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DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA CULTURAL: A TRAJETÓRIA DE GINZBURG Jose Adil Blanco de Lima Professor Renato Lopes Leite Palavras-Chave: Historiografia, Cultura Popular, História das mentalidades, micro-história, Carlo Ginzburg. Primeiramente, minha pesquisa se dirigia ao estudo do retorno a temática da cultura popular na historiografia, que ocorreu a partir da década de 1960. Digo “retorno” porque de fato o estudo das classes populares e suas manifestações socioculturais se iniciou muito antes da segunda metade do século XX. Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, a preocupação e o estudo da vida de pessoas comuns só aparecem na historiografia a partir do momento em que as massas populares se tornam um fator determinante em acontecimentos históricos. Ou seja, somente a partir de movimentos de massas do século XVIII. 1 Em direção semelhante, Peter Burke afirma que o estudo do povo se iniciou de fato nos fins do século XVIII e início do XIX quando as classes mais populares da sociedade e sua cultura tornaram-se objeto de interesse para a elite intelectual da época. Pensadores como Herder e Jacob Grimm buscaram elementos particulares populares mais tradicionais que representassem as crenças e costumes do povo, como canções, livretos, a religião não-oficial do povo, pequenos teatros, entre outros, em uma tentativa de encontrar um espírito de nação. A ascensão do sentimento de nacionalismo fez com que os intelectuais europeus da época procurassem se identificar e até mesmo imitar os elementos populares que tanto estudavam. Todavia, no decorrer do século XIX com a onda de “cientifização” das ciências humanas, a história se restringiu somente a estudos de eventos políticos, deixando esta história da cultura popular de lado para exclusividade de amantes de antiguidades, folcloristas ou antropólogos 2 . A partir do início da década de 1960, o interesse pela temática da cultura popular volta a se tornar centro de atenção por parte de alguns historiadores dispersos em diferentes instituições acadêmicas. Estes estudiosos se entusiasmaram com a atraente perspectiva de se ampliar os limites da disciplina histórica ao explorar as experiências históricas daqueles tão freqüentemente ignorados na historiografia. A lista de historiadores que se dedicaram aos estudos de cultura popular a partir deste período é enorme. Poderíamos rapidamente citar Edward Thompson, Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Peter Burke, Stuart Clark (na Inglaterra), Robert Mandrou, Michel Vovelle, Michel De Certeau, Genevieve Bolleme, Jacques Revel, Roger Chartier, Emmanuel Le Roy Ladurie (na França), Carlo Ginzburg, Giovanni Levi, Carlo Poni (na Itália), Natalie Zemon Davis e Robert Darton (nos EUA); só para apontar os mais conhecidos. A lista poderia se estender muito mais. Como se trata de um amplo fenômeno historiográfico, delimitei meu enfoque nas obras sobre cultura popular do historiador italiano Carlo Ginzburg. Em março de 1965 na cidade de Roma, Carlo Ginzburg da início ao prefácio de seu estudo sobre os benandanti da seguinte forma: 1 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. pp. 217-218 2 BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 1999. p. 31.

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DAS MENTALIDADES À MICRO-HISTÓRIA CULTURAL: A TRAJETÓRIA DE GINZBURG

Jose Adil Blanco de Lima

Professor Renato Lopes Leite

Palavras-Chave: Historiografia, Cultura Popular, História das mentalidades, micro-história, Carlo

Ginzburg.

Primeiramente, minha pesquisa se dirigia ao estudo do retorno a temática da

cultura popular na historiografia, que ocorreu a partir da década de 1960. Digo

“retorno” porque de fato o estudo das classes populares e suas manifestações

socioculturais se iniciou muito antes da segunda metade do século XX.

Segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, a preocupação e o estudo da

vida de pessoas comuns só aparecem na historiografia a partir do momento em que as

massas populares se tornam um fator determinante em acontecimentos históricos. Ou

seja, somente a partir de movimentos de massas do século XVIII.1 Em direção

semelhante, Peter Burke afirma que o estudo do povo se iniciou de fato nos fins do

século XVIII e início do XIX quando as classes mais populares da sociedade e sua

cultura tornaram-se objeto de interesse para a elite intelectual da época. Pensadores

como Herder e Jacob Grimm buscaram elementos particulares populares mais

tradicionais que representassem as crenças e costumes do povo, como canções, livretos,

a religião não-oficial do povo, pequenos teatros, entre outros, em uma tentativa de

encontrar um espírito de nação. A ascensão do sentimento de nacionalismo fez com que

os intelectuais europeus da época procurassem se identificar e até mesmo imitar os

elementos populares que tanto estudavam. Todavia, no decorrer do século XIX com a

onda de “cientifização” das ciências humanas, a história se restringiu somente a estudos

de eventos políticos, deixando esta história da cultura popular de lado para

exclusividade de amantes de antiguidades, folcloristas ou antropólogos2.

A partir do início da década de 1960, o interesse pela temática da cultura

popular volta a se tornar centro de atenção por parte de alguns historiadores dispersos

em diferentes instituições acadêmicas. Estes estudiosos se entusiasmaram com a

atraente perspectiva de se ampliar os limites da disciplina histórica ao explorar as

experiências históricas daqueles tão freqüentemente ignorados na historiografia. A lista

de historiadores que se dedicaram aos estudos de cultura popular a partir deste período é

enorme. Poderíamos rapidamente citar Edward Thompson, Eric Hobsbawm,

Christopher Hill, Peter Burke, Stuart Clark (na Inglaterra), Robert Mandrou, Michel

Vovelle, Michel De Certeau, Genevieve Bolleme, Jacques Revel, Roger Chartier,

Emmanuel Le Roy Ladurie (na França), Carlo Ginzburg, Giovanni Levi, Carlo Poni (na

Itália), Natalie Zemon Davis e Robert Darton (nos EUA); só para apontar os mais

conhecidos. A lista poderia se estender muito mais.

Como se trata de um amplo fenômeno historiográfico, delimitei meu enfoque

nas obras sobre cultura popular do historiador italiano Carlo Ginzburg.

Em março de 1965 na cidade de Roma, Carlo Ginzburg da início ao prefácio de

seu estudo sobre os benandanti da seguinte forma:

1 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. pp. 217-218

2 BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo : Companhia das Letras, 1999. p. 31.

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Estudei neste livro as atitudes religiosas e, em sentido lato, a mentalidade de uma sociedade

camponesa – a friulana – entre o final do século XVI e meados do XVII, de um ponto de vista

extremamente circunscrito: a história de um núcleo de crenças populares que, pouco a pouco, em

decorrência de pressões bastante precisas, foram assimiladas à feitiçaria3

Esta passagem retrata perfeitamente o objeto de pesquisa do historiador italiano

em Os andarilhos do bem. Trata-se de uma obra que traz uma série de elementos

inovadores para a época – como, por exemplo, o tema periférico da feitiçaria e das

concepções e crenças de bruxos e feiticeiras – e que foi relativamente bem recebida pela

crítica. A sua boa recepção explica o fato de que em sete anos já houvesse a necessidade

de uma segunda edição. Nesta segunda publicação, encontra-se um pós-escrito redigido

por Ginzburg onde o autor explicita seus descontentamentos com os rumos que

tomaram seus estudos. Na cidade de Bolonha em outubro de 1972 Ginzburg escrevera:

Mas hoje o que me deixa mais descontente é o prefácio – ou melhor, o primeiro parágrafo do

prefácio. Hoje não repetiria mais a ingênua contraposição entre “mentalidade coletiva” e

“atitudes individuais” (...) Insistindo nos elementos comuns, homogêneos, da mentalidade de um

certo período, somos inevitavelmente induzidos a negligenciar as divergências e os combates

entre as mentalidades das várias classes, dos vários grupos sociais, mergulhando tudo numa

“mentalidade coletiva” indiferenciada e interclassista.4

Em poucos anos mais tarde, em 1976, o historiador italiano ao publicar a sua

obra que lhe daria mais prestígio, O queijo e os vermes, abandonara completamente o

conceito de “mentalidade” substituindo este pelo conceito antropológico de “cultura

popular”, que muito deve aos estudos sobre Rabelais do teórico cultural russo Mikhail

Bakhtin. Ao estudar Menocchio, o original moleiro friulano, Ginzburg afirma:

A esta altura poder-se-ia perguntar se o que emerge dos discursos de Menocchio não é mais

uma “mentalidade” do que uma “cultura”. Apesar das aparências, não se trata de uma

distinção fútil. O que tem caracterizado os estudos de história das mentalidades é a insistência

nos elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão de mundo. As

sobrevivências, os arcaísmos, a afetividade, a irracionalidade delimitam o campo específico da

história das mentalidades, distinguindo-a com muita clareza de disciplinas paralelas e hoje

bem consolidadas, como a história das idéias ou a história da cultura (que, no entanto, para

alguns estudiosos engloba as duas anteriores). Inscrever o caso de Menocchio no âmbito

exclusivo da história das mentalidades significaria, portanto, colocar em segundo plano o

fortíssimo componente racional (não necessariamente identificável à nossa nacionalidade) da

sua visão de mundo5.

Nestes 10 anos, de 1966 a 1976, claramente se nota que Ginzburg passa por uma

transição de pensamento. Tendo em vista os apontamentos de Ronaldo Vainfas6 de que

o estudo dos benandanti de Ginzburg é fruto das “irradiações temáticas” da chamada

“terceira geração” dos Annales, decidi me dedicar a compreender esta transição que o

autor italiano faz de uma história das mentalidades para uma micro-história cultural.

Para tanto, uma discussão sobre o que se entende por “história das mentalidades” e seus

3 GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem : feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São

Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 7. 4 GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem : feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São

Paulo : Companhia das Letras, 1988. p. 16. 5 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela

Inquisição. São Paulo : Companhia de Bolso, 2006. pp. 23-24. 6 VAINFAS, Ronaldo. Micro-história : Os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro : Campus,

2002. p. 30.

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usos na tradição historiográfica francesa dos Annales, tal como um resgate do contexto

historiográfico italiano das décadas de 1950 e 1960, se mostrou necessária.

Refletindo sobre estes panoramas historiográficos europeus, logo se repara que

a tese de Vainfas é muito precipitada. Em primeiro lugar, não há indícios de que Os

andarilhos do bem tenha sido uma obra que sofreu influências da história das terceira

geração dos Annales. Na realidade, parece que ela precede em pelo menos dois anos

esta história das mentalidades francesa (refiro-me aqui a geração que sucedeu Braudel),

que tem como seu marco inicial a publicação do livro de Robert Mandrou Magistrados

e feiticeiros na França do século XVII em 1968.

Aparentemente, as influências que levaram Ginzburg a refletir sobre a cultura

popular vieram principalmente do seu contato com a literatura (especialmente as obras

de escritores russos como Tolstoi e Dostoievski). Ele cresceu em um ambiente familiar

intelectual engajado que quase o levou a se tornar um literato. Em Os andarilhos, o

historiador italiano utiliza o termo “mentalidade” como um tributo a Marc Bloch,

devido ao imenso impacto que o livro Os reis taumaturgos de 1924 teve em sua

formação de historiador. Portanto, se Ginzburg segue uma história das mentalidades, ele

segue aquela referente a primeira geração dos Annales, e não da terceira.

A afirmação de que o estudo sobre os benandanti seja uma típica história das

mentalidades também é questionável. Se se trata de uma história das mentalidades, é

uma bastante peculiar. Peter Burke afirma que as características fundamentais da

história das mentalidades são: a valorização das atitudes coletivas ao invés das atitudes

individuais; por em evidência elementos inconscientes ou não-expressos; e a

preocupação com a forma como as pessoas pensam e com aquilo que pensam7.

Entretanto, em os Andarilhos, Ginzburg não se limita somente a expor uma determinada

mentalidade. Seu objetivo fundamental era “mostrar a intersecção entre a longa duração

e a duração breve, a intersecção do movimento rápido e da mutação consciente com

aquilo que é lento e inconsciente”8. Importante notar que esta contraposição de durações

e escalas já era muito comum na historiografia italiana, sendo a espinha dorsal de

importantes revistas acadêmicas como a Quaderni Storici.

No pós-escrito de 1972 é que Ginzburg demonstra ter tido algum contato com

a historiografia francesa. Foi refletindo sobre esta que o autor italiano reconhece as

insuficiências dos estudos das mentalidades. De fato foi uma constatação bastante

precoce, a publicação de O queijo e os vermes quatro anos mais tarde marca o início do

declínio da historia das mentalidades francesa e a ascensão da chamada Nova História

Cultural. Ginzburg, muito influenciado por obras de Vladimir Propp (Morfologia do

conto maravilhoso) e de Mikhail Bakhtin (A cultura popular na idade média e no

renascimento) passa a defender a idéia de uma circularidade cultural entre as culturas

populares e eruditas.

Em suma, ao se aprofundar as reflexões sobre esta transição que Ginzburg

passa, logo se nota diversas insuficiências nos apontamentos de Ronaldo Vainfas.

Acredito que a maior parte de seus equívocos sejam frutos da não-consideração de

elementos biográficos de Ginzburg e da historiografia italiana das décadas de 1950-

1960. Para se entender uma obra de melhor forma deve-se levar em consideração os

contextos historiográficos em que ela foi produzida, e também as leituras e

acontecimentos biográficos que marcaram o pensamento do autor.

7 BURKE, Peter. O mundo como teatro : estudos de antropologia histórica. Lisboa : Edifel, 1992. p. 27.

8 GINZBURG, Carlo. Apud In : LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana : escalas, indícios e

singularidades. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006. p. 301.