24

Cachorros Dançantes - Norberto Presta - Preview

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A partir dos fragmentos da história de um morador de rua - que buscando reconstruir o seu passado, inicia um processo de reconquista da própria memória e da própria identidade - Cachorros Dançantes questiona as noções de preconceito, da alteridade. Tema este recorrente na criação do autor, que já em outras produções conta histórias de marginalidade, transformando-as em material artístico, procurando um caráter poético sem perder de vista a observação e análise de realidades sociais e ficcionais que, dialogando, proporcionam delas outros níveis de compreensão.

Citation preview

1ª edição

São Bernardo do CampoLamparina Luminosa

2013

CACHORROS DANÇANTES

Norberto Presta

As licenças deste livro permitem copiar, distribuir, exibir e executar a obra e fazer trabalhos derivados dela, conquanto que sejam para fins não comerciais, que dêem créditos devidos ao autor e a Lamparina Luminosa, e que as obras derivadas sejam distribuídas somente sob uma licença idêntica à que governa esta.

Coordenação editorial: Christian Piana

Ilustrações: Roberta Tinelli

Projeto gráfico: Roberta Tinelli e Christian Piana

Tradução em italiano: Paolo Cattaneo e Arianna Buson

Tradução em português: Andrea Elias e Francis Ivanovich

Revisão em espanhol: Cristina Rosin

P939 Presta, Norberto, 1953 Cachorros dançantes / Norberto Presta; ilustrações de Roberta Tinelli. - 1.ed. São Bernardo do Campo ; Lamparina Luminosa, 2013. 80 p.

ISBN 978-85-64107-05-2

1. Conto brasileiro . I. Título. CDD 869.93015

Ficha catalográfica: Sandra Ap. de M. G. A. Moura CRB-8 5980

1ª edição

CACHORROS DANÇANTES

Norberto Presta

SUMÁRIO

CACHORROS DANÇANTES 12

PERROS DANZANTES 25versão em espanhol

CANI DANZANTI 56versão em italiano

CACHORROS DANÇANTES

11

Perder casa e pai ao mesmo tempo.Os funerais naquela época se faziam na própria casa, se en-

trava no mundo e saía-se dele pelo mesmo quarto no qual se di-vidiam as mais íntimas alegrias e tristezas, se projetava o futuro, se geravam os filhos e claro, também se dormia. Velamos meu pai em seu próprio quarto, em sua própria casa, que já não era sua e que eu mesmo, na manhã seguinte, tive que abandonar... ou da qual fui abandonado.Meu pai decidiu não viver mais. E por sua decisão paguei eu. Abandonar sua vida era coisa dele, mas abandonar seu filho era coisa minha também. Como conseqüência, perdi minha infân-cia e assim começou uma peregrinação forçada através da qual fui conhecendo o mundo que não aceitei como meu, que sempre me foi alheio. Por um tempo passei por lugares que não foram

“minha casa”, a única minha foi a do meu pai, que na realidade nunca

chegou a sê-lo. É estranho sentir-se um desconhecido da própria casa, porque mesmo agora sendo habitada por outros, de algum modo continua sendo minha: é própria a casa onde se nasce, esse lugar é como uma extensão do próprio corpo, do mesmo modo que nosso corpo é um prolongamento do espaço que o abriga, espaço cheio de recordações, de vidas. Nosso corpo e o lugar que o habita se pertencem, se contaminam, compar-tilham memórias, transformando-se um no outro. O viajante que regressa, modifica sua casa com as recordações e ela, por sua vez, transforma com sua presença-tempo àquele que a habita, um e outro, recipientes de vivências para que a vida tenha onde e como se definir. Protegidos entre as paredes

12

da casa-espaço-útero-abraço-pai-mãe, somos. Ali se sucedem os dias em que se aprende a ser e se é. Privado dessa casa-tempo--espaço-útero-abraço-pai-mãe, abrigo que me foi roubado, lar perdido que fez de mim um exilado, um desterrado, me trans-formei em um não sou, em um só estou.Por isso foi indispensável a minha volta, para de fora poder observar-me dentro, vendo-me como eu seria: eu habitante daquele espaço meu, usurpado. Eu habitante da rua, vendo--me habitando-me, sem lembranças, vendo-me em um fu-turo que não foi.Não tinha lembranças, não era isso o que me interessava, nunca me interessaram. Pratiquei o exercício de esquecer o vivido no mesmo instante que o estava vivendo, ao menos o tentei.Portanto, não estava ali para ver-me na memória dos meus anos de infância. Da minha inocência e ingenuidade não tinha nem tive, jamais, nostalgia alguma. Pelo contrário, já tinha o sufi-ciente com minhas fraquezas do presente para assumir aquelas da infância arrebatada. Não era necessário colocar meu corpo diante dessa casa para isso, em qualquer outro lugar teria podi-do, se houvesse desejado, fechar os olhos para reconstruir minha história... ou reinventá-la. Necessitava estar de olhos abertos, queria ver através dessas paredes o que haveria sido “eu” de não ser arrancado delas, roubado delas. Roubado.Ingênuo aquele que pensa que a vida lhe pertence, isto digo eu: filho de pai suicida. Nem sequer a meu pai lhe pertenceu a vida no momento em que decidiu acabar com ela, ele podia só decidir entre um sim e um não, e foi um não. Esse “não” não o fez dono nem do sim,

13

nem de si mesmo. Não pôde ser um sim, porque alguém decidiu antes por ele um não, porque alguém alterou o preço do dólar, que alterou o preço dos cereais, que aumentou a cota dos em-préstimos, fazendo com que os que não pudessem pagar, perdes-sem. Reconheceu, meu pai, que sua vida não era sua e acabou com o que lhe restava de não ser, ou de não poder ser o que seu desejo-mente lhe fez acreditar ser: um ganhador. Meu pai não sabia que não podia ganhar, ele estava ali para perder, esse era seu papel, meu pai não era outra coisa além de uma ficha que podia passar de uma mão a outra, não sabia que podia só decidir não jogar, porque, jogando, seu destino era perder. Os que ati-ram os dados são os donos do jogo, fazem trapaça, sempre trapa-ça, fazem trapaça, não é um jogo, é um roubo, roubo que toma tudo de todos, deixando aos que perdem a conta dos destroços. Meu pai perdeu por jogar o jogo errado. Não foi destino, isso não existe, ninguém escreve por nós o que vai acontecer, a pró-pria pessoa é o autor e quando escreve mal sua própria história, se justifica lançando a culpa a uma força superior pelas desgraças sofridas. Não foi nenhuma força superior, não foi o destino, foi o poder dos que decidem, o poder de seres humanos normais que, carentes de humanidade, decidem quanto vale a vida do resto de seus semelhantes, um simples jogo entre humanos, nem deuses nem destino, só um jogo entre semelhantes que perten-cem a mesma natureza; e dizer semelhantes é uma ironia, uma crueldade, eu não sou semelhante a essas merdas mascaradas de destino. Isto que meu pai não sabia eu o sei, e já não quero sa-ber nada mais a respeito, há muito deixei de pensar no destino e seus proprietários, deixei de perguntar-me, decidi não jogar.

14

Com o que soube, então, não necessitei saber mais.Falava de minha casa.E se é por destino, eu não estava destinado a ser um pária, eu tenho casa, sempre a tive, carrego-a em mim, em meu corpo, porque ainda que minha casa esteja ocupada por algum des-graçado que crê possuí-la, esse espaço é meu. A pessoa leva a si mesma onde quer que vá, levando consigo sua vida. Isso qual-quer um sabe, não é necessário ser inteligente para descobri-lo. Eu levo comigo meu quarto, desde sempre. Em qualquer lugar em que despertava, eu desejava sentir que o fazia no quarto em que nasci, despertar e ser parido foi sempre para mim uma só coisa. Aprendi, sob a força de golpes, a reprimir o grito primal que acompanhava a cada dia o meu desper-tar, isso durou até treze anos, até que numa manhã meus companheiros de quarto, cansados do meu angustiado, angustiante e prolongado grito, me ofereceram uma surra que se repetiu a cada manhã, até que o grito se transformou em um profundo suspiro, que pelo que contam meus ocasionais companheiros de despertares, ainda caracterizam minha passagem do sono à vigília. Não confundir com a angústia que sente o viajante por não saber onde está, sentindo-se perdido no quarto alheio onde dormiu. Para mim é o oposto, eu sei sempre onde estou, mas com o desejo de despertar na minha cama, com a certeza e a proteção do quarto que me conteve nos anos da minha infância. Cada dia, esteja onde esteja, quero despertar na cama em que nasci, saindo de minha mãe, parido a cada dia. Recomeçar. Sabendo que não é

16

assim, antes de abrir os olhos já me revelo, meu grito é por não querer estar onde estou, não por não reconhecer, é por saber que estou onde estou. No instante em que abro os olhos sinto toda a negação por esta imensidão de mundo que não quero reconhecer, habitar, sentir como meu. Esse grito, hoje reprimi-do, é a angústia de não querer entrar nele, é a consciência que tem meu corpo da perda do único lugar onde quisera estar, meu corpo desejando reencontrar-se com algo do que restou desse espaço, desse tempo, dessas pessoas. Pai e mãe habitam em tumbas vizinhas, os anos mudaram tudo, a cama é outra, só fica o quarto, a casa, meu quarto, minha casa. Ninguém podia impedir meu corpo de en-trar nela. Isto soube eu, muito mais tarde.

Não queria, eu, nada, não tinha plano nenhum, só desejo, não, desejo não, isso nunca tive, meu corpo sim desejava, eu não, eu tinha necessidade, isso, necessidade. Não o sabia ou não o que-ria saber, necessitava. Meu corpo não sabia que eu necessitava, e eu não sabia que meu corpo desejava. Apesar de minha própria vontade tinha que fazer o que um impulso acumulado em mim

17

por anos me levava a fazer, aproximar-me a cada dia desta casa, depositar-me diante dela, estar ali, estar, somente estar. Depo-sitado. Eu não sou, somente estou. Só que desta vez, depois de tantos anos de exílio, era preciso, necessitava estar nesse lu-

gar exato. Apareceu por fim uma força que não estava fora do meu corpo, mas dentro dele, suponho que desde

sempre, jamais antes escutada e agora irresistivel-mente presente, demorei a reagir, ignorei-a

por algum tempo, até que comecei a respondê-la, a responder-me, em um primeiro momento, como sempre o fiz, sem vontade nem desejo. Levado.Não foi fácil chegar até o bairro dos meus primeiros anos, reconhecer a rua, reconquistar a memória, reco-nhecer por trás das transformações do tempo o que foi e vê-lo tudo a par-tir de outra perspectiva, tudo parecia menor, como se a memória tivesse

transformado as coisas em um sentido inversamente proporcional ao crescimento do corpo. Reconhecer o espaço era já reconquistar a casa, primeiro de fora, mais tarde de dentro. Entrar.

para saber mais e comrar o livro acesse:www.lamparinaluminosa.com

para saber mais e comrar o livro acesse:www.lamparinaluminosa.com

para saber mais e comrar o livro acesse:www.lamparinaluminosa.com

para saber mais e comrar o livro acesse:www.lamparinaluminosa.com

Lamparina Luminosa

+55 (11) 4127 0866

+55 (11) 9 8531 9222

[email protected]

www.lamparinaluminosa.com

editoralivrepopularartesanal.blogspot.com

Lamparina Luminosa é um projeto que integra as atividades da

Associação de Promoção Humana e Resgate da Cidadania

+55 (11) 4127 0866

+55 (11) 4334 1142

www.padreleo.org.br

Este livro foi impresso pela Graphium

sobre papel Avena LD 80 g/m2

para a Lamparina Luminosa, em março 2013