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Buril Planetário: Minas Gerais, de Rafael a Rubens Ms. Alex Fernandes Bohrer Universidade Federal de Minas Gerais Com o advento da imprensa moderna, as tipografias terão papel preponderan- te na divulgação e circulação de saberes. Aliando este fato à expansão marítima européia, temos ambiente propício para certa ‘globalização do imaginário’, seja através de textos, seja através da impressão e cópia de imagens. Ao mesmo tempo em que gravuras de animais fantásticos e fauna exótica povoavam, das novas terras exploradas, o Velho Continente, grandes mestres da arte européia tiveram suas obras gravadas e publicadas. Nas naus e caravelas estas obras e objetos zigue- zagueavam o mundo, influenciando artistas d’além e d’aquém mar. Com exemplos práticos, pretendemos demonstrar como a circulação de uma tipologia específica de imagens marca, sobremaneira, o chamado Barroco Mineiro. Sobre o Barroco Reinventado dos Mineiros Nossa arte foi tão moldada pelos empreendedores de outrora, quanto a pedra- sabão foi pelo cinzel dos escultores. Não é de estranhar que a rocha que melhor exemplificou a suposta novidade de nossas criações seja uma pedra que tenha como sobrenome “sabão”: a esteatita - mole, deformante, adaptável - é analogia perfeita. A originalidade da arte mineradora não reside, dito isto, numa suposta criação autônoma das formas, mas, antes, nossa originalidade subsiste na apro- priação de uma formalidade plural e alheia. Podemos falar que o barroco rein- ventado dos mineiros é uma criação em contato contínuo com tendências inter- nacionais, aqui aclimatadas e re-acomodadas. Do diálogo criativo destes diversos insumos nasceu cada monumento e a feição de cada região. A característica prin- cipal de nossa arte é a constante adaptabilidade e, via de regra, a adoção não canônica de linguagens compositivas européias. Neste sentido toda obra de arte é original mesmo tendo protótipos, influências e níveis de releitura. “Um homem distinto é um homem misturado”, escreveu Gruzinski, citando Montaigne. Esta frase pode ser elevada a jargão de nosso enfoque: a arte mineira GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 200. p. 53.

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Buril Planetário: Minas Gerais, de Rafael a Rubens

Ms. Alex Fernandes BohrerUniversidade Federal de Minas Gerais

Com o advento da imprensa moderna, as tipografias terão papel preponderan-te na divulgação e circulação de saberes. Aliando este fato à expansão marítima européia, temos ambiente propício para certa ‘globalização do imaginário’, seja através de textos, seja através da impressão e cópia de imagens. Ao mesmo tempo em que gravuras de animais fantásticos e fauna exótica povoavam, das novas terras exploradas, o Velho Continente, grandes mestres da arte européia tiveram suas obras gravadas e publicadas. Nas naus e caravelas estas obras e objetos zigue-zagueavam o mundo, influenciando artistas d’além e d’aquém mar. Com exemplos práticos, pretendemos demonstrar como a circulação de uma tipologia específica de imagens marca, sobremaneira, o chamado Barroco Mineiro.

Sobre o Barroco Reinventado dos Mineiros

Nossa arte foi tão moldada pelos empreendedores de outrora, quanto a pedra-sabão foi pelo cinzel dos escultores. Não é de estranhar que a rocha que melhor exemplificou a suposta novidade de nossas criações seja uma pedra que tenha como sobrenome “sabão”: a esteatita - mole, deformante, adaptável - é analogia perfeita. A originalidade da arte mineradora não reside, dito isto, numa suposta criação autônoma das formas, mas, antes, nossa originalidade subsiste na apro-priação de uma formalidade plural e alheia. Podemos falar que o barroco rein-ventado dos mineiros é uma criação em contato contínuo com tendências inter-nacionais, aqui aclimatadas e re-acomodadas. Do diálogo criativo destes diversos insumos nasceu cada monumento e a feição de cada região. A característica prin-cipal de nossa arte é a constante adaptabilidade e, via de regra, a adoção não canônica de linguagens compositivas européias. Neste sentido toda obra de arte é original mesmo tendo protótipos, influências e níveis de releitura.

“Um homem distinto é um homem misturado”, escreveu Gruzinski, citando Montaigne.� Esta frase pode ser elevada a jargão de nosso enfoque: a arte mineira

� GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 200�. p. 53.

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não é original porque é única, sem precedentes; a arte mineira é original porque são várias, porque é mistura - a nossa identidade reside na miscelânea de formas readaptadas conforme uma demanda localizada. A reinvenção é nosso atributo principal. Quando Aleijadinho criava suas portadas certamente dialogava com fontes européias, todavia, conforme negociação e restrições locais inventou algo novo (ainda que sintonizado aos modismos internacionais). Quando Ataíde fazia uso de uma gravura, fazia uso também de todo um universo visual em processo de “planetarização”: nas Gerais as gravuras eram (re)coloridas, (re)dimensionadas, (re)apreendidas, (re)interpretadas, (re)locadas, enfim, (re)inventadas. A paleta colo-rida e alegre de Ataíde é nosso ‘liquidificador tupiniquim’, misturando, alem de tintas, mundos; a pedra-sabão de Aleijadinho é maleável e - como o atilamento português aludido por Gilberto Freyre - por isso mesmo adaptável e miscível.

É justamente do diálogo com Europa e seus modelos que novas realidades culturais se formam gradualmente no cotidiano fragmentado d’aquém mar. Neste nível em que a permissividade criativa é a tônica das encomendas, encontramos o que Afonso Ávila chamou de tropicalidade do barroco: a arte mineira engendra novas formas conforme um novo gosto matizado. O arcabouço barroco, tão com-plexo em todas suas instâncias, vai nas Minas abraçar diversos estilos, origens, gentes, objetos, modelos. É neste espaço aberto de releituras imagéticas variegadas que a cultura ibérica vai ser retomada e ‘negociada’: a mentalidade lusa vai encon-trar, na experiência fragmentária das áreas mineradoras, outras presenças (como a negra) que irão produzir, século XVIII em diante, uma realidade cultural díspar.

É especialmente no campo religioso que se manifestará, com fervor místico generalizado, a misturada produção artística coeva. Neste sentido, vários estudos sobre a religiosidade mineira apontam para um comportamento barroquizante.2 Destes, podemos destacar os trabalhos da Professora Adalgisa Arantes Campos (es-pecialmente aqueles sobre o culto à Paixão de Cristo - tão caro aos ibéricos e reve-lador de uma espiritualidade característica - e a devoção à São Miguel Arcanjo - exponencial acerca dos cuidados que os homens terrenos tinham com o post-mortem). Escrutinando os velhos arquivos à procura de documentos revelado-res (como testamentos, óbitos e registros de casamento e batismo), a pesquisadora aponta para um comportamento recorrente em todo século XVIII e parte do XIX: se artisticamente as formas assinalam uma profusão de estilos e sub-estilos, cultural-mente podemos falar em um comportamento barroco.

Nesta altura do nosso raciocínio, são bem vindos os questionamentos precisos de Lourival Gomes Machado, que, já em �956, se perguntava:

2 “Concordando com a hipótese de que o barroco corresponde, direta e intimamente, a uma determinada estrutura mental, por isso mesmo estamos obrigados a concebê-la na maior generalidade possível e, em conseqüência, não havemos de pesquisá-las tão só nas suas expansões conjunturais particulares.” MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, �969. p. �55.

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Haverá critério válido e operante para distinguir (...) o que é local do que é importado, o que é tradição do que é originalidade, quando a novidade plás-tica pode ser repercussão de algo historicamente mais velho e quando a in-venção autônoma também envolve valores importados?3

Buril Planetário e Didática Burla: Globalização, Iconografia e Homogeneização

Entre as mais antigas técnicas de se reproduzir ilustrações está a xilogravura, procedimento que basicamente consiste em se delinear sobre uma matriz de ma-deira o desenho a ser impresso. Como a madeira suporta mal a pressão, outras técnicas foram aprimoradas, sendo as principais a litografia� e a calcografia. A gra-vura sobre metal (calcogravura) deriva da ourivesaria e suas primeiras utilizações datam do século XV. Entre os processos calcográficos se distinguem o Buril e a Água-Forte, técnicas importantíssimas na disseminação das imagens. É mais recen-te a contribuição do Ponteado, que em Portugal constituiu importante escola.5 Dito isto, passemos para análise das relações internacionais ibéricas que propiciaram ampla divulgação de imagens.

Data do medievo as relações comerciais entre Portugal e Flandres. A Feitoria Real Portuguesa, que a princípio estava instalada em Bruges, foi transferida, em ��99, para Antuérpia. Navios comerciais portugueses, desde longa data, ligavam Antuérpia a Lisboa e esta a todo o império colonial. Não há dúvida de que, assim como os emissários florentinos encarregaram artistas flamengos da produção de obras a serem enviadas para Itália,6 assim também mercadores portugueses proce-deram em relação a Portugal. Sobre estas relações escreve Áurea Pereira da Silva:

As pesquisas nos arquivos e, sobretudo a presença de obras flamengas em Portugal permitem afirmar que a exportação das mesmas era feia em larga escala. Ao lado de obras de artistas célebres, como Quentin Metsys, Jean

3 MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. op. cit. p. �60. � Na litografia a matriz não é metálica. O suporte consiste numa pedra sensibilizada para receber a tinta. 5 Em �802, quando da reforma da Imprensa Régia Portuguesa, o florentino Francesco Bar-tolozzi foi contratado para reavivar a Aula de Gravura. O famoso gravador italiano foi o precursor em terras portuguesas do ponteado. Deixou profunda marca na trajetória histórica das gravuras lusas. 6 Aby Warburg escreveu vários ensaios sobre estes intercâmbios, onde demonstra as relações de circularidade cultural que existiam na Europa no alvorecer do Renascimento Italiano, especialmente o primeiro Renascimento Florentino. Para isto vide WARBURG, Aby. El Re-nacimiento del Paganismo. Aportaciones a la Historia Cultural del Renacimiento Europeo. Madrid: Alianza Editorial, s/d.

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Gosard, Josse van Cleve, etc. - que os museus portugueses conservam até hoje - eram mais largamente exportadas obras de mestres menores, que seguiam sobretudo o maneirismo em voga desde o século XVI.�

Houve até uma empresa especializada na exportação de obras de arte: a Firma Forchoudt mantinha relações com Lisboa desde �6�5, para onde enviava pinturas, moveis e gravuras. Em várias ocasiões, Antuérpia se comunicou diretamente com as colônias, bastando citar o exemplo das ��3 pinturas mandadas para o Brasil pela Família Schtz (importantes negociantes de Antuérpia), em �5�9 - material este que se destinava a ornamentação de igrejas da região de São Vicente.

Paralelo a este intercâmbio de artistas e obras, houve também a ascensão - rá-pida e de certa forma mais ‘democrática’ - dos impressos. Os livros ilustrados, cujos mais belos exemplares saiam dos prelos de Antuérpia, popularizaram e intercam-biaram, pela primeira vez na história, imagens feitas em série, retratando paisagens, cidades, gentes, animais, costumes, reproduzindo obras de grandes artistas, difun-dindo fábulas, alegorias, comédias e, especialmente, divulgando a iconografia reli-giosa católica. Havia um comércio expressivo liderado por livreiros, impressores e mesmo por gravadores e artistas (como exemplificam os casos de Jerome Cock e Albrecht Dürer). Das tipografias, os livros eram enviados a todas as partes do mun-do. Este comércio planetário é bem ilustrado pela Tipografia Plantiniana, que, atra-vés da monarquia espanhola, possuía o monopólio de impressão de vários livros religiosos (se lembrarmos que entre �580 e �6�0 Portugal estava unificado à Espa-nha, bem vislumbraremos a influência dos herdeiros de Plantin no orbe visual das metrópoles e respectivas colônias).

Aqui já temos a dimensão e a importância deste comércio: numa época antes da fotografia, das telecomunicações e da internet, coube às gravuras a primeiríssima globalização visual da história humana.

Após o Concílio Tridentino, se propugnou com maior zelo a divulgação de uma iconografia religiosa precisa e controlada. Na Sessão IV do citado Concílio, realizada em 8 de abril de �5�6, houve debate acerca da aceitação dos livros sagrados:

Sean declarados por medio de los ordinarios y castigados con las penas esta-blecidas por el derecho (...) que en adelante la Sagrada Escritura, y principal-mente esta antigua y vulgata edición, se imprima de la manera más correcta posible, y nadie sea licito imprimir o hacer imprimir cualesquiera libros sobre materias sagradas sin el nombre del autor, ni vender-los en lo futuro ni tam-poco reternelos consigo, sin primero no hubieren sido examinados y aproba-dos por el ordinario. [o grifo é nosso]8

� SILVA, Áurea Pereira da. Notas sobre a influência da gravura flamenga na pintura colonial do Rio de Janeiro. Barroco, Belo Horizonte, v.�0, �9�8/�9. p. 5�. 8 DENZINGER, Enrique. El Magisterio de la Iglesia. Manual de los símbolos, definiciones e decla-raciones de la iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Editorial Herder, �963. p.22�.

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Ao mesmo tempo que se confirma a autoridade única da Vulgata Latina de São Jerônimo, há o objetivo explícito de dominar tudo referente à literatura religiosa. Neste quesito a imprensa era uma faca de dois gumes: podia acelerar o apareci-mento de novas “heresias”, divulgando rapidamente idéias destoantes, ou, por ou-tro lado, podia propalar os preceitos tridentinos, homogeneizando uma dada linha de pensamento e, mais especificamente, padronizando motivos iconográficos.

Em Trento, na Sessão XXV de 3 e � de dezembro de �563, se deliberou:

Enseñen también diligentemente los obispos que por medio de las historias de los misterios de nuestra redención, representadas en pinturas u otras repro-ducciones, se instruye y confirma el pueblo en el recuerdo y culto constante de los artículos de la fe; aparte de que de todas las sagradas imágenes se per-cibe grande fruto, no solo porque recuerdan al pueblo los beneficios e dones que le han sido concedidos por Cristo, sino también porque se ponen ante los ojos de los fieles los milagros que obra Dios (...). [o grifo é nosso]9

Trento confirmou, pois, o uso das artes como veículo instrutivo de catequese - numa época de iletrados, as imagens falavam por si só e divulgavam (dando ên-fase à autoridade católica) uma iconografia precisa, alvo, a partir da publicação, de devoção e deleite piedoso.

Se os impressos foram elevados à suporte didático, também é verdade que foram utilizados para burlar a vigília da Igreja. Tendo como base uma obra de arte anterior ou uma gravura, o artista podia justificar o uso de determinados elementos na sua própria criação. Isto é bem ilustrado por um interessante exemplo italiano: certa vez, Paolo Veronese, por pintar diversos e díspares personagens numa Santa Ceia de �5�3, foi acusado de perverter a iconografia original do episódio. Como resolveu a situação? Transformou a Santa e Última Ceia, que tinha uma iconografia muito mais específica, sedimentada e difundida, numa Ceia em Casa de Levy, pou-co explorada pelos artistas de então. O exemplo de Veronese é exponencial, se bem que usado em sentido reverso - foi o desuso de uma determinada tradição que o permitiu mudar-lhe às pressas o tema, safando-se. Outros muitos artistas e grava-dores, entretanto, justificaram suas obras e trabalharam mais ‘tranqüilos’ tendo fon-tes e modelos iconográficos ao lado do cavalete, buril ou cinzel.

Qual a conseqüência desta preocupação em seguir tradições reconhecidas e permitidas? Com o alastramento mundial das gravuras impressas, várias obras, em diferentes lugares do globo, irmanaram-se imageticamente. Vejamos um exemplo prático, ocorrido nas Minas Gerais. Na Igreja do Carmo de São João Del-Rei existe um painel representando a Transfiguração de Cristo, que, se for contemporânea da graciosa moldura que a circunda, deve remontar ao último quartel do século XVIII e início do XIX, quando o modismo rococó ingressou nas Gerais: a cena é domina-

9 Ibidem, p.2�9.

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da pelo Cristo transfigurado, com vestes brancas, resplandecentes, ladeado pela apari-ção de Moisés e Elias (que são representados levitando, para reforçar o caráter miracu-loso e inusitado); aos pés do quadro, sobre um pequeno monte, os três apóstolos que testemunharam o evento (Pedro, João e Tiago), caem por terra, atônitos (Foto �).

Ao final da década de �5�0, o pintor renascentista Rafael de Sanzio concebeu uma Transfiguração�0 em tudo semelhante a esta de São João Del-Rei: a disposição dos personagens, a colina, a movimentação - tudo liga as duas obras (Foto 2). Como explicar esta repetição? Vários pintores consagrados tiveram suas criações difundidas pelos gravadores e, entre estes, Rafael foi dos mais ‘copiados’. Desta forma, através de gravados europeus, esta pintura italiana foi reapropriada em ter-ras tropicais, séculos depois da obra geratriz ter sido executada. Note-se, porém, o espaço das reinvenções na igreja carmelita: como as gravuras eram em preto-e-branco, o artista local teve que reinventar o colorido das roupagens e da cena de fundo, alem de omitir alguns personagens, existentes no original.

Não sabemos qual publicação específica foi usada neste diálogo artístico ul-tramarino, mas uma gravura, exaurível e frágil, ligou dois artistas distantes (espacial e temporalmente) através do intercâmbio planetário proporcionado pelo comércio, pela fé e pelos impressos.

Arte Mineira: O Que Se Lia e O Que Se Via

Houve sempre a preocupação (religiosa e política) quanto à propagação de livros heréticos ou revolucionários na metrópole e suas colônias. Em ��68, Dom José I insti-tuiu a Real Mesa Censória, tribunal que fiscalizava a circulação de impressos, coibindo e proibindo determinadas publicações. No entanto, sempre existiram dribles e volteios para adquirir as obras desejadas, mesmo se estivessem sob proibição.

Uma espiadela numa biblioteca mineira do século XVIII pode nos dar uma idéia do tipo de impresso que por aqui circulava. Por sorte (ou por azar) chegou até nós um arrolamento de livros pertencentes ao Cônego Luis Viera, marianense preso por en-volvimento na Inconfidência Mineira. No auto de seqüestro de seus bens (realizado em 9 de julho de ��89) encontram-se listados perto de 800 volumes, perfazendo um total de 2�0 obras - uma coleção considerável pelas condições da época.�� Na sua biblioteca constavam dicionários, obras filosóficas, autores da antiguidade clássi-ca, livros médicos, livros de História, Geografia e Gramática, expoentes iluministas (como Voltaire), clássicos da literatura universal (como Os Lusíadas), apanhados de história natural, geometria, física etc. Entre as obras religiosas destacam-se um Con-

�0 Hoje pertencente à Pinacoteca do Vaticano. �� Mais da metade destes livros era em latim, cerca de noventa em francês, pouco mais de trinta obras em português e outros em italiano, espanhol e inglês.

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cílio Tridentino, discursos teológicos e várias livros sobre história eclesiástica, alem de um curioso dicionário histórico sobre heresias.

A análise destes pertences tem angariado atenção de vários pesquisadores, interessados na cultura letrada brasileira colonial ou na influência das idéias inter-nacionais na Inconfidência Mineira. Boas páginas valeram essa biblioteca de Vieira no O Diabo na Livraria do Cônego, exame precursor de Eduardo Frieiro.�2 Entretan-to, se o Cônego possuía “febre de ilustração” e teve recursos para suprir sua curio-sidade, a vasta maioria não teve acesso a estes regalos letrados. Citamos sua biblio-teca somente para ter-se uma visão geral da circulação de impressos nas Minas - as teias da imprensa mundializada chegaram a rincões longínquos.

Interessaria-nos muito mais neste trabalho se encontrássemos biblioteca tão vasta nas mãos de um artista. Porém, das leituras destes, só nos restaram resquícios. Manoel da Costa Ataíde, nosso exponencial pintor, deixou ao morrer cabedal con-siderável. Entre os vários pertences figuram, todavia, somente três livros:

Hum livro da Bíblia estampado pr 4$800

Hum Do segredo das Artes dous Tomos 2$000

Dicionário Francês pr 2$000�3

O “livro da Bíblia estampado” tinha, sem dúvida, especial valor entre os pin-tores mineiros. As estampas serviam de inspiração: tanto para se acercar dos moti-vos iconográficos a serem usados em determinadas cenas, quanto para “copiar” as imagens, conforme pedido dos mecenas. Seria esta bíblia aquela citada por Hanna Levy, em �9��, como tendo várias gravuras que Ataíde se apropriou para ornamen-tar a capela-mor de São Francisco de Assis de Ouro Preto?�� É justo que o pintor, ao se deparar com tema iconográfico tão específico e incomum na tradição criativa mineira (a vida de Abraão), tenha feito uso de impressos. Seriam estas gravuras apresentadas a ele pelos comitentes ou fariam parte de um acervo particular, usado nos momentos de criação e negociação da obra? Se as estampas usadas em São Francisco fizessem parte deste repertório particular, bem que a bíblia inventariada poderia ser a Histoire Sacrée de la Providence et de la Conduite de Dieu sur les Hommes, de Demarne - um livro majestoso, com várias reproduções de Rafael.

Se tratar-se da mesma bíblia do inventário, isto bem explicaria a existência, entre os pertences do mestre, de um dicionário de francês. Observe que a referida bíblia é um artefato luxuoso, com mais de 500 gravuras (o que justificaria seu valor elevado se comparado às outras obras: quatro mil e oitocentos réis). O certo, toda-

�2 FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na Livraria do Cônego. São Paulo: Editora Itatiaia, �98�.�3 CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde. Aspectos Históricos, Estilistas, Iconográficos e Técnicos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2005. p.2�5. �� LEVY, Hanna. Modelos Europeus na Pintura Colonial. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, v. 8, �9��. p. 8. Trata-se de seis pinturas representando temas da vida de Abraão, executadas à imitação de azulejo nas ilhargas da capela-mor.

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via, é que, quando ornamentou-se as ilhargas da capela-mor vilariquenha, os gra-vados de Demarne atrelaram Ataíde à Rafael.

E os dois tomos sobre os “segredos da arte”? A definição no inventário é um tanto vaga, mas bem que poderiam ser os dois tomos da edição espanhola de Arqui-tectura en Perspectiva Del Padre Pozzo, mestre precursor da pintura monumental em perspectiva (da qual Ataíde era destro expoente nas Minas), ou as Perspectivas del Italiano Samuel Moroloi el Matemático, ou ainda a Teoria e Pratica de la Pintura de Don Juan Polomino (ambos impressos espanhóis, em dois volumes). Estes três livros figuravam na biblioteca do pintor sevilhano Domingo Martínez, do qual escreveu excelente artigo Ana Maria Aranda Bernal.�5

Outro artista colonial, conterrâneo de Ataíde, também possuía impressos entre os bens inventariados post morten. Francisco Xavier Carneiro tinha livros sobre

(...) profecia de Izaias, Eva e Ave, as [ciências] das sombras relativas ao dese-nho, Segredo necessário para as artes da pintura, Orthografia portuguesa vistos e avaliados pelos ditos louvados em três mil reis com que se sae.�6

Repare que Ataíde e Xavier Carneiro possuíam provavelmente a mesma obra: o tal ‘segredo das artes’ era manuseado pelos dois contemporaneamente.�� Outro livro interessante na modesta biblioteca de Xavier Carneiro é aquele das “sombras relati-vas ao desenho”, o qual podemos identificar com mais precisão. Trata-se certamente de uma obra de Dupain, traduzido do francês para o português em ��99 pelo frei brasileiro José Mariano da Conceição Veloso: Sciencia das sombras relativas ao de-senho: obra necessária a todos os que querem desenhar architectura civil e militar, ou que se destinam à pintura. Duas outras traduções de José Mariano da Conceição Veloso deviam interessar os pintores: A Arte da Pintura, de C. A. do Fresnoy (�80�) e O Grande livro dos Pintores, ou arte de pintura, considerada em todas as suas partes, e demonstrada por princípios, com reflexões sobre as obras d’alguns bons mestres, e sobre as faltas que nelles se encontrão, de Gerald Lairesse (�80�).

Entre as obras de Xavier Carneiro havia ainda uma ‘orthografia’ da língua portu-guesa: Não é curioso o fato de que, enquanto Ataíde se preocupava com o francês, provavelmente para decifrar seus livros, Carneiro se volte para o português? Será que isto nos dá alguma pista acerca das leituras de um e outro?

�5 BERNAL, Ana Maria Aranda. La Biblioteca de Domingo Martínez: el saber de um pintor sevillano del XVIII. Átrio, Sevilha, v.6, �993.�6 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana. Códice 59 - Auto �.3�6 - 2° Oficio. Levanta-mento feito sob coordenação da Profa.Dra.Adalgisa Arantes Campos. �� O testamento de Ataíde data de �826 e o de Xavier Carneiro de �838. O preço avaliado dos livros não desmente a hipótese de se tratar da mesma obra: o conjunto de livros de Car-neiro valia três mil reis e o livro dos ‘segredos das artes’ de Ataíde valia dois mil reis.

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Outras várias obras sobre arte devem ter circulado nas Minas,�8 todavia os inven-tários de nossos artistas e pintores são por demais imprecisos e os bens, escassos. Alguns livros, de caráter religioso e piedoso, porém, chegaram até nossos dias em abundância, guardados nas gavetas de velhas igrejas. Entre estes impressos desta-cam-se os missais romanos, encontrados em vultosa quantidade nas Minas.

Rubens, Minas e os Missais

Os missais católicos são, como o próprio nome indica, impressos usados nas ce-lebrações da missa. Em geral, os mais antigos são belamente ilustrados. Um antigo missal romano comum possuía, via de regra, a mesma estrutura básica: uma capa (com o nome completo do missal, a cidade de impressão, a tipografia, a data e, em grande número dos missais, uma pequena gravura), uma contracapa (muito semelhante à capa), uma apresentação em latim (feita por um ou mais papas), textos litúrgicos (tam-bém em latim), partituras de músicas sacras, pequenas ilustrações, tudo entremeado por gravuras principais.�9 No século XVIII e parte do XIX, estas gravuras principais eram, em geral, de boa lavra. Só na segunda metade do oitocentos começaram a perder o interesse estético, evoluindo para formas mais estilizadas e simples.

Ilustrações consideradas belas ou (re)conhecidas pela circularidade dos missais poderiam servir mais facilmente de modelos a artistas contratados para ornamentar as construções. Era uma forma do comitente mostrar bom gosto, impressionar os ex-pectadores, acostumados a admirar aquelas imagens em pequenas dimensões, e de se manter atualizado frente aos modismos vindos da Europa, alem de, como já dito, ser uma maneira do artista obedecer aos ditames da Igreja Tridentina quanto às re-presentações visuais. Isto ajuda a explicar o processo psicológico de aceitação dos missais como modelos para os artistas.

Identificamos 39 missais presentes nos arquivos paroquiais de Nossa Senhora do Pilar (30 missais remanescentes) e de Nossa Senhora da Conceição de Ouro Preto (9 missais remanescentes). Para facilitar a identificação dos missais e catalo-gá-los conforme o interesse da pesquisa, atribuímos um número a cada impresso constante nos inventários paroquiais. Pôde-se perceber que alguns foram reedita-dos várias vezes; alguns circulando em períodos diferentes, outros concomitantes.

Deste conjunto analisado de missais, dois se destacaram pela quantidade em que foram encontrados: o Missal 3� e o 3�. Será que importância artística destes missais acompanhou a difusão e circularidade que, a julgar pelos números de ree-dições identificadas, provavelmente alcançaram nas Minas? Sobre o Missal 3� tive-

�8 Alguns até confeccionados em solo brasileiro, como Elementos de desenho, e pintura e regras geraes de perspectiva. Dedicadas ao senhor rey D. João VI por Roberto Ferreira da Silva, publicado em �8�� na Impressão Régia, no Rio de Janeiro.�9 Estas gravuras ocupam geralmente toda a página e têm dimensão média de �6 x 25 cm. Os temas destas gravuras principais obedeciam à liturgia vivida pela Igreja durante o ano.

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mos a oportunidade de escrever dois artigos anteriores, onde ressaltamos a influên-cia das gravuras deste em várias criações artísticas mineiras.20 Agora cabem algumas palavras sobre o Missal 3�.

As datas das edições do Missal 3� variam de �85� a �889, portanto abrangen-do a segunda metade do século XIX. Este missal possui também a peculiaridade - a exemplo do 3� - de ter suas gravuras assinadas. Segue-se a relação de temas e ar-tistas ou editores:

�- Anunciação - Hendricks Del. MECHL. E Typ.P J.Hanicq / PANNEMAKER(SE)

2- Natividade - HEBERT S.C.

3- Epifania - PANNEMAKER

�- Ressurreição - E.VERMORCKEN S.C

5- Ascensão de Cristo - PANNEMAKER

6- Assunção da Virgem - HEBERT S.C.

O Missal 3� foi um dos poucos encontrados na segunda metade do século XIX em que as gravuras ainda apresentavam valor estético. Será que as várias edições encontradas testemunham um gosto mais refinado dos impressores e proprietários?

À exceção das figuras representando a Anunciação e a Ascensão de Cristo - as quais não conseguimos identificar os modelos com precisão -, as quatro restantes são reproduções de obras de artistas antigos, consagrados na época barroca. É curioso que somente uma das ilustrações - a da Anunciação - deixa transparecer um refinado gosto contido, arrumado, de influência neoclássica:2� em pleno século XIX este missal prima pelo movimento e ornato do período então ultrapassado, dito ‘barroco’. Uma das gravuras (a Natividade) se baseia num quadro do pintor e gra-vador holandês Abraham Bloemaerte (�566-�65�); as outras tem como fonte Peter Paul Rubens (�5��-�6�0), de larga influência na arte católica. Analisemos cada gravado separadamente.

A paleta penumbrista de Bloemaerte concebeu a citada Natividade em �6�2, dentro de uma formalidade nitidamente barroca. A obra, hoje pertencente ao Museu do Louvre, é dominada, em primeiro plano, pelo Menino Jesus, tendo à sua direita a Virgem e à sua esquerda, um pastor ajoelhado; atrás, outro pastor, calvo e orante; ao chão, à frente da composição, uma ovelha deitada, amarrada pelos pés. Domi-nando o segundo plano, do lado esquerdo há uma camponesa com chapéu, de pé,

20 BOHRER, Alex Fernandes. Mecenato e Fontes Iconográficas na Pintura Colonial Mineira. Ata-íde e o Missal 3�. In.: Anais do XXIV Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Belo Horizonte, 200�. BOHRER, Alex Fernandes. Um Repertório em Reinvenção. Apropriação e Uso de Fontes Iconográficas na Pintura Colonial Mineira. Barroco, Belo Horizonte, v.�9, 2005.2� Curiosamente esta Anunciação traz a assinatura de uma tal Hendricks: homônimo ou o mes-mo Hendrick Bloemaert (�60�-�6�2), filho de Abraham Bloemaert, analisado neste artigo? Se for o filho do pintor holandês, salta aos olhos a sobriedade da composição, destoante da época.

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braços estendidos, olhos voltados ao céu; à direita, uma figura masculina, barbada, segurando um boi pelos cornos. Nos planos subseqüentes, perdem-se nas sombras variados personagens. Nos céus, três anjos adultos e um outro, infantil, volvem sua atenção à terra. A gravura do missal é em tudo semelhante a esta pintura, tendo pouquíssimas variantes. Não sabemos o ano exato do gravado, porém sua reprodu-ção data de meados do século XIX.

As três gravuras rubensianas, são, na seqüência, Adoração dos Magos, Ressurrei-ção (Foto 3) e Assunção da Virgem. A composição das ilustrações respeitou os variados detalhes das pinturas flamengas originais, seja nas garbosas silhuetas dos Magos, na primeira cena; no airoso e musculoso Cristo ressurrecto, da segunda; ou na barroca Virgem rumo ao céu, na terceira. No caso da Adoração dos Magos (�626/29) e da As-sunção da Virgem (�626), trata-se de telas pertencentes hoje, respectivamente, ao Mu-seu do Louvre e à National Gallery of Art de Washington.22 A Ressurreição (�6��/�6�2) encontra-se numa igreja antuerpiana - a Vrouwekathedraal - e faz parte de um tríptico. É extremante revelador o uso das obras deste artista - radicado na Flandres do século XVII - por impressores do século XIX, atuantes na mesma região. As formas e o colorido de Rubens tiveram longa persistência e influência, fazendo com que impressos confec-cionados em outros modismos tivessem, ao menos nos ornamentos, um ‘sopro barro-co’. Em geral, no século XIX os missais tenderão, cada vez mais, para confecções sim-plificadas, de valor estético bastante reduzido e de caráter mais didático. Não foi este, contudo, o caso do Missal 3� (Foto �).

Quanto nos diz sobre a ‘planetarização visual’ a presença de várias edições destes gravados nos arquivos paroquiais mineiros? Mesmo findo o Barroco nas Gerais, os artistas, religiosos e fieis, tinham, para seu vislumbre, gravuras de fatura barroca, confeccionadas na distante Flandres. Isto explicaria, em parte, a longeva pulsão artística e desdobramentos ulteriores do chamado Barroco Mineiro: esgota-do o surto principal na segunda década do século XIX, aqui e acolá despontarão, ainda, modos e artistas “à antiga” - saudosistas e arcaizantes, expoentes de uma tradição local? Ou leitores visuais de impressos, estes sim, com ilustrações antigas? Os dois, cremos.

Se a arte barroca (especialmente a rubensiana) persistiu até tão avançada data no panorama cultural mineiro, que dizer, então, de artistas mais recuados, “cria-dos” ainda na efervescência das grandes consecuções do período aurífero?

22 Há uma outra versão desta Assunção feita pelo próprio Rubens para a Vrouwekathedraal no mesmo ano de �626.

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Notas Sobre a Reinvenção: As Ceias de Ataíde (Judéia, Europa ou Minas?)

Entre os maiores temas da iconografia mineira está a Assunção da Virgem, repre-sentada em várias igrejas do setecentos e oitocentos. Localizamos gravuras referentes a este dogma católico em praticamente todos os missais. É inegável a influência do atelier de Rubens em muitos destes gravados. Nas criações do artista flamengo em que esta temática é tratada, percebe-se seu gosto característico pelas diagonais, pela profusão de formas, pelo jogo de claro-escuro, pela ausência de contornos definidos e pelo uso da luz relativa, bem ao modo esmiuçado por Wölfflin.

Nas Gerais encontramos expressiva quantidade de ‘Assunções’, representada em dimensões consideráveis, cobrindo tetos de nave e capela-mor, segundo o gos-to perspectivista rococó. Que vemos nestas criações locais? A apropriação de um importante assunto católico/teológico, seguindo, em geral, o formalismo iconográ-fico de antigas gravuras européias (especialmente de Flandres) - formalismo este que possui, em numerosos impressos, contornos nitidamente barrocos, sob influên-cia da escola de Rubens. Como é típico das regiões periféricas, a absorção anacrô-nica de modismos fez conviver, nas Minas, sinuosas linhas barrocas com o colori-do alegre do rococó. Os artistas mineiros não hesitaram em preencher as gravuras em preto-e-branco dos missais (e outros impressos), conforme um novo gosto em voga. É assim que mestres distantes, espacial e temporalmente, se abraçaram em criações estéticas mineradoras: tal foi o caso de Rubens e Ataíde.

Já tivemos ocasião de escrever sobre a utilização de fontes iconográficas por Ata-íde quando analisamos uma das pinturas das ilhargas da capela-mor da Igreja da Or-dem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto. Naquela Santa-Ceia, Ataíde fez uso de uma gravura encontrada no Missal 3�, obedecendo à colocação e disposição dos apóstolos, dos objetos, das proporções e até da serviçal que se achega para servir a refeição.23 A Ceia que serviu de modelo - assinada por um tal Silva F. - ditou a feição geral da consecução, fornecendo ao pintor mineiro subsídio importante para decora-ção da capela-mor franciscana. Porém, Ataíde não copiou docilmente a gravura, antes a reinventou, tornando-a mais ‘palatável’ ao público local e bem vista pelos comiten-tes: a exigente Ordem Terceira de São Francisco. Duas diferenças denotam a liberdade criativa do artista marianense: os rostos, mais arredondados, adocicados, mais cotidia-nos; e o fundo da cena, representado na obra vilariquenha por uma porta de verga ar-queada, simplificada. Na cena original havia um fundo classicizante, mais renascentis-ta. Por que a alteração? A porta de onde sai a serviçal é uma porta como tantas outras que se vêem nas casas mineradoras - singela, luso-brasileira. Esta é, pois, uma adapta-ção fugaz, mas plena de significado: do panorama europeu da gravura, passamos para um ambiente reconhecível pelos expectadores locais.

23 Vide BOHRER, Alex Fernandes. Um Repertório em Reinvenção. Apropriação e Uso de Fontes Iconográficas na Pintura Colonial Mineira. op. cit. p. 30� e 302.

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Representa, esta obra ataidiana, a sociedade européia que produziu a gravura? Ou, a sociedade Geralista, do ouro? Ou ainda, a sociedade hebréia, na distante Judéia, onde se desenrolou a cena canônica? A nosso ver, a obra franciscana é - como toda arte, em sua essência, o é também - um conjunto de apropriações e releituras, amalgamando várias influências, variados lugares, artistas diversos. Na ilharga franciscana não vemos Europa, Minas ou Judéia, vemos os três.

No antigo Colégio do Caraça encontramos hoje, nos corredores neo-góticos da igreja monacal, uma outra interessante Ceia de Ataíde, concebida nos últimos anos de sua vida. Nela observamos, ao centro, Cristo abençoando os pães ázimos; João recosta-se à sua direita; ao derredor, em ambos os lados, distribuem-se os apóstolos, com destaque, em primeiro plano, para Judas, que lança um desconcer-tante olhar ao visitante; à esquerda vemos duas serviçais, à direita, uma. O colori-do, a musculatura, o panejamento, são típicos de Ataíde, mas, no cerne desta sua criação, está, sem dúvida, o uso de uma ou mais gravuras européias. Não é sem razão que, formalmente, a Ceia do Caraça se ligue com a paleta de famosos mes-tres do Velho Mundo.

Em �630 Rubens concebeu uma interessante Última Ceia (conservada hoje em Moscou), que em muito lembra a citada ceia mineira: o conjunto eqüitativo dos apóstolos em torno da mesa; o Cristo, com olhar piedoso, voltado aos céus; o ato de abençoar os pães; o olhar indagador do apóstolo à direita, no primeiro plano. Em suma: mesmo com diferenças formais e, levando-se em conta o penumbrismo de Rubens, podemos dizer que há um elo entre as concepções do artista europeu e o mestre mineiro. Que caminhos são esses? Como melhor perscrutá-los? Estas são questões que esperamos responder em ocasião próxima e oportuna.

Bibliografia Principal Utilizada:

BOHRER, Alex Fernandes. (no prelo). Mecenato e Fontes Iconográficas na Pintura Colonial Mineira. Ataíde e o Missal 34. Anais do XXIV Colóquio do Comitê Brasi-leiro de História da Arte.

___________. Um Repertório em Reinvenção. Apropriação e Uso de Fontes Icono-gráficas na Pintura Colonial Mineira. Barroco, Belo Horizonte, v.�9, 2005.

CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde. Aspectos Históricos, Estilistas, Iconográficos e Técnicos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2005.

FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na Livraria do Cônego. São Paulo: Editoria Itatiaia, �98�.

LEVY, Hanna. Modelos Europeus na Pintura Colonial. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, v. 8, �9��.

MACHADO, Lourival Gomes. Barroco Mineiro. São Paulo: Perspectiva, �969.

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SILVA, Áurea Pereira da. Notas sobre a influência da gravura flamenga na pintura colonial do Rio de Janeiro. Barroco, Belo Horizonte, v.�0, �9�8/�9.

Foto 1: Transfiguração de Cristo, Igreja de N.S. do Carmo, São João Del-Rei, Minas Gerais.

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Foto 2: Transfiguração de Cristo, Rafael, Pinacoteca do Vaticano.

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Foto 3: Ressurreição de Cristo, Rubens, Vrouwekathedral, Antuérpia.

Foto 4: Ressurreição de Cristo, Missale Romanum, Ex Decreto (...) MDCCCLI.