia, nem com a comunidade e, tam

pouco, com o trabalho;

em

todos êsses aspectos, os

semi halutzim ·dominam-se, esforçam-se e cumprem,

bem ou mal, aquilo que dêles se espera. O ponto em

que a problemática se manifesta, o ponto em que se

p r o ~ u z o

: a f r o u x a m ~ n t o ,

é a relação com o compa

~ e i r ~ . Nao me refiro, absolutamente, à questão tão

discutida a seu tempo, da intimidade da pequena"

kvutzá

e da perda dessa intimidade na "grande"; refiro

-me a algo que nada tem a ver com a extensão da co

munidade. Não se trata de intimidade - esta se esta

belece deixa de estabelecer-se, independentemente

da amphtude clo grupo; trata-se da receptividade. Uma

comunidade autêntica não precisa ser composta de ho

mens que se façam constantemente companhia; deve

ser constituída de homens que, justamente como com

panheiros, sejam mutuamente receptivos e bem dispos

tos. Comunidade autêntica

é

aquela que, em todos os

aspectos de sua existência, possui potencialmente o

ca-

ráter

de

comunidade. Portanto, as questões sociais in

t e r n ~ s de uma c o m u n i ~ B ; < l e são, na realidade, questões

relativas

à

sua autent1c1dade e, conseqüentemente, à

sua fôrça interna e à sua consistência. Os homens que

criaram a colônia comunitária judaica na Palestina ti

nham um profundo conhecimento instintivo dêsse fato·

A • •  L.

1

esse mstmto parece não estar mais tao desperto como

antes. No entanto, também nesse terreno tão impor

tante, encontramos aquêle auto-exame e autocrítica

coletivos tão inexoràvelmente penetrantes, a que

á

me referi. Mas,

para

compreendê-los e apreciá-los em

~ ~ u

justo valor, é preciso vê-los conjugados à _relação

mcómparàvelmente positiva, quase religiosa dêsses ho

mens, com a essência mais íntima, mais genuína, de

sua colônia. Ambos sãG aspectos do mesmo mund0

psíquic0 e nenhum dêles pode ser compreendido sepa

radamente.

66

caráter não doutrinário de sua formação. Ssse caráter

· também determinou, substancialmente, o seu desenvol

vimento.

Em

absoluta liberdade, mutiplicaram-se re

petidamente novas formas que, por sua vez, deram

origem a novas formas intermediárias, tôdas elas nas

cidas livremente

do

desdobramento de necessidades so

ciais e psíquicas particulares, adquirindo tôdas elas li -

vremente, desde o início,

sua

ideologia própria. Cada

uma delas aliciou seus adeptos, propagou-se, expandiu

-se e formou sua área de domínio mais ou menos ex

tensa, sempre em absoluta liberdade. Os partidários

das diferentes formas pronunciaram-se cada qual a fa·

vor

da

sua, as vantagens e defeitos de cada uma foram

comentados com a mais intensiva tolerância mútua,

mas tudo isso, naturalmente, no terreno da causa co

mum e

da

tarefa comum em que cada uma das formas

reconhecia a relativa

justificaçãO' das demais

em

sua

função especial. :st e ·é um fato único e sem paralelos

na

história das colonizações cooperativas. E, ademais,

ao que me conste, em nenhuma outra parte da h i s ~ ó r i

do movimento socialista observou-se, como aqw, o

princípio

da

integração

em

meio ao processo da dife

renciação.

As diversas formas e formas intermediárias, que

foram surgindo em diferentes épocas e situações, repre

sentam estruturas societárias diferentes e os homens

que as organizavam tinham, na inaioria das vêzes, tanta

consciência disso como das necessidades sociais e psí

quicas que os impulsionavam. Não se deram conta,

com a mesma clai:eza de fato, que as diversas formas

correspondiam a diferentes tipos de homens e que, por

conseguinte, assim como a forma origínal de kvutzá

propiciou o desdobramento de novas formas, também

do tipo original do halutz se desprenderam novos tipos,

cada qual com seu modo de ser peculiar e seu desejo

de realizar-se em

um

modo de vida especial. :: ver

dade que, muitas vêzes, foram os fatôres econômicos

e outros de ordem externa que induziram determinados

homens a afastar-se de uma forma

para

aderir a outra;

mas, substancialmente, cada tipo procurou nessa for

ma determinada a realização social de sua peculia-

  67

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a formação de uma communitas communitatum isto é:

para a formação de uma sociedade reestruturada.

redução do Estado à função de unificador, ou absorção

da sociedade amorfa pelo Estado todo-poderoso; plura

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u disse que, no desenvolvimento dêsse temerário

empreendimento do povo judeu, vejo um não-malôgro

exemplar. Não posso falar em um êxito exemplar.

Muito

ia l

ta ainda para que chegue a sê-lo. Mas

é

assim nesse ritmo, com êsses reveses, decepções e no

vas audácias que se operam

as

verdadeiras transfor

mações no mundo do Homem.

Mas, então, é lícito dizer que êsse não-malôgro seja

exemplar? Eu mesmo indiquei que foram circunstân

ciais e condições muito especiais que conduziram a essa

situação. E o que disse da kvutzá um seu represen

tante, que ela é uma criação tipicamente palestinense,

pode afirmar-se de tôdas as suas formas.

Não obstante, quando uma experiência obteve um

certo êxito em determinadas circunstâncias e condicões,

pode ser igualmente tentada, quando as drcunstâncias

e condições forem menos favoráveis, submetida a alte-

rações. ·

fora de dúvida que a última Grande Guerra

constituiu o prelúdio da crise mundial. Esta, - após

a turbulenta pausa que não pode ser de longa dura

ção - provàvelmente, irromperá de início nos peque

nos países ocidentais, cuja arruinada economia só aoa

rentemente poderá ser restaurada.

As

pequenas nações

defrontar-se-ão diretamente com a necessidade de so

cializações radicais, sobretudo da expropriação do solo.

Tornar-se-á então de uma importância decisiva saber

quem será o sujeito real da economia transformada

e

o proprietário dos meios sociais de produção: o poder

central de

um

Estado totalmente centralizado, ou as

unidades sociais dos trabalhadores rurais e urbanos que

vivam e produzam

em

conjunto, através de suas cor- .

porações representativas, de sorte que

os

órgãos trans

formados do Estado não tenham que desempenhar ou

tras funções senão as de conciliação e administração?.

Dessas decisões,

às

quais logo se seguirão outras aná

logas nas nações maiores, dependerá, em grande parte,

a formação de uma nova sociedade e de uma nova cul

tura. Está

em

jôgo a decisão sôbre a base: reestrutu

ração da sociedade como federação de federações e

170

lismo socialista ou unitarismo socialista ; a justa pro

porção, diàriamente adaptada à condições v a r i á v e i ~

entre a liberdade dos grupos e a ordem geral, ou ordem

absoluta, imposta por tempo i n d e f i n i d o ~ com a promes

sa de uma era de liberdade que se supoe deverá sobre

vir por si mesma , posteriormente. Enquan_to .ª pró-.

pria Rússia não tiver. sofri?o t r ~ f o r m a ç a o mterna

substancial, - e h01e é imposs1vel vislumbrar quando

e como ela se dará - temos de denominar com o

po deroso nome de

o s ~ o u

a um dos d?is pólos

socialismo · entre os quais deverá ser feita a opçao.

Apesar tudo,

a t r e v o ~ m e

a denominar o outro pólo

de Jerusalém'

 

171

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fícil de ser compreendida; cçnsiderado sob o prisma· do

espírito,

é

uma encarnação não menos difícil de se

compreender e, possivelmente, a única; contemplada de

assim como o trabalho técnico do homem se distinguia,

~ o r seu caráter, de tôdas .as obras análogas dos animais.

Também os macacos se servem dos bastões que en

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ambos

os

lados,

é

uma existência que se encontra subs

tancial e constantemente ameaçada por perigos internos

e externos, e exposta crises cada vez mais profundas.

Durante sua passagem pelo caminho terreno, o homem

foi aumentando·

em ritmo

crescente o que se costuma

denominar de seu poder sôbre a natureza, e conduziu,

de trfünfo

em

triunfo, o que se deliberou denominar

de a criação de seu espírito. Entretanto, enquanto pas

sava por crise após crise, começou

a

sentir, cada vez

mais profundamente, a fragilidade de tôda a sua gran

deza e, em horas de clarividência, conseguiu entender

que, apesar de tudo o que se costuma chamar de pro

gresso

da

humanida,de, não caminha absolutamente por

uma estrada aplanada, mas é obrigado a trilhar, pé

ante pé, uma estreita cumeada entre abismos. Quanto

mais grave fôr a crise, tanto mais sério e consciente da

responsabilidade. é o conhecimento que de nós se exige

pois, embora o importante seja o feito, somente o feito

esclarecido no conhecimento contribuirá para superar a

crise. Na época de uma grande crise, não basta con

templar retrospectivamente o passadó próximo para

aproximar de uma solução o enigma presente; é preciso

confrontar

a

fase do caminho atingida pelo homem,

com sua fase inicial, sempre que seja possível repre

sentá-la. O ponto essencial, em tudo aquilo que ajudou

o homem a sair, por assim dizer, da natureza e a man

ter-se frente a ela, apesar de sua fragilidade como ente

natural - ainda mais essencial do que fazer um mun

do técnico de .coisas especlficamente configuradas -

foi

o fato de haver-se unido aos seus .semelhantes para

a defesa e a caça, para a colheita e o trabalho; e isso·

de modo a que - até certo ponto desde o princípio

e,

posteriormente, em escala crescente - passasse a

considerar aos demais, a cada indivíduo,

cotr.ío

sêres

·independentes em relação· a êle, entendendo-se assim

com êles, dirigindo-lhes a palavra e deixando que lhe

dirigissem a palavra. Essa formação de

um

mundo

social através .de pessoas ao 1. llesmo teinpo depen

dentes e índependentes entre si, distinguia-se, por sua

natureza, de tôdas

as

emprêsas similares dos animais,

74

contram, utilizando-os como alavancas, escavadeiras

ou armas, mas isso acontece de modo puramente oca

sional, pois não são ·capazes de conceber e

f b r i c ~ r

uma ferramenta como um objeto destinado a determi-

nados usos e não a outros, e que seja

de

emprêgo

permanente. E, não obstante, muitos insetos.

vivei:n.

.sociedades organizadas, observando uma estrita

d1v1sao

de trabalho. Mas é justamente essa divisão de trabalho

o que determina suas relações mútuas. São todos êles,

até certo ponto, instrumentos, mas é a própria sociedade

que dêles se serve para seus fins instintivos . Falta a

improvisação, o grau, mesmo que modesto, de indepen

dência mútua, a possibilidade de se considerarem sem

pre

livres entre

si

e, conseqüentemente,

a

relação

de pessoa a pessoa. Assim como a criação t é ~ n i c a

específ ib do homem, significa conferir autonomia às

coisas assim também sua criação social específica sig

nifica'conferir autonomia aos sêres de sua espécie. A

partir dessa peculiaridade exclusiva

do

homem, deve-se

compreender seu caminho com todos, os. seus altos e

baixos e, conseqüentemente,. nosso propno ponto nes

se caminho, nossa grande cnse particular.

No

atual ·nível evolutivo

do

gênero humano, pre

valece essa linha, a linha de formação e transformação

de comunidades através de uma crescente autonomia

pessoal, de seu mútuo r e c o n h e c i m e n t ~ e. da colaboração

sôbre essa base. Os dois passos mais importantes da

dos pelo homem das eras primitiv.as em direção à socie-

. dade humana podem ser, até certo ponto, determinados.

Um dêles foi o fato de, dentro de cada clã, através de

uma maneira muito primitiva de divisão do trabalho,

as

pessoas haverem sido reconhecidas e u t i l i z a d ~ s s e ~

gundo a aptidão especial de cada uma, o que fm con

ferindo ao

clã

um crescente caráter de união, sempre

renovada, dos representantes de diferentes funções. O

segundo foi o fato de diversos clãs se unirem, sob

determinadas condições e necessidades, para procurar

alimentos, e empreender expedições guerreiras

eµi

con

junto, condensando sua ajuda ·mútua em costumes e

leis cada vez mais fixas e de - assim como anterior-

  75

j

mente entre as pessoas - haver sido discernida e

reconhecid

a,

entre as comunidades, uma diferença de

caráter e de função. Desde então, sempre que se de

menos do que nas totalitári

as

, em seu próprio princí

pio. Em tôda parte, só passou ~ o r _ t a r a o ~ g a n i z a -

ção completa das fôrças, a observanc1a m d 1 s c u t l v das

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senvolveu uma comunidade humana, foi sôbre as mes

mas bases da autonomia funcional,

do

reconhecimento

mútuo e da mútua responsabilidade, individual e cole

ti

va. E verdade que surgiram centros de poder de di

ferentes tip

os

que organizaram e asseguraram a ordem

e a segurança comuns, mas a esfera política em sentido .

mais estrito - o Estado,

com

seu poder policial e sua

burocracia - permaneceu, frente

à

sociedade articu

lada de modo orgânico-funcional,

com

o uma sociedade

organizada constituída de diversas sociedades, cujos

membros lutavam, lado a lado, e ajudavam-se mUtua

mente. . Em cada uma das pequenas e grandes agru

pações que constituíam a grande sqciedade, em cada

vma dessas comunidades e a s s o c i a ç õ e ~ : a pessoa hu

mana, apesar de tôdas

as

dificuldades conflitos, se.n

tia-se pertencer ao seu clã, vendo-se afirmada e confir

mada em sua própria autonomia e responsabilidade

funcionais. .

À medida gue o princípio polí

ti

co centralis ta sub

jugava o social descentralista, a situação foi-se modifi

cando. Todavia, o aspecto decisivo não foi o fato de o

Estado, especialmente em suas formas mais ou menos

totalitárias, haver debilitado e reprimido cada vez mais

as federações livres, mas o fato de o

prin ípio

político

haver penetrado com seu cunho centralista nas f e d e ~

rações, transformando sua estrutura ·e sua ·vida interna

e politizando assim, cada vez mais, a própria sociedade.

O fato de a sociedade se haver acomodado de tal for

ma ao Estado foi favorecido pela circunstância de -

em conseqüência

do

desenvolvimento da economia mo-.

derna com seu caos organizado e da luta de todos con

tra todo s pelo acesso às matérias-primas e um lugar

muito maior no mercado - haverem surgido, em lugar

dos antigos antagonismos entre os Estados,

a n t a

g o n ~ s

mos entre as próprias sociedades. A sociedade indivi

dual que

já não se sentia ameaçada tão somente pelos

vizinhos, mas também pelo estado ge

ra1

da

si

tuação,

não soube encontrar outra salvação senão a de subme

ter-se, totalmente, ao princípio do poder centralizado;

ela o converteu nas formas democráticas não muito

.

176

palavras de ordem, a imposição dos nterêsses r ~ a 1 s

ou

supostos do Estado. sôbre tôda a

s o c 1 e d ~ d e .

E . sso se

desenrola paralelamente a um desenvolvimento interno.

