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Cá entre Nó s 8ª EDIÇÃO ‐ CAMPINAS, JANEIRO|MARÇO ‐ 2020 Tratarei aqui da experiência de inclusão, tal como o LEPED a concebe e vive. Somos um grupo que já existe há um bom par de anos, congregando pessoas bem diferentes em momentos distintos de suas carreiras e buscas pessoais; alunos da graduação, orientandos de mestrado e/ou doutorado e ex orientandos; profissionais da educação bastante atuantes ou meros curiosos, como é o meu caso. Mas se há algo em comum a cada um de nós, é o interesse pela constituição de um pen samento em defesa da educação para todos, a favor da valorização do professor, ao mesmo tempo em que recebemos uma formação consistente e intensa para garan tir o trabalho que realizamos. Nessa variedade de histórias de vida e de trajetórias profissionais, nos encontros semanais do LEPED, vivemos momentos saudáveis de discussão, conversa, trocas de opiniões, embates, ao tratarmos as leituras e conceitos de uma programação de estudos previamente estabelecida.,Os acontecimentos locais, nacionais, internacionais e as experiências por nós vividas também fazem parte desses momentos de estudo. Nossos encontros são carregados de sentido. Buscamos novos referenciais para debater questões centrais do LEPED: a inclusão na teoria e na prática. Estamos sempre atentos à realidade e aos seus ‘chamados’, dada a participação do LEPED e de seus membros em diversas ações e eventos, dentro e fora da uni versidade. A educação nos instiga a questionar seus processos, a localizar e a nos situar em seu fluxo de acontecimentos. Nessa combinação entre teoria e prática, vemos alguns conceitos serem materializados, tanto nas narrativas acadêmicas, como nos Editorial Colegas, Nesta, como nas edições anteriores, o objetivo dos nossos articulistas é trazer à tona o que é próprio dos sentimentos, do dia a dia que vivemos como profes sores; as experiências que nos marcaram ou que passaram em branco na nossa lida nas escolas, no dia a dia, com ou sem os alunos. Os textos que selecionamos para este número insistem no modo como nos compor tamos profissionalmente e como a escola nos encaminha para admitir e buscar a homogeneização das turmas e tudo o mais que nos dificulta a enten der uma escola para todos os alunos, cuja marca é a diferença de cada um. Trazemos o silêncio, a dificuldade de fazer valer nossos pontos de vista sobre o ensinar, o aprender, mas também o potencial das boas práticas peda gógicas, que estão dis poníveis para mudarmos a escola. Não faltou falar do que caracteriza o LEPED como grupo, na visão de um de seus membros. E da palavra, essa tirana e des conhecida companheira. O Editor Para além da formação... Helio Braga da Silveira F. DISTRIBUIÇA, O GRATUITA 1 Imagem: Deposiphotos/Marinka

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Ca entre Nos8ª EDIÇÃO ‐ CAMPINAS, JANEIRO|MARÇO ‐ 2020

Tratarei aqui da experiência de inclusão, tal como o LEPED a concebe e vive. Somos um grupo que já existe há um bom par de anos, congregando pessoas bem diferentes em momentos distintos de suas carreiras e buscas pessoais; alunos da graduação, orientandos de mestrado e/ou doutorado e ex­orientandos; profissionais da educação bastante atuantes ou meros curiosos, como é o meu caso. Mas se há algo em comum a cada um de nós, é o interesse pela constituição de um pen­samento em defesa da educação para todos, a favor da valorização do professor, ao mesmo tempo em que recebemos uma formação consistente e intensa para garan­tir o trabalho que realizamos.Nessa variedade de histórias de vida e de trajetórias profissionais,

nos encontros semanais do LEPED, vivemos momentos saudáveis de discussão, conversa, trocas de opiniões, embates, ao tratarmos as leituras e conceitos de uma programação de estudos previamente estabelecida.,Os acontecimentos locais, nacionais, internacionais e as experiências por nós vividas também fazem parte desses momentos de estudo. Nossos encontros são carregados de sentido. Buscamos novos referenciais para debater questões centrais do LEPED: a inclusão na teoria e na prática. Estamos sempre atentos à realidade e aos seus ‘chamados’, dada a participação do LEPED e de seus membros em diversas ações e eventos, dentro e fora da uni­versidade. A educação nos instiga a questionar seus processos, a localizar e a nos situar em seu fluxo de acontecimentos.Nessa combinação entre teoria e prática, vemos alguns conceitos serem materializados, tanto nas narrativas acadêmicas, como nos

EditorialColegas,

Nesta, como nas edições anteriores, o objetivo dos nossos articulistas é trazer à tona o que é próprio dos sentimentos, do dia a dia que vivemos como profes­sores; as experiências que nos marcaram ou que passaram em branco na nossa lida nas escolas, no dia a dia, com ou sem os alunos.

Os textos que selecionamos para este número insistem no modo como nos compor­tamos profissionalmente e como a escola nos encaminha para admitir e buscar a homogeneização das turmas e tudo o mais que nos dificulta a enten­der uma escola para todos os alunos, cuja marca é a diferença de cada um.

Trazemos o silêncio, a dificuldade de fazer valer nossos pontos de vista sobre o ensinar, o aprender, mas também o potencial das boas práticas peda­gógicas, que estão dis­poníveis para mudarmos a escola.

Não faltou falar do que caracteriza o LEPED como grupo, na visão de um de seus membros. E da palavra, essa tirana e des­conhecida companheira.

O Editor

Para além da formação...

Helio Braga da Silveira F.

DISTRIBUIÇAO GRATUITA1

Imagem: Deposiphotos/Marinka

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discursos e nas corporalidades dos membros desse grupo de estudo e pesquisa, gerando alto grau de aprendizado e com­prometimento. A história nos ensina que a problematização do tempo presente e a análise de seus acontecimentos, são o suporte que possibilita a construção de nossa ação, criando, a partir da compreensão de seus fenômenos, as possibilidades de transformação e de afirmação de nossas intenções educacionais. Construir essa ação, estabe­lecendo o estudo e a reflexão sobre os processos em torno da dinâmica das experiências pessoais e/ou coletivas, permite que não sejamos subjugados pela ilusão e pela superficialidade ­ redutoras das análises apressadas.No processo de trabalho do LEPED, os conceitos são lidos, interpretados, discutidos e assimilados, transformando­se tanto em referenciais como em condutas e gestos, que sustentam argumentos científicos, atitudes e posturas educacionais. A defesa de posições teórico metodo­lógicas fica, assim, emaranhada no movimento dos corpos, marcando de coerência e de comprometimento as ações das quais cada um de nós participa. Portanto, os estudos realizados pelo LEPED não se reduzem a

ampliar um lastro intelectual e acadêmico de cada uma de nós, mas em sustentar um campo de luta, cujo objetivo principal é a constituição de uma escola inclusiva, habitada por uma dinâmica democrática substantiva que possibilita aos seus participantes tornarem­se presença na escola. No dizer de Regina Leite Garcia (1995) [...], a “escola deve aprender a tolerância às coisas estranhas [...] em oposição à tão buscada homogeneidade escolar, que é um resultado do aprisionamento das diferenças em práticas que se limitam a trabalhar o pensamento convergente. Isto acontece na escola primária, quando se inicia a vida escolar. E continua por toda essa vida até à universidade, em um processo contínuo de aprisionamento do impulso criador. As normas, as regras, os modelos vão sendo impostos e internalizados na preparação de sujeitos (mas são sujeitos?) “úteis” à sociedade, conformistas à ordem esta­belecida”.Nesse permanente exercício de construção de conhecimento, dentro de uma lógica engajada e politizada e em uma época partidarizada ao extremo, o LEPED se questiona, regu­larmente, a respeito dos rumos de seus trabalhos. Dentro do emaranhado e da complexidade das forças sociais, há interesses envolvidos e colocados de forma transparente ou jogos de espelhos que iludem a percepção dos fatos e das disputas ocorridas. Para Nicolau Sevcenko (1998), a [...] “realidade do embate entre esse propósito racionalizador e o anseio das gentes desejosas de controlar seus destinos e multiplicar suas oportunidades leva a complicados jogos de confrontos, negociações, adap­tações e recriações”.

O LEPED, no meu entender, foge dessas armadilhas por combinar coerência com consciência em sua trajetória de trabalho, materializando­se, no meu entender, em um vórtice, uma força que busca se deslocar da realidade para dela melhor se aperceber, mas que, ao mesmo tempo, está a ela ligado, por um profundo laço e lastro ético, constituindo­se como uma raro espaço de encontro, criação e ação. Giorgio Agamben (2018), reforça [...] “o vórtice é uma forma que se separou do fluxo da água do qual fazia parte, e ainda faz, de algum modo; é uma região autônoma e fechada em si mesma e obedece a leis que lhe são próprias; contudo, está estreitamente ligada à totalidade em que está imersa, é feita da mesma matéria, que troca continuamente com a massa líquida que a cerca”

1979 ­ Em uma escola particular, uma professora generalista de 4ª série do Ensino Fundamental, não mudava de assunto enquanto não estivesse com a certeza de que seus alunos, de 10 anos, haviam compreendido, de fato, o que estava sendo estudado. Percebendo a dificuldade da turma, em diferenciar movimentos migratórios de movimentos imigratórios, pediu às crianças que trouxessem várias roupas, sacolas, lenços e lençóis, para a próxima aula. Na manhã seguinte, estava reproduzido, no chão da sala de aula, um grande mapa do Brasil dividido em Estados, e mais distante deste mapa, um esboço do continente Europeu.

O desejo de ensinar

Ana Maria F. de Camargo

Ediçao trimestral

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Vemos alguns conceitos serem

materializados, tanto nas narrativas

acadêmicas como nos discursos e nas

corporalidades dos membros desse grupo de estudo e pesquisa.

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Com roupas de retirante e trouxas de roupa na cabeça, a turma migrava – caminhando em cima do mapa do Brasil ­ de Recife a São Paulo. Depois da Bahia a Minas e assim por diante, como se estivessem encenando uma peça. Desta forma, compreen­deram, na prática, o que era migração. Em seguida, foi a vez de migrar da “Europa” para o Brasil. E, em um terceiro momento, tudo foi feito ao mesmo tempo. Essa atividade não estava prevista em seu planejamento, mas a profes­sora julgou ser necessária para a melhor compreensão dos dois conceitos. Relato de uma professora, quando cursava a 4ª série do Ensino fundamental.1976 ‐ Em uma escola pública brasileira, uma professora de ensino fundamental de estudantes com idade média de 10 anos, utilizava a horta como instrumento interdisciplinar. Conteúdos de matemática, ciências e português. além de muitas mãozinhas mexendo na terra, eram discutidos, a partir desta pequena plantação, que os próprios alunos cuidavam. Uma vez por semana, preparavam saladas e receitas especiais com

as verduras e legumes produzidos. Era uma festa, com doses generosas de noções de higiene alimentar e pessoal e boa alimentação. Tudo corria bem, até que chegaram reclamações de barulho da turma, ao sair da sala em direção à horta. Como contornar a situação? A sala tinha janelas que podiam ser abertas, eram baixinhas e davam acesso ao lado de fora do prédio. A solução estava na janela que passou a ser usada como “porta de saída”. As reclamações cessaram e a diretora fez vista grossa para essa solução , digamos, pouco ortodoxa encon­

trada pela professora. O projeto da horta estava salvo! Alguns anos depois, a professora desse último relato e também autora deste artigo cursou pós­graduação em educação, e se dedicou ao ensino e à pesquisa em formação de professores.

***Durante a minha formação na pós­graduação, fui afetada pelas análises foucaultianas, e por isso, percorri um caminho diferente daquele das teorias tradicionais e críticas da Educação. Busquei sempre interrogar a constituição do professor, tomando­os como ponto de partida por entender que nós docentes somos o resultado de práticas e técnicas discursivas, presentes nas instituições escolares por onde passamos.Assim, ao ocupar­me da formação de docentes e tratar de um de seus espaços privilegiados – o cotidiano da sala de aula ­ constatei que inúmeros discursos são proferidos e, na maioria das vezes, repetidos à exaustão e ganham status de verdade. Nessa linha de pensamento, o discurso repetido ad infinitum deixa de chamar atenção: ganha invisibilidade ao ser considerado normal e natural; enquanto o discurso que traz o novo, a crítica, a dúvida e coloca o pensamento em movimento, provoca instabilidade, insegur­ança, susto e, muitas vezes, é re­preendido por tirar­nos o chão. Mas é preciso lembrar que, o papel do educador passa por questões mais complexas do que apenas transmitir conhecimento.No momento em que, o professor tira os seus alunos da zona de conforto e os leva para situações inusitadas faz com que se in­teressem pelo conteúdo, e que novas vivências e experiências despertem o sentimento de perten­cimento ao grupo e à sociedade.

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O questionamento do já feito, já dito e já

pensado ébastante relevante porque pode nos

levar a um profundo desejo de mudar e

procurarnovas formas de

ensinar e aprender.

Ediçao trimestral

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Imagem: Hakase‑Getty Images/iStockphoto

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2005 ‐ Era uma turma considerada apática pelo corpo docente. Nada os estimulava à discussão. Já haviam experimentado de tudo. Mas nada os motivava. Lembrei­me, então, das discussões no curso de aperfeiçoamento em educação, e resolvi mudar o jogo. Daqui para a frente, o aluno fala muito e o professor pouco. Para introduzir conceitos de Socio­linguística, apresentei uma fita e teci os comentários sobre o estilo da fala dos atores. Em seguida, realizei uma dramatização e atribui aos alunos os diferentes papéis, que envolviam diferentes classes sociais e maneiras de falar. Inicialmente, os alunos se mostravam tímidos, mas após essa e outras atividades, como colagem de figuras e reconsti­tuição de falas de brincadeiras infantis, verifiquei que a turma considerada apática poderia melhorar sua performance, se estimulada adequadamente a participar das aulas e, con­sequentemente, do aprendizado. A perspectiva estética desses relatos e análises possibilita rever modelos e padrões já esta­belecidos na prática docente. O questionamento do já feito, já dito e já pensado é bastante relevante porque pode nos levar a um profundo desejo de mudar e procurar novas formas de ensi­nar e aprender.

***O que possibilita a muitos professores realizarem trabalhos inovadores ao praticarem o ofício de ensinar?O último relato mostra mudanças no fazer docente, após a par­ticipação do professor em um curso para formação de professores, cujas discussões serviam para que esses pro­fissionais tivessem desejo e não receio de exercitar outras formas de ensinar, de aprender, de ler e de conhecer. Também nos relatos

da década de 70, do século passado, observamos trabalhos de professores diferentes do usualmente desenvolvido naque­la época nas escolas, e ao mesmo tempo, bem próximo daqueles de 2005. Além da época ser bem anterior à 2004, convém lembrar que. aqueles professores não frequentaram cursos de aper­feiçoamento ou especiali­zação em formação de professores.O que, então, motiva alguns professores a realizarem um tra­balho diferenciado?Estudos mostram que existe no ofício docente a capacidade humana para o prazer de criar e recriar dia a dia os saberes que falam de nós, da vida e do mundo em que vivemos, procurando dar­lhes um sentido que venha da nossa experiência de viver. Contreras (2005), argumenta que é esse desejo de ensinar que dá sustentação aos docentes em seu trabalho, ou seja, “o desejo de estar com a infância e a juventude, de compartilhar com eles vivências e experiências e poder orientá­los, compartilhar o mundo com eles, para uma vida mais plena”. Essa experiência se vive mais ou menos, melhor ou pior, às vezes acertando, às vezes equivocando­se. O importante é que ela torna

visível o essencial, a partir de práticas concretas, singulares, e personalizadas. Fixando­se naquilo que já nos acostumamos a não ver, aquilo que os códigos convencionais da instituição escolar ignoram ou silenciam. Porque, às vezes, a vida institucional e burocrática da escola, que se supõe dever estar a serviço da prática educativa, torna­se a preocupação fun­damental do professor que acaba perdendo a essência do ato educativo.Só é possível personalizar o en­sino, quando vivemos a relação educativa, enquanto docentes, na primeira pessoa. Isto é, estando e atuando como quem se é, para além do que institucionalmente está estabelecido. No ofício docente está, definitivamente, em jogo a possibilidade de que a experiência educativa seja uma experiência de liberdade, tanto para os estudantes como para os docentes, quer dizer, a pos­sibilidade de abrir­se às experiências dos outros e do outro dentro de si (Muraro, 2004), poder ser mais do que já se é.Finalizando, vale perguntar: por que o modelo escolar ainda vigen­te em nossas escolas apresenta sérias dificuldades para integrar,

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Ediçao trimestral

Imagem: Gustavo M. Tomazi

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em seu interior, as diferenças de capacidades físicas e tantas ou­tras? Ocorre que, a maioria das práticas de atenção aos alunos nas salas de aula, visa conseguir recuperar a homogeneidade, ou compensar sua falta. Será que um trabalho mais personalizado do professor e realizado com o desejo e o prazer de estar atuando em uma sala, absolutamente, hete­rogênea não seria o caminho para a inclusão?

O que diz o professor em silêncio?Por que parou de falar? Como pode estar sem dizer algo? O professor em silêncio suspende no ar a certeza de todos, quebra um contrato invisível que prediz que seria ele o falador; faz esperar e breca, mesmo que por um instante, o pensamento. O silêncio no professor rasga uma fresta, um entrelugar, uma fronteira difusa, revela um beco (sem saída?) cheio de portas. O cessar das palavras ditas abre espaço para o ecoar das não­ditas, das difíceis de dizer, abre espaço para que percebamos talvez que elas – as palavras ditas ­ não fazem tanta falta assim, ou que não é delas que emerge o sentido de que precisamos para apreender a nós mesmos e ao mundo. Na beirada desse abismo de não­palavra aparece um desconforto, um constrangimento, uma ânsia para que, rapidamente, o ar volte a ser preenchido por elas, como se elas fossem o próprio ar que respiramos. Somos dependentes das palavras? Só podemos existir por meio delas? Mas de quem são essas palavras que me viciaram? Não escolhi o som de nenhuma delas. Foram herdadas à força.

Seu significado vaza, não pode ser contido. O significado é de cada um que escuta e toda explicação do outro soa sempre um tanto arbitrária, mole. Lem­bro­me e reflito sobre o dito de Ítalo Calvino (2011)[...] não há linguagem sem engano. Quisera o autor dizer que não há uma linguagem em que não haja problemas de entendimento ou que a linguagem é em si o conjunto de problemas de entendimento? Só existiria a linguagem no engano?Mas ora! Eu sei o que digo e saem da minha boca as palavras. Eu as escolho e as combino. Eu falo e assim sou alguém. Será?Algumas vezes, a aflição sobre o que falamos recai sobre nós. Isso acontece quando intervimos, intencionalmente, sobre o próprio ato de pensar e falar o pensado e nessa circunstância calha de afluir algum estranho constrangimento e, então, podemos pensar: Estas palavras são minhas? Sou Eu mesmo quem as fala? E assim o ventríloquo descobre que é ele o boneco. E nesse choque, nesse rompimento radical e incon­tornável, tem de lidar com sua própria experiência da língua.Falo daquela sensação que todos conhecemos quando dizemos algo

sem estarmos certos do que estamos dizendo, ou que, mesmo quando nos parece certo o dito, um mal estar na garganta, na língua, no estômago, toma conta. Quando dizemos algo e secretamente sentimos que esta não é a minha voz, não são minhas estas palavras. No pensar de Larossa (2001): “Estas palavras cada vez mais vazias e esvaziadas,

que significam ao mesmo tempo tudo e nada; marcas, clichês, etiquetas de consumo, mercadorias que se avaliam bem no mercado com a alta da boa consciência; palavras que mascaram a obsessiva afirmação das leis e da excessiva ignorância dos sentidos.” Democracia, comunidade, diálogo, tolerância, pluralidade, inclusão, respeito, formação... Quando ouvimos palavras esvaziadas nos discursos alheios (e, em nosso próprio) esfarela o sentido, desmaia o pensamento. Mas ao mesmo tempo, sentimos o conforto, a identificação e nos reconhecemos no espelho

SilêncioSeizo Soares

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Ediçao trimestral

Somos nômades e o mundo, nada acolhedor.

Imagem: © obviousmag

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normalizado das palavras. Agarramo­nos ao nosso lugar de identidade e dizemos: sim! E meneamos a cabeça, e nos sentimos fortes e engajados em algo (enfim). E quanto mais reforço essa identificação, mais me sinto pertencente a um grupo, mais confortável e seguro me sinto sobre as próprias mãos. Devo saber quem sou! Devo colocar­me no lugar do outro. Clichês intelectuais que podem ilustrar a ‘manipulação das liberdades´ em nosso tempo (Jean Luc Nancy, 2015). Se me ocupo de saber quem sou por meio exclusivo das palavras, achato o que posso, não vivo o devir que aponta para o presente, para o agora e para a liberdade; não é possível colocar­me no lugar do outro, e se mesmo assim o procuro fazer, resulta caricatura tosca acreditada como símile.Toda política de identificação e governo da diferença, tudo que normaliza e agrupa, tudo o que depende da administração das fronteiras entre o mesmo e o outro, revela um pensamento antibabélico (Larossa, 2017), que suscita que

o homem não deve mais aprender a ser livre, deve, sim, aprender a viver em grupo e a comunicar­se ordenadamente; devemos voltar à casa, retornar à origem. Devemos falar a mesma língua sob pena de não nos reconhecermos uns aos outros, sob pena de não formarmos um grupo. Mas “Minas não há mais” (Drumond, 1982), como diz o poeta. Não há língua comum, não há retorno possível. Há a babel e é preciso habitá­la. Não existe uma casa para o homem na terra. “A língua não permite darmos um sentido ao mundo nem darmos um sentido a nós mesmos” (Larossa, p.21). Somos nômades e o mundo, nada acolhedor.Assim, se o pensamento anti­babélico diagnostica a confusão e a difusão da humanidade como sintomas de um mal para, então, “curá­lo” por meio da reunião (religião?), da tradução das línguas e culturas, administrando­as, domesticando­as para torná­las produtivas, úteis, compreensíveis e rentáveis, o habitante da Babel, por sua vez, abraça o confuso, o

incom­preensível, o confronto, a melancolia da vida, para transformá­los em uma estética vital em que o presente flui, o passado se vai e o futuro é incerto.

Sabe­se que um professor interessante é aquele que aceita as experiências reais de aprendizagem, imersas essas na dança constante de possibilidades e impossibilidades e, por isso, são experiências desafiadoras e perturbadoras. Esse professor não tem vida confortável, pois, não é simples ser interessante. Masele interessa muito a seus alunos. E ao aceitar as expe­riências reais, coloca­se em movimento. Reforço, neste breve artigo, o sentido dessa tal experiência real de aprendizagem que chancela o docente como interessante.

Um percursodo docente interessante

Mônica Sydow Hummel

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Ediçao trimestral

Imagem: kot63/iStock

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Essa experiência expõe o docente; não nas mídias sociais, mas expõe a vulnerabilidade que é própria de qualquer profi­ssional, e que, no entanto, tantos dedicam um esforço enorme para proteger­se dela. Bobagem. A vulnerabilidade (de suas técnicas, de sua formação, na relação com seus pares e etc.) é exposta na experiência real, porque, essa é feita de lacunas, do embaralhar de expectativas ou do que está posto e disposto nas rotinas do docente. Daí, uma vez aceita, na experiência real de aprendizagem há certa dose de drama. Drama não é sofrimento; drama é intensidade. William Shakespeare ensinou: a vida é drama. Negar a intensidade é diminuir a vida.Ir ao encontro dessas experiências reais de aprendizagem, de ex­periências interessantes, é saber se inserir em “labirintos”: feitos esses de retas direções (padrões, normas, modelos) e também lacunas (ou o embaralhar daquilo que parece normal, adequado e etc).Os labirintos convidam a perder­se antes de encontrar saídas; nos labirintos quanto mais se mexe menos encontra essas saídas; eles expõem a vulnerabilidade de to­da situação e de todo ser; por isso, neles vive­se o drama temporário da aprendizagem. Isto se passa em muitas circunstâncias nas escolas e

também nas famílias, nas paixões, na doença, em quadros de violência... Onde há vida humana.Acontece que, são nas lacunas e nesse embaralhar dos controles de tudo que está bem previsível, que se dão os movimentos de criação, de crítica e de diálogo aberto. Ou seja, naquilo que se teme – as lacunas e consequente vulnerabilidade – está a força da aprendizagem, está a ação educadora e, não, o mero ativismo profissional. Este é o percurso, por vezes diário, de um docente interessante. Ele se nega a viver reverenciando sua vida pro­fissional, tangenciando pela resistência e, assim, negando a possibilidade de transformação. O professor não é um tesouro nacional, tampouco tem de estar no pelourinho da vez. Ele tem de ser interessante.

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O professor não é um tesouro nacional, tampouco tem de

estar no pelourinho da vez.

Ele tem de ser interessante.

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seu dispositivo.

Fala aí!Escreva para nós, dê

sua opinião e mande

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caentrenosweb.com

Ana Paula da Silva Ribeiro

Olá, equipe Cá entre Nós!Adorei a edição setembro/

novembro ­ 2019. Parabéns pelas

abordagens que nos levam a refletir sobre a prática acerca da inclusão. As mudanças precisam ser internas, individuais e consequentemente

contagiarão o outro e o outro. E assim

construiremos pessoas dignas buscando uma sociedade melhor para

todos. Cada um fazendo o seu melhor, dando a melhor parte de si. O mundo é um só para

todos! conceitos e tenho utilizado na minha pesquisa. Parabéns!

Samira Maximiano Schiavon

Vim a conhecer a publicação através de uma aluna. Amei e já

estou utilizando nas aulas da Pedagogia e da pós.

Obrigada

Ediçao trimestral

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Diga La!Prof. Rosângela Machado

1. O que você considera importante na educação e, na realidade, acontece?

Sou uma professora da Educação Básica que trabalha no atendimento educacional especializado de estudantes com

deficiência, transtorno do espectro do autismo e altas habilidades e percebo que, na rede regular de ensino em que atuo, a inclusão escolar desses estudantes acontece, de fato, pelo direito que todos têm a educação, pelo direito a acessibilidade e pelo direito a diferença. Destaca­se a compreensão por parte dos professores de que cada estudante é único e que não se restringe a sua deficiência.

2. O que você considera importante na educação e, na realidade, não acontece?

Considero que a organização escolar/curricular ainda necessita avançar. Somos bombardeados pela dita sociedade do conhecimento e da aprendizagem, pela sociedade tecnológica e não paramos para questionar o que tudo isso significa, desligando­nos do verdadeiro sentido da educação escolar. Por isso, considero importante resgatar o sentido democrático, público e o poder de renovação da escola.Distanciamo­nos muito da educação/escola como um espaço que promove o tempo livre para seus estudantes. É de fundamental

importância que a educação não esteja preocupada com um tempo de produção, que se vincula ao resultado de aprendizagem padronizado, onde todos devem alcançar os mesmos conhecimentos e as mesmas habilidades. Um tempo livre, que permite ao professor apresentar o mundo aos seus estudantes, a ponto de provocar o interesse e a atenção deles, sem a preocupação com um objetivo de aprendizagem a ser alcançado em um tempo imediato e pré­determinado.

3. O que não considera importante na educação e, na realidade, acontece?

Não considero importante na educação a prática de rankings, por meio de avaliação externa da aprendizagem dos estudantes. A comparação entre estudantes e entre escolas ocasiona uma disputa com base em produtos a serem alcançados. Isso impede/ofusca a percepção dos processos educacionais locais e de cada estudante.

4. O que você não considera importante na educação e, na realidade, não acontece?

É uma pergunta difícil, porque sempre pensamos o que é importante ou pensamos o que não é importante e que acontece. Considero que, não é importante na educação diferenciar as pessoas em função de uma única característica: a deficiência. Neste sentido, considero que gestores e professores estão cada vez mais abertos e compreendendo, que um estudante vai além de sua deficiência. Assim, não há uma diferenciação pela deficiência que exclui.

Ca entre Noscaentrenosweb.com

Direção editorial:Maria Teresa E. Mantoan

Produção:Vanessa F. Alves

Revisão:Marta Avancini

Direção de Arte:Gustavo Machado Tomazi

Realização:

Laboratorio de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença