28
Cadastro, Registro e algumas confusões históricas Sérgio Jacomino* Muito se tem discutido acerca da necessidade, já imperiosa, de se modelar e criar um verdadeiro cadastro multifinalitário no país – um sistema que fosse confiável, adequado tecnicamente, que estivesse sob a responsabilidade dos municípios brasileiros e que pudesse emprestar seus preciosos recursos para a gestão territorial das cidades, servindo, entre outras coisas, à regularização fundiária. Ocorre que a idéia de se estruturar um bom cadastro municipal resvala na necessidade de compreender exatamente qual a sua verdadeira natureza e função – como deverá ser estruturado, quais deverão ser as suas referências normativas e, principalmente, definir qual o papel que deverá jogar com os Registro de Imóveis na contraparte essencial da gestão territorial. E isso se torna necessário porque, muitas vezes por incompreensão, outras por desinformação, outras ainda por má-fé, as críticas assestadas contra os Registros de Imóveis brasileiros, pela aparentemente precária determinação dos bens inscritos, pelas descrições lacunosas encontradiças em seus livros fundiários, são injustas e improcedentes – e o são por uma razão bastante singela: não é responsabilidade do registro predial brasileiro a determinação física dos bens; de forma precípua, é tarefa do Registro determinar (especializar) os direitos que incidem sobre aqueles bens. Por qual razão se encontram nos Registros descrições aparentemente imprecisas? A ancianidade das inscrições seria a chave para compreender essa característica? O Registro é distinto do Cadastro? Mas não é só. A bela palavra cartório, atualmente vituperada como sinonímia de ineficiência, burocracia e formalismo desvitalizado, de onde vem? Os cartórios são instituições importantes para o desenvolvimento social e econômico? A adscrição do Registrador à figura do Juiz-Corregedor é histórica? Essas perguntas serão respondidas ao longo desse Curso de Especialização de Direito Urbanístico. Por ora, vamos tocar em alguns aspectos das questões suscitadas, sem maior aprofundamento – o que será feito nas aulas específicas. Vamos indicar aspectos que poderão ser aprofundados nos colóquios que o Curso haverá de proporcionar. Publicidade possessória e descrições lacunosas Tenho tentado apresentar à reflexão dos estudiosos de direito imobiliário as duas importantes tendências que se firmaram entre os séculos XVIII e XIX e que dizem respeito ao cadastro e registro hipotecário brasileiros, tendo como elemento informador a propriedade ou simplesmente a posse das terras. Os estudos se orientam no sentido de se fazer uma análise acerca da persistência, em nossa cultura registral – ao menos até meados da década de 1980, quando se deu uma exasperação do princípio de especialidade objetiva – de procedimentos precários de descrição de bens imóveis, tentando ligar esse fato – que a muitos pareceu desde sempre 1

Cadastro, Registro e Algumas Confusões Históricas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O cadastro imobiliário e o Registro de Imóveis jogam um papel relevante na gestão territorial. Porém, ambos ostentam características próprias e singulares e a sua fusão não é recomendada pela experiência. Neste texto, discute-se o papel de cada uma dessas instituições e se conclui pela manutenção de ambas, com suas particulares, estabelecendo-se, entretanto, um elo de conexão e troca de informações.

Citation preview

Cadastro Registro e algumas confusotildees histoacutericas Seacutergio Jacomino

Muito se tem discutido acerca da necessidade jaacute imperiosa de se modelar e criar um verdadeiro cadastro multifinalitaacuterio no paiacutes ndash um sistema que fosse confiaacutevel adequado tecnicamente que estivesse sob a responsabilidade dos municiacutepios brasileiros e que pudesse emprestar seus preciosos recursos para a gestatildeo territorial das cidades servindo entre outras coisas agrave regularizaccedilatildeo fundiaacuteria

Ocorre que a ideacuteia de se estruturar um bom cadastro municipal resvala na necessidade de compreender exatamente qual a sua verdadeira natureza e funccedilatildeo ndash como deveraacute ser estruturado quais deveratildeo ser as suas referecircncias normativas e principalmente definir qual o papel que deveraacute jogar com os Registro de Imoacuteveis na contraparte essencial da gestatildeo territorial

E isso se torna necessaacuterio porque muitas vezes por incompreensatildeo outras por desinformaccedilatildeo outras ainda por maacute-feacute as criacuteticas assestadas contra os Registros de Imoacuteveis brasileiros pela aparentemente precaacuteria determinaccedilatildeo dos bens inscritos pelas descriccedilotildees lacunosas encontradiccedilas em seus livros fundiaacuterios satildeo injustas e improcedentes ndash e o satildeo por uma razatildeo bastante singela natildeo eacute responsabilidade do registro predial brasileiro a determinaccedilatildeo fiacutesica dos bens de forma preciacutepua eacute tarefa do Registro determinar (especializar) os direitos que incidem sobre aqueles bens

Por qual razatildeo se encontram nos Registros descriccedilotildees aparentemente imprecisas A ancianidade das inscriccedilotildees seria a chave para compreender essa caracteriacutestica O Registro eacute distinto do Cadastro Mas natildeo eacute soacute A bela palavra cartoacuterio atualmente vituperada como sinoniacutemia de ineficiecircncia burocracia e formalismo desvitalizado de onde vem Os cartoacuterios satildeo instituiccedilotildees importantes para o desenvolvimento social e econocircmico A adscriccedilatildeo do Registrador agrave figura do Juiz-Corregedor eacute histoacuterica

Essas perguntas seratildeo respondidas ao longo desse Curso de Especializaccedilatildeo de Direito Urbaniacutestico Por ora vamos tocar em alguns aspectos das questotildees suscitadas sem maior aprofundamento ndash o que seraacute feito nas aulas especiacuteficas Vamos indicar aspectos que poderatildeo ser aprofundados nos coloacutequios que o Curso haveraacute de proporcionar

Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas

Tenho tentado apresentar agrave reflexatildeo dos estudiosos de direito imobiliaacuterio as duas importantes tendecircncias que se firmaram entre os seacuteculos XVIII e XIX e que dizem respeito ao cadastro e registro hipotecaacuterio brasileiros tendo como elemento informador a propriedade ou simplesmente a posse das terras

Os estudos se orientam no sentido de se fazer uma anaacutelise acerca da persistecircncia em nossa cultura registral ndash ao menos ateacute meados da deacutecada de 1980 quando se deu uma exasperaccedilatildeo do princiacutepio de especialidade objetiva ndash de procedimentos precaacuterios de descriccedilatildeo de bens imoacuteveis tentando ligar esse fato ndash que a muitos pareceu desde sempre

1

uma irremediaacutevel deficiecircncia ndash ao lento desenvolvimento do conceito da propriedade privada que entre noacutes se vai modulando com o passar do tempo ateacute atingir a cristalizaccedilatildeo desse modelo que se nos apresenta modernamente

Hoje a Lei de Registros Puacuteblicos (Lei 601573) em vaacuterias passagens aludiraacute agrave determinaccedilatildeo dos bens imoacuteveis que na terminologia teacutecnica eacute conhecida como especializaccedilatildeo dos bens imoacuteveis (vg art 176 art 225 etc)

Fac-siacutemile de um registro feito no Livro 3 de ldquotranscriccedilatildeo das transmissotildeesrdquo A descriccedilatildeo eacute depauperada de detalhes geodeacutesicos (Livro 3 1ordm Registro Predial de SP)

A ideacuteia que temos da propriedade privada ndash absolutizada exclusiva singular abstrata formal e rigorosamente ldquoespecializadardquo ndash natildeo eacute a mesma que vamos encontrar na tradiccedilatildeo brasileira que se funda na Idade Meacutedia lusitana especialmente quando flagramos os impulsos e elementos da cultura medieval portuguesa que nos brindaram tanto a regulaccedilatildeo do notariado quanto o sesmarialismo para caacute trasladado destacando-se como ponto referencial a lei de 1375 do ceacutelebre Dom Fernando Essa tendecircncia atravessaraacute os tempos e conformaraacute os requisitos para os registros fundiaacuterios que se faratildeo ndash primeiramente nos livros tabelionares e depois a partir de 1846 nos livros de registro hipotecaacuterio

As datas de terras doadas nos primoacuterdios da colonizaccedilatildeo trazem um modelo descritivo que nos parece hoje inteiramente inadequado mas que agrave eacutepoca servia plenamente aos objetivos perseguidos Esse modelo insinuar-se-aacute nos livros fundiaacuterios vatildeo povoar os registros e compreender esse fenocircmeno nos vai ajudar a entender a necessidade de estruturaccedilatildeo do cadastro

2

A visibilidade da posse nunca eacute suficientemente ponderada e as indicaccedilotildees encontradas meramente referenciais satildeo como disse adequadas agraves contingecircncias da eacutepoca Estamos na altura de uma publicidade da situaccedilatildeo juriacutedica que se apoacuteia inteiramente na ideacuteia de notoriedade isto eacute no conhecimento imediato que se daacute pela proacutepria evidecircncia do exerciacutecio efetivo desse direito guardadas certas formalidades na investidura O exerciacutecio da posse eacute um elemento de publicidade uma publicidade baseada inteiramente na notoriedade um publicidade que se poderia chamar adequadamente de preacute registral

O grande autor italiano SALVATORE PUGLIATTI na monografia sobre a publicidade juriacutedica1 faraacute referecircncia aos modelos de publicidade ateacute certo ponto provocada pelo exerciacutecio ostensivo da posse algumas vezes com investidura cercada de formalidades puacuteblicas como por exemplo no direito romano a in iure cessio e a manicipatio

Natildeo vamos tratar dessas formas rudimentares de publicidade ndash que podem ser consideradas antecedentes dos modernos sistemas de registro ndash deixando para a aula especiacutefica jaacute agendada Importante destacar neste passo que a posse eacute o elemento fundamental que muitas vezes eacute desconsiderada na compreensatildeo dos indicativos lacunosos das inscriccedilotildees notariais e registrais

Na Brasil Colocircnia o elemento essencial do sistema sesmarial eacute a obrigatoriedade do cultivo como condiccedilatildeo da posse ldquoSeiam costranjudos per as laurar e semearrdquo na dicccedilatildeo do Regulamento Fernandino A ideacuteia de ldquofuncionarizaccedilatildeordquo da propriedade tendo em vista a necessidade (social) de prover o abastecimento de mantimentos (trigo e cevada) a esse notaacutevel sobrado europeu sobre o Atlacircntico bem como enfrentar a aguda escassez de matildeo-de-obra para amanhar a terra ndash em virtude da grande peste de 1348 a 1350 ndash vai conformar a primeira tentativa de disciplinar a complexa relaccedilatildeo entre homens e coisas o que inevitavelmente vai repercutir na maneira como o objeto dessas transaccedilotildees vai sendo descrito em tiacutetulos notariais (em sua esmagadora maioria)

As sesmarias satildeo o ponto de partida de nossa histoacuteria fundiaacuteria Com todas as criacuteticas que se pode fazer acerca da trasladaccedilatildeo dessa figura tatildeo entranhada na cultura portuguesa agrave realidade da Colocircnia o fato eacute que essa falta de absolutizaccedilatildeo e singularizaccedilatildeo da propriedade com sujeiccedilatildeo juriacutedica que se daacute exclusivamente a um titular determinado vai influir na maneira como se descreviam os bens dados em sesmarias ndash afora o aspecto de que o modelo colonial natildeo estimulava a perfeita delimitaccedilatildeo das posses em virtude de uma exploraccedilatildeo extensiva o que originaria o fenocircmeno de ldquoablaqueaccedilatildeordquo ndash expressatildeo que fez certa fortuna no meio registral e que indicava em sentido figurado a falta de amarras geodeacutesicas das propriedades registradas que assim ldquoflutuavamrdquo na superfiacutecie da terra

Este eacute um outro aspecto relevante a ser destacado a falta de precisatildeo na descriccedilatildeo dos imoacuteveis estava relacionada com o modelo de exploraccedilatildeo da Colocircnia Vamos ver como os imoacuteveis eram descritos no registro de imoacuteveis desde o seacuteculo XVI descriccedilotildees que ainda hoje podem ser encontradas em vaacuterios registros imobiliaacuterios

1 La trascrizione ndash la pubblicitagrave in generale Trattato Milano Giuffregrave 1957 p 33 passim especialmente sua notizie storiche

3

COSTA PORTO recolheu no conhecido Sistema sesmarial no Brasil cartas escrituras tabelioas onde as descriccedilotildees imobiliaacuterias embora falhas natildeo deixavam de cumprir agrave eacutepoca suas finalidades de determinaccedilatildeo do bem averbando ldquoem alguns casos a carta de sesmaria jaacute valia de si mesmo uma demarcaccedilatildeo pois embora natildeo determinando expressamente a aacuterea de tal modo lhe fixava as confrontaccedilotildees que ningueacutem tinha duacutevidas quanto agrave delimitaccedilatildeordquo 2

2 COSTA PORTO Sistema sesmarial no Brasil Brasiacutelia UnB sd p 111 passim

4

5

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

uma irremediaacutevel deficiecircncia ndash ao lento desenvolvimento do conceito da propriedade privada que entre noacutes se vai modulando com o passar do tempo ateacute atingir a cristalizaccedilatildeo desse modelo que se nos apresenta modernamente

Hoje a Lei de Registros Puacuteblicos (Lei 601573) em vaacuterias passagens aludiraacute agrave determinaccedilatildeo dos bens imoacuteveis que na terminologia teacutecnica eacute conhecida como especializaccedilatildeo dos bens imoacuteveis (vg art 176 art 225 etc)

Fac-siacutemile de um registro feito no Livro 3 de ldquotranscriccedilatildeo das transmissotildeesrdquo A descriccedilatildeo eacute depauperada de detalhes geodeacutesicos (Livro 3 1ordm Registro Predial de SP)

A ideacuteia que temos da propriedade privada ndash absolutizada exclusiva singular abstrata formal e rigorosamente ldquoespecializadardquo ndash natildeo eacute a mesma que vamos encontrar na tradiccedilatildeo brasileira que se funda na Idade Meacutedia lusitana especialmente quando flagramos os impulsos e elementos da cultura medieval portuguesa que nos brindaram tanto a regulaccedilatildeo do notariado quanto o sesmarialismo para caacute trasladado destacando-se como ponto referencial a lei de 1375 do ceacutelebre Dom Fernando Essa tendecircncia atravessaraacute os tempos e conformaraacute os requisitos para os registros fundiaacuterios que se faratildeo ndash primeiramente nos livros tabelionares e depois a partir de 1846 nos livros de registro hipotecaacuterio

As datas de terras doadas nos primoacuterdios da colonizaccedilatildeo trazem um modelo descritivo que nos parece hoje inteiramente inadequado mas que agrave eacutepoca servia plenamente aos objetivos perseguidos Esse modelo insinuar-se-aacute nos livros fundiaacuterios vatildeo povoar os registros e compreender esse fenocircmeno nos vai ajudar a entender a necessidade de estruturaccedilatildeo do cadastro

2

A visibilidade da posse nunca eacute suficientemente ponderada e as indicaccedilotildees encontradas meramente referenciais satildeo como disse adequadas agraves contingecircncias da eacutepoca Estamos na altura de uma publicidade da situaccedilatildeo juriacutedica que se apoacuteia inteiramente na ideacuteia de notoriedade isto eacute no conhecimento imediato que se daacute pela proacutepria evidecircncia do exerciacutecio efetivo desse direito guardadas certas formalidades na investidura O exerciacutecio da posse eacute um elemento de publicidade uma publicidade baseada inteiramente na notoriedade um publicidade que se poderia chamar adequadamente de preacute registral

O grande autor italiano SALVATORE PUGLIATTI na monografia sobre a publicidade juriacutedica1 faraacute referecircncia aos modelos de publicidade ateacute certo ponto provocada pelo exerciacutecio ostensivo da posse algumas vezes com investidura cercada de formalidades puacuteblicas como por exemplo no direito romano a in iure cessio e a manicipatio

Natildeo vamos tratar dessas formas rudimentares de publicidade ndash que podem ser consideradas antecedentes dos modernos sistemas de registro ndash deixando para a aula especiacutefica jaacute agendada Importante destacar neste passo que a posse eacute o elemento fundamental que muitas vezes eacute desconsiderada na compreensatildeo dos indicativos lacunosos das inscriccedilotildees notariais e registrais

Na Brasil Colocircnia o elemento essencial do sistema sesmarial eacute a obrigatoriedade do cultivo como condiccedilatildeo da posse ldquoSeiam costranjudos per as laurar e semearrdquo na dicccedilatildeo do Regulamento Fernandino A ideacuteia de ldquofuncionarizaccedilatildeordquo da propriedade tendo em vista a necessidade (social) de prover o abastecimento de mantimentos (trigo e cevada) a esse notaacutevel sobrado europeu sobre o Atlacircntico bem como enfrentar a aguda escassez de matildeo-de-obra para amanhar a terra ndash em virtude da grande peste de 1348 a 1350 ndash vai conformar a primeira tentativa de disciplinar a complexa relaccedilatildeo entre homens e coisas o que inevitavelmente vai repercutir na maneira como o objeto dessas transaccedilotildees vai sendo descrito em tiacutetulos notariais (em sua esmagadora maioria)

As sesmarias satildeo o ponto de partida de nossa histoacuteria fundiaacuteria Com todas as criacuteticas que se pode fazer acerca da trasladaccedilatildeo dessa figura tatildeo entranhada na cultura portuguesa agrave realidade da Colocircnia o fato eacute que essa falta de absolutizaccedilatildeo e singularizaccedilatildeo da propriedade com sujeiccedilatildeo juriacutedica que se daacute exclusivamente a um titular determinado vai influir na maneira como se descreviam os bens dados em sesmarias ndash afora o aspecto de que o modelo colonial natildeo estimulava a perfeita delimitaccedilatildeo das posses em virtude de uma exploraccedilatildeo extensiva o que originaria o fenocircmeno de ldquoablaqueaccedilatildeordquo ndash expressatildeo que fez certa fortuna no meio registral e que indicava em sentido figurado a falta de amarras geodeacutesicas das propriedades registradas que assim ldquoflutuavamrdquo na superfiacutecie da terra

Este eacute um outro aspecto relevante a ser destacado a falta de precisatildeo na descriccedilatildeo dos imoacuteveis estava relacionada com o modelo de exploraccedilatildeo da Colocircnia Vamos ver como os imoacuteveis eram descritos no registro de imoacuteveis desde o seacuteculo XVI descriccedilotildees que ainda hoje podem ser encontradas em vaacuterios registros imobiliaacuterios

1 La trascrizione ndash la pubblicitagrave in generale Trattato Milano Giuffregrave 1957 p 33 passim especialmente sua notizie storiche

3

COSTA PORTO recolheu no conhecido Sistema sesmarial no Brasil cartas escrituras tabelioas onde as descriccedilotildees imobiliaacuterias embora falhas natildeo deixavam de cumprir agrave eacutepoca suas finalidades de determinaccedilatildeo do bem averbando ldquoem alguns casos a carta de sesmaria jaacute valia de si mesmo uma demarcaccedilatildeo pois embora natildeo determinando expressamente a aacuterea de tal modo lhe fixava as confrontaccedilotildees que ningueacutem tinha duacutevidas quanto agrave delimitaccedilatildeordquo 2

2 COSTA PORTO Sistema sesmarial no Brasil Brasiacutelia UnB sd p 111 passim

4

5

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

A visibilidade da posse nunca eacute suficientemente ponderada e as indicaccedilotildees encontradas meramente referenciais satildeo como disse adequadas agraves contingecircncias da eacutepoca Estamos na altura de uma publicidade da situaccedilatildeo juriacutedica que se apoacuteia inteiramente na ideacuteia de notoriedade isto eacute no conhecimento imediato que se daacute pela proacutepria evidecircncia do exerciacutecio efetivo desse direito guardadas certas formalidades na investidura O exerciacutecio da posse eacute um elemento de publicidade uma publicidade baseada inteiramente na notoriedade um publicidade que se poderia chamar adequadamente de preacute registral

O grande autor italiano SALVATORE PUGLIATTI na monografia sobre a publicidade juriacutedica1 faraacute referecircncia aos modelos de publicidade ateacute certo ponto provocada pelo exerciacutecio ostensivo da posse algumas vezes com investidura cercada de formalidades puacuteblicas como por exemplo no direito romano a in iure cessio e a manicipatio

Natildeo vamos tratar dessas formas rudimentares de publicidade ndash que podem ser consideradas antecedentes dos modernos sistemas de registro ndash deixando para a aula especiacutefica jaacute agendada Importante destacar neste passo que a posse eacute o elemento fundamental que muitas vezes eacute desconsiderada na compreensatildeo dos indicativos lacunosos das inscriccedilotildees notariais e registrais

Na Brasil Colocircnia o elemento essencial do sistema sesmarial eacute a obrigatoriedade do cultivo como condiccedilatildeo da posse ldquoSeiam costranjudos per as laurar e semearrdquo na dicccedilatildeo do Regulamento Fernandino A ideacuteia de ldquofuncionarizaccedilatildeordquo da propriedade tendo em vista a necessidade (social) de prover o abastecimento de mantimentos (trigo e cevada) a esse notaacutevel sobrado europeu sobre o Atlacircntico bem como enfrentar a aguda escassez de matildeo-de-obra para amanhar a terra ndash em virtude da grande peste de 1348 a 1350 ndash vai conformar a primeira tentativa de disciplinar a complexa relaccedilatildeo entre homens e coisas o que inevitavelmente vai repercutir na maneira como o objeto dessas transaccedilotildees vai sendo descrito em tiacutetulos notariais (em sua esmagadora maioria)

As sesmarias satildeo o ponto de partida de nossa histoacuteria fundiaacuteria Com todas as criacuteticas que se pode fazer acerca da trasladaccedilatildeo dessa figura tatildeo entranhada na cultura portuguesa agrave realidade da Colocircnia o fato eacute que essa falta de absolutizaccedilatildeo e singularizaccedilatildeo da propriedade com sujeiccedilatildeo juriacutedica que se daacute exclusivamente a um titular determinado vai influir na maneira como se descreviam os bens dados em sesmarias ndash afora o aspecto de que o modelo colonial natildeo estimulava a perfeita delimitaccedilatildeo das posses em virtude de uma exploraccedilatildeo extensiva o que originaria o fenocircmeno de ldquoablaqueaccedilatildeordquo ndash expressatildeo que fez certa fortuna no meio registral e que indicava em sentido figurado a falta de amarras geodeacutesicas das propriedades registradas que assim ldquoflutuavamrdquo na superfiacutecie da terra

Este eacute um outro aspecto relevante a ser destacado a falta de precisatildeo na descriccedilatildeo dos imoacuteveis estava relacionada com o modelo de exploraccedilatildeo da Colocircnia Vamos ver como os imoacuteveis eram descritos no registro de imoacuteveis desde o seacuteculo XVI descriccedilotildees que ainda hoje podem ser encontradas em vaacuterios registros imobiliaacuterios

1 La trascrizione ndash la pubblicitagrave in generale Trattato Milano Giuffregrave 1957 p 33 passim especialmente sua notizie storiche

3

COSTA PORTO recolheu no conhecido Sistema sesmarial no Brasil cartas escrituras tabelioas onde as descriccedilotildees imobiliaacuterias embora falhas natildeo deixavam de cumprir agrave eacutepoca suas finalidades de determinaccedilatildeo do bem averbando ldquoem alguns casos a carta de sesmaria jaacute valia de si mesmo uma demarcaccedilatildeo pois embora natildeo determinando expressamente a aacuterea de tal modo lhe fixava as confrontaccedilotildees que ningueacutem tinha duacutevidas quanto agrave delimitaccedilatildeordquo 2

2 COSTA PORTO Sistema sesmarial no Brasil Brasiacutelia UnB sd p 111 passim

4

5

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

COSTA PORTO recolheu no conhecido Sistema sesmarial no Brasil cartas escrituras tabelioas onde as descriccedilotildees imobiliaacuterias embora falhas natildeo deixavam de cumprir agrave eacutepoca suas finalidades de determinaccedilatildeo do bem averbando ldquoem alguns casos a carta de sesmaria jaacute valia de si mesmo uma demarcaccedilatildeo pois embora natildeo determinando expressamente a aacuterea de tal modo lhe fixava as confrontaccedilotildees que ningueacutem tinha duacutevidas quanto agrave delimitaccedilatildeordquo 2

2 COSTA PORTO Sistema sesmarial no Brasil Brasiacutelia UnB sd p 111 passim

4

5

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

5

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Vejamos alguns exemplos extraiacutedos do livro de COSTA PORTO e da coleccedilatildeo de Cartas de Datas de Terra editada pelo Departamento de Cultura da Prefeitura do Municiacutepio de Satildeo Paulo em 1937

ldquoa terra que estaa da banda de bayxo do caminho que vay do outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedra (omissis) iraacute correndo pelo camynho abayxo direyto ao outeiro que estaacute sobre o Varadouro onde se faz huma casa onde estaacute um marco de pedrahellip iraacute correndo pelo camynho abayxo direto ao oiti que estaacute ao passo onde mataram o Varela e dali iraacute corrende ao sudoeste athe entrestar nos mangues e Rio Beberibe e dali iratildeo ao rio asima athe o Varadouro (Sesmaria dada em 1556 por D Beatriz a Diogo Lopes)

Ou ainda

ldquoa descriccedilatildeo ldquopartia da feiticcedilaria dos Iacutendios ateacute onde se mete o ryohellip Ayamaacute e daiacute athe a riba de casa velha que foi de Christovatildeo Iacutendio e outra casa que foi de um iacutendio que se cha Aberama onde estatildeo huns cajus muito grandes etcrdquo (Sesmaria doada ao almoxarife Vasco Lucena)

6

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Se avanccedilarmos um pouco mais no tempo veremos que ainda assim as descriccedilotildees natildeo eram particularmente elucidativas e sempre serviam de referecircncia ao elemento possessoacuterio publicidade efetiva do exerciacutecio dos direitos e posse indicando ainda pessoas como marcos de confinacircncia Vamos a um exemplo notarial de 1618

7

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

ldquoManuel Luiz morador nesta villa casado com mulher e filhos dos mais antigos della que sempre a sustentaram nas guerras e bonanccedilas que na dita villa de Satildeo Paulo houve que elle tem necessidade de uns chatildeos que estatildeo partindo com Ascenso Ribeiro ateacute chegar a um ribeiro correndo pelo dito ribeiro arriba ateacute chegar ao caminho de Piratininga e o dito ribeiro se chama Ahangabahirdquo (Carta de data de terra passada em 31 de outubro de 1618 a Manuel Luiz)

Um outro exemplo de 1815 referente a imoacutevel no coraccedilatildeo da cidade de Satildeo Paulo

ldquohavemos por bem dar-mos e conseder-mos de hoje para todo o sempre cinco braccedilas de terras de frente na dita paragem (Tabatinguera)hellip cujo terreno tem de frente cinco braccedilas concordando do fim do muro da propriedade do mesmo inpretante conform o alinhamento que a de fazer o Juiz Almotacel com o arruador deste Senado e o fundo desde o lugar onde findatildeo as cinco braccedilas defrente correndo a endireitura do alinhamento que se fizer the o segundo arbusto que existe a beira do rio para laacute da ponte assima dezignada (ldquoPonte do Ferratildeordquo) (Data de terras que a Cacircmara de Satildeo Paulo concedei a Jozeacute Pinto da Silva)

E como era realizado o processo de levantamento Vamos dar voz a ULISSES LINS em ldquoUm Sertanejo e o Sertatildeordquo nos relatos recolhidos dos velhos sertanejos do Pajeu3

ldquoO medidor enchia o cachimbo acendia-o montava o cavalo deixando que o animal marchasse a passo Quando o cachimbo se apagava acabado o fumo marcava uma leacuteguardquo

Muitas descriccedilotildees que figuraram no registro imobiliaacuterio tinham apoio nesse tipo de experiecircncia

Vemos abaixo uma reproduccedilatildeo fac-similar do livro de registro auxiliar indicador real que nos termos do artigo 22 do Decreto 482 de 17 de novembro de 1846 era uma livro iacutendice ldquoescripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

3 ALBUQUERQUE Ulisses Lins de Um sertanejo e o Sertatildeo ndash memoacuterias Rio de Janeiro J Olympio 1957 p 167

8

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras

Havia na Europa principalmente na Alemanha e Franccedila um cadastro (chamado com muita justiccedila de napoleocircnico) que jaacute utilizava recursos teacutecnicos que permitiam levantamentos rigorosos para a eacutepoca

No iniacutecio as concessotildees de terras no Brasil eram imensas existia um modelo extrativista que se baseava no latifuacutendio em tudo conforme o que se convencionou chamar de modelo colonial Havia um aproveitamento extensivo do solo com o seu esgotamento pelo uso inadequado com uma intriacutenseca necessidade de mobilidade ndash o que acarretava uma flexibilizaccedilatildeo dos limites da posse ou propriedade A posse efetiva tinha essa caracteriacutestica dinacircmica expandia-se de um lado para o outro Natildeo admira que embora houvesse agrave disposiccedilatildeo tecnologia geodeacutesica para a realizaccedilatildeo de uma adequada demarcaccedilatildeo das terras isso natildeo se faraacute na Colocircnia A propoacutesito diz a professora LIacuteGIA OSOacuteRIO SILVA

ldquoO caraacuteter externo da acumulaccedilatildeo de capital determinou uma das caracteriacutesticas internas da produccedilatildeo colonial todo o crescimento do sistema seja accedilucareiro seja da pecuaacuteria fazia-se por extensatildeo Os meacutetodos de cultivo sendo rudimentares o esgotamento do solo fazia-se tambeacutem sentir rapidamente obrigando o contiacutenuo abandono das zonas esgotadas em busca de terras feacuterteis O arado foi muito pouco utilizado O colono natildeo cultivava o solo de modo muito diferente do indiacutegena apenas o fazia em proporccedilotildees muito mais amplasrdquo E continua ldquoDecorria dessas

9

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

caracteriacutesticas uma fonte permanente de terras que por sua vez acarretava uma grande mobilidade Arruinava-se a terra queimavam-se as florestas e passava-se adiante repetindo o ciclo novamenterdquo4

Compreendidas em linhas muitos gerais algumas das razotildees pelas quais as descriccedilotildees imobiliaacuterias que ainda se acham nos livros fundiaacuterios satildeo tatildeo minguadas gostaria de concluir que essas descriccedilotildees lacunosas imperfeitas inconsistentes satildeo aspectos que devem ser relacionados com o desenvolvimento do conceito de propriedade em seu longo percurso Agrave parte isso a dinacircmica do creacutedito imobiliaacuterio ndash especialmente o creacutedito hipotecaacuterio ndash natildeo vai sofrer grandes restriccedilotildees em virtude dessa precariedade descritiva Agrave miacutengua de um bom sistema de cadastro o registro se desenvolveraacute ateacute o final do seacuteculo XX sem que fosse necessaacuteria a modelagem de um novo sistema que o substituiacutesse Somente com o advento da Lei 102672000 eacute que finalmente o direito brasileiro dotou o paiacutes de um bom sistema de cadastro coordenado com o registro imobiliaacuterio

Gostaria de tocar num outro ponto que rende interminaacuteveis discussotildees que aparentemente partem e se nutrem de um equiacutevoco histoacuterico Trata-se do seguinte o registro do vigaacuterio pode ser considerado o sistema antecessor dos registros de imoacuteveis atuais

Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio

A lei de 1850 (Lei 601 de 18 de Setembro de 1850) e seu regulamento (Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854) natildeo podem ser considerados singelamente os antecessores do Registro de Imoacuteveis

A persistecircncia do paralelismo dos regulamentos hipotecaacuterios e aqueles outros diplomas que visaram a concretizar a lei de terras eacute significativo Encontra-se amiuacutede em doutrina a afirmaccedilatildeo de que o regulamento de 1854 (registro do vigaacuterio) seria o avoengo do registro hipotecaacuterio A legitimaccedilatildeo de posses ndash um dos aspectos essenciais da Lei de Terras de 1850 ndash ainda persistiraacute ao lado de uma complexa teia legal (muitas delas estaduais) regulamentando processos de discriminaccedilatildeo de terras puacuteblicas matriculaccedilatildeo de terras discriminadas ou possuiacutedas pela Uniatildeo legitimaccedilatildeo de posses

Esse conjunto normativo teve como objetivo regularizar a propriedade proporcionando um tiacutetulo legiacutetimo que deveria ser apresentado ao registro imobiliaacuterio O que sustento eacute que desde 1846 ateacute a vigente lei de registros puacuteblicos ( Lei 601573) houve uma niacutetida trajetoacuteria e desenvolvimento do sistema registral que natildeo experimentou qualquer desvio com o advento da Lei de Terras de 1850 e seu decreto regulamentador

Todos haveratildeo de consentir ao menos que cronologicamente a afirmaccedilatildeo de que o Registro do Vigaacuterio eacute o avoengo do Registro de Imoacuteveis eacute equivocada Vamos agrave histoacuteria legislativa

4 SILVA Liacutegia Osoacuterio da Terras devolutas e latifuacutendio ndash efeitos da Lei de 1850 Satildeo Paulo Unicamp 1996 p47

10

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Antes poreacutem aprofundando a ideacuteia de que o Registro de Imoacuteveis prescindindo de uma perfeita descriccedilatildeo dos bens imoacuteveis tinha em mira a perfeita publicidade dos direitos veremos que a modelagem do registro hipotecaacuterio paacutetrio seraacute a expressatildeo de necessidades econocircmicas ndash como modernamente se pode dizer que eacute a expressatildeo de necessidades sociais

Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito

A hipoteca como delineada no vetusto direito romano passou para o direito portuguecircs com todas as suas imperfeiccedilotildees e vicissitudes (Ord Livro 4 tiacutetulo 3ordm tiacutetulo 56 e tiacutetulo 79 sect 3ordm aleacutem da Lei de 20 de junho de 1774 que graduou as hipotecas em privilegiadas e singelas esquecendo-se contudo de confortaacute-las no berccedilo da publicidade)

Os requisitos que hoje reconhecemos fundamentais agrave hipoteca para que possa converter-se em garantia segura e eficaz ndash publicidade e especialidade ndash natildeo se encontravam perfeitamente compreendidos no instituto No direito romano e de resto na longa trajetoacuteria do direito portuguecircs admitiam-se hipotecas ocultas ndash hipotecas gerais de bens presentes e futuros sem falar nas dificuldades inerentes ao estabelecimento das preferecircncias o que de maneira confusa procurou-se obviar com a reforma pombalina de 1774 Na opiniatildeo de LAFAYETTE a hipoteca por essa altura ldquoera complicada e inextricaacutevel a mateacuteria das preferecircncias Um tal sistema deixava o credor exposto agraves maquinaccedilotildees da fraude e entregue a todas as contingecircncias da incertezardquo E continua o festejado autor

ldquode haacute muito os interesses agriacutecolas da maior transcendecircncia em um pais como o nosso instavam com energia por uma reforma que organizando a hipoteca sobre a larga base da publicidade assegurasse ao creacutedito territorial a forccedila e a expansatildeo de que eacute capazrdquo5

Jaacute na primeira metade do seacuteculo XIX os contemporacircneos sentiam a necessidade de se dotar o mercado de uma ferramenta eficaz para garantia dos empreacutestimos A hipoteca com a sua configuraccedilatildeo herdada do velho direito portuguecircs jaacute natildeo servia agraves necessidades econocircmicas A publicidade das hipotecas era um tema que agitava os debates parlamentares

Por essa altura na sessatildeo parlamentar da Cacircmara de 3 de julho de 1830 foi apresentado pelo deputado ERNESTO FERREIRA FRANCcedilA projeto de lei em que a publicidade hipotecaacuteria ficaria assegurada6

Posteriormente foi apresentado em 1836 um projeto de criaccedilatildeo de um registro hipotecaacuterio que quedou dormitando ateacute que em 16 de junho de 1838 por proposta do deputado AURELIANO DE SOUZA E OLIVEIRA COUTINHO foi apresentado um projeto de criaccedilatildeo de ofiacutecio privativo de hipotecas apontamentos e protesto de letras O projeto era assim justificado

5 PEREIRA Lafayette Rodrigues Direito das cousas Rio de Janeiro Garnier Vol II 1877 p 37 6 PINTO Antonio Pereira Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da segunda legislatura sessatildeo de 1830 Rio de Janeiro Typografia H J Pinto t II 1878 p 24

11

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

ldquoparece da necessidade uma lei que criando em cada municiacutepio um ofiacutecio e registro especial de hipotecas e de protesto de letras ponha os cidadatildeos e particularmente o comeacutercio a abrigo das contiacutenuas fraudes que diariamente se praticam hipotecando-se a indiviacuteduos por um cartoacuterio preacutedios jaacute hipotecados a outros por cartoacuterios diferentes e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles que pouco pontuais em seus pagamentos deixam apontar e protestar suas letras a fim de que estabelecida a confianccedila matildee do comeacutercio possa esse prosperar como muito conveacutem aos interesses do paiacutesrdquo7

Vecirc-se que a publicidade organizada das hipotecas era uma exigecircncia econocircmica Claro estava ao autor do projeto que o registro da hipoteca deveria ser concentrado num registro especial ndash e natildeo distribuiacutedo entre os vaacuterios tabeliatildees do impeacuterio Por tudo deveria ser obviada a atomizaccedilatildeo e dispersatildeo de cartoacuterios natildeo especializados ndash seja em razatildeo da mateacuteria hipotecaacuteria seja em virtude de estrita competecircncia territorial

E continua o arrazoado

ldquoeacute sabido que muitos sujeitos que aliaacutes desejariam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam daacute-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estatildeo sujeitos em todo ou em parte a outros contratos e por temerem os prejuiacutezos que de tais fraudes se tecircm seguido donde tambeacutem resulta que muitos proprietaacuterios satildeo privados de fazer duplicadamente produtivas suas propriedades obtendo sobre elas fundos com que as possam melhorar aumentar ou entrar em outras especulaccedilotildeesrdquo

E segue o autor fazendo referecircncia a outros projetos apresentados

ldquoesta necessidade parece ser reconhecida pois que existe nesta casa desde 1836 um projeto sobre hipotecas mas limitando-se ele a criar simplesmente um registro para elas e estabelecendo-o nas cacircmaras municipais creio que aleacutem de ir complicar muito o expediente destes corpos administrativos natildeo satisfaz o fim proposto isto eacute evitar o mais possiacutevel a fraude dos contratantes de maacute feacute e proteger os que tecircm boa Por estes motivos pois e com o fim de animar por meio da seguranccedila as transaccedilotildees comerciais o giro dos fundos e por consequumlecircncia o melhoramento das fortunas e propriedades particulares tenho a honra de propor o seguinte projeto de leirdquo e segue o projeto8

Jaacute em 1840 na sessatildeo de 11 de maio o projeto de 1838 entra em discussatildeo e merece um comentaacuterio elucidativo sobre um periacuteodo em que as legislaccedilotildees provinciais admitiam a criaccedilatildeo de escrivatildees de hipotecas O deputado HENRIQUE DE REZENDE observava que existiam no Impeacuterio legislaccedilatildeo hipotecaacuteria provincial Diz que ldquoas assembleacuteias provinciais tecircm criado escrivatildees de hipotecas e estes escrivatildees satildeo compreendidos no ato adicionalrdquo

7 REIS Antonio Henoch dos Anais do Parlamento brasileiro ndash Cacircmara dos Srs deputados Primeiro ano da quarta legislatura sessatildeo de 1838 Rio de Janeiro Typografia da viuacuteva Pinto amp Filho t I 1886 p 353 8 Idem ibidem

12

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Portanto conviria ldquoarredar da cacircmara qualquer cousa que possa ir dar nas proviacutencias um choque ou estabelecer quaisquer prevenccedilotildeesrdquo9

O deputado MOURA MAGALHAtildeES na mesma sessatildeo registra que o projeto sobre hipotecas natildeo poderia dormitar em plenaacuterio para ldquoobviar as fraudes que se costumam praticar em dano das partes e em ofensa de seu direitordquo10

Transcorridos alguns anos na sessatildeo de 18 de marccedilo de 1843 nas veacutesperas das discussotildees da lei orccedilamentaacuteria daquele ano o deputado J M PEREIRA DA SILVA remete agrave comissatildeo de Justiccedila civil o tema do registro hipotecaacuterio jungindo

ldquosendo de absoluta necessidade a adoccedilatildeo de uma lei que fixe regras invariaacuteveis e um sistema claro sobre hipotecas a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que tecircm resultado do estado imperfeito da legislaccedilatildeo civil existente indico que a nobre Comissatildeo de Justiccedila Civil organize com toda a brevidade um projeto de resoluccedilatildeo sobre hipotecas colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados agrave Cacircmara por diversos Srs Deputados em diferentes legislaturas a fim de se prosseguir na sua discussatildeo com a presteza e a urgecircncia compatiacuteveis com objetos de tanta transcendecircnciardquo11

O proacuteprio deputado J M PEREIRA DA SILVA cuidaria de apresentar jaacute na sessatildeo de 1ordm de abril de 1843 o seu proacuteprio projeto de lei que criava a figura dos tabeliatildees privativos de hipoteca nas cidades do Rio de Janeiro Bahia e Pernambuco Nas outras cidades e vilas do Impeacuterio ldquoum dos atuais tabeliatildees seraacute incumbido desse ofiacutecio conjuntamente com o que o exercerrdquo12

No iniacutecio era a hipotecahellip

Pois bem concebido no bojo das discussotildees orccedilamentaacuterias de 1843 que redundou na lei 317 de 21 de outubro de 1843 seria finalmente criado o registro hipotecaacuterio brasileiro em 1846 pela via do decreto 482 de 14 de novembro de 1846

Defendido pelo deputado BARRETO PEDROSO que apresentaria uma emenda aditiva o registro hipotecaacuterio seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos agrave produccedilatildeo agriacutecola brasileira justificado claramente por necessidades econocircmicas e sociais

Aliaacutes ANTOcircNIO PEREIRA BARRETO PEDROSO talvez por ser filho de MIGUEL PEREIRA BARRETO (que foi o primeiro tabeliatildeo da cidade de Resende em 1801) tinha plena consciecircncia das potencialidades de um registro hipotecaacuterio e de seu benefiacutecio para o

9 Idem p 242 10 Idem p 243 11 REIS Antonio Henoch Anais do parlamento brasileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash primeiro ano da quinta legislatura Primeira sessatildeo de 1843 Rio de Janeiro Imprensa Oficial t II 1882 p 324 12 Op cit p 595

13

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

incremento do financiamento agriacutecola Esse mesmo deputado chegaria ao posto de ministro do Supremo Tribunal Federal

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia histoacuterica do tema vamos dar voz ao deputado BARRETO PEDROSO que na sessatildeo do Parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criaccedilatildeo do regime de registro hipotecaacuterio no paiacutes nos seguintes termos

ldquoOra Sr Presidente o comeacutercio que eacute a outra parte da naccedilatildeo que carrega com os impostos tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura trago por exemplo o que acontece no Rio de Janeiro existe aqui um banco os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que satildeo apresentados aos negociantes Mas acontece o mesmo com a lavoura Decididamente natildeo Vejo lavradores que tecircm o valor de 50 de 100 e mais contos de reacuteis entretanto se precisam de dinheiro vecircm-se na precisatildeo de obter com um juro muito crescidordquo

Em outro momento dos debates registrou o luacutecido deputado

ldquoEacute inegaacutevel que logo que se criar um registro de hipotecas a lavoura haacute de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro que o tem seguro com a hipoteca sobre um preacutedio de muito valor hatildeo de por certo baixar o juro de seu dinheiro porque o datildeo com mais ou menos interesse conforme a seguranccedila que tecircmrdquo13

O diagnoacutestico era preciso Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relaccedilatildeo com os riscos inerentes ao negoacutecio Eacute regra comezinha de economia O mesmo senhor BARRETO PEDROSO viria a concluir com pronunciamento de notaacutevel clarividecircncia jaacute na sessatildeo do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano em resposta agraves objeccedilotildees que lhe foram levantadas

ldquoEu fiz ver muito resumidamente que se noacutes criaacutessemos um registro de hipoteca facilitariacuteamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor Os nobres deputados natildeo podem desconhecer que quando os capitalistas datildeo dinheiro a juros procuram com muito cuidado a garantia da seguranccedila para o sem embolso Disse eu que o juro estava na razatildeo inversa da seguranccedila que quanto maior era a seguranccedila tanto menor era o jurordquo14

Como se viu a palavra-chave era seguranccedila juriacutedica O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa

13 Annaes do Parlamento Brazileiro Cacircmara dos Srs Deputados ndash segundo anno da quinta legislatura segunda sessatildeo de 1843 p 54 14 Idem p 85

14

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Enfim tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado PEDROSO acabou figurando na Lei Orccedilamentaacuteria de 1843 com eficaacutecia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os registros pelo modo que o governo estabelecesse em regulamento

A primeira tentativa portanto de imprimir agrave hipoteca os efeitos da publicidade registral agrave hipoteca deu-se no decreto 482 de 14 de novembro de 1846 regulamentando a disposiccedilatildeo encontrada na Lei Orccedilamentaacuteria 317 de 21 de outubro de 1843

Como a doutrina natildeo deixou de assinalar o ensaio regulamentar foi manco e imperfeito pois natildeo atacava a existecircncia das hipotecas gerais o que obviamente contrariava o sentido de publicidade sobre a qual se pretendia confortar a hipoteca impulsionada pelos ventos modernizadores do creacutedito agraacuterio tatildeo bem apanhados pela doutrina francesa

Vemos que a disposiccedilatildeo que hoje encontramos na vigente lei dos registros puacuteblicos deita raiacutezes na tradiccedilatildeo dos sucessivos regulamentos hipotecaacuterios que desde 1846 ateacute 1976 ndash por exatos 130 anos ndash disciplinaram a atuaccedilatildeo do oficial registrador

A bela palavra cartoacuterio

A conhecida palavra portuguesa finca raiacutezes em boa fonte latina Na idade meacutedia os importantes documentos notariais alguns apoacutegrafos outros originais eram conglomerados em coleccedilotildees denominadas cartulaacuterios ndash donde cartaacuterios do baixo latim chartulatium de chartula que vem de nos dar a beliacutessima cartoacuterio De pequenas coleccedilotildees depositadas em igrejas mitras mosteiros arquivos reais etc muitas vezes em pequenos arquivos ou escritoacuterios a palavra sofre mutaccedilotildees e chega em plena maturidade agrave complexa instituiccedilatildeo encarregada do registro puacuteblico garantindo a publicidade eficaacutecia autenticidade seguranccedila dos atos e negoacutecios juriacutedicos

Essas coleccedilotildees serviram para conservar os documentos lavrados pelos tabeliatildees medievais evitando-se assim a dispersatildeo e eacute justamente a existecircncia de cartoacuterios que se tem permitido ao longo dos seacuteculos que se possam conhecer e recompor eventualmente os documentos originais que se perderam

Outra acepccedilatildeo nos daacute JOAtildeO PEDRO RIBEIRO que registra em suas claacutessicas Dissertaccedilotildees que se daacute ldquoo nome de Chartularios ou Cartularios (em vulgar Cartairos ou Cartarios que agraves vezes eacute sinocircnimo de Cartoacuterios) aos Coacutedices em que se acham transcritos os tiacutetulos e documentos de algumas Corporaccedilotildeesrdquo15 Portanto coleccedilotildees de tiacutetulos emaccedilados

Os cartoacuterios serviram desde sempre para o robustecimento da prova Diz MARCELLO CAETANO que a razatildeo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietaacuterios de conservar os tiacutetulos justificativos de seu domiacutenio Diz que ldquoos cartulaacuterios cartaacuterios ou cartoacuterios (de Charta) pertencem sobretudo agraves 15 RIBEIRO Joatildeo Pedro Dissertaccedilotildees chronologicas e criticas 2a ed Lisboa Academia Real das Sciencias de Lisboa 1896 t V dissertaccedilatildeo XIX p 3

15

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

grandes corporaccedilotildees monaacutesticas ou agraves mitras que possuiacuteam avultados patrimocircnios constituiacutedos agraves vezes por centenas de preacutedios fosse em plena propriedade fosse em senhorio direto (preacutedios foreiros)rdquo16

Vecirc-se que ao lado do registro notarial sempre houve uma tendecircncia natural de constituiccedilatildeo de foacutelios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e que serviram principalmente agrave perpetuaccedilatildeo dos tiacutetulos para a prova e justificaccedilatildeo de direitos Os cartoacuterios que entatildeo se constituiacuteam nessas corporaccedilotildees monaacutesticas ndash tambeacutem nos arquivos reais relaccedilotildees (ateacute na Universidade de Coimbra) ndash prefiguravam jaacute nitidamente a feiccedilatildeo que mais tarde os ofiacutecios de registro teriam no futuro territorialidade concentraccedilatildeo seguranccedila perpetuidade indelebilidade autenticidade eficaacutecia probatoacuteria etc

Eram inuacutemeros os cartoacuterios que se foram constituindo nessas instituiccedilotildees Satildeo bastante conhecidas dos diplomatistas e paleoacutegrafos portugueses fontes preciosas de pesquisas Citam-se amiuacutede Cartoacuterio de Santo Thyrso Cartoacuterio do Mosteiro de Satildeo Joatildeo de Tarouca Cartoacuterio de Pombeiro Cartoacuterio da Seacute de Viseu Cartoacuterio de Lorvatildeo Cartoacuterio da Cacircmara da Torre de Moncorvo Cartoacuterio do Convento de Tomar Cartoacuterio de Alcobaccedila Cartoacuterio de Pendorada Cartoacuterio de S Simatildeo da Junqueira etc

O nosso JOAQUIM DE OLIVEIRA MACHADO nos daacute algumas liccedilotildees sobre a origem da palavra cartoacuterio ligando-a diretamente a paccedilo

ldquoA tolerancia ao abuso ou difficuldade de locomoccedilatildeo abriram a pouco e pouco ensanchas a que os tabelliatildees fossem estabelecendo suas officinas em diversos pontos das cidades ora em suas proprias residencias ora em casas separadas Essas casas perderam o nome de paccedilo e o substituiram pelo de cartorio Donde veio este vocabulo Porque para o tabelliatildeo ou escrivatildeo ainda subsiste o nome legal de cartorio ao passo que para o official de registro foi elle substituido pelo de escriptorio Vamos explicar Cartorio vem de carta como escriptorio vem de escrever A carta eacute versatildeo literal do substantivo latino charta chartae equivalente a papel que para a escripta incipiente era fabricado da fibra do junco papyro Este papel foi tomando diversos sentidos segundo o fim ou segundo a forma para que era utilisado Dahi vem que carta significa o livro o diploma a patente o titulo ou acto de lei de citaccedilatildeo de partilhas de liberdade de conselho etc O cartorio pois natildeo era sinatildeo lugar em que eram guardados os livros e os papeis pertencentes ao officio do tabelliatildeo Era o archivo ou deposito onde satildeo recolhidos os livros de notas de audiencia eleitoraes os autos os processos as ordens do juiz emfim todos os papeis A officina do tabelliatildeo do escrivatildeo e dos officiaes do juizo conservam o titulo peculiar de cartorio quer elle esteja em edificio separado quer num compartimento da propria morada do serventuaacuteriordquo17

16 CAETANO Marcelo Histoacuteria do direito portuguecircs 4a ed Lisboa Verbo 2000 p 243 17 MACHADO Joaquim de Oliveira Manual do official de registro geral e das hypothecas Rio de Janeiro B L Garnier 1888 p 111

16

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada

Como se vecirc a palavra cartoacuterio a bela palavra cartoacuterio liga-se aos antigos paccedilos dos tabeliatildees medievais cuja origens podem ser seguramente percebidas desde a primeira idade da monarquia portuguesa

Assim verificamos a ocorrecircncia da palavra paccedilo no famoso regulamento sobre a atividade tabelioa de 15 de janeiro de 1305 baixado por D Dinis cuja iacutentegra pode ser consultada em Veacutesperas do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais18

Permito-me destacar aqui o artigo 21

ldquoxxiordm artigo

Todolos tabelliotildees em nos logares hu morarem deuem a tẽer casa ou paaccedilo ssabudo en que escreuam as escripturas de que deuem a dar fe a que os uaam buscar aqueles que perdante eles quiserem fazer os contractos Ca he ccedilerto que os mais dos tabelliotildees o nom fazem assy nem querem tẽer casas en que escreuam E per esta Razom perdem as gentes mujto do seu dereyto porque nom podem auer as scripturas quando lhis conpre Esto sse entende tẽer casa na vila hu som muytos tabelliotildees ou de dous accedilimardquo

O Elucidaacuterio registra que paccedilo eacute qualquer casa mais que ordinaacuteria19 Era a residecircncia de reis ou priacutencipes prelados eclesiaacutesticos e universitaacuterios20 O mesmo elucidaacuterio registra o verbete paccedilo dos tabelliaens por onde se vecirc que antigamente havia uma grande casa onde escreviam notaacuterios puacuteblicos e todos os escrivatildees que fazem escrituras ou quaisquer outros instrumentos de compra venda contratos etc E continua Viterbo ldquocom o lapso do tempo se foram recolhendo os tabeliatildees com os respectivos cartoacuterios agraves suas casas e os poucos que ficaram conseguiram dacuteel-rei D Joatildeo V (1706 - 1750) para servirem em suas casas os seus ofiacutecios com o que ficando devoluto o tal domiciacutelio o mesmo senhor rei fez dele mercecirc no ano de 1749rdquo21

Nas vilas onde morassem mais de dois tabeliatildees deveriam ter casa ou paccedilo conhecido onde seriam encontrados sempre que de seus serviccedilos necessitassem os povos Os tabeliatildees natildeo queriam esse escritoacuterio comum Como se vecirc do extrato acima acabaram jaacute no reinado de D Joatildeo V por conseguir que desempenhassem suas atividades em suas casas

De paccedilo dos tabeliatildees nos primoacuterdios vamos para casa deputada jaacute nas ordenaccedilotildees Manuelinas Livro 1 tit 59 item 6

18 JACOMINO Seacutergio Fontes do notariado brasileiro um passeio agraves fontes medievais in Revista de Direito Imobiliaacuterio 53 Satildeo Paulo RTIrib juldez 2002 p 184 19 Elucidaacuterio verbete paccedilo 20 FIGUEIREDO Cacircndido de Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa 11a ed Lisboa Bertrand sd verbete paccedilo 21 Elucidaacuterio verbete paccedilo dos tabelliaens

17

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

ldquo6 ITEM em qualquer Cidade Villa ou Luguar onde ouuer cafa deputada pera os Tabaliaẽs de Notas os ditos Tabaliaẽs eftaram pola menhaatilde e aa tarde na dita cafa por tal que as partes que os mefter ouuerem pera fazerem algũa efcriptura os poffam mais preftes achar em a dita cafa que lhes affi for ordenadardquo

A mesma denominaccedilatildeo vamos encontrar nas Ordenaccedilotildees Filipinas (Tiacutetulo LXXVIII) ateacute que chegamos agrave costumeira cartoacuterio

No proacuteprio Regulamento de 1846 vamos encontrar a palavra cartoacuterio no art 2ordm rezando que as hipotecas deveriam ser registradas no ldquoCartoacuterio do Registro Geral da comarca onde forem situados os bens hipotecadosrdquo e ainda nos artigos 4ordm 22 26

Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)

A adscriccedilatildeo judiciaacuteria das atividades tabelioas e registrais encontra suas fundas razotildees na histoacuteria da proacutepria instituiccedilatildeo No jaacute referido Regulamento de D Dinis de 1305 vemos como os tabeliatildees eram correcionados pelos juiacutezes

ldquoxxordm artigo

E sse algũu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameaccedile porem ca sseia ccedilerto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaccedila E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justiccedila porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faccedilam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scriptordquo

Os tabeliatildees estavam sujeitos agrave corregedoria dos juiacutezes Mas igualmente os juiacutezes de certo modo estavam sujeitos a uma espeacutecie de fiscalizaccedilatildeo da qual os tabeliatildees estavam encarregados de informarem ao rei ou aos seus delegados sobre o estado da administraccedilatildeo da Justiccedila

A completa compreensatildeo deste artigo se alcanccedila cotejando-o com o Regulamento de 1340 (curiosamente datado de 15 de janeiro) Essas declaraccedilotildees e informaccedilotildees faziam com que os juiacutezes temessem os tabeliatildees Se qualquer juiz apurasse irregularidades cometidas pelos tabeliatildees eventualmente quedar-se-ia silente pois teria motivos de sobra para temer uma represaacutelia pois aqueles poderiam conservar a seu respeito qualquer escrito desabonador Dava-se o caso igualmente de que o tabeliatildeo guardasse silecircncio acerca das faltas cometidas por juiz com quem servia muitas vezes por esse escolhido A situaccedilatildeo era pois de encobertamento reciacuteproco

E eacute justamente sobre essa situaccedilatildeo que encontramos uma lei sem data conhecida segundo RIBEIRO muito provavelmente de D Afonso IV (1325-1357) em que o rei procura evitar que o tabeliatildeo fosse escolhido pelo juiz e que por essa razatildeo guardasse silecircncio sobre eventuais irregularidades cometidas pelo magistrado

18

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

ldquoHe dito que os Juizes e Alvaziis assy do Crime como do Civil quando entram por Juizes escolhem quaes Tabelliatildees querem pera seerem com elles nas Audienccedilias e nas outras cousas que han de fazer e que esses Tabelliaes que assy por elles som escolheitos nom querem ou nom ousam escrever nem fazer nada que seja contra esses Juizes Porem manda ElREY e defende aos ditos Juizes que nom filhem nem escolham por sy Taballiatildees que com elles sejam nas ditas cousas mais manda que os homeens boons e Vereadores da Villa escolham os Tabelliaes que ouverem de seer e escrever em cada hũa Audienccedilia e escolham pola guisa que entenderem que heacute milhor e sejam taaes que sejam sem sospeitardquo

Pela carta reacutegia de 1 de agosto de 1281 expedida por D Dinis contra a falta de administraccedilatildeo de justiccedila era imposta aos tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de dar registro agrave falta de administraccedilatildeo da Justiccedila No que concerne especificamente aos tabeliatildees diz o rei

ldquoE mandom a todolos Taballioens de meu Reino su pena dos coacuterpos que escrevatildeo todalas cousas en que se nom fezer Justiccedila e aqueles per quem menguar de guisa que quando Eu for na terra ou mandar sobracuteesto fazer Inquiriccedilom que o possa todo saberrdquo22

Semelhantemente encontramos disposiccedilatildeo anaacuteloga na Lei de 31 de julho de 1282 em que se ordena que as apelaccedilotildees sejam dirigidas retamente agrave corte imperando aos tabeliatildees que havendo desobediecircncia agrave lei decircem informaccedilotildees do fato ao soberano Verbis

ldquoE mando a todos os tabelliotildees dos meus Reynos que Registrem esta mha carta e a leam nos conccedilelhos ameude E se algũu contra ela uẽer mando a eles so pena dos corpos e dos encoutos que mho mandem dizerrdquo23 (v apecircndice - doc V)

Como se vecirc a regra se repete em vaacuterios regulamentos e chega a figurar nas Ordenaccedilotildees Afonsinas (II 14 1 e 2) na lei de 10 de julho de 1286 referentemente agrave aquisiccedilatildeo de bens de raiz por ordens ou cleacuterigos Tinham os tabeliatildees a obrigaccedilatildeo de comunicar tal fato ao rei sendo a omissatildeo cominada com a pena capital

ldquoQue os Cleacuterigos e Hordeẽs nom comprem beẽs de raiz fem mandado drsquoElRey

Nos Livros da noffa Chancellaria foi achada hũa Hordenaccedilom per que antiguamente foi defefo aos Cleacuterigos e Herdeẽs que nom compraffem alguũs beẽs de raiz em noffos Regnos da qual Hordenaccedilom o theor he efte que fe adiante fegue

I DOM DONIS per graccedila de DEOS Rey de Purtugal e do Algarve A todolos Alquaides Meirinhos Corregedores Juizes Alguazis Jufticcedilas Almuxarifes e Taballiaatildees dos meus Regnos faude Sabede que os Reyx que ante mim forom defendeerom que Hordeẽs nem Cleacuterigos nom compraffem nenhuũs herdamentos em feu Regno e outro fy o defendo eu e ora alguũs Concelhos xe me enviarom queixar que alguũs Cleacuterigos e Hordeẽs faziam mui grandes compras em minha

22 Documentos da Vila de Moacutes citado no Elucidaacuterio no verbete pontaria 23 LLP fol 13 verso (p 50) v apecircndice doc V

19

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

terra e que efto era meu exerdamento e mui gram datildepno delles de guifa que quando os eu e os Cavalleiros da minha terra e os Concelhos ouveffem mester pera meu ferviccedilo que me nom poderiam fervir affy como deviam e eu affy o entendo e fom tam maravilhado como fom tam oufados de comprar os ditos herdamentos contra o meu defendimento

2 E POREM mando e defendo os Cleacuterigos nem Hordeẽs nom comprem herdamentos e aquelles herdamentos que comprarom ou fezerom comprar ataaqui pera fy des que eu fui Rey dou-lhes prazo que os vendam defta Santa Maria drsquoAgofto atta huũ anno e fe os notilde venderem ataa este prazo percam-nos E efto catade ora vos que nom prenda eu hy engano nem as faccedilam vendidiccedilas e que fiquem elles com ellas e em outra guifa vos mo lazararedes E voacutes Taballiaatildees se eu per voacutes defenganado nom for de todo e per voacutes nom fouber os que ficam que os nom vendam des que aquelle prazo paffar morreredes por ende Efta Carta regiftade-a em voffos livros Dante em Lixboa a dez dias de Julho ElRey o mandou Manoel Eannes a fez era de mil e trezentos e vinte e quatro annosrdquo

Sobre a sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores vemos mais claramente nas disposiccedilotildees contidas no Regimento dos Corregedores de 1340 pelo qual deveriam os corregedores verificar e informar-se a respeito dos tabeliatildees de cada vila ou julgadoachando que natildeo soubessem de seu nobre ofiacutecio ou apurando que natildeo fossem de boa fama cumpria-lhes propor ao rei o nome de duas pessoas que fossem aptas para o cargo Esse regimento passaria para as Ordenaccedilotildees Afonsinas e para as Ordenaccedilotildees de D Duarte Para melhor compreender a extensatildeo da sujeiccedilatildeo dos tabeliatildees aos corregedores e das famosos correiccedilotildees que fizeram fortuna em nosso sistemas vamos pinccedilar algumas disposiccedilotildees encontradas nas Ordenaccedilotildees Afonsinas Livro I tiacutetulo XXIII item 4

ldquo4 ITEM Defpois que for em alguũ lugar de fa correiccedilom deve mandar apregoar que venhaotilde perante elle todos aquelles que ouverem querellas de Alquaides e de Juizes ou Taballiaaẽs ou de poderofos ou drsquooutros quaeefquer e que lhas faraacute correger e que outro fy venhaotilde perante elle todos os que ouverem demandas e que lhas faraacute defembargar e o pregom affy dado deve chamar os Juizes daquelle lugar e poe-los a par de fy e fazer-lhes pergunta quando veerem as partes que feitos teem perante os Juizes porque os nom defpacham mandando-lhes que loguo defembarguem feos feitosrdquo

A sujeiccedilatildeo do tabeliatildeo aos corregedores e juiacutezes eacute percebida de forma inequiacutevoca no item 12 do mesmo livro e tiacutetulo cabendo aos magistrados a supervisatildeo geral (corregedoria-permanente) e aplicaccedilatildeo das penas caso apurasse qualquer irregularidade Para que fossem bem conhecidas suas atribuiccedilotildees os juiacutezes deveriam obrigar que fossem lidos aos proacuteprios tabeliatildees e ao povo os artigos regulamentares da atividade e as tabelas de emolumentos na primeira segunda-feira de cada mecircs

I2 ITEM Deve mandar aos Juizes que faibaotilde fe os Taballiaaẽs guardaotilde os artigos e taufaccedilom que juraraotilde na Chancellaria e fe achar que os nom guardam que lhes dem a pena que lhes fobre efto he pofta e fe os Juizes em fabendo defto parte forem negrigentes o Corregedor o eftranhe aos Juizes e decirc-lhes por effo pena

20

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

qual vir que compre Outro fy decirc aos Taballiaaẽs a pena em que cahirem E por haverem razom os Juizes de faberem o que he contheudo em effes artigos e taufaccedilom que faccedilam leer effes artigos e taufaccedilom perante os Taballiaaẽs e ao Povo cada fegunda feira primeira de cada mez no lugar onde fazem o Concelho pera faberem todo o que em elles for contheudo

Mas no caso especiacutefico do registro hipotecaacuterio a atuaccedilatildeo do tabeliatildeo encarregado do nobre ofiacutecio se desenvolve sem estritas peias vinculantes suas razotildees denegatoacuterias satildeo respeitadas e mesmo quando haja uma decisatildeo judicial de improcedecircncia o registro ainda assim natildeo se fazia

Outro aspecto digno de nota diz respeito agrave forma do registro o artigo 11 do regulamento de 1846 estabelece que o registro seria feito por translaccedilatildeo dos elementos do tiacutetulo ldquocoacutepia literal verbo ad verbumrdquo como lavram ordinariamente os tabeliatildees as suas notas O artigo tem a seguinte redaccedilatildeo

ldquoArt 11 Os assentos dos registros das hypothecas seratildeo lanccedilados diariamente no Livro do Registro geral guardada a numeraccedilatildeo dada no Protocolo aacute verba correspondente e a mesma data e consistiratildeo os mesmos assentos na copia litteral do titulo verbo ad verbum com as formalidades praticadas pelos Tabelliatildees no lanccedilamento de documentos nas suas notas a requerimento de partes natildeo devendo mediar entre huns e outros registros espaccedilo em branco mais que o preciso para distinguirrdquo

A teacutecnica de registro eacute uma mera transcriccedilatildeo do tiacutetulo suposto que a escritura puacuteblica (ou os escritos particulares autorizados por lei) preencha todos os requisitos legais quer no respeitante agrave forma quer no conteuacutedo E assim eacute porque nesta altura tendo sido aproveitada a figura do tabeliatildeo natildeo teraacute sido percebido que as distintas atividades faratildeo nascer mais tarde um niacutetido divisor de maneira que o registrador poderaacute conhecer do tiacutetulo e denegar o registro quando lhe pareccedila eivado de nulidades mesmo quando o instrumento tenha sido aperfeiccediloado por um tabeliatildeo

Certo eacute que a teacutecnica de transcriccedilatildeo verbo ad verbum requer uma atuaccedilatildeo em que a atividade criativa do oficial registrador na plasmaccedilatildeo do registro fica de certa forma limitada e concentrada na trasladaccedilatildeo escrupulosa dos dados que figuram no tiacutetulo para os livros de registro Certo tambeacutem que o tabeliatildeo especial como vimos pode denegar o registro hipoacutetese em que caberaacute recurso ao juiz competente Mas a teacutecnica da inscriccedilatildeo viraacute mais tarde A inscriccedilatildeo ldquoato mais delicado e que demanda grande cuidado e escruacutepulo em sua confecccedilatildeo consiste na inserccedilatildeo do substrato das circunstacircncias capitais cuja enunciaccedilatildeo deve ser resumida mas cautelosamente feitardquo conforme apontaria mais tarde DIacuteDIMO DA VEIGA24

A transcriccedilatildeo e a inscriccedilatildeo ndash termos que indicavam atos de registro estrito senso ndash seratildeo mantidas como nomenclatura proacutepria no desenrolar da histoacuteria do direito hipotecaacuterio e registral brasileiro Vatildeo designar atos proacuteprios de registro que se perfaziam ambos por 24 VEIGA Diacutedimo Agapito da Direito hipotecaacuterio Rio de Janeiro Lammert 1899 p 254

21

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

extrato o que denuncia certa inadequaccedilatildeo terminoloacutegica que soacute encontraraacute termo em 1976 com o advento da Lei 601573

A Lei de terras de 1850

Vamos fazer uma parada na chamada Lei de Terras (Lei 601 de 1850 e seu decreto regulamentador n 1328 de 1854)

A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 legitimaram a aquisiccedilatildeo pela posse procurando vincar pelo modo que previa o domiacutenio puacuteblico de todas as posses que deveriam ser levadas ao registro previsto no artigo 13 da citada lei

ldquoArt 13 O mesmo Governo faraacute organisar por Freguesias o registro das terras possuidas sobre as declaraccedilotildees feitas pelos respectivos possuidores impondo multas e penas aacutequelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas declaraccedilotildees ou as fizerem inexactasrdquo

O registro era feito com base nas declaraccedilotildees dos posseiros Seraacute pelo Decreto 1318 de 30 de janeiro de 1854 que se criaria o famoso registro do vigaacuterio O artigo 91 do supracitado regulamento previa que todos os possuidores de terras qualquer que fosse o seu tiacutetulo de sua propriedade ou posse seriam obrigados a registrar as terras

Art 91 Todos os possuidores de terras qualquer que seja o titulo de sua propriedade ou possessatildeo satildeo obrigados a fazer registrar as terras que possuirem dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento os quaes se comeccedilaratildeo a contar na Cocircrte e Provincia do Rio de Janeiro da data fixada pelo Ministro e Secretario drsquoEstado dos Negocios do Imperio e nas Provincias da fixada pelo respectivo Presidente

Os tiacutetulos deveriam formalizados por declaraccedilotildees unilaterais dos possuidores conforme previa o artigo 93 do regulamento

Art 93 As declaraccedilotildees para o registro seratildeo feitas pelos possuidores que as escreveratildeo ou faratildeo escrever por outrem em dois exemplares iguaes assignando-os ambos ou fazendo-os assignar pelo individuo que os houver escripto se os possuidores natildeo souberem escrever

O mais curioso desse decreto eacute que a incumbecircncia de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras (cujos volumes seriam remetidos para a reparticcedilatildeo competente ndash art 107) ficou a cargo dos vigaacuterios de cada uma das freguesias do impeacuterio Aleacutem disso os vigaacuterios poderiam fazecirc-lo por si ou por meio de escreventes que poderiam livremente nomear Assim dispocircs o regulamento no seu artigo 97

Art 97 Os Vigarios de cada huma das Freguezias do Imperio satildeo os encarregados de receber as declaraccedilotildees para o registro das terras e os incumbidos de proceder aacute

22

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

esse registro dentro de suas Freguezias fazendo-o por si ou por escreventes que poderatildeo nomear e ter sob sua responsabilidade

Os vigaacuterios estavam incumbidos de instruir os fregueses da obrigaccedilatildeo que lhes foi imposta pela Lei amplificando a publicidade legal com avisos nas missas conventuais e publicadas por todos os meios (editais proclamas etc)

Art 98 Os Vigarios logo que for marcada a data do primeiro prazo de que trata o Art 91 instruiratildeo a seus freguezes da obrigaccedilatildeo em que estatildeo de fazerem registrar as terras que possuirem declarando-lhes o prazo em que o devem fazer as penas em que incorrem e dando-lhes todas as explicaccedilotildees que julgarem necessarias para o bom cumprimento da referida obrigaccedilatildeo

Art 99 Estas instrucccedilotildees seratildeo dadas nas Missas conventuaes publicadas por todos os meios que parecerem necessarios para o conhecimento dos respectivos freguezes

O festejado AFRAcircNIO DE CARVALHO identifica neste diploma legal e seu regulamento o primoacuterdio da atividade registral e da fixaccedilatildeo da competecircncia territorial dos registradores ldquoo registro das posses era feita pelos vigaacuterios das freguesias do Impeacuterio definindo-se portanto a competecircncia dos registradores desde os primoacuterdios registrais pela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo25

Calham aqui algumas observaccedilotildees Em primeiro lugar o registro natildeo era exclusivamente de posses mas tambeacutem de propriedades havidas por justo tiacutetulo Muito embora esse registro desempenharia basicamente um papel de legitimaccedilatildeo das posses e mais tarde para prova de ancianidade para efeitos de usucapiatildeo conforme decidido pelo STF (em decisatildeo a que abaixo se faraacute referecircncia) De fato o artigo 91 do regulamento previa que todos os possuidores de terras ldquoqualquer que fosse o titulo de sua propriedade ou possessatildeordquo estavam obrigados ao registro Em segundo lugar o vigaacuterio funcionava aqui menos como registrador imobiliaacuterio e mais como um tabeliatildeo pois ele deveria reter as declaraccedilotildees que lhe fossem apresentadas emaccedilando os exemplares numerando-os pela ordem de apresentaccedilatildeo organizando um livro e notando em cada um dos escritos a folha do livro em que tivesse sido registrado Esse livro seria remetido findos os prazos estabelecidos para o registro ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Publicas da Proviacutencia respectiva para a formaccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do qual se enviaria coacutepia ao Diretor para a organizaccedilatildeo do tal registro

Finalmente natildeo se pode concordar com o mestre AFRAcircNIO DE CARVALHO quando diz que o regulamento definia a competecircncia dos registradores ldquopela situaccedilatildeo do imoacutevelrdquo Eacute que o Regulamento de 1846 em seu artigo 2ordm jaacute previa a regra da competecircncia do registrador pela situaccedilatildeo do bem hipotecaacutevel

ldquoArt 2ordm As hypothecas deveratildeo ser registradas no Cartorio do Registro geral da Comarca onde forem situados os bens hypothecados Fica porecircm exceptuada desta

25 CARVALHO Afracircnio de Registro de Imoacuteveis 4ordf ed Rio de Janeiro Forense 1997 p 2

23

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

regra a hypotheca que recahir sobre escravos a qual deveraacute ser registrada no registro da Comarca em que residir o devedorrdquo

ldquoNatildeo produziraacute effeito o registro feito em outros Cartorios e igualmente o que for feito dentro dos vinte dias anteriores ao fallimentordquo

Outro aspecto importante digno de nota eacute que o tabeliatildeo-vigaacuterio no exame dos exemplares apresentados poderia suscitar impedimentos Eacute que as declaraccedilotildees deveriam ser por ele escrupulosamente conferidas Soacute se faria o registro se as mesmas fossem encontradas em regra e os exemplares apresentados idecircnticos entre si Se eventualmente os exemplares natildeo contivessem as declaraccedilotildees necessaacuterias e exigidas pela Lei ele poderia fazer notar aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes de molde a instruiacute-los nas declaraccedilotildees devidas Poderia retardar o registro nos casos em que os escritos contivessem erros notoacuterios

De qualquer maneira insistindo as partes no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os tabeliatildees-vigaacuterios natildeo poderiam recusaacute-las e o registro de qualquer maneira se faria Aqui a reproduccedilatildeo dos textos regulamentares

Art 101 As pessoas obrigadas ao registro apresentaratildeo ao respectivo Vigario os dois exemplares de que trata o Art 93 e sendo conferidos por elle achando-os iguaes e em regra faraacute em ambos huma nota que designe o dia de sua apresentaccedilatildeo e assignando as notas de ambos os exemplares entregaraacute hum delles ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigaccedilatildeo do registro guardando o outro para fazer esse registro

Art 102 Se os exemplares natildeo contiverem as declaraccedilotildees necessarias os Vigarios poderatildeo fazer aos apresentantes as observaccedilotildees convenientes a instrui-los do modo por que devem ser feitas essas declaraccedilotildees no caso de que lhes pareccedilatildeo natildeo satisfazer ellas ao disposto no Art 100 ou de conterem erros notorios se porecircm as partes insistirem no registro de suas declaraccedilotildees pelo modo por que se acharem feitas os Vigarios natildeo poderatildeo recusa-las

Art 103 Os Vigarios teratildeo livros de registro por elles abertos numerados rubricados e encerrados Nesses livros lanccedilaratildeo por si ou por seus escreventes textualmente as declaraccedilotildees que lhes forem apresentadas e por esse registro cobraratildeo do declarante o emolumento correspondente ao numero de letras que contiver hum exemplar a razatildeo de dois reaes por letra e do que receberem faratildeo notar em ambos os exemplares

Art 104 Os exemplares que ficarem em poder dos Vigarios seratildeo por elles emmassados e numerados pela ordem que forem recebidos notando em cada hum a folha do livro em que foi registrado

Art 107 Findos os prazos estabelecidos para o registro os exemplares emmassados se conservaratildeo no Archivo das Parochias e os livros de registro seratildeo remettidos ao Delegado do Director Geral das Terras Publicas da Provincia respectiva para em

24

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

vista delles formar o registro geral das terras possuidas na Provincia do qual se enviaraacute copia ao supradito Director para a organisaccedilatildeo do registro geral das terras possuidas no Imperio

O registro da Lei n 601 de 1850 pelo regulamento de 1854 natildeo tinha finalidade puramente estatiacutestica mas visava a legalizar a situaccedilatildeo de fato das posses que se multiplicaram nos trecircs seacuteculos anteriores Assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinaacuterio n 80416 Goiaacutes pela 1ordf Turma Nas palavras do relator Ministro Cunha Peixoto

ldquoNatildeo creio que o registro do vigaacuterio do Regulamento de 1854 tivesse finalidades puramente estatiacutesticas Provendo o cumprimento da Lei n 601 de 1850 esta e ele satildeo dois textos dos mais saacutebios e realiacutesticos nas circunstacircncias da eacutepoca tendo em vista as circunstacircncias histoacutericas em que se desenvolveu nos trecircs seacuteculos anteriores o parcelamento das terras puacuteblicas com ostensiva toleracircncia da Coroa Esta sensatamente punha acima das magras vendas realengas o interesse do povoamento e do aproveitamento do paiacutes imenso e baacuterbaro E assim se fez o Brasil atual Atribuo pois agrave Lei de 1850 e ao regulamento do vigaacuterio (1854) efeitos de consolidaccedilatildeo das posses que bem ou mal foram tomadas em terras agraves proviacutenciasrdquo

Portanto em conclusatildeo o chamado registro do vigaacuterio tinha uma caracteriacutestica francamente notarial ndash natildeo registral O tabeliatildeo-vigaacuterio tinha incumbecircncias precisas e os dados por ele coletado comporiam um livro de registro que seria posteriormente encaminhado para uma Diretoria-Geral das Terras Puacuteblicas para a constituiccedilatildeo do registro geral das terras possuiacutedas do Impeacuterio quedando unicamente sob sua guarda os exemplares emaccedilados

Concluindo o Registro do Vigaacuterio natildeo pode ser considerado o avito do Registro de Imoacuteveis Os antecedentes do moderno sistema registral paacutetrio deita suas raiacutezes no Decreto 482 de 17 de novembro de 1846

Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Em fins do seacuteculo XIX gestavam-se os irmatildeos siameses da gestatildeo agraacuteria o cadastro e o registro Muitos indiacutecios podem ser recolhidos da necessidade sentida de demarcaccedilatildeo de terras e constituiccedilatildeo de cadastros puacuteblicos para albergar esses dados Mas natildeo se daraacute a absorccedilatildeo de um sistema ndash registral hipotecaacuterio ndash pelo outro ndash cadastro

Esse de fato seraacute o cenaacuterio ateacute que essas fortes tendecircncias se encontrem mais agrave frente com a reforma de Nabuco de 1864 em que o tema da interconexatildeo do cadastro e registro seraacute agitado Ainda assim o Brasil seraacute considerado falto de uma infra-estrutura adequada para emular o sistema tudesco referecircncia que sempre foi o tormento do legislador decimonocircmico consistente na interconexatildeo entre o registro juriacutedico e o cadastro

Quando se buscam as fontes ndash principalmente escrituras puacuteblicas cartas de datas e sesmarias ndash vecirc-se claramente que as descriccedilotildees satildeo meramente referenciais As conquistas

25

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

da cartografia do seacuteculo XVIII e as teacutecnicas de geodeacutesia ndash tatildeo bem utilizadas no cadastro napoleocircnico ndash seriam simplesmente desprezadas Descartadas por pura desnecessidade

Veja por outro lado que a lei hipotecaacuteria de 1846 daacute uma importacircncia minuacutescula agrave ldquoespecialidade objetivardquo O indicador real eacute simplesmente referencial Vejamos a literalidade do artigo 22 do regulamento de 1846

ldquoOs Tabelliatildees do Registro geral das hypothecas satildeo obrigados a ter os seguintes Livros () 3ordm O Livro indice escripturado por ordem alphabetica e por foacuterma que facilite sem equivoco o conhecimento de todos os bens hypothecados que se acharem registrados no seu Cartoriordquo

Claro estaacute que o registro hipotecaacuterio preocupa-se essencialmente com a especialidade dos direitos envolvidos a questatildeo da demarcaccedilatildeo e precisa determinaccedilatildeo dos imoacuteveis isso eacute proacuteprio de outra instituiccedilatildeo o cadastro

Eacute recorrente em nossa comunidade de estudiosos de Direito registral a utilizaccedilatildeo pouco teacutecnica da expressatildeo cadastro real como sinocircnima de foacutelio real de matriacutecula

Nada mais incorreto

O cadastro eacute um inventaacuterio puacuteblico de dados metodicamente organizados concernentes a parcelas territoriais dentro de certo paiacutes ou distrito baseado no levantamento de seus limites Essa eacute a definiccedilatildeo da Federaccedilatildeo Internacional de Geocircmetras (FIG)

Jaacute o registro diferentemente e coerentemente com sua histoacuteria eacute uma instituiccedilatildeo juriacutedica encarregada de prover publicidade autenticidade seguranccedila e eficaacutecia do negoacutecio juriacutedico A questatildeo da determinaccedilatildeo fiacutesica e situaccedilatildeo do imoacutevel ocorre em suporte entre outras agrave atividade registral que se distingue e contrapotildee claramente em relaccedilatildeo ao cadastro

Essa a razatildeo pela qual onde haacute cadastro e registro num uacutenico oacutergatildeo a tendecircncia eacute que as duas cabeccedilas queiram se separar uma vez que satildeo atividades muito singulares embora interdependentes

Uso a metaacutefora dos irmatildeos siameses da gestatildeo territorial para ilustrar a situaccedilatildeo de indefiniccedilatildeo institucional Ambas manejam o mesmo objeto O objeto do cadastro eacute o imoacutevel e o objeto dos direitos reais ndash registro de imoacuteveis ndash tambeacutem eacute o imoacutevel Mas a loacutegica organizativa e as informaccedilotildees e referecircncias que apresentam satildeo distintas O cadastro e o registro se inter-relacionam De um lado temos a descriccedilatildeo e situaccedilatildeo fiacutesicas dos bens perfeitamente apuradas de outro temos o registro cuja missatildeo essencial eacute a determinaccedilatildeo da situaccedilatildeo juriacutedica dos bens e a assinalaccedilatildeo de direitos Isso permite a gestatildeo territorial

Segundo o professor JUumlRGEN PHILIPS da Universidade Federal de Santa Catarina em declaraccedilatildeo verbal recolhida por mim ldquocadastro e registro respondem a consultas

26

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

distintas O registro responde agraves perguntas lsquoquem eacute o proprietaacuteriorsquo e lsquocomo o imoacutevel foi adquiridorsquo ao passo que o cadastro responde agraves questotildees lsquoonde o imoacutevel estaacute localizadorsquo e lsquoquanto medersquordquo

Para se ter uma ideacuteia da importacircncia dessas distinccedilotildees nas reuniotildees com o Incra e com o Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio o Banco Interamericano de Desenvolvimento BID que era a agecircncia internacional financiadora de parte de um projeto de georreferenciamento de imoacuteveis rurais defendeu enfaticamente o registro de direitos entendendo que os investimentos estrangeiros natildeo deveriam ser canalizados exclusivamente para a constituiccedilatildeo do cadastro faltaria a contraparte essencial que eacute justamente o registro de direitos

Eacute impossiacutevel pensar em gestatildeo territorial sem que haja assinalaccedilatildeo dos direitos reais que soacute o registro de imoacuteveis pode fazer no Brasil A perfeita compreensatildeo dessas duas instituiccedilotildees ndash cadastro e registro ndash foi se tornando clara Uma instituiccedilatildeo natildeo haveria de suplantar ou absorver a outra elas devem estar relacionadas Eacute que a coordenaccedilatildeo do cadastro com o registro eacute um antigo anelo do legislador paacutetrio

A interconexatildeo do registro com o cadastro que ficou nas intenccedilotildees confessas do legislador de 1916 agora encontra um momento propiacutecio de renovaccedilatildeo dos mesmos termos e desafios enfrentados laacute atraacutes desde as propostas originais de Nabuco A verdade eacute que prevaleceu ateacute aqui lamentavelmente uma visatildeo que debilitou a eficaacutecia do registro calcada na criacutetica aceacuterrima perpetrada por SORIANO NETO em sua conhecida obra ndash a Publicidade material do registro immobiliaacuterio efeitos da transcripccedilatildeo editada em 1940 malgrado o fato de que a criacutetica de SORIANO tenha sido refutada por uma pletora de juristas como PHILADELFO AZEVEDO SERPA LOPES LYSIPPO GARCIA entre outros

O sistema alematildeo de registro natildeo se desenvolveu a contento no Brasil por causa das deficiecircncias que tiacutenhamos na contraparte do sistema que era justamente o cadastro Natildeo investimos no cadastro como por imperiosas razotildees econocircmicas haviacuteamos investido no registro hipotecaacuterio

O registro cumpriu satisfatoriamente sua missatildeo independentemente da existecircncia de um suporte cadastral Aliaacutes essa eacute a tese de PHILADELFO AZEVEDO

Vale a pena ler o conjunto de sua obra Pense no seguinte Se o registro apesar dessa carecircncia foi mantido ateacute agora cumpridos longos 160 anos eacute porque o saldo eacute positivo fosse de outra maneira e o registro seria simplesmente descartado O mercado erigiria outro mecanismo de publicidade das situaccedilotildees juriacutedicas em seu lugar Eacute preciso enxergar devidamente a importacircncia relativa do cadastro para natildeo cairmos na tentadora tese de que o cadastro eacute condiccedilatildeo essencial para o registro Tanto natildeo eacute assim que sobrevivemos agrave sua falta por longo tempo E o advento da lei 102672001 se de um lado deve ser saudada como um importante avanccedilo de outro natildeo pode se constituir em embaraccedilo agrave livre circulaccedilatildeo dos bens impondo obstaacuteculos agrave consagraccedilatildeo e assinalaccedilatildeo de direitos

27

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial

Mas vamos enxergar em perspectiva O processo de registro era muito complexo A dinacircmica nas transaccedilotildees imobiliaacuterias com incremento dos registros ndash fato que ocorreu paralelamente ao processo de urbanizaccedilatildeo do paiacutes ndash trouxe a necessidade de aperfeiccediloamento tecnoloacutegico do registro e isso motivou a mudanccedila do sistema inspirado nos modelos que vinham sendo discutidos em foacuteruns internacionais especialmente apoacutes a fundaccedilatildeo do Cinder Centro Internacional de Direito Registral em 1972 na cidade Buenos Aires

A ruptura com o modelo dos antigos livros fundiaacuterios veio com a lei 6015 de 1973 que entrou em vigor em 1976 Houve o aperfeiccediloamento teacutecnico com a criaccedilatildeo do foacutelio real em que cada matriacutecula corresponderia a um imoacutevel e cada imoacutevel a uma matriacutecula Com o advento da matriacutecula tivemos algumas vantagens

1) A obrigatoriedade da matriacutecula para cada transaccedilatildeo imobiliaacuteria A lei foi saacutebia houve um ponto de partida para a migraccedilatildeo de dados dos livros fundiaacuterios para um novo suporte que eacute a matriacutecula Natildeo houve um cronograma riacutegido para a completude do ciacuterculo ateacute hoje haacute imoacuteveis registrados no modelo anterior

2) Exigecircncia legal de especialidade imobiliaacuteria objetiva e subjetiva Objetiva no que diz respeito agrave determinaccedilatildeo do bem e subjetiva em relaccedilatildeo agraves pessoas envolvidas nas transaccedilotildees Pode-se falar ateacute em especialidade do direito especialidade do tiacutetulo e de toda a complexa estrutura que mobiliza o registro

3) Concentraccedilatildeo da informaccedilatildeo sobre a situaccedilatildeo juriacutedica do imoacutevel Com a matriacutecula passou a imperar o princiacutepio da inscriccedilatildeo que atraiu para a folha do imoacutevel todas as vicissitudes juriacutedicas que direta ou indiretamente estivessem relacionadas com o imoacutevel ndash direitos pessoas titulares daqueles direitos ocircnus restriccedilotildees legais administrativas convencionais etc

Houve portanto uma clarificaccedilatildeo da informaccedilatildeo registral e uma seguranccedila ampliada Ou seja a matriacutecula preparou o caminho das amplas reformas que hoje experimentamos

Visto em perspectiva quase chego a afirmar que a matriacutecula estava preparando o caminho para chegarmos ao momento da lei 10267 em que o ciclo se vai completar finalmente com a interconexatildeo do registro com o cadastro agora com o apoio de um cadastro estruturado

Seacutergio Jacomino eacute registrador imobiliaacuterio em Satildeo Paulo doutor em Direito e Presidente do Instituto de Registro Imobiliaacuterio do Brasil

28

  • Publicidade possessoacuteria e descriccedilotildees lacunosas
  • Modelo colonial e a ablaqueaccedilatildeo de terras
  • Registro do vigaacuterio ndash o antecessor do registro imobiliaacuterio
  • Registro hipotecaacuterio uma anaacutelise econocircmica do direito
  • No iniacutecio era a hipotecahellip
  • A bela palavra cartoacuterio
  • O paccedilo dos tabeliatildees e a casa deputada
  • Corregedoria dos tabeliatildees (mas tambeacutem dos juiacutezes)
  • A Lei de terras de 1850
  • Cadastro e registro ndash os irmatildeos siameses da gestatildeo territorial