No imenso caos da vida moderna,

dis

simulado apenas

p

elo

perfeito funcionamento da

m á q ~ i

econômica e

estatal, o indivíduo une-se ao coletivo. A pequena

comunidade em que êle se achava incluído não pode

ajudá-

lo. Som

ente as g r a n ~ e s comunid

a.des

,

seu ver,

podem fazê-

lo

e

êle

~ r ~ 1 t e

com

s a t 1 s f a ç a o ~

que o

privem de sua responsabilidade pessoal; o que e \ ~ quer

é apenas obedecer. E assim perde-se o bem i_:?atS pr

ciso a vida entre homem e homem;

as

conexoes auto

n o ~ a

ficam d

es

tituídas de importância, definham as

relações pesoais, o próprio espírito se assalaria como

funcionário. A pessoa humana converte-se de membro

de uma corporação comunitária em engrenagem da má

quina coletiva . Assim como o homem, na técnica

degenerada, está a ponto de perder o senso

do

r a b a l h ~

e da medida, êle também perde, na sociedade degene

rada o senso de comunidade e isso, justamente quando

tem

a

ilusão de estar vivendo completamente entregue

à

sua comunidade.

Uma crise dêsse gênero não pode ser supera.da

mediante a aspiração de retornar a um ponto n t ~ n o r

do caminho. mas somente quando

se

procura dommar,

sem q u a l q u ~ r restriçã

o,

a problemática

p r e s

. Não

podemos voltar atrás, só

no

s é dado prosseguir adiante.

Mas só podemos prosseguir adiante quando sabemos

para onde nos dirigimos.

Deve

mos

começar, e isso é

evid

ente, pelo estabe

lecimento de uma paz vital que arrebate . ao princípio

político a soberania sôbre o princípio socia

l.

E, uma

vez mais, êss-e primeiro objetivo não pode ser alcança

do mediante a ar

te da

o r g a n i ~ a ç ã o

política, mas so

mente através da intensa vontade dos povos de explo

rar e adm inistrar, conjuntamente o planêta Terra,

segundo os territórios, jazidas de; matéria-pri

ma

e po

pulações. Contudo, justamente daí surge a ameaça

d_ um perigo maior que todos os anteriores: o de um

centralismo planetário ilimitado que devore a tôda a

77

comunidade livre. Tudo depende de que o trabalho

de

u l ~ i v o

da terra não seja entregue ao princípio

,mente falsa, uma comunidade que não se edificasse

Sôbre

uma verdadeira vida comunitária de grupos maio

 

ou menores, que vivem ou trabalham em conjunto

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polític

o

O cultivo em comum do solo só é

p ~ s í v l

quando

é socialista. Mas se a questão referente ao destino da

humanidade atual é saber se esta poderá decidir-se e

c; :ducar-se para um administração socialista em comum,

o ponto essencial dessa questão concerne ao próprio

.socialismo: como será o socialismo, sob cujo signo se

conseguirá - se se conseguir - o empreendimento

em

comum por parte da humanidade?

A ambigüidade dos conceitos utilizados é maior

aqui do

que em qualquer outra parte. Diz-se, por·

exemplo, que o socialismo é a transição do poder sôbre

os meios

de

produção, das mãos dos empresários para

as mãos da coletividade, mas tudo

e p ~ n e

do que se

entende por coletividade. Se ·é o que costumamos de

 nominar de Estado, isto

é,

uma institui9ão em que

uma multidão essencialmente inarticulada deixa que

seus interêsses sejam conduzidos por uma chamada re -

presentação, então essa circunstância se terá ;modifica

do numa sociedade socialista, sobretudo porque os ope

rários se sentirão representados pelos titulares do poder

sôbre os meios de produção.. Mas o que

é

representa

ção? Acaso a maior falha d sociedade moderna não

consiste justamente em nos deixarmos representar em

demasia? E, numa sociedadé socialista , o povo não

se deixará acaso representar, tanto política como eco

nômicamente, de modo a imperar quase ilimitado o

princípio de se. deixar representar e, com êle, a acu

mulação' quase ilimitada do poder central? Entretanto,

quanto mais um grupo humano se deixa representar na

decisão sôbre questões comuns, sobretudo por repre

sentantes alheios a êle, tanto mais carecerá de vida

comunitária e de conteúdo comunitário. A comunidade

- não a primitiva, mas a comunidade possível e ade

quada aos homens de hoje - manifesta-se sobretudo

na comum manipulação ativa do coletivo, sem o que :

não pode subsistir.

A esperança primordiat' de tôda a História é a

formação

de

uma autêntjca comunidade do gênero hu

mano,

ou

seja, uma comunidade de

conteúdo absoluta-

mente comunitário

Seria fictícia, ilusória e profunda-

  78

e com base em suas relações mútuas. Tudo· depende,

portanto, de que a

co

letividade para cujas mãos pas

sar o poder sôbre

os

meios de ·produção possibilite e

favoreça, por meio de sua estrutura e de suas institui

ções, a verdadeira vida de comunidade dos diversos

grupos, até que êstes se convertam nos autênticos su

jeitos do processo de produção; de que a multidão

assim articulada e seus membros (as comunas de

diversos tipos) sejam tão poderosos quanto o permitam

os empreendimentos econômicos comuns da humanida

de; e de que êsse deixar-se representar centralista não

ultrapasse, jamais, o ponto que fôr imperativamente

exigido pela nova ordem. A questão referente ao desti

no interno não tem a forma de um dilema fundamental·

ela consiste em traçar uma linha de demarcação j u s t ~

- que deverá ser ..continuamente retraçada - a linha

que estabelecerá os múltiplos limites entre os setores

que devem ser necessàriamente centralizad.os.e os que

podem ser deixados livres, entre o índice de govêrno

e o índice de autonomia, entre a lei de unidade e a

exigência

d

comunidade. O incessante exame das su

cessivas situações, desde a exigência d comunidade, que

es

continuamente expost à violação por parte do

poder central, vigilância sôbre a verdade dos limites

que varia de acôrdo com a mutabilidade das condições

históricas, seria confiado à consciência espiritual da

humanidade, a uma instfincia peculiaríssima, à repre

sentação incorruptível d idéia viva. Uma nova forma

de quimera aguarda aqui aos vigilantes platônicos.

Falo em representação da idéia. Não

em

um prin

cípio rígido, mas na figura viva que quer tornar-se tan

gível justamente n matéria desta vida terrena. Tam

pouco, a comunidade deve converter,.se ein dogma;

também ela, quando surgir, deve satisfazer, não a um

conceito, mas a uma situação. A concretização da

idéia de comunidade, como a concretização de qual

quer outra idéia, não terá uma validade universal e

permanente; ela será sempre, apenas, um resposta do

momento a um questão do momento.

179

Devido a êsse seu sentido vital, é precisó afastar

da idéia de comunidade todo sentimentali.smo, todo'

exagêro e exaltação. A comunidade nunca é estado qe

to, São Francisco, concatenou a união com tôdas

as

criaturas.

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ânimo e, mesmo quando· é sentimento, ela é sempre

sentimento

de

uma

organização

Comunidade é a or

ganização interior de uma vida comum que conhece

e abarca o "cálculo" mesquinho, a "casualidade" re

belde, a "preocupação" ameaçadora. E comunidade

de necessidades e, somente a partir daí, comunidade de

espírito; é comunidade de esforços e, somente a par

ti

.r daí, comunidade de salvação. Mesmo aquela co

munidade - a "religiosa" - que chama senhor ao

espírito e salvação ao seu objeto, só é comunidade

quando serve ao seu senhor na realidade simples, co

mum, corriqueira,

na

realidade que .ela não escolheu,

mas que lhe foi cabalmente imposta; somente quando

abre o caminho para a sua promissão, através das bre

nhas dessa hora impraticável. O que vale não são cer- .

tamente

as

"obras", mas a obra da fé. A comunidade

da

só o é verdadeiramente, quando

é

comunidade de

trabalho.

Creio que a verdadeira essência da comunidade

deve ser procurada no fato - notório ou ignorado __

de ela possuir um centro. A gênese

da

com.unidade só

pode ser compreendida, quando se considera que seus

membros têm uma relação comum com o centro e que

essa relação

é

superior a tôdas as demais: o círculo

é

traçado pelos raios, não pelos pontos periféricos. E,

efetivamente, só 'se pode reconhecer a origem do centro

quando se reconhece sua transparência para o divino.

Todavia, quanto mais tecreno, mais

c

riatura " e r r a i -

gado se apresenta o centro, tanto roais verdadeiro e

transparente êle é. O fator "socia

l

é inerente a êsse

aspecto, não como setor do mesmo, mas como o mun

do da comprovação: aquêle pelo qual se manifesta a

verdade do centro. Para

os

primitivos cristãos não

bastava a comuna distanciada do mundo ou acima dêle;

dirigiam-se, portanto, ao deserto para ter comunidade

apenas com Deus e ficarem isolados do mundo per

turbador. Foi-lhes mostrado, entretanto, que Deus não

queria que o homem ficasse a sós com êle. E, acima

da santa impotência da solidão, cresceu a ordem frater

nal. Finalmente, ultrapassando o domínio

.de

São Ben.:.

18

Entretanto, não é apsolutamente necessário que

uma comunidade seja "fundada". Lá, onde o destino

histórico colocou um grupo humano em um espaço

comum de natureza e vida, houve lugar para a formação

de uma autêntica comuna. E esta não precisou do altar

de um deus da cidade, visto como os cidadãos sabiam

que se encontravam ao redor do inominável e unid

os

por êle. Pôra-lhes concedida uma

c o n v i v ê n c

vivifi

cante e continuamente renovada, que só

dese1ava

ser

desenvolvida

na

contigüidade de tôdas as relações. Os

assuntos comuns eram deliberados e decididos em co

mum - nos casos mais felizes,

nãQ

por representantes,

mas na assembléia da praça do mercado - e a soli

dariedade experimentada em público irradiava-se em

todos os contatos pessoais. . Podia surgir a ameaça do

isolamento; o espírito - que

a q u ~

prosperava c?mo

em nenhuma outra parte - o dominava e, com vistas

ao povo, à humanidade e ao cosmo, abria grandes ja

nelas nos muros estreitos.

Há quem replique,

c o n ~ u d o

que tudo

i s ~ o p a s s o t ~

para não mais voltar. A cidade ~ o d e r n nao possui

uma ágora e o homem moderno nao tem tempo para

deliberações das quais se encarregam

os

representantes

eleitos. A convivência concreta foi desmantelada pela

pressão da quantidade e

pel8:

forma de orga;11ização.

O trabalho nos vincula a um tipo de pessoas düerentes

daquelas

às

quais nos vincula o ócio; o mesmo ocorre

com o esporte e a política; o dia e alma estão ~ i d a -

mente separados. · As

v i n c u ~ a ç õ e s

sao a p e n ~ s o b ~ e t i v a s

pr9cura-se administrar, con uµtamen.te,

os

. ~ n t e r ~ s ~ . ~ s e

tendências comuns e não ha lugar para a contigwda

de". A coletividade não é uma espécie de reunião

dável, mas uma grande federação de ~ ô r ç a s ec,an?m

tcas

ou políticas, pouco fecunda para o o

?

romant1co da

imaginacão, mas

c o m p r e e n s í v ~ l n u m e r i ~ a ~ ~ n t e .

Ela

se manifesta em ações e efeitos e o md1v1duo pode

pertencer a ela sem intimidades, mas com a consciên

cia de sua contribuição energética. As "ligas" que

opõem resistência à evolução inevitável terão que desa

parecer. i: verdade que ainda existe a família q u ~

como comunidade doméstica, parece exigir e garantir

181

um mínimo de

conv1vencia.

Mas também ela sairá

d crise em que se encontra, em forma de federação,

visando uma finalida.de ou, então, desaparecerá.

roblema que, como já dissemos, não deve ser tra;

um P

pri·ncípio mas - como tudo o que afeta a

tado como ',. · d

entre a ideta e a reahdade -

com

o gran e

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Perante essa mescla de conhecimentos verdadeiros

e conclusões errôneas, pronuncio-me a favor do renas

cimento

da

comuna. Renascimento, não recuperação.

e

fato, não se pode recuperá-la, embora me pareça

que todo sôpro de fraternidade nos edifícios de aparta

mentos, tôda manifestação de calorosa camaradagem

durante

as

pausas da fábrica altamente raciona

li.zada

,

signifiquem um crescimento de comunitariedade no mun

qo

e,

em

bora

às

vêzes me

pa

reça mais real uma comu

nidade rural do que um parlamento, a comuna não pode

se

r recuperada. Contudo, parece-me que a sorte

do

gênero humano depende da possibilidade de que · a

comuna renasça das águas e do espírito

da

immente

transformação da sociedade. Um ente comunitário

orgânico - e somente êstes podem formar uma huma

nidade configurada e articulada - jamais se integrará

à base de indivíduos, mas de comunidades pequenas

e minúsculas: uma nação é comunidade na medida em

que possui conteúdo comunitário. Se a familia não sair

purificada e remoçada da crise que hoje parece ruína,

a organização estatal nada mais será do que uma má

quina que

se

alimentará com os corpos das gerações.

A comuna

que

assim poderia renovar-se existe apenas

como resíduo. Quando falo de seu renascimento, não

penso numa situação mundial perdurável, mas numa

situação modificada. Quando falo das novas comunas

- pode-se também denominá-las: as novas cooperati

vas - refiro-me aos sujeitos

da

economia transforma

da, às coletividades para cujas mãos deverá passar o

poder sôbre os meios de produção. Uma vez mais· tudo

depende de que estejam prontas, preparadas.

Que qu antidade de autonomia econômica e polí

tica - visto como serão necessàriamente unidades ·

econômicas e políticas ao mesmo tempo - deverá

ser-lhes concedida, é uma questão técnica que dever

ser constantemente formulada e solucionada, mas for

mulada e solucionada a partir do conhecimento (

está acima ela técnica) de que a fôrça interna de uma

comun

id

ade depende de sua fqrça externa. As rela

ções entre centralismo e descentralização constituem

82

0

t r a n s ~ ~ a espírito, sopesando, incansàvelmente, a propor

ta o adequada, Centralização sim, mas nunca além do

ç ~ ~

0

necessário para as condições

de

lugar e te?1Pº·

. a i n s t ã n c

chamada a traçar e retraçar

as

. da demarcação permanecer

al

erta em s ~ a c o n s c 1 . e ~

. a distribuição entre a base e o vértice da pira-

cia, . d b . sm

mide será totalmente diferente o

q.ue

e OJe, . ~ ~ · . o

nos Estados que se chamam comunistas, ou. sei a. que

iram·

à

comunida

de.

Na estrutura da sociedade que

asp , . d en

imagino, deverá haver tambem um sistema e repr

es

. -

tação; êle não

se

traduzirá, entretanto, como os a t u a i ~

em pseudo-representantes das massas amorfas de elei

tores, e sim nos representantes acreditados do

t r a b a l ~ o

das comunidades produtoras. Os representa?os t a r ~ o

unidos aos seus representan.t

es,

não como boie em vazia

abstração, através da fraseologia de um prog:ama par

tidário mas, concretainente, através da atuaçao comum

e

da

experiência comum

Contudo, o ponto essencial é que o processo d • ~ ·

formação de comunidades persista nas r e l a ~ õ e s d a ~

comunidades entre si. Somente uma comunidade de

comunidades poderá ser qualificada como ente comu

nitário.

O esbôço que aqui desenhei em rápidos. t r ~ ç o s de:

verá juntar-se aos autos

do

"socialismo utópico" ~ t e

que suas fôlhas sejam abertas pela tempestade. Assim

como não creio na "incubação" da nova estrutura de

Marx, tampouco acredito na partenogêne.se de

B a ~ u

n i n

partindo do seio da

r e v o l u ç ã ~ .

Todavia, a c r ~ d no

encontro

da

iµiagem e do destmo na hora plástica.

83

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XII. NTR A SOCIEDADE E O ESTADO

Na nova -análise social , publicada

em

fins de

1938 por Bertrand Russel, sob o título Poder , o po-

.der é descrito como sendo a noção básica da sociolo

gia , no mesmo sentido em que a energia é a noção

básica da física. Est a ousada tese do importante lógico,

que lembra o ensinamento de Nietzsche, ao

qual

com

bate, é um exemplo característico de que, ainda

em

nossos dias, após um século de sociologia científica, o

princípio soCial é confundido com o político. Sempre

se soube que, em tôdas

as

formações sociais, é encon

trável uma determinada dose de poder, autoridade e

preferência, dose esta que é um meio indispensável

à

85

sua sobrevivência; mas em nenhuma formação social

não-política tal elemento é o fundamental. Para tôdas

e

las,

porém, é fundamental que

os

homens se encon

camente, .a qualquer cidadão part1c1par do conselho,

ao lado de sua atividade particular e comercial, podia

naturalmente ser derivada de uma evolução da divisão

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trem num estado de intervinculação ou que se unam

entre si e, ass im, formando uma união já existente ou

a ser fundada, c

ri

em uma sociedade. Não se trata de

substituir o elemento primário por outro secundári

o,

a

associação pela subordinação, a convivência pelo do

mínio e, falando esquemàticamente: a estrutura do ho

rizontal pela do vertical.

É

com razão que o sociólogo

americano Maclver declara que equiparar o soci

al

com o político, significa tornar-se culpado do mais

grosseiro de todos os equívocos, o que impede qualquer

compreensão, tanto da sociedade quanto dõ Estado  .

É antiga es ta deficiente diferenciação entre os dois

princípios,

so

b cuja cooperação mais ou menos proble

mática está colocado todo o convívio humano. Um

cláss

ico

exemplo de sua confusão, .sem dúvida de es

pécie contraposta, é o famoso trecho da Republica em

que Platão deriva a criação da polis antes .de tudo,

do· ato social primevo, que

é

da divisão de trabalho

e, depois, de modo quase imperceptível, acrescenta

.aos outros misteres que se fizeram necessários o do

g

ua rdião , do

s e n h o ~

com o que, de súbito, a

emi

nente bipartição política da população em mandal}tes e

mandados, dom inantes e dominados, os que dispõe de

meios coercitivos e os submetidos a

êles, ass

um iu o

inofensivo caráter de mera divisão de trabalho. Pre-

cisamos observar atentamente como Platão procede

aqu

i. :Ble

faz com que o seu Sócrates, no colóqu io,

proponha a tarefa de examinar mentalmente uma polis

cm formação . Cóm isso, os leitores do diálogo pen

savam

naturalmente num Estado do tipo da Atenas

contemporânea, tal como esta emergira

da

reforma de

·Clístenes, ou ·seja, numa comunidade em que a diféren

ça governantes e governados mal era perceptível

ao cidadão livre, pois, no quadro de cidadãos em cons

tante alteração dêstes parà aquêles, os representados

se

faziam . epresentantes, e a elegibilidade

e

a possibilida

de de destituição dos funcionários não permitiam o

surgimento da burocracia sufocante. Esta comunidade,

na qual a

for.t

e base da escravidão possibilitava, bà

si

-

186

de trabalho, na qual o ofício político permanecia fora

da especialização. Entretanto, a classe, ou melhor, a

casta dos guardiães, que Platão introduz

no

decorrer

desta derivação, não faz mais parte da polis histórica,

mas de sua Utopia e, aqui, ela se coloca apresentada

a

s como uma profissão dentre outras, na verdade

em face do restante da comunidade, numa pura relação

política de uma sociedade dominante para

com

a domi

nada; digo uma sociedade, e não apenas um grupo, .uma

vez que,

pe

la liberação de seus membros da proprieda

de particular e do casamento particular, ela

é

destacada

da ordem social geral e erigida em uma sociedade

própria.

Esta confusão do princípio social e político é

característica na maior parte do pensamento da Anti

güidade.

Na

maioria dos impérios do antigo Oriente,

quase não encontramos nenhum germe de uma sepa

ração compreensível entre

as

formaçõ

es

sociais estatais

e extra-estatais; evidentemente, porque à última, na

realidade, não foi concedida uma existência e desen

volvimento independentes. A única exceção

é

a antiga

China, onde existiam duas culturas, lado a lado: a

es

tatal-urbana, centrada à volta da

c ôrte,

baseada no

exército, no funcionalismo e na classe oficial ·dos le-

trados, e a campestre, baseada totalmente na comuni

dade aldeã - uma, essencialmente político-histórica e

outra essencialmente de8provida de história, determina

da

apenas pelo invariá

vel

ritmo natural das estações

do ano, das

gex:ações

human

as

a nascer e perecer, es

sencialmente social no sentido mais estrito. Esta se

gunda cultura, relativamente autônoma e encerra

da

em

si, é a que fundamentou o sistema de ensino de ·

Lao-Tsê, no qual, entre o indivíduo e o Estado (os

Estados individuais de que se ·compunha o Império) ,

erguem-se duas formações puramente sociais, a casa

e a comunidade, ao passo que, no sistema confuciano,

radicado na cultura urbana, restou das duas formações

apenas casa, a família, com o que ela, em contraste

com a comuna aldeã, se adaptou completamente, em

187

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to embora, no seu fim, Marco Aurélio tenha convertido

a definição aristotélica no social específico, com o seu

dito: Nascemos para a cooperação ; porém, o que

o gênero humano é um só povo; a totalidade dos mor

tais é a comunidade· daqueles que desejam ter comu

nhão entre si

Totum genus humanum est unus popu-

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não se fêz

foi

aquilo que é preciso exigir de tôda espe

cificação conceitual, a fim de que adquira o caráter de

verdadeiro conhecimento: a descoberta, descrição 6

explicação daqueles elementos da realidade que cor

respondem

ao

recém-adquirido conceito específico. Ao

nôvo conceito da sociedade é tirado o caráter concreto,

ao

se lhe tirar a limitação, e isto ocorre da maneira

mais sublime: quandó se formula o ideal do humanis

mo universal, sem fornecer-lhe o método

da

realização.

Quando o estóico fala, na nova língua, de uma societas

generis humani

ou, na língua antiga, de uma Megaló

polis, sucede o mesmo: uma idéia expressiva se opõe à

da realidade, porém não consegue encontrar nela o

regaço a partir do qual poderia gerar a nova configu

ração viva; pois êle se desfez

da

corporeidade. O

Estado de Platão, embora contrário à polis foi no

entanto concebido a partir dela, sendo em todo caso

uma estrutura, mesmo que idealizada; a mera forma

de vida e mera ordem estatal de Zenon, um século

mais tarde, .era ainda apenas um nobre sentimento, e

ao

fim,

mesmo disso restou tão pouco, que Cícero

pôde ver, no Império Romano, a realização do Cosmo-

, politismo. Não existe; mencione-se à margem, nenhum

outro Universalismo prático realizável - isto

é,

com

as

fôrças concebidas ao .homem, ainda que, naturalmente,

com seu extremo esfôrço - afora o dos Profetas de Is

rael, o qual aspira não à supressão da sociedade nacio

nal; juntamente com tôdas

as

'suas formas de organiza

ção, mas à cura e reformulação destas, e com isto ao

estabelecimento da condição prévia para a sua

conjunção.

A Idade Média cristã aceitou, de um lado, a no

ção básica do Universalismo estóico numa forma cris

tianizada,

ao

denominar a almejada humanidade unida,

uma

vez como

res publica generis humani,

como Esta

do Universal, e outra vez como

ecclesia universalis,

como Igreja Mundial; contudo, o princípio social como

tal é expresso aqui, às vêzes, com uma pureza que a

Stoa desconhecia; assim, lê-se em Guílherme de Occam,,

o grande pensador intuitivo do século XIV: Todo

190

Lus; universitas mortalium est una communitas volen-

tium habere communionem

n

invicem), e cada união

individual,

quodlibet particulare collegium,

é reconhe

cida como parte dessa comunidade. Mas, de um modo

geral, o pensamento 'medieval não ultrapassa a amálga

ma aristotélica do social com o político. Embora a

florescente forma corporátiva da época seja tomada

e.m

conta

na

formação c o n c e i ~ u l jurídica, não medra

porém uma compreensão sociológica das uniões não

-políticas. Ao contrário, a tendência _e dirige de mo- .

do crescente para uma subsunção teórica e subordina

ção prática de tôdas elas sob o Estado, ou conforme

expressa Gierke, para uma representação · exclusiva

de tôda a vida coletiva pelo Estado . Somente no

período final da Renascença entra em·avanço a idéia do

direito independente das uniões não-políticas frente ao

Estado. Tal avanço ·encontra sua expressão mais vi

gorosa na Política do jurista alemão Althusius (por·

volta de 1603 . Mesmo assim, também aqui tôdas

essas estruturações ainda são estabelecidas, não entre

o indivíduo e uma ampla sociedade - tal conceito ·es

pecial ainda falta - mas, como em Aristóteles, entre

o· indivíduo e o Estado. Portanto, não se reconhece

nenhuma diferença entre elas e êle, salvo que cada

uma delas possui uma relativa autonomia, enquanto

que o Estado, ao contrário, possui uma soberania ex

clusiva; contudo, esta encontra naquela uma barreira

intransponível ( Gierke), isto é, o Estado não pode

ferir o direiío particular de cada uma dessas uniões

sociais. A sociedade aqui ainda não é, na verdade, con

cebida co'nio tal, mas é constituída segundo sua idéia;

na verdade, forma não a sociedade, mas o Estado em

nome delas, como a

societas immortàlis et perpetua,

conforme Grotius a formulou, ou em seu próprio nome,

como a civitas composita na linguagem de Althúsius,

a consociatio consociationum; mas pelo fato delas pa

recerem estar tôdas

ligS;das

entre si, associadas entre

si, isto significa uma deçisiva novidade no conheci

mento sociológico. claro que esta .novidade é inicial

mente ·dominada pela idéia. do .poder estatal irrestrito,

191

a qual agora

se

apresenta numa logicidade até então

desconhecida. •

No sistema de idéias de Hobbes, as formações

sem estrutura, visto que o moderno capitalismo indus

trial de pronto pretendia defrontar-se apenas

com

indi

víduos sem direito de coalizão. Pouco mais de um

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intermediárias são em princípio eliminadas, pois, para

'êle, não existem graus para a constituição

do

Estado,

na qual

se

unem, antes, os indivíduos desconexos, por

mêdo de, no caso contrário,

se

destruírem uns aos ou

tros. Esta unificação, que consiste

na

subordinação de ·

tôdas s vontades a uma única vontade, ou a uma·

única reunião, Hobbes, em seu livro

De cive,

deno

mina

civitas sive societas civilis.

Ao que eu saiba,

é aqui que aparece, pela primeira vez no pensamento

moderno, aquêle conceito retomado em fins. do século

XVII

por Locke, divulgado no século XVIII por Adam

Smith,

nas

Lectures on Justice,

e

po

r Ferguson, no ·

Essay on the History of Civil Society, da

sociedade

burguesa ,

a

qual vamos reencontrar no século XIX

na

filosofia de Hegel e

na

sociologia de Lorenz von

Stein· como sendo o oposto do Estado, e aqui, em

Hobbes, êle ainda

se

identifica inteiramente com o.

Estado. Sem dúvida, Hobbes conhece também o prin

cípio social,

na

forma de livres acôrdos entre

os

indi

víduos, para o reconhecimento e a segurança das con

dições dadas de propriedade; êle o conhece como exis

tente e o tolera nesse sentido, pois ainda não concebe

o Estado-Leviatã como totalmente realizado. Tônnies,

porém, acerta indubitàvelmente

na

opinião mais íntima

de Hobbes, quando assim o interpreta:

O

Estado

satisfaria

seu

conceito da maneira roais completa,

regulasse tôdas

s

atividades dos cidapãos e

se

tôdas

s

vontades ôssem dirigidas por uma única vontade su·-

perior. Enquanto tudo isto não fôr concretizado,

ainda sociedade no Estado .

Em

outras palavras: o

Estado que alcançou a perfeição eliminará também o

último resquício de· sociedade. Tal Estado

p e r f e i ~ o

chegou bem próximo daquele que atualmente denomi

namos de totalitário.

O ascenso do terceiro Estado, que

se

iniciou na

era

de Hobbes, e que se dispôs a substituir a dupla so

ciedade

da

Idade Média por uma sociedade uniforme,

certamente

até inclufr:se nela, conduziu a um libe

ralismo do Estado perante as sociedades, o qual estava

pronto a tolerar p e n ~ s uma sociedade atomizada e

192

séc

ulo após o aparecimento do

Leviatã,

o füiocrata

Turgot escreve,

na Enciclopédia,

no artigo Fonda

tions :

es citoyens ont des droits, et des droits sa-

crés pour le corps

même

de la société (com o que

·Turgot não entende ainda outra coisa senão

o

Estado) ;

·ils existent indépendamment d'elle; ils en sont les élé :

ments flécessaires. . . Mais les corps particuliers n'exis

tent point

par

eux-mêmes, ni pour eux; ils ont été

formés pour

la

société et ils·doivent cesser d'exister

au

moment qu'ils cessent d'être utiles .

Contudo, Tur

got não conta nestes

corps particuliers

tôdas

s associa

tions libres,

algumas das quais elogia no mesmo artigo.

Mas á cinco anos depois, Rousseau escreve em seu

Contrai Social,

em cujo conceito básico, a

volonté gé

néraÚ,

o princípio político e o social voltam a ser con

fundidos de maneira altamente duvidosa, embora Rous- ·

seau,

em

geral, saiba distinguir entre o contrato social

e ·

a

instifüição governamental vigente:

li importe,

pour avoir bien l'énoncé de

la

volonté générale, qu'il

n'y ait pas

de

société partielle dans l'état .

Em

outras palavras: em face

do

Estado não deve haver

sociedade que

se

cqnst:itua de diferentes sociedad'es

maiores e menores, por conseguinte, nenhuma socieda

de de autêntica estrutura social, em que a múltipla as

sociação espontânea dos indivíduos para finalidades

comuns de cooperação e convívio conjunto, represente

.então a essência vital da comunidade. Mas, uma vez

que existem

sociétés par'tielles,

continua Rousseau, il

efJ

faut multiplier le nombre et en prévenir

l i n ~ g a -

lité .

Em outras palavras: quando não

é

possível

suprimir a livre formação de sociedades,

seu r a i ~

de

ação deverá ser circunscrito através da criação de socie

dades tais que estejam plenamente determinadas pelas

intenções e planos

do

Estado, e é preciso cuidar para

que s livres nunca

se

tornem mais fortes diante das que

não são livres.

· A Revolução Francesa pôde contentar-se, de mo

do geral,

com

o cumprimento

da

primeira dessas duas

instruções, principalmente ao eliminar, como fôra

193

J

tentado durante o reinado

de

Lu ís XVI, o direito de

coalizão, porque um Estado absolutamente livre não

pode· tolerar nenhuma. corporação em seu interior"

Hegel

não comp

ara,

como

Saint-Simon, apenas dois

tipos de chefia,

mas

sim a sociedade burguesa em

oeral e o Estado em geral. Ambos, porém, não se .

~ o n f r o n t a m aqui de um mod o polar, ma s a sociedade

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(Reso

luç ão da Assembléia Legislativa, de agôsto de

1791). Em contrapartida,

a

cooperação de ambos os

métodos, em maior escala,

poderá

ser reencontrada na

história

da

Revolução Russa.

Somente quando a sociedade burguesa plenamen

desenvolvida emergiu do seio da Revolução, torna

ram-se possíveis as tentativas de confrontar o Estado

com

a

socieda

de co

mo tal. As

du

as primeiras te

nt

a

tivas são, m todo sentid

o,

tão diferentes quanto pos

sível.

A primeira procede

de

Saint-Simon. Os projetos

de reforma mais ou menos quiméricos dêsse genial

diletante baseiam-se essencialmente na verdadeira e im·

porta

nte diferenciação entre

dua

s espécies de chefia,

a social ou administrativa e a política ou governamen

tal. Ele não as define suficientemente,

mas

faremos

provàvelmente justiça à sua concepção, se dissermos

que o poder administrativo

é

limitado pelas condições

específicas das determinações e tarefas técnicas da che·

fia,

ao

passo que o poder governamental apenas expe

rimenta uma limitação através

da

relação quantitativa

de poder para ·

com

outros fatôres . A sociedade,

com

o

que Saint-Simon compreende os pr

omo

tores da produ

ção econômica e cultural, é na medida em que esteja

organizada, administrada, enquanto o Estado é chefia

do. Não precisamos nos ocupar aqui com a Froposta

de Saint-Simon no sentido de dividir a direção do Es

tad

o,

ou seja, confiar a chefia dos interêsses nacionais

a uma seleçã·o dos mais aptos e mais experimenta

do

s

no

campo da produção social, dando-lhe assim um

cu

nho administrativo e deixar às instâncias políticas

ap

e

nas a preservação da defesa e segurança. Contudo.

citemos a palavra de Sai

nt

-Simon

re

la

cionada

com

o as

sunto: "Para ser menos governada, a nação foi à

Revolução; ela nada conseguiu exceto ser governada

mais ainda".

A outra distinção básica entre o social e o político,

a de Hegel, é oposta à de Saint-Simon em sua aprecia

ção dos dois fatôres. Mas

o propósito é diferente.

94

situa-se entre a família e o Estado, entre um totalida

de e unidade relativas e uma totalidade e unidade ab

solutas, como a pluralidade incompleta e desunida, en

tre

a

forma

e a for

ma com

o o

informe, um produto do

mundo moderno, uma estrutura do pormenor, onde

cada qual se conside

ra

uma finalidade e todo o resto

n

ada

vale, e 'onde todos agem em conjunto só

po

rque

cada um se utiliza do outro

co

mo meio p

ara at

ingir o

seu

próp

rio fim; e

os

grupos e cla$ses

em

cujo

âmbito

tais indivíduos

tão

possuídos por seus

fi

ns, entram em

um antagonismo que a sociedade é incapaz de superar

devido à sua na tureza: só o Es tado consegue fazê-lo,

governando as ondas de tôdas as paixões" pela "razão

iluminante" . É êle o moderador

da

calami

da

de so

cial", porque a sua substância não é o i n t e r ê s ~ e . p a ~ t

cu

lar, como

na

sociedade,

ma

s o geral e

a

umf1caçao,

seu motivo

a

fôrça da razão que se realiza como von

tade . Assim, a até aí mais forte diferenciação

co

nce

i-

tua entre os princípios

torna

a desagu

ar

numa glori

ficação do Estado, que

lembra

Hobbes. No quadro

crítico

de

Hegel sôb

re

a sociedade

modern

a, falta, tudo

aquilo que ainda

pode

ser n t ~ a d o

em n o s s ~

e ~ o ~ a

para uma

obra em comum: l ~ g i u m a c o ~ p e r a ç a o

dariedade, auxilio mútuo, camaradagem fi

  l

e entusias

mo ativo. A espontaneidade social criativa está total

{llente ausente, ela, que logicamente

não

existe

acorren

tada, como ·o poder

do Est

ado,

mas tão

-somente

na

pr

ofusão de fenômenos coletivos

i n d i v i d ~ a . i s

mas. ?ue,

no domínio

da

sociedade , com todo o sigilo, equilibra

a balança

da

contradição. Por

outro

lado, a ~ a r e ~ e

aqui um Estado, o qual não conhec

emo

s pela h1stona

universal, mas unicamente pelo sistema de Hegel. b

certo que, segundo êle,

na

idéia

de Estad

o,

~ ã o

1

se d e ~ c

ter em mente Estados determinados,

mas

sim 'exami

nar em si a idéia, êste

ve

rdadei

ro

Deus". Pois o Estado

histórico, individual, se encontra no mundo, por con

seguinte na esfera do arbítrio, do acaso e do u í v o c o

e como mesmo um aleijado

cont

inua sendo um ser v1 ·

95

vo, o afirmativo, a vida, subsiste a despeito da carên

cia, e dêste' afirmativo é que aqui se trata

  .

Mas apli

que-se tudo isso à sociedade, e o quadro se altera.

bàsicamente.

cial e aue absorve tão completamente a livre sociedade

que,

verdade, só

pode

efetuar a

sua

dissolução

na

visão escatológica; por isso é que se inicia, com Marx, o

movimento

de

um socialismo,

no

qual o princípio so

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Com Saint-Simon e Hegel estamos

no

limiar do

moderno conhecimento sociológico.

No

entanto, a so

ciedade

que

é conhecida tornou-se outra: é a socieda

de

das modernas lutas

de

classe.

Os

dois homens, que

nesta hora, cada qual a seu modo, se propuseram a criar

uma síntese

de

Hegel e

do

saint-simonismo,

ou

seja,

Lorenz von Stein, o fundador

da

sociologia científica,

e Marx, o autor

do

socialismo científico, desenvolveram

sua reflexão

tão

fundamentalmente a partir

nova si

tuação, que

no

ponto decisivo

da

relação éntre o prin

cípio político e o social não pud

eram

assumir a herança

de

Hegel, nem a de Saint-Simon. Stein, que provém

de

Saint-Simon, não partilha

da

crença dêste sôbre

a

tomada

do

govêrno pelos dirigentes

da

produção social,

porque considera a sociedade

t ã o ~ s õ m e n t e

como o ce

nário real dos conflitos humanos; procura agarrar-se à

função repressora e unificadora

do

Estado perfeito de

Hegel, mas não o consegue realmente. Marx, que

aprendeu o pensamento

de

Hegel, contesta tal função

do

·Estado, porque êste, em seu caráter de superestru

tura , é necessàriamente um instrumento da classe so

cial dominante, e almeja substituí-lo por um Estado que,

por via

da

ditadura

da

última categoria, prepare a so

ciedade sem classes, para depois dissolver-se nela. Stein,

para

quem o movime

nto

do antagonil)mo entre o

Estado e a sociedade

é

o conteúdo

de tôda

a história

interna de todos os povos , concede ao Estado a

premacia

na

abstração filosófica, mas,

na

apreensão ·

da

realidade concreta, afirma a sociedade

de

todo estre

mec

ida por

conflitos, e é com ela que se preocupa;

é

por êst motivo que com êle se inicia

(e não

com Com e,

como pensam alguns, o qual,

na

distinção entre o prin

cípio social e político, se coloca atrás

de

Saint-Simon)

a ciência

da

realidade social. Marx, que

na

reflexão

teórica de sua fase madura não se ·interessa primària

mente pelo Estado, sabe em seus projetos apenas do

Estado revolucionário, altamente centralizado, que

abrange tudo, que não deixa lugar para o princípio so-

  96

cial p e n ~ existe ainda como meta final e não no esque

ma prático real.

Atualmente em meio de um extenso e minucio-

 

.

sarnente diferenciado trabalho de conhecimento e pla

nejamento social, a sociologia encontra-se ainda, e

novamente, diante

do

problema

da

relação entre o prin

cípio social e político. Não se

~ e v e

confundir esta

r e-

lação

com

a existente entre sociedade e Estado, pois,

como

Tarde

afirma com razão,

não há

nenhuma forma

de

atividade social, que

por um

modo qualquer ou num

momento qualquer não se torne política; mas

é

preci

so entender as formas

de

sociedade aqui e

as

in.stitui

ções estatais ali, como a cristalização de ambos os

princípios. Entretando, ·nisso é de importância

f u n ~

mental reconhecer a diferença de estruturas, que existe

entre os dois campos

no

tocante à relação de unidades

e pluralidade. A sociedade de

uma

comunidade de

povo não é composta de indivíduos

mas

de

~ o c i e d a d e s

e não, como achava

Comt

e, apenas de famíhas, porém

de várias sociedades e grupos, círculos, agremiações,

associações e comunidades, distintas _Pelo seu tipo, ca

ráter, extensão e dinamismo. A

s o c i e ~ d e

não

é

so

mente o seu conjunto e contôrno,

mas

também a sua

substância e essência; êles estão contidos nela,

mas

ela

também se encontra nêles todos e nenhum dêles pode

afastar-se dela. A sociedade realiza-se principalmente

na

medida em que

da

simples proximidade

<le

umas

face às outras, as sociedades almejam unir-se umas às

outras, e

na

medida em que .entre elas se desenvolvem

ligações e pactos ·de tôdas as espécies, ou seja, ela se

realiza

no

campo social-federativo. Assim como, através

do

uso e costume, junta e aproxima os indivíquos em

sua forma de vida e, através da opinião pública, no sen

tido da continuidade, os indivíduos em sua mentalida

de,

do

mesmo modo influi nos contatos e relações

mútuas entre as sociedade

s Ela

não consegue, porém,

97

dominar os conflitos entre os diversos grupos, não tem

o poder de.reunir os que estão separados e contrapos

tos

entre

s1

ela pode desenvolver a unidade, porém

não pode impô-la. Sômente o Estado consegue fazê-io.

em comum o seguinte: cada uma possui mais poder

do que exigem

as

circunstâncias e esta capacidade de

disposição a mais é na realidade aquilo que entende

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Os

meios de que se utiliza não são mais de natureza

social,

mas

especificamente política. Entretanto, todos

os meios à sua disposição, tanto a autoridade penal

quanto a propaganda, tampouco bastariam em

um

Es

tado que não fôsse dominado por um grupo social,

portanto, relativamente independente das

fissu

ras so

ciais, para vencer

as

esferas de conflitos, não fôsse o

fator político básico da instabilidade geral. O fato de

que cada povo se sente ameaçado pelos demais dá

ao

Estado a decisiva fô rça unificadora; êle ap·óia no

instinto

de

autopreservação da própria sociedade; a

latente situação externa de crise lhe possibilita às vêzes

vencer a interna. Imaginemos um permanente estado

de paz verdadeira, positiva e criadora, entre os povos,

e a supremacia do princípio político sôbre o social di

minuiria essencialmente. No entanto, isto significa de

maneira nenhuma que então também teria de diminuir

a fôrça necessária para submeter a situação interna do

conflito. Antes, seria de supor que,

se

no lugar da

anarquia existente entre os povos, houvesse coopera

ção entre êles na gestão das matérias-primas, na deter

minação

dos

modos de preparação e na norma do mer·

cado mundial, a sociedade estaria pela primeira vez .

apta a constituir-se como

tal.

No campo. do princlpio

social, gestão significa o mesmo que govêrno no campo

do político. Também no campo do primeiro, é indis

pensável q

ue

entendidos ordenem como deve ser execu

tado ~ u i l o que é desejado pela união ou pela coopera

tiva, e é indispensável que as pessoas nomeadas execu

tem as ordens, cada qual a sua. parte. Chamamos, por

conseguinte gestão uma capacidade de disposição, li

mitada pelas condições técnicas dadas e reconhecida

teórica e pràticaroente dentro do limite das mesmas, a

qual, em qualquer transposição de seus limites se anula

em

si m e s m ~

chamamos de govêrno

uma:

tapacidade

não-técnica, mas talvez apenas constitucionalmente

limitada, ó que quer dizer que, em determinadas altera

ções de situação, os limites

se

alteram e às

vêzes

até

se

apagam totalmente. Tôdas as formas de domínio têm

98

mos por poder político. Este excesso, cujo nível natu

ralmente não se pode calcular, representa a exata di

ferença entre gestão e govêrno. Denomino isso de

superavit político. Sua justificativa é

fo

rnecida pela ins

tabilidade externa e interna, pela situação de

cr

ise la

tente entre os povos e em cada povo, situação essa que

pode a qualquer momento se tornar atual, exigindo am

plas providências itnediatas a serem rigorosamente obe

decidas. Embora nos Estados governados em

fo

rma

parlamentar, na hora de irrompimento de crise tenham

de ser conferidos plenos podêres especiais tam

bém

nêles o superavit político, por sua natureza, não está

sempre determinado. Em outras palavras: o princí

pio político em relação ao s o c i ~ l é sempre mais forte

do que exigem as circunstâncias dadas. Daí resulta

uma constante redução da espon.taneidade social.

Acontece, entretanto, que tanto a vitalidade social

de um povo, como também a sua unidade cultural e

independência, dependem em grande parte dessa es

pontaneidade.

or

isso, surgiu muitas vêzes a inda

gação de como se poderia reforçá-la, libertando-a o

mais possível da pressão do princípio político. Indi

cou-se particularmente o quão desejável seria uma des

centralização do poder político. Na realidade, quanto

maior fôr a relativa autonomia concedida

às comuni:-

dades locais e regionais como também às funciona

is

ma

ior se tornará o espaço para um livre desenvolvi

mento dos podêres sociai

s.

E evidente que a pergunta

não pode ser Centralização ?ª d e ~ ~ e n t a l i z a ç ã o ?

porém.apenas: Em que áreas e pen.mtida uma a i ~ r

medida de descentralização da capaCidade de d1sp

os1

-

ção do que a já existente? Esta demarcação, natu

ralmente, precisa ser revista e renovada constantemente

com

as

condições · cambiantes.

Afora esta mudança na distribuição do poder,

é

também do interêsse de uma sociedade em constituição

aspirar a uma transformação progressiva da essênci

do poder, de modo que tanto govêrno quanto possível

passe à gestão. Isto quer dizer: cumpre verificar con

tinuamente em que campos a relação entre a direção

99

governamental e administrativa pode ser alterada em

favor da última. A exigência

de

Saint-Simon de uma

maior participação da sociedade econômicamente

Page 101: BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

7/25/2019 BUBER, Martin. O Socialismo Utópico

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dutiva e cultural na plasmação

da

vida pública não

pode 'efetivar-se pela via que, cerno

foi

formulado em

nossos dias, leva os administradores a tomarem conta

do poder (isto, certamente, não significaria melhora),

mas sim peta vi.a que leva o poder a tprnar-se admi

nistração, na medida em que as

ç õ e s

gerais e

especiais o permitam.

niversidade

t ~ d ~ l

de aringá

mmií füi

TTí11

0000013315

COLEÇÃO DEBATES

1 A Personagem de Ficção

A. Ro

8

sc

0

rueld,

A

Décio de A. Prado, Paulo Emílio . ornes.

2.

Jnformaç.ão.

Linguagem. Comunicação Décio

J Balanço da Bossa Augusto de Campos.

4. Obra Àberta Umberto

Eco

5.

Sexo e Temperamento

Margarct Mcad.

6

· Fim do Povo Judeu? George Friedmann

7.

Texto/Contexto Anato Rosenfcld.

8. O Sentido e a Máscara Gerd .A. Bornhcim.

Cândido,

Pignatari.