Cadastro e registro de imóveis - irmãos siameses da gestão territorial

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  • 7/29/2019 Cadastro e registro de imveis - irmos siameses da gesto territorial

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    CADASTRO EREGISTRO DE IMVEISOs irmos siameses da gesto territorial

    Srgio [email protected]

    ResumoDistines essenciais entre duas instituies basilares na gesto territorial: Cadastro e Registro

    de Imveis. A confuso de atribuies e especificidades tem levado a crticas infundadas

    endereadas tanto a uma quanto a outra instituio

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    Cadastro e Registro de ImveisIrmos siameses da gesto territorialSrgio Jacomino1

    Sumrio

    Introduo ........................................................................................................................... 2Publicidade possessria e descries lacunosas ................................................................. 2Modelo colonial e a ablaqueao de terras ......................................................................... 6Registro do vigrio o antecessor do registro imobilirio? ............................................... 7Registro hipotecrio: uma anlise econmica do direito .................................................... 8No incio era a hipoteca ................................................................................................ 10

    A bela palavra cartrio ..................................................................................................... 12O pao dos tabelies e a casa deputada ............................................................................ 14Corregedoria dos tabelies (mas tambm dos juzes) ....................................................... 15A Lei de terras de 1850..................................................................................................... 19Cadastro e registro os irmos siameses da gesto territorial ......................................... 22

    1 Srgio Jacomino Oficial Registrador Imobilirio em So Paulo, Capital, Doutor em Direito Civil pelaUniversidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, especialista em Direito Registral pela Universidadede Crdoba, Espanha. Este trabalho foi apresentado para os alunos do Curso Virtual de Especializao LatoSensu em Direito Urbanstico, oferecido pela PUC Minas Virtual no ano de 2006.

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    Introduo

    Muito se tem discutido acerca da necessidade, j imperiosa, de se modelar e criar umverdadeiro cadastro multifinalitrio no pas um sistema que fosse confivel, adequadotecnicamente, que estivesse sob a responsabilidade dos municpios brasileiros e que pudesse

    emprestar seus preciosos recursos para a gesto territorial das cidades, servindo, entre outrascoisas, regularizao fundiria.

    Ocorre que a idia de se estruturar um bom cadastro municipal resvala na necessidadede compreender exatamente qual a sua verdadeira natureza e funo como dever serestruturado, quais devero ser as suas referncias normativas e, principalmente, definir qualo papel que dever jogar com os Registro de Imveis na contraparte essencial da gestoterritorial.

    E isso se torna necessrio porque, muitas vezes por incompreenso, outras pordesinformao, outras ainda por m-f, as crticas assestadas contra os Registros de Imveis

    brasileiros, pela aparentemente precria determinao dos bens inscritos, pelas descrieslacunosas encontradias em seus livros fundirios, so injustas e improcedentes e o so poruma razo bastante singela: no responsabilidade do registro predial brasileiro adeterminao fsica dos bens; de forma precpua, tarefa do Registro determinar(especializar) os direitos que incidem sobre aqueles bens.

    Por qual razo se encontram nos Registros descries aparentemente imprecisas? Aancianidade das inscries seria a chave para compreender essa caracterstica? O Registro distinto do Cadastro? Mas no s. A bela palavra cartrio, atualmente vituperada comosinonmia de ineficincia, burocracia e formalismo desvitalizado, de onde vem? Os cartriosso instituies importantes para o desenvolvimento social e econmico? A adscrio do

    Registrador figura do Juiz-Corregedor histrica?Essas perguntas sero respondidas ao longo desse Curso de Especializao de Direito

    Urbanstico. Por ora, vamos tocar em alguns aspectos das questes suscitadas, sem maioraprofundamento o que ser feito nas aulas especficas. Vamos indicar aspectos que poderoser aprofundados nos colquios que o Curso haver de proporcionar.

    Publicidade possessria e descries lacunosas

    Tenho tentado apresentar reflexo dos estudiosos de direito imobilirio as duasimportantes tendncias que se firmaram entre os sculos XVIII e XIX e que dizem respeito

    ao cadastro e registro hipotecrio brasileiros, tendo como elemento informador a propriedadeou simplesmente a posse das terras.

    Os estudos se orientam no sentido de se fazer uma anlise acerca da persistncia, emnossa cultura registral ao menos at meados da dcada de 1980, quando se deu umaexasperao do princpio de especialidade objetiva de procedimentos precrios de descriode bens imveis, tentando ligar esse fato que a muitos pareceu desde sempre umairremedivel deficincia ao lento desenvolvimento do conceito da propriedade privada, que

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    entre ns se vai modulando com o passar do tempo at atingir a cristalizao desse modeloque se nos apresenta modernamente.

    Hoje a Lei de Registros Pblicos (Lei 6.015/73) em vrias passagens aludir determinao dos bens imveis, que na terminologia tcnica conhecida como

    especializao dos bens imveis (v.g. art. 176, art. 225, etc.).A idia que temos da propriedade privada absolutizada, exclusiva, singular,

    abstrata, formal, e rigorosamente especializada no a mesma que vamos encontrar natradio brasileira, que se funda na Idade Mdia lusitana, especialmente quando flagramosos impulsos e elementos da cultura medieval portuguesa que nos brindaram tanto a regulaodo notariado, quanto o sesmarialismo para c trasladado, destacando-se, como pontoreferencial, a lei de 1.375, do clebre Dom Fernando. Essa tendncia atravessar os tempose conformar os requisitos para os registros fundirios que se faro primeiramente noslivros tabelionares e, depois, a partir de 1846, nos livros de registro hipotecrio.

    As datas de terras doadas, nos primrdios da colonizao, trazem um modelodescritivo que nos parece hoje inteiramente inadequado, mas que, poca, servia plenamenteaos objetivos perseguidos. Esse modelo insinuar-se- nos livros fundirios, vai povoar osregistros e compreender esse fenmeno vai nos ajudar a entender a necessidade deestruturao do cadastro.

    A visibilidade da posse nunca suficientemente ponderada e as indicaesencontradas, meramente referenciais, so, como disse, adequadas s contingncias da poca.Estamos na altura de uma publicidade da situao jurdica que se apia inteiramente na idiade notoriedade, isto , no conhecimento imediato que se d pela prpria evidncia doexerccio efetivo desse direito, guardadas certas formalidades na investidura. O exerccio daposse um elemento de publicidade, uma publicidade baseada inteiramente na notoriedade,uma publicidade que se poderia chamar adequadamente depr-registral.

    O grande autor italiano, SALVATORE PUGLIATTI, na monografia sobre a publicidadejurdica2, far referncia aos modelos de publicidade at certo ponto provocada pelo exerccioostensivo da posse, algumas vezes com investidura cercada de formalidades pblicas como,por exemplo, no direito romano, a in iure cessio e a manicipatio.

    No vamos tratar dessas formas rudimentares de publicidade que podem serconsideradas antecedentes dos modernos sistemas de registro deixando para a aulaespecfica j agendada. Importante destacar, neste passo, que a posse o elementofundamental que muitas vezes desconsiderada na compreenso dos indicativos lacunososdas inscries notariais e registrais.

    Na Brasil Colnia, o elemento essencial do sistema sesmarial a obrigatoriedade docultivo como condio da posse. Seiam costranjudos per as laurar e semear na dico doRegulamento Fernandino. A idia de funcionarizao da propriedade, tendo em vista a

    2La trascrizione la pubblicit in generale. Trattato Milano: Giuffr, 1957, p. 33passim, especialmente suanotizie storiche.

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    necessidade (social) de prover o abastecimento de mantimentos (trigo e cevada) a essenotvel sobrado europeu sobre o Atlntico, bem como enfrentar a aguda escassez de mo-de-obra para amanhar a terra em virtude da grande peste de 1348 a 1350 vai conformar aprimeira tentativa de disciplinar a complexa relao entre homens e coisas, o queinevitavelmente vai repercutir na maneira como o objeto dessas transaes vai sendo descrito

    em ttulos notariais (em sua esmagadora maioria).As sesmarias so o ponto de partida de nossa histria fundiria. Com todas as crticas

    que se pode fazer acerca da trasladao dessa figura to entranhada na cultura portuguesa realidade da Colnia, o fato que essa falta de absolutizao e singularizao da propriedade,com sujeio jurdica que se d exclusivamente a um titular determinado, vai influir namaneira como se descreviam os bens dados em sesmarias afora o aspecto de que o modelocolonial no estimulava a perfeita delimitao das posses em virtude de uma exploraoextensiva, o que originaria o fenmeno de ablaqueao expresso que fez certa fortunano meio registral e que indicava, em sentido figurado, a falta de amarras geodsicas daspropriedades registradas, que assim flutuavam na superfcie da terra.

    Este um outro aspecto relevante a ser destacado: a falta de preciso na descrio dosimveis estava relacionada com o modelo de explorao da Colnia. Vamos ver como osimveis eram descritos no registro de imveis desde o sculo XVI, descries que ainda hojepodem ser encontradas em vrios registros imobilirios.

    COSTA PORTO recolheu, no conhecido Sistema sesmarial no Brasil, cartas, escriturastabelioas onde as descries imobilirias, embora falhas, no deixavam de cumprir, poca,suas finalidades de determinao do bem, averbando: em alguns casos, a carta de sesmariaj valia, de si mesmo, uma demarcao, pois, embora no determinando expressamente area, de tal modo lhe fixava as confrontaes que ningum tinha dvidas quanto delimitao3.

    Vejamos alguns exemplos extrados do livro de COSTA PORTO e da coleo de Cartasde Datas de Terra, editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municpio de SoPaulo, em 1937.

    a terra que est da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que est sobre oVaradouro, onde se faz huma casa, onde est um marco de pedra (omissis) ircorrendo pelo camynho abayxo, direyto ao outeiro que est sobre o Varadouro, ondese faz huma casa, onde est um marco de pedra ir correndo pelo camynho abayxo,direto ao oiti, que est ao passo onde mataram o Varela, e dali ir corrende ao sudoesteathe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iro ao rio asima athe o Varadouro(Sesmaria dada em 1556 por D. Beatriz a Diogo Lopes).

    Ou ainda:

    a descrio partia da feitiaria dos ndios at onde se mete o ryo Ayam e daathe a riba de casa velha que foi de Christovo ndio e outra casa que foi de um ndio

    3 COSTA PORTO. Sistema sesmarial no Brasil. Braslia: UnB, s.d, p. 111,passim.

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    que se cha Aberama, onde esto huns cajus muito grandes etc. (Sesmaria doada aoalmoxarife Vasco Lucena).

    Se avanarmos um pouco mais no tempo veremos, que ainda assim, as descries noeram particularmente elucidativas e sempre serviam de referncia ao elemento possessrio,

    publicidade efetiva do exerccio dos direitos e posse, indicando, ainda, pessoas como marcosde confinncia. Vamos a um exemplo notarial de 1618:

    Manuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos dellaque sempre a sustentaram nas guerras e bonanas que na dita villa de So Paulo houveque elle tem necessidade de uns chos que esto partindo com Ascenso Ribeiro atchegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba at chegar ao caminho dePiratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahi (Carta de data de terra passada em31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz).

    Um outro exemplo de 1815, referente a imvel no corao da cidade de So Paulo:

    havemos por bem dar-mos, e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braasde terras de frente na dita paragem (Tabatinguera) cujo terreno tem de frente cincobraas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform oalinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundodesde o lugar onde findo as cinco braas defrente correndo a endireitura doalinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para l daponte assima dezignada (Ponte do Ferro). (Data de terras que a Cmara de SoPaulo concedei a Joz Pinto da Silva).

    E como era realizado o processo de levantamento? Vamos dar voz a ULISSES LINS emUm Sertanejo e o Serto, nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu4:

    O medidor enchia o cachimbo, acendia-o, montava o cavalo, deixando que o animalmarchasse a passo. Quando o cachimbo se apagava, acabado o fumo, marcava umalgua.

    Muitas descries que figuraram no registro imobilirio tinham apoio nesse tipo deexperincia.

    Vemos abaixo uma reproduo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real,que nos termos do artigo 22 do Decreto 482, de 17 de novembro de 1846, era um livro ndiceescripturado por ordem alphabetica, e por frma que facilite, sem equivoco, o conhecimentode todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartorio.

    4ALBUQUERQUE, Ulisses Lins de.Um sertanejo e o Serto memrias. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1957, p.167.

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    http://orion.uefs.br/scripts/odwp032k.dll?showbrief=uefs_profile:uefs_catalogo:pn:T:CARD:NEW:albuquerque,|ulisses|lins|dehttp://orion.uefs.br/scripts/odwp032k.dll?showbrief=uefs_profile:uefs_catalogo:pn:T:CARD:NEW:albuquerque,|ulisses|lins|dehttp://orion.uefs.br/scripts/odwp032k.dll?showbrief=uefs_profile:uefs_catalogo:pn:T:CARD:NEW:albuquerque,|ulisses|lins|dehttp://orion.uefs.br/scripts/odwp032k.dll?showbrief=uefs_profile:uefs_catalogo:pn:T:CARD:NEW:albuquerque,|ulisses|lins|dehttp://orion.uefs.br/scripts/odwp032k.dll?showbrief=uefs_profile:uefs_catalogo:pn:T:CARD:NEW:albuquerque,|ulisses|lins|de
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    Modelo colonial e a ablaqueao de terras

    Havia na Europa, principalmente na Alemanha e Frana, um cadastro (chamado com

    muita justia de napolenico) que j utilizava recursos tcnicos que permitiam levantamentosrigorosos para a poca.

    No incio, as concesses de terras no Brasil eram imensas, existia um modeloextrativista que se baseava no latifndio, em tudo conforme o que se convencionou chamarde modelo colonial. Havia um aproveitamento extensivo do solo, com o seu esgotamentopelo uso inadequado, com uma intrnseca necessidade de mobilidade o que acarretava umaflexibilizao dos limites da posse ou propriedade. A posse efetiva tinha essa caractersticadinmica: expandia-se de um lado para o outro. No admira que, embora houvesse disposio tecnologia geodsica para a realizao de uma adequada demarcao das terras,isso no se far na Colnia. A propsito, diz a professora LGIA OSRIO SILVA:

    O carter externo da acumulao de capital determinou uma das caractersticasinternas da produo colonial: todo o crescimento do sistema, seja aucareiro, seja dapecuria, fazia-se por extenso. Os mtodos de cultivo sendo rudimentares, oesgotamento do solo fazia-se tambm sentir rapidamente, obrigando o contnuoabandono das zonas esgotadas em busca de terras frteis. O arado foi muito poucoutilizado. O colono no cultivava o solo de modo muito diferente do indgena, apenaso fazia em propores muito mais amplas. E continua. Decorria dessas

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    caractersticas uma fonte permanente de terras que, por sua vez, acarretava umagrande mobilidade. Arruinava-se a terra, queimavam-se as florestas e passava-seadiante, repetindo o ciclo novamente5.

    Compreendidas, em linhas muito gerais, algumas das razes pelas quais as descries

    imobilirias que ainda se acham nos livros fundirios so to minguadas, gostaria de concluirque essas descries lacunosas, imperfeitas, inconsistentes so aspectos que devem serrelacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso. parte isso, a dinmica do crdito imobilirio especialmente o crdito hipotecrio no vaisofrer grandes restries em virtude dessa precariedade descritiva. mngua de um bomsistema de cadastro, o registro se desenvolver at o final do sculo XX sem que fossenecessria a modelagem de um novo sistema que o substitusse. Somente com o advento daLei 10.267/2000, que finalmente o direito brasileiro dotou o pas de um bom sistema decadastro coordenado com o registro imobilirio.

    Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminveis discusses que,aparentemente, partem e se nutrem de um equvoco histrico. Trata-se do seguinte: o registrodo vigrio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imveis atuais?

    Registro do vigrio o antecessor do registro imobilirio?

    A lei de 1850 (Lei 601, de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto1.318, de 30 de janeiro de 1854) no podem ser considerados singelamente os antecessoresdo Registro de Imveis.

    A persistncia do paralelismo dos regulamentos hipotecrios e aqueles outrosdiplomas que visaram a concretizar a lei de terras significativo. Encontra-se amide, emdoutrina, a afirmao de que o regulamento de 1854 (registro do vigrio) seria o avoengo doregistro hipotecrio. A legitimao de posses um dos aspectos essenciais da Lei de Terrasde 1850 ainda persistir, ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais)regulamentando processos de discriminao de terras pblicas, matriculao de terrasdiscriminadas ou possudas pela Unio, legitimao de posses.

    Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade,proporcionando um ttulo legtimo que deveria ser apresentado ao registro imobilirio. O quesustento que, desde 1846 at a vigente lei de registros pblicos ( Lei 6.015/73), houve umantida trajetria e desenvolvimento do sistema registral que no experimentou qualquerdesvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador.

    Todos havero de consentir, ao menos que, cronologicamente, a afirmao de que oRegistro do Vigrio o avoengo do Registro de Imveis equivocada. Vamos histrialegislativa.

    5 SILVA. Lgia Osrio da. Terras devolutas e latifndio efeitos da Lei de 1850. So Paulo: Unicamp, 1996,p.47.

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    Antes, porm, aprofundando a idia de que o Registro de Imveis, prescindindo deuma perfeita descrio dos bens imveis, tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos,veremos que a modelagem do registro hipotecrio ptrio ser a expresso de necessidadeseconmicas como modernamente se pode dizer que a expresso de necessidades sociais.

    Registro hipotecrio: uma anlise econmica do direitoA hipoteca como delineada no vetusto direito romano, passou para o direito

    portugus, com todas as suas imperfeies e vicissitudes (Ord. Livro 4, ttulo 3, ttulo 56 ettulo 79, 3, alm da Lei de 20 de junho de 1774, que graduou as hipotecas em privilegiadase singelas, esquecendo-se, contudo, de confort-las no bero da publicidade).

    Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais hipoteca, para que possaconverter-se em garantia segura e eficaz publicidade e especialidade no se encontravamperfeitamente compreendidos no instituto. No direito romano, e de resto na longa trajetriado direito portugus, admitiam-se hipotecas ocultas hipotecas gerais de bens presentes e

    futuros, sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferncias, o que demaneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774. Na opinio deLAFAYETTE, a hipoteca por essa altura era complicada e inextricvel a matria daspreferncias. Um tal sistema deixava o credor exposto s maquinaes da fraude e entreguea todas as contingncias da incerteza. E continua o festejado autor:

    de h muito os interesses agrcolas, da maior transcendncia em um pas como onosso, instavam com energia por uma reforma que, organizando a hipoteca sobre alarga base da publicidade, assegurasse ao crdito territorial a fora e a expanso deque capaz6

    J na primeira metade do sculo XIX, os contemporneos sentiam a necessidade dese dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos emprstimos. A hipoteca, coma sua configurao herdada do velho direito portugus, j no servia s necessidadeseconmicas. A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares.

    Por essa altura, na sesso parlamentar da Cmara de 3 de julho de 1830, foiapresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANA, projeto de lei em que a publicidadehipotecria ficaria assegurada.7

    Posteriormente, foi apresentado em 1836 um projeto de criao de um registrohipotecrio que quedou dormitando at que, em 16 de junho de 1838, por proposta dodeputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO, foi apresentado um projeto decriao de ofcio privativo de hipotecas, apontamentos e protesto de letras. O projeto eraassim justificado:

    6 PEREIRA, Lafayette Rodrigues.Direito das cousas. Rio de Janeiro: Garnier. Vol II, 1877, p. 37.7 PINTO, Antonio Pereira.Anais do Parlamento brasileiro Cmara dos Srs, deputados. Primeiro ano dasegunda legislatura, sesso de 1830. Rio de Janeiro: Typografia H. J. Pinto, t. II, 1878, p. 24.

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    parece da necessidade uma lei, que criando em cada municpio um ofcio, e registroespecial de hipotecas, e de protesto de letras, ponha os cidados, e particularmente ocomrcio, a abrigo das contnuas fraudes, que diariamente se praticam, hipotecando-se a indivduos por um cartrio prdios j hipotecados a outros por cartriosdiferentes; e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles, que pouco

    pontuais em seus pagamentos, deixam apontar, e protestar suas letras, a fim de queestabelecida a confiana, me do comrcio, possa esse prosperar, como muito convmaos interesses do pas.8

    V-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigncia econmica.Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado numregistro especial e no distribudo entre os vrios tabelies do imprio. Por tudo deveria serobviada a atomizao e disperso de cartrios no especializados seja em razo da matriahipotecria, seja em virtude de estrita competncia territorial.

    E continua o arrazoado:

    sabido que muitos sujeitos, que alis desejariam fazer girar, e reproduzir seusfundos, recusam d-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bensesto sujeitos, em todo ou em parte, a outros contratos e por temerem os prejuzos quede tais fraudes se tm seguido; donde tambm resulta que muitos proprietrios soprivados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades, obtendo sobre elasfundos, com que as possam melhorar, aumentar, ou entrar em outras especulaes.

    E segue o autor, fazendo referncia a outros projetos apresentados:

    esta necessidade parece ser reconhecida, pois que existe nesta casa, desde 1836, umprojeto sobre hipotecas; mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro paraelas, e estabelecendo-o nas cmaras municipais, creio que alm de ir complicar muitoo expediente destes corpos administrativos, no satisfaz o fim proposto, isto , evitaro mais possvel a fraude dos contratantes de m-f, e proteger os que tm boa. Porestes motivos pois, e com o fim de animar, por meio da segurana, as transaescomerciais, o giro dos fundos, e, por conseqncia, o melhoramento das fortunas, epropriedades particulares, tenho a honra de propor o seguinte projeto de lei e segueo projeto.9

    J em 1840, na sesso de 11 de maio, o projeto de 1838 entra em discusso e mereceum comentrio elucidativo sobre um perodo em que as legislaes provinciais admitiam acriao de escrives de hipotecas. O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiano Imprio legislao hipotecria provincial. Diz que as assemblias provinciais tm criadoescrives de hipotecas e estes escrives so compreendidos no ato adicional. Portanto,

    8 REIS, Antonio Henoch dos.Anais do Parlamento brasileiro Cmara dos Srs, deputados. Primeiro ano daquarta legislatura, sesso de 1838. Rio de Janeiro: Typografia da viva Pinto & Filho, t. I, 1886, p. 353.9 Idem, ibidem.

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    conviria arredar da cmara qualquer cousa que possa ir dar nas provncias um choque, ouestabelecer quaisquer prevenes.10

    O deputado MOURA MAGALHES, na mesma sesso, registra que o projeto sobrehipotecas no poderia dormitar em plenrio, para obviar as fraudes que se costumam praticar

    em dano das partes e em ofensa de seu direito.

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    Transcorridos alguns anos, na sesso de 18 de maro de 1843, nas vsperas das

    discusses da lei oramentria daquele ano, o deputado J.M.PEREIRA DA SILVA remete comisso de Justia civil o tema do registro hipotecrio, jungindo:

    sendo de absoluta necessidade a adoo de uma lei que fixe regras invariveis e umsistema claro sobre hipotecas, a fim de assegurar a propriedade individual e de acabarcom abusos imensos que tm resultado do estado imperfeito da legislao civilexistente: indico que a nobre Comisso de Justia Civil organize, com toda abrevidade, um projeto de resoluo sobre hipotecas, colhendo os precisos dados deoutros projetos apresentados Cmara por diversos Srs. Deputados em diferenteslegislaturas, a fim de se prosseguir na sua discusso com a presteza e a urgnciacompatveis com objetos de tanta transcendncia.12

    O prprio deputado J.M.PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar, j na sesso de 1de abril de 1843, o seu prprio projeto de lei, que criava a figura dos tabelies privativos dehipoteca nas cidades do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Nas outras cidades e vilas doImprio um dos atuais tabelies ser incumbido desse ofcio conjuntamente com o que oexercer.13

    No incio era a hipoteca

    Pois bem, concebido no bojo das discusses oramentrias de 1843, que redundou nalei 317, de 21 de outubro de 1843, seria finalmente criado o registro hipotecrio brasileiroem 1846, pela via do decreto 482, de 14 de novembro de 1846.

    Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO, que apresentaria uma emenda aditiva,o registro hipotecrio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dosfinanciamentos dirigidos produo agrcola brasileira, justificado claramente pornecessidades econmicas e sociais.

    Alis, ANTNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO, talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRABARRETO (que foi o primeiro tabelio da cidade de Resende, em 1801), tinha plenaconscincia das potencialidades de um registro hipotecrio e de seu benefcio para o

    10 Idem, p. 242.11 Idem, p. 243.12 REIS, Antonio Henoch.Anais do parlamento brasileiro. Cmara dos Srs. Deputados primeiro ano daquinta legislatura. Primeira sesso de 1843. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, t. II, 1882, p. 324.13 Op. cit., p. 595.

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    incremento do financiamento agrcola. Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministrodo Supremo Tribunal Federal.

    Para se ter uma idia da importncia histrica do tema, vamos dar voz ao deputadoBARRETO PEDROSO que, na sesso do Parlamento de 4 de julho de 1843, verberava a criao

    do regime de registro hipotecrio no pas nos seguintes termos:Ora, Sr. Presidente, o comrcio, que a outra parte da nao que carrega com osimpostos, tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura; trago, por exemplo,o que acontece no Rio de Janeiro; existe aqui um banco, os negociantes que podemapresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento, porque o banco eoutros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que soapresentados aos negociantes. Mas acontece o mesmo com a lavoura? Decididamenteno. Vejo lavradores que tm o valor de 50, de 100 e mais contos de ris, entretanto,se precisam de dinheiro, vm-se na preciso de obter com um juro muito crescido.

    Em outro momento dos debates, registrou o lcido deputado: inegvel que, logo que se criar um registro de hipotecas, a lavoura h de achardinheiro com muito menor juro que atualmente. Quando os capitalistas das cidades evilas souberem que podem dar o seu dinheiro, que o tem seguro com a hipoteca sobreum prdio de muito valor, ho de por certo baixar o juro de seu dinheiro, porque odo com mais ou menos interesse, conforme a segurana que tm.14

    O diagnstico era preciso. Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelosinvestidores guardam estrita relao com os riscos inerentes ao negcio. regra comezinhade economia. O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir, com pronunciamento denotvel clarividncia, j na sesso do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano, em respostas objees que lhe foram levantadas:

    Eu fiz ver muito resumidamente que, se ns crissemos um registro de hipoteca,facilitaramos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor. Os nobresdeputados no podem desconhecer que, quando os capitalistas do dinheiro a juros,procuram com muito cuidado a garantia da segurana para o sem embolso. Disse euque o juro estava na razo inversa da segurana, que quanto maior era a segurana,tanto menor era o juro15.

    Como se viu, a palavra-chave era segurana jurdica. O mesmo imperativo se colocaatualmente diante dos operadores do direito, convocados a repensar as virtudes que o nossosistema registral representa.

    Enfim, tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelodeputado PEDROSO, acabou figurando na Lei Oramentria de 1843, com eficcia limitada a

    14Annaes do Parlamento Brazileiro. Cmara dos Srs. Deputados segundo ano da quinta legislatura, segundasesso de 1843, p. 54.15 Idem, p. 85.

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    ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros,pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento.

    A primeira tentativa, portanto, de imprimir hipoteca os efeitos da publicidaderegistral hipoteca deu-se no decreto 482, de 14 de novembro de 1846, regulamentando a

    disposio encontrada na Lei Oramentria 317, de 21 de outubro de 1843.Como a doutrina no deixou de assinalar, o ensaio regulamentar foi manco e

    imperfeito, pois no atacava a existncia das hipotecas gerais, o que obviamente contrariavao sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca, impulsionada pelosventos modernizadores do crdito agrrio to bem apanhados pela doutrina francesa.

    Vemos que a disposio que hoje encontramos na vigente lei dos registros pblicosdeita razes na tradio dos sucessivos regulamentos hipotecrios que, desde 1846, at 1976 por exatos 130 anos disciplinaram a atuao do oficial registrador.

    A bela palavra cartrioA conhecida palavra portuguesa finca razes em boa fonte latina. Na idade mdia, os

    importantes documentos notariais, alguns apgrafos, outros originais, eram conglomeradosem colees denominadas cartulrios donde cartrios, do baixo latim chartulatium, dechartula, que vem de nos dar a belssima cartrio. De pequenas colees depositadas emigrejas, mitras, mosteiros, arquivos reais etc., muitas vezes em pequenos arquivos ouescritrios, a palavra sofre mutaes e chega, em plena maturidade, complexa instituioencarregada do registro pblico, garantindo a publicidade, eficcia, autenticidade, seguranados atos e negcios jurdicos.

    Essas colees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliesmedievais, evitando-se, assim, a disperso e justamente a existncia de cartrios que se tempermitido, ao longo dos sculos, que se possam conhecer e recompor eventualmente osdocumentos originais que se perderam.

    Outra acepo nos d JOO PEDRO RIBEIRO, que registra em suas clssicasDissertaes, que se d o nome de Chartularios, ou Cartularios (em vulgar Cartairos, ouCartarios, que s vezes sinnimo de Cartrios) aos Cdices em que se acham transcritosos ttulos e documentos de algumas Corporaes.16 Portanto, colees de ttulos emaados.

    Os cartrios serviram desde sempre para o robustecimento da prova. Diz MARCELLOCAETANO que a razo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa nanecessidade que tinham os proprietrios de conservar os ttulos justificativos de seu domnio.Diz que os cartulrios, cartrios ou cartrios (de Charta) pertencem sobretudo s grandescorporaes monsticas ou s mitras, que possuam avultados patrimnios, constitudos s

    16 RIBEIRO, Joo Pedro.Dissertaes chronologicas e criticas. 2a ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias deLisboa, 1896, t. V, dissertao XIX, p. 3

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    vezes por centenas de prdios, fosse em plena propriedade, fosse em senhorio direto (prdiosforeiros).17

    V-se que, ao lado do registro notarial, sempre houve uma tendncia natural deconstituio de flios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que

    serviram principalmente perpetuao dos ttulos para a prova e justificao de direitos. Oscartrios, que ento se constituam nessas corporaes monsticas tambm nos arquivosreais, relaes (at na Universidade de Coimbra) prefiguravam j, nitidamente, a feio quemais tarde os ofcios de registro teriam no futuro: territorialidade, concentrao, segurana,perpetuidade, indelebilidade, autenticidade, eficcia probatria, etc.

    Eram inmeros os cartrios que se foram constituindo nessas instituies. Sobastante conhecidas dos diplomatistas e palegrafos portugueses, fontes preciosas depesquisas. Citam-se, amide, Cartrio de Santo Thyrso, Cartrio do Mosteiro de So Joo deTarouca, Cartrio de Pombeiro, Cartrio da S de Viseu, Cartrio de Lorvo, Cartrio daCmara da Torre de Moncorvo, Cartrio do Convento de Tomar, Cartrio de Alcobaa,Cartrio de Pendorada, Cartrio de S. Simo da Junqueira, etc.

    O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos d algumas lies sobre a origem dapalavra cartrio, ligando-a diretamente a pao:

    A tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoo abriram, a pouco e pouco,ensanchas a que os tabellies fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontosdas cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas. Essas casasperderam o nome de pao e o substituiram pelo de cartorio. D'onde veio estevocabulo? Porque para o tabellio ou escrivo ainda subsiste o nome legal de cartorioao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio? Vamosexplicar: Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever. A carta versoliteral do substantivo latino charta, chartae, equivalente a papel que, para a escriptaincipiente, era fabricado da fibra do junco papyro. Este papel foi tomando diversossentidos, segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado. D'ahi vem quecarta significa o livro, o diploma, a patente, o titulo ou acto de lei, de citao, departilhas, de liberdade, de conselho, etc. O cartorio, pois, no era sino lugar em queeram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabellio. Era oarchivo ou deposito onde so recolhidos os livros de notas, de audiencia, eleitoraes,os autos, os processos, as ordens do juiz, emfim todos os papeis. A officina dotabellio, do escrivo, e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorioquer elle esteja em edificio separado quer n'um compartimento da propria morada doserventurio.18

    17 CAETANO, Marcelo.Histria do direito portugus. 4a ed. Lisboa : Verbo, 2000, p. 243.18 MACHADO, Joaquim de Oliveira.Manual do official de registro geral e das hypothecas. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1888, p. 111.

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    O pao dos tabelies e a casa deputada

    Como se v, a palavra cartrio, a bela palavra cartrio, liga-se aos antigospaos dostabelies medievais, cujas origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idadeda monarquia portuguesa.

    Assim, verificamos a ocorrncia da palavra pao no famoso regulamento sobre aatividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305, baixado por D. Dinis, cuja ntegra pode serconsultada em Vsperas do notariado brasileiro: um passeio s fontes medievais.19

    Permito-me destacar aqui o artigo 21:

    xxi artigo /

    Todolos tabellies em nos logares hu morarem deuem a ter casa ou paao ssabudo

    en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles

    que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he erto que os mais dos tabellieso nom fazem assy nem querem ter casas en que escreuam E per esta Razom perdemas gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhisconpre Esto sse entende ter casa na vila hu som muytos tabellies ou de dous aima.

    O Elucidrio registra quepao qualquer casa mais que ordinria.20Era a residnciade reis ou prncipes, prelados eclesisticos e universitrios.21 O mesmo elucidrio registra overbetepao dos tabelliaens, por onde se v que antigamente havia uma grande casa ondeescreviam notrios pblicos e todos os escrives que fazem escrituras ou quaisquer outrosinstrumentos de compra, venda, contratos, etc. E continua Viterbo: com o lapso do tempose foram recolhendo os tabelies com os respectivos cartrios s suas casas, e, os poucos que

    ficaram, conseguiram del-rei D. Joo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seusofcios, com o que, ficando devoluto o tal domiclio, o mesmo senhor rei fez dele merc noano de 1749.22

    Nas vilas onde morassem mais de dois tabelies, deveriam ter casa ou pao conhecidoonde seriam encontrados sempre que de seus servios necessitassem os povos. Os tabeliesno queriam esse escritrio comum. Como se v do extrato acima, acabaram, j no reinadode D. Joo V, por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas.

    Depao dos tabelies nos primrdios vamos para casa deputadaj nas ordenaesManuelinas, Livro 1, tit. 59, item 6:

    6 ITEM em qualquer Cidade , Villa , ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera osTabalias de Notas , os ditos Tabalias eftaram pola menha e aa tarde na dita cafa ,

    19 JACOMINO, Srgio. Fontes do notariado brasileiro: um passeio s fontes medievais, in Revista de DireitoImobilirio 53, So Paulo: RT/Irib, jul./dez. 2002, p. 184.20 Elucidrio, verbetepao.21 FIGUEIREDO. Cndido de.Dicionrio da lngua portuguesa. 11a ed. Lisboa : Bertrand, s.d, verbetepao.22 Elucidrio, verbetepao dos tabelliaens.

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    por tal , que as partes que os mefter ouuerem , pera fazerem alga efcriptura , os

    poffam mais preftes achar em a dita cafa , que lhes affi for ordenada.

    A mesma denominao vamos encontrar nas Ordenaes Filipinas (Ttulo LXXVIII)at que chegamos costumeira cartrio.

    No prprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartrio no art. 2.,rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no Cartrio do Registro Geral da comarcaonde forem situados os bens hipotecados e ainda nos artigos 4, 22, 26.

    Corregedoria dos tabelies (mas tambm dos juzes)

    A adscrio judiciria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razes nahistria da prpria instituio. No j referido Regulamento de D. Dinis, de 1305, vemos comoos tabelies eram correcionados pelos juzes:

    xx. artigoE sse algu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger. sse lho o Jujz fezercoReger nom no ameae porem. ca sseia erto sse lho o Jujz manda coReger aqueloque fez que o ameaa. E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre elesscripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereytoe de Justia. porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faam assy daquiadeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scripto.

    Os tabelies estavam sujeitos corregedoria dos juzes. Mas igualmente os juzes decerto modo estavam sujeitos a uma espcie de fiscalizao, da qual os tabelies estavam

    encarregados, de informarem ao rei, ou aos seus delegados, sobre o estado da administraoda Justia.

    A completa compreenso deste artigo se alcana cotejando-o com o Regulamento de1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro). Essas declaraes e informaes faziam comque os juzes temessem os tabelies. Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidaspelos tabelies, eventualmente quedar-se-ia silente, pois teria motivos de sobra para temeruma represlia, pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador.Dava-se o caso, igualmente, de que o tabelio guardasse silncio acerca das faltas cometidaspor juiz com quem servia, muitas vezes por esse escolhido. A situao era, pois, deencobertamento recproco.

    E justamente sobre essa situao que encontramos uma lei sem data conhecida,segundo RIBEIRO muito provavelmente de D. Afonso IV (1325-1357), em que o rei procuraevitar que o tabelio fosse escolhido pelo juiz e que, por essa razo, guardasse silncio sobreeventuais irregularidades cometidas pelo magistrado:

    He dito, que os Juizes, e Alvaziis assy do Crime, como do Civil, quando entram porJuizes escolhem quaes Tabellies querem, pera seerem com elles nas Audienias, e

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    nas ou/tras cousas, que han de fazer, e que esses Tabelliaes, que assy por elles somescolheitos, nom querem, ou nom ousam escrever, nem fazer nada, que seja contraesses Juizes. Porem manda ElREY, e defende aos ditos Juizes, que nom filhem, nemescolham por sy Taballies, que com elles sejam nas ditas cousas; mais manda que oshomeens boons, e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes; que ouverem de seer,

    e escrever em cada ha Audienia, e escolham pola guisa, que entenderem, que hmilhor, e sejam taaes, que sejam sem sospeita.

    Pela carta rgia de 1 de agosto de 1281, expedida por D. Dinis contra a falta deadministrao de justia, era imposta aos tabelies a obrigao de dar registro falta deadministrao da Justia. No que concerne especificamente aos tabelies, diz o rei:

    E mandom a todolos Taballioens de meu Reino, su pena dos crpos, que escrevotodalas cousas, en que se nom fezer Justia, e aqueles per quem menguar; de guisa,que quando Eu for na terra, ou mandar sobresto fazer Inquiriom, que o possa todosaber.23

    Semelhantemente encontramos disposio anloga na Lei de 31 de julho de 1282, emque se ordena que as apelaes sejam dirigidas retamente corte, imperando aos tabeliesque, havendo desobedincia lei, dem informaes do fato ao soberano. Verbis:

    E mando a todos os tabellies dos meus Reynos que Registrem esta mha carta. e aleam nos conelhos ameude E se algu contra ela uer mando a eles so pena dos

    corpos e dos encoutos que mho mandem dizer.24 (v. apndice - doc. V).

    Como se v a regra se repete em vrios regulamentos e chega a figurar nas OrdenaesAfonsinas (II, 14, 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286, referentemente aquisio de bens deraiz por ordens ou clrigos. Tinham os tabelies a obrigao de comunicar tal fato ao rei,sendo a omisso cominada com a pena capital:

    Que os Clrigos, e Hordes nom comprem bes de raiz fem mandado dElRey.

    Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada ha Hordenaom, per que antiguamente

    foi defefo aos Clrigos, e Herdes, que nom compraffem algus bes de raiz emnoffos Regnos, da qual Hordenaom o theor he efte, que fe adiante fegue.

    I DOM DONIS per graa de DEOS Rey de Purtugal, e do Algarve. A todolos Alquaides,Meirinhos, Corregedores, Juizes, Alguazis, Juftias, Almuxarifes, e Taballiaes dosmeus Regnos, faude. Sabede que os Reyx, que ante mim forom, defendeerom, queHordes, nem Clrigos nom compraffem nenhus herdamentos em feu Regno, e outro

    fy o defendo eu: e ora algus Concelhos xe meenviarom queixar, que algus Clrigos,e Hordes faziam mui grandes compras em minha terra, e que efto era meu

    exerdamento, e mui gram dpno delles de guifa, que quando os eu, e os Cavalleirosda minha terra, e os Concelhos ouveffem mester pera meu fervio, que me nom

    23 Documentos da Vila de Ms, citado no Elucidrio no verbetepontaria24 LLP, fol. 13 verso (p. 50). v. apndice doc. V.

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    poderiam fervir, affy como deviam; e eu affy o entendo; e fom tam maravilhado,como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento.

    2 E POREMmando, e defendo os Clrigos, nem Hordes nom comprem herdamentos,e aquelles herdamentos, que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy, des que

    eu fui Rey, dou-lhes prazo, que os vendam defta Santa Maria dAgofto atta hu anno;e fe os n venderem ataa este prazo, percam-nos. E efto catade ora vos que nomprenda eu hy engano, nem as faam vendidias, e que fiquem elles com ellas, e emoutra guifa vos mo lazararedes. E vs, Taballiaes, se eu per vs defenganado nomfor de todo, e per vs nom fouber os que ficam, que os nom vendam des que aquelleprazo paffar, morreredes por ende. Efta Carta regiftade-a em voffos livros. Dante emLixboa a dez dias de Julho. ElRey o mandou. Manoel Eannes a fez era de mil etrezentos e vinte e quatro annos.

    Sobre a sujeio dos tabelies aos corregedores, vemos mais claramente nasdisposies contidas no Regimento dos Corregedores, de 1340, pelo qual deveriam oscorregedores verificar e informar-se a respeito dos tabelies de cada vila ou julgado; achandoque no soubessem de seu nobre ofcio ou apurando que no fossem de boa fama, cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo. Esse regimentopassaria para as Ordenaes Afonsinas e para as Ordenaes de D. Duarte. Para melhorcompreender a extenso da sujeio dos tabelies aos corregedores, e das famosos correies,que fizeram fortuna em nosso sistemas, vamos pinar algumas disposies encontradas nasOrdenaes Afonsinas, Livro I, ttulo XXIII, item 4:

    4 ITEM. Defpois que for em algu lugar de fa correiom , deve mandar apregoar , quevenha perante elle todos aquelles , que ouverem querellas de Alquaides , e de Juizes, ou Taballiaas , ou de poderofos , ou doutros quaeefquer , e que lhas far correger

    ; e que outro fy venha perante elle todos os que ouverem demandas , e que lhas fardefembargar ; e o pregom affy dado , deve chamar os Juizes daquelle lugar, e poe-losa par de fy , e fazer-lhes pergunta , quando veerem as partes , que feitos teem peranteos Juizes , porque os nom defpacham , mandando-lhes , que loguo defembarguemfeos feitos.

    A sujeio do tabelio aos corregedores e juzes percebida de forma inequvoca noitem 12 do mesmo livro e ttulo, cabendo aos magistrados a superviso geral (corregedoria-permanente) e aplicao das penas caso apurasse qualquer irregularidade. Para que fossembem conhecidas suas atribuies, os juzes deveriam obrigar que fossem lidos aos prpriostabelies e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos naprimeira segunda-feira de cada ms:

    I2 ITEM. Deve mandar aos Juizes , que faiba , fe os Taballiaas guarda os artigos, etaufaom , que jurara na Chancellaria , e fe achar que os nom guardam , que lhesdem a pena , que lhes fobre efto he pofta ; e fe os Juizes em fabendo defto parte foremnegrigentes , o Corregedor o eftranhe aos Juizes , e d-lhes por effo pena qual vir ,que compre. Outro fy d aos Taballiaas a pena , em que cahirem. E por haverem

    razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos , e taufaom , quefaam leer effes artigos , e taufaom perante os Taballiaas , e ao Povo cada fegunda

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    feira primeira de cada mez no lugar , onde fazem o Concelho , pera faberem todo , oque em elles for contheudo.

    Mas, no caso especfico do registro hipotecrio, a atuao do tabelio encarregado donobre ofcio se desenvolve sem estritas peias vinculantes, suas razes denegatrias so

    respeitadas e mesmo quando haja uma deciso judicial de improcedncia, o registro aindaassim no se fazia.

    Outro aspecto digno de nota diz respeito forma do registro: o artigo 11 doregulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translao dos elementos dottulo, cpia literal verbo ad verbum, como lavram ordinariamente os tabelies as suasnotas. O artigo tem a seguinte redao:

    Art. 11. Os assentos dos registros das hypothecas sero lanados diariamente, noLivro do Registro geral, guardada a numerao dada no Protocolo verbacorrespondente, e a mesma data; e consistiro os mesmos assentos na copia litteral dotitulo verbo ad verbum, com as formalidades praticadas pelos Tabellies nolanamento de documentos nas suas notas, a requerimento de partes, no devendomediar entre huns e outros registros, espao em branco, mais que o preciso paradistinguir.

    A tcnica de registro uma mera transcrio do ttulo, suposto que a escritura pblica(ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais, quer norespeitante forma, quer no contedo. E assim porque, nesta altura, tendo sido aproveitadaa figura do tabelio, no ter sido percebido que as distintas atividades faro nascer maistarde um ntido divisor, de maneira que o registrador poder conhecer do ttulo e denegar oregistro quando lhe parea eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sidoaperfeioado por um tabelio.

    Certo que a tcnica de transcrio verbo ad verbum requer uma atuao em que aatividade criativa do oficial registrador, na plasmao do registro, fica de certa forma limitadae concentrada na trasladao escrupulosa dos dados que figuram no ttulo para os livros deregistro. Certo tambm que o tabelio especial, como vimos, pode denegar o registro,hiptese em que caber recurso ao juiz competente. Mas a tcnica da inscrio vir maistarde. A inscrio, ato mais delicado e que demanda grande cuidado e escrpulo em suaconfeco, consiste na insero do substrato das circunstncias capitais, cuja enunciao deveser resumida, mas cautelosamente feita, conforme apontaria mais tarde DDIMO DA VEIGA.25

    A transcrio e a inscrio termos que indicavam atos de registro estrito senso sero mantidas como nomenclatura prpria no desenrolar da histria do direito hipotecrio eregistral brasileiro. Vo designar atos prprios de registro que se perfaziam, ambos, porextrato, o que denuncia certa inadequao terminolgica que s encontrar termo em 1976,com o advento da Lei 6.015/73.

    25 VEIGA, Ddimo Agapito da.Direito hipotecrio. Rio de Janeiro: Lammert, 1899, p. 254.

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    A Lei de terras de 1850

    Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601, de 1850 e seu decretoregulamentador n. 1.328, de 1854).

    A Lei 601, de 18 de setembro de 1850, legitimou a aquisio pela posse, procurandovincar, pelo modo que previa, o domnio pblico de todas as posses que deveriam ser levadasao registro previsto no artigo 13 da citada lei:

    Art. 13. O mesmo Governo far organisar por Freguesias o registro das terraspossuidas, sobre as declaraes feitas pelos respectivos possuidores, impondo multase penas quelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraes, ouas fizerem inexactas.

    O registro era feito com base nas declaraes dos posseiros. Ser pelo Decreto 1.318,de 30 de janeiro de 1854, que se criaria o famoso registro do vigrio. O artigo 91 do

    supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o seuttulo de sua propriedade ou posse, seriam obrigados a registrar as terras:

    Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o ttulo de sua propriedade,ou possesso, so obrigados a fazer registrar as terras, que possuirem, dentro dosprazos marcados pelo presente Regulamento, os quaes se comearo a contar, naCrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e SecretariodEstado dos Negocios do Imperio, e nas Provincias, da fixada pelo respectivoPresidente.

    Os ttulos deveriam formalizados por declaraes unilaterais dos possuidores,

    conforme previa o artigo 93 do regulamento:Art. 93. As declaraes para o registro sero feitas pelos possuidores, que asescrevero, ou faro escrever por outrem em dois exemplares iguaes, assignando-osambos, ou fazendo-os assignar pelo individuo, que os houver escripto, se ospossuidores no souberem escrever.

    O mais curioso desse decreto que a incumbncia de receber as declaraes para oregistro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a repartio competente art. 107)ficou a cargo dos vigrios de cada uma das freguesias do imprio. Alm disso, os vigriospoderiam faz-lo por si ou por meio de escreventes, que poderiam livremente nomear. Assim

    disps o regulamento no seu artigo 97:Art. 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio so os encarregados dereceber as declaraes para o registro das terras, e os incumbidos de proceder esseregistro dentro de suas Freguezias, fazendo-o por si, ou por escreventes, que poderonomear, e ter sob sua responsabilidade.

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    Os vigrios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigao que lhes foiimposta pela Lei, amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais epublicadas por todos os meios (editais, proclamas, etc.).

    Art. 98. Os Vigarios, logo que for marcada a data do primeiro prazo, de que trata o

    Art. 91, instruiro a seus freguezes da obrigao, em que esto, de fazerem registraras terras, que possuirem, declarando-lhes o prazo, em que o devem fazer, as penas emque incorrem, e dando-lhes todas as explicaes, que julgarem necessarias para o bomcumprimento da referida obrigao.

    Art. 99. Estas instruces sero dadas nas Missas conventuaes, publicadas por todosos meios, que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes.

    O festejado AFRNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamentoo primrdio da atividade registral e da fixao da competncia territorial dos registradores:o registro das posses era feita pelos vigrios das freguesias do Imprio, definindo-se,portanto, a competncia dos registradores, desde os primrdios registrais, pela situao doimvel.26

    Calham aqui algumas observaes. Em primeiro lugar, o registro no eraexclusivamente de posses, mas tambm de propriedades havidas por justo ttulo. Muitoembora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimao das posses e maistarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapio, conforme decidido pelo STF (emdeciso a que abaixo se far referncia). De fato, o artigo 91 do regulamento previa que todosos possuidores de terras, qualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possesso,estavam obrigados ao registro. Em segundo lugar, o vigrio funcionava, aqui, menos comoregistrador imobilirio e mais como um tabelio, pois ele deveria reter as declaraes que lhefossem apresentadas, emaando os exemplares, numerando-os pela ordem de apresentao,organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sidoregistrado. Esse livro seria remetido, findos os prazos estabelecidos para o registro, aoDelegado do Diretor-Geral das Terras Pblicas da Provncia respectiva, para a formao doregistro geral das terras possudas, do qual se enviaria cpia ao Diretor para a organizaodo tal registro.

    Finalmente, no se pode concordar com o mestre AFRNIO DE CARVALHO quando dizque o regulamento definia a competncia dos registradores pela situao do imvel. queo Regulamento de 1846, em seu artigo 2, j previa a regra da competncia do registradorpela situao do bem hipotecvel:

    Art. 2. As hypothecas devero ser registradas no Cartorio do Registro geral daComarca onde forem situados os bens hypothecados. Fica porm exceptuada destaregra a hypotheca que recahir sobre escravos, a qual dever ser registrada, no registroda Comarca em que residir o devedor.

    26 CARVALHO, Afrnio de.Registro de Imveis. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 2.

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    No produzir effeito o registro feito em outros Cartorios, e igualmente o que forfeito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimento.

    Outro aspecto importante, digno de nota, que o tabelio-vigrio, no exame dosexemplares apresentados, poderia suscitar impedimentos. que as declaraes deveriam ser

    por ele escrupulosamente conferidas. S se faria o registro se as mesmas fossem encontradasem regra e os exemplares apresentados idnticos entre si. Se eventualmente os exemplaresno contivessem as declaraes necessrias e exigidas pela Lei, ele poderia fazer notar, aosapresentantes, as observaes convenientes de molde a instru-los nas declaraes devidas.Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notrios.

    De qualquer maneira, insistindo as partes no registro de suas declaraes, pelo modopor que se acharem feitas, os tabelies-vigrios no poderiam recus-las e o registro dequalquer maneira se faria. Aqui a reproduo dos textos regulamentares:

    Art. 101. As pessoas obrigadas ao registro apresentaro ao respectivo Vigario os doisexemplares, de que trata o Art. 93; e sendo conferidos por elle, achando-os iguaes eem regra, far em ambos huma nota, que designe o dia de sua apresentao; eassignando as notas de ambos os exemplares, entregar hum delles ao apresentantepara lhe servir de prova de haver cumprido a obrigao do registro, guardando o outropara fazer esse registro.

    Art. 102. Se os exemplares no contiverem as declaraes necessarias, os Vigariospodero fazer aos apresentantes as observaes convenientes a instrui-los do modo,por que devem ser feitas essas declaraes, no caso de que lhes pareo no satisfazerellas ao disposto no Art. 100, ou de conterem erros notorios: se porm as partesinsistirem no registro de suas declaraes pelo modo por que se acharem feitas, osVigarios no podero recusa-las.

    Art. 103. Os Vigarios tero livros de registro por elles abertos, numerados, rubricadose encerrados. Nesses livros lanaro por si, ou por seus escreventes, textualmente, asdeclaraes, que lhes forem apresentadas, e por esse registro cobraro do declaranteo emolumento correspondente ao numero de letras, que contiver hum exemplar, arazo de dois reaes por letra, e do que receberem faro notar em ambos os exemplares.

    Art. 104. Os exemplares, que ficarem em poder dos Vigarios sero por ellesemmassados, e numerados pela ordem, que forem recebidos, notando em cada hum afolha do livro, em que foi registrado.

    Art. 107. Findos os prazos estabelecidos para o registro, os exemplares emmassadosse conservaro no Archivo das Parochias, e os livros de registro sero remettidos aoDelegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva, para em vistadelles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia, do qual se enviarcopia ao supradito Director para a organisao do registro geral das terras possuidasno Imperio.

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    O registro da Lei n. 601, de 1850, pelo regulamento de 1854, no tinha finalidadepuramente estatstica, mas visava a legalizar a situao de fato das posses que semultiplicaram nos trs sculos anteriores. Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal noRecurso Extraordinrio n. 80.416, Gois, pela 1 Turma. Nas palavras do relator, MinistroCunha Peixoto:

    No creio que o registro do vigrio, do Regulamento de 1854, tivesse finalidadespuramente estatsticas. Provendo o cumprimento da Lei n. 601, de 1850, esta e eleso dois textos dos mais sbios e realsticos nas circunstncias da poca, tendo emvista as circunstncias histricas em que se desenvolveu, nos trs sculos anteriores,o parcelamento das terras pblicas, com ostensiva tolerncia da Coroa. Estasensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento edo aproveitamento do pas imenso e brbaro. E assim se fez o Brasil atual. Atribuo,pois, Lei de 1850 e ao regulamento do vigrio (1854) efeitos de consolidao dasposses que, bem ou mal, foram tomadas em terras s provncias.

    Portanto, em concluso, o chamado registro do vigrio tinha uma caractersticafrancamente notarial no registral. O tabelio-vigrio tinha incumbncias precisas e osdados, por ele coletado, comporiam um livro de registro que seria posteriormenteencaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Pblicas para a constituio do registrogeral das terras possudas do Imprio, quedando unicamente sob sua guarda os exemplaresemaados.

    Concluindo, o Registro do Vigrio no pode ser considerado o avito do Registro deImveis. Os antecedentes do moderno sistema registral ptrio deitam suas razes no Decreto482, de 17 de novembro de 1846.

    Cadastro e registro os irmos siameses da gesto territorial

    Em fins do sculo XIX gestavam-se os irmos siameses da gesto agrria, o cadastroe o registro. Muitos indcios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcao deterras e constituio de cadastros pblicos para albergar esses dados. Mas no se dar aabsoro de um sistema registral hipotecrio pelo outro cadastro.

    Esse, de fato, ser o cenrio at que essas fortes tendncias se encontrem mais frente,com a reforma de Nabuco, de 1864, em que o tema da interconexo do cadastro e registroser agitado. Ainda assim o Brasil ser considerado falto de uma infra-estrutura adequadapara emular o sistema tudesco, referncia que sempre foi o tormento do legisladordecimonmico, consistente na interconexo entre o registro jurdico e o cadastro.

    Quando se buscam as fontes principalmente escrituras pblicas, cartas de datas esesmarias , v-se claramente que as descries so meramente referenciais. As conquistasda cartografia do sculo XVIII e as tcnicas de geodsia to bem utilizadas no cadastronapolenico seriam simplesmente desprezadas. Descartadas por pura desnecessidade!

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    Veja, por outro lado, que a lei hipotecria de 1846 d uma importncia minscula especialidade objetiva. O indicador real simplesmente referencial. Vejamos a literalidadedo artigo 22 do regulamento de 1846:

    Os Tabellies do Registro geral das hypothecas so obrigados a ter os seguintes

    Livros: (...) 3. O Livro indice, escripturado por ordem alphabetica, e por frma quefacilite, sem equivoco, o conhecimento de todos os bens hypothecados que seacharem registrados no seu Cartorio.

    Claro est que o registro hipotecrio preocupa-se, essencialmente, com aespecialidade dos direitos envolvidos; a questo da demarcao e precisa determinao dosimveis, isso prprio de outra instituio: o cadastro.

    recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaopouco tcnica da expresso cadastro real como sinnima deflio real, de matrcula.

    Nada mais incorreto.O cadastro um inventrio pblico de dados metodicamente organizados

    concernentes a parcelas territoriais dentro de certo pas ou distrito, baseado no levantamentode seus limites. Essa a definio da Federao Internacional de Gemetras (FIG).

    J o registro, diferentemente e coerentemente com sua histria, uma instituiojurdica encarregada de prover publicidade, autenticidade, segurana e eficcia do negciojurdico. A questo da determinao fsica e situao do imvel ocorre em suporte, entreoutras, atividade registral, que se distingue e contrape claramente em relao ao cadastro.

    Essa a razo pela qual onde h cadastro e registro num nico rgo, a tendncia queas duas cabeas queiram se separar, uma vez que so atividades muito singulares, emborainterdependentes.

    Uso a metfora dos irmos siameses da gesto territorial para ilustrar a situao deindefinio institucional. Ambas manejam o mesmo objeto. O objeto do cadastro o imvel,e o objeto dos direitos reais registro de imveis tambm o imvel. Mas a lgicaorganizativa e as informaes e referncias que apresentam so distintas. O cadastro e oregistro se inter-relacionam. De um lado, temos a descrio e situao fsicas dos bensperfeitamente apuradas; de outro, temos o registro cuja misso essencial a determinao dasituao jurdica dos bens e a assinalao de direitos. Isso permite a gesto territorial.

    Segundo o professor JRGEN PHILIPS, da Universidade Federal de Santa Catarina, emdeclarao verbal recolhida por mim, cadastro e registro respondem a consultas distintas. Oregistro responde s perguntas quem o proprietrio? e como o imvel foi adquirido?, aopasso que o cadastro responde s questes onde o imvel est localizado? e quantomede?.

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    Para se ter uma idia da importncia dessas distines, nas reunies com o Incra ecom o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, o Banco Interamericano deDesenvolvimento, BID, que era a agncia internacional financiadora de parte de um projetode georreferenciamento de imveis rurais, defendeu enfaticamente o registro de direitos,entendendo que os investimentos estrangeiros no deveriam ser canalizados exclusivamente

    para a constituio do cadastro; faltaria a contraparte essencial que justamente o registro dedireitos.

    impossvel pensar em gesto territorial sem que haja assinalao dos direitos reais,que s o registro de imveis pode fazer no Brasil. A perfeita compreenso dessas duasinstituies cadastro e registro foi se tornando clara. Uma instituio no haveria desuplantar ou absorver a outra; elas devem estar relacionadas. que a coordenao do cadastrocom o registro um antigo anelo do legislador ptrio.

    A interconexo do registro com o cadastro, que ficou nas intenes confessas dolegislador de 1916, agora encontra um momento propcio de renovao dos mesmos termose desafios enfrentados l atrs, desde as propostas originais de Nabuco. A verdade queprevaleceu at aqui, lamentavelmente, uma viso que debilitou a eficcia do registro, calcadana crtica acrrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra a Publicidadematerial do registro immobilirio: efeitos da transcripo, editada em 1940, malgrado o fatode que a crtica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFOAZEVEDO,SERPA LOPES,LYSIPPO GARCIA, entre outros.

    O sistema alemo de registro no se desenvolveu a contento no Brasil por causa dasdeficincias que tnhamos na contraparte do sistema, que era justamente o cadastro. Noinvestimos no cadastro como, por imperiosas razes econmicas, havamos investido noregistro hipotecrio...

    O registro cumpriu satisfatoriamente sua misso, independentemente da existncia deum suporte cadastral. Alis, essa a tese de PHILADELFO AZEVEDO.

    Vale a pena ler o conjunto de sua obra. Pense no seguinte. Se o registro, apesar dessacarncia, foi mantido at agora, cumpridos longos 160 anos, porque o saldo positivo;fosse de outra maneira, e o registro seria simplesmente descartado! O mercado erigiria outromecanismo de publicidade das situaes jurdicas em seu lugar. preciso enxergardevidamente a importncia relativa do cadastro para no cairmos na tentadora tese de que ocadastro condio essencial para o registro... Tanto no assim que sobrevivemos suafalta por longo tempo. E o advento da lei 10.267/2001, se, de um lado, deve ser saudada comoum importante avano, de outro, no pode se constituir em embarao livre circulao dosbens, impondo obstculos consagrao e assinalao de direitos.

    Mas vamos enxergar em perspectiva. O processo de registro era muito complexo. Adinmica nas transaes imobilirias, com incremento dos registros fato que ocorreuparalelamente ao processo de urbanizao do pas , trouxe a necessidade de aperfeioamentotecnolgico do registro e isso motivou a mudana do sistema, inspirado nos modelos quevinham sendo discutidos em fruns internacionais, especialmente aps a fundao do Cinder,Centro Internacional de Direito Registral, em 1972, na cidade de Buenos Aires.

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    A ruptura com o modelo dos antigos livros fundirios veio com a lei 6.015, de 1973,que entrou em vigor em 1976. Houve o aperfeioamento tcnico com a criao do flio real,em que cada matrcula corresponderia a um imvel, e cada imvel, a uma matrcula. Com oadvento da matrcula, tivemos algumas vantagens.

    1) A obrigatoriedade da matrcula para cada transao imobiliria. A lei foi sbia,houve um ponto de partida para a migrao de dados dos livros fundirios para um novosuporte, que a matrcula. No houve um cronograma rgido para a completude do crculo:at hoje h imveis registrados no modelo anterior.

    2) Exigncia legal de especialidade imobiliria, objetiva e subjetiva. Objetiva no quediz respeito determinao do bem, e subjetiva em relao s pessoas envolvidas nastransaes. Pode-se falar at em especialidade do direito, especialidade do ttulo e de toda acomplexa estrutura que mobiliza o registro.

    3) Concentrao da informao sobre a situao jurdica do imvel. Com a matrcula,passou a imperar o princpio da inscrio que atraiu para a folha do imvel todas asvicissitudes jurdicas que, direta ou indiretamente, estivessem relacionadas com o imvel direitos, pessoas titulares daqueles direitos, nus, restries legais, administrativas,convencionais, etc.

    Houve, portanto, uma clarificao da informao registral e uma segurana ampliada.Ou seja, a matrcula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos.

    Visto em perspectiva, quase chego a afirmar que a matrcula estava preparando ocaminho para chegarmos ao momento da lei 10.267, em que o ciclo se vai completarfinalmente com a interconexo do registro com o cadastro, agora com o apoio de um cadastroestruturado.