Cad Aplicação 22 - 1

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL COLGIO DE APLICAO

C A

adernos do plicaoTemtica especial:

Leitura em diferentes gneros e reas do conhecimento: transpondo os limites das disciplinas

Porto Alegre v. 22, n.1, janeiro a junho de 2009

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL COLGIO DE APLICAOReitor: Carlos Alexandre Netto Vice-Reitor: Rui Vicente Oppermann Diretor: Edson Luiz Lindner Vice-Diretora: Lcia Couto Terra Editor: Tadeu Rossato Bisognin Conselho Editorial: Adriana Dorfman (UFRGS), Airton Carrio (UFMG), Antonio Carlos Castrogiovanni (UFRGS), Digenes Buenos Aires de Carvalho (UEMA), Edson Luiz Lindner (UFRGS), Glucia Regina Raposo de Souza (UFRGS), talo Modesto Dutra (UFRGS), Jaqueline Engelmann (UFRGS), Joo Francisco Duarte Jr. (UNICAMP), Joo Vicente Silva Souza (UFRGS), Jos Carlos Pinto Leivas (ULBRA), Jos Maria Soares Rodrigues (UFPA), Jlio Roberto Groppa Aquino (USP), Karen Elisabete Rosa Nodari (UFRGS), La da Cruz Fagundes (UFRGS), Luciana Rossato (UDESC), Milton Mariani (UFMS), Mnica Baptista Pereira Estrzulas (UFRGS), Mnica Lima (UFRJ), Regina Maria Varini Mutti (UFRGS), Rosalia Procasko Lacerda (UFRGS), Rosane Nunes Garcia (UFRGS), Rossano Pecoraro (PUC-RJ), Simone Vacaro Fogazzi (UFRGS), Tadeu Rossato Bisognin (UFRGS), Vanderlei Machado (UFRGS), Vera Teixeira de Aguiar (PUC-RS), Wagner de Campos Sanz (UFG) Comisso Editorial: Agla Castilho Oliva, Andra Terra Lima, Caroline Valada Becker Batista, Glucia Regina Raposo de Souza, talo Modesto Dutra, Tadeu Rossato Bisognin Capa: Telmo Remio Moure Editorao Eletrnica: Tales Gubes Vaz Reviso: Felipe Raskin Cardon Fonte Indexadora: Bibliograa Brasileira de Educao Braslia: INEP / MEC Latin American Periodicals Tables (LAPTOC) Apoio: Programa de Apoio Editorao de Peridicos / PROPESQ / UFRGS ISSN 0103-6041CADERNOS DO APLICAO/Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Colgio de Aplicao. - v.1, n.1 (jan./jun. 1986) Periodicidade: semestral 1986 - 2009 v.22 n. 1 Ensino Fundamental e Mdio CDU 373.3/5. (05)Endereo para correspondncia: Colgio de Aplicao/UFRGS Av. Bento Gonalves, 9500 Bairro Agronomia Porto Alegre/RS CEP 91501-970 Fone: (51) 3308 6977 Fax: (51) 3308 6976 E-mail: [email protected] URL: http://www.cap.ufrgs.br/~cadernos Outros acessos: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/CadernosdoAplicacao/index e www.periodicos.ufrgs.br

SumrioEditorial ....................................................................................5

Leitura em diferentes gneros e reas do conhecimento: transpondo os limites das disciplinasGneros discursivos em sala de aula: uma alternativa para melhorar a leitura e a escrita na EJA Ensino MdioSoeli Aparecida Rossi de Arruda, Maria Rosa Petroni ................................ 7

Temtica especial

Contar histrias: corpos/corpus em performanceShirlei Milene Torres .................................................................................23

O processo de criao artstica de ilustradores de livros de imagem e a constituio de leitoresHanna Talita Gonalves Pereira de Arajo ...............................................55

Jovens leitores e suas prticas de leituraRozeli Frasca ............................................................................................69

Pesquisa em Educao BsicaUm olhar sobre a linguagem de adolescentes de classe socioeconmica privilegiadaNara Beatriz Kreling da Rosa, Lgia Mothes ............................................93

Vivendo a meteorologia para construir a climatologia: experincias prticas no Ensino FundamentalMaira Suertegaray Rossato .....................................................................113

Leitura e escrita no ensino de cincias e biologia: a viso antropocntricaHeloisa Junqueira, Eunice Aita Isaia Kindel .........................................145

Situao de estudo: uma possibilidade de superao dos limites disciplinaresEva Teresinha de Oliveira Boff, Tatiele Walker Soardi, Maria Cristina Pansera de Arajo, Jos Cludio Del Pino .......................................................163

Relatos de experinciasEmlia vai escola: experimentos com a literatura infanto-juvenil de Monteiro LobatoMaria Afonsina Ferreira Matos, Davi Carvalho Porto ............................189

Formando alunos leitores no dilogo entre universidade e escola: a experincia da Ciranda de Leitura de CinciasMaria Matos, Carla Mendes Maciel, Mariana Lima Vilela ....................203

Pensando contedos e metodologias em sala de aula: a experincia da Sociologia no Colgio de Aplicao da UFRGSLisandro Lucas de Lima Moura, Rodrigo Belinaso Guimares ................215

Dos cadernos dos alunosEntre teias e tramas...Adriana Emerim Borges .........................................................................237

EditorialO homem um vivente com palavra. E isto no signica que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem palavra, que o homem enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se d em palavra, est tecido de palavras, que o modo de viver prprio desse vivente, que o homem, se d na palavra e como palavra. Jorge Larrosa Bonda

Bem disse Larrosa Bonda, o homem se d em palavras, est tecido de palavras (2002, p. 21 ). A escola, ento, ao exercer sua funo maior a de formar os viventes, torn-los mais humanos deve proporcionar cada vez mais o desenvolvimento do uso adequado dessa palavra, entendida das mais diferentes formas, nas mais diversas matrias, expressando as mais distintas ideias. Cada vez mais necessrio oferecer aos educandos aes que convoquem sua inteligncia para ler todos os textos, oriundos sejam eles de quaisquer suportes, cada vez mais variados, com o avano da tecnologia. No podemos esquecer, tambm, que hoje a outra face desse processo comunicativo o escrever, o deixar registrado o pensamento utilizando-se das convenes grcas. Este o desao maior aos educadores: fazer com que possam os alunos expressar, como autores e com preciso, o que viram, entenderam e analisaram, visto que interpretar e expressar por escrito interpretar e escrever a realidade. Eis uma ideia vivel da verdadeira educao. Justica-se dessa maneira o porqu de ensinar, o porqu de vencer os imprevisveis e constantes desaos da vida escolar. A temtica especial deste nmero de Cadernos traz experincias e reexes sobre as habilidades mais utilizadas em nossas interaes, depois do falar: o ler e o escrever, compromisso de todas as reas, compromisso de todos os professores, compromisso de todos os educadores, compromisso de todos os viventes, enm. Tadeu Rossato Bisognin

RefernciaLARROSA BONDA, Jorge. Notas sobre a experincia e o saber de experincia. Revista Brasileira de Educao n 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002, p. 20-28.

Gneros discursivos em sala de aula: uma alternativa para melhorar a leitura e a escrita na EJA Ensino Mdio1

Soeli Aparecida Rossi de Arruda* 2 Maria Rosa Petroni**

Resumo: Na esfera escolar, quando pensamos no ensino de leitura e escrita, especialmente na Educao de Jovens e Adultos, os professores de Lngua Portuguesa, ainda, deparam-se com a falta de materiais que deem sustentao terica para sua prtica de ensino da lngua materna na perspectiva dos gneros discursivos, que visam s diferentes prticas sociais. Em virtude de o trabalho com a noo de gnero discursivo ser recente e estar se expandindo, vericamos a necessidade de pesquisas voltadas reexo sobre a prtica pedaggica na EJA E.M. Objetivamos discutir se o trabalho desenvolvido na prtica de sala de aula condiz com a proposta dos PCNEM e OCEM e identicar as diculdades mais comuns para se trabalhar a leitura e a escrita na EJA. Nesse sentido, buscamos trazer algumas contribuies tericas na perspectiva de Bakhtin (1999; 2003), Schneuwly e Dolz (2004); Rojo (2000; 2003), Petroni (2008), Vygotsky (1997), dentre outros. Palavras-chave: Gneros discursivos, Leitura, Escrita.

* Professora, mestranda em Estudos Lingusticos pela UFMT. Trabalha com as prticas pedaggicas de leitura e escrita na perspectiva bakhtiniana. Departamento de Letras/ UNEMAT. E-mail: [email protected] ** Professora do Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem e do Curso de Letras do Instituto de Linguagens da UFMT. E-mail: [email protected]

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Abstract: On the school, when you think the teaching of reading and writing, especially in adult and youth education, the teachers of the Portuguese language, even if faced with the lack of materials that provide theoretical support for their practice of teaching the mother tongue, in view of the genre aimed at the different social practices. Because of the work with the notion of genre is recent and is being expanded, there is a need for research aimed to reect on the pedagogical practice in EJA E. M. Thus, if the aim to discuss work in practice in the classroom consistent with the proposal of PCNEM and OCEM and identify the most common problems to work on reading and writing in the EJA. Accordingly, we make some theoretical contributions in the context of Bakhtin (1999; 2003), Schneuwly and Dolz (2004), Rojo (2000; 2003), Petroni (2008), Vygotsky (1935), among others. Keywords: Discursive generi, Reading, Writing.

IntroduoA pesquisa em desenvolvimento, na rea de Estudos Lingusticos do Programa de Ps-Graduao Mestrado em Estudos de Linguagem MeEL , da Universidade Federal de Mato Grosso, tem como o condutor a leitura e a escrita como prticas pedaggica e discursiva na Educao de Jovens e Adultos EJA Ensino Mdio EM. Assim, buscamos reetir junto com os professores de Lngua Portuguesa, do CEJA Centro de Educao de Jovens e Adultos Professor Milton Marques Curvo , em Cceres/MT, sobre quais so as diculdades de se adotar o texto como unidade de ensino e os gneros discursivos como objetos desse ensino. Acreditamos que uma possvel alternativa para a transformao das atuais prticas de ensino-aprendizagem da lngua materna a adoo de gneros discursivos, visto que eles fazem parte

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das novas propostas escolares, evidenciando sua relao com as prticas sociais. Nesse enveredar, muitos estudiosos armam que aprender a falar, a ler e a escrever , principalmente, aprender a compreender e a produzir enunciados por meio de gneros. Por essa razo, em virtude de a proposta de trabalho nessa perspectiva ser recente e estar se expandindo, vericamos a necessidade de conhecimento terico para os professores terem condies de mediar os conceitos cotidianos (senso comum) e cientcos (mais formais, organizados, sistematizados) para que o aluno desenvolva a percepo, a ateno, a memria, a capacidade para solucionar problemas e interagir em diferentes esferas sociais como cidado. Nas palavras de Bakhtin e Volochnov (1999, p. 112), [...] qualquer que seja o aspecto da expresso-enunciao considerado, ele ser determinado pelas condies reais da enunciao em questo, isto , antes de tudo pela situao social mais imediata. Assim, a noo de gnero discursivo reporta ao funcionamento da lngua em prticas comunicativas reais e concretas, construdas por sujeitos que interagem e se comunicam nas diferentes esferas das relaes humanas. Isso deve ser levado em conta numa sala de aula, em que, na maior parte do tempo, o professor tem uma atitude enunciativa de locutor (intuito discursivo) em relao aos alunos, seus interlocutores, os quais, na maioria das vezes, no se limitam a ouvi-lo apenas. Portanto, o ensino de lngua materna deve estar calcado nos princpios do dilogo. Nesse sentido, numa das fases da pesquisa-ao, realizamos um curso de formao continuada para os professores que atuam na escola lcus com vistas a facilitar sua compreenso terica e prtica de sequncias didticas para o processo ensino-aprendizagem de leitura e escrita. Partimos da pressuposio de que as discusses e reexes desenvolvidas no coletivo estabelecem um intercmbio contnuo e dialtico com as demais prticas sociais, historicamente constitudas. Nesse entremeio, buscamos a possibilidade de estimular uma nova proposta de ensino de leitura e de escrita, na perspectiva dos gneros do discurso, para

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o CEJA, almejada pelos professores que defendem a construo de objetivos comuns para o Ensino Mdio EJA. Segundo Morin (2004), convm rearmar que a pesquisaao diferente de outras pesquisas qualitativas que no so participativas em todas as etapas do processo, pois somente pela parceria entre pesquisador e professores possvel construir uma proposta de ensino pensada especialmente para a EJA, atendendo as orientaes dos documentos ociais, com embasamento terico-prtico, na perspectiva terica de Bakhtin (1999; 2003) Schneuwly e Dolz (2004); Rojo (2000; 2003; 2005) Brait (2005; 2006), Petroni (2008), Vygotsky (1935), entre outros.

Transposio didtica com vistas aos gneros discursivos[...] a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gnero discursivo. Essa escolha determinada pela especicidade de um dado campo da comunicao discursiva, por consideraes semntico-objetais (temticas), pela situao concreta da comunicao discursiva, pela composio pessoal dos seus participantes, etc. A inteno discursiva do falante, com toda sua individualidade e subjetividade, em seguida aplicada e adaptada ao gnero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada forma de gnero (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Nas colocaes de Bakhtin (1999; 2003), o enunciado uma unidade do discurso, concreto tanto quanto o instante de interao dos envolvidos na comunicao. Para o autor, h uma grande diversidade de uso da lngua, a que denomina gneros discursivos, compostos pelo trip indissolvel: contedo temtico, forma composicional e estilo (trs elementos interligados no todo do enunciado e determinados de acordo com a funo comunicativa que se pretende realizar). Desta maneira, para que um enunciado seja compreendido em sua funo comunicativa, preciso assumir que dele fazem parte: a) O contedo temtico: Se relaciona com o que se diz no discurso no momento da interao social (difere da orao e

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da palavra como unidades da lngua fora de um contexto comunicativo); b) O estilo: Se realiza atravs da seleo dos recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais da lngua (as palavras prprias nos lugares prprios constituem a denio de estilo) e pode variar conforme a inteno, valorao expressiva e objetivo do autor; c) A construo composicional: o formato do texto como um todo (ordem do ttulo, organizao das palavras). De acordo com Schneuwly e Dolz (2004), a transposio de um gnero, de sua instituio de origem para a sala de aula, requer a ateno do professor de Lngua Portuguesa para o fato de que deve considerar os aspectos comunicativos da situao social na qual se originou o gnero tomado como objeto de ensino. Para a transposio didtica, preciso recuperar os elementos da situao social e da contextualizao do texto em contextos reais da comunicao. Para Lopes-Rossi (2006, p. 74),Um dos mritos do trabalho pedaggico com gneros discursivos, de acordo com pesquisadores do Grupo de Genebra, o fato de proporcionar o desenvolvimento da autonomia do aluno no processo de leitura e produo textual como uma conseqncia do domnio do funcionamento da linguagem em situaes de comunicao, uma vez que por meio dos gneros discursivos que as prticas de linguagem incorporam-se nas atividades dos alunos.

Nesse sentido, Schneuwly e Dolz (2004) acreditam que os gneros podem ser agrupados com vistas a estabelecer uma progresso no ensino, a m de fornecer aos alunos subsdios para a (re)construo dos sentidos dos enunciados. Para os autores (2004, p. 54), as estratgias privilegiadas para a progresso de uma sequncia didtica respeitam os seguintes passos: 1. adaptar a escolha de gneros e de situaes de comunicao s capacidades de linguagem apresentadas pelos alunos; 2. antecipar as transformaes possveis e as etapas que poderiam ser transpostas;

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3. simplicar a complexidade da tarefa, em funo dos elementos que excedem as capacidades iniciais das crianas (em nossa considerao, dos alunos jovens e adultos); 4. esclarecer com os alunos os objetivos limitados visados e o itinerrio a percorrer para atingi-los; 5. dar tempo suciente para permitir as aprendizagens; 6. ordenar as intervenes de maneira a permitir as transformaes; 7. escolher os momentos de colaborao com os outros alunos para facilitar as transformaes; 8. avaliar as transformaes produzidas. Ainda segundo Schneuwly e Dolz (2004, p. 97), a sequncia didtica [...] um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemtica, em torno de um gnero textual oral ou escrito. Os autores optam por um enfoque de agrupamento de gneros e de progresses curriculares como um caminho possvel a ser realizado nas prticas de sala de aula. A nosso ver, tal projeto s pode ser concretizado efetivamente na escola, medida que os professores de lngua portuguesa estiverem preparados teoricamente para selecionar os gneros mais adequados aos objetivos de aprendizagem dos alunos, especialmente daqueles da EJA-EM. Essa fundamentao terica pressupe uma gama de conhecimentos, tais como descrio de gneros e determinao das capacidades discursivas e lingusticas que essas formas de dizer implicam e devem ser exploradas para o aperfeioamento da leitura e da escrita do aluno. Os professores de lngua materna, especialmente os da Educao de Jovens e Adultos (EJA), tm o desao de ensinar os alunos a ler, a compreender textos e a produzir outros de acordo com as experincias sociais do cotidiano ou do mundo do trabalho. Assim, recomendado que sejam elaboradas sequncias didticas, com vista aos gneros discursivos que atendam a essas exigncias, mesmo em escolas com poucos recursos materiais e nanceiros. Essa atitude [...] depende de um professor melhor

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informado sobre a fundamentao terica bsica a essa prtica e determinado a mobilizar alguns recursos materiais mnimos para a realizao da tarefa (LOPES-ROSSI, 2006, p. 83). O planejamento de sequncias didticas tem por nalidade proporcionar ao aluno jovem ou adulto condies para que possa se utilizar dos instrumentos de comunicao adequados s diferentes esferas de atividades humana. Nessa perspectiva, as sequncias didticas so instrumentos que podem guiar as intervenes dos professores e devem ter como estrutura base o seguinte esquema, elaborado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 98):

Fig.1: Esquema da Sequncia Didtica

O ensino de Lngua Portuguesa, pautado na perspectiva discursiva, na Educao de Jovens e Adultos EJA/EM , requer prticas pedaggicas baseadas no uso da linguagem em situaes reais de comunicao, objetivando-se a leitura e a produo de diferentes gneros do discurso. Nesse sentido, para a efetivao de uma prtica discursiva dialgica, possvel a elaborao de ocinas de ensino-aprendizagem com uma srie de atividades e exerccios, que seguem uma ordem progressiva, visando a reduzir as diculdades desses alunos dentro de um processo de construo do conhecimento. Para isso, faz-se necessria uma redenio do papel do professor de lngua materna e de sua concepo de linguagem no processo de ensino-aprendizagem. Seguindo a perspectiva apresentada por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), os professores podero considerar na elaborao de uma sequncia didtica:

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1. Apresentao da situao: para se iniciar uma sequncia didtica preciso partir de dois eixos: a) apresentao de um problema de comunicao bem denido; b) preparao dos contedos e seleo dos gneros adequados ou de interesse dos alunos na conduo de leitura e produo escrita; 2. Produo inicial: o professor deve motivar os alunos a identicarem os aspectos essenciais do gnero e possivelmente lev-los a perceber as diferenas constitutivas entre gneros; 3. Mdulos: devem ser organizados levando-se em conta as observaes da produo inicial, com uma proposta de sequncia de atividades de linguagem que possibilitem ao aluno confrontar o que sabe com aquilo que ainda precisa aprender em relao ao gnero proposto no processo ensino-aprendizagem. A aprendizagem pode ser ainda facilitada com a adaptao da sequncia didtica ao tempo de ensino que permita auto-regulao e autoavaliao (CRISTOVO, 2001, p. 20). Em relao teoria de Bakhtin (1999; 2003), sabemos que existe uma questo didtica relevante em relao transposio de um gnero de sua instituio de origem para a sala de aula, pois as interaes humanas se constituem em gneros discursivos presentes nas diferentes esferas sociais. Portanto, h uma grande diversidade de uso da lngua. Entretanto, preciso considerar que, mesmo uma dcada depois da chegada dos PCN (1998), seguidos dos PCNEM (1999), PCN+ (2002) e OCEM (2008), s escolas, o processo de ensino de leitura e produo de texto ainda ocorrem nos moldes tradicionais, porque cobrada do aluno a produo de textos escritos de forma idealizada, para um nico leitor o professor. Portanto, h falta de um leitor real e, na maioria das vezes, h falta de um planejamento voltado ao ensino de leitura e de escrita com textos que circulam nas prticas sociais, ou de textos que no tenham como suporte apenas o livro didtico:

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Quando se pensa no trabalho com textos, outro conceito indissocivel diz respeito aos gneros em que eles se materializam, tomando-se como pilares seus aspectos temtico, composicional e estilstico. Deve-se lembrar, portanto, que o trabalho com textos aqui proposto considera que: alguns temas podem ser mais bem desenvolvidos a partir de determinados gneros; gneros consagrados pela tradio costumam ter uma estrutura composicional mais denida; as escolhas que o autor opera na lngua determinam o estilo do texto (PCNEM, 1999, p. 74).

Sabemos que desde a chegada dos PCNEM (1999) e das OCEM (2008) h diculdades para a transposio dos estudos tericos para a prtica em sala de aula. Os professores, apesar de todo esforo para compreender a proposta e as orientaes desses documentos ociais, no tinham, ou ainda no tm, o embasamento terico necessrio para a realizao do processo dialgico, ou seja, da relao entre a teoria e a prtica de sala de aula. Para Petroni (2008, p. 9), [...] tal diculdade resultou de uma concepo de ensino e de lngua(gem) que no tem levado em considerao o enunciado (no sentido bakhtiniano do termo) como real unidade de comunicao discursiva (BAKHTIN, 2003, p. 274). De acordo com as orientaes dos PCNEM (1999), o gnero discursivo responsvel pelas caractersticas composicionais entre os diferentes grupos de enunciados. Ele precisa se constituir de tema, estilo e forma composicional. Os gneros so reconhecidos por suas caractersticas distintas que parecem nos dizer muito sobre sua funo, com base no nosso conhecimento de mundo, porque fazem parte das situaes comunicativas presentes nas prticas sociais: uma carta, um cartaz, um artigo de opinio, uma charge, uma reportagem, entre outros. Portanto, ca claro que, apesar dos pontos obscuros, os PCNEM so pautados na reexo bakhtiniana:[...] Esses enunciados refletem as condies especficas e as nalidades de cada referido campo no s por seu contedo

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(temtico) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleo dos recursos lexicais, fraseolgicos e gramaticais da lngua mas, acima de tudo, por sua construo composicional. Todos esses trs elementos o contedo temtico, o estilo, a construo composicional esto indissoluvelmente ligados ao todo do enunciado e so igualmente determinados pela especicidade de um determinado campo da comunicao (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

De acordo com o conceito de Bakhtin (1999; 2003), existem trs dimenses essenciais e indissociveis que compem um determinado gnero discursivo: 1. Os temas contedos ideologicamente conformados que se tornam comunicveis (dizveis) atravs do gnero; 2. Os elementos das estruturas comunicativas e semiticas compartilhadas pelos textos pertencentes ao gnero (forma composicional); 3. As conguraes especcas das unidades de linguagem, traos da posio enunciativa do locutor e da forma composicional do gnero (marcas lingsticas ou estilo). Portanto, as dimenses dos gneros discursivos conguram-se em enunciados scio-histricos, relativamente estveis e normativos, vinculados s situaes sociais de interao humana e integram o tema, a forma composicional e o estilo, elementos constitutivos do gnero discursivo que no podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem referncia aos elementos da sua situao de produo. Outra diferenciao que encontramos em Bakhtin (1999; 2003) so os gneros do discurso primrios e secundrios. Os gneros primrios nascem da troca verbal espontnea. Os gneros secundrios no so to espontneos, pois exigem maior elaborao. No entanto, hoje, as diferenas so mais complexas, j que os gneros primrios (caractersticos da oralidade presentes nas situaes da vida cotidiana) se mesclam aos secundrios (caractersticos da escrita de circunstncias de uma comunicao cultural mais complexa e relativamente mais evoluda). Por exemplo, um seminrio, uma defesa/acusao no tribunal ou uma entrevista

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formal, atividades lingusticas humanas relacionadas com os discursos da oralidade, exigem uma comunicao verbal mais elaborada, ou mesclada. Com efeito:Pode-se salientar que, desse ponto de vista, as atividades humanas so consideradas, sempre, como medidas simbolicamente. Alm disso, tem-se que, se pelas atividades de linguagem que o homem se constitui sujeito, s por intermdio delas que tem condies de reetir sobre si mesmo. Pode-se ainda dizer que, por meio das atividades de compreenso e produo de textos, o sujeito desenvolve uma relao ntima com a leitura escrita , fala de si mesmo e do mundo que o rodeia, o que viabiliza nova signicao para seus processos subjetivos (OCEM, 2008, p. 24).

Na prtica real de uso da linguagem, os gneros discursivos diferem dos tipos de textos: narrao, descrio, dissertao, argumentao, entre outros, que por muito tempo foram contedo de ensino nas aulas de Lngua Portuguesa, a chamada redao escolar. Para Rojo (1998), a maioria dos professores de lngua materna tende a reduzir a enunciao a seus aspectos formais ou textuais, algo com que j esto mais familiarizados. Isso impediria uma compreenso mais efetiva dos aspectos propriamente enunciativos, envolvidos na mudana de enfoque com um trabalho voltado aos gneros discursivos. Petroni (2008) diz serem possveis algumas alternativas para superao da diculdade de trabalho com a lngua(gem) que no tem levado em considerao o enunciado. Para a autora (2008, p. 10),Uma exposio sistemtica a diferentes enunciados, ou seja, a gneros do discurso socialmente constitutivos , ou parece ser, uma boa alternativa para aproximar o aluno das diferentes formas de se relacionar com o texto-discurso, uma vez que o trabalho com gneros discursivos torna possvel estimular a postura crtica do aprendiz, ao desvelar as relaes de fora presentes em diferentes esferas da atividade humana, condicionantes do processo interlocutivo.

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Assim, entendemos que os textos que produzimos, sejam orais ou escritos, apresentam um conjunto de caractersticas relativamente estveis, tenhamos ou no conscincia delas, conguradas em diferentes gneros discursivos. Quando estamos em uma situao de interao, a escolha do gnero no completamente espontnea, mas o locutor acaba por fazer uso do gnero mais adequado quela situao (conversa formal ou informal: namoro, trabalho, estudo, briga, entrevista, seminrio, palestra, entre outras situaes). Ao produzir um texto oral ou escrito, levamos em conta um conjunto de coeres impostas pela prpria situao comunicativa, ao fazer o locutor se constituir como sujeito que tem o poder de dizer. Conforme Geraldi (2003, p. 160), assumir-se como locutor efetivo implica que: a. Se tenha o que dizer; b. Se tenha uma razo para dizer o que se tem a dizer; c. Se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d. O locutor se constitui como tal, enquanto sujeito que diz para quem diz (o que implica responsabilizar-se, no processo, por suas falas); e. Se escolhem as estratgias para realizar (a), (b), (c) e (d). Desta maneira, ningum se assume como locutor, a no ser numa relao interlocutiva, na qual se assume como sujeito consciente de seu dizer, ou seja, ativo-responsivo que, no ato da interao humana, leva em conta o outro, o interlocutor (que tem posio social, cultura, identidade, conhecimento, pensamento, etc.). Da mesma maneira, Bakhtin (2003, p. 271) considera que [...] toda compreenso da fala viva, do enunciado vivo de natureza ativamente responsiva. Conforme assevera Vygotsky (1993, p. 18) [...] o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento no vai do individual para o socializado, mas do social para o individual. Para Bunzen (2006), quando os professores assumem, em sua prtica de sala de aula, os gneros discursivos, possibilitam aos alunos aproximar-se dos usos de linguagem extraescolares. Na EJA, no seria diferente. Consideramos que o ensino que

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privilegia a redao autoritrio e concebe a lngua como um sistema xo. Dessa forma, na EJA, deveria ser assumido um ensino de leitura e escrita muito mais reexivo (e menos transmissivo), que considere o prprio processo de produo de textos, assim como as esferas da comunicao humana, como lugar de interao verbal. Nesse sentido, necessrio considerar que:A palavra dirige-se a um interlocutor. Ela funo da pessoa desse interlocutor: variar se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou no, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laos sociais mais ou menos estreitos (pai, me, marido, etc.). No pode haver interlocutor abstrato; no teramos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido prprio, nem no gurado (BAKHTIN; VOLOCHINOV 1999, p. 112). ,

Nesse ressignicar das prticas discursivas direcionadas ao ensino de leitura e produo de textos orais ou escritos, preciso no dissociar [...] as noes de interao verbal, comunicao discursiva, lngua, discurso, texto, enunciado e atividade humana, pois somente na relao com esses conceitos pode-se apreender, sem reduzir, a noo de gneros (RODRIGUES, 2005, p. 154). Assim, entendemos que a teoria bakhtiniana no busca adotar critrios lingusticos, mas enunciativos. Ela se tornou referncia na lingustica e na losoa da linguagem por introduzir as instncias reais de uso da lngua, determinado em funo da especicidade da esfera em que ocorre a interao verbal, das necessidades de uma temtica (do objeto de sentido) e do conjunto constitudo pelos participantes da interao verbal, no se limitando apenas sua dimenso lingustica, mas abrangendo a enunciao.

Consideraes finais atravs dos gneros do discurso que organizamos nossa fala, da mesma maneira que o fazem as formas gramaticais (sintticas). Falamos por enunciados e no por oraes isoladas, as

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quais diferem dos enunciados concretos utilizados na real situao comunicativa. Desta maneira, o texto determinado pela atividade comunicativa que o constitui, e no apenas pelas unidades lingusticas (meramente gramaticais). Assim, compreendemos que, para formar um leitor com atitude-responsiva-ativa, preciso ensin-lo a compreender os sentidos das enunciaes presentes num determinado contexto e situao precisa de interao social, a que chamamos de gneros do discurso: A necessidade dos alunos de terem acesso letrado a textos (de opinio, literrios, cientcos, jornalsticos, informativos, etc.) e poderem fazer uma leitura crtica e cidad desses textos (ROJO, 2005, p. 207). Para desenvolver uma proposta de sequncia didtica, os professores precisam deixar o medo de lado e, assim, acreditar que podem fazer a diferena quando buscam formao e conhecimento da teoria que permeia as novas discusses que envolvem o seu trabalho, especicamente, sobre o ensino na perspectiva de gneros discursivos. necessrio que no momento da elaborao de modelos didticos levem-se em conta os interesses e as necessidades de aprendizagem dos alunos que participaram do processo ensino-aprendizagem no dia a dia de sala de aula, a m de revelar as dimenses ensinveis de vrios gneros que circulam nas prticas sociais em que nossos alunos da Educao de Jovens e Adultos esto inseridos. Em sntese, Bakhtin, no conjunto de sua obra, sempre mencionou as propriedades estveis dos enunciados, ou seja, os gneros discursivos como parte das atividades de interao humana em diferentes situaes comunicativas. Portanto, o trabalho de sala de aula na perspectiva dos gneros discursivos fundamental para o desenvolvimento do processo ensinoaprendizagem de leitura e escrita, especialmente no contexto da Educao de Jovens e Adultos EJA/EM.

Gneros discursivos em sala de aula...

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Contar histrias: corpos/corpus em performanceShirlei Milene Torres*

Resumo: O corpo e a voz propiciam vivncias comunitrias perdidas na acelerao da vida moderna. A contao de histrias em performance permite a interao entre contador e ouvintes, j que contar histrias arte performtica, criao do efmero. Quando todos os envolvidos na contao de histrias deixam sua imaginao ser levada pelas histrias, o ato performtico se consolida. A performance aspira qualidade de rito, pois transporta para outro lugar e para outro tempo. No momento em que se consegue atingir a plateia, acontece uma experincia, sendo atravs do corpo que vivemos a experincia da performance. So utilizados vrios tericos para embasar as anlises realizadas no decorrer deste trabalho, especialmente, Paul Zumthor (1997; 2000) para falar sobre performance, e Maria de Lourdes Patrini (2005) para falar sobre o ofcio do contador de histrias. Palavras-chave: Contar histrias, Performance, Oralidade, Corpo, Gesto, Voz.

Abstract: The body and the voice provide communitarian experiences that have been lost in the haste of modern life. Storytelling in performance grants the interaction among those who tells stories and those who watch them, since storytelling is a performative art; it is the creation of the ephemeral. The perfomative act is consolidated when all those who are involved in the storytelling allow their imagination to be emotionally* Licenciada em Letras/UFRGS. Contadora de histrias e professora de sries iniciais. E-mail: [email protected].

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touched by the stories. The performance aims the rite quality, since it moves the teller and the audience to another place and to another time. At the moment it touches the audience, and experience happens; it is through the body that we live the performative experience. Many theoreticians are mentioned to base the analysis carried out on this work, such as Paul Zumthor (1997; 2000) regarding performance, and Maria de Lourdes Patrini (2005) regarding the storyteller profession. Keywords: Storytelling, Performance, Orality, Body, Gesture, Voice.

O presente trabalho tem o objetivo de discutir os elementos que esto envolvidos na performance. Performance do ponto de vista dos contadores de histrias. Contadores que acreditam na realizao de momentos de performance com as plateias com que se relacionam. Este trabalho estar permeado de reexes sobre a prtica/experincia em contar histrias. Experincia protagonizada pelo grupo Quem conta um conto Contadores de Histrias da UFRGS, um projeto de Extenso do Instituto de Letras, coordenado pela Professora Ana Lcia Liberato Tettamanzy, formado por graduandos e mestrandos de vrias reas do conhecimento. O trabalho do grupo est diretamente relacionado s histrias orais tradicionais, pois acredita-se que, atravs da oralidade, possvel ressignicar as histrias que so transmitidas de gerao em gerao pela contao de histrias. Hoje em dia, nossa sociedade j no deixa muito espao para uma cultura oral, apenas a escrita relevante para a maioria das pessoas. Nesse contexto, o grupo se prope a valorizar o conhecimento transmitido atravs da oralidade, recompondo, assim, o valor das experincias coletivas. O contador que se utiliza apenas do corpo, do gesto e da voz traz vrias caractersticas prprias dos contadores das sociedades essencialmente orais. Outra anlise deste texto ser a abordagem sobre como se d a construo do repertrio por parte do contador de histrias,

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ou seja, no que se baseia para construir a forma que ir utilizar para contar a histria. Performance pode ter vrias denies, ou melhor, conforme a rea que a utiliza pode ter-se vrios olhares sobre ela. Partindo da proposta de Paul Zumthor (2000), temos performance em trs possibilidades: performance com audio acompanhada de uma viso global da situao de enunciao (caso da contao de histrias); performance com falta de um elemento de mediao (caso do CD, no h o visual); e performance como leitura solitria e puramente visual (leitura de um livro, por exemplo). A primeira proposta de performance entendida como sendo a mais completa das trs, j que oferece diversos elementos que permitem aos participantes interagirem de forma concreta com a histria, entre si ou com o prprio contador. Nesse caso, situase o grupo Quem conta um conto, pois, ao dedicar-se contao de histrias, que utiliza essencialmente o corpo, o gesto e a voz, aventura-se pelo mundo da interao que gera a performance, a qual sempre reserva diversas surpresas para quem conta como tambm para quem est no papel de plateia. O grupo est de acordo com Zumthor (2000) quando o estudioso diz que performance reconhecimento, que ela se situa num contexto cultural e situacional, que pode ser repetida sem ser redundante (sendo nica em cada vez) e que ela modica o conhecimento, marcando-o.

Contar histrias em performanceAntes da escrita, o saber era transmitido basicamente atravs da oralidade. Deve-se a isso a importncia dada memria, j que ela era um dos poucos recursos utilizados para armazenar e transmitir o conhecimento s futuras geraes. O ato de contar histrias remete a esse tempo em que o homem conava na sua memria e nas suas experincias, resgatando qualidades to necessrias ao desenvolvimento humano.

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mui talentoso Tote, enquanto um homem tem a capacidade de criar uma nova habilidade, outro a tem para julgar se ela ser bno ou maldio para seus usurios. Agora voc, o pai das letras, com sua afeio, v nelas o oposto do seu verdadeiro poder. Pois esta inveno far com que aqueles que usam percam o saber em suas mentes, negligenciando suas memrias; visto que, atravs desta conana nas letras que so externas e alheias mente, eles perdero sua capacidade de recordar coisas dentro de si mesmos. Voc no inventou um medicamento para fortalecer a memria, mas um substituto inferior para ela. Voc est proporcionando aos seus alunos uma maneira de parecerem sbios sem verdadeira sabedoria. (SCHOLES; KELLOGG, 1977, p. 12)

Numa cultura oral, para se resolver efetivamente o problema de reteno do pensamento, j que no temos a presena da escrita, necessrio que ele surja atravs de padres: fortemente rtmicos, equilibrados, em repeties ou antteses, em aliteraes e assonncias, em expresses epitticas ou outras expresses formulares, em conjuntos temticos padronizados. Anal, [...] sabemos o que podemos recordar (ONG, 1998, p. 44). Somente sabemos, realmente, aquilo que guardamos em nossa mente, o que signicativo. As frmulas [...] funcionam como apoios mnemnicos, como expresses xas que circulam pelas bocas e pelos ouvidos de todos (ONG, 1998, p. 45). Podemos dizer que nunca houve nenhuma sociedade que no tivesse a necessidade de fabular, de inventar-se ou de construir seus mitos e seu imaginrio. Toda civilizao que existiu contou. A tradio est se atualizando atravs de novos contadores de histrias: [...] no que concerne transmisso da tradio oral do conto, apesar das evolues, transformaes e rupturas, o fundo narrativo o essencial continua a fazer parte integrante da vida do homem (PATRINI, 2005, p. 137). A contao de histrias algo presente na sociedade desde tempos imemoriais. Assim, o que o grupo Quem conta um conto quer resgatar os valores esquecidos dessa poca. Quer devolver oralidade histrias que eram prprias da oralidade, histrias

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que passaram de gerao em gerao at chegarem aos dias atuais. Mas no de qualquer forma, e sim da mesma forma que fazem os contadores de histrias naturais.1 Podemos dizer que esses contadores agem naturalmente enquanto os contadores de histrias do grupo so articiais.2 Teramos as formas: contador natural e contador articial. Os contadores articiais estudam e praticam para chegarem s formas dos contadores naturais. Porm, ao traduzirem essas formas em suas performances, criam uma esttica prpria. A oralidade a base desses contadores, j que no utilizam elementos de ordem escrita para narrarem suas histrias. Contar histrias em performance busca simular/reviver esse tempo no qual as pessoas se encontravam e ouviam histrias, trocando saberes e experincias de forma coletiva. A comunicao oral agrupa as pessoas (ONG, 1998, p. 82).De uma forma ou de outra, contar um costume ancestral que permite livre curso ao contador. Contar e ouvir sempre uma aventura que provoca mudanas e que, eliminando as distncias, encontra um pretexto para o reencontro e a troca de experincias. (PATRINI, 2005, p. 107)

O grupo Quem conta um conto tem como base o uso da literatura popular (ou oral tradicional) porque acredita que essa literatura (feita pelo e para o povo) ajuda a recordar essa coletividade esquecida, j que de fcil entendimento e traz assuntos prximos ao cotidiano e vida das pessoas. Como diz Bosi, na introduo do livro de Xidieh, [...] a cultura popular, que um universo de escassez, dispe de uma economia prpria de coisas e signos, os quais tendem a permanecer os mesmos transmitindo-se de gerao em gerao ainda que os signicados e as funes possam variar [...] (XIDIEH, 1993, p. 16). As pessoas ressignicam1

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Contadores de histrias naturais seriam aqueles que no ensaiam ou pesquisam suas histrias contam-nas no dia a dia, nas conversas cotidianas. Contadores que buscam a forma de contar dos contadores naturais, porm, com esttica prpria.

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quando contam suas histrias de acordo com o que conhecem, dando novas verses para as histrias das geraes passadas. Toda literatura oral se aclimata pela incluso de elementos locais no enredo central do conto, da anedota, da roda infantil, da adivinha (CASCUDO, 1984, p. 35). O ofcio de contar histrias remoto [...] e por ele se perpetua a literatura oral, comunicando de indivduo a indivduo e de povo a povo o que os homens, atravs das idades, tm selecionado da sua experincia como mais indispensvel vida (MEIRELES, 1979, p. 41). O hbito de ouvir histrias desde cedo ajuda na formao de identidades; no momento da contao, estabelece-se uma relao de troca entre contador e ouvintes, o que faz com que toda a bagagem cultural e afetiva destes ouvintes venha tona, assim, levando-os a serem quem so. Contar histrias uma arte porque traz signicaes ao propor um dilogo entre as diferentes dimenses do ser (BUSATTO, 2003, p. 10).Somente me constituindo como sujeito, posso aspirar a igualdade na minha relao com o outro. E a arte cumpre um papel nesse sentido. Dizendo quem sou atravs do que fao, dialogo com os outros em um processo poroso que permite interpenetraes criativas, por meio de formas, sons, cores e palavras. (FARIA; GARCIA, 2002, p. 121)

Na contao de histrias em performance, favorece-se uma troca de saberes e sensaes entre ouvinte e contador. Cada pessoa envolvida na contao de histrias traz conhecimentos de mundo diferentes para o momento da contao, o que, por sua vez, faz com que se envolva de forma diferenciada com cada palavra e gesto do contador. O resultado dessa interao, dessa mescla de sensaes e trocas, o que chamamos contao de histrias em performance. Essa forma de contar histrias engloba uma mescla de vrias linguagens, tais como: musical, gestual, recitativa, narrativa, dramtica etc., ou seja, um contador em performance precisa conhecer os mais variados aspectos da oralidade e vivenci-los na

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prtica, pois esses elementos ajudam fortemente na construo de momentos de performance. No basta estar o contador ali, se contorcendo todo para chamar a ateno para sua histria, mas o espectador tambm deve se entregar a esse momento, para que haja verdadeiramente um momento vivo de performance. Nunca o resultado de uma performance ser o mesmo para o contador ou para qualquer uma das pessoas envolvidas no momento em que a histria est sendo contada. A contao permeada por experincia de todos os envolvidos, desde suas leituras at suas realidades dirias. Tudo o que permanece em ns nos ajuda a vivenciar a histria. Vemos que o contar implica um trabalho de organizao de uma experincia no necessariamente vivida, visto que a memria feita tambm daquilo que nos contado, do que se l, do que se imagina etc. (JDICE, 2005, p. 27). A literatura prpria da oralidade uma das formas que o povo encontra para manifestar o imaginrio coletivo. Os contadores que utilizam histrias tradicionais o fazem por basear-se em seu vnculo com a vida concreta, como tambm com o sagrado. No momento em que ocorre a valorizao das razes, das manifestaes culturais, das expresses artsticas, das etnias e das raas, como tambm, da prpria histria compartilhada, podemos ter nesses elementos a base sobre a qual se estruturam os processos identitrios (FARIA; GARCIA, 2002, p. 126). Os contos possibilitam enxergar as diferenas culturais e constatar que a diversidade saudvel. Permitem a expanso da nossa conscincia tica e esttica (BUSATTO, 2003, p. 38). H, nas histrias, elementos identicadores do cotidiano do povo, e h identicao mesmo quando so histrias de reis e cavaleiros, j que os temas encontrados no interior das histrias so universais. A Literatura Tradicional apresenta esta particularidade: sendo diversa em cada pas, a mesma no mundo todo (MEIRELES, 1979, p. 64). Contar histrias que tenham origem na oralidade e na tradio popular restabelece um caminho que permite desenvolver uma vivncia da memria coletiva e do ato

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do ser humano de comunicar-se. Alm do que, nossa imaginao encontra um terreno frtil na literatura tradicional, j que os contos so curtos e econmicos, cabe imaginao complet-los. O conto da tradio popular, por ser econmico, revela-se rico em imagens (BUSATTO, 2003), assim o ouvinte vai construindo todo o contexto da histria conforme o que sugerido pelo contador ao revelar as imagens do conto; imagens reveladas [...] a partir das formas, cores, sons e sensaes presentes no seu corpo (BUSATTO, 2003, p. 55). Esta a grande magia das histrias, viajarmos para qualquer lugar, sem sairmos do lugar. No ato de contar, o contador utiliza habilmente seu corpo, seus gestos, sua voz ou seu silncio para embelezar e desenrolar sua histria. A contao de histrias em performance um todo, porm, para melhor analis-la, vou desmembr-la em algumas partes.

Performance o contador e a plateiaContar histrias arte performtica, na qual se tenta retransmitir os contos pelos meios nos quais surgiram, ou seja, atravs da voz, do corpo e do gesto. A performance est presente. Voc s pode me falar neste exato instante e eu no posso ouvir nada do passado (ZUMTHOR, 1997, p. 61). a prpria criao do efmero: [...] performance designa um ato de comunicao como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra signica a presena concreta de participantes nesse ato de maneira imediata (ZUMTHOR, 2000, p. 59). O contador vibra, o ouvinte estabiliza, integrando-o quilo que ele prprio. Ento ele que vibra de corpo e alma. A noo de performance perpassa a ideia da presena de um corpo (ZUMTHOR, 2000). A contao de histrias em performance permite a interao entre contador e ouvintes, o corpo e a voz propiciam vivncias comunitrias, perdidas na acelerao da vida moderna.O corpo o peso sentido na experincia que fao [...]. Meu corpo a materializao daquilo que me prprio, realidade vivida e

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que determina minha relao com o mundo [...]. Na situao performancial, a presena corporal do ouvinte e do intrprete presena plena, carregada de poderes sensoriais, simultaneamente, em viglia. (ZUMTHOR, 2000, p. 28; 80)

Para quem est narrando (contando), o conto signica a realizao simblica de um desejo; o contador domina a plateia como se fosse um caador abatendo sua presa, [...] vem da o prazer em contar, prazer de dominao associado ao sentimento de pegar aquele que escuta na sua armadilha (ZUMTHOR, 1997, p. 55). O narrador envia-nos uma srie de impresses, s quais vamos nos entregando aos poucos; medida que vamos ouvindo, vamos acreditando nelas e nos entregamos ao menos pelos instantes que durar a contao de uma histria a esse momento. Essa participao das pessoas no necessariamente se d com demonstraes fsicas como emitir comentrios ou se levantar e interferir na histria, at pode acontecer assim e ser muito interessante, porm no dessa participao que falo. O indivduo que participa da contao cmplice do contador. Ele se envolve e acredita nos fatos que o contador narra, ao menos pelo instante da contao, ou seja, [...] consiste em ser cmplice da ao e aceitar que uma garrafa se torne a Torre de Pisa ou um foguete a caminho da lua (BROOK, 2008, p. 23). O contador transporta a plateia para outro lugar a cada contao. Faz com que as pessoas participem de uma forma incondicional. As frmulas nais e iniciais tm por funo principal acentuar o aspecto ctcio do relato, quebrar a iluso e trazer o auditrio realidade do dia a dia. As formas de estabelecer esse ritual de deslocamento podem variar conforme o contador, o ambiente da contao, a histria e o prprio pblico presente. Podemos ter desde o tradicional Era uma vez e Viveram felizes para sempre at cantigas, invocaes aos espritos das histrias ou mesmo brincadeiras direcionadas plateia. O que importa que estejam indicados o incio e o m do momento de contao. A performance aspira qualidade de rito, por isso transporta para outro lugar e para outro tempo. Atravs da performance

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consegue-se acelerar o movimento de identicao a ponto de provocar uma participao coletiva da plateia. No momento em que se consegue atingir a plateia, acontece uma experincia. atravs do corpo que vivemos a experincia da performance. No momento em que estamos vivenciando a performance, estamos em processo de transformao. O corpo ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de origem e o referente do discurso (ZUMTHOR, 2000, p. 90). Como nos fala Bonda (2002, p. 21): A experincia o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. No o que se passa, no o que acontece, ou o que toca. A performance s acontece quando contador e plateia se permitem experimentar; quando ambos esto abertos transformao. Isto j que [...] a performance modica o conhecimento (ZUMTHOR, 2000, p. 37), comunicando ela o marca. experincia aquilo que nos passa, ou nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experincia est, portanto, aberto sua prpria transformao [...]. Se a experincia no o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, no fazem a mesma experincia. (BONDA, 2002, p. 26-27)

O acontecimento comum, como numa contao de histrias, por exemplo. A plateia ouve uma mesma histria, mas a maneira como cada pessoa experimentar ser diferente. O narrador retira da experincia o que ele conta: sua prpria experincia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes (BENJAMIN, 1985, p. 201). Quando h a performance, estabelece-se uma troca entre contador e ouvintes, dessa forma, tambm, cada vez que a histria for contada, o contador contar de forma diferenciada, pois o espao de atuao, as pessoas e at mesmo o estado de esprito do contador inuenciaro em sua performance. Podemos dizer que, a cada contao, o contador conta uma histria diferente, mesmo que aparentemente seja a mesma. Cada performance

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nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuda (ZUMTHOR, 2000, p. 38-39). Durante a performance, o ouvinte produz imagens; o virtual frequenta o real; segundo Zumthor (2000, p. 96), nossa percepo do real frequentada pelo conhecimento virtual resultante da acumulao da memria corporal. Uma histria nunca vai provocar a mesma sensao nas diversas pessoas que a ouvem. a histria da vida de cada um que determinar com que cores e com que msica ela vai soar (BUSATTO, 2003, p. 18). Porm, a realidade do indivduo que integra a plateia no meramente individual, como a do leitor. Pelo contrrio, trata-se, tambm, de uma experincia coletiva, pois, segundo Sandra Chacra (1983, p. 86), [...] no enxergamos somente com nossos olhos, mas tambm com todos os olhares da sala. Eles interferem em nossa reao de modo inesperado. E ns interferimos no prazer esttico dos demais. H relao entre todos os participantes em um momento de performance, seja entre contador e plateia, seja entre membros da prpria plateia. Sempre que ouvimos uma histria, ativamos nossa memria corporal, pois antes de a recebermos de forma racional, o fazemos por meio das sensaes no corpo. Toda contao de histrias vai ao encontro das ansiedades da plateia, j que cada ouvinte se identicar com a histria, ou mesmo com parte dela, que dialoga com sua realidade atual. A arte de contar histrias nos liga ao indizvel e traz resposta s nossas inquietaes (BUSATTO, 2003, p. 09).Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo, e ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais a ou tece enquanto ouve a histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido. (BENJAMIN, 1985, p. 205)

Ao pensarmos nas contaes realizadas pelos contadores do grupo Quem conta um conto, percebemos que a relao entre contador e plateia depender de vrios elementos dentro da contao.

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Um deles sempre ser o motivo que leva algum a contar histrias para determinado pblico, j que isso inuenciar diretamente a relao que se estabelece. Aspectos que podemos analisar nas contaes de histrias protagonizadas pelo contador Andr de . Assis1 e seu personagem-narrador Z Bigode. A histria Natividade j fora contada muitas vezes por ele, nos lugares mais variados, com pblicos bem distintos: das crianas de periferia at estudantes e professores universitrios. O que conrma o que Peter Brook (1970, p. 62) nos diz: [...] o pblico sempre um desao, sem o qual uma representao seria hipocrisia. O contador Andr, ao entrar em contato com o pblico que estava nos locais em que contou essa histria, rapidamente alterou sua forma de inici-la. Adaptou-se ao meio, colocando algumas expresses de aproximao com as pessoas presentes. Houve uma vez em que o contador Andr a contou no I Colquio de Literatura, Histria e Oralidade.2 Nessa ocasio, ele aproveitou o assunto do colquio e apresentou-se como o personagem-narrador Z Bigode e disse: Eu vim aqui porque ando lendo uns livro de literatura, ando cando culto; e tambm porque falo muito, s cheio das oralidade; e como s cheio de histria para contar t aqui para cont uma delas.... Alm de jogar com o ttulo do colquio, tambm fez algo que era novidade, brincou com a estrutura da histria, imitando a estrutura de peas teatrais, separando a contao em dois atos o primeiro era intitulado A paixo de Z Bigode, e o segundo tinha o ttulo A vingana de Z Bigode, este ltimo sendo o nome dado verso da histria contada por Andr.3 A contadora Iv Sarrala4 tambm conta suas histrias levando em considerao a reao do pblico que est presente em suas contaes. Sempre que ela conta a histria A galinha dAngola,1 2 3

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Jornalista e contador do grupo Quem conta um conto desde 2006. Colquio realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em maio de 2009. Dados anotados durante o I Colquio de Literatura, Histria e Oralidade, realizado na UFRGS em maio de 2009. Graduanda do Curso de Dana (UERGS) e contadora do grupo Quem conta um conto desde 2006.

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busca a participao efetiva da plateia se isso no acontecer, no acontecer a histria em si, pois no h possibilidade de danar em crculo sem pessoas para formar o crculo. Caso a plateia no participe, a contadora precisar improvisar o momento em que faz uma dana da chuva em crculo, fazendo-a de outra forma. Porm, necessrio que as pessoas queiram participar da histria. A energia que circula durante a contao o que motiva o contador do incio ao m de sua narrao, assim acontecendo um momento performtico, um momento mgico entre plateia e contador. O contador tem conscincia de que precisa do olhar da plateia para se consolidar como contador de histrias. Somente este pblico presente para v-lo e ouvi-lo pode ajud-lo a construir um momento performtico. O contador precisa [...] da forte presena de um olhar, de um ouvinte atento e de uma memria que aguarda ser preenchida por novas palavras, ritos e gestos (PATRINI, 2005, p. 108). Atravs de alguns depoimentos, dos contadores do grupo Quem conta um conto, foi possvel constatar como o grupo trabalha conforme cada plateia, como se envolve com a contao a partir de cada pessoa que se encontra presente nos espaos de contao. Quando a contadora Ana Lcia1 fala sobre as crianas da Escola Tristo Sucupira,2 ca claro como o pblico realmente sempre uma surpresa para o contador. A cada palavra proferida, a cada gesto expressado, a contadora recebe diferentes manifestaes das crianas da escola, manifestaes que foram surpreendentes diante da realidade fsica e psicolgica do pblico em questo, j que a escola atende crianas com as mais variadas necessidades especiais. Isto motivou a explorao de outras formas de contar as histrias para eles, sempre tentando interagir com cada um. J nos depoimentos das contadoras Iv Sarrala e Lvia Petry3 sobre sua experincia na Casa Lar do Cego Idoso, possvel1

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Professora do Instituto de Letras (UFRGS), orientadora e contadora do grupo Quem conta um conto. Escola Municipal de Ensino Fundamental do municpio de Porto Alegre/RS, situada no bairro Restinga. Mestranda do Curso de Letras (UFRGS), poetisa e contadora do grupo Quem conta um conto desde 2004.

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analisar como um pblico que no tem um dos sentidos se torna um desao maior, especialmente quando o sentido que falta a viso. Sem a viso, como o contador explorar seu gestual e seu corpo, sendo esses elementos fundamentais para a contao de histrias? As contadoras contam que a forma encontrada foi exatamente explorar mais a voz e os sons de forma geral. Elas contaram as mesmas histrias que estavam acostumadas a contar para pessoas com todos os sentidos, porm adaptaram ao pblico e assim tiveram uma experincia nica, estabelecendo um momento de performance que cativou a todos (contadores e plateia). O contador de histrias, a exemplo do ator, deve estar em sintonia com a plateia, como nos arma Fortuna (2000, p. 173): [...] ator e platia, uma orquestra sinfnica, em que ator o maestro e a platia a orquestra, ambos em unssono, produzem a grande sinfonia.

Performance o contador e as histriasAntes de sensibilizar o ouvinte o conto precisa sensibilizar o contador (BUSATTO, 2003, p. 55). necessrio que haja identicao entre conto e contador, para que esse possa conduzir a narrativa da melhor forma. Cada contador coloca nas histrias um pouco de sua personalidade, priorizando passagens que, de alguma forma, dialogam mais com seu ntimo. essa identicao entre o conto e seu contador que faz a diferena, pois dessa integrao depender o sucesso da performance. como se o conto escolhesse o contador e no o contrrio. preciso ter tempo para sonhar os contos, isto , rumin-los interiormente, mas tambm preciso ter a oportunidade de pratic-los, seno podem ser esquecidos (SIMONSEN, 1987, p. 29). O contador deixa que a histria mergulhe nele e s depois ele conta; primeiro se apropria da histria para depois cont-la.Ele precisa de tempo para deixar que a histria mergulhe em seu prprio estoque de temas e frmulas, tempo para se emprenhar da

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histria. Quando recorda e reconta a histria, em nenhum sentido literal da palavra ele memorizou [...]. (ONG, 1998, p. 73)

Os contadores do grupo Quem conta um conto elegem, em sua maioria, contos que primeiramente foram lidos em livros. A oralidade desperta o conto que estava congelado na escrita, mas necessrio notar que nessa passagem do adormecimento reanimao, tons e cores so acrescidos ao conto (PATRINI, 2005, p. 115). Cada contador l vrios contos de origem popular, depois escolhe aquele que, de alguma maneira, o interessou. O conto lido algumas vezes e pensado como matria-prima para a futura contao. O contador deixa que esse conto que reverberando em sua cabea, em seu corpo para mais tarde cont-lo sua maneira, com o seu vocabulrio, atravs de seu corpo, de sua voz e de seus gestos.A narrativa [...], num certo sentido, forma artesanal de comunicao. Ela no est interessada em transmitir o puro em si da coisa narrada como uma informao ou relatrio. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retir-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mo do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1985, p. 205)

Quando o conto vem tona, ele est repleto de marcas do contador e essas marcas o tornam nico em sua realizao. Cada contao realizada com a mesma histria permite que ela que cada vez mais marcada pelo contador que a narra. Como tambm marcada pelos vrios momentos de performance que ela sofreu a cada contao. Quanto mais marcas a narrativa contiver, mais prxima de se tornar repertrio ela estar. As histrias acabam se tornando parecidas com quem as conta, pois[...] em sua arte, o contador de histrias realiza de uma forma particular a tarefa de convocar imagens e idias de sua lembrana misturando-as s convenes contextuais e verbais de seu grupo, para adapt-las segundo o ponto de vista cultural e ideolgico de sua comunidade. (PATRINI, 2005, p. 106)

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O repertrio de cada contador permeado de outras formas prprias da oralidade, tais como: cantigas, rimas, adivinhas, parlendas, que auxiliam na construo das histrias a serem contadas. Essas formas ajudam o contador em seu processo mnemnico. Segundo Walter Benjamin (1985, p. 214), [...] o grande narrador tem sempre suas razes no povo, j que a oralidade a base dessa literatura chamada popular/tradicional. As histrias do repertrio do grupo Quem conta um conto so basicamente histrias populares do mundo todo. Cada contador explora contos de diferentes lugares e de diferentes etnias. Essa escolha se d porque esses contos tm uma estrutura mais simples, com enredos que contemplam a necessidade de armazenamento na memria, sem mecanismos escritos. O contador comea a perseguir formas [...] num incessante construir desconstruindo e desconstruir construindo [...] contedo se fazendo forma (expresso) e forma formatando contedo, ambos vo construindo juntos as instncias estticas da expresso (FORTUNA, 2000, p. 114). O empenho em reconstituir a origem oral e coletiva da narrativa popular completa-se atravs da tentativa de recuperar a forma como os contadores naturais contam suas histrias. No momento que os contadores articiais buscam resgatar essa forma de contar, eles adotam um estilo coloquial de que esto ausentes a erudio e a preocupao com a norma gramatical. preciso adaptar as narrativas pensando no tipo de plateia que o contador ter em sua frente. O que leva o contador adaptao a expectativa que tem em relao ao pblico. Essa expectativa poder ser conrmada ou no na hora da contao, porm necessria para a construo do prprio contador em relao s histrias de seu repertrio. A passagem da escrita para a oralidade cheia de surpresas, j que, depois que o contador internalizou a histria, ele far com que sua voz expanda-a at sua plateia. A primeira questo que encontra o uso da voz na contao da histria que anteriormente foi escrita. Zumthor (1997) faz uma comparao entre a forma

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escrita e a voz, o que nos mostra a fora da voz diante da escrita, especialmente pensando na performance:A escrita permanece e estagna, a voz multiplica. Uma se pertence e se conserva; a outra se expande e destri. A primeira convence e a segunda apela. A escrita captaliza aquilo que a voz dissipa; ela ergue muralhas contra a movncia da outra. No seu espao fechado, ela comprime o tempo, lamina-o, fora-o a se estender em direo ao passado e ao futuro: do paraso perdido a da utopia. Imersa no espao ilimitado, a voz no seno presente, sem estampilha, sem marca de reconhecimento cronolgico: violncia pura. (ZUMTHOR, 1997, p. 297)

No decorrer do processo de construir/reconstruir, a histria, para ser contada de forma performtica, embora mantenha sua essncia, est em constante mudana por parte da capacidade criativa dos contadores. Essas adaptaes geralmente advm de processos de atualizao de linguagem, da colocao de personagens mais prximos da realidade social da cena performativa (JDICE, 2005). Nas performances do grupo Quem conta um conto, ca claro como se d essa adaptao da histria escrita para a histria contada. A essncia no muda, entretanto, a cada contao, a histria narrada ca mais marcada pelos contadores e pelos momentos de performance que sofreu, assim como pela forma como contada. A linguagem utilizada est mais prxima do cotidiano, com um vocabulrio mais prximo do pblico que est presente nas contaes. comum, tambm, que os contadores selecionem trechos que consideram mais signicativos para exaltar durante a contao e h outros trechos que sequer entram em sua narrao. A narrao sempre, forosamente, uma verso do autor-narrador, porque narrar/escrever sinnimo de escolher, suprimir, destacar (VIEIRA, 1999, p. 385). Cada contador far a sua leitura do texto e somente trar tona, em sua contao, o que realmente o sensibilizou.

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Performance o corpo do contador e a construo dos personagensAo tentar resgatar a forma como os contadores naturais contam as histrias, faz-se necessrio que haja um estudo prtico, experimentando possibilidades corporais para que os contadores articiais aproximem-se das contaes daqueles. Os contadores buscam encontrar o corpo adequado para contar cada histria, assim como os atores buscam a melhor forma para apresentarem o enredo.Por mais que as palavras proferidas em cena, as emoes, a estria apresentada, a vida enm, seja a vida do personagem e no a do ator, no h como escapar desta primeira e grande limitao que ter a si mesmo como instrumento, como meio de expresso, ao mesmo tempo em que se a fonte genuna de criao cnica. (CHACRA, 1983, p. 74)

Uma questo que determina como ser o corpo do contador ao contar histrias est centrada no fato de que para os contadores do grupo Quem conta um conto existem duas formas de contar histrias: com e sem personagens-narradores. O contador pode, ele mesmo, narrar uma histria. Pode narr-la em terceira pessoa, mantendo, assim, distncia da histria. O contador distancia-se, mas no o narrador. O narrador o personagem cuja funo narrar (CINTRA, 1981, p. 05). Ou pode tom-la para si, colocando uma personagem-narrador. algum que assume a histria como sendo sua, como tendo acontecido consigo prprio. Quando o contador opta pelo personagem-narrador, preciso fazer uma srie de escolhas sobre que corpo estar comprometido com a contao, pois no ser mais o corpo do contador, e sim o corpo do personagem que estar contando a histria. Para isso, necessrio pensar quem que est contando a histria no seu lugar, como anda, como fala, como sua postura corporal. Mas

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somente pensar tambm no suciente, preciso experimentar na prtica como ca esse corpo e essa voz contando a histria. Por isso, ensaiar como contar cada histria se faz necessrio. Podemos dizer que as primeiras plateias do contador so os prprios contadores do grupo. Os contadores desenvolvem esteretipos para serem os narradores das histrias. A palavra esteretipo advm do grego: steros = slido, typos = tipo, entendendo-se, pois, que o termo se refere a algo reproduzido elmente, algo que se torna xo (FORTUNA, 2000, p. 22). Assim, os contadores podem utilizar tipos que se tornam os narradores ao invs de ser o contador de forma mais pura. Os prprios elementos encontrados na histria podem trazer as caractersticas do personagem-narrador, j que, na maioria das vezes, o mote para a criao do personagem ser encontrado na prpria histria. O que no elimina a possibilidade do contador desenvolver um personagem-narrador, que lhe acompanhar em todas as histrias, como o caso do contador Andr de Assis e seu personagem-narrador Z Bigode. Os narradores gostam de comear sua histria com uma descrio das circunstncias em que foram informados dos fatos que vo contar a seguir, a menos que preram atribuir essa histria a uma experincia autobiogrca (BENJAMIN, 1985, p. 205). Esse o caso, j que o personagem-narrador Z Bigode sempre arma que as histrias aconteceram com ele. O contador Andr fala sobre como encontrou o personagemnarrador Z Bigode: Num livro eu encontrei o nome de um personagem que era Z Bigode... era um sujeito caipira, mineiro que eu acabei incorporando e criando um sotaque, criando uma maneira de falar, um gestual1. O contador tambm relata que o personagemnarrador ganhou fora atravs das improvisaes que ocorreram durante as primeiras contaes em que o utilizou para narrar. O contador, depois que encontrou o personagem Z Bigode, nunca mais conseguiu contar uma histria sem coloc-lo como narrador. Qualquer histria, o contador Andr adapta para1

Fala extrada de uma entrevista gravada com o contador em 2008.

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que Z Bigode seja o narrador. Podemos ver claramente essa proposta se analisarmos o conto Natividade (GRUPO CONFABULANDO, 2003) recontado pelo grupo Confabulando e as contaes da mesma histria realizadas por Andr/Z Bigode. A forma como a histria contada bem diferente. O grupo Confabulando reconta em terceira pessoa o conto popular, dando mais nfase s descries, enquanto Andr o coloca na voz de seu personagemnarrador e acrescenta mais ao narrativa. Podemos perceber marcas do contador na sua forma de contar, mas a essncia da histria permanece a mesma, j que ele entrou em contato com o texto atravs do reconto do grupo Confabulando. Tambm comum que os contadores do grupo Quem conta um conto criem personagens-narradores diferentes conforme a histria que est sendo contada. Nesses casos, importante levar em considerao as caractersticas encontradas na histria para decidir qual o melhor personagem para cont-la. Quando o contador escolhe a outra forma de contar sem personagem-narrador , isso no quer dizer que apenas contar em terceira pessoa. Pode acontecer de o contador narrar em terceira pessoa, mas colocar, no decorrer da contao, algumas passagens da histria atravs dos personagens da mesma. O contador d voz e corpo a alguns personagens que do mais visualidade para a contao, sempre retornando narrao em terceira pessoa para continuar a contao. Coloca uma voz e um corpo que diferenciam cada personagem entre si, como tambm do prprio narrador. O corpo e a voz de cada pessoa que conta/fala diferenciado para dar mais visualidade histria e, assim, tornar a contao mais rica e performtica. Outra forma frequentemente utilizada pelo grupo Quem conta um conto para contar histrias a contao em duplas, trios e grupo. Uma mesma histria pode ter a participao de mais de um contador. Na contao da histria Os cegos e o elefante, por exemplo, h sete contadores em interao entre si e com a plateia. Cada contador brinca com a interpretao de um personagem da histria. Alm de existir a comunicao com a plateia, h tambm um forte

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jogo entre os prprios contadores, o que d mais dinamismo para a histria. Porm h sempre um contador que dirige a contao, ou seja, h um narrador maior para conduzir a histria como um todo. Independentemente da forma escolhida para contar uma determinada histria, sempre o corpo estar envolvido de maneira global no momento da contao. Isso porque, para que a performance acontea, preciso que tanto o corpo de quem conta como o corpo de quem ouve a histria estejam envolvidos. O contador somente perceber a melhor forma de contar a histria se conseguir ver o pblico e senti-lo presente como coautor da contao. Sempre que o contador conseguir perceber quem o seu pblico e como ele est, conseguir explorar da melhor maneira as possibilidades de sua contao, estabelecendo assim um momento de performance que poder modicar ambos (contador e plateia).

Performance o corpo e o gestoO contador, independentemente se escolhe contar com ou sem personagem-narrador, deve tomar cuidado com o uso dos gestos e do corpo como um todo. Cada movimento deve ser realizado levando em considerao o efeito que se tem como objetivo dentro da histria. Nada deve prejudicar o entendimento, por parte da plateia, sobre o desenrolar da histria. Contar histrias em performance tambm arte de mimar.A arte do mimo a arte da comunicao com sntese. No se trata de imitar literalmente as gestualidades naturais... mas de sugerir, indicar, subentender, fazer imaginar. O teatro busca ngir a realidade, no imit-la [...]. Para tornar-se um bom mimo necessrio, em primeiro lugar, a prtica do exerccio acrobtico: saltar, dar pulos mltiplos, arquear o tronco [...]. Em segundo lugar, aprender a respirar em sincronia com o gesto [...]. Terceiro: aprender a manipulao, ou seja, construir objetos com as mos a partir do nada, dando a impresso de agarr-los, mov-los, deposit-los. (FO, 1999, p. 268-269)

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Dario Fo (1999, p. 269) explica ainda a questo da manipulao dos objetos atravs de uma exemplicao:Agarro uma garrafa pelo gargalo ou mais embaixo... Nesse caso, alargo os dedos ao peg-la e executo o gesto de agarrar com ambas as mos... assim, obviamente, consigo desenhar com mais preciso a garrafa: com a esquerda, mais fechada, desenho o gargalo, e com a direita, o corpo da garrafa... Com o gesto posso indicar o peso: leve... ou, ngindo esforo, pesada.

A arte de mimar utilizada na contao de histrias em performance, j que o contador deve sugerir as aes da histria para que a plateia as complete com sua imaginao e no traduzir atravs dos gestos cada parte do enredo da mesma. muito mais vantajoso indicar as aes para que a plateia complete do que tornar a contao um evento naturalista. A sntese a inveno que impe a fantasia e a intuio ao espectador. a maneira de conceber a representao da grande tradio pica popular: limar todo o supruo, toda descrio entediante (FO, 1999, p. 175). Se o contador exagerar na colocao de gestos, quando realmente quiser signicar algo importante ou fundamental para a histria, no ser percebido pela plateia, j que estar misturado numa imensido de gestos e simplesmente estar destruindo o valor do prprio gesto. necessrio selecionar os gestos e ter conscincia sobre eles (FO, 1999). Os gestos tambm no podem ser arbitrrios, para que o pblico possa acompanhar com total compreenso o discurso do contador. Porm, preciso manipular a realidade. No basta, na contao de histrias em performance, que se reproduza de forma natural determinada ao com algum objeto mimado, preciso que se reinvente a realidade.Precisamos prestar ateno em uma coisa: diante de uma garrafa e um copo reais, quando pego o copo, no tenho nenhuma necessidade de escancarar excessivamente os dedos ou de desenhar algo. Quando me sirvo, ningum ca observando os meus gestos, j que eles no tm nada de interessante. Mas, se mimo agarrar

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um objeto, a co que determina a ateno e o interesse. Em contrapartida, caso me limite a aplicar os gestos naturais, usando medidas e quantidades dos objetos reais nos atos de pegar e servir, tudo se torna banal, pequeno e, principalmente, no crvel. O real aplicado ao imaginrio falso... e tambm enfadonho. Portanto, para se obter um efeito crvel preciso manipular a realidade. (FO, 1999, p. 270)

Benjamin (1985, p. 220-221) entende que um todo o que completa o trabalho do narrador. No basta apenas falar bem ou mimar, preciso um equilbrio:A alma, o olho e a mo esto inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles denem uma prtica [...] Pois a narrao, em seu aspecto sensvel, no de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narrao, a mo intervm decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experincia do trabalho, que sustentam de cem maneiras o uxo do que dito.

Em uma performance do contador Andr de Assis, com a histria Natividade, pode-se analisar o gesto como sendo fundamental para causar o elemento cmico. No momento em que ele est contando que saiu muito rpido para ir encontrar sua amada pegou sua mula Ful , o gestual de seu corpo nos d a ideia de que realmente andou rpido com a mula, porm, imediatamente, desconstri a ideia atravs da fala, dizendo que estava a 15 por hora. Essa desconstruo ou equilbrio entre gesto e fala o que causou o efeito cmico. Segundo Patrini (2005), o contador tem toda a liberdade de criar imagens para oferecer ao pblico que o observa uma maior participao na histria. A presena do gesto sempre traz signicao. Elementos visuais ajudam a palavra a chegar ao ouvinte e prpria interpretao. O corpo encena o discurso. O gesto recria o espao-tempo de maneira sagrada. Enm, o gesto indispensvel para uma boa contao de histrias em performance. J que [...] a voz no descreve; ela age, deixando para o gesto a responsabilidade de designar as circunstncias [...] o gesto ao invs de reprimir, valoriza a linguagem. Esta

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explicita a signicao do gesto (ZUMTHOR, 1997, p. 57). A construo do momento de performance se d na juno do corpo, do gesto e da voz.O gesto, inserido no contexto da expresso corpreo-vocal, instala no espao os elementos constitutivos da performance como: movimentos corporais, formas, cores, tonalidades e as palavras da linguagem oralizada, todos compem, em conjunto, um cdigo simblico do espao. (FORTUNA, 2000, p. 129)

A contadora Luciene Rivoire1 utiliza, de forma enriquecedora, a arte do mimo em suas contaes. Na contao da histria A sopa de pedra,2 a contadora pede alimentos para a sopa e a plateia comea a fazer de conta que joga o que foi pedido. Luciene brinca mimando que alguma coisa bateu em sua cabea, como tambm mima carregar os alimentos arrecadados. O mimo ajuda a estabelecer uma forte relao entre a contadora e a plateia, neste caso, formada em sua maioria por crianas.

Performance o contador e o espao de atuaoSeguindo o que arma Peter Brook, em seu livro O teatro e seu espao (1970, p. 01), [...] posso escolher qualquer espao vazio e consider-lo um palco nu. Um homem atravessa este espao enquanto outro o observa. Isto suciente para criar uma ao cnica. Armo que, ao pensarmos em contao de histrias em performance, um espao vazio no apenas suciente, mas ideal. Para podermos entender como s corpo, voz e gesto so sucientes para contar uma histria, preciso perceber o espao da contao. Se estivermos em um palco todo elaborado, com gurinos e cenrios, o gesto se perder no meio de tanta1

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Mestranda do Curso de Teatro (UFRGS) e contadora do grupo Quem conta um conto desde 2007. Histria contada na 54 Feira do Livro de Porto Alegre.

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informao, no havendo espao para a imaginao do pblico. Agora, se estivermos em um espao vazio, somente contaremos com os gestos que sugerem a ao, por parte do contador, e com a imaginao que a completa, por parte da plateia.Para que alguma coisa relevante ocorra, preciso criar um espao vazio. O espao vazio permite que surja um fenmeno novo, porque tudo que diz respeito ao contedo, signicado, expresso, linguagem e msica s pode existir se a experincia for nova e original. Mas nenhuma experincia nova e original possvel se no houver um espao puro, virgem, pronto para receb-la. (BROOK, 2008, p. 04)

Quando pensamos em originalidade, logo nos vem cabea algo novo que nunca foi realizado ou pensado. Podemos car com essa denio, porm no podemos armar que algo puro. A cada momento de performance, sempre temos um ato nico e novo, mas permeado por outras vivncias, ou momentos de performance, que ajudam o novo momento a ser nico. A plateia inuencia, como vimos anteriormente, efetivamente no estabelecimento da performance na contao de histrias. Quando o contador opta por um espao vazio, ou seja, elege um local qualquer que no necessariamente tenha como funo o ato de representar, ele precisa ampliar sua forma de contar histrias. Se ele escolhe, por exemplo, uma sala de aula, uma praa, ou at mesmo um corredor que serve apenas para a passagem das pessoas, ele estar colocando a plateia no mesmo espao em que a histria ser contada; cando mais prximo da plateia, o contador torna a histria mais prxima tambm. Assim podemos armar que [...] outra caracterstica desse tipo de espao que o vazio compartilhado: o espao o mesmo para todos que ali esto (BROOK, 2008, p. 05). O vazio faz com que a plateia exercite sua imaginao, fazendo assim com que a histria narrada seja completada das mais diferentes maneiras por cada pessoa que compartilha com o contador. Como a rea vazia no conta uma histria, a imaginao,

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a ateno e os processos mentais de cada espectador cam livres e desimpedidos (BROOK, 2008, p. 22). O vazio, ou melhor, a utilizao do mnimo necessrio, permite que a plateia preencha as lacunas conforme a sua formao discursiva, podendo, assim, ressignicar a histria para a sua realidade.A imaginao, feliz, jogar esta espcie de jogo, desde que o ator no esteja em parte alguma. Se por trs dele houver um nico elemento cenogrco para ilustrar uma nave espacial ou um escritrio em Manhattan, imediatamente intervir a verossimilhana cinematogrca e caremos trancaados nas fronteiras lgicas do cenrio. (BROOK, 2008, p. 23)

A ausncia de outros elementos que no sejam o corpo, a voz e os gestos dos contadores ajudar na interferncia do pblico na construo da histria que est sendo narrada. J que o pblico no ter elementos que contem por si s os fatos da histria. O contador de histrias em performance aproveita qualquer espao para suas contaes, pois no h a necessidade de espaos especiais, com elementos especiais. O contador contemporneo, premissa da sua performance, pode contar num teatro, no jardim, na rua, numa praa. Essa diversidade multiplica a criatividade do contador (PATRINI, 2005, p. 197), ou seja, se houver elementos naturais do espao, podero ser utilizados na contao de forma improvisada, porm no so necessrios. O contador adapta sua contao conforme o espao que disponibilizado. Quanto menos elementos houver, melhor, pois, assim, poder explorar a imaginao da plateia e a sua prpria. Contador e plateia podem estar, em poucos segundos, passando de um pas ao outro, apenas com a ajuda de um mnimo de palavras. Se estivermos num espao livre, tudo isso possvel. Todas as convenes so concebveis, mas dependem da ausncia de formas rgidas (BROOK, 2008, p. 24). Sem esses elementos que podem sujar a contao, todos saem ganhando: a plateia, que exercita sua imaginao, e o contador, que explora sua criatividade para manter a plateia interessada na contao.

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Performance o contador e a improvisaoO contador de histrias no decora suas histrias, as vive. Nessa proposta deve estar sempre aberto improvisao. A histria contada ser submetida a pblicos e espaos diferenciados constantemente, o que far com que o contador esteja preparado para fazer modicaes em sua contao conforme se d o momento da contao. Segundo as ideias de Patrini (2005), o contador deve estar sempre atento para improvisar ao longo de sua contao. Ela explica que a existncia da teatralidade no contador evidente, nesse sentido, pode-se falar em um jogo teatral, ou seja, so produzidos simultaneamente uma narrativa e um jogo.Trata-se de uma interpretao sempre espontnea, menos autoritria, jamais submissa ao texto escrito e menos ainda ao desejo de um diretor de cena. Para os contadores de histrias, essa forma de expresso que podemos chamar de teatrais so especicamente orais: elas procedem de uma improvisao verbal e gestual. (PATRINI, 2005, p. 108)

A improvisao causa surpresa no pblico, essa surpresa renova a contao a cada apresentao. Tanto plateia como contador renovam-se a cada contao. As circunstncias que levam a improvisar. Essas aes improvisadas normalmente possuem uma coerncia no interior do jogo cnico (CHACRA, 1983, p. 21). A arte de contar histrias se baseia nessa possibilidade de contar uma histria sem decor-la, apenas vivenciando cada parte de seu enredo: exaltando o que lhe convm e subtraindo o que no quer contar. Anal, quando se est contando a histria, ela se torna nica. Um contador nunca se repete, mesmo que queira, pois impossvel a reproduo total de um momento efmero como contar uma histria, dada a prpria natureza dessa arte. A arte de contar, o contador, a histria e o pblico jamais sero

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os mesmos a cada contao, assim acontecendo sempre um momento de performance nico e efmero. O carter fundamental da improvisao a espontaneidade, e esta o alimento e a base da arte do ator, assim como tambm base para o contador de histrias: [...] arte da exibilidade, do imprevisto e das surpresas, mas tambm arte do controle e da adaptao (CHACRA, 1983, p. 70).

Consideraes finaisO que importa a verdade do momento presente, a convico absoluta que s pode surgir quando o intrprete e o pblico formam uma s unidade. E ela aparece quando as formas transitrias atingem seu objetivo e nos levam quele momento nico e irrepetvel em que uma porta s