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CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

Caderno de Ciências Sociais

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Page 1: Caderno de Ciências Sociais

CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

Page 2: Caderno de Ciências Sociais

UNIVERSIDADE EStADUAl Do SUDoEStE DA bAhIA

ReitoR

Prof. Dr. Abel Rebouças São José Vice-ReitoR

Prof. Rui MacêdoPRó-ReitoR de extensão e Assuntos comunitáRios

Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti CostadiRetoR dA edições uesb

Jacinto Braz David Filho

comitê editoRiAl

Profª Drª Adriana Maria de Abreu BarbosaProfª Daniela Andrade Monteiro VeigaProf. Dr. Gildásio Santana JúniorProf. Ms. José Antonio Gonçalves do SantosProf. Ms. Marcos Lopes de SouzaProf. Ms. Paulo Sérgio Cavalcanti CostaProfª Drª Suzane Tosta SouzaProfª Drª Tânia Cristina R. Silva GusmãoProfª Drª Zenilda Nogueira Sales

Revista indexada na seguinte base de dados:1. Sumários de Revistas Brasileiras - http://www.sumarios.org/Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

Deseja-se permuta/Exchange desired.

Campus Universitário – Caixa Postal 95 – Fone/fax: 77 3424-8716Estrada do Bem-Querer, km 04 – Módulo da Biblioteca, 1° andar

45083-900 – Vitória da Conquista-BAwww.uesb.br/editora - [email protected][email protected]

C129c Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas. Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais (Nepaad). Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Ano 4, n. 5/6, jan./dez. 2006. - Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2009.

Início: Janeiro 1998. Reinício: Janeiro 2005. Semestral. ISSN 1808-3102

1. Direito civil (Brasil) – Sistema processual único. 2. Pequenas e médias empresas – Vitória da Conquista (BA) – Administração. 3. Liberalismo – Economia solidária. 4. Economia – Juazeiro do Norte (CE). 5. Ovinocaprinocultura – Economia – Nordeste Brasileiro. 6. Economia florestal – Brasil – Políticas públicas. 7. Ciências contábeis – Estudo e ensino (Superior) – Brasil. 8. Jornalismo – Discurso. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. T.

CDD: 346.81 - 658.022098142 - 338.981- 636.30981 - 634.980981 - 657.07 - 808.06607

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Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

CADERNOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

ISSN 1808-3102 Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 3-316 2006

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Copyright © 2009 by Edições Uesb

Todos os direitos desta edição são reservados a Edições Uesb.A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,

constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/98).

CADERNoS DE CIÊNCIAS SoCIAIS APlICADAS

Número 5/6 – jan./dez. 2006Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad).

Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA)Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas é uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad) – DCSA – Uesb. As opiniões expressas nos artigos, tanto de docentes e técnicos da Uesb, quanto de convidados, ou mesmo de traduções e envios espontâneos à redação, são da inteira responsabilidade dos seus autores.É permitida a reprodução de parte ou total dos artigos, apenas para fins didáticos e para citação em obras de interesse científico, desde que seja citada a fonte, ficando proibida a reprodução para outros fins por qualquer meio natural ou eletrônico conhecidos.Os enfoques temáticos integrantes da publicação dos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas abrangem 5 (cinco) áreas de conhecimento: Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia, Comunicação Social e Áreas afins.

comissão AdministRAtiVAJosé Antonio Gonçalves dos Santos (Coordenador) - NEPAAD/DCSA

Maria Madalena Souza dos Anjos – DCSAMaria Auxiliadora Nunes Cordeiro (Colegiado de Administração)

Gildásio Santana Júnior – Colegiado de EconomiaPaulo Fernando de Oliveira Pires – Colegiado de Ciências Contábeis

Fábio Félix Ferreira – Colegiado de DireitoRosana Márcia Tinôco Leite – NEPAAD

Adilson de Lima Pereira – NEPAAD

conselho editoRiAl

Ana Palmira Bittencourt Santos CasimiroAna Elizabeth Santos AlvesCláudia Caravantes Panno

Geraldo R. CaravantesHeleusa Figueira Câmara

João Eurico MattaJorge Luiz S. FernandesJovino Moreira da Silva

Luciano Moura Costa DóreaManoel Augusto Sales Figueira

Paulo Cezar Borges MartinsPaulo Nazareno Alves AlmeidaRoberto Paulo Machado Lopes

Reginaldo Souza SantosWeslei Gusmão Piau Santana

ASSINAtURASDevem ser solicitadas ao NEPAAD/DCSA/Uesb

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - NEPAAD/DCSAEstrada do Bem-Querer, Km 4

45083-900 – Vitória da Conquista – BahiaTelefone: (77) 3425-9344 E-mail: [email protected] ou [email protected]

Homepage: http://www.uesb.br/editora

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Sumário

Editorial ........................................................................................................9

Nº 5, jan./jun. 2006

Direito

O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade de um sistema processual único e multifuncionalMaria Soledade Soares Cruzes........................................................................13

A possibilidade da pessoa casada constituir união estável Claudia de Oliveira Fonseca............................................................................33

Criminalística: origens, evolução e descaminhosRodrigo Grazinoli Garrido e Alexandre Giovanelli.......................................43

Administração

Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo com empresários de Vitória da Conquista – Bahia Marcelle B. Xavier, Francisco dos Santos Carvalho, José Carlson G. da Silva, Adriano Alves de Rezende e Marco Antônio de Araújo Longuinhos.................61

Um olhar sobre a reforma do estado brasileiro nos anos de 1990Wilson da Silva Santos .................................................................................79

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Economia

Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte-CE: uma discussão a partir da qualidade de vida dos residentesWellton Cardoso Pereira, José Raimundo Cordeiro Neto, Clério Ferreira de Sousa, Eliane Pinheiro de Sousa e Marcos Antônio de Brito .....................................97 As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês dessa atividade no Nordeste brasileiroJosé Raimundo Cordeiro Neto .....................................................................113

Ciências Contábeis

Metodologia do ensino superior: subsídios para o ensino de Ciências ContábeisMárcia Mineiro de Oliveira..........................................................................131

Comunicação

Hans Jonas: ética para a civilização tecnológicaFlaviano Oliveira Fonseca.............................................................................151

A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicaçãoHenrique Oliveira de Araújo........................................................................169

Nº 6, jul./dez. 2006

Direito

Jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano de uma unidade prisionalOdilza Lines de Almeida e Eduardo Paes-Machado.....................................189

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Sociedade do risco e moderno direito penal: tendências da política criminal no Brasil após a Constituição de 1988Carolina Porto Nunes .................................................................................213

Aspectos da violência urbana Itamar Rocha dos Santos..............................................................................237

Administração

O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista e seus limites e desafios a uma proposta de economia solidáriaMaristela Miranda Vieira de Oliveira..........................................................251

Economia

Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas de cenário econômicoJoão Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda ...........................265

Comunicação

Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico Moisés dos Santos Viana, Lúcia Gracia Ferreira, Adriana Guerra Ferreira e Sandra Lúcia da Cunha e Silva...................................................................279

O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais na prática jornalísticaMoisés dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos............................297

Normas para apresentação de trabalhos........................................313

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Editorial

Com mais estes dois números dos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, damos prosseguimento às publicações das áreas de Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia e Educação e Cultura em geral, contando com contribuições de vários pesquisadores, tanto da instituição quanto externos, como resultado de produções acadêmicas sólidas e críticas. Os artigos submetidos e aprovados para a composição deste número abrangem assuntos de produção no campo atual da educação e do seu desenvolvimento, da gestão, da comunicação, da segurança, da realidade pluralista do ambiente jurídico, da logística, da contabilidade e governança corporativa, da política e expansão econômicas e do planejamento. A escolha dos trabalhos aconteceu no ano de 2008, utilizando como critério de seleção não apenas o conteúdo científico, mas também os valores humanos revelados e a variedade de pensamentos e conhecimentos que integram o universo educacional e a originalidade na investigação acadêmica.

Neste volume, em especial, por decisão do Comitê Editorial, estamos condensando duas publicações num único fascículo, de forma a permitir, por um lado, a economia dos recursos públicos, e, por outro, a regularidade das publicações como variável importante para a consolidação da revista científica. A compreensão é que a pesquisa Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 9-10 2009

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10 Editorial

acadêmica, prática ou teórica, deve alicerçar-se na divulgação de uma abordagem pluralista, desvinculada de uma visão unicamente dogmática e teórica, mas disposta a tratar de temas que admitam a existência concomitante de conteúdos acadêmicos diversificados, que, por sua própria dinâmica, não podem ser apreendidas num único saber. É uma postura epistemológica e metodológica não fundada apenas na justaposição de idéias e métodos, mas também numa experiência na investigação de insights e abordagens múltiplas que possam dar conta da essência dos fenômenos das áreas, conectadas com o universo amplo das ciências sociais nos seus diferentes domínios e campo multidisciplinar.

Na expectativa de que os trabalhos publicados possam subsidiar as atividades acadêmicas e ações administrativas em organizações públicas e privadas, asseveramos que a publicação dos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, como uma divulgação que abrange a grande área de Ciências Sociais do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (NEPAAD) – DCSA – UESB, está aberta a sugestões e estimula a publicação de trabalhos que contribuam para a investigação e esclarecimentos de aspectos fundamentais à ampliação do conhecimento científico em geral, como estímulo ao debate para o desenvolvimento administrativo, contábil, econômico, jurídico e social, dentro da Universidade Pública, Gratuita e de Qualidade.

Comissão Administrativa

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NúmERo 5jAN./jUN. 2006

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o sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade de um sistema processual único e

multifuncional

Maria Soledade Soares Cruzes1

Resumo: O Sincretismo do Processo Civil Brasileiro é uma análise da viabilidade de um sistema processual único e multifuncional, em contraposição à sua clássica repartição em espécies, ditas autônomas. Nega a realidade jurídica da autonomia dos “processos” de conhecimento, execução e cautelar, reconhecendo a inevitável alonomia entre eles. Constrói, assim, a idéia de um sistema processual único e composto das funções de conhecimento, execução e cognição sumária urgente.

Palavras-chave: Sincretismo. Processo Civil. Brasil. Viabilidade.

the syncretism of the brazilian civil procedure: an analysis of the viability of a unique and multifunctional procedure system

Abstract: The Syncretism of the Brazilian Civil Procedure is an analysis of the viability of a unique and multifunctional procedure system, in contraposition to its classic distribution in species, said autonomous. It refuses the legal reality of the autonomy of the knowledge, execution and remedy “procedures”, recognizing the inevitable dependence among them. It builds, in this way, the idea of a unique procedure system and composed of knowledge, execution and urgent summary cognition functions.

Keywords: Syncretism. Civil Procedure. Brazil. Viability.1 Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Faculda-de de Tecnologia e Ciências (FTC)/Vitória da Conquista, Bahia. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 13-32 2009

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14 Maria Soledade Soares Cruzes

Introdução

Quantas ações, processos e sentenças são necessários para solucionar uma única lide?

Num plano ideal, se “uma” é a lide, deveria encadear apenas “uma” jurisdição, “uma” ação, “um” processo e, consequentemente, “uma” sentença – capaz de modificar a realidade dos fatos, se necessário.

Ocorre que esta não foi a sistemática adotada pelo Processo Civil Brasileiro que, em seus moldes clássicos, viu-se repartido em três espécies necessariamente distintas e autônomas: os “processos” de conhecimento, de execução, e cautelar.

Eis o propósito do presente estudo: negar tal repartição, desvendando e desmitificando os obstáculos ao inevitável reconhecimento da alonomia entre os “processos”, a fim de que se construa a idéia de um processo sincrético (aquele concebido como sistema processual único, e no qual há uma miscigenação das funções jurisdicionais), investigando a sua viabilidade no sistema Processual Civil Brasileiro.

A inevitável alonomia dos “processos” de conhecimento, de execução e cautelar

A jurisdição é una por essência. Como bem ensina o professor Theodoro Júnior (2002, p. 34), “a jurisdição, como poder ou função estatal, é una e abrange todos os litígios que se possam instaurar em torno de quaisquer assuntos de direito”.

Pois bem, o processo não é atividade por meio da qual se exerce a função jurisdicional, como decorrência do exercício do direito de ação? Sim. Então, por óbvio, se a jurisdição e a ação são unas, consequentemente, o processo também o é, não podendo ser repartido.

É indiscutível que o Direito Brasileiro vigente foi estruturado com base na idéia de autonomia entre os dois processos, cognitivo e executivo. Tal se deu, até mesmo, pela inegável influência das idéias de Liebman sobre nosso sistema processual. Não nos parece, todavia, seja este o sistema adequado de lege ferenda. A unicidade da jurisdição é inequívoca. [...]. ora, em

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sendo única a atividade jurisdicional, não parece razoável afirmar a necessidade de dois [quiçá três] processos distintos para que a tutela jurisdicional plena possa ser prestada (CÂMARA, 2003a, p. 223-224, grifo nosso).

Assim, falar em repartição do processo em espécies autônomas de conhecimento, execução e cautelar, constitui uma verdadeira afronta à unidade da jurisdição, e se contrapõe ao clássico trinômio jurisdição – ação – processo, sob o qual se alicerçou o Processo Civil Brasileiro.

É exatamente sob este fundamento de ordem lógica que surge a idéia da alonomia processual. Ora, alonomia é exatamente o antônimo de autonomia. Diz-se “alônomo” o “organismo que é dirigido por estímulos provenientes do exterior” (SILVA et al. 1979, v. 1, p. 100). Transpondo este conceito para o âmbito jurídico, a alonomia processual seria, então, o reconhecimento da ineficiência dos “processos” que, embora ditos autônomos, necessitam, em regra, um do outro para cumprir o seu desiderato de resolução justa e efetiva do caso concreto apresentado ao Estado, no exercício de seu poder jurisdicional.

Trata-se, na verdade, do primeiro (e significativo) passo rumo à construção da idéia de um processo único, composto de funções – ou atividades –, que, em regra, se entrelaçam com um fito principal: o restabelecimento da ordem jurídica justa.

A irrealidade jurídica dos “processos” de conhecimento e de execução em face de suas origens e tendências

Historicamente, a primeira das repartições do processo em espécies autônomas foi entre “conhecimento” e “execução”. Como bem relata Theodoro Júnior (1987), desde os primórdios do Processo Civil Romano já se exigia ação e “processo” autônomos para a execução da sentença condenatória proferida.

Contudo, no Direito Germânico, que passou a prevalecer após a queda do Império Romano, embora individualista, iniciando-se pela execução, não havia separação entre as atividades executiva e cognitiva, sendo elas exercidas em um só processo.

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Do confronto do Direito Germânico com o Romano, surgiu, ainda na Idade Média, o direito comum ou intermédio, que conciliava os aspectos positivos desses sistemas e também não aceitava a necessidade de uma nova ação para que se chegasse à execução de uma sentença.

Fazia-se, assim, uma distinção até aquele tempo não aventada pelos doutos, que era a existente entre a função cognitiva e função executiva dentro da jurisdição e MARTINO DE FANO concebia, então, a idéia de officium iudicius, que iria ser reconhecida por todos os escritores do direito comum.[...] Para o direito medieval, o officium iudicis, que provocou a dispensa da actio iudicati nas execuções de sentença, compreendia “todas as atividades que o juiz devia exercer naturalmente, em virtude de seu ofício” (LIEBMAN, 1968, p. 53 apud THEODORO JÚNIOR, 1987, p. 136, grifo nosso).

Ocorre que, após a Idade Média, o surgimento dos títulos de crédito, aos quais foi reconhecida a eficácia executiva, impôs a necessária diferenciação de dois procedimentos executivos: 1- o processo único para as sentenças condenatórias; 2- o “processo” executivo contencioso autônomo para os títulos executivos extrajudiciais.

Não obstante, as necessidades comerciais do século XVIII fizeram com que as execuções calcadas em títulos extrajudiciais alcançassem maior volume e relevância econômica do que as de sentenças condenatórias; até que, em determinado momento, todo o “processo” executivo se unificou, com exigida autonomia.

Ou seja, em decorrência da expansão de um instituto, o processo abdicou ao seu avanço. Com efeito, não fosse por essa distorção histórica, a idéia da dicotomia entre “processos” de conhecimento e de execução jamais teria sido adotada pelo Direito Processual Civil Brasileiro. Ocorre que, apesar das vozes que se levantaram2, ela foi abraçada pelo legislador pátrio e, consequentemente, estudada pela doutrina, sob os seguintes fundamentos:2 A adoção não se deu de forma pacífica e tampouco unânime. Campos (1977, p. 311) – pouco tempo após a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1973 – registra que, entre os que doutrinaram no sentido de ser a execução fase do processo estavam Gabriel de Rezende, Costa Carvalho e outros, apoiados no pensamento de Eduardo Couture.

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A evidência da autonomia do processo de execução pode ser dada através dos seguintes fatos:a) nem todo processo de conhecimento tem como consequência uma execução forçada: o cumprimento voluntário da condenação, por exemplo, torna impossível a execução forçada; e as sentenças declaratórias e constitutivas não comportam realização coativa em processo executivo;b) nem toda execução forçada tem como pressuposto uma sentença condenatória obtida em anterior processo de conhecimento, haja vista a possibilidade de baseá-la em títulos extrajudiciais;c) os processos de cognição e execução podem correr ao mesmo tempo, paralelamente, como se passa na hipótese de execução provisória (THEODORO JÚNIOR, 2004, v. 2, p. 9)

O conhecimento é a expressão da atividade jurisdicional por excelência. Não é possível “jurisdizer” sem conhecer. Neves (1997, p. 205), chega a ponto de afirmar que o conceito de jurisdição não abarca outros “processos” que não o de conhecimento. Neste diapasão, Bermudes (2002, p. 94), ao comentar o “processo” de conhecimento, afirma que “as duas outras espécies, autônomas embora, são tributárias dele”.

Ora, se são “tributárias” e sendo inegável a interdependência, certamente não há de se falar em autonomia. Mas, analisando os argumentos nos quais ela se sustenta, poder-se-ia questionar: seria a idéia de um “processo” de conhecimento puro um fundamento plausível para a autonomia entre os “processos” de conhecimento e de execução?

Para que se possa responder com eficácia a tal questionamento, há de se averiguar a tradicional classificação das ações de cognição em declaratórias, constitutivas e condenatórias, cujo critério distintivo, segundo Liebman (2003, p. 157), “é dado pelo efeito característico próprio da sentença correspondente a cada categoria de ação”. Segundo esta classificação, a tutela condenatória é a única que necessita de um novo “processo” para cumprir seu desiderato, qual seja, o cumprimento de um comando que imponha uma prestação a ser cumprida pelo réu, indo além da mera declaração do direito. Já a declaratória e a constitutiva formam a idéia de um “processo” de conhecimento puro, encerrando-se numa só fase.

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Pois bem, sob a égide de um processo único, composto das “fases” de conhecimento e de execução, e sendo necessária apenas a primeira fase para que se garanta às partes o efetivo e justo desenvolvimento e conclusão da atividade jurisdicional, para que seria necessária uma segunda fase? Para nada, por óbvio. Não é porque se dispensa uma segunda ou uma primeira fase que há de se dividir um instituto em espécies, enchendo-o de percalços e de vãs repetições que de nada auxiliam no regular, célere e efetivo desenvolvimento da atividade jurisdicional. Ou seja, a resposta à questão posta é não, definitivamente a idéia de um “processo” de conhecimento puro – constitutivo e declaratório – não é argumento forte o suficiente para sustentar a autonomia dos “processos”.

Além disso, é imprescindível observar que os outros argumentos que sustentam esta relação de autonomia também podem ser postos em prova ante a nova realidade doutrinária e legal do Direito Processual Civil Brasileiro, em especial no que tange à evolução que se deu no campo das sentenças condenatórias decorrentes do juízo cível. Foi este exatamente o objeto de estudo do professor Theodoro Júnior, ao desenvolver como tese para o seu doutoramento em Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o tema “A execução de sentença e a garantia do devido processo legal”, do qual concluiu:

[...] Houve, historicamente, longos períodos do direito processual em que essa dicotomia entre o conhecimento e a execução inexistiu, mesmo entre os povos que hoje a consagram. [...]. Aqui mesmo, dentro de nosso sistema processual, grande é o número de procedimentos especiais que fogem do padrão dicotômico, para adotar o unitário (despejo, possessório, depósito, etc.); e o mais interessante é que são eles os que melhor desempenham a função de, rápida e adequadamente, compor os litígios deduzidos em juízo. Por que não generalizar o sistema? (THEODORO JÚNIOR, 1987, p. 256, grifo nosso).

Em 1994, o Legislativo brasileiro, atento à inquietude dos processualistas, que clamavam por uma maior efetividade do processo,

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19 O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ...

deu o considerável passo inicial rumo à convocada generalização. A primeira grande Reforma do Código de Processo Civil de 1973 introduziu, em seu art. 461, a previsão da tutela específica3 das obrigações de fazer e não-fazer, rompendo-se com um dogma, na medida em que se permitiu que o devedor inadimplente, a partir de então pudesse sofrer a sanção no próprio “processo” de conhecimento, independentemente de uma nova relação processual.

Destarte, tais inovações trouxeram consigo a previsão das ações mandamentais e das executivas lato sensu, duas espécies de ações que não se enquadram na repartição clássica entre as de conhecimento e execução. Configuram verdadeiros pontos de interseção que dispensam “processo” executivo ex intervallo para a garantia do efetivo provimento jurisdicional.

Assim, ante esta bem sucedida modificação, foi promulgada a Lei nº 10.444/2002, um dos instrumentos representativos da segunda grande Reforma do Código de Processo Civil (CPC), que estendeu a aplaudida tutela específica das obrigações de fazer e não fazer às obrigações de dar, introduzindo o art. 461-A no referido diploma processual.

Recentemente, essa tendência abolicionista do “processo” de execução deu mais um passo significativo com a publicação da Lei nº 11.232/2005 que alterou o CPC, retirando, definitivamente, a liquidação e a execução da sentença cível do Livro II do Código (que trata de tal “processo”) e as incorporando ao Livro I, que diz respeito ao “processo” de conhecimento. Desse modo, a liquidação de sentença foi reduzida a um “mero incidente procedimental” (SHIMURA, 2005, p. 243), e foi alterada toda a sistemática dos provimentos condenatórios, com o fito de “tornar a execução de sentença como mera fase, subsequente à fase do conhecimento, amalgamando num único processo as duas atividades, cognitiva e satisfativa” (p. 242).

Com essas relevantes alterações estruturais, o conceito de sentença, que já despertava intermináveis discussões doutrinárias e jurisprudenciais, por conta da antiga redação do §1º do art. 162 do CPC, passou a ser ainda mais debatido. Sem adentrar especificamente 3 Obtenção do mesmo resultado que teria caso a obrigação fosse cumprida espontaneamente.

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nesta celeuma, acata-se no presente estudo, o entendimento de Câmara (2006, p. 24), segundo o qual, “a sentença do direito processual civil brasileiro continua a ser o que sempre foi: o ato do juiz que põe fim ao ofício de julgar, resolvendo ou não o mérito da causa”. Assim, a um único processo, uma única sentença.

Feita essa consideração conceitual e conhecida essa nova realidade alônoma das sentenças condenatórias provenientes do juízo cível, alguns questionamentos podem ser vislumbrados: Os demais títulos executivos judiciais (previstos no novel art. 475-N do CPC) e os extrajudiciais (previstos no art. 585 do mesmo código) seguiram esta evolução? São exceções, ou entraves, para o reconhecimento da completa alonomia processual?

Seguindo as novidades acima delineadas, Shimura (2005, p. 245, grifos do autor) dividiu os títulos executivos judiciais em dois grupos distintos, o dos provenientes de um juízo cível de primeiro grau e o dos que dele não provêm:

De conseguinte, dá-se a fusão de dois processos em uma única relação processual (sincretismo processual), pelo menos quando o título executivo judicial se consubstanciar em sentença condenatória proferida no processo civil, sentença homologatória de conciliação, transação ou acordo extrajudicial, e o formal ou certidão de partilha.Quer dizer, continuará havendo processo autônomo de execução quando o título executivo judicial for sentença penal condenatória transitada em julgado, sentença arbitral ou sentença estrangeira, homologada pelo Supremo Tribunal Federal [leia-se: Superior Tribunal de Justiça, em face da modificação trazida pela EC nº 45/2004], caso em que se exige, como ainda hoje vigora, ordem de citação do devedor, no juízo cível, para liquidação ou execução, dependendo da hipótese.

Como se pode observar, segundo a atual sistemática do CPC, já

se pode qualificar como parcialmente autônomo o “processo” executivo calcado em título executivo judicial, uma vez que a autonomia se restringe às hipóteses previstas nos incisos II, IV e VI do art. 475-N daquele código.

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21 O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade ...

Já os títulos executivos extrajudiciais, apesar de terem sido submetidos a uma plausível reformulação pela Lei nº 11.382/2006 (que simplificou, consideravelmente, o seu procedimento) permaneceram como fundamento da autonomia do “processo”, regulando-se pelo Livro II do CPC.

Esclarecidas essas premissas, é chegado o momento de responder ao questionamento posto: Não, definitivamente, os títulos extrajudiciais e os judiciais que ainda necessitam de “processo” autônomo não configuram nem exceções e nem entraves ao reconhecimento da completa alonomia processual. É que, em regra, o processo se inicia com o conhecimento e deságua na execução. São suas duas fases tradicionais. Sendo, entretanto, dispensada a primeira fase, há de se instituir outra espécie de “processo”? Não, isto não se coaduna com a idéia de um processo único. Seria, sim, apenas um “ultrapassar de fases”, ou seja, não havendo necessidade da primeira, passa-se diretamente à segunda.

É exatamente neste sentido que caminha Ramos (2006, p. 119-120):

Ora, qual a funcionalidade atual do Livro II (processo de execução) se a tendência dos tribunais brasileiros é no sentido de aceitar ação condenatória mesmo que o respectivo autor já disponha de título extrajudicial – o que obviamente ocorre pelo fato de o CPC nada impor em sentido contrário -, e se atualmente o sistema processual positivo tem meios de tornar mais efetiva a tutela jurisdicional executiva pelos caminhos do art. 461 e 461-A? Resposta: não há no sistema nada que impeça o portador de título executivo extrajudicial de valer-se de uma ação que viabilizará a tutela jurisdicional satisfativa, e mais efetiva, nos termos do art. 461 ou do art. 461-A do CPC, inclusive em relação à prestação pecuniária, que obviamente não deixa de ser uma obrigação de entrega (obrigação de dar coisa certa, no caso, dinheiro).[...] penso que as técnicas de tutela jurisdicional atualmente previstas no Livro I podem ser utilizadas sem que seja necessária a utilização do procedimento da execução contra devedor solvente prevista.

Page 22: Caderno de Ciências Sociais

22 Maria Soledade Soares Cruzes

Como se pode observar, o autor derruba com maestria os entraves apresentados neste estudo, ao entender que, além da Lei nº 11.232/2005 ter acabado com o processo de execução calcado em qualquer título executivo judicial, o Livro II, que estaria reservado aos extrajudiciais, deve ser definitivamente abolido do CPC. Com efeito, é perfeitamente compatível com o sistema atual a aplicação das técnicas do Livro I aos títulos executivos extrajudiciais.

Eis uma idéia digna dos mais sinceros aplausos; uma verdadeira e genuína constatação da irrealidade jurídica da autonomia dos “processos” de conhecimento e execução no Processo Civil Brasileiro, consagrando-se a inevitável alonomia dos mesmos.

o combalido “processo” cautelar

Bem, afora a bipartição acima analisada, o Direito Processual Civil Brasileiro reconheceu, ainda, um terceiro gênero, o “processo” cautelar, concebido com a finalidade de garantir o seguro e efetivo desenrolar do “processo” principal, assegurando a utilidade do seu resultado.

Como bem relata Neves (1997, p. 205-206), diferente do que se deu com os “processos” de conhecimento e de execução que passaram por uma verdadeira evolução, esta espécie processual demonstra-se enfraquecida desde a sua essência.

A verdade é que o “processo” cautelar configura um acessório, um apêndice dos demais “processos”, tendo sido, equivocadamente, erigido ao cargo de tertium genus. Ele não vive por si, estando sempre na dependência da propositura de outra relação processual, no seio da qual poderia ser desenvolvido, seja em sua abertura, seja de forma incidental, sem a necessidade de um novo “processo”.

Neste diapasão, cumpre ressaltar que, embora não se compartilhe, no presente estudo, da idéia de um processo repartido em espécies, se os processualistas optaram por dividi-lo, exigência, no mínimo lógica, seria que ele figurasse, no dizer de Câmara (2003b, p. 01), como um “segundo gênero” (e não como “terceiro”).

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Mas, apesar dos seus percalços teóricos, as medidas cautelares se expandiram de tal forma que os tribunais passaram a se deparar com distorções como as “ações cautelares satisfativas”, com fundamento no art. 798 (poder geral de cautela). É que a doutrina e os tribunais haviam atribuído à tutela cautelar a natureza de não-satisfatividade e o procedimento ordinário era dotado de uma complexidade que não o tornava capaz de efetivamente satisfazer os direitos do jurisdicionado. Ou seja, havia uma nuvem cinzenta a ser preenchida: a das “medidas sumárias satisfativas” (MARINONI, 2002, p. 119).

Foi assim que, para cessar os questionamentos, a Reforma do Código de Processo Civil de 1994 (arts. 273 e 461) criou a possibilidade da antecipação da tutela no próprio “processo” de cognição ou de execução, buscando-se, desse modo, ampliar a cobertura das tutelas de urgência e estabelecer objetos distintos a serem assegurados pela cautelar e pela antecipação de tutela. Segundo Marinoni (2002, p. 124), a primeira teria por fim assegurar a viabilidade da realização de um direito, não podendo, entretanto, realizá-lo; haveria de servir, sempre, como objeto de referibilidade a um direito acautelado. A outra, por sua vez, ainda que calcada em um juízo de aparência, seria “satisfativa sumária”, ou seja, satisfaria diretamente o direito pleiteado.

Contudo, embora plausível tal tentativa, a distinção no cotidiano forense não se revelou tão simples. Não obstante, a introdução, pela Lei 10.444/2002 (CPC, art. 273, § 7º), da fungibilidade entre as medidas urgentes, de modo que a cautelar possa agora ser concedida a título de tutela antecipada, no bojo do próprio “processo” de conhecimento, pôs um ponto final na questão.

Cumpre observar que, em que pese a tentativa de Dinamarco (2003, p. 92) de ampliar tal fungibilidade4, acata-se, no presente estudo, o posicionamento de Theodoro Júnior (2001, p. 94), ao ressaltar que ela é, na verdade, de mão única (apenas da tutela antecipada no que tange a cautelar, e não, em sentido inverso). “De fato, a simples leitura do novo § 7º do art. 4 Trata-se da pretensa “fungibilidade de mão dupla”, assim explanada por Dinamarco (2003, p. 92): “O novo texto não deve ser lido somente como portador da autorização a conceder uma medida cautelar quando pedida a antecipação da tutela. Também o contrário está autorizado, isto é: também quando feito um pedido a título de antecipação de tutela, se esse for seu entendimento e os pressupostos estiverem satisfeitos. Não há fungibilidade em uma só mão de direção”.

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273 nos leva a concluir que não está permitida a fungibilidade ‘progressiva’: de providência cautelar para medida antecipatória, esta mais rigorosa do que aquela” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 90).

É que, a tutela antecipada é incidental, seja no “processo” de conhecimento, seja no de execução, ao passo que a cautelar se dá em “processo” autônomo. Então, por que instituir um novo “processo” (com todos os ônus a ele inerentes5), se o objeto pleiteado pode ser efetivamente desenvolvido no próprio bojo do principal? Seria consideravelmente desnecessário.

É neste contexto que surgem os seguintes questionamentos: “Processo Cautelar: ainda é útil?” (DIDIER JR., 2005); “é o fim do processo cautelar?” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 87). Analisando o ordenamento jurídico brasileiro vigente poder-se-ia afirmar que, se não é o fim, é ao menos um grande indicativo; uma verdadeira demonstração de que é viável a sobrevivência do Processo Civil Brasileiro sem a necessidade de um “processo” cautelar autônomo.

Mas, há doutrinadores brasileiros que entendem que ainda restaram alguns resquícios da autonomia do “processo” cautelar:

Pelo que ora visualizamos, restarão ao processo cautelar autônomo duas únicas utilidades: a) como ação cautelar incidental (art. 800 do CPC), tendo em vista a necessária estabilização da demanda acautelada (arts. 264 e 294 do CPC), que já fora ajuizada, e também como forma de não tumultuar o processo com o novo requerimento; b) nas hipóteses em que a ação cautelar é daquelas que dispensam o ajuizamento da ação principal, exatamente porque não se trata de medida cautelar (exibição – arts. 844 e 845 do CPC; caução – arts. 826 a 838 do CPC), ou porque não se trata de medida cautelar constritiva (produção antecipada de provas, arts. 846 a 851 do CPC). RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 87-88).

Ora, eles apontam como solução para este primeiro resquício,

“a criação de dispositivo normativo que expressamente autorize a formulação ulterior de pedido cautelar, nos mesmos autos da 5 Petição inicial, custas, defesa, provas, recursos etc.

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demanda de conhecimento” (RODRIGUES; JORGE; DIDIER JR., 2003, p. 87-88).

Mas, o exercício da função jurisdicional de cognição sumária urgente, não-satisfativa, não há de tumultuar o andamento do processo, e nem o exercício das demais funções. Pelo contrário, as partes poderão resolver o motivo da urgência dentro de uma mesma relação processual. Então, o que seria mais benéfico aos jurisdicionados: a instituição de uma nova relação processual ou a discussão de uma questão incidental como uma função/atividade do magistrado (sendo, assim, garantida a celeridade que a urgência pugna)? Certamente, a segunda opção.

Desse modo, ousa-se discordar da sugestão dos doutrinadores Abelha Rodrigues, Cheim Jorge e Didier Jr., para afirmar que a visão do processo em funções já é, por si, capaz de solucionar esse primeiro empecilho, sem a necessidade da criação de um novo instituto, e nem de uma nova relação processual.

No que tange ao segundo resquício, o que aparenta tratar-se de um “processo” cautelar puro, é na verdade, medida satisfativa, havendo de se falar, portanto, em tutela antecipada. Ora, se a tutela jurisdicional se satisfaz em uma mera antecipação de tutela, ótimo! O processo há de se encerrar em uma só fase, ou melhor, através do exercício de uma única função jurisdicional.

Assim, desarticulados os possíveis resquícios, acata-se, a exemplo do que se fez no item anterior, a sensata sugestão de Ramos (2006, p. 114), segundo o qual, “o processo civil brasileiro não perderia em nada se uma eventual lei de Reforma simplesmente derrogasse o CPC no tocante aos dispositivos de seu Livro III”. Às suas idéias, mais uma vez, sinceros aplausos! É o completo reconhecimento da alonomia dos “processos” de conhecimento, de execução e cautelar.

A idéia de um sistema processual único e multifuncional

O termo “sistema” traduz a idéia de miscigenação, harmonia, coordenação, enfim, processo. As partes que integram um sistema hão

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de ser coordenadas, interdependentes e acopladas por meio de aspectos de ligação que as tornam indissociáveis, formando um todo harmônico e coordenado6.

Ocorre que, como restou relatado, o Processo Civil Brasileiro foi estruturado como um conjunto de “processos” (de conhecimento, de execução, e cautelar); de modo que, o que era para constituir um todo harmônico traduz-se numa contraditória repartição em sistemas autônomos entre si, atribuindo-se a cada um, fim próprio.

É chegada a hora de restabelecer a ordem natural das coisas, negando a autonomia ou independência dos “processos” de conhecimento, de execução e cautelar, e unificando, definitivamente, o sistema processual. Trata-se, pois, no apropriado dizer de Ramos (2006, p. 112), de um “movimento de ruptura”.

É este o caminho que parece trilhar Zavascki (2000, p. 09), quando observa a relatividade da segmentação do processo em espécies:

Tutela de conhecimento, tutela executiva e tutela cautelar constituem, nos moldes clássicos acima reproduzidos, as três espécies de tutela jurisdicional e com base nelas é que também o legislador brasileiro de 1973 formulou a estrutura do sistema processual civil: a cada espécie de tutela correspondem “processo”, “ações” e “procedimentos”, com seus princípios e normas próprias e separados em Livros específicos.Está longe de ser absoluta, entretanto, em nosso sistema, a segmentação da tutela jurisdicional, consideradas as espécies clássicas acima elencadas.

Ousa-se ir além: tal segmentação, além de ser relativizada, deveria ser abolida do sistema processual civil brasileiro, pois com ele é, definitivamente, incompatível.

Contudo, a questão não se resume ao indubitável reconhecimento da idéia de um sistema processual civil único no direito brasileiro. Envolve, essencialmente, a busca por uma melhor forma de se organizar este sistema. Assim, em busca de uma solução ideal, duas opções (ou 6 Neste sentido, ver: Bueno (1996, p. 609), Silva et al. (1979, v. 2, p. 1609) e Cunha (1996, p. 728).

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critérios organizacionais) parecem, inicialmente, viáveis: 1) a multiplicação de fases processuais; 2) a multifuncionalidade processual.

A primeira consiste na concepção de um processo único, desenvolvido num desenrolar de fases (o conhecimento, a execução e a cognição sumária urgente), na busca da justa solução para a lide apresentada ao Estado-juiz. Este critério resolveria, facilmente, a questão da repartição do processo, no que tange às argumentações acerca dos “processos” de conhecimento, execução e cautelar puros.7

Mas, quando se dá uma miscigenação de fases, quebrando a linearidade natural do processo, melhor se faz recorrer à sua visão como um conjunto de funções jurisdicionais a serem exercidas pelo Estado-juiz a fim de que se garanta ao jurisdicionado um devido processo legal. Nesta visão, o juiz há de exercer suas funções apenas quando necessárias à resolução da lide, sejam elas concomitantes, antecedentes ou únicas (bastando-se por si mesmas).

A multifuncionalidade, como critério organizacional, satisfaz, assim, a todo e qualquer questionamento contrário à reunião dos “processos” tidos como autônomos no atual sistema processual brasileiro8. E o que se entende como viável para uma possível implantação desta idéia no Direito Processual Civil é algo que se coadune com a noção de: função de cognição (ou conhecimento), de execução e cognição sumária urgente.

Não se manteve, propositadamente, para a terceira função jurisdicional, a mesma nomenclatura e objetivo do “processo” cautelar, como se deu nas funções de conhecimento e de execução. É que, como se viu, o “processo” cautelar é uma medida de cognição sumária e de caráter urgente, que serve para assegurar o regular andamento do feito principal, não sendo, portanto, satisfativa. Já a antecipação da tutela, embora também seja de cognição sumária e urgente, tem um cunho satisfativo. São, pois, “técnicas processuais distintas embora possuam uma mesma função” (DIDIER JR., 2005). Ou seja, fazem parte de 7 Argumentações já refutadas neste estudo. 8 Neste ponto, faz-se mister esclarecer que, em que pese não ser o melhor critério para a resolução de algumas celeumas em torno da autonomia dos “processos”, o critério de desenrolar de fases deve ser utilizado subsidiariamente, como reforço da multifuncionalidade.

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um mesmo gênero, que possui como única função jurisdicional: a da cognição sumária urgente; podendo o juiz exercê-la em caráter satisfativo (antecipação) ou conservativo (cautelar).9

A viabilidade do sincretismo no processo civil brasileiro

Silva (1979, v. 2, p. 1603, grifo nosso) sintetiza os diversos significados atribuídos ao termo “sincretismo”:

Sincretismo, s.m. (gr. sugkretismos). 1. Filos. Sistema que combinava os princípios de diversos sistemas. 2. Amálgama de concepções heterogêneas; ecletismo. 3. Gram. Fenômeno de uma forma linguística ou de uma desinência acumular várias funções.

Transpondo-se essas idéias para o Direito Processual Civil10,

pode-se concluir que o seu sincretismo consiste em unificar os diferentes sistemas processuais aos quais foi conferida autonomia, formando um sistema processual único, no qual as funções (cognição sumária urgente, conhecimento e execução) se entrelaçam harmonicamente.

Assim, após uma análise em torno de cada espécie de “processo”, concluindo-se pela alonomia dos mesmos (em face das recentes reformas); uma vez esclarecidas as noções de sistema processual único, de multifuncionalidade; e por fim, de Sincretismo do Processo Civil, há de se considerar que é, sim, viável o Sincretismo do Processo Civil Brasileiro.

Neste sentido se manifesta Câmara (2003b, p. xxi, grifo nosso), que ao aplaudir a Reforma advinda de Lei 10.444/2002, afirma:

[...] aquela foi responsável por uma verdadeira revolução processual, na medida que diminui muito a desarrazoada necessidade que anteriormente tínhamos de multiplicar processos para solucionar uma única causa. Agora, com a possibilidade de reunir em um só processo cognição e execução,

9 Dinamarco (2004, p. 59, grifo do autor) lembra que esta “é a postura do Código de Processo Civil italiano, que, na moderníssima versão decorrente das sucessivas alterações por que passou nos anos noventa, encerra a seção destinada aos procedimentos cautelares (arts. 669-bis ss.) com uma norma geral destinada às medidas de urgência atípicas, as quais poderão ser, segundo opinião generalizada em doutrina, conservativas ou antecipatórias”.10 Como o fez o professor Dinamarco (2002) em sua clássica obra “Execução Civil”.

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bem como por ser possível obter, em um só processo, tutela cautelar e tutela satisfativa, o direito processual civil brasileiro dá mais um passo adiante em busca de sua plena efetividade.

Vale a pena conferir, igualmente a síntese de Abelha Rodrigues, Cheim Jorge e Didier Jr (2003, p. 86-87, grifo nosso):

O processo de conhecimento, que com a Reforma de 1994 já havia recebido grandes doses de efetivação e asseguração (a própria antecipação da tutela, que possui funções executiva e de segurança), com essa nova mudança atingiu a quase-plenitude do sincretismo das funções jurisdicionais: na própria relação jurídica processual com função cognitiva, podem ser alcançadas a tutela cautelar e a tutela executiva. Observando-se o quadro de mudanças legislativas, notadamente no que diz respeito ao incremento da tutela diferenciada das obrigações de dar coisa distinta de dinheiro, fazer e não fazer pode-se tranquilamente identificar uma tendência inexorável de nossa legislação: a unificação dos “processos”. Com o claro objetivo de acabar com a vetusta exigência de que, para cada função jurisdicional, uma relação jurídica processual própria, transforma-se a relação jurídica processual de conhecimento, que passa a ter a característica da “multifuncionalidade”. Aplausos.

Mais audacioso, ainda, se mostra o pensamento de Ramos (2006, p. 111-112, grifos do autor):

Em miúdos: penso que não é mais legítimo pensar em “processo” de conhecimento, de execução ou cautelar, dado o prejuízo que isso causou à própria funcionalidade do direito processual; processo é atividade de poder representada na relação processual – rectius, num único “processo” – seja realizada ora atividade cognitiva, ou atividade executiva, ou atividade cautelar, o que variará de acordo com o momento procedimental e com a tutela jurisdicional pretendida e adequada ao caso concreto.

Em suma, como se pode observar, o Sincretismo do Processo Civil Brasileiro já é reconhecido pela doutrina brasileira como perfeitamente viável e é, sem sombra de dúvidas, o melhor caminho para

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os jurisdicionados e para o Estado. Inviável é se prender a distorções históricas, formalismos desnecessários e infrutíferas repetições.

Considerações finais

Reconhecendo a absoluta alonomia entre os “processos” e tendo em mãos um critério organizacional eficiente (a multifuncionalidade) pode-se romper com o dogma clássico da repartição, para ceder espaço à idéia de um sistema processual único, no qual, o Estado-juiz exercerá as funções que entender necessárias para a efetiva resolução do caso sub judice, de acordo com um juízo de oportunidade e eficiência.

Assim, conferindo-se ao juiz a liberdade de miscigenar conhecimento, execução e cognição sumária urgente, constrói-se a idéia do Sincretismo do Processo Civil Brasileiro, sob a égide da esperança de que esta construção não haverá de se reduzir a um utópico projeto arquitetônico. Com efeito, sonha-se com o dia em que as necessidades da vida hão de superar o artificialismo dos dogmas processuais. Viável, a idéia é sim!

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável

Claudia de Oliveira Fonseca 1

Resumo: A família brasileira sofreu grandes transformações após o reconhecimento da união estável como entidade familiar pela Constituição de 1988, que facilitou a sua conversão em casamento. Apesar da grande divergência entre doutrina e jurisprudência sobre o tema, o código civil contribuiu para mitigar as dúvidas daí advindas, ao disciplinar a união estável e sua conversão em casamento.

Palavras-chave: Casamento. Família. União Estável.

the possibility of the married person to constitute steady union

Abstract: The brazilian family suffered big transformations after the Constitution Brazilian about recognition stable union while home circle, making easy its conversion in marriage. Despite numberless divergences in doctrine and jurisprudence about it, the civil code contributed to mitigate this doubts, treating about stable union when don’t is possible marriage.

Keywords: Marriage. Family. Stable Union.

1Pós-graduada em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC–MG). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 33-42 2009

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34 Claudia de Oliveira Fonseca

Introdução

A Constituição Federal (CF) de 1988 contemplou expressamente em seu artigo 226 a união estável como forma de constituição da família, ao lado do casamento e da família monoparental (aquela constituída pela convivência de qualquer ascendente com qualquer descendente). Com o código civil de 2002, a matéria foi consolidada, e em seus artigos 1.723 a 1.727 foram trazidas algumas normas reguladoras da entidade familiar, o que ocasionou divergências na doutrina, com consequentes reflexos na jurisprudência pátria, como se verá a seguir.

O presente artigo trata da possibilidade de a pessoa casada viver em união estável com outrem, possibilidade contemplada na legislação vigente.

Evolução das relações familiares

A sociedade sofre transformações instantâneas e o Direito, como instrumento de controle social, deve (deveria) acompanhar essa evolução social. Mas o Direito não tem a mesma velocidade de transformação experimentada pela sociedade em seus usos e costumes. Afirma Gobbo (2000) que “dos vários ramos do direito, sem dúvida, o Direito de Família é dos ramos mais dinâmicos, porque seu objeto de estudo – a família – tem por sujeito o ser humano, dinâmico por natureza”. Desse modo, a legislação precisa acompanhar, ainda que de forma mais lenta, as mudanças ocorridas nesse campo.

Isso ocorre, afirma Hironaka (1999), porque a família é uma entidade histórica, interligada com os rumos e desvios da história, ela mesma mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos.

A fisionomia da família mudou, e isso não significa o fim da clássica forma de família nuclear, mas que já não pode servir como único paradigma para a sociedade do futuro pelo surgimento de outras e variadas estruturas familiares, afirma Grisard Filho (2003).

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35 A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável

O código civil de 1916 somente admitia como entidade familiar aquela instituída pelo casamento, livre de impedimentos e cumpridas as formalidades legais. Ou seja, o matrimônio era o único laço legítimo e legal de constituir família e apenas quem era ligado por tal vínculo tinha proteção do Estado, diz Gobbo (2000). Tal concepção, reafirma a autora, era fruto da influência sociorreligiosa, por meio da qual se via o casamento com claro interesse de continuidade da família, em que os envolvidos tinham seu papel bem definido: o homem era o provedor, responsável pelo sustento da família, e a mulher, mera reprodutora, restrita ao ambiente doméstico, à administração da casa e à criação dos filhos.

De 1916 até 1988, pouca ou nenhuma alteração houve nesse contexto. Mas, com o advento da Constituição e o consequente processo de constitucionalização2 do direito de família, aqueles antigos institutos regulamentados pelo código civil de 1916 ganharam nova roupagem.

O direito de família, sem dúvida, foi objeto de grande transformação, pois a constitucionalização das relações familiares promoveu, segundo Dias e Pereira (2002), uma “nova ordem de valores, privilegiando a dignidade da pessoa humana, realizando verdadeira revolução no direito de família” e possibilitando, assim, o reconhecimento, como entidade familiar, de relações não instituídas pelo casamento.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, tratou do reconhecimento estatal à união estável entre homem e mulher, considerada como entidade familiar. Além disso, reconheceu também como entidade familiar a família monoparental.3

Desde que o texto constitucional retirou a união estável do alcance da sociedade de fato, para dar-lhe o status de entidade familiar, seguramente ocorreu grande evolução no direito de família. Dessa forma, conforme Trevisan (2004), a família passa a ser um fato natural – e por ser o casamento uma convenção social já não se pode distinguir a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser seu único traço diferencial. 2 Constitucionalização é a expressão usada pelos doutrinadores na aplicação de preceitos da Cons-tituição Federal de 1988 nas relações familiares.3 Art. 226, § 4º da CF: “entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

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36 Claudia de Oliveira Fonseca

União estável – requisitos para sua constituição

A união estável é a convivência não adulterina nem incestuosa, duradoura, pública e contínua, entre um homem e uma mulher, sem vínculo matrimonial, como se casados fossem, sob o mesmo teto ou não, constituindo, desse modo, família de fato, diz Azevedo (2000). Para que a união assim se caracterize, não pode haver impedimentos à realização do casamento, tais como os previstos no artigo 1.521 do código civil – não se aplica, porém, a incidência do inciso VI4 desse artigo no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

É facilmente perceptível que a família moderna não necessita do contrato solene denominado “casamento” para sua constituição e existência, diz Almeida (1998). Nisto reside, segundo entendimento do doutrinador, a natureza sociojurídica da união estável: fato gerador alternativo e natural da família. Hoje reconhecida como entidade familiar5, a união estável, que no passado possuiu a denominação de “concubinato”, do latim cum cubare, sempre possuiu sentido pejorativo, associado à devassidão. Não obstante, sua existência factual nunca foi negada, ao revés, mesmo em Roma já foi premiada com conotações jurídicas, conquanto tímidas dado que conceituada como “casamento inferior”, conforme Almeida (1998).

Nesse sentido, quando legislação e doutrina conceituam a união estável como aquela entre pessoas de sexo diferente, que, sem haverem celebrado casamento, vivem como se casadas fossem, de forma contínua e duradoura, reforça-se a tese de que, nesse tipo de união, o que importa, para sua caracterização, é a intenção dos conviventes de, efetivamente, constituírem uma família, diz Melo (2005). É por isso que alguns doutrinadores entendem que a união estável é um fato social. Mas se a união estável é fato social, seria necessário regulamentar tal situação, 4 Art. 1.521 do código civil – Não podem casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II – os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.5 Art. 226, § 3º, da CF: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

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37 A possibilidade de a pessoa casada constituir união estável

uma vez que, na maioria das hipóteses, os protagonistas dessa relação fizeram a opção de fugir das normas legais que regram o casamento? Mas, e se assim não o for, será que a ausência de normas jurídicas não seria o caminho para injustiças no caso concreto? Foi exatamente por isso que o legislador pátrio resolveu normatizar essa relação, elevando-a à categoria de entidade familiar. Essa intervenção do Estado visa assegurar a concretude do Princípio da Igualdade Substancial de forma a evitar um desequilíbrio das partes na relação, como afirma Maria Berenice Dias6:

A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Tratando-se de relações de caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização. Assim, passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o respaldo legal para se constituírem, mas também os relacionamentos que escolhem seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência.

O código civil, em seu artigo 1.723, reza: “É reconhecida como

entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O dispositivo legal exige: diferença de sexos7, convivência pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família. Então vejamos: convivência pressupõe vida em comum, não significa, portanto, dever de coabitação no mesmo domicílio. Não! É possível a caracterização de união estável à distancia; ainda que os companheiros residam em locais diversos é possível caracterizar a estabilidade da união (como admitido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na súmula 3828 para caracterização do concubinato).

6 A estatização das relações afetivas e a imposição de direitos e deveres. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e cidadania: o novo CCB e a vacatio legis. Belo Horizonte: IBDFAM, Del Rey, 2002. p. 307.7 Apesar de a lei fazer referência à divergência de sexos para caracterização da união estável, não podemos subtrair do conhecimento do leitor o movimento doutrinário a favor da aplicação dos princípios da igualdade e da analogia para reconhecimento legal da união homoafetiva no mesmo patamar da união estável.8 Súmula 382 do STF: A vida em comum, sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato.

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A palavra duradoura significa estável, duração por tempo razoável, tempo suficiente para caracterizar o intuitu familiae. O dispositivo não exige prazo mínimo de convivência, ficando abandonado de vez o critério temporal (cinco anos) exigido na lei 8.971/94, como bem afirma Pereira (2003, p. 121): “importa agora a existência de certa continuidade e um entrosamento subjetivo para distingui-la de uma união passageira, descomprometida”.

Além desses requisitos, a união estável exige o elemento intencional, o objetivo de constituir família.

A convivência precisa ainda ter publicidade, isto é, que não ocorra às escondidas, de forma que a comunidade reconheça os companheiros como se casados fossem. Logo, não é possível união adulterina ser caracterizada como união estável. Somente é possível falar em união estável se não houver impedimento para essa nova relação.

União estável de pessoa casada

Em regra, quem é impedido para o casamento também é impedido para constituir união estável. Mas o código civil traz duas ressalvas no artigo 1.723, § 1º: “A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato9 ou judicialmente”10.

A razão de tais exceções consiste no fato de o código civil visar a proteção da realidade fática e não de uma mera certidão de casamento, que já não corresponde à realidade.

A Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, determina o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, e o dever de que a lei facilite sua conversão em casamento. Parte da doutrina, inclusive Tartuce (2005), defende que o 9 A separação de fato é a ruptura da vida em comum, em caráter contínuo e prolongado, que pode, em certas circunstâncias, dissolver a sociedade conjugal.10 A separação judicial é o processo fundado numa das hipóteses dos artigos 1.572 a 1.574 do código civil, por meio do qual se dissolve a sociedade conjugal, ao fazer cessar os deveres de coabitação e fidelidade recíproca e o regime de bens, mas não se extingue o vínculo matrimonial, pois este só desaparece com a morte, o divórcio, a nulidade ou a anulação do casamento.

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artigo 1.723, § 1º do código civil, ao estabelecer a possibilidade de pessoa separada de fato manter união estável com outrem, entra em choque com esse preceito constitucional. Segundo aquele autor, valendo-se de uma interpretação sistemática do texto constitucional então transcrito, devem ser aplicadas aos companheiros as mesmas regras protetivas do casamento, o que não seria possível quando se tratasse de união “estável” constituída por pessoa cujo vínculo do matrimônio ainda não tivesse sido desfeito.

É sabido que a pessoa separada de fato não pode contrair novo casamento, e também a pessoa separada judicialmente, isso porque a separação de fato não extingue o vínculo matrimonial. Como à união estável devem ser aplicadas as mesmas regras do casamento, afirmam os defensores dessa corrente doutrinária que a pessoa separada de fato mantém com outrem um concubinato impuro adulterino, e chegam à conclusão de que não se pode conceber, portanto, pela ótica do texto constitucional, que um homem separado de fato constitua união estável.

Outra parte da doutrina afirma estar claro que a lei civil admite a possibilidade de uma pessoa casada constituir união estável desde que esteja separada judicialmente ou separada de fato do seu cônjuge.

De acordo com o artigo 1.727 do código civil: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”.

Conforme a previsão dos artigos 1.723 e 1.727 do código civil, se não houver impedimento para o casamento, a união notória, contínua e duradoura é dita estável; ao contrário, havendo impedimento matrimonial, ainda que seja notória, contínua e duradoura, a união permanente ou não eventual é denominada concubinato, ressalvadas as exceções previstas na segunda parte do § 1º do artigo 1.723 do código civil (BAPTISTA, 2005).

Do confronto entre esses artigos, podemos afirmar que a união estável consiste em união pública, contínua e duradoura entre pessoas de sexo diferente que não tenham impedimento para o matrimônio, ao passo que o concubinato consiste em união de pessoas impedidas de

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casar; mas a segunda parte do artigo 1.723 da legislação civil afirma ser possível uma pessoa casada constituir união estável, desde que esteja separada judicialmente ou de fato do seu cônjuge. São, portanto, duas hipóteses contempladas pela legislação em que, apesar de estar presente um impedimento matrimonial, não se encontra impedimento para a constituição da união estável.

Fica, portanto, evidente que para uma pessoa casada habilitar-se para novo casamento e contrair novo matrimônio terá que primeiro divorciar-se, ou invalidar o casamento anterior. Mas para que estabeleça uma união estável, não precisará agir da mesma forma; basta transcorrer o prazo de dois anos da separação de fato do casal – em analogia ao prazo previsto no texto constitucional para a cessação do vínculo matrimonial pelo divórcio – que a nova união será considerada estável. Contudo, vale ressaltar, o código civil não estabeleceu tempo de separação de fato entre os cônjuges a partir de quando cessaria o impedimento para a constituição da união estável. Esse entendimento emana da doutrina.

É inegável que houve grande avanço da legislação civil nesse assunto, mas não se pode esquecer que o legislador criou grande dificuldade para o julgador quando lhe for apresentado o caso concreto. Imaginemos, por exemplo, a situação de coexistência de regime de bens do casamento e da união estável, enquanto não dissolvida a sociedade conjugal. Adverte Baptista (2005) que ficará extremamente difícil identificar o momento da separação de fato do casal e o começo da nova relação, a união estável. Nesse caso, será o julgador que, analisando a situação fática, verificará se o período de convivência é suficiente para que a união seja considerada estável e estabelecerá as consequências patrimoniais daí advindas para os protagonistas dessa história da vida real, de forma que não gere injustiça e locupletamento ilícito a desfavor do direito de qualquer dos envolvidos no conflito.

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Considerações finais

Verificamos que o ordenamento jurídico quis proteger a realidade fática e não a situação meramente formal ao possibilitar a caracterização da união estável por pessoa casada, desde que esteja separada de fato ou judicialmente. Parece-nos que houve acerto legislativo nesse aspecto, ao preferir contemplar a realidade fática em detrimento da realidade documentada, que se distanciou da situação concreta, pois outra não é a função do Direito senão estabelecer regramento para o convívio social, logo não poderia o legislador fechar os olhos para a realidade, como se ela não existisse.

Mas, apesar do regramento legislativo, sem dúvida o julgador irá se deparar com situação concreta de difícil solução, principalmente quando se tratar de confusão de regimes de bens do casamento e da união estável. Deverá o julgador estar atento às situações fáticas para que não proporcione o enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 43-60 2009

Criminalística: origens, evolução e descaminhos

Rodrigo Grazinoli Garrido 1 Alexandre Giovanelli 2

Resumo: Neste artigo discutiram-se as origens e a evolução das técnicas voltadas para a elucidação de crimes no mundo e especialmente no Brasil. Partiu-se de evidências pré-científicas até se alcançar os primeiros trabalhos sistematizados que estruturaram o conhecimento Criminalístico. Foi demonstrado que a Criminalística deixou precocemente a academia e direcionou-se para as instituições policiais. No Brasil, isto ficou bem caracterizado a partir dos anos de repressão do governo militar, o que contribuiu para o atraso atual das instituições criminalísticas.

Palavras-chave: Ciência Forense. Medicina Legal. Polícia Técnica. História da Polícia.

Criminalistic: origins, evolution, and deviations

Abstract: In this article, the origins and development of technology related to crime investigations in the world and specially in Brazil were discussed. This work started in pre-scientific clues, until it reached the systematization of the main disciplines composing the Criminalistic knowledge. It was shown that

1 Doutor em Ciências pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, atua como Perito Criminal do IPPGF-PCERJ, onde colabora com o projeto de pesquisa LOCALIZAR. E-mail: [email protected] Doutorado em Biologia Parasitária pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é Perito Criminal do Instituto de Criminalística Carlos Éboli do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Criminalistic early left academy to compose police department. In Brazil, this fact was better characterized after military dictatory period, what enhanced criminalistic institutions present delay.

Keywords: Forensic Science. Legal Medicine. Technical Police. Police History.

Introdução

Apesar dos avanços tecnológicos que acompanham a Criminalística ou Ciência Forense atualmente, a utilização de técnicas voltadas para a elucidação de crimes remonta a épocas pré-científicas (BAZAGLIA; BORTOLINI, 2004; BARBOSA; BREITSCHAFT; 2006). Entretanto, foi a partir do século XVI que se promoveu uma sistematização de dados de maneira a formar um corpo de conhecimento estruturado (CODEÇO, 1991; DOREA; 1995).

Para alguns, a Criminalística seria filha da Medicina Legal (CODEÇO, 1991). No entanto, para outros as origens dessas ciências se confundem (DOREA, 1995). Na realidade, as diferentes disciplinas que atualmente compõem a Ciência Forense tiveram origem, na maioria das vezes, independente e, em alguns casos, até incidental. A Criminalística como conhecemos teria seu início quando Hans Gross, no final do século XIX, propôs que os métodos da Ciência moderna fossem utilizados para solucionar casos criminais (RABELLO, 1996).

Em 1908, foi criado o “Instituto de Polícia Científica” na Universidade de Lausanne na França (ABC, 2006). Todavia, fora da Europa, as instituições voltadas às atividades criminalísticas foram tardias (GIALAMAS, 2000). Apesar de originada na Academia (ABC, 2006), a Criminalística foi aos poucos sendo tutelada pelo estado e incorporada às forças policiais. A criação de laboratórios policiais nos EUA, ocorreu entre 1920 e 1930 e na década de 1950, a solicitação do trabalho pericial científico já se tornara rotina aceita pelas autoridades judiciais e policiais (MONAGHAN, 1964).

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Semelhante ao restante do mundo, no Brasil, a origem da Criminalística confunde-se com a da Medicina Legal, deixando, ainda no início, a Universidade e se tornando atividade policial (GOMES, 1944; FERREIRA, 1962). No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, instituições criminalísticas independentes surgiram já no final da primeira metade do séc. XX, já vinculadas ao aparato policial (SOUZA; MINAYO; ASSIS, 2003).

Nesse trabalho, a partir do levantamento e análise de documentos técnicos especializados e textos com forte viés corporativo, realizou-se uma caminhada pela história da Criminalística, procurando demonstrar suas origens e seu desvio dos Centros de Pesquisa e Universidades em direção das instituições policiais. Pretendeu-se também, oferecer pistas que demonstrassem que esse redirecionamento, em grande parte, foi responsável pelas perdas na evolução do conhecimento criminalístico, principalmente em regiões periféricas.

o que é a criminalística?

O termo Criminalística foi lançado por Hans Gross para designar o “Sistema de métodos científicos utilizados pela polícia e pelas investigações policiais” (CODEÇO, 1991). Em uma definição do 1° Congresso Nacional de Polícia Técnica, ocorrido em São Paulo no ano de 1947, a Criminalística seria a “disciplina que tem como objetivo o reconhecimento e a interpretação dos indícios materiais extrínsecas, relativos ao crime ou à identidade do criminoso”. Podia-se ainda definir a Criminalística não como uma ciência, mas como a aplicação do conhecimento de diversas Ciências e Artes (DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006). De forma geral, esta utiliza métodos desenvolvidos e inerentes às diversas áreas para auxiliar e informar as atividades policiais e judiciárias de investigação criminal (RABELLO, 1996).

Em uma análise atual, a Criminalística é uma ciência aplicada que utiliza conceitos de outras ciências firmadas nos princípios da física, da química e da biologia, no bojo de métodos e leis próprias embasadas

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nas normas específicas constantes na legislação, principalmente a processual penal (FRANÇA, 2001; INMAN; RUDIN, 2002). Não devemos confundir o campo da Criminalística com o da Medicina Legal. Embora ambas se responsabilizem pelos exames de corpo de delito e, assim, apresentem interseção em vários momentos, a Medicina Legal tem como objetivo os exames de vestígios intrínsecos (na pessoa), relativos ao crime (DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006).

Durante sua evolução, várias foram as denominações doutrinariamente impróprias dadas à Criminalística (O’HARA, 1964; PORTO, 1969). Essa Ciência foi chamada de Criminologia Científica; Ciência Policial; Investigação Criminal Científica; Policiologia, as quais se aplicam também à administração policial e aos métodos de elucidação geral. O termo Criminalística é, na verdade, oriundo da escola alemã, sendo utilizado por toda Europa, já naquela época os termos “Kriminalistik e Criminalistique”. O próprio termo Ciência Forense não é sinônimo de Criminalística em toda parte do mundo. Para Gialamas (2000), Ciência Forense deve ser definida como a aplicação das ciências à matéria ou problemas legais cíveis, penais ou mesmo administrativos. Dessa forma, a Criminalística seria apenas uma das matérias da Ciência Forense.

As origens da criminalística

Apesar dos avanços tecnológicos que acompanham a Ciência Forense na atualidade, a utilização de técnicas específicas voltadas para a elucidação de crimes e indiciamento de criminosos remonta a épocas pré-científicas. Um exemplo do uso da habilidade e imaginação individual relacionado à resolução de crimes pode ser vislumbrado em Daniel: no século VI a.C., Daniel com grande perícia foi capaz de provar ao rei da Babilônia, Ciro, o Persa, que as oferendas prestadas ao ídolo Bel eram, na verdade, consumidas pelos sacerdotes e seus familiares. Para tanto, Daniel fez que espalhassem cinzas por todo o piso do templo, onde eram colocadas diariamente oferendas. No dia posterior, verificaram

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que, apesar da porta continuar lacrada, pegadas compatíveis com a dos sacerdotes eram observadas no chão e que as oferendas haviam sido consumidas (BAZAGLIA; BORTOLINI, 2004).

Já no século III a.C. há a clássica história do “Princípio de Arquimedes”. Conta Vitrúvio, que o rei Hierão de Siracusa mandou fazer uma coroa de ouro. Entretanto quando a coroa foi entregue, o rei suspeitou que o ouro fora trocado por prata. Para solucionar tal dúvida, o rei pediu que Arquimedes investigasse o fato. Arquimedes pegou uma vasilha com água e mergulhando pedaços de ouro e prata, do mesmo peso da coroa, verificou que o ouro não fazia a água subir tanto quanto a prata. Por fim, inseriu a coroa que por sua vez elevou o nível da água até a altura intermediária, constatando então que a coroa havia sido feita com uma mistura de ouro e prata. Assim, desvendou-se a fraude e desmascarou-se o artesão (BARBOSA; BREITSCHAFT, 2006).

A fase pré-científica da Criminalística também pode ser observada em informes da antiga Roma descritos por Tácito: Plantius Silvanus, sob suspeita de ter jogado sua mulher, Aprônia, de uma janela foi levado à presença de César. Este, por sua vez, foi examinar o quarto do suposto local do evento e encontrou sinais certos de violência (DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006). O relato deixa claro que, desde a antiguidade foram desenvolvidas técnicas e exames com o intuito de solucionar crimes.

Na verdade, a necessidade de utilizar conhecimentos técnicos na elucidação de crimes já era observada desde o séc. XVIII a.C., em artigos do Código de Hammurabi (BOUZON, 2003). No entanto, a polícia de investigação se originou em Roma com a lei Valéria (82 a.C.) que instituía dois questores (quoestores parricidii) para presidirem os trabalhos criminais (CODEÇO, 1991). Porém, nada técnico-científico sistematizado, os orientava (PORTO, 1969), persistindo assim por quase mil e quinhentos anos.

Foi somente no século XVI que se observou uma sistematização de dados de maneira a formar um corpo de conhecimento estruturado. Isso ocorreu inicialmente com os trabalhos de Ambroise Paré sobre

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ferimento por arma de fogo em 1560, os quais foram seguidos por estudos de Paolo Zachias em 1651, este último, sendo considerado o Pai da Medicina Legal (CODEÇO, 1991; DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006). Na realidade, as diferentes disciplinas que atualmente compõem a Ciência Forense tiveram origem, na maioria das vezes, independente e, em alguns casos, até incidental como podemos vislumbrar nos exemplos da Papiloscopia e da Balística forense que seguem:

Em 1563, João de Barros, publicava em Portugal suas observações sobre a obtenção de impressões palmares e plantares nos contratos na China. Entretanto, as primeiras referências sobre as papilas epidérmicas foram descritas no século XVII por Malpighi, na Itália, e por Nehemidr Crew, na Inglaterra. As impressões papilares e datilares também foram alvos do estudo de Purkinje, na Alemanha (CODEÇO, 1991; DOREA; STUMVOLL; QUINTELA, 2006). A real sistematização de conhecimentos no campo da identificação humana surgiu com Bertillon e seu método antropométrico que dominou o século XIX (CODEÇO, 1991).

Deve ficar claro que no início da Revolução Científica, cabia à Medicina Legal toda pesquisa, busca e interpretação de elementos relacionados à materialidade do fato penal e não só o exame do corpo humano (CAVALCANTI, 1995). Posteriormente, com o advento dos inúmeros ramos da ciência, a Criminalística foi ganhando terreno, criando seus próprios métodos e maneiras de correlacionar esses conhecimentos em prol da investigação criminal (GARRIDO, 2002).

De acordo com Codeço (1991), a Criminalística é filha da Medicina Legal. No entanto, para Dorea (1995), não seria possível distinguir a precedência da Medicina Legal, uma vez que as origens se confundem. Isto se deveria à indeterminação temporal do desejo humano de conhecer a verdade dos fatos quando seu semelhante é vítima de uma morte violenta, por exemplo. Apesar de alguns insistirem que a Criminalística faz parte da Medicina Legal, segundo Porto (1969) a própria Medicina Legal faz parte da Criminalística que seria um sistema no qual se reúnem diversos conhecimentos oriundos de várias ciências e algumas artes.

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Um dos primeiros registros da origem de um ramo da Medicina Legal preocupado com o exame dos Locais de Crimes, por exemplo, data de 1248, quando surgiu na China o livro intitulado Hsi Yuan Lu – “Registro Oficial da Causa de Morte” (DOREA, 1995). Segundo Fávero (1975), o começo da era científica da Medicina Legal teve início em 1575, na França, com Ambrósio Paré. Embora Paré tenha reunido vários trechos desta disciplina, segundo Lima, não representavam um corpo doutrinário, metódico e sistemático desta ciência. Em 1601 apareceram as “Questões Médico-Legais” de Paulo Zacchia, a quem esse mesmo autor considera o fundador desta ciência. No século XVIII a Medicina Legal se constituiu como disciplina científica, definitivamente.

Em resumo, foi a partir 1844 quando uma bula do Papa Inocêncio VIII recomendou a intervenção médica nas pesquisas criminais, que os trabalhos nesta área tomaram verdadeiro fôlego. A origem do uso das impressões papilares para a identificação de criminosos, no entanto, surgiu em 1877, quando William Herschel funcionário administrativo britânico na Índia, sugeriu um método de identificação de pessoas para o Inspetor Geral da Prisão de Bengala. Seus estudos de mais de 20 anos não foram levados em consideração na época, pois seriam resultados de delírio de Herschel, o qual apresentava saúde debilitada (CAVALCANTI, 1995).

De forma paralela e independente, o médico escocês Henry Faulds, trabalhando em Tóquio, observou marcas de dedos em cerâmica japonesa pré-histórica, o que o levou a propor um possível sistema de classificação baseado nas impressões digitais. Este trabalho foi enviado a Charles Darwin para apreciação. No entanto, devido ao estado precário de saúde, o pai da teoria da evolução passou o material para seu primo Francis Galton, um antropologista britânico. Alguns anos depois, Francis Galton após examinar e sistematizar os trabalhos de Fauld e de Herschel publicava o livro Fingerprints, estabelecendo os princípios de individualidade e permanência das impressões digitais. Os resultados permitiram o desenvolvimento de um sistema de

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classificação que deu origem ao Sistema Galton-Henry. Este sistema foi introduzido na Índia em 1897, e na Inglaterra e Estado Unidos em 1901 (CAVALCANTI, 1995).

Na Argentina, Juan Vucetich elaborou seu próprio sistema de classificação de desenhos papilares, com base no trabalho dos ingleses, sendo prontamente utilizado pela Polícia Argentina, a partir de 1891, com o nome “icnofalangometria” (CAVALCANTI, 1995). O trabalho de Vucetich possibilitou à justiça de Necochea, província de La Plata, condenar Teresa Rojas pelo homicídio brutal de seus dois filhos ao identificar as impressões de seus dedos repletos de sangue na arma (RABELLO, 1996).

Já a Balística Forense, de acordo com Dorea, Stumvoll e Quintela (2006), teve como iniciativa estudos de Boucher do ano de 1753, na França. Em 1835, na Inglaterra, Henry Goddard notou um defeito num projétil retirado do cadáver de uma vítima. Na casa de um dos suspeitos ele encontrou um molde para projéteis que produzia defeito semelhante a padrões nele moldados. Fazendo com que o assassino fosse condenado, Goddard tornou-se o precursor da Balística Forense.

Apenas na década de 1910, que Calvin Goddard publicou seu trabalho sobre comparação de armas de fogo (GIALAMAS, 2000). No entanto, foi Alexandre Lacassangne (1844-1921) que primeiramente percebeu a importância do estriamento deixado nos projetis após disparos. Este Perito vinculou os estriamentos com o cano raiado de uma arma de fogo (CARVALHO, 2006). Apesar das iniciativas, para Carvalho (2006), somente após a criação do microscópio de comparação, na década de 20 do século XX, que a Balística Forense ganhou notoriedade e passou a ser aceita irrestritamente nos tribunais.

Ainda segundo Carvalho (2006), a Criminalística, como a conhecemos, teria seu começo no final do século. XIX, quando Hans Gross, Professor e Magistrado, ao perceber que os métodos utilizados pela polícia, baseados na tortura e castigos corporais, não mais se mostravam eficazes. Assim, propôs que os métodos da Ciência moderna fossem utilizados para solucionar crimes. Com base no estudo de diversas

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ciências produziu a obra Handbuch fur Untersuchungsrichter als System der Kriminalistik, ou simplesmente System der Kriminalistik, que pode ser traduzido como Manual para Juízes de Instrução. A literatura deixa dúvidas quanto a data da primeira edição deste trabalho: 1870, 1883 ou após 1890 (RABELLO, 1996; GIALAMAS, 2000; CARVALHO, 2006).

Em continuação, Edmond Locard, médico e advogado, aluno de Lacassagne e de Bertllon, passou a estudar os indícios deixados pelos criminosos nos locais de crime. Em 1910, Locard criava o Laboratório de Polícia Técnica de Lion (CARVALHO, 2006).

Apesar de contraditório, a origem da Criminalística pode ser vislumbrada até mesmo na ficção dos romances policiais (DOREA, 1995). Antes do juiz Hans Gross publicar seu trabalho, Edgar Alan Poe publicara Os Crimes da Rua Morgue, A Carta Roubada e O Mistério de Marie Roget, nos quais apresentava, pela primeira vez, a figura do detetive Técnico-Científico. No entanto, foi após Conan Doyle publicar em 1887 Um Estudo em Vermelho com Sherlock Holmes que a história policial ganha caráter sistemático e científico. No livro de 1883 do autor Mark Twain (1983) Life on the Mississipi um assassinato era identificado pelo uso das impressões digitais.

No que diz respeito às instituições criminalísticas, em 1908, foi criado o “Instituto de Polícia Científica” na Universidade de Lausanne na França. Esta instituição teve origem na anexação do laboratório do Dr. Archibald Rudolf Reiss, um dos mais eminentes Peritos Criminais da história, pela Universidade. O Dr. Reiss publicou várias obras criminológicas, entre elas destaca-se O Manual de Polícia Científica, o que muito vem contribuindo à ascensão da Criminalística (ABC, 2006).

Fora da Europa, em especial da França, as instituições voltadas às atividades criminalísticas são tardias. Apesar da constatação de que à luz da ciência moderna, a prova material adquire significado novo, a criação de laboratórios policiais nos EUA, só ocorreu entre 1920 e 1930 (MONAGHAN, 1964; GIALAMAS, 2000). Essa ciência alcançou a academia no fim da década de 1930, e o primeiro curso de Criminologia surgiu apenas no final da década de 1940 na Universidade da Califórnia em Berkeley (GIALAMAS, 2000).

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Assim, já na década de 1950, a solicitação do trabalho pericial científico se tornara rotina aceita pelas autoridades judiciais e policiais. Até mesmo o local de crime, havia deixado de ser lugar para inquirir testemunhas, para se tornar um laboratório externo na busca de provas (MONAGHAN, 1964). A íntima associação entre o Perito de laboratório e o homem de serviço externo, mostrou-se de inestimável importância durante as operações militares da II Guerra Mundial (WALLANDER, 1964).

No entanto, segundo Wallander (1964), apesar de vários órgãos policiais terem crescido significativamente, desde o início do séc. XX, o laboratório policial foi o último desses setores a despontar. Assim, por sua criação recente e rápido desenvolvimento, até os anos 50, o laboratório policial ainda não havia assumido forma bem definida, apresentando capacidade científica bastante heterogenia entre cidades e estados.

De acordo com O’Hara (1964), com exceção de poucas cidades grandes e capitais de estados, a investigação criminal nos EUA, nos anos 50, não se mostrava adequada às mais simples necessidades. Isto se deveria principalmente a incapacidade dos serviços policiais em atrair pessoas competentes e à carência de literatura sistematizada, a qual era fortemente influenciada pela literatura médico-legal relacionada com crimes contra a vida. Assim, as técnicas utilizadas nos exames da prova material não mostravam novidades e o número de laboratórios policial não apresentavam um crescimento significativo.

A ciência forense no brasil: origem, evolução e descaminhos

No Brasil, a origem da Criminalística também se confunde com a Medicina Legal. Essa última teve forte influência da escola francesa (GOMES, 1944). Segundo Fávero (1975), no período colonial praticamente não foram produzidos trabalhos científicos de Medicina Legal. Este autor situa a primeira publicação nacional de Medicina Legal em 1814, do autor Gonçalves Gomide, médico e senador do Império: “Impugnação analítica ao exame feito pelos clínicos Antônio Pedro de Sousa e Manuel Quintão da Silva”.

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A partir de 1832 foram criadas as Faculdades de Medicina que exigiram teses como pré-requisito à obtenção do grau de doutor. Com isso avultaram-se os trabalhos em medicina no Brasil e em 1839 aparecem as primeiras teses de Medicina Legal. Ainda segundo Fávero (1975), de 1839 a 1877 não há nenhum trabalho realmente original, a exceção ficou por conta da Toxicologia, na qual foram produzidos trabalhos inovadores, principalmente por Francisco Ferreira de Abreu, O Barão de Teresópolis.

A partir de 1877 inicia-se uma nova fase da Medicina Legal brasileira, com a entrada de Agostinho José de Sousa Lima para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Dentre suas várias contribuições, está a criação do ensino prático de Medicina Legal, desenvolvendo a parte de laboratório; inauguração do primeiro curso prático de tanatologia forense no necrotério da Polícia da Capital Federal, em 1881, além de vasta produção em revistas científicas da época (FÁVERO, 1975).

Posteriormente, com Raimundo Nina Rodrigues, inaugura-se uma época de grande evolução científica e a nacionalização da Medicina Legal. Nina Rodrigues considerava que os problemas médico-legais e de criminologia brasileira diferiam dos europeus, uma vez que as condições físicas, psíquicas e sociais de nosso país eram totalmente diferentes. Diversos discípulos originaram-se da escola baiana de Nina Rodrigues, destacando-se Afrânio Peixoto, Oscar Freire, Leonídio Ribeiro e Flamíneo Fávero (GOMES, 1987).

Durante este período a Medicina Legal das academias estava estreitamente associada ao serviço médico legal do Estado realizado pelos Peritos oficiais. Assim, Oscar Freire consegue viabilizar um acordo entre a Faculdade de Medicina e o Governo do Estado da Bahia, em 1913. Em 1914, Freire funda a Polícia Científica em Salvador ao trazer da Suíça para palestras na cidade o Perito Criminal Reiss (GALVÃO, 1996). Em seguida, vai para São Paulo onde inaugura a pesquisa Médico-Legal no estado, contribuindo para o início do Instituto de Medicina Legal da Faculdade de Medicina (atual Instituto Oscar Freire), a partir de 1922.

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Posteriormente, este instituto foi dirigido por Flaminio Fávero por 32 anos. Entretanto, nesta época já funcionava o serviço Médico Legal oficial de São Paulo, o qual havia sido oficializado em 1886 (FÁVERO, 1975).

No Rio de Janeiro, a Medicina Legal oficial foi transferida da autoridade judiciária para a Polícia, em 1856. Para isso, criou-se uma assessoria médica junto à Secretaria de Polícia da Corte. A assessoria era composta por dois médicos efetivos, ligados à Polícia, e dois consultantes, professores universitários de Medicina Legal, responsáveis principalmente pelos exames toxicológicos (ALDÉ, 2003). Segundo Aldé, em 1900, a assessoria médica foi transformada em Gabinete Médico-Legal e dois anos depois, Afrânio Peixoto, renomado pesquisador acadêmico da época, apresentou um plano de reformulação do Gabinete Médico-Legal da Polícia para implantar as mais avançadas práticas de Medicina Legal utilizadas na Alemanha. Posteriormente, o Gabinete é transformado em Serviço Médico-Legal através de decreto de 1907.

Todavia, segundo Ribeiro (1967), as relações entre a Medicina Legal acadêmica e a oficial logo desandaram, surgindo uma grande resistência dos Peritos oficiais em dividir o espaço do IML com as aulas públicas da Faculdade de Medicina. Alguns diretores chegaram inclusive a proibir as aulas da faculdade no IML do Rio de Janeiro, levando à cisão entre o conhecimento produzido nas faculdades e a atuação dos profissionais oficiais. Em 1949, foi inaugurado o novo “Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto”. Esse prédio abrigaria na década de 50 as melhores tecnologias em Medicina Legal do mundo. E seu prestígio ainda estaria relacionado ao intenso intercâmbio com a academia (ALDÉ, 2003).

Como exposto, no início do séc. XX, as funções do Perito Legista e Perito Criminal ainda se confundiam. Por exemplo, Gomes (1944), dá instruções sobre o exame de local para legistas, inclusive de coleta de vestígios (manchas, objetos, pegadas e impressões digitais), além de fotografias e custódia de evidências. Ferreira (1962) menciona como pesquisadores pioneiros da datiloscopia os seguintes nomes: Felix Pacheco, Afrânio Peixoto, Elísio de Carvalho, Manoel Viotti e Leonídio Ribeiro, todos legistas.

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Em relação à perícia de armas de fogo, este mesmo autor apregoa que o legista deveria possuir conhecimentos indispensáveis sobre as armas de fogo e sua munição, pois seria esse profissional que orientaria e dirigiria a perícia para fornecer à justiça os informes necessários. Apesar de reconhecer a colaboração de um Perito especialista em armas de fogo (FERREIRA, 1962).

Não se pode negar que os primeiros estudos de vestígios de disparos de armas de fogo foram feitos no Brasil por Peritos Legistas. Oscar Freire, Moisés Marx e Gastão Fleury da Silveira, sob orientação de Flamínio Fávero, reviu-os em tese que publicou e defendeu em 1926 na Cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São Paulo (FERREIRA, 1962).

Diversos reagentes para identificação de manchas de sangue foram desenvolvidos por Amado Ferreira, médico formado na Faculdade de Medicina de São Paulo. Já o sistema Vocetich, de identificação papiloscópica, foi implantado no Brasil a partir de 1902. Este sistema já se encontrava em uso no Gabinete de Identificação fundado em 1903 no Rio de Janeiro, Capital Federal (CODEÇO, 1991; DOREA, 1995). Grandes nomes como Félix Pacheco, Carlos Éboli, Evaristo de Veiga, Hélio Gomes e Leonídio Ribeiro são destacados iniciadores da Criminalística, apesar da formação médica da maioria (CODEÇO, 1991).

No estado fluminense, apenas entre os anos de 1943 e 1944 foi criada a Diretoria Geral de Investigações, que englobava o Instituto de Identificação Félix Pacheco, o Instituto Médico Legal e o Gabinete de Pesquisas Científicas, o qual deu origem ao Instituto de Criminalística (SOUZA; MINAYO; ASSIS, 2003). A Criminalística e a Medicina Legal tiveram sua época de ouro no Rio de Janeiro durante as décadas de 40 a 60. No entanto, segundo Aldé (2003), a partir do golpe militar de 64, houve uma crescente deterioração das condições de trabalho e de desvalorização salarial. Aliado a isto, soma-se a prioridade do Governo em investir mais em aparatos de repressão do que em inteligência investigativa e científica. Isso fez com que a Criminalística e a Medicina Legal durante os anos que se seguiram após 1964 fossem

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sempre relegadas a segundo plano no que concerne aos investimentos da Segurança Pública, chegando à década de 1990 em condição de penúria.

Ainda no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com Deslandes, Minayo e Malaquias (2003), os servidores da Polícia Técnica são os mais insatisfeitos no que diz respeito às condições materiais, técnicas e ambientais de trabalho na Polícia Civil. Os profissionais sofrem com baixos salários, falta de material para realizar exames que vai desde equipamentos de proteção individual até o papel para imprimirem os laudos. Este fato leva às chamadas “vaquinhas” para se realizar consertos de equipamentos e viatura, como também aquisição de suprimentos básicos. Além disso, especialmente os Peritos Criminais do interior do Estado são forçados a trabalhar sozinhos em razão da falta de servidores e, além da atividade Criminalística, esses profissionais conduzem viaturas, fotografam e digitam seus laudos (GARRIDO, 2005).

Torna-se notória a carência de materiais e equipamentos; o atraso tecnológico e teórico e a desvalorização profissional são tão grandes que se poderia dizer que os institutos pararam no tempo há cerca de 40 anos (MISSE et al., 2005). Certamente, nesse período as atividades periciais foram quase totalmente desvinculadas da produção de saber das universidades, e tuteladas pelas instituições policiais.

O atual cenário da Criminalística em vários Estados do Brasil apresenta como perspectiva o movimento de Peritos e de vários órgãos da sociedade civil em direção à autonomia administrativa, orçamentária e técnica-científica dos órgãos periciais (MISSE et al., 2005; ABC, 2006). Assim, a Criminalística brasileira aguarda por profundas alterações em suas estruturas para alcançar a excelência científica essencial para a justiça.

Conclusões

Não se pode datar com exatidão a origem da Criminalística, sabe-se, no entanto, que sua origem foi fragmentada, proveniente

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de disciplinas independentes. Grande parte dos conhecimentos de Criminalística derivou da Medicina Legal e, posteriormente, constituíram corpo de conhecimento próprio.

No Brasil, a Ciência Forense surgiu de investigações individuais realizadas no seio das universidades, por Médicos Legistas, na sua maioria. À medida que a Criminalística se tornou atividade de polícia, distanciou-se cada vez mais da academia, sofrendo grande decadência. Isso se acentuou sobremaneira após o golpe de 1964, onde a existência de uma perícia autônoma não era vista com bons olhos.

Os descaminhos históricos da Criminalística foram responsáveis pelas condições inadequadas e tecnologicamente atrasadas ainda encontradas na maioria dos Institutos de Criminalística brasileiros. Além da questão estrutural, tal descaminho se reflete na atual desvalorização do profissional da Criminalística. A saída para o atual quadro parece estar relacionada ao processo de autonomia administrativa, orçamentária e técnica-científica dos órgãos periciais.

Agradecimentos Os autores são gratos à Profa. Dra. Fabíola de S. R. G. Garrido

pela leitura atenta dos manuscritos e à Profa. Dra. Raquel de Souza pela discussão proveitosa.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo com empresários de

Vitória da Conquista, bahia

Marcelle Bittencourt Xavier 1

Francisco dos Santos Carvalho 2

José Carlson Gusmão da Silva 3

Adriano Alves de Rezende 4

Marco Antônio Araújo Longuinhos 5

Resumo: Este artigo trata das causas gerenciais e ambientais da mortalidade dos micro e pequenos empreendimentos nos segmentos do comércio, indústria e serviços, buscando conhecer o perfil dos empresários no intuito de identificar possíveis causas do fechamento de empresas em Vitória da Conquista, Bahia. Foi realizado um estudo de natureza exploratório-descritivo, com abordagem quali-quantitativo. Diante dos resultados identificou-se que as principais causas do fechamento das empresas são decorrentes de deficiências no processo gerencial e de problemas externos à organização.

Palavras-chave: Gestores. Mercado. Micro e pequena empresa. Mortalidade.

1 Especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). Professora da Status – Núcleo de Desenvolvimento e Capacitação Profissional. E-mail: [email protected] 2 Doutorando em Planejamento Territorial e Gestão Ambiental pela Universidade de Barcelona. Professor da UESB e da FTC. E-mail: [email protected] Mestre em Agronomia pela UESB. Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) e da UESB. E-mail: [email protected] Especialista em Gestão de Negócios e Empreendimentos pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor da UESB e da FTC. E-mail. [email protected] Doutorando em Planejamento Territorial e Gestão Ambiental pela Universidade de Barcelona. Professor da UESB. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 61-78 2009

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managerial and environmental causes of micro and small companies mortality: a study with entrepreneurs of Vitória da Conquista, bahia

Abstract: This paper studied the management and environmental causes of mortality of micro and small companies in commerce, industry and services sectors by knowing the executive profiles in order to find out possible causes of the companies closing in Vitória da Conquista, Bahia. An exploratory descriptive study with qualitative and quantitative questions was realized. The results showed that the main causes that lead to the companies closing are caused by deficiencies in the management process and by external problems of the organization.

Keywords: Managers. Market. Micro and small enterprises. Mortality.

Introdução

A idéia inicial de se abrir uma empresa até a sua viabilização em um empreendimento consolidado, exige tempo e conhecimento. Muitos empresários se preocupam em obter retornos imediatos, sem a prévia preparação para iniciar e gerir com efetividade os negócios.

Para uma escolha correta do negócio o empresário precisa considerar uma ampla gama de fatores. O processo de abertura de um empreendimento requer identificação de oportunidade, fixação de objetivos e metas, mensuração de riscos e custo, além de uma análise do potencial do mercado e dos recursos humanos previstos para trabalhar no empreendimento. Abrir um negócio não é algo fácil, pois envolve, às vezes, altos riscos. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) (2004b, p. 15) compara uma pessoa que decide abrir um micro ou pequeno negócio como um herói, o qual “vai entrar numa ‘guerra’ em que 31% dos combatentes ‘morrem’ com menos de um ano e em cinco anos são eliminados 60%”.

Tais estatísticas mostram que a maioria dos micro e pequenos empreendimentos desaparece após cinco anos de atuação. Um número expressivo de empresários vem lutando contra um inimigo comum, a falência. Sobrepujar os riscos impostos pelo sistema vigente e visualizar os males que afligem um empreendimento talvez seja o grande desafio para os micro e pequenos empresários.

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É comum no Brasil uma cultura empresarial estruturada nas conveniências. Não é pequeno o número de pessoas que decide fundar uma organização pelo fato de ter algum dinheiro disponível e uma idéia que na sua convicção é a melhor.

Diante deste cenário, o presente estudo pautou em identificar as causas da mortalidade de micro e pequenas empresas em Vitória da Conquista, Bahia, com base na análise de fatores gerenciais e ambientais.

O fenômeno da mortalidade de empresas vem sendo motivo de análise por meio de diferentes dimensões e perspectivas teóricas. Na literatura encontram-se correntes teóricas que fazem uso de conceitos de ciclo de vida das organizações e análise dos sintomas de patologias organizacionais na tentativa de melhor compreensão do referido fenômeno. Adizes (2001) e Marques (1994) indicam o uso de metáforas biológicas por se tratar ainda de um fenômeno pouco estudado. Várias críticas são levantadas sobre essas perspectivas teóricas, principalmente aos modelos determinísticos que consideram apenas aspectos objetivos e tangíveis das organizações. Meyer apud Sá (1995) considera que esses modelos são restritos por não reconhecer que as organizações são construções sociais e produtos simbólicos, que sofrem influências não objetivas e não tangíveis no processo de sobrevivência.

Com base nos estudos de Lussier e Pfeifer (2001) Riquelme e Watson (2002), Dutra (2003), Greatti (2003) Viapiana (2001), Najberg et al. (2000) e Watson (2003), este artigo apresenta os resultados da análise de fatores gerenciais e ambientais que podem contribuir para um melhor entendimento das causas mais significativas para a mortalidade de empresas. Optou-se por divulgar em trabalhos futuros a correlação dos fatores gerenciais e ambientais com o fator empreendedor (a - Decisão voluntária: venda da empresa, mudança de cidade, problemas pessoais, mudança de ramo, opção por um emprego; b - Decisão Involuntária: características de personalidade e experiência).

Este artigo possui seis seções. Além desta seção inicial, a 2ª seção trata da revisão bibliográfica, dividida em duas subseções alusivas ao

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ciclo de vida organizacional e as possíveis causas da mortalidade de empresas. A 3ª seção apresenta a metodologia utilizada no trabalho, descrevendo o tipo de pesquisa desenvolvida, a coleta e o tratamento de dados, além dos procedimentos de interpretação. Nas seções 4ª e 5ª são descritos o lócus e os resultados da pesquisa, respectivamente. Na 6ª seção são apresentadas as considerações finais e apontados trabalhos futuros que podem enriquecer o debate acadêmico sobre a problemática da mortalidade de Micro e Pequenas Empresas (MPE´s).

Mortalidade organizacional: fim do ciclo de vida

O ciclo de vida das organizações passa pelo crescimento e consolidação. A mortalidade é o fim do ciclo de vida. Cobra e Zwarg (1986) entendem que para sobreviverem, as organizações devem passar pelas fases de crescimento, consolidação, diversificação e ação social.

A fase de crescimento é caracterizada pela conquista de mercados, ações de diferenciação, especialização e inovação. A fase de consolidação é apresentada pelas ações que assegurem sobrevivência e estabilidade, mediante estratégias de ação no mercado, visando melhor posicionar e atingir solidez organizacional. (SILVA, 1999)

A existência de um índice crescente de MPE´s que fecham as suas portas pouco tempo depois da abertura é um fator preocupante. A mortalidade destas organizações gera uma série de consequências, afetando os trabalhadores, a renda da região, como também o próprio indivíduo ou grupo de pessoas que fundou e/ou está envolvido no negócio. Segundo declara Bedê (2004, p. 15) “um dos maiores problemas das empresas é a questão da sua sobrevivência”.

Bulgacov (1999, p. 56) descreve alguns meios de evitar o insucesso do novo negócio: “Conhecer seu negócio profundamente, preparar um plano de negócios, administrar adequadamente recursos financeiros [...], aprender a administrar pessoas [...]”.

A tabela 1 mostra o índice cada vez mais crescente da mortalidade de empresas, segundo dados pesquisados pelo Sebrae do Estado de São Paulo (BEDÊ, 2004).

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tabela 1 - Taxa de mortalidade de empresas em São Paulo (1999-2003)Atividade 1 ano 2 ano 3 ano 4 ano 5 anoEncerramento 29% 42% 47% 44% 44%Empresas em atividade 71% 58% 54% 56% 56%

Fonte: Bedê (2004, p. 12).

Nota-se que as organizações no primeiro ano de implantação apresentam um índice de fechamento ainda relativamente moderado, de 29%, todavia a partir do segundo ano este valor tende a aumentar, alcançando 42%, pois a capacidade de sobrevivência diminui. É o que afirmam Fagundes e Gargur (2005, p. 28): “[...] a expectativa de fechamento de uma empresa no primeiro ano de vida é menor que no segundo ano, quando a geração de recursos pela empresa e a dificuldade de acesso a crédito tornam-se fundamentais para que ela consiga a própria sobrevivência”. Os autores ainda complementam que “[...] os dois primeiros anos são críticos e, assim, as empresas que conseguem atravessar esse período adquirem muito mais experiência em seu ramo de negócio e, também, já tiveram seus produtos testados pelo mercado, existindo menos incertezas sobre sua viabilidade econômica”.

Sendo assim, verifica-se que os dois primeiros anos são decisivos para uma empresa, já que a mesma terá que se adaptar ao mercado e ter capital suficiente para cobrir seus gastos, considerando que as vendas são relativamente baixas no primeiro momento, pois a empresa ainda está divulgando os produtos e serviços. (FAGUNDES; GARGUR, 2005).

Causas para mortalidade de empresas

É uma tarefa difícil identificar quais são realmente as causas da mortalidade de empresas. Uma empresa pode encerrar suas atividades em função de problemas relacionados aos aspectos gerenciais, econômicos conjunturais, logística operacional, políticas públicas e aspectos legais.

As causas podem ser internas ou externas à organização (ZACHARAKIS; MEYER; DE CASTRO, 1999). Analisando o assunto,

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Machado e Espinha (2005), tomando como base pesquisas realizadas nos Estados Unidos, dizem que a metade dos fatores externos estão ligados à política de governo. Para estes autores “[...] estes fatores têm sido vistos como uma função chave no sucesso ou fracasso de MPE’s”. Todavia, complementam dizendo que em termos gerais, “[...] a maioria das ruínas é atribuída a falhas gerenciais internas”.

No aspecto gerencial alguns problemas são citados: a carência de experiência gerencial, problemas com capacitação dos colaboradores, falta de treinamento, visão restrita do negócio, recrutamento inadequado dos colaboradores e falta de profissionalização do negócio.

Para Silva (1999), é preciso “assegurar adequada assistência, objetivada para as necessidades realísticas de MPE’s. Afirma ainda que é preciso “apoiar organizações e instituições educacionais deve ser a meta para livrar as empresas dessa situação de fracasso”.

Verifica-se que o planejamento é uma função significativa da Administração e o período anterior à abertura de uma empresa constitui-se como o momento em que as necessidades são maiores em termos de obtenção de conhecimento sobre o ramo de negócio em que se pretende atuar.

O Plano de Negócio vem como um primoroso instrumento de planejamento, o qual deve ser escrito e, a cada passo elaborado, permitir uma noção prévia do funcionamento do negócio do ponto de vista financeiro, dos clientes, fornecedores, concorrentes e da organização necessária ao bom funcionamento do empreendimento (RODRIGUES, 2001).

Se ocorrer problemas, estes deverão ser eliminados o quanto antes. Rodrigues (2001, p. 61) destaca algumas ações que podem ser estabelecidas para a resolução de problemas nos negócios, afirmando que pode ser realizada “[...] uma radiografia da situação da empresa, considerando dados do mercado e os critérios de gestão utilizados [...]”. O autor ainda complementa que é preciso adotar “[...] o planejamento em rotina, mantendo um rígido controle sobre a gestão. Se for preciso, considerar a troca de sócios ou a entrada de novos parceiros”.

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Longenecker et al. (1997 apud RIBAS, 2003, p. 284) afirmam que “[...] tanto as micro quanto as pequenas empresas exigem um processo gerencial para dirigir e coordenar as atividades de trabalho”. Se esse processo for de qualidade, contribuirá para a lucratividade e permanência das empresas no mercado, qualquer que seja o tamanho do negócio. Adizes (2001, p. 3) afirma que “o trabalho da gerência não é criar uma situação em que não haja problemas, mas sim levar a organização à plenitude [...]”.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa utilizada foi descritiva e exploratória, realizada através das seguintes etapas: a) levantamento teórico quanto à descrição das empresas de pequeno e micro portes no Brasil, bem como do município de Vitória Conquista; b) coleta de dados através de questionários; c) processamento dos dados; d) análise dos resultados obtidos. A pesquisa descritiva tem por objetivo “[...] descrever as características de determinada população ou fenômeno, ou o estabelecimento entre variáveis. Envolvem o uso de técnicas padronizadas de coleta de dados: questionário e observação sistemática [...]” (UFSC, 2006, p. 19).

Do ponto de vista dos procedimentos técnicos foi utilizada a pesquisa bibliográfica através da consulta de livros, artigos publicados e materiais disponíveis na Internet.

Quanto à abordagem de pesquisas optou-se pela quali-quantitativa. Foram coletadas as informações através da aplicação de questionários com questões abertas, fechadas e de múltiplas escolhas, revelando através de números as opiniões dos micro e pequenos empresários, traduzidos em percentagens para melhor análise dos dados.

O universo da pesquisa foi composto por 1.328 empresas ativas, sendo 1.303 de micro porte e 25 de pequeno porte. A amostra foi do tipo não-probabilístico, por conveniência – comumente utilizada na área de ciências sociais – sendo composta por 63 empresas, nos segmentos do comércio, dos serviços e da indústria.

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Vale ressaltar que os dados cadastrais das empresas (razão social, endereço, data de constituição, principais atividades e situação) foram cedidos pela Junta Comercial do Estado da Bahia (Juceb), sendo que o critério de classificação do porte de empresa foi baseado no faturamento, através do enquadramento realizado pela própria organização ou por seu contador. (JUCEB, 2006)

A aplicação dos questionários com os gestores das empresas foi realizada no período de setembro a dezembro de 2006. Após o levantamento, os dados foram tabulados em planilhas elaboradas no Microsoft Excel 2003, seguido da sua avaliação.

locus da pesquisa sobre mortalidade de mPE´s

A cidade de Vitória da Conquista, localizada no Sudoeste da Bahia, tem uma base territorial de 3.204 km2, abrangendo uma população estimada de 285.927 habitantes, em 2005. (IBGE, 2006). O município também atua como um pólo de desenvolvimento sócio-econômico da região, tendo em vista a capacidade de agregar pessoas de cidades circunvizinhas nas áreas de saúde, emprego e educação. Cabe à população empreender em busca do desenvolvimento sócio-econômico, pois como descreve Dolabela (2006, p. 10) “[...], o empreendedorismo que nos interessa é aquele capaz de gerar e distribuir renda, conhecimento, poder e riqueza”.

A população flutuante de Vitória da Conquista é composta em sua maioria de habitantes das cidades circunvizinhas, que possuem nesta cidade sua base de compra, além de serem atendidas na prestação de serviços das mais diversas áreas, tais como saúde, educação, entre tantas outras.

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micro e pequena empresa em Vitória da Conquista

tabela 2 – Quantidade de micro e pequenas empresas constituídas no município de Vitória da Conquista – BA, nos segmentos de indústria,

comércio e serviços, no período de 24/07/1950 até 14/09/2006.

Classificação microempresas

Empresa de pequeno

porte total

Ativas 9.104 201 9.305Extintas 1.634 08 1.642Falidas 10 - 10Canceladas 07 01 08Canceladas art. 60 lei 8934/94 2.912 - 2.912Convertida soc. Civil/simples 01 - 01Transferida para outra UF 02 - 02total Geral 13.670 210 13.880

Percentual de mortalidade 32,94%Fonte: Juceb, 2006.

Conforme exposto na Tabela 2, o município de Vitória da Conquista – BA constituiu 13.880 empreendimentos de pequeno e micro porte, nos ramos de comércio, serviços e indústria, no período de 24 de julho de 1950 até 14 de setembro de 2006. Houve uma mortalidade de 32,94% neste período. (JUCEB, 2006).

Resultados da pesquisaPerfil dos pesquisados

A aplicação dos questionários aos gestores MPE´s de Vitória

da Conquista – BA, dos segmentos de comércio, indústria e serviços, permitiu uma análise de alguns itens que são relevantes para identificação das causas de mortalidade de empresas.

Foi percebido que há um equilíbrio entre o sexo dos gestores destas empresas analisadas (50%). Os índices permitem visualizar que cada vez mais as mulheres vêm conquistando seu espaço no mercado de trabalho, tornando-se empreendedoras, muitas delas motivadas pela necessidade de complementar a renda familiar, encarando as relações trabalho/família (GOMES, 2006).

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Dos empresários, 37% estão distribuídos na faixa etária de 25 a 34 anos e 34% possuem entre 35 a 44, 9% entre 18 a 24, 16% entre 45 a 54 e 4% entre 55 a 64 anos.

Parte significativa (46%) dos entrevistados concluiu o 2º grau, 23% estão estudando o curso superior, 11% dos pesquisados possuem 2ª grau incompleto, 6% têm ou ainda cursam 1º grau e apenas 2% não possuem educação formal. No geral, os empresários são relativamente instruídos, mas ainda carecem de conhecimentos para gerir seus negócios. A implantação de três faculdades privadas e cursos de educação a distância, como também a expansão da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, pode ter contribuído fortemente para redução da taxa de mortalidade de empresas no município, notadamente em anos mais recentes.

Quase metade dos gestores pesquisados (48%), exerce a função gerencial há 2 anos, 30% entre 3 a 5, 9% entre 6 a 8, 9% entre 12 a 15 e 2%, acima de 15 anos. Antes da abertura do negócio 35% dos atuais empresários eram funcionários de empresa privada e 32% autônomos. Apenas 11% eram empregadores em outra organização, e 11% donas de casa, além de 7% que eram estudantes, 2% funcionário público e 2% estavam desempregados, nenhum era aposentado.

Segmento de atuação e quantitativo do quadro funcional

Foi identificado que 64% das empresas são do segmento de comércio, enquanto que 23% são da área de serviços e apenas 13% da indústria.

A maioria, (93%) das empresas analisadas tem seu quadro funcional constituído de 2 a 9 pessoas, com somente 7% de firma individual.

Principais dificuldades encontradas para funcionamento do negócio

A tabela 3 mostra as principais dificuldades encontradas pelos empresários durante o funcionamento do negócio. Foram considerados apenas para fins de análise os valores das indicações dos gestores para o grau

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de alta dificuldade enfrentada. Assim, quanto aos problemas relacionados à categoria aspectos gerenciais, os seguintes percentuais foram observados: 20% dos pesquisados avaliaram-se com alto grau de dificuldade, e a razão acentuada da mortalidade foi atribuída à problemas financeiros (20%), 16% para ausência de conhecimentos gerenciais, 13% para escolha do ponto comercial e 21% capital de giro insuficiente. De acordo com pesquisas do Sebrae (2004a), a maioria dos empresários alega problemas com gerenciamento do negócio e de gestão financeira. Outros elementos da tabela 3 analisados nesta pesquisa confirmam em parte tais pesquisas.

Na categoria aspectos econômicos conjunturais, os percentuais foram: 11% para recessão econômica, 9% para poucos clientes e 11% para maus pagadores. Sendo identificado que, 14% e 13% para problemas relativos à mão-de-obra pouco qualificada e instalações inadequadas, respectivamente.

Para a categoria logística operacional, os valores encontrados foram: 79% para tributos elevados, 38% para problemas com fiscalização e 45% para falta de créditos junto aos bancos. No aspecto logístico operacional a maioria dos empresários respondeu que é crucial para o sucesso organizacional a escolha de um bom administrador (71%). Assim sendo, a necessidade de ter um profissional à frente de um empreendimento se mostrou favorável, na percepção dos gestores.

O que mais chamou a atenção no resultado da pesquisa foi o percentual de dificuldade (alta) para a categoria políticas públicas e aspectos legais. Identificou-se: 79% para tributos elevados, 38% problemas com a fiscalização e 45% para falta de crédito junto aos bancos. Tais resultados comprovam pesquisas realizadas nos EUA que afirmam que metade dos problemas externos estão ligados à política de governo (MOREIRA, 1997). Para os empresários de Vitória da Conquista, as maiores dificuldades são oriundas de fatores externos e não gerenciais.

Zacharakis, Meyer e De Castro (1999) realizaram um estudo comparativo com empreendedores e com investidores. Ambos apontaram os fatores internos como às principais causas do fracasso. Os dados obtidos no presente trabalho não confirmaram o consenso geral de que a maioria das ruínas é atribuída a falhas gerenciais internas (MOREIRA, 1997; ZACHARAKIS; MEYER; DECASTRO, 1999).

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tabela 3 – Principais dificuldades encontradas no período de funcionamento do negócio

Categoria Descrição

DificuldadeNão

respon-deram %

baixa média Alta

% de pessoas que afirmaram

AspectosGerenciais

Problemas financeiros 20 54 20 06Ausência de conhecimentos gerenciais 36 38 16 10

Ponto impróprio 43 39 13 05Capital de giro insuficiente 25 48 21 06

AspectosEconômicosConjunturais

Recessão econômica (últimos anos) 43 36 11 10

Poucos clientes 39 43 09 09Maus pagadores 41 38 11 10

logísticaoperacional

Mão-de-obra pouco qualificada 43 34 14 09

Instalações inadequadas 46 32 13 09

PolíticasPúblicas e Aspectoslegais

Tributos elevados 11 04 79 06Problemas com a fiscalização 25 27 38 10

Falta de crédito junto aos Bancos 23 23 45 09

Outra razão: ___________ 100Fonte: Adaptado do Sebrae (2004a).

Itens verificados antes de abrir a empresa

Como apresentado na tabela 3, a grande maioria dos pesquisados observou aspectos legais, localização e instalações da empresa, volume de capital de giro necessário, linhas de crédito disponíveis, volume de vendas necessário para obter lucro, estrutura de custos, clientela, fornecedores e concorrência.

Todavia, somente 32% disseram ter elaborado um plano de negócios, 41% analisaram investimentos necessários para os cinco primeiros anos, 48% produtos/serviços oferecidos pela concorrência, 50% mão-de-obra a

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empregar e 34% meios de divulgação dos seus produtos/serviços (Tabela 4). Para Hisrich e Peters (2004), problemas relacionados à falta ou falhas no planejamento financeiro podem levar ao fechamento de muitas empresas. O percentual de apenas 41% dos pesquisados que disseram ter verificado os investimentos necessários para os cinco primeiros anos revela outra causa significativa para mortalidade das empresas.

tabela 4 – Itens verificados antes de abrir a empresa

Antes de abrir a empresa verificou-se... % pessoas que afirmaram

SIm NÃoA elaboração de um plano de negócios? 32 68Investimento necessário para os cinco primeiros anos? 41 59Aspectos legais? 87 13Sua localização e instalações? 96 4Qual o volume de capital de giro necessário? 82 18Linhas de crédito disponíveis? 73 27O volume de vendas necessário para obter lucro? 91 9Estrutura de custos? 84 16Clientela? 88 12Quem seriam os fornecedores? 77 23Número de concorrentes? 71 29Produtos/serviços oferecidos pela concorrência? 48 52Mão-de-obra a empregar? 50 50Meio de divulgação dos seus produtos/serviços? 34 66

A tabela 4 mostra que apenas 48% dos pesquisados afirmaram ter feito estudo dos produtos/serviços dos concorrentes. A análise de mercado é muito significativa para o sucesso dos negócios. As questões relacionadas ao ambiente – tais como problemas com fornecedores, com taxas de juros e comportamento dos competidores – podem impactar negativamente no ciclo de vida das organizações (RIQUELME; WATSON, 2002; DUTRA, 2003; VIAPIANA, 2001).

Outra possível causa para a mortalidade de empresas em Vitória da Conquista é pertinente ao baixo índice na análise da mão-de-obra a empregar. Pesquisadores da gestão de competências são unânimes em afirmar que é preciso saber recrutar, selecionar e capacitar os colaboradores da empresa. Erros no processo de recrutamento de pessoal podem levar à problemas sérios na empresa (FLEURY, A. C. C.;

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FLEURY, M. T., 2000). Verificou-se, conforme Tabela 4, que somente 50% dos gestores fizeram estudo prévio do perfil dos funcionários que seriam necessários às atividades da empresa.

O fato de apenas 34% dos gestores terem feito análise prévia dos meios para divulgar os seus produtos/serviços, também representa uma causa relevante para o problema da mortalidade dos empreendimentos (Tabela 4). Uma pesquisa realizada pelo Sebrae em 1994 mostrou que 65% a 90% das pequenas empresas ativas estudadas, apresentavam deficiências na área de marketing, treinamento e informática (SEBRAE, 2004a). Foi identificado que das empresas pesquisadas em Vitória da Conquista, 87% possuíam recursos computacionais, e destas, 59% possuíam acesso à Internet. Embora a maioria dos empresários tenha disponível o computador, este ainda não é percebido como instrumento estratégico, pois 62% das empresas não utilizam banco de dados.

Merece destaque na tabela 4 que somente 32% dos pesquisados elaboraram plano de negócio. Isto pode ser uma das principais causas para mortalidade de empresas em Vitória da Conquista. Bulgacov (1999, p. 56) acredita que conhecer seu negócio profundamente e preparar um plano de negócios contribui para reduzir a mortalidade de empresas.

Outros dados complementares constantes dos questionários aplicados aos gestores mostraram que, no que se refere a aspectos gerenciais: 84% dos pesquisados afirmaram ser determinante para o sucesso de um empreendimento ter uma boa estratégia de vendas e 77% ter um bom conhecimento do mercado de atuação, o que representa uma certa maturidade profissional no que tange à Administração em geral.

Na pesquisa também foi constatado que nos aspectos relacionados ao marketing, 71% dos pesquisados afirmaram que a empresa não possui um planejamento estratégico. Além disso, 86% dos entrevistados acreditam que seus produtos estão adequados às necessidades e aos desejos do cliente, mas 52% não realizaram pesquisas junto ao consumidor para conhecer o grau de satisfação do mesmo. Também 86% disseram que os produtos têm atendido a demanda do cliente, porém somente 45% comercializam os produtos por um preço

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adequado ao praticado pela concorrência. E ainda 64% dos empresários não desenvolvem bom processo de comunicação de seus produtos e serviços, carecendo de propaganda em internet, jornais/revistas, anúncios, eventos, folhetos, filmes, palestras educativas ou através de outros meios. Tais resultados refletem o desconhecimento por parte dos entrevistados, das principais práticas da boa gestão de empresas, o que em parte pode estar contribuindo para alta taxa de mortalidade encontrada no município.

Conclusão

A problemática da mortalidade de empresas não é uma análise de fácil compreensão. Requer pesquisas continuadas, interdisciplinares, utilizando as mais diversas metodologias científicas. Fatores sócio-culturais exercem forte influência sobre o modo de pensar e agir dos empresários. Portanto, não sendo possível adotar soluções para o problema da mortalidade de empresas sem uma prévia análise do contexto no qual estão inseridas. Tal entendimento reforça a necessidade da realização de mais pesquisas sobre o tema tratado neste artigo.

A presente pesquisa identificou que os aspectos gerenciais e ambientais impactam fortemente no problema do fechamento de micro e pequenas empresas no município de Vitória da Conquista, Bahia. As principais causas identificadas estão relacionadas com a ausência de planejamento antes de iniciar as atividades (baixa utilização do plano de negócio e do planejamento empresarial, deficiências na análise do ambiente), como também dificuldades em operacionalizar as atividades gerenciais (problemas no recrutamento de pessoal, deficiências na qualificação e formação dos gestores, pouco uso das ferramentas do marketing, pouco conhecimento do negócio e das funções gerenciais), além da ausência de políticas públicas e a altíssima carga tributária. Porém, acredita-se que estas dificuldades podem ser minoradas por meio da maior capacitação dos seus dirigentes e da implementação de políticas públicas requeridas pelos micro e pequenos empresários da região.

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Recomenda-se para continuidade desta pesquisa a realização dos seguintes trabalhos futuros: a) Analisar o problema da gestão familiar e o impacto na sobrevivência dos negócios; b) Correlacionar os resultados apresentados neste artigo com os fatores vinculados à ação empreendedora praticada pelos empresários locais.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990

Wilson da Silva Santos1

Resumo: A reforma do Estado na década de 1990 tentou imprimir um modelo moderno de gestão que objetivava superar uma máquina estatal burocrática e patrimonial. O resultado foi a racionalização regida por fundamentos fiscais. Essa difusão modernizante obedeceu a uma funcionalidade que distanciou do Estado o seu caráter social e político, bem como enfraqueceu a democracia e o espaço público, deixando o Estado sem vínculo orgânico com a sociedade civil e sem projeto para o desenvolvimento econômico-social.

Palavras-chave: Democracia. Estado. Gestão. Política. Reforma.

A look over reform of the state brazilian in the years of 1990

Abstract: The reform of the State in the decade of 1990 tried to print a modern model of management that objectified to surpass a bureaucratic and patrimonial state machine. The result was the rationalization conducted for fiscal beddings. This modernizante diffusion obeyed a functionality that moved away from the State its social character and politician, as well as weakened the democracy and the public space, leaving the State without organic bond with the civil society and without project for the economic-social development.

Keywords: Democracy. State. Management. Politics. Reform.1 Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor das disciplinas Seminário Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos Sócio-Antropológicos, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus XX. E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 79-96 2009

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O Brasil, nos anos 90 do século XX, sofreu uma série de reformas institucionais sob forte influência da concepção do “pensamento único”, que prescrevia o enxugamento do Estado e a defesa do mercado enquanto determinante e regulador da dinâmica econômica, social e política. A reforma do Estado possuía um conteúdo em que os termos gestão gerencial, privatização e mercado acabaram engendrando, de certa forma, o imaginário da sociedade. A justificativa que norteou a necessidade de tal reforma foi abrir o mercado nacional para a economia internacional e provocar, assim, maior competitividade. Por isso, a urgência da superação de um Estado hiperatrofiado, ineficaz e parasitário. Para tanto, faz-se necessário ajustar o Estado com uma reforma que combine três aspectos fundamentais: fiscal, financeiro e patrimonial. Com a dimensão política exaurida e reduzida à ação perniciosa e mefistofélica, a democracia substantiva escamoteia-se diante dessa sedimentação de reforma.

A idéia de modernizar a administração pública está balizada com a premente necessidade de uma gestão cujos procedimentos e métodos estejam em consonância com a gerência do mercado. A reforma administrativa baseia-se nos paradigmas do mercado, pois estes serviriam para estabelecer uma certa racionalidade e controle de comportamentos e atividades do staff administrativo. De acordo com Nogueira (2005, p. 39), “o mercado, afinal, seria o espaço de convergência da iniciativa e dos projetos individuais, por um lado, e do equilíbrio social, por outro, graças à indução virtuosa da concorrência e da racionalidade utilitarista”.

Com o processo de globalização da economia, concebido como inevitável, a idéia reformista do Estado configurou-se como ajustamento pragmático, porém orientada política e ideologicamente por documentos do próprio governo federal e entidades internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD). Nesse sentido, a adequação à nova realidade, capitaneada pela globalização, procurou (re)estruturar o aparelho do Estado para

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diminuir seus encargos e obrigações. Não somente isso, o Estado se viu combalido e impotente diante da dinâmica da economia de mercado capitalista, que confrontava com limites colocados ao seu desenvolvimento, como a própria noção de Estado, território e nação. Cada vez mais, a economia se desterritorializa para se tornar uma força muito mais competitiva e ágil – o Estado passa então a ser visto como inoperante. É necessária uma forma de intervenção que não seja esteada no paradigma estatizante e, em sincronia com isso, a exigência da consolidação de uma estrutura organizacional que assimila uma gestão cuja tônica seja a eficiência e a eficácia, em contraposição às organizações burocráticas que oneram demasiadamente o Estado e tornam o serviço público improdutivo.

O Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE), apresentado em 1995 pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) e pelo Conselho de Reforma do Estado, que funcionava como entidade de caráter consultivo do MARE, tinha como meta reestruturar a administração governamental para ter um desempenho que visasse a equacionar questões como ajuste fiscal, maior arrecadação tributária e melhoria nos serviços públicos. A reforma ora apresentada não era um documento alheio de influências externas, ao contrário, as demandas, que a reforma indicou, foram para atender também as agências reguladoras internacionais. A reestruturação restringiu-se a solucionar percalços do aparelho governamental que, para o MARE, eram entendidos como problemas do espaço público, isto é, as suas atribuições ressaltavam a modernização da esfera administrativa, atingindo uma organização que deslocasse as atividades e serviços para o denominado setor público não-estatal.

A reforma, no entanto, se depara com uma organização do Estado que se distancia jurídica e institucionalmente do conceito de Estado de Direito Liberal. O Estado brasileiro se valeu da perpetuação de atuações e artifícios peculiares que formaram uma ordem política e social cujo sustentáculo era a estrutura do próprio Estado. Ao analisar esse Estado, Faoro (1989, p. 736) identifica que

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[...] a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista. Adotou o capitalismo como técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe alma ansiosa por transmigrar.

Faoro enfatiza que o Estado direcionou o sistema capitalista no Brasil segundo as expressões e determinações do patrimonialismo. A estrutura das esferas administrativas, resultante dessa estrutura patrimonial, produz

[...] uma autonomia da esfera política, que se manifesta com objetivos próprios, organizando a nação a partir de uma unidade centralizadora, desenvolve mecanismos de controle e regulamentação específicos. O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar da administração e, dessa base, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira (p. 738).

Dessa maneira, baseado no próprio Estado, “o estamento burocrático” seria uma espécie de ordenamento e ingerência de concessão de privilégios e ascensão política para aqueles que se aproximam de interesses próprios. Isso demonstra o quanto na formação do Estado brasileiro não se legitimou o paradigma do Estado de Direito Liberal. Numa perspectiva histórica, “o predomínio dos interesses estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana – condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos semânticos ou nominais sem correspondências com o mundo que os rege” (p. 739).

A combinação da prevalência política de ordem patrimonial burguesa, como amarra do surgimento da democracia liberal, com as forças externas representadas pelo capitalismo mundial demonstra o que Florestan Fernandes (1976) interpreta como desenvolvimento desigual interno em relação à dominação capitalista externa. Para o autor, o processo

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83 Um olhar sobre a reforma do Estado brasileiro nos anos de 1990

de globalização econômico, que seguiu unilateralmente as diretrizes de agências internacionais, se configurou, no Brasil, principiado de acordos e tensões com os estratos administrativos do Estado brasileiro. Essa articulação permitiu que o desenvolvimento interno de uma parte bastante limitada do capital estivesse em simetria com as acelerações das mudanças do capitalismo global e que a orientação de domínio e desigualdade interna, externada por meio de espoliações e mandos políticos do poder do Estado, persistisse. As classes burguesas, que foram as grandes beneficiárias dessa política de desenvolvimento econômico dependente, continuaram com essa lógica autoritária, fazendo que as desigualdades sociais fossem tendencialmente difundidas na maioria da sociedade.

Durante um determinado e longo período histórico, o Estado brasileiro, garantindo-se por uma ordem autoritária, política e jurídica, manteve o controle da vida social, econômica e política da sociedade civil. Esse exercício do poder, com a interferência do Estado, foi conduzido por meio da alta hierarquia da administração pública, constituída autocraticamente, e inviabilizou um modelo de gestão pública que efetivasse constitucionalmente o controle democrático nas áreas sociais, econômicas e políticas. Mesmo na década de 1980, o processo de transição democrática, inspirado pelo Estado clássico de direito liberal, apresentou o predomínio da estrutura política do patrimonialismo. Pode-se dizer que a racionalidade do tipo patrimonial foi a herança política e cultural que o Estado brasileiro solidificou até hoje, destroçando, em termos, a possibilidade de diálogo e prática democrática com as forças sociais dentro da relação Estado e sociedade civil.

Daquele modo, a reforma do Estado brasileiro não conseguiu (des)construir as bases do Estado patrimonial, e, por conseguinte, não capacitou o Estado de maneira tal que correspondesse realmente aos princípios normatizadores e democráticos da gestão pública e dos direitos sociais, civis e políticos. Contraditoriamente, a reforma esteve embasada nas formulações teóricas do Consenso de Washington, que tinham como pilar a relação constitutiva entre Estado e sociedade regulamentada pelos crivos da realidade política e econômica internacional e respaldada

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pelo livre mercado, pelo Estado de direito mínimo e pela concepção de governo liberal.

As orientações da reforma do Estado brasileiro foram conduzidas pelos agentes governamentais e realizadas sobretudo por técnicos burocratas do primeiro posto do governo. Logo, a confrontação que a reforma administrativa tentou ensaiar – numa visão “racional legal” – com as relações políticas patrimonialistas deu-se também por normas induzidas de forma endógena, pois se centrou dentro da estrutura do Estado, cujas relações internas sobejam a lógica racional patrimonial.

A admissão da concepção do Estado, do PDRE, foi proposta com medidas de mudança de seu entendimento. Primeiro, o Estado é configurado como um conjunto de órgãos governamentais. Essa implementação conceptual põe em xeque a noção de soberania do Estado, isso porque a soberania do poder legislativo se abrevia como espaço canalizado para a funcionabilidade dos desígnios do aparato governamental. Segundo, o plano de reforma pretende a substituição do conceito de público e estatal. A concepção de público era própria à instância estatal, marcada pelo controle até mesmo sobre o campo privado. Com o plano diretor, o significado de res publica sofre alteração semântica e operacional na relação entre público e estatal, porque o público é considerado como agente organizacional da burocracia – um Estado substancialmente fiscal –, como um sistema legal e exclusivo de ordenar sobre as tributações e os impostos. Terceiro, está presente, no documento, o chamado público não-estatal, que isenta o Estado de responsabilizar-se pela educação, por exemplo, quando atribui ao mercado o controle e o oferecimento da educação sob a “regulação” do Estado gerencial.

À vista disso, o projeto de reforma conceitua o público de forma dúbia ao caracterizá-lo não mais como um espaço de poder institucionalizado, identificado com o Estado, ou sob o domínio deste, e sim como um campo onde sucedem todos os acontecimentos e ações, tanto no âmbito social quanto no âmbito civil. Apenas a concepção de aparelho Estatal é que se depara em sua definição mais precisa, entendendo-se

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[...] por aparelho do Estado a administração pública em sentido amplo, ou seja, a estrutura organizacional do Estado em seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). O aparelho é constituído pelo governo, isto é, pela cúpula dirigente dos três poderes, por um corpo de funcionários e pela força militar (BRASIL, 1995, p. 3).

Quanto à definição do Estado, o documento anuncia que o

Estado é a organização burocrática que possui o poder de legislar e tributar sobre a população de um determinado território. O Estado é portanto a única estrutura organizacional que possui o “poder extroverso”, ou seja, o poder de constituir unilateralmente obrigações para terceiros, como extravasamento dos seus próprios limites (BRASIL, 1995, p. 3).

Esses dois conceitos, o do aparelho do Estado e o do Estado, colocam os três poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – na condição de pertencimento à administração pública, e apresentam “um corpo de funcionários” sem uma definição precisa do que este venha a ser. O que parece estar nas intenções do PDRE é a acepção do Estado como organização técnico-burocrática que seria a instância máxima e única da violência legal, de legislar e de tributar a sociedade.

Nas diretrizes listadas concernentes à questão financeira leva-se em consideração a autonomia do Estado para

1) um ajustamento fiscal duradouro; 2) reformas econômicas acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que garantam a concorrência interna e criem as condições para o enfrentamento da competição internacional; 3) a reforma da previdência social; 4) a inovação dos instrumentos de política social, proporcionando maior abrangência e promovendo melhor qualidade para os serviços sociais; e 5) a reforma do aparelho do Estado, tendo em vista sua “governança”, ou seja, sua capacidade de implementar de forma eficiente políticas públicas (BRASIL, 1995, p. 2).

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Essa implementação fiscal e financeira vai influenciar diretamente os elementos reais da política social. A administração pública gerencialista, norteada pela política fiscal e financeira, será o instrumento inovador que emplacará as políticas sociais através de resultados e objetivos bem definidos. A autonomia da gestão fornecerá os requisitos técnicos de controle dos recursos materiais e humanos para o alcance dos resultados esperados e inscritos nos objetivos. Para esse controle, a abrangência da administração pública, encerrada no documento, vigoriza a participação dos setores privados e das organizações não-governamentais. O que se espera é que na redefinição do Estado não haja contrapartida direta, como está bem discorrido neste trecho do documento: “enquanto a receita das empresas depende dos pagamentos que os clientes fazem livremente na compra de seus produtos e serviços, a receita do Estado deriva de impostos, ou seja, de contribuições obrigatórias, sem contrapartida direta” (BRASIL, 1995, p. 7).

Os recursos arrecadados pelo Estado estão sob o jugo da esfera fiscal, ou da receita fiscal, ou seja, o poder legal que o Estado tem de cobrar impostos e encargos da população sem a devida contrapartida é a relação que este, o Estado, mantém com a sociedade civil para o atendimento e saneamento das carências sociais. Dessa forma, o Estado fiscal adquire, nos seus termos, a potencialidade de solucionar os problemas sociais. Essa lógica de que os impasses sociais são deslindados como questão fiscal depara-se, enfim, com uma proposta que, além das contribuições obrigatórias da sociedade sem contrapartida direta, é também mecanismo que o Estado fiscal promove para adjunção de parcerias com o setor empresarial e ONGs, no fito de gerir, com sua capacidade racionalizadora, os recursos escassos na resolução dos problemas sociais. Fundamentalmente, as políticas públicas, engendradas a partir dessa ótica, seriam feitas de forma flexível, ao considerar o atendimento possível de exigência e obedecer implacavelmente à contenção fiscal.

Para tanto, seria determinante desenvolver estratégias que levassem em conta o controle de resultados dentro da relação custo/benefício.

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A eficiência dos gastos equivaleria a um orçamento que satisfizesse um índice mínimo dos interesses sociais. Essa noção de gestão, arranjada como neutra, técnica, flexível e racional, canalizaria uma administração que abrandaria as tensões socais e aplacaria qualquer embate político e ideológico visto como nocivo ao “bom funcionamento do organismo social” e, concomitantemente, abriria espaços para a participação da sociedade civil nos liames do terceiro setor e ONGs, para apetecer melhores resultados nos indicadores sociais e para o agenciamento e captação de recursos financeiros.

Assim, as demandas sociais, no projeto de reforma do Estado, estão na alçada pública, no entanto permanecendo no considerado público não-estatal, uma esfera que controlaria institucionalmente as necessidades dos vários setores sociais, sem a intercessão direta do Estado. Para o PDRE (BRASIL, 1995, p. 14), o público não-estatal é “constituído pelas organizações sem fins lucrativos, que não são propriedades de nenhum indivíduo ou grupo e estão orientadas diretamente para o atendimento do interesse público”.

A reforma do Estado avançou ao maximizar a abertura do mercado e ao redimensionar a terceirização do setor social, consistindo numa conversão do público numa arena de competição entre organizações não-estatais (terceiro setor) à procura de parcerias com as classes empresariais ou até mesmo com o setor governamental para a prestação de serviços públicos.

Pouco se fez para que a reforma se tornasse um projeto que permitisse uma gestão democrática e garantisse os direitos de participação política, civil e social no controle e nas tomadas de decisão da coisa pública. Contrariamente, o que se nota é a pavimentação do patrimonialismo nas relações políticas e, sobretudo, sociais, na qual se adotam facetas inovadoras e sutis, que acharam e acentuaram a sua potencialidade, sem impedimentos constitucionais de um Estado de direito clássico. O Estado fiscal atribui-se praticamente o gerenciamento dos recursos fiscais para garantir a funcionabilidade da máquina estatal e os resultados do atendimento das demandas sociais, afeiçoados pelo patrimonialismo.

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O público não-estatal, tentando munir-se de procedimentos ético-políticos, provê esse espaço institucional aparentemente neutro e técnico, ao privilegiar agentes do gerencialismo de resultado de cunho patrimonial – por meio do estabelecimento de convênios e parcerias com o Estado, pautado numa ação não transparente e democrática – e ainda ao excluir progressivamente a atuação do Estado no campo social. Nesse prisma, a educação é compreendida como serviço que deve estar no setor público não-estatal, em busca de parcerias privadas, processadas pela gestão de resultados e desempenho, e, da mesma forma, como estratégia de obtenção de recursos financeiros.

O reformismo posto dessa maneira não se traduziu em uma participação política substantiva, mas se reduziu a procedimentos representativos, com a predominância da forma eleitoral sobre um sólido sistema político que criasse o aumento e a consubstanciação de valores democráticos e a vinculação social enraizada na participação em instituições política e socialmente fortalecidas. O encadeamento reformador foi conduzido por mecanismos que forçaram uma estratificação de Estado (sociedade política) e sociedade civil, pois as relações patrimonialistas e fisiológicas e as organizações políticas e burocráticas de poder permaneceram intangíveis. A reforma, portanto, permaneceu estremada dentro da concepção gerencialista de administração, desvencilhada de princípios ético-políticos.

O discurso reformista estava resoluto em sua proposta de programa de modernização da administração para dissipar a inércia burocrática do setor público. O mercado era o termo que respaldava essa convicção e oferecia elementos para a conformação de um sistema organizacional de gestão pública capaz de produzir maior fluidez operacional.

Retorquindo a essa idéia, Nogueira chama a atenção para o fato de que a reforma do Estado não visou ao fim da burocracia. Destarte, “nenhuma reforma do aparelho de Estado feita sob o capitalismo tem como se objetivar contra a burocracia, em nome da superação de algum ‘defeito estrutural’ que esse modelo conteria” (NOGUEIRA, 2005 p.

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42 e 43). O autor mostra ainda que a reforma não poderia se dar pelo modo segundo o qual o mercado seria o referencial para a organização do aparelho estatal. Dessa forma, “nos anos 90, não havia e nem há hoje qualquer motivo justificável para que a reforma do aparelho de Estado seja ‘orientada pelo mercado’ em vez de se concentrar na recuperação e na atualização das capacidades burocráticas” (p. 43).

Se os critérios da reforma, além de serem administrativos, fossem ético-políticos, inevitavelmente as suas proposições estariam em torno da democratização das organizações públicas. Nogueira salienta o cuidado que se deve ter ao analisar os elementos fundantes de sustentação do processo de democratização da administração pública. Para esse autor, a relação entre democracia e burocracia tem

[...] mais atrito, ruído e tensão que sintonia e integração. A democracia privilegia a autonomia e a liberdade, ao passo que a burocracia não vive sem ordem e obediência. A deliberação democrática procede de baixo para cima e estrutura-se de modo potencialmente ampliado, ao passo que a burocracia decide de maneira hierárquica e tende a restringir fortemente o número dos que participam do processo decisório, em boa medida separando os tomadores de decisão, os implementadores e os beneficiários de suas operações (p. 43).

Ainda assim, democracia e burocracia não são dois sistemas dicotômicos, no sentido de que a democracia, ao anteferir autonomia e liberdade, não mantém relação e aproximação com os elementos operacionais da burocracia, por esta possuir ações heterônomas. A burocracia como capacidade de organização funcional consiste em um mecanismo que pode contribuir na admissão de subsídios imprescindíveis para a democracia. É nesse enfoque que essa junção, democracia e burocracia, pode não somente proporcionar

[...] maior transparência, legitimidade e responsabilidade, mas também para que suas decisões possam refletir as reais necessidades e as expectativas do cidadão comum. No caso, não se trataria apenas de garantir a rotinização de formas permanentes de participação, mas de possibilitar a circulação

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de valores, procedimentos e critérios democráticos no interior da organização burocrática para forçá-la a decidir de modo ampliado (p. 43).

Entretanto, a reforma não levou essa orientação a cabo. Acabou provocando uma desestruturação do corpo administrativo e, por fim, do serviço público, ao tornar as relações hierárquicas mais enrijecidas e fisiológicas e as tomadas de decisão e as normatizações mais difíceis e morosas. As medidas racionalizadoras gerencialistas da reforma legitimaram e firmaram toda uma sustentação patrimonialista e corporativista da administração burocrática, deixando o Estado num terreno movediço e, ao mesmo tempo, formando uma natureza matizada entre os dois elementos contrapostos: administração gerencialista e administração burocrática. Com isso, a reforma não permitiu nem a implementação da retórica gerencial, composta, sobretudo, do controle do mercado, e nem atacar os males da burocracia, cuja existência se baseava no patrimonialismo.

Como foi anunciado, os eventos decisivos à reforma foram marcados como condição vital para adequação do Estado à globalização capitalista. Tais eventos circunscreveram-se à estabilização da economia, ao ajuste fiscal, ao controle da inflação, ao aprimoramento do controle administrativo e, principalmente, à (re)conceituação do Estado, que implicou a noção de seu território e a sua soberania ante a hegemonia e a predominância do mercado como diretriz sócio-econômico-cultural. No entanto, essa adequação ocorreu como conformação passiva do Estado ao projeto de reforma, com o intento de superação dos desafios apresentados pela conjuntura econômica mundial. O que se verifica com essa reforma é a cimentação ideológica do teor da reforma, cuja tese fundamental admoestava o Estado como impeditivo da competitividade e da liberdade de concorrência, devido ao forte controle que este impusera na dinâmica da vida social e econômica. Em decorrência disso, percebe-se o distanciamento do Estado da sociedade civil através de estratagemas que vão desde o incremento cada vez mais perceptível do voluntarismo, do comunitarismo e da filantropia até o

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empreendedorismo de interesses particulares. Esses interesses instauram a dinâmica da meritocracia na organização social de tal maneira que se convertem numa arena de recompensa ou promoção fundamentada no mérito pessoal, cuja mobilidade se torna uma rede desdobrada de segmentações díspares e fragmentadas e, progressivamente, alijada da proteção do Estado. Este estaria de prontidão pouco menos com medidas que pudessem aliviar a situação amiúde de miserabilidade das classes excluídas, medidas pouco incisivas, em virtude de seu caráter compensatório, fisiológico e patrimonialista.

A reforma absolutamente transcorreu por duas vias, que, no seu âmago, não se coadunavam, em razão de suas contradições intrínsecas. Se, por um lado, o reformismo buscava fazer do Estado um aparelho com as orientações descentralizadoras – visando a uma maior autonomia das instâncias públicas, para estimular um espaço competitivo e eficaz para o próprio benefício dos consumidores –, com a flexibilização nas tomadas de decisão e nos procedimentos e com as desregulamentações financeiras, por outro lado, a reforma precisaria adotar regimentos para a criação de agências reguladoras que conduzissem e normatizassem toda forma de controle tarifária e contratos firmados. Teria, também, que impulsionar menos custo nos gastos públicos e mais controle nos resultados e, por fim, determinar o seu tamanho restrito de laboração no âmbito social e o acirramento das privatizações. Com base nessa modificação, o Estado foi impulsionado por uma administração centralista com decisões eminentemente técnico-buracráticas sob a lógica do gerencialismo do mercado para a configuração e o desempenho do serviço público no qual se obstruiu toda forma de indução de valores democráticos e de controle da “coisa pública” pela sociedade civil.

Essa racionalidade técnica, tomada pela reforma, acenou para uma concepção imagética coletiva em que o Estado deveria desempenhar sua função com mecanismos de gestão cuja performance se tornasse hábil e a sua estrutura reduzida ao máximo. Outrossim, a busca de maior consenso em que a presença dos conflitos políticos partidários e do sistema político na intromissão no funcionamento do Estado fosse relevante para o mau

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desempenho deste ganhou força na sociedade civil. O que permanece contundente no imaginário da sociedade é que a política apresenta práticas não virtuosas, manifestadas em ações de corrupção, peculato, improbidade administrativa e lentidão em resoluções de problemas sociais e econômicos. Dessa forma, o reformismo saneou no Estado um discurso de racionalização administrativa, com alheamento da práxis política e da vivência democrática como ponto modular na construção e na solidificação da identidade civilizatória.

A dissociação, que a reforma realizou, entre a organização gerencial racionalizada e o aspecto ético-político do Estado tentou extenuar a importância do valor do Estado ético, enquanto mediador da dinâmica político-social e provedor dos serviços públicos. Além disso, o Estado ético traz consigo a função educativa e direciona-se na edificação da “sociedade regulada” na dimensão social. Expressão proveniente de Hegel, trabalhada e aprofundada por Gramsci (2000, p. 23), o Estado ético procura “criar novos e mais elevados tipos de civilização”. Mesmo estando ligado ao Estado entendido como sociedade política (poder governamental, jurídico-coercitivo), o Estado ético diferencia-se dele. Esse Estado ético aproxima-se organicamente da sociedade civil, entendida como espaço da construção de hegemonia tanto política quanto cultural de uma dada classe sobre as demais classes sociais. Nas correlações de força pela conquista hegemônica, cimenta o conteúdo ético-político do Estado. Assim, a gestão do aparelho administrativo-governamental e a questão ético-política mantêm o seu caráter de diferenciação de atuação, mas encontram-se identificados dialeticamente. É o buscar a real identidade na aparente diferença e contradição e procurar a substancial diversidade sob a aparente identidade. Refere-se ao conceito gramsciano de Estado: “sociedade civil + sociedade política, hegemonia revestida de coerção” (p. 244).

Em verdade, o tecnicismo foi o pêndulo que influiu no conteúdo da reforma como composição hegemônica que procurou decidir a dimensão ético-política, dimensão esta desprovida de princípio valorativo da esfera da administração pública como espaço coletivo em que a “ética

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do coletivo” deveria ser o esteio do fazer política e do governar para a “criação de novos e mais elevados tipos de civilização”.

O reformismo, como foi afirmado, esteve a cada momento alinhado mais em se acomodar a uma gestão fiscalista e pragmática que reformar o Estado no qual

[...] a eficiência da vontade política, empenhada em suscitar forças novas e originais e não só em fazer cálculos com as tradicionais, mostra toda a sua potencialidade não só na arte de fundar um Estado a partir de uma ação interna, mas também de dominar as relações internacionais (GRAMSCI, 2000, p. 242).

De acordo com Gramsci, a reforma constitui-se uma espécie de “revolução passiva”, em que a preocupação estava em promover o ajuste fiscal do Estado e assentar a desregulamentação das atividades econômicas como premissas para salvaguardar o mercado, e não, como deveria, em se comprometer com as questões prementes e estruturais da organização social, como a proposição de uma cultura democrática que pudesse ser marcadamente substantiva e emancipatória, no espaço político, social ou econômico.

O cenário da década de 1990 foi entremeado com a continuação e a consolidação do processo democrático. Nesse período, o reformismo trouxe para si a redefinição de alguns conceitos pilares da democracia radical e substantiva, como os de descentralização, democracia participativa e sociedade civil. Essa modificação semântica foi necessária para atender ao objetivo de sustentar uma lógica que possibilitasse a abertura do Estado para a sociedade, porém com o discurso que sempre estava em pauta: Estado mínimo numa democracia em que a iniciativa individual é fundamental. Além disso, as demandas que ocorriam principalmente sobre o governo federal traziam a necessidade de os estados e os municípios co-responsabilizarem-se e compartilharem com os compromissos advindos do conjunto de reivindicações da sociedade, a fim de tentar solucionar, com esse comprometimento, a situação fiscal que o Estado vinha passando e adequar-se às exigências da globalização

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do mercado. A tese era, então, fazer do Estado uma esfera em que todos pudessem interferir e cooperar para o seu controle e funcionalidade. Essa “socialização” do Estado traduziu-se numa conversão da participação em procedimentos cooperativos das tomadas de decisão. A reforma apontava para a complexidade do processo de deliberação e, com isso, o imperativo do aprimoramento das instituições organizacionais para aprofundar e ampliar o controle dos processos, das demandas e dos resultados.

Contudo, a participação democrática, imprimida no discurso da reforma, deveria ser dobrada aos ditames do neoliberalismo e às práticas mercantilistas. As medidas de abertura, no processo decisional, enquadravam-se na linearidade do mercado. O que se pretendia com essa disposição era expandir mais ainda a idéia de competição e de concorrência; a gestão se comporia das próprias estruturas de cooperação e socialização das responsabilidades estatais junto com a sociedade. A democracia, nesses moldes, evitaria movimentos conflitivos e a abertura do Estado se aferia com seus preceitos de despolitização.

A defesa da reforma era movida pelo argumento de neutralidade, uma vez que a eminência do reformismo se fazia em suas modalidades técnico-administrativas, portanto sem poder haver nenhuma influência das vicissitudes políticas. E mais, o bom governo se valia pela boa gestão da economia. O bem comum da res publica deveria prevalecer para que o êxito do “governar bem” fosse norteado e arranjado pela abertura de participação societal. Esse empreendimento interpretou e reformulou algumas categorias conceituais, que custaram caro para a construção do ethos político e social em sua radicalidade. O próprio conceito de democracia foi desvirtuado para justificar uma reforma que tentou difundir a imagem negativa do Estado e se firmar como mecanismo de compressão do Estado, em vez de dinamizá-lo e incorporar uma abertura democrática marcada pelo seu valor ético-político coletivo e pelo crescimento e coesão do controle social do Estado por parte da sociedade civil.

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Considerações finais

Esse caminho percorrido pela reforma levou a um retrocesso que não somente atingiu a noção que se tem de sociedade civil, mas acabou repercutindo em sua estrutura, ao incorporar nela a “normatização” e a automatização do aparato gerencial. O distanciamento entre sociedade civil e Estado (sociedade política) provocou uma espécie de contraposição entre o discurso de gestão das políticas compensatórias e o embate na esfera do político-estatal. A cooptação de alguns movimentos sociais pelo Estado gerencial legitimou, de certa maneira, a gestão de políticas de forma mais técnica e pragmática que a tentativa de estabelecer uma ofensiva de valorização e mobilização da ação política com perspectiva coletiva de luta e oposição para estender-se à emancipação e à autonomia real.

A formação e o entendimento do conceito de sociedade civil nos diversos planos da reforma estiveram num invólucro de dubiedades que contribuiu para a prevalência de sociedade civil como lugar de reprodução e valoração autônoma das iniciativas comunitárias para captação de recursos e do tracejamento “gerencialista” de compromisso social. A autonomia preconizada tendeu para a posição da defesa da liberdade dos interesses comunitaristas ou de grupos empreendedores como forma de sustentar e aferir o não-compromisso e dever do Estado com os recursos e as políticas públicas. Essa inflexão trouxe o esvaziamento de uma visão de organização política que edificasse uma autonomia que tivesse como pontos basilares a emancipação e a enunciação de uma contra-hegemonia que delineassem as definições e as afirmações de Estado e sociedade civil fortes, e não uma sociedade conferida por posição de subordinação, ou anexo de sustentação de recurso e de ação técnico-cooperativa em nome de um Estado gerencial.

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96 Wilson da Silva Santos

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Desafios ao desenvolvimento econômico de juazeiro do Norte/CE: uma discussão

alicerçada na qualidade de vida dos residentes

Wellton Cardoso Pereira 1, José Raimundo Cordeiro Neto 2

Clério Ferreira de Sousa 3

Eliane Pinheiro de Sousa 4

Marcos Antônio de Brito 5

Resumo: Este trabalho objetiva identificar desafios ao desenvolvimento econômico da cidade de Juazeiro do Norte/CE, com base em indicadores de qualidade de vida dos residentes. Para isso, realizou-se aplicação direta de questionário a uma amostra aleatória de famílias. Embora a população tenha apresentado um nível médio de qualidade de vida, este se encontra muito próximo ao nível considerado baixo, o que revela a necessidade de intervenções, prioritariamente nos indicadores de segurança, inclusão social e emprego, os quais mostraram os piores resultados.

Palavras-chave: Qualidade de vida. Desenvolvimento econômico. Juazeiro do Norte.1 Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Professor da Secretaria Municipal de Educação de Altaneira, CE. E-mail: [email protected] Bacharel em Ciências Econômicas pela URCA. Assessor de Planejamento da Pró-Reitoria de Planejamento e Avaliação/URCA. E-mail: [email protected] Bacharel em Ciências Econômicas pela URCA. Professor Substituto do Curso de Ciências Eco-nômicas da mesma universidade. E-mail: [email protected] 4 Doutoranda em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora do Departamento de Economia da URCA. E-mail: [email protected] Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor adjunto do Departamento de Economia da URCA e Diretor Administrativo Financeiro da URCA. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 97-111 2009

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98 Wellton Cardoso Pereira et al.

Challenges to economic development of the city of juazeiro do Norte/CE: a discussion based on the quality of life of its residents

Abstract: The objective of this paper is to identify challenges to the economic development of the city of Juazeiro do Norte/CE, based on indicators of quality of life of its residents. For that purpose, there was a direct application of a questionnaire with random sample of families. Although the population has shown an average level of quality of life, it is too close to the level considered low, indicating, thus, that the priority interventions should give us indicators of safety, social inclusion and employment, which showed the worst results.

Keywords: Quality of life. Economic development. Juazeiro do Norte.

Introdução

A busca da qualidade de vida sempre esteve presente na sociedade humana, caracterizada pelas circunstâncias de cada época e evidenciada pelo nomadismo do homem primitivo, à procura dos ambientes menos hostis a sua sobrevivência; por meio dos aglomerados urbanos das cidades-estados, sob a proteção dos imperadores, na Idade Antiga; através do ruralismo, no qual o indivíduo subjugava-se ao senhor feudal e tinha então como contrapartida a proteção de seu exército e o usufruto de suas terras, na Idade Média; pelo metalismo, da época mercantilista, que atribuía uma relação direta entre bem-estar e a posse de metais preciosos; pela urbanização causada pela Revolução Industrial, em que as cidades industrializadas passaram a oferecer mais emprego e renda e, consequentemente, maiores oportunidades para a satisfação das necessidades dos indivíduos; e, enfim, pelo consumismo da sociedade contemporânea.

De acordo com Margarete, Keinert e Karruz (2002), a temática da qualidade de vida vem ganhando espaço na discussão sobre os objetivos a serem alcançados ou mantidos pelas políticas públicas. No entanto, como enfatizam os autores, apesar do reconhecimento da importância da qualidade de vida no planejamento do desenvolvimento econômico, social e urbano, existe uma dificuldade inerente a sua conceituação.

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99 Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada...

De fato, “talvez nenhum conceito seja mais antigo, antes mesmo de ser definido, do que qualidade de vida e talvez nenhum seja mais moderno do que a busca da qualidade de vida, sendo que mais moderna ainda seja sua crítica e definição” (BUARQUE, 1993, p. 157).

Visto que a idéia de qualidade de vida sempre esteve muito ligada à temática do desenvolvimento, as discussões acerca desta última foram acompanhadas pela evolução daquela, o que corrobora a opinião de que “não se pode isolar [...] qualidade de vida de desenvolvimento, porque são dois conceitos que contemplam o bem-estar da sociedade em geral” (BRITO, 2004, p. 504).

Enquanto foi identificado à industrialização, até meados da década de 1950, entendia-se o desenvolvimento como “níveis de produção e consumo material medidos por indicadores como PNB e renda per capita. Outras variáveis importantes como a equidade social e a distribuição dos frutos do crescimento econômico, não são contempladas por esse modelo” (MAYORGA et al., 1999, p. 37). Logo, o conceito de nível de vida era associado ao nível de consumo, numa conotação quantitativa e monetária.

A partir dos anos 1960, presenciou-se a ampliação do modelo convencional de desenvolvimento, e, na década de 1970, o conceito de bem-estar econômico “passou a adquirir um significado mais amplo em direção ao bem-estar geral e social” (MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 41).

Nos anos 1980, ganhou notoriedade a expressão desenvolvimento sustentável, que sugeria o desenvolvimento integral da sociedade, ou seja, idealizava um processo que envolvesse os aspectos ambientais, culturais, sociais, políticos e econômicos. Segundo Mayorga et al. (1999, p. 44), tal noção se baseia na idéia de que “as pessoas, sobretudo as mais pobres, devem ser sujeitos e não objetos do ‘desenvolvimento’. O meio ambiente e o desenvolvimento devem ser vistos como meios e não como fins, onde a qualidade de vida passa a ser uma prioridade”.

Na década de 1990, o novo conceito de desenvolvimento humano foi atrelado a uma nova metodologia para sua quantificação. Trata-se do

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100 Wellton Cardoso Pereira et al.

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que utiliza três indicadores para medir a qualidade de vida, a saber: a expectativa de vida, a taxa de analfabetismo e o nível de renda, como reflexos da saúde, do conhecimento e do acesso a bens materiais, respectivamente.

Não obstante ter evoluído, o conceito de qualidade de vida ainda apresenta diversas interpretações. Todaro (1991 apud BRITO, 2004, p. 504) considera que “qualidade de vida simboliza uma série de anseios (distribuição mais equitativa da renda, nutrição, saúde, produção e emprego) que, quando alcançados fazem a pessoa satisfeita”. Noutra concepção, “a qualidade de vida de um indivíduo ou sociedade é a quantidade e qualidade dos meios a que se pode assentir para satisfazer suas necessidades, o modo como os obtêm e o papel que lhes atribuem” (BRAVO; VERA, 1993 apud MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 121).

Segundo Nahas e Martins (1995 apud BRITO, 2004, p. 506):

[...] apesar de não haver uma conceituação clara e universal de qualidade de vida, em sentido pragmático ela pode ser entendida como a satisfação de um espectro de necessidades básicas que assegurem um certo nível de vida da população. Destarte, a qualidade vida é algo incomensurável, por ser essencialmente qualitativa e subjetiva. Para torná-la mais tangível, clara e objetiva são estabelecidos critérios objetivos e métodos quantitativos.

Vale ressaltar ainda que “a qualidade de vida não pode ser estudada apenas no seu caráter normativo. Também deve-se levar em conta as percepções individuais, que sofrem influência da cultura e educação dos indivíduos” (SILVA, 1996 apud MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 42). Essa perspectiva exige a formatação de indicadores de qualidade de vida, que pode vir a ser

[...] um instrumento do planejamento, servindo como um parâmetro do grau de cobertura das necessidades dos indivíduos

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ou grupos sociais, permitindo a detecção de desigualdades socioespaciais, derivadas dos diferentes graus de satisfação das necessidades, proporcionando bases para a elaboração de estratégias para melhorar o bem-estar (MORA, 1996 apud MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 40).

Nesse sentido, este artigo tem como objetivo identificar desafios ao desenvolvimento econômico da cidade de Juazeiro do Norte, Ceará, com base em indicadores de qualidade de vida dos residentes da zona urbana. A próxima seção expõe a metodologia utilizada para o cálculo do Índice de Qualidade de Vida de Juazeiro do Norte (IQVJN), contextualizando o método analítico e a área pesquisada. Seguida a essa, outra seção apresenta e discute os resultados obtidos com a aplicação dos métodos utilizados.

metodologia

ÁREA DE ESTUDO

A cidade de Juazeiro do Norte foi criada em 1911 e está localizada na microrregião do Cariri, sul do Ceará, a 396 km da capital do estado, Fortaleza, em linha reta. Possui uma área de 249 km², com climas tropical quente semi-árido e tropical quente semi-árido brando. Apresentou em 2004 uma população de 231.920 habitantes – 95,33% residentes na zona urbana –, com densidade demográfica de 905 hab/km² (IBGE, 2005). Segundo o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, o Ipece, (CEARÁ, 2005), o IDH municipal em 2002 era 0,697, portanto de médio desenvolvimento humano.

MÉTODO ANALÍTICO

“A seleção dos indicadores é uma etapa importante do estudo. Os indicadores podem ser considerados medidas discretas dos níveis de satisfação das necessidades e permite fazer a descrição, avaliação e análise dos fenômenos” (MARGARETE; KEINERT; KARRUZ, 2002, p. 42). Assim, em conformidade com esta opinião, de que “a qualidade de vida

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está relacionada a fatores psicossociais de cada indivíduo, decorrentes da satisfação ou insatisfação de suas necessidades”, estudou-se a qualidade de vida das famílias urbanas juazeirenses, no que diz respeito a: a) saúde (baseando-se nos principais serviços de saúde e na infra-estrutura hospitalar); b) educação (verificando-se a disponibilidade de escolas e profissionais da área, o nível de educação existente e a infra-estrutura escolar); c) emprego e renda (fundamentando-se na condição de emprego, no nível de renda e no acesso às políticas de geração de emprego e renda); d) habitação (destacando-se o tamanho da residência, sua infra-estrutura e a condição de propriedade); e) energia elétrica e telecomunicações (considerando-se a disponibilidade de energia elétrica e de serviços de telecomunicações e a qualidade da transmissão de sinais de televisão e rádio); f) acesso a bens de primeira necessidade e bens duráveis (tomando-se como referências a disponibilidade de bens para suprir as necessidades e a qualidade dos bens consumidos); g) água e saneamento básico (levando-se em conta a qualidade da água disponível, o tipo de tratamento da água para o consumo humano e o destino dado aos dejetos humanos); h) limpeza pública e aspectos urbanísticos (enfatizando-se o destino dado aos resíduos sólidos domiciliares, a frequência na coleta destes e os aspectos paisagísticos da cidade); i) transporte e pavimentação (considerando-se o estado de conservação das vias urbanas e o acesso ao município, a disponibilidade de transporte coletivo e seu estado de conservação); j) esporte e lazer (observando-se o bem-estar físico, as opções de lazer e o tipo de diversão preferida); l) segurança (considerando-se os itens: nível de ocorrência de delitos e acesso a programas de combate à violência) e m) inclusão social (destacando-se exclusão social, acesso a programas de inclusão social e participação em entidades associativas).

No intuito de cumprir com os objetivos propostos, utilizaram-se a análise tabular e descritiva das variáveis socioeconômicas e a mensuração do Índice de Qualidade de Vida, que pode ser determinado com a agregação dos indicadores descritos e expresso matematicamente pela “equação (1)”, a seguir:

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(1)

A contribuição de cada indicador do Índice de Qualidade de Vida dos residentes no perímetro urbano do município de Juazeiro do Norte (IQVJN) pode ser representada algebricamente pela “equação (2)”, como se segue:

(2)

Onde:IQVJN = Índice de Qualidade de Vida do Perímetro Urbano de Juazeiro do Norte;eij = escore do i-ésimo indicador, obtido pelo j-ésimo residente;pij = peso do i-ésimo indicador, definido pelo j-ésimo residente;i = 1, 2, 3, ... , m;j = 1, 2, 3, ..., n;Pij = peso máximo do i-ésimo indicador;Eij = escore máximo do i-ésimo indicador;Ii = contribuição do indicador i no Índice de Qualidade de Vida;n = número de residentes; m = número de indicadores.

O Índice de Qualidade de Vida das famílias residentes na cidade de Juazeiro do Norte (IQVJN) varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, melhor o nível de qualidade de vida que o residente apresenta. Portanto, o valor 1 representa o nível ótimo de qualidade de vida. Dentro desses limites, optou-se por estabelecer os seguintes critérios:a) Baixa qualidade de vida.......................................0 < IQVJN ≤ 0,33;b) Média qualidade de vida .......................... ..........0,33 < IQVJN ≤ 0,66; c) Alta qualidade de vida ........................................0,66 < IQVJN ≤ 1.

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104 Wellton Cardoso Pereira et al.

Através da observação da participação de cada indicador no índice calculado, fizeram-se considerações a respeito dos aspectos socioeconômicos que exigem prioridade nas intervenções com vistas a melhorar a qualidade de vida na área pesquisada.

tamanho da amostra

O presente trabalho utilizou dados primários, coletados nas famílias que moram no perímetro urbano de Juazeiro do Norte, no período de março a junho de 2005.

Para determinar o tamanho da amostra para populações infinitas, empregou-se a “equação (3)”, recomendada por Fonseca e Martins (1996) e exposta a seguir:

(3)

Onde:n = tamanho da amostra;Z = abscissa da normal padrão;p = estimativa da proporção da característica pesquisada no universo;q = 1 – p;d = erro amostral.

Considerando uma população infinita, um erro de estimação de 9% (d = 0,09), abscissa da normal padrão Z = 1,96, ao nível de confiança de 95% e p = q = 0,5 (na hipótese de se admitir o maior tamanho da amostra, porquanto não se conhecem as proporções estudadas), obteve-se um tamanho da amostra (n) igual a 119.

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Resultados e Discussões

Perfil sociocultural e econômico dos residentes no perímetro urbano do município de Juazeiro do Norte, CearáFaixa Etária

A Tabela 1 mostra a predominância de residentes da área de estudo na faixa etária de 20 a 40 anos (46,22%) e a menor frequência de menores de 20 anos. Destarte, observa-se que a maior parcela dos habitantes do perímetro urbano de Juazeiro do Norte está compreendida no intervalo da população economicamente ativa ou com potencial produtivo.

tabela 1 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme a faixa etária dos residentes no perímetro urbano do município de

juazeiro do Norte – CE, 2005Faixa Etária Nº de residentes % Fac (%)

< 20 04 3,36 3,3620 30 27 22,69 26,0530 40 28 23,53 49,5840 50 22 18,49 68,0750 60 19 15,97 84,0460 70 10 8,40 92,44

> 70 09 7,56 100,00total 119 100,00 -

Fonte: Dados da Pesquisa. Fac - Frequência acumulada.

Esses dados demonstram que o indicador emprego e renda possui grande relevância na qualidade de vida da população estudada e, consequentemente, poderá constituir uma variável crítica no processo de desenvolvimento econômico do município em questão.

Grau de instrução

Os dados contidos na Tabela 2 revelam que um percentual significativo de residentes (45,38%) frequentou o ensino fundamental, mas não o concluiu. Essa alta taxa de evasão escolar pode ser um reflexo da necessidade de ingresso precoce do indivíduo no mercado de trabalho,

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106 Wellton Cardoso Pereira et al.

para complementar a renda familiar. E que apenas 4,20% concluíram o ensino superior, apesar de existirem instituições de ensino superior no município. Tal fato será explicado a posteriori pelo baixo nível de renda dos residentes pesquisados.

tabela 2 - Frequências absoluta e relativa conforme o grau de instrução dos residentes no perímetro urbano do município de

juazeiro do Norte – CE, 2005Grau de Instrução Nº de Residentes %

Analfabeto 17 14,29

Semi-analfabeto 02 1,68

Ensino fundamental incompleto 54 45,38

Ensino fundamental completo 09 7,56

Ensino médio incompleto 04 3,36

Ensino médio completo 26 21,85

Ensino superior incompleto 02 1,68

Ensino superior completo 05 4,20

total 119 100,00

Fonte: Dados da Pesquisa

Confrontando os dados da Tabela 1 com os da Tabela 2, constata-se que, embora a proporção de 46,22% da população local seja economicamente ativa, 60% dos citadinos possuem no máximo o ensino fundamental incompleto, o que compromete a inserção destes em postos de trabalho de setores econômicos dinâmicos, que tendem a exigir mão-de-obra com alta qualificação técnica, a fim de atender aos novos métodos de produção flexível.

Sem reduzir a educação a sua função instrumental de preparação para o mercado de trabalho, dado que também se trata de um direito humano, entende-se que as políticas educacionais possuem grande relevo na superação da situação vivida em Juazeiro do Norte, em termos de vulnerabilidade de mão-de-obra diante das exigências do setor produtivo.

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107 Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada...

tamanho da família

A Tabela 3 demonstra que o tamanho predominante da família juazeirense é de três ou quatro membros, ou seja, 38,66% dos grupos familiares, e que 85,72% das famílias possuem no máximo seis pessoas.

tabela 3 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme o tamanho da família no perímetro urbano do município de juazeiro do

Norte – CE, 2005tamanho da família Nº de Famílias % Fac (%)

12 21 17,65 17,6534 46 38,66 56,3156 35 29,41 85,7278 12 10,08 95,80

910 03 2,52 98,321112 02 1,68 100,00

total 119 100,00 -Fonte: Dados da pesquisa. Fac: Frequência acumulada.

A predominância de famílias que possuem três ou quatro membros pode dar a impressão de que as políticas de incentivo ao planejamento familiar estejam surtindo um efeito considerável sobre o perfil da família de Juazeiro do Norte. Todavia, quando se observa que 43,69% das unidades familiares estudadas possuem cinco ou mais pessoas, verifica-se a possibilidade de que as práticas de planejamento familiar não sejam tão frequentes entre a população em questão.

Esse quadro indica o agrupamento de muitas necessidades individuais em alguns grupos familiares. É preciso incrementar os incentivos ao planejamento das famílias, e facilitar a sua execução, a fim de impedir o aprofundamento e a reprodução de contextos como esse. Ademais, estratégias de ampliação das oportunidades de ingresso no mercado de trabalho e de geração de renda, combinadas com políticas de qualificação técnica de mão-de-obra, podem contribuir para elevar as condições das famílias, sobretudo as mais numerosas, para atender às necessidades dos seus integrantes.

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108 Wellton Cardoso Pereira et al.

Faixa de renda

Os dados disponíveis na Tabela 4 evidenciam a concentração de renda nas famílias pesquisadas, das quais 78,99% ganham até três salários mínimos e 4,20% têm rendimento superior a dez salários mínimos.

tabela 4 – Frequências absoluta, relativa e acumulada conforme a renda familiar no perímetro urbano do município de juazeiro do Norte - CE, 2005

Faixa de renda (Sm)* N° de famílias % Fac (%)01 42 35,29 35,291 3 52 43,70 78,993 5 17 14,29 93,28

5 10 03 2,52 95,8010 50 05 4,20 100,00

total 119 100,00 -Fonte: Dados da Pesquisa. Fac: Frequência acumulada.* Salário mínimo.

Observa-se que a maioria das famílias das camadas urbanas de Juazeiro do Norte sofre restrições severas no orçamento disponível para satisfazer suas necessidades, que dificultam o acesso a bens e serviços diversos e influenciam negativamente a satisfação no consumo. Essa limitação orçamentária também afeta a demanda por produtos locais, dado que o mercado consumidor possui uma reduzida dimensão, o que restringe as possibilidades de crescimento econômico.

Qualidade de Vida

Os resultados relacionados à qualidade de vida das famílias residentes em Juazeiro do Norte, apresentados na Tabela 5, a seguir, permitem que se tenha uma idéia mais ampla das condições de vida naquela cidade, assim como se conheça o grau de satisfação da população, correspondente a cada indicador.

Abaixo se encontram agrupados os indicadores do nível de qualidade de vida, conforme a Tabela 5:

• Baixa qualidade de vida: segurança (0,0762); inclusão social (0,1116); emprego e renda (0,1820); esporte e lazer (0,1963); educação (0,2165); saúde (0,2178); transporte e pavimentação (0,3034);

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• Média qualidade de vida: acesso a bens de primeira necessidade e bens duráveis (0,3339); habitação (0,5064); energia elétrica e telecomunicações (0,5459); água e saneamento básico (0,5607);• Alta qualidade de vida: limpeza pública e aspectos urbanísticos (0,8184).

Cabe observar que alguns indicadores de serviços públicos essenciais (segurança, educação e saúde) atestam a insatisfação da população e evidenciam a necessidade de melhorias governamentais na qualidade e cobertura desses serviços. Merecem atenção também os baixos índices de participação dos residentes de Juazeiro do Norte em organizações associativas, refletidos no indicador inclusão social, o que demonstra que a cidade carece de estímulos à auto-organização da sociedade civil, a qual facilitaria ações coletivas coordenadas. Além disso, os baixos índices relacionados a esporte e lazer e a transporte e pavimentação estão associados estreitamente com as deficiências relacionadas a emprego e renda, já que são serviços cujo acesso é determinado pelo poder aquisitivo do indivíduo, com exceção da pavimentação urbana.

tabela 5 – Participação dos indicadores na composição do Índice de Qualidade de Vida dos residentes no perímetro urbano do município

de juazeiro do Norte – CE – IQVjN, 2005Indicadores IQVj Participação %

Acesso a bens* 0,3339 0,0278 8,20Água e saneamento básico 0,5607 0,0467 13,77Educação 0,2165 0,0180 5,31Emprego e renda 0,1820 0,0152 4,48Energia elétrica e telecomunicações 0,5459 0,0455 13,42Habitação 0,5064 0,0422 12,44Inclusão social 0,1116 0,0093 2,74Esporte e lazer 0,1963 0,0164 4,84Limpeza pública e aspectos urbanísticos 0,8184 0,0682 20,11Saúde 0,2178 0,0182 5,37Segurança 0,0762 0,0063 1,86Transporte e pavimentação 0,3034 0,0253 7,46total 0,3391** 0,3391 100

Fonte: Dados da pesquisa.* Bens de primeira necessidade e bens duráveis.** Representa a média aritmética dos IQVs por indicadores.

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110 Wellton Cardoso Pereira et al.

Verifica-se que os indicadores segurança, inclusão social e emprego e renda apresentaram os piores resultados, respectivamente: 0,0762; 0,1116 e 0,1820. Por outro lado, os indicadores que obtiveram os melhores resultados foram limpeza pública e aspectos urbanísticos, água e saneamento básico e energia elétrica e telecomunicações, respectivamente: 0,8184; 0,5607 e 0,5459.

Agregando todos indicadores, tem-se o IQVJN no valor de 0,3391, o qual representa um nível médio de qualidade de vida, embora esse índice se encontre muito próximo do limite do intervalo do nível considerado baixo.

Considerações finais

Os resultados obtidos na pesquisa tornam possível concluir que grande parte da população urbana de Juazeiro do Norte é formada por pessoas na faixa etária de 20 a 40 anos e que é significativa a parcela de residentes com o ensino fundamental incompleto, dado que contrasta com o fato de que há instituições de ensino superior, inclusive públicas, no município. Um percentual de 43,69% das famílias possui cinco ou mais pessoas e 78,99% delas têm rendimento de até três salários mínimos, enquanto uma ínfima parte tem renda superior a cinco salários mínimos, o que evidencia uma forte concentração de renda, que compromete o desenvolvimento social e desafia a sociedade a buscar uma melhor distribuição da riqueza.

No geral, a população de Juazeiro do Norte tem média qualidade de vida, apesar de o IQVJN estar bem próximo do nível de baixa qualidade de vida e indicar, portanto, um quadro de fragilidade da situação social e econômica da maioria das famílias na área estudada.

Pelo que se observou dos indicadores específicos, o avanço da qualidade de vida das famílias urbanas juazeirenses depende, por um lado, da ampliação da oferta e da melhoria de alguns serviços públicos e, por outro, da possibilidade de aquelas famílias com baixo nível de renda virem a elevar sua participação na renda local.

Dessa forma, os maiores desafios à obtenção de um processo de desenvolvimento econômico que imprima melhor nível de qualidade

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111 Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte/CE: uma discussão alicerçada...

de vida em Juazeiro do Norte consistem em elevar a satisfação dos residentes, sobretudo quanto aos elementos: segurança; inclusão social; emprego e renda; esporte e lazer; educação; saúde; e transporte e pavimentação. Deve-se, ainda, buscar ampliar aqueles indicadores que apresentaram nível médio ou alto de qualidade de vida.

Cumprindo tais desafios, o município poderá, de fato, adentrar num processo de desenvolvimento econômico no qual seja garantida aos seus cidadãos a satisfação de suas necessidades pelo acesso a bens e serviços diversos, que permitam assegurar uma qualidade de vida capaz de conferir a dignidade a que todos os seres humanos têm direito.

Referências

BRITO, Marcos A. de. Qualidade de vida e satisfação dos associados da Cooperativa Agropecuária de Brejo Santo – Ceará. Revista Econômica do Nordeste - REN, Fortaleza, n. 4, v. 35, p. 500-527, out./dez. 2004.

BUARQUE, Cristovam. Qualidade de vida: a modernização da utopia. lua Nova: Rev. Cult. e Política, São Paulo, n. 31, p. 157-165, 1993.

CEARÁ. Instituto de Pesquisa e Estratégia do Estado do Ceará (IPECE). Perfil básico municipal. Disponível em: <www.ipece.ce.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2005.

FONSECA, Jairo Simon da; MARTINS, Gilberto de Andrade. Curso de estatística. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1996.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: 15 mar. 2005.

MARGARETE, Tânia; KEINERT, Mezzomo; KARRUZ, Ana Paula. Qualidade de vida. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002.

MAYORGA, Ruben Dario et al. Níveis de qualidade de vida nos municípios com maiores índices de degradação ambiental do semi-árido cearense no Brasil. Políticas Agrícolas, Fortaleza, n. 1, v. 4, p. 5-39, 1999.

Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês dessa atividade no

Nordeste brasileiro

José Raimundo Cordeiro Neto 1

Resumo: Este artigo trata do processo de mudança tecnológica orientada para a ovinocaprinocultura nordestina, considerando o caráter predominantemente camponês dessa atividade produtiva na Região Nordeste. Utiliza-se pesquisa bibliográfica para abordar as necessidades específicas desse tipo de produção na incorporação de novos procedimentos produtivos e na conciliação da nova base tecnológica com a organização socioeconômica particular do campesinato. Relacionam-se as inovações geradas para a pecuária ovina e caprina com as dinâmicas inerentes às unidades camponesas e aos processos que envolvem novas tecnologias.

Palavras-chave: Inovações tecnológicas. Ovinocaprinocultura. Campesinato. Nordeste.

the technological innovations generated for sheep and the goat farming and the economic peasant context of this activity in the

brasilian northeast

Abstract: This article deals with the technological change process aimed at the sheep and goat farming industry in the northeast, considering the predominantly peasant character of this productive activity in the northeastern region. Bibliographic 1 Economista graduado pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Assessor de Planejamento da Pró-Reitoria de Planejamento e Avaliação da URCA. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 113-130 2009

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114 José Raimundo Cordeiro Neto

research is used to approach specific needs for this activity in the incorporation of new productive proceedings and the strategies to conciliate the new technological base with the particular socioeconomic organization of peasantry. Innovations generated for sheep and goat farming are related to the dynamics inherent to peasant units and the processes that involve new technologies.

Keywords: Technological innovation. Sheep and goat farming. Peasantry. Northeast.

Introdução O Nordeste brasileiro assume relevo no campo das estratégias

nacionais de desenvolvimento rural, em decorrência da elevada participação que detém essa região na pobreza rural do país. Conforme estudo de Rocha (2003), a proporção de pobres rurais nordestinos em relação ao total de pobres rurais brasileiros era de 68,17% em 1999.

As demandas sociais acentuadas por essa situação têm promovido considerável surgimento de inovações técnicas para algumas atividades agropecuárias nordestinas tradicionais, como é o caso da ovinocaprinocultura2. Segmentos produtivos como esse são caracterizados pela presença predominante da pequena produção familiar, quanto à quantidade de unidades produtivas. Esse é um aspecto condizente com o fato de que a região nordestina concentra o maior número de estabelecimentos agrícolas familiares do Brasil (INCRA, 2000). Semelhantemente, 68,8% dos caprinos e 65,9% dos ovinos são criados, no Nordeste, em propriedades com área inferior a 100 ha (CORREIA et al., 2001).

Ao gerar tecnologias que possam ser internalizadas pelas unidades produtoras de ovinos e caprinos no Nordeste, as instituições de pesquisa agropecuária indicam seguir a idéia de que a elevação da produtividade daí esperada possibilitará elevar o padrão de vida no meio rural, contribuindo para superar a condição predominante de pobreza nesse espaço.

2 Pressupõe-se que o Nordeste possui vantagens competitivas em setores como esse. Na ovi-nocaprinocultura, sabe-se que, atualmente, 93,7% dos caprinos e 48,1% dos ovinos do rebanho brasileiro são criados no Nordeste (CORREIA, et al., 2001). Nesse contexto, têm grande im-portância as características da região Semi-Árida, que se apresentam apropriadas às necessidades desses animais, especialmente no que diz respeito às temperaturas e à vegetação (a caatinga) que lhes serve de alimento.

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115 As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ...

Neste artigo, entendendo-se que a criação nordestina de pequenos ruminantes é típica de pequenas unidades camponesas, investigam-se as necessidades específicas que esse tipo de produção pode enfrentar para empreender a mudança tecnológica orientada para a atividade. Também são abordadas as condições para que se mantenha o caráter camponês da unidade que venha a se modificar tecnologicamente, de modo a conciliar a nova base tecnológica e a organização socioeconômica própria do campesinato.

Para tanto, o estudo apoiou-se no levantamento das tecnologias geradas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa – para a ovinocaprinocultura e em parte da literatura disponível sobre tecnologia e mudança tecnológica, além das referências sobre a pequena produção camponesa.

Nas seções a seguir, inicia-se por estabelecer um referencial teórico sobre tecnologