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caderno 003 - viamagia.org · É exatamente isso o que acontece hoje com muitas pedras, com muitos museus, porque agora é somente turístico, e para pequenos grupos é interessante

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Peter Friese, no debate Democracia,

Educação e Participação Cultural

“É viver o seu sonho de realmente ser o ator, ser

o criador, ser aquilo que for. E dessa maneira, os

educadores sociais desempenham um papel

importante, seja como for que você os chame no

resto do mundo, na criação de uma cena, um estado

de espírito, um lugar onde as pessoas com quem

trabalhamos tiveram a oportunidade de ser a

estrela. Uma vez na vida e, talvez, durante o resto

de suas vidas. E pode imaginar o quanto elas

crescem com esse trabalho? Acho que você pode.

Gosto dos sorrisos.”

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“A tentativa de fazer prevalecer uma verdade universal (uma

maneira universal de descobrir a verdade) tem dado origem

a catástrofes no domínio social e a formalismos sem

conteúdo. A melhor educação consiste na imunização das

pessoas contra tentativas sistemáticas de educação”, já dizia

Paul Feyerabend. Como desenvolver uma postura criativa

diante do jogo cada vez mais intenso entre formas

hegemônicas de sistematização da educação e as possíveis

resistências mobilizadas como respostas a elas? Como não

ser meramente reativo, absorvendo os traços do

antagonista? Como desemperrar os mecanismos capazes

de acionar as transformações necessárias? Afinal de contas,

que Educação imunizadora é essa que precisamos inventar

e aprender com a maior agilidade possível, e que convoque

para seu lado, a ciência, a tecnologia, a arte, a utopia

reinventada e a solidariedade?

“a luz apagou,”

“ sua biblioteca,sua lavra de ouro,”

Conhecimento, Educação e Solidariedade:

Dimensões Culturais de um Novo Tempo.

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Venho da nacionalidade Shuar, do Equador, aos que, na

intromissão, no ingresso do mundo ocidental, a nossa nação

nos chamaram “jíbaros”. Os estudiosos... bom, eu agora

sou do grupo dos estudiosos; plenamente hoje estamos

compartilhando uma mesa e escutando diferentes pontos

de vista reflexivos, a análise profunda de estudiosas

antropólogas, e pois, em vista de todo esse processo de

estudos e pesquisas que nos foram submetidas

historicamente, vou falar sobre a própria experiência da minha

nação, meu povo. Nós não nos identificamos como grupo

étnico, nos identificamos como uma nação, com uma língua,

com uma cultura, com uma dimensão que está

transcendendo os milênios e também o século atual no que

estamos. Dentro deste processo, a nacionalidade Shuar,

desde fins de 1800, organizamos nossa própria definição

de princípios fundamentais para poder enfrentar aos

diferentes grupos e, por que não, aos diferentes programas

de vida de outras culturas. Estou de acordo com meu colega

que estava mencionando que muitas vezes as definições

das pesquisas políticas, pesquisas científicas, definições de

estudos superiores, em outras dimensões não é tudo para

as populações indígenas. Pode-se ver muita diferença entre

os diferentes mundos dentro do mesmo terreno. Por isso

posso manifestar que este grupo ao que eu pertenço foi um

grupo que permanece resistindo à exploração e a exploração

dos colonizadores, ou dos colonizadores daquele tempo, e

hoje nós nos organizamos plenamente para ter nossos

próprios princípios, para fazer conhecer ao mundo e que o

mundo possa respeitar nossa identidade, possa respeitar

nossos princípios e possa respeitar nossos direitos. Como

se conseguiu, como viemos lidando com esses projetos?

Existem diferentes vias para aceder, para avançar nesses

processos. De tal maneira que, faz 45 anos, nós nos

organizamos. Eu tenho 34 anos e meu avô, que não fala

espanhol – nós costumamos dizer: não preciso conhecer o

idioma para conhecer a linguagem do sentimento -, meus

ancestrais, falando da geração dos meus avós, se

prepararam, se organizaram e difundiram de uma forma oral.

Antes de continuar vou dizer como foi esse processo

ancestral para a comunicação oral. E aqui vou fazer um

pequeno exemplo do que me contavam meus avós quanto

eu era criança.

Havia uma grande revolução de pensamentos e de

conhecimentos e de reconhecimento ao descobrir que o

ser humano estava dotado de muitos poderes. Era em

alguma época da fundação da Terra. Nesse dia havia muitos

sábios, havia muitos homens e mulheres que sabiam muito,

e todos tinham razão, como hoje todos temos razões. De

alguma forma, todas válidas. Mas definitivamente nessa

reunião ancestral naquela época havia muitos sábios, como

aqui há muitos sábios, e se perguntavam, porque havia uma

ameaça de um pensamento que se pensava superior naquela

época, e os Shuar e outros grupos ali reunidos preocupados

se perguntavam: como vamos conservar este pensamento

para que seja autêntico depois de milhares e milhares de

anos?, como podemos proteger este pensamento humano,

este sentimento de valores e princípios? E todos se olhavam:

o que vamos fazer? Saiu um homem e disse:

– Vamos escrever, vamos escreve todo este pensamento e

o vamos a conservar. Havia um sábio – era um sábio Shuar,

diz nossa lenda – que ele disse:

– Não, o papel pode apodrecer, pode rasgar-se, não pode

permanecer e transcender a milhões de anos – e a proposta

foi rejeitada. E saiu outro homem que disse:

“não preciso conhecer o idioma para conhecer a linguagem do

sentimento”

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– Vamos escrever nas pedras.

O homem sábio Shuar disse:

– Não, porque viria a ser só uma imagem para os olhos e

não para os sentimentos.

É exatamente isso o que acontece hoje com muitas pedras,

com muitos museus, porque agora é somente turístico, e

para pequenos grupos é interessante saber o que acontece

com essa época ancestral. Isso no mundo da arqueologia,

etnologia e a biologia, podemos compartilhar esses

conhecimentos (porque sou antropólogo).

Dentro dessa reunião havia outra pergunta, que foi feita por

uma muito sábia mulher. Ela disse:

– Então nos tatuaremos – e ali em sentimento da tatuagem,

dos homens e mulheres, que hoje não deixa de ser moda.

Essa mulher propôs fazer tatuagens no rosto para não se

esquecer dessas ciências tão importantes das que hoje

estamos falando. Olha, não é mais que moda. Também foi

rejeitada porque se disse:

– Não se pode escrever tudo no rosto – verdadeiramente,

não se pode escrever. Então todos se perguntavam, pois, o

que vamos fazer com tudo isto, com toda esta riqueza?

Porque em algum momento vamos perdê-la. Então esse

homem respondeu:

– Vamos a conservá-la em três lugares especiais, onde

ninguém pode explorar nem explodir, onde um poder do

império do ser humano não possa transcender para

conhecer, para explorar, e este é o primeiro, vamos guardá-

la no sentimento; segundo vamos guardá-lo no pensamento;

terceiro, vamos guardá-lo nos sonhos, no universo, a energia.

Todos aplaudiram essa idéia. A cultura Shuar, então, foi

transcrita nesses três espaço e nós hoje podemos perceber,

podemos sentir e temos cada dia a necessidade de seguir

vivendo essa reunião ancestral, porque sim a guardaram

dentro de nós, dentro de nossos princípios. Para muitos

povos e para muita gente estudiosa isto é só um mito, uma

palavra de contos passados. Mas nós, alguns grupos que

estamos mantendo esta firmeza diante dos diferentes grupos

que estão se desenvolvendo entre si, podemos visualizar e

podemos neutralizar, mostrando nossa capacidade, nosso

talento, que não necessariamente tenho que enfiar na minha

cabeça 50, 100 livros para reconhecer minha identidade,

não é necessário fazer um estudo de 50 anos para ser sábio,

como dizia meu avô quando nós éramos pequenos, porque

sábios também são as crianças, porque podem fazer

modelos criativos; então não é necessário ser velho de cabelo

branco para ter estes conhecimentos.

Em todo esse processo de uma profunda pesquisa, nossa

nação, nossos estudos ancestrais e nossa análise, nossa

visualização ao mundo, no que estamos nos educando nesta

sociedade, sem algum rumo conhecido, nós nos

preparamos, e creio que para isso suficiente é a posição

política dos povos amazônicos no Equador. A nacionalidade

Shuar faz 45 anos começou a formar grupos de política

organizacional para enfrentar as diferentes problemáticas

sociais e políticas.

Dentro disso, sempre estivemos pendentes, sempre

estaremos pendentes. E, ainda que pareça um pouco

escandaloso estudar os ossos dos meus avós, as pedras

das minhas avós, estamos um pouco preocupados em olhar

como a ciência avança e nos colocam outros nomes. Tenho

aqui um estudo arqueológico que foi feito no meu país por

“como vamos conservar este pensamento para que seja autêntico

depois de milhares e milhares de anos?”

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um famoso cientista francês, arqueólogo, faz uma semana

estivemos em debate em Paris, onde as definições, onde

os representados – não sou contrário ao que disse a

companheira dos Estados Unidos – mas os que representam

aos representados também cometem uma infração, uma

equivocação muito grave, porque tiram sua identidade, e

isto a ciência deve conhecer e reconhecer que não somente

se pode definir com um estudo sistematizado, porque deve

existir a participação das pessoas no terreno. É assim como

nós propusemos à Universidade de Paris, seção de

Arqueologia e Antropologia. Fazer um estudo eqüitativo, mas

juntos, onde os índios podemos ter nossa visão, estudo no

que as definições devem ser compartilhadas, onde não deve

ser acelerado nem exagerado em termos científicos. Porque

se conhece que algum pequeno erro dos estudos científicos

avançados é um grave erro para a extinção e uma ameaça

para muitas massas das sociedades indígenas no mundo.

Diante disso, e diante da análise que nós temos realizado,

porque os Shuar há 15 anos vimos viajando para mais de

38 países no mundo, para examinar os comportamentos

dos professores, o comportamento dos estudantes, o

comportamento científico, o avanço da sistematização

geopolítica, o avanço das diferentes dimensões do monopólio

sistematizado, que de alguma forma trata de extinguir e

desaparecer. Aparentemente, coexistem leis que podem

proteger, como a UNESCO, como as Nações Unidas, como

outras políticas de Estado em cada país, certamente

garantem uma parte, mas a grande parte não está garantida.

Esta preocupação massificada ao redor do mundo é mais,

porque o que estou falando é a casca. Hoje vou entrar na

medula deste tema. É muito importante que a visualização

com a ótica científica não podemos definir... porque estive

em várias universidades estudando, e sigo compartilhando

várias universidades européias, e posso definir como Shuar,

como índio, que não basta um estudo científico, que não

basta uma contribuição. Chega de seguir sendo estudados,

ou basta de seguir sendo representados.

Nesta área tão diferenciada, tão diferente como é a sociedade

latino-americana, africana, européia, é muito importante ter

bases fundamentais, porque ainda que os índios, refiro-me

a vários grupos do meu país em especial, pareçamos

pobrezinhos – e muitas vezes quando estou viajando pelo

mundo nos dizem “pobrezinho do índio”, mas eu lhes digo

“que pena para o senhor, porque eu sou muito rico” -, sou

muito rico porque a ciência eu não a compro, porque não

vou comprar uma ciência, porque a tenho de uma forma

espiritual e oral, e a tenho no meu sentimento. Desta maneira

nós podemos considerar e continuamos considerando-a,

dentro de uma constituição como na do Equador, no artigo

81, apresentamos e continuamos apresentamos mudanças

políticas e sociais, e transcender com nossa originalidade,

porque a identidade sem a originalidade passa a ser outra

identidade, descobre-se outra identidade e quando se

descobre uma nova identidade são precisos centenas e

milhares de anos para ter bases, e hoje muitos grupos, os

jovens em especial.... hoje escutei uma conferencia de um

expositor mexicano, neste mundo globalizado existe grande

preocupação pela juventude, porque estão sendo

descobertas novas identidades, e isso causa, repercute,

grandes impactos à sociedade no mundo. Como nós

podemos lidar com estes diferentes problemas? Dificilmente

pode-se mudar quando estamos falando que no nosso

coração, que no espírito e no poder está a informática e a

economia política. Dificilmente podemos dizer palavras

“não necessariamente tenho que enfiar na minha cabeça 50, 100

livros para reconhecer minha identidade, não é necessário fazer

um estudo de 50 anos para ser sábio”

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doces, dificilmente podemos ter índios estudiosos para a

reação dos povos. Repito as palavras do meu avô, que dizia:

nenhuma ciência, nenhum poder do homem sobre a Terra

pode construir o mal que faz a outro homem.

Com estes princípios nós estamos muito conscientes que é

fundamental trabalhar com os elementos da ciência, utilizar

a ciência, porque o ser humano não deve ser utilizado pela

ciência, não pode ser util izado pelos princípios

desconhecidos. Nós temos que ir com princípios

fundamentais de acordo às diferentes sociedades culturais

– caso é assim que o chamemos, “culturalmente”, para

nós existe outra palavra diferente que a cultura –, a

identificação e o reconhecimento dos princípios e valores

humanos. Diante desta diversidade, diante desta confusão,

diante destas tormentas de estudos que existem ao redor

do mundo, nós podemos provar, e nossa Universidade de

Ciências Ancestrais o provou, que os estudos atuais,

monopolizados, simplesmente transcendem a ser, como

descobrimos, mais um sonho comercial: eu estudo para

que, você estuda para que, nós estudamos para que, aonde

vão nos conduzir com estes caminhos, qual é o projeto final

da humanidade. Nossos sonhos, nossos princípios são

transcender que a população humana, diante a tudo o que

está acontecendo ao redor do mundo, permaneçamos

autênticos, ainda que permanecer não significa dizer “bom,

vou viver com minhas roupas típicas todo o tempo”, ainda

que possamos fazê-lo, porque é muito certo. No modelo da

preparação dos anos 78, uma professora de ciências

ancestrais, que era minha avó, dizia: “Meu filho, você não

precisa se transformar fisicamente, você não precisa dos

recursos que outros povos têm, porque você tem que ser

respeitoso, somente aprender a entender e respeitar, e bem

utiliza os outros princípios para que você possa caminhar

melhor”. Dizia uma velha avó que hoje mora em cada um

dos estudantes da universidade. É muito curioso que nós

aprendamos as lições; os efeitos negativos dos diferentes

estudos e dos poderes políticos governamentais já foram

dados. Não é o momento de que fiquemos tristes, não é

momento de fazer ações contra os corpos humanos ou dos

grupos organizados. É o momento hoje racionalmente de

fazer ações, de ter apoios, de ter um conhecimento para

poder contribuir com a sociedade.

Desta maneira, a Universidade de Ciências Ancestrais,

examinado todos os pormenores, estamos tratando de

contribuir. Contribuir para a ciência, aportar para outros

grupos, sobre as valorizações, sobre a identidade, sobre o

conhecimento, sobre a exploração do pensamento. Porque

nos é suficiente estudar, explorar. É importante explorar os

diferentes setores das diferentes culturas no mundo.

Tomando decisões muito concretas, nossa universidade

segue desenvolvendo estes elementos importantes, estes

grupos importantes, para que no futuro sigam manifestando-

se e podamos trabalhar e fazer entender aos governos que

a identidade é muito importante, como estamos fazendo no

Equador. E ainda que pareça polêmico para a imprensa e

para outras visões, nós continuamos permanecendo intactos.

A propósito, quando digo intactos, muito naturais, muito

originais, muito ancestrais, muitas vezes nos dizem que este

é um pensamento primitivo. Sim, possivelmente possa

parecer primitivo, mas a palavra “primitivo” é dos primeiros

homens, então, e isto não posso mudar, isto não pode mudar

os princípios da nação que eu represento. Finalmente, a

participação para nós diante de toda esta problemática é

contribuir para as soluções, porque não vamos causar mais

“Basta de seguir sendo estudados, ou basta de seguir sendo

representados”

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problemas dos que já existem. Vamos contribuir, estamos

contribuindo e viemos contribuindo para nosso país e

esperamos abrir fronteiras. Falamos com alguns grupos do

Peru e da Bolívia para identificar propostas frente aos

diferentes organismos e também aos diferentes espaços

de estudo científico nos diferentes espaços do mundo. Este

processo, termino dizendo, é muito curioso para nós e

seguimos avançando muito devagar, é muito complicado

ter estes princípios.

Além de tudo quero centrar na grande preocupação dos

grandes estudiosos no mundo. Hoje temos duas dúzias de

contatos com universidades muito avançadas

cientificamente, tanto como na Europa em geral – falo de

cinco países especialmente -, onde o chmanismo está na

moda, por exemplo. A grande preocupação e a expectativa

que nos causou durante treze anos de estudo é que o

homem vai percebendo, vai identificando a necessidade de

uma complementação. Então aqui já não podemos acusar

ninguém, porque não precisamos, a sociedade humana em

si precisa complementar-se. Por piores que pareçam as

ações de uns grupos, devemos utilizá-las de forma benéfica.

Neste sentido, os chamanes da Europa estão correndo para

buscar os chamanes amazônicos, por exemplo. Refiro-me

à Amazônia do Equador até o Brasil. E eu me faço uma

pergunta: Por que esses chamanes são buscados, se são

homens primitivos, não sabem ler nem escrever, não têm

grandes textos? Mas de maneira especial, oralmente e

espiritualmente, a transmissão de uma educação ancestral

mediante plantas sagradas é real e estão ali as respostas a

muitas perguntas. E este exemplo fez que muitos estudiosos

descubram a outra parte da necessidade do complemento

do ser humano.

Então, aqui estamos sendo representados, de alguma forma

representados e nos representamos, mas consideramos

essa representação não eqüitativa pela falta de conhecimento

e reconhecimento, e pela falta de identidade e respeito. Há

algo neste século, estamos definindo junto ao Conselho de

Sábios da Universidade de Ciências Ancestrais, que é muito

preocupante e descobrimos um espaço muito grande que

causa muito dilema, no qual os índios não passam de moda,

tudo não passa de moda, o famoso Pelé, que jogava futebol,

já passou de moda, Maradona já passou de moda, os índios

ainda continuam na moda. Na Europa, nos Estados Unidos,

na Ásia, continuam na moda. A pergunta que estamos

elaborando agora para uma resposta positiva é por que é

necessário: É porque há elementos vivos, a transmissão da

comunicação é ativa, precisamos de nós plenamente.

Por isso, devo manifestar que a sociedade em si, os

estudiosos dos diferentes grupos humanos de todas as cores

temos que sustentar mais que um Fórum Cultural Mundial,

uma firme determinação de nossos terrenos, de nossos

princípios, identificar-nos como tal e descobrir nossas

verdadeiras fronteiras para eliminar o egoísmo, o monopólio

do poder, porque o poder verdadeiramente está nos povos

e não num governo. A responsabilidade da mudança muitas

vezes não está nos papéis, são reações e ações, nas quais

estamos convencidos que a pesar de que existe uma série

de estudos, que nós não rejeitamos, respeitamos e os

tratamos é melhor utilizar esta avançada ciência que se

efetuou durante muitos anos. Mas sim somos contrários à

exploração de diferentes identidades, exploração dos

conhecimentos e a erradicação destas ciências,

transformados em livros, em filmes, com um interesse e

com fins que não beneficiam a muitos povos. Porque desde

“Dificilmente pode-se mudar quando nós estamos falando que no

nosso coração, que no espírito e no poder está a informática e a

economia política”

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o ano de 1823 a 1915 fizeram uma série de estudos da

minha nacionalidade, do meu povo, nos quais primeiro nos

definiram como “jíbaros selvagens” e quem eram? Eram

etnólogos. Na segunda época nos definiram “selvagens

civilizados”. No ano de 1986 nos disseram “os índios têm

capacidade” e fomos convocados para vários congressos

organizacionais na Europa. Em 1995 demonstramos a

capacidade organizacional e informamos ao mundo que nós

temos uma posição, uma visão muito frontal, muito direta,

sem temor algum, porque para nossa nação não existe algum

temor, um poder que me cause medo, um projeto que me

atemorize, ainda que hoje haja muitos projetos do sistema

global que nos preocupam muito. De todas as preocupações

nós estamos solidamente pensando que vamos seguir

desenvolvendo para ser parte da solução da humanidade,

das problemáticas sociais, culturais, e ter os melhores

encontros para o entendimento do mundo. Espero, sou

otimista, que depois deste encontro se dêem outros

encontros, com outras características e que se siga não

criando modelos, quero dizer de uma forma especial, porque

criar modelos sem perceber os impactos que eles vão gerar

depois de 50, 100 anos. Não podemos pensar em modelos,

pensemos nos princípios e os valores reais e quando

tenhamos que transcrever, assinar, adjudicar, apresentar,

levemos em conta a consulta aos povos nos terrenos, nas

bases.

Senhoras e senhores, recebam uma saudação fraternal da

nacionalidade Shuar, dos chefes que estão na minha

comunidade, quem – como mensageiro deste povo tenho

que dizer-lhes – têm um pensamento muito definido, muito

espiritual, muito humano, no que é importante que nos

entendamos. Eles me enviaram, eles me prepararam. Não

represento a nenhuma universidade, nada mais que minha

nação, com esta visão, estes objetivos, para que sejamos

mais humanos, para que nos entendamos e para que

sejamos mais irmãos. Muito obrigado.

Tzamarenda Naychapi, no debate

Procurando Uma Identidade

“Nossos sonhos, nossos princípios são transcender que a

população humana, frente a tudo que está acontecendo ao redor

do mundo, permaneçamos autênticos”

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Andrés Büllows, no debate O Papel da

Cultura e das Artes em Programas de

Desenvolvimento

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A drástica transformação de uma sociedade industrial para

uma sociedade da informação é freqüentemente comparada

à transição da sociedade agrícola para sociedade industrial

no século 19. Da mesma forma em que as mudanças nos

métodos e prioridades de produção tiveram um impacto

em todos os aspectos da sociedade no passado, a adoção

das tecnologias da informação e da comunicação alterou

fundamentalmente os lares, os negócios e as economias

da atualidade. Essas mudanças, tanto hoje quanto no

passado, parecem evocar sentimentos mistos: de um medo

bem fundamentado, porém também acompanhado de

euforia. O movimento em direção à expansão econômica

também é radical, assim como um entendimento modificado

do papel do Estado, da administração e de seus cidadãos.

Assim como anteriormente, conforme ocorrem as mudanças

em direção a uma sociedade da informação, a arte e a cultura

desempenham um papel decisivo. O desenvolvimento da

arte e da cultura tem sido sempre em estreita interação

com o potencial tecnológico e com as novas formas de

difusão. (…)

A arte e a cultura estão ativamente envolvidas na

transformação da sociedade – desde o setor de serviços

até o setor do conhecimento – atuando, em grande medida,

como “entregas de conteúdo” para a sociedade da

informação. (…)

A artes e a cultura não se separam da mudança social e

tecnológica, já que essa mudança constitui parte delas. Por

essa razão, elas apresentam um impacto no processo de

mudança, além de receberem o seu impacto. (…)

O apoio à arte e cultura é importante para a transição para

uma economia de conhecimento empresarial. A arte e a

cultura promovem a criatividade na população. Não são de

forma alguma elementos apenas decorativos. Nesse sentido,

os dispêndios em arte não deveriam ser vistos como um

consumo inútil, mas sim como um investimento de valor

incalculável no desenvolvimento da sociedade. (…)

A educação cultural é o pré-requisito para uma nova aptidão

educacional. Na educação cultural incluem-se as fortes

habilidades de leitura e mídia. A educação cultural confronta

pessoas com coisas com as quais elas não estão

acostumadas, abrindo assim as suas visões, enquanto são

simultaneamente divertidas. Essa é certamente uma das

melhores condições para um processo educacional de

sucesso.

Para que a arte e a cultura possam ocupar o lugar de

importância que vêm continuamente demandando, como

também observado nas declarações de princípios, é

fundamental que as instituições culturais e os artistas

trabalhem para promover publicamente a arte e a cultura, e

não apenas os principais eventos. Isso inclui todo o espectro

de instituições culturais: das escolas de arte e música a

bibliotecas em teatros e museus (...)

Os adultos freqüentemente fazem uma distinção entre aquilo

que é adequado para crianças e para eles mesmos. E os

empreendedores das políticas culturais são adultos também.

Quando falamos de cultura, as crianças são excluídas da

nossa discussão. Quando falamos de crianças, a cultura não

é levada em consideração.

(…) Nunca antes houve tantas razões para se apoiar a arte

para as crianças e para a juventude. Nunca antes um debate

educacional e político-cultural demonstrou tão fortemente a

necessidade da arte para crianças e para a juventude. (…)

“A arte e a cultura não se separam da mudança social e tecnológica”

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As crianças têm direito à arte e cultura, conforme acordado

entre os países contratantes no artigo três da convenção

sobre os direitos da criança das Nações Unidas. Esse artigo

se refere aos direitos da criança à plena participação na vida

cultural e artística, bem como acesso a oportunidades

adequadas para o desenvolvimento cultural e artístico. O

teatro infantil é, portanto, somente uma das realizações da

política cultural, que também inclui a política infantil e a política

educacional.

A questão sobre a criança e a arte parece tão incrivelmente

normal que às vezes me sinto como se fosse de um outro

planeta quando não quero fazer diferença entre adultos e

crianças. Quando quero tratar as crianças com seriedade,

minhas memórias de infância e minha experiência com

crianças me fazem lembrar que a forma como uma criança

brinca não é assim tão diferente da forma como um artista

atua. Acho que não devemos estabelecer uma diferença

entre arte para crianças e arte para adultos.

“Acho que não devemos estabelecer uma diferença entre arte para

crianças e arte para adultos”

Dessa forma, tanto a luz quanto a sombra são pertinentes,

já que fazem parte da vida. A questão não é fazer com que

os alunos sejam apresentados a Goethe, Schiller,

Shakespeare, Alessing e assim por diante na escola. A

educação é uma forma de apropriação do mundo e, portanto,

o teatro infantil deve se concentrar nas questões da criança.

Técnicas teatrais básicas podem ser ensinadas aos membros

da audiência, a habilidade de ser capaz de decodificar a

realidade do mundo de uma pessoa. O teatro poderia ser

um meio de ciência e simbolismo.

A arte vive da mutualidade, da observação mútua, da troca

mútua. A arte precisa do criador e da audiência. A arte é

sempre um encontro dos sentidos, das idéias, da busca de

significado. Portanto, a arte é sempre uma educação estética.

Wolfgang Schneider, no debate

Conhecimento, Educação e Solidariedade:

Dimensões de Um Novo Tempo

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Eu queria começar invocando os Bakulu Yê Bankisi Bawonso

Wiza Kweto Bana Kweto Nzila Kwa Banza Ye vova Ye Ngemba.

Eu estou dizendo que os nossos ancestrais e os Inkissi

cheguem até nós, pra nos dar caminho para pensarmos e

falarmos em paz.

Não vou fazer palestra. Vou conversar um pouco de mim

mesma. Meu texto, as referências bibliográficas estão em

mim mesma.

Eu estava ouvindo aí uma música. Antes tava dizendo, puxa,

por que não tem um samba? Como aquele que eu ouvi não

me lembro quando, acho que quando eu tive consciência

de mim, que diz assim:

“Foi agora que eu cheguei, dona.

Foi agora que eu cheguei, dona.

Eu venho lá do Engenho Velho, dona.

Mas foi agora que eu cheguei, dona.”

Pois é, meu referencial é de uma comunidade em Salvador

que é chamado de Engenho Velho da Federação. Foi lá que

eu aprendi a ser o que eu sou hoje. Foi lá que eu recebi os

valores para estar, para agir, para ser no mundo. O mundo

de ontem e o mundo de hoje. Foi lá que eu ouvi palavras

que só mais tarde eu vim a ter conhecimento, que eram

palavras africanas, que era parte do linguajar das pessoas.

Foi lá que eu aprendi que gêmeos se chama mabassa e não

benjamim.

Foi lá que eu aprendi até fazer política, sem saber que era

política. Nessa comunidade, que hoje já está urbanizada,

com universidades à sua volta, no tempo em que eu era

criança tinha muito mato. Eu pude ter o privilégio de aprender

um pouco, andando, brincando, colhendo coisas no mato.

Foi lá que eu aprendi a fazer tudo com o outro, com os

outros. E num tempo em que não tinha o progresso, a gente

era mais feliz porque a gente vivia dividindo tudo: alegrias,

tristezas, problemas, conflitos. E, entre a gente,

encontravámos solução pra tudo.

Foi lá que eu aprendi a colher plantas, a saber nomes de

plantas que eram usadas como remédio. Foi lá que, brincando

de boneca, eu aprendi a cuidar da casa, a cuidar de meus

irmãos menores. Foi lá que eu aprendi a rabiscar os meus

primeiro números, as minhas primeiras letras, numa pedra.

Não foi no caderno, não foi usando lápis. Era uma pedra e

um lápis de pedra com que a gente riscava e depois apagava.

Foi lá que eu aprendi, com os meus primeiros mestres, lições

que nenhuma universidade ensina. Lições que são lições de

vida, de viver, de compartilhar, de repartir, de dividir.

E é lá que hoje eu vivo. Há 60 anos e alguns meses eu vivo.

E, literalmente, tenho o meu umbigo lá enterrado, talvez,

pra muitos isso não signifique nada, mas pra mim, que

vivenciei um ritual do nascer, do receber alguém que vinha

para esse mundo de uma forma coletiva, a partir do próprio

seio da família, depois, entre a vizinhança, é um ritual de

bem-nascer. Um ritual de boa chegada. Um ritual de bênçãos

e que hoje já não se mais vê. E, de lá pra cá, fui

acompanhando o progresso da comunidade. E de lá pra cá,

tenho refletido, tenho observado, ou observado e refletido,

sobre as ações que acontecem, sobre o que somos, sobre

a nossa cultura. Porque cultura pra mim é tudo isso. Cultura

pra mim é você ser, é você fazer, é você crer, é você viver.

Cultura pra mim tem que estar ligado a tudo isso. É um jeito

que me foi ensinado. Um jeito com o qual eu aprendi e um

jeito que pesa sobre mim hoje, mesmo eu tendo saído pra

“a gente era mais feliz porque a gente vivia dividindo tudo (...)

cultura pra mim é tudo isso. Cultura pra mim é você ser, é você

fazer, é você crer, é você viver”

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outros lugares, vendo o Engenho Velho de fora, de fora de

Salvador, de fora da Bahia, de fora do Brasil. Eu sempre,

cada vez mais digo: o meu referencial é o Engenho Velho.

Mas foi precisamente, a partir da minha iniciação, da minha

entrada propriamente dita na religião do candomblé, que essas

reflexões se intensificaram. Porque, desde criança, eu sempre

convivi com esse mundo, eu sempre convivi com pessoas

ligadas à religião, iniciadas, e que a educação doméstica tinha

muito da educação que a gente encontra nas comunidades-

terreiros. Mas, uma vez sendo de dentro, sendo o sujeito

dessa prática religiosa, foi que eu vim a tomar cada vez mais

consciência da importância, da grande importância que isso

tem na vida da gente, na vida de quem pratica. Porque foi a

partir daí, na década de 70, que eu comecei a entender mais

aquele outro mundo em que eu estava entrando, participando.

Eu comecei a buscar alguma coisa que me explicasse, que

me dissesse mais sobre aquilo, sobre aquela prática que era

passada através da oralidade, era passada através dos

exemplos, era passada na vivência, não estava registrada

em livros. Mas eu sempre quis saber e busquei, busquei,

busquei e eu esbarrava sempre em alguns escritos que não

batiam com aquilo que eu vivia. Escritos saídos, na maioria

das vezes ou talvez totalmente, dos acadêmicos, da academia.

Falavam sobre nós. E ainda assim, tinha alguma coisa que

não se referia àquele mundo de coisas que eu vivenciava

naquele terreiro, que eu sou de um terreiro de nação Angola.

E, geralmente, quando a gente fala em religiosidade afro na

Bahia, todo mundo se reporta à cultura dos orixás, à

contribuição dos iorubás e, raramente, fala daquele povo

que veio do antigo Reino do Congo, de regiões, de lugares

que hoje são o país Angola. Pouco se reporta a isso.

Mas, na década de 80, um amigo meu, norte-americano,

chegou lá na Bahia. (...) E, quando eu comecei a conversar

com ele, ele disse “mas eu pensei que aqui só tivesse a

cultura iorubá”. E eu conversando mais, ele disse “eu vou

lhe mandar alguma coisa que é muito interessante você

ler”. E aí me cai nas mãos algum material de Fukial, um

mucongo que reside há mais de vinte anos em Boston. Mas

o material estava em quicongo e francês. (...) Precisei

recorrer ao dicionário, mas grande parte eu consegui

entender, talvez porque estava falando coisas que batiam

com coisas que tinham a ver comigo. E foi aí que eu descobri

toda a recriação, toda a reelaboração, toda reconstrução que

a gente fez aqui no Brasil das tradições, das religiosidades

de matrizes africanas. Coisas essenciais a gente mantinha.

E uma coisa muito importante: eu, lendo Fukial, me reportei

à minha infância. Que antes de entrar para o candomblé, eu

já tinha a noção da importância do Sol. Porque lá em casa

menino tem que acordar cedo pra ver o Sol nascer. Não se

dizia por que, mas era comum. Ah, o Sol está morrendo, se

tivesse deitado tem que levantar, porque o Sol está

morrendo. Quer dizer, o Sol está no poente. Não se dizia por

que, mas tinha que fazer. Meio-dia, Sol a pino, “entra!”. Está

brincando do lado de fora, “ó, venha pra varanda”. Quando

eu cheguei no candomblé, encontrei a mesma coisa. Mas

quando eu li Fukial foi que vi a importância dos quatro

momentos do Sol: o Sol nascendo, o Sol no zênite, o Sol se

pondo e o outro Sol é equivalente ao Sol do zênite, que é

isso aqui e que tem a ver com tudo, com toda uma

cosmovisão. Congo, que é o mussoni, amarelo; cala, o preto;

tucula, o vermelho; e o branco, o luvembá. E tudo passa por

aí, tudo segue esses quatro pontos.

“eu descobri toda a recriação, com toda a reelaboração, com toda

reconstrução que a gente fez aqui no Brasil das tradições, das

religiosidades de matrizes africanas”

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Na concepção, na visão de mundo deles, a formação do

mundo, a formação do ser humano, e tudo, tudo passa por

esses quatro pontos. Quer dizer, e a gente continua

mantendo isso nos terreiros e isso forma uma cruz. Às vezes,

no candomblé, eu dizia “ah, tudo é uma cruz”, porque esse

negócio de cruz, essa cruz eu associava à cruz cristã. E aí

eu fui descobrir que nossa cruz que nós temos no candomblé

não tem nada a ver com a cruz de Cristo. É muito anterior. É

a cruz justamente desses, da ligação desses quatro pontos.

O mussoni com tucula; o cala com o luvembá.

E aí, a questão da interação dos mundos. O mundo natural,

o mundo físico que a gente tem, que a gente vê. O mundo

imaterial, o mundo sobrenatural, que a gente não vê, mas

que está o tempo todo interagindo. E o mundo com pemba

abaixo, o mundo com o seki acima. E esse mundo abaixo

que é justamente o imaterial, espiritual, a raiz, o começo de

tudo, a ancestralidade.

E vem daí a importância do a gente se voltar pra baixo.

Porque é de baixo que vem a força. E eu viajei muito e eu

comecei a estabelecer as ligações com todas as recriações,

com todas as coisas fragmentadas que nós temos. Esse

jeito de perceber o mundo, de interagir com o mundo, de

valorizar o que a gente não vê, de valorizar os sonhos. E aí

eu me lembrava que, quando criança, às vezes, a vó Maria,

a parteira da família, que era muito ligada a nós e morava

numa casa que meus pais tinham construído pra ela,

perguntava assim “O que foi que você sonhou hoje?” Porque,

só depois eu vim a entender, adulta, que talvez, através de

meu sonho, vinha a mensagem que esses ancestrais

estavam deixando pra ela aquele dia.

E coisas assim. Mas o que eu quero é não fugir do que a

gente tem, da responsabilidade que está nos meus ombros,

da gente refletir hoje aqui. Mas tinha que falar isso, tinha que

contar um pouco dessa história pra me situar, pra vocês

entenderem de que lugar estou falando. Não sou

pesquisadora, não sou antropóloga nem “óloga” nenhuma.

Embora muitas vezes digam até que sou e talvez até seja

naturalmente. Mas não me considero.

O que é que eu quero com isso? Com esse preâmbulo todo?

É dizer desses jeitos que a gente tem e que passam pra

gente, a partir, primeiro, do mais próximo que é a família,

depois, da vizinhança, e que eu tive, que eu vivenciei em

criança. E que hoje, com 60 anos, vivendo na mesma

comunidade, eu vejo que esses jeitos mudaram, que muitas

coisas vindas de fora influenciaram e há dificuldade até, às

vezes, de a gente manter um pouco, não exatamente igual,

pois nós estamos vivendo noutro tempo. A realidade é outra.

Mas até de a gente manter alguma coisa que nos remeta a

esse passado, a essa coisa antiga e que não tem que ser

perdida, não deve ser perdida. É muito difícil, justamente

por essas invasões que fazem na vida da gente e essas

mudanças tão abruptas que, às vezes, nos pegam de

surpresa. E, às vezes, a gente fica tentando agarrar o fio,

pra o fio não se escapar, e fica tentando passar, eu não

tenho filhos, mas tenho muitos sobrinhos, sobrinhos-netos,

sobrinhos-bisnetos, e quero, pelo menos, contar pra eles

um pouco do que era antes, do que eles não viram, mas

manter alguma coisa da família. Dessa coisa do vizinho, dessa

solidariedade, dessa coletividade que tinha antes no bairro.

E que, hoje, por força das coisas modernas, dos jeitos de

ser, de fazer, de viver modernos, a gente vai perdendo

também uma identidade bem negra que antes havia e hoje

escapa. Então, vivendo isso tudo, eu fico, às vezes, a me

“é o ontem que vai servir como raiz, como sustentação. Senão, a

gente vai perguntar quem eu sou? E não vai saber dizer”

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perguntar: que jeitos, que formas a gente tem que criar

hoje, construir hoje, pra viver o hoje, mas sem perder o

ontem? Porque é o ontem que vai servir como raiz, como

sustentação. Senão, a gente vai perguntar quem eu sou? E

não vai saber dizer.

E aí, eu hoje me vejo na situação. Aquela pessoa que se

lembra lá quando tinha sei lá... talvez 5 anos, 5 anos e meio,

6 anos, que escreveu na pedra, com lápis de pedra, e hoje

tem um computador. Mas que passou do escrever à mão

num caderno brochura, depois num caderno espiral e aquela

maquininha de datilografia e hoje está diante do computador.

E, às vezes, a escola que não tem computador pra suportar,

pra ajudar todos os seus alunos, manda o aluno fazer

pesquisa. E vai o menino lá bater na porta: “Pró...”. Porque,

eu fui professora primária e gosto de ser chamada de Pró,

de me chamar, continuar chamando assim. (...) E aí me

pedem pra fazer as pesquisas, e, às vezes, umas pesquisas

escabrosas que me passam pro menino. E aquela escola

pública que está ali, naquela comunidade, faz vista grossa

para a cultura que é daquela criança. E depois se queixa que

o menino é indisciplinado, que o menino não tem atenção.

Por quê? Porque não está olhando o outro com o que ele é,

com o que ele tem e não está buscando, ali perto, tantos

mestres que podem ajudar na educação daquela criança...

Então, com esse jeito de pensar, o que é que a gente poderia

dizer para os educadores, para esses sistemas públicos de

educação? É voltar um pouco atrás e não jogar fora o jeito

simples, porque eu acho que a gente tem perdido justamente

por ir em busca de algo muito rebuscado, muito complicado,

muito elaborado. E a gente joga fora coisas simples que,

vivendo a realidade que a gente vive, têm sempre lugar

praquilo.

A coisa do samba, que é tão normal, tão comum. A gente

faz porque a gente faz. A gente não faz pra turista ver, pra

inglês ver, a gente faz pra gente. É o jeito de a gente fazer o

nosso lazer, dia de domingo, nos quintais, nos poucos quintais

que restam ou as poucas áreas que a gente tem. Então, por

que não ensinar ao menino com samba? Por que não se

volta pra brincadeiras que se fazia antes? E que, às vezes,

alguns ainda fazem. Por que não leva pra dentro da escola

isso? Por que não faz arte do jeito que as crianças sabem

fazer? Porque toda criança faz arte. Toda criança é artista.

Todo ser humano é artista. E arteiro...

Eu acho que são coisas simples, mas uma coisa que está

faltando no mundo hoje é ser solidário. A gente tem

desenvolvido, a gente tem progredido muito. Está tudo aí

informatizado, mas a gente perde porque a gente está indo

muito em busca do ter, do ter, do ter... E o ser? E o ser? Tem

que, antes de tudo, ser. E a gente tem desenvolvido essa

cultura individualista, um tipo de cultura para poucos. E se a

gente pensar de uma forma mais coletiva, de uma forma

mais plural, mas partindo do singular. E aí é que eu digo, a

gente vai globalizar sim, a gente vai botar tudo aí, vai

globalizar. Eu vou como? Eu vou com o quê? Eu sou o que

dentro disso tudo? Eu tenho que saber quem sou eu. Eu

tenho que saber a minha marca pra poder me ver também

na marca do outro. E para que o outro também me enxergue

como eu. Com a minha marca. Então, quem está fazendo

arte, quem está produzindo, produtores de arte, gestores,

porque aí pegam, chegam lá, o sujeito tá lá sendo, vivendo,

fazendo, elaborando, reelaborando, recriando seus fazeres,

seus saberes, seus seres, seus creres, tá lá. Aí vem alguém,

pega aquilo, empastela aquilo, mas cadê o sujeito? Fez o

quê? Tá recebendo o quê? Tá sendo o quê?

“Eu tenho que saber quem sou eu. Eu tenho que saber a minha

marca pra poder me ver também na marca do outro”

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E essa arte, esse fazer, essa coisa, é a serviço de quê?

Então eu acho que as culturas artísticas têm que atentar pra

isso. Têm que estar a serviço de quê? A cultura pode fazer,

as culturas, as manifestações culturais podem contribuir pra

muito, mas pra muito mesmo, um amanhã melhor, de um

mundo melhor. Mas tem que saber que direção vai se dar a

isso. Senão não sei se vai ser tão melhor assim. Vai continuar

excluindo, excluindo, excluindo... Então, as culturas, as artes

têm que saber, quem faz, quem lida com arte tem que saber

pra que está fazendo essa arte. Pra que o cinema? Pra que

o teatro? Pra que a dança? Pra que a música?

A gente hoje precisa de muita paz, mas a paz é algo concreto.

Não basta fazer manifestações da paz, todo mundo se vestir

de branco e rezar cada um na sua... conforme a sua fé. Isso

só não resolve. Isso é bom também. Você invocar aquilo em

que você crê também. Mas é algo concreto. Pra mim paz

significa você ter o que comer, você ter trabalho pra o seu

sustento. Você ter educação e direito a todo o tipo de boa

educação. Não ter educação dividida... essa educação é pra

essa camada, essa aqui é praquela outra. Não. Tem que ter

boa educação. Todo mundo tem que ter direito à boa educação

desde o início até o fim. Depois se ele quiser varrer rua, vá

varrer rua. Mas ele tem que ter o direito de ter uma boa base

e chegar até a universidade. Não importa o que ele vai fazer

depois. Ele tem que ter direito a isso. Ele tem que ter direito a

bem viver. E viver bem significa ter um teto, ter comida, ter

condições de se relacionar com os seus mais próximos, sua

família, seus vizinhos. Ter condições de poder manter a família.

Eu acho que muita coisa porque a gente está sofrendo também

é que a família está se desagregando, a família está tomando

outra configuração que não é família. E aí a vaca vai pro brejo,

como dizia vovó. Vai pro brejo mesmo...

Então, pra estar de acordo com o que propõe o tema, eu

acho que o que a gente tem como proposta pra esse Ubuntu

que vai contemplar essa humanidade, é a gente, nas

pequenas coisas, começar a pensar nesse jeito coletivo de

viver. (...) Nada está desconectado no mundo. A gente é

somente instrumento.

Eu quero agradecer a cada um, a cada uma que aqui está,

porque tinha que estar, era pra estar. E pra os assentos

vazios também. Há de ter alguns dos nossos ancestrais aí.

Essa platéia está repleta. A platéia está completa. Uns a

gente está vendo; outros não, mas estão aí. Estão aqui. E

nós não estamos aqui por acaso. Que o reunificador, que o

unificador que é Lemba, nos candomblés de Angola, que a

gente chama Oxalá, nos candomblés de Ketu, possa fazer

com que, em meio a toda essa dispersão que está sendo

esse Fórum, a gente corre praqui, corre prali, mas que paire

sobre as pessoas que estão nesse Fórum e que daqui saiam

pensamentos, idéias no sentido dessa união, dessas

diversidades e que a gente possa construir um amanhã de

paz pras nossas crianças, pra aqueles que virão (Canto

africano). Que a paz de Lemba chegue até nós. Obrigada

pela atenção de vocês.

“E pra que o outro também me enxergue como eu. Com a minha marca”

Valdina Pinto, na mesa Ubuntu

Pensamento Africano para o Mundo

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86O termo identidade se converteu em uma dessas palavras-

chave que articulam o peculiar engranzamento do

pensamento filosófico antropológico com discurso político.

(...) Como sucede com quase todos os termos filosóficos

aplicados à retórica política, o de identidade possui um

confuso ar conceitual e um conteúdo pouco preciso. Duas

notas que se vêem reforçadas em virtude de sua polissêmica

e ubíqua presença. Não constitui, em nenhum caso, um

exemplo de noção clara e distinta, como exigiria uma mente

cartesiana.

ARROYO, Juan Carlos Velasco. La teoria

discursiva del derecho. Madrid: Centro de

Estudios Políticos y Constitucionales,

2000, p. 195.

A identidade como conjunto de características comuns com

o qual grupos humanos se identificam (e este termo alude

ao processo psicológico de interiorização de traços e

características sociais que se internalizam e passam a

constituir os elementos diferenciadores de uns a respeito

de outros) estabelece hábitos, ‘naturaliza’ comportamentos,

imprime caráter e não poucas vezes, lamentavelmente,

exacerba rancores, endogamias, xenofobias.

GULBERG, Horacio Cerutti. “Identidad y

dependencia culturales”. In. SOBREVILLA,

David (ed.) Filosofía de la cultura. Madrid:

Trotta, 1998, p. 136.

Identidade designa algo como uma compreensão de quem

somos, nossas características definitórias fundamentais

como seres humanos.

TAYLOR, Charles. “A política do

reconhecimento”. In. Argumentos

Filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000,

p.241.

A preocupação pela identidade constitui um dos leitmotiv

do pensamento latino-americano, mesmo antes de que se

possa falar propriamente de América Latina. Que somos?

Quem somos? Qual é o papel que nos corresponde na

história? Que elementos distinguem a nossa cultura? Até

que ponto nos equiparamos com outras zonas culturais?

Quem decide sobre nosso presente e futuro? São algumas

perguntas que nestas e em outras formulações vêm se

reiterando por gerações.

GULBERG, Horacio Cerutti. “Identidad y

dependencia culturales”, op. cit, p.132.

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O sistema de educação introduzido na África pelos mestres coloniais

desencorajou a cultura e os valores africanos. Desde que estabelecido

pelos nossos mestres coloniais etnocêntricos, e já que não ocorreram

muitas mudanças na orientação básica, tratava-se de uma viagem

para fora da África, cujo destino era o resplandecente mundo da

Europa. Ainda assim, a educação, da forma como a conhecemos e

a entendemos, deveria ser um processo pelo qual as pessoas

adquirem ou recebem conhecimentos sobre si mesmas, sobre o

seu ambiente e sobre as forças tangíveis e intangíveis que tender a

controlar as suas vidas.

Às vezes parece que os africanos levarão muito tempo para

eliminar as novas formas de domínio cultural ocidental na África.

Após anos de denegração e autodegradação, os africanos

sofrem de uma doença muito estranha: o etnocentrismo

negativo. O etnocentrismo negativo envolve o ato de uma

pessoa ou grupo que tendo os seus próprios valores, busca

adotar valores e hábitos culturais de outros grupos. Nós, na

África do Sul, chamávamos isso de “brancura mental” durante

a época do apartheid. Muitos africanos eram mentalmente

brancos, embora fisicamente negros. Houve uma época em

que era necessário que os africanos dissessem aos ocidentais

para desenvolver uma visão de mundo menos autocentrada,

que inevitavelmente os colocaria numa posição de

superioridade; os africanos ainda devem lutar para sair de seu

próprio etnocentrismo negativo.

O que eu disse até agora revela como a cultura e, em certa

medida, o conhecimento e a educação, têm sido mal entendidos

e, portanto, sofrido abusos no passado. A identidade cultural é

um elemento importante, não somente na busca de uma

estratégia de desenvolvimento apropriada, mas está muito

relacionada à luta contra o controle político e o domínio

econômico externos. Seria suficiente citar aqui Amílcar Cabral

quando fez essa inequívoca afirmação, e quero citá-lo: “A cultura

demonstrou ser a própria base dos movimentos de libertação.

Somente as sociedades que preservam a sua cultura são

capazes de se mobilizar e organizar, e lutar contra o domínio e

os cultos estrangeiros”.

A maioria dos líderes dos movimentos de libertação atesta o

fato de que a cultura tornou-se a força mais mobilizadora contra

a opressão em nossa época. E isso é muito positivo. Na verdade,

a cultura fornece às pessoas tanto o motivo quanto o veículo

para a luta pela liberdade. Se alguém duvidou daquilo que falei,

posso dizer-lhes que vim de um movimento de libertação; eu

mesmo sou uma pessoa do movimento de libertação e sei do

que estou falando. Quando vejo como o nosso país, a África do

Sul, foi libertado, então é preciso olhar o papel desempenhado

pela nossa cultura e a forma como a nossa cultura se tornou o

veículo para mobilizar a luta que tivemos que empreender. O

conflito de culturas é o tema dominante da literatura africana

contemporânea. Alguns autores tratam especificamente da

forma como o conflito afeta o cenário político. Os discursos

presidenciais ou os planos de desenvolvimento contêm

declarações de valor e refletem imagens de uma sociedade

futura. Mas as implicações mais profundas do conflito cultural

permanecem latentes e implícitas. Para trazê-las à superfície,

pressupõe-se a disponibilidade de uma teoria de relações

interculturais que se desentende com o dilema de opções

ideológicas. A assertividade cultural dos africanos ocorre em

dois níveis: identidades microculturais ou tribais se capitalizam

dentro de unidades nacionais e através dos limites nacionais.

O caso de Biafra, na Nigéria, é um bom exemplo de identidade

microcultural derramando-se para afetar as relações

internacionais. Em segundo lugar, uma identidade macrocultural,

significando aqui a identidade africana, também se manifesta

fora das nações. Estamos falando dos valores culturais africanos

“Muitos africanos eram mentalmente brancos, embora fisicamente

negros”

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da identidade cultural do africano, do índio americano e dos

povos asiáticos em toda a sua originalidade. É assim que eu

sugiro, assim como os autores da cultural sugerem, que o

conhecimento seja transformado. E, dessa forma, poderíamos

aperfeiçoar a compreensão das diversas culturas.

Em conclusão, quero estabelecer um modelo de coexistência

cultural que estamos tentando adotar na África do Sul. Esse

modelo, que se baseia na tolerância cultural, funciona sobre o

princípio do reconhecimento e do respeito às diferenças culturais

e à diversidade. É a premissa em nosso lema “Qe Fala Qe”,

que significa “Povos diversos, Unam-se”. Do nosso passado

de apartheid, que provocou a política de desenvolvimento

individual, compreendemos que não eram as culturas, mas

sim as raças que estavam separadas. A variável utilizada pelo

sistema do apartheid era que aquela da raça e não da cultura.

Além dos nove grupos lingüísticos africanos, há outros nove

idiomas não-africanos falados na África do Sul; porém, todos

esses grupos estão acomodados dentro de uma única estrutura

nacional. Isso está escrito na Constituição.

Sibusisu Bengu, no debate Conhecimento,

Educação e Solidariedade: Dimensões

Culturais de um Novo Tempo

comuns, da mesma forma que falamos do nacionalismo

africano. Escrevendo sobre como superar o desenvolvimento

etnocêntrico do conhecimento, os autores de “Etnocentrismo

na História” recomendaram que a solução fosse escrever uma

história universal. Isso implica em empenhar-se em direção à

extensão cultural na produção de conhecimento.

Especificamente, isso significa que a história, mostrando a

diversidade, poderia ser apresentada descrevendo, por exemplo,

as condições em que determinados grupos com estilos de

vida muito diferentes têm vivido; quais foram as suas

preocupações; e quais tarefas tiveram que cumprir. O aluno

então entenderia que o gênio humano trouxe estilos de vida

originais, nos mais diversos ambientes naturais.

Ele assumiria, portanto, uma posição mais relativista e não

procuraria mais encontrar um lugar para si no grupo, em uma

lista de honra, na qual as culturas são colocadas de acordo

com critérios etnocêntricos. Mas a extensão cultural parece,

acima de tudo, necessária devido à importância das

macroculturas. O ocidente estaria situado em uma perspectiva

mais global que permitiria ao antagonista uma compreensão

“O aluno então entenderia que o gênio humano trouxe estilos de

vida originais, nos mais diversos ambientes naturais”

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“Não posso fazer ‘educação para’ a democracia se não faço

“educação em” democracia”

Temos enormes listagens de “educação para”: educação

para a vida, educação para o trabalho, educação para a

democracia, educação para o diálogo, educação para a paz,

educação para os direitos humanos etc. São listagens

intermináveis que construímos de “educações para”. Isso

leva, em geral, a respostas ruins. O problema está mal

conceituado, portanto as respostas são inadequadas. (...) O

que nós defendemos aqui é a necessidade, primeiro, de

pensar na “educação em”. Não posso fazer “educação para”

a democracia se não faço “educação em” democracia. E se

faço “educação em” democracia estou fazendo “educação

para” a democracia. Um é conseqüência do outro e não ao

contrário. Não posso fazer educação para o diálogo se no

processo educativo não levo ao diálogo. Não posso fazer

educação para o trabalho se a educação propriamente dita

não cultiva os valores e o tipo de atitudes, de práticas que

são fundamentais para trabalhar, para produzir etc. Então

para mim o conceito chave é o de “educar em”, mais que o

“educar para” e isso é válido todo o tempo. Estou pensando

no tema cultura, que é o que nos trouxe para esta mesa.

Quando falamos de “educação em”, evidentemente há aqui

maneiras muito diferentes de pensar neste “pensar em”.

Por um lado, é integrada, dentro de; por outro lado, é

encarnada nas relações práticas, valores disso que

chamamos educação. Creio que esta é outra pequena visão,

reduzida, empobrecedora da educação, pensar em educação

somente como educação escolar. (...) Conteúdos, métodos,

relações, atitudes, valores, práticas, tudo é parte dessa

“educação em”. Isto não se resolve com um chamado

“currículo”; até a palavra é ofensiva, é uma palavra tão

complicada que ninguém a entende, e quando alguém fala

de currículo no âmbito escolar tem que sempre começar

por definir o que é que entende por “currículo”, porque há

tantas posições, tantas tendências, tantas concepções, que

então é inevitável começar por esclarecê-lo. Quando um

conceito está tão carregado de indefinições é um conceito

mau. Virou um conceito mau, um mau termo. Eu falo do

que e para que e como se ensina, e de que e para que e

como se aprende. Porque além desta visão de currículo que

herdamos, uma visão muito tradicional, muito paralisada de

educação escolar, é basicamente um currículo prescrito, é

o que diz o que há de se fazer, é normativa, e estamos

cheios na América Latina, no Brasil, em todos os nossos

países de textos que nos dizem o que devemos ensinar e

como devemos ensinar. Normativas, leis, documentos. Más

uma coisa é o currículo prescrito e outra coisa é o currículo

real. O que interessa é o currículo real.

(…) O que me interessa é o currículo real, e esse currículo

real o fazem as gentes de carne e osso: quem é o diretor e

como pensa esse diretor, quem são os professores, como

se relacionam com os alunos, que tipo de visão têm do

mundo, do que está acontecendo com as relações entre o

Norte e o Sul, de quem são os alunos que eles têm na sua

frente, e isso é o que realmente importa. Isso tem que ver

com a cultura, com uma maneira de pensar o mundo, com

uma maneira de pensar o que é o ensino, o que é a

aprendizagem.

O ponto seguinte que gostaria de passar muito brevemente

é a relação entre educação e cultura. Essa é uma relação

muito pouco tratada, muito mal tratada. O que vemos hoje

são dois compartimentos estanques, educação por um lado

e cultura por outro. Inclusive, as comunidades intelectuais

que estão vinculadas a estes dois campos são comunidades

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totalmente diferenciadas. Eu comentava com amigos que

estou aqui, num lugar conheço a quase ninguém, porque

eu venho do mundo da educação, e este mundo está

totalmente não contaminado de cultura: aí não há artistas,

não há músicos, não há gente que faz dança. São todos

esticados, são todos painéis, são todos falando destas coisas,

que além do mais são tediosas: currículo, a política educativa.

Então é um prazer, de repente, estar num lugar aonde se

vem coisas como esta. Mas estes dois mundos não se

tocam, são duas comunidades intelectuais que

desenvolveram seus próprios ethos e que construíram

impressionantes muros entre estes dois mundos.

Eu acho que precisamos muito mais de cultura na educação

e, ao contrário, também muito mais educação nos âmbitos

de quem faz cultura; que esta imbricação há de ser trabalhada

novamente não só desde a normativa, que às vezes fica no

papel, senão desde espaços como estes, onde possamos

pensar os diferentes modos de articulação entre as culturas

e as educações. Creio que devemos combater, tanto desde

a educação como desde o âmbito da cultura esta tendência

muito forte da educação escolar, que é nefasta, a

extracurricular à cultura. Tudo o que é dança, música,

diversão, felicidade é extracurricular. É o típico, a cultura vai

de tarde, no workshop especial, nas horas livres, e quando se

tira o orçamento porque não há dinheiro, obviamente a primeira

coisa que sofre é isso. Eu não vejo por parte da comunidade

vinculada à cultura um forte estímulo para discutir, por exemplo,

este tipo de tema. Como é possível que o tema escolar haja

posto a cultura neste pedestal? É como a mãe: por um lado, é

adorada e, por outro, é maltratada, não é verdade? Com a

cultura acontece isso. É uma esquizofrenia nos Ministérios de

Educação: por um lado aparece a cultura como a grande mãe,

mas por outro lado é a mãe maltratada, é a que limpa o chão.

Isto é um tema que temos que discutir conjuntamente, desde

ambos lados, não só desde um só.

Também penso que precisamos ampliar a visão tanto da

educação como da cultura; já dissemos, a necessidade de

superar esta noção de “educação = aula = escola” e pensá-

la como espaço de aprendizagem que vai muito mais além

do sistema escolar. A família, as comunidades, os meios de

comunicação, o café Internet, as bibliotecas etc., são todos

espaços de aprendizagem e muitos deles não têm a

educação por trás, no sentido de uma proposta educativa,

alguém com um contrato para ensinar. Mas também acho

que o campo da cultura tem que fazer suas rupturas e suas

ampliações. De todas as maneiras continuamos herdando

uma noção de cultura que é elitista, uma noção de que

cultura é para produzir e consumir, é algo que se vê –

devemos ver um desfile, uma exposição –, não é algo que

se experimenta, que se sente, e é nesse sentido que eu

proponho que neste cruzamento de uma nova visão de

ambos campos, comecemos a pensar também nas culturas

como dimensão da vida cotidiana. Hoje é fundamental uma

contra cultura no mundo em que vivemos, um mundo que

se converteu numa maquinaria de gerar pobreza, exclusão.

Não podemos simplesmente continuar fazendo as coisas

iguais. Creio que devemos trabalhar expressamente, por

exemplo, para recuperar uma cultura do trabalho e a chamarei

assim: cultura do trabalho. Perdeu-se a idéia de que o trabalho

é um direito. Aparece a idéia de que trabalhar é um direito

que já está no passado. É certo que não vamos voltar ao

emprego nunca, provavelmente, mas o direito ao trabalho

segue sendo tão vigente como nunca. E hoje a cultura do

trabalho se está perdendo como noção não só de direito como

“Eu acho que precisamos muito mais de cultura na educação e, ao

contrário, também muito mais educação nos âmbitos de quem faz

cultura.”

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instalou no discurso de nossos países desde os anos 80, 90

– é discurso vazio. Temos que voltar ao sentido original do

que é igualdade com diversidade.

Creio, então, e como isto termino, que se trata de criar cultura

ao mesmo tempo em que se cria a contra cultura, num

processo dialético. Temos que ser criativos. Criar, construir, mas

ao mesmo tempo desestruturar e recuperar muitas coisas que

estão no passado, a inovação não é só ir para diante como

muitos pensam, a inovação também hoje está em recuperar

muito daquilo que era valioso e que perdemos. Muito obrigada.

Rosa María Torres, no debate Democracia,

Educação e Participação Cultural

que de cultura propriamente dita. A cultura do diálogo, a cultura

da solidariedade, a cultura do respeito ao outro, a cultura da

diversidade, sem super dimensionar a diversidade e perder

de vista o que estamos perdendo de vista, que é a igualdade.

Eu creio que estamos vivendo hoje um problema da super

saturação do discurso da diversidade que perdeu de vista a

igualdade. Agora temos que voltar a recuperar no sentido da

igualdade com diversidade. É incompleto o discurso se só

digo diversidade, e nos excitamos com a diversidade. Eu creio

que devemos voltar a recuperar o sentido de igualdade com

diversidade. A equidade – que está saindo de moda e se

“De todas as maneiras continuamos herdando uma noção de cultura

que é elitista, uma noção de que cultura é para produzir e consumir”

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Quero dizer para vocês que o Brasil é um país de

desterritorializados. Eu até perguntaria só para ter um modelo,

uma idéia, ergam o braço: quantas são as pessoas desta

sala que vivem no lugar onde nasceram? Quem vive no

lugar onde nasceu? Tem bastante, mas menos da metade.

Ou seja, o Brasil é um país de desterritorializados e quase

sempre estes são também desculturados porque, de

maneira geral, nossa população foi obrigada a migrar em

busca de alternativas de vida ganhando o indispensável para

sobreviver e não pôde manter as relações com suas origens,

suas tradições, suas culturas. Evidentemente, isso também

tem uma característica no traço de violência que existe em

nossa cidade e cada uma dessas falas nos mostra a

importância de fortalecermos a compreensão de que temos

uma relação de cultura e de natureza em nossa vida. Somos

natureza e cultura.

Com isso, evidentemente, torna-se indispensável que nossas

relações com os demais componentes da natureza e com

as imensas diversidades culturais possam ajudar a nos

conhecer melhor e a conhecermos melhor aqueles com

quem convivemos, e construirmos quem sabe um projeto

que nos respeite, nos valorize, nos reconheça e nos dê essa

sensação de pertencimento de que o Gilberto falou

anteriormente.

(...) Ficamos contentes em ver a experiência que procura

fazer com que, em vez de simplesmente fazermos pichação

nas nossas cidades, tenhamos a possibilidade de trabalhar

para que as pessoas, reconhecendo-se na cidade como parte

dela e pertencendo, por tanto, a ela e tendo a sensação de

que a cidade também lhes pertence, possam construir os

processos de arte através do grafitismo, do rap, do break,

do maculelê, da umbigada, reavaliados e reorganizados com

nossas populações de origem afrodescendente. Isso tudo

evidentemente nos leva a pensar em todas as reflexões

colocadas da maneira como nós enxergamos a educação.

(...) Em nossas escolas as crianças ficam sentadas uma de

costas para outra, olhando na nuca do amigo da frente e

estamos vivendo o tempo da criação, da recriação, da

sensibilidade, da produção artística e eu sempre procuro

dizer que precisamos trabalhar dentro de uma perspectiva

cultural porque a cultura tem um caráter de rebeldia. Ela

fortalece raízes, mas é rebelde porque reluta contra a maneira

como as relações internacionais e as históricas de

dominação, de comportamento patriarcal do dia-a-dia, de

ações das trocas desiguais do fetichismo das mercadorias,

isso tudo faz com que nos enxerguemos de outra maneira,

e a cultura é efetivamente um instrumento de rebeldia e

um grande elemento que, articulado numa visão moderna

e produtiva de educação, é capaz de criar processos

revolucionários. Através dessas reflexões temos a

oportunidade de aprender e ser capazes também de construir

uma nova realidade em nossa vida, próximo do convívio

familiar, do bairro na escola, com as pessoas com quem

nos relacionamos, do nosso trabalho e aí então trabalharmos

em direção à construção do mundo que seja respeitador

das diversidades, mas reconheça efetivamente nossos

direitos e que temos de nos esforçar para nos

reconhecermos como iguais também.

Claudio Antônio de Mauro, no debate

Democracia, Educação e Participação

Cultural

“torna-se indispensável nossas relações com os demais

componentes da natureza e das imensas diversidades culturais...”

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Diz-se muitas vezes que a cultura é a base da identidade de

um povo. É uma tese que, na sua generalidade, se pode

prestar a confusões, mas que uma posição de esquerda

pode aceitar sem dificuldades desde que se pense a

identidade mais como um projeto do que como um adquirido.

A direita pensa que a identidade é uma substância – uma

espécie de fundo inalterável de convicções e de sentimentos

– que a política cultural deve defender. É uma concepção

catatônica que se fecha ao próprio movimento de

transformação das sociedades sem o qual, afinal, nenhuma

identidade consegue perdurar.

Qualquer cultura, digamo-lo de um modo mais preciso, se

caracteriza por um movimento que só afirma a sua

identidade, questionando-a. As identidades submissas de

que gosta o discurso de direita só existem em culturas

mumificadas e nos seus estereótipos políticos. O discurso

cultural da esquerda deve privilegiar, não a conservação,

mas a construção da identidade, na convicção de que ela é,

em cada momento, o retrato do jogo plural das diversidades

mais dinâmicas numa sociedade.

CARRILHO, Manuel Maria. Aventuras da

interpretação. Lisboa: Editorial Presença,

1995, p. 71-72.

Em outra passagem esclarecedora: “Tudo é todavia bem

diferente se se flexibilizar a concepção da identidade e se,

em vez de se ver nela a manifestação da alma de um povo

vagueando acima das vicissitudes históricas do seu ‘destino’,

a considerarmos antes como a construção de uma

configuração sem forma rigidamente definida e sem sentido

previamente determinado. Ou seja, se conceber a identidade

– seja ela nacional, tribal ou pessoal – mais como uma

proposta do que como uma substância; não como algo que

se tem e que se pode descobrir mas, pelo contrário, como

algo que se inventa e constrói.”

Idem, ibidem, p. 155.

“Qualquer cultura, digamo-lo de um modo mais preciso, se

caracteriza por um movimento que só afirma a sua identidade,

questionando-a”

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a cultura de um centro de saúde, a construção de umaescola para as crianças poderem estudar.

(...) Mas enquanto as instituições de cooperação internacionalcontinuarem a ter uma visão cada vez mais política, se tornarácada vez mais complicado de mostrar essa zona de silêncioe trazê-los cá para fora. (...) Essas zonas de silênciocontinuarão a ficar silenciosas e provavelmente vão aparecercom alguns clichês, alguma coisa exótica quando a vontadede quem tem o poder conseguir trazer. Eu penso que aúnica forma de invertermos essa situação é cada vez asinstituições internacionais deixarem de pertencer a apenasum país, uma região, como defender os interesses da UniãoEuropéia em África, passando a ser mais organizações domundo.

A partir daí vão se preocupar com o que se passa no níveldo globo. Possam olhar se há um projeto interessante emMaputo ou Moçambique, um projeto de desenvolvimentoartístico interessante. Que não olhem para questões no nívelde cooperação em Moçambique, o país “y” na UniãoEuropéia, qual o acordo que nós temos, quais são asvantagens que nós temos em apoiar isso ou aquilo. E sóapoiamos (...) com nossos interesses políticos, masdevemos olhar para o valor do projeto, o valor das ações.Quando essas instituições criarem esse papel comoinstituições do mundo e não instituições de uma região oupaís, poderemos gradualmente criar mais possibilidades dedesenvolver essas regiões, para que possam gradualmentemostrar o que eles trazem ao mundo. E só assim poderemoscriar um mundo global, cheio de diversidade. E que todasas culturas têm o seu valor. O que lhes difere é apenas alocalização, mas todas elas pertencem a uma época. Isso

para mim é o que eu acho fundamental.

Panaibra Gabriel, na mesa Como

sobreviver? Cultura e Artes não-comerciais

“como o mundo desenvolvido consegue tanto nos influenciar sem

termos bases próprias para nós também nos mostrarmos ao mundo”

(...) Em menos de cinco anos temos uma tecnologia deinformação interessante. Mas depois olhei: a quem (atecnologia) beneficia no nível de país? Essa pequena minoriaé uma pequena comunidade que está em Maputo, mastemos um país com 16 milhões de habitantes. Maputo temapenas 2 milhões e o resto do país como se beneficia dessasformas de comunicação bastante sofisticada?

Olhando, vejo a questão a partir da base. O nosso sistemade ensino é todo padronizado no sistema europeu ouportuguês em particular. A nossa língua é essa, a portuguesa,que temos na nossa história, mas temos por aí perto deuma centena de línguas que até aqui fazem o dia-a-dia dosmoçambicanos. Eles sobrevivem com essa realidade.

Então a questão está um pouco nisso: termos a velocidadecom que o Ocidente ou a América traz-nos a informação.Nós conhecemos mais o que se passa na América, na Europado que o que se passa em Moçambique.

(...) É um pouco isso, como nós pensamos e como o mundodesenvolvido consegue tanto nos influenciar sem termosbases próprias para nós também nos mostrarmos ao mundo.Eu acho que no fundo quem fica a perder é o mundo. Nósestamos a criar uma cultura global. Quanto mais ela é de lápara cá, os de lá perdem a oportunidade de saber o que écá. (...) seria uma grande aventura pensar se queremos ummundo de diversidade cultural. Temos que partir de coisasbásicas como a informação, o ensino e a educação. Temosque ter isso como um direito do homem global.

(...) Em todo caso a questão só fica em uma pequenacomunidade, que depois não consegue tirar o seu produtopara o exterior. Será que tem tanta vantagem estarmos afazer essas coisas? (...). Ao invés de apoiar a cultura, apoiar

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Quais são as questões-chave para associar a educação, o

lucro e o desenvolvimento cultural no atual contexto? Como

o sistema educacional deveria reagir à tremenda evolução

na cultura globalizada e no rápido desenvolvimento? Qual o

papel da educação para manter a exclusividade e a

diversidade do valor cultural na região? Como deveria ser a

reforma educacional para o desenvolvimento cultural, e não

para o desenvolvimento econômico?

Mitsuhiro Yoshimoto, no debate Prevenindo

a Erosão da Memória Cultural

Desenvolvimento cultural significa imaginação em lugar de

coletividade, criatividade em lugar de produtividade, e

exclusividade em lugar de eficácia. A educação baseada no

desenvolvimento cultural busca a sociedade civil da

diversidade e coexistência. (…) Os desenvolvimentos

econômicos freqüentemente afetam o ambiente educacional

e prejudicam o sistema educacional. Precisamos reprimir o

desenvolvimento econômico pelo desenvolvimento cultural.

O governo possui uma política cultural, assim como uma

política educacional. Porém, ainda mais importante é a

interação entre o sistema educacional e o desenvolvimento

cultural, ou a política educacional e a política cultural.

“Precisamos reprimir o desenvolvimento econômico pelo

desenvolvimento cultural.”

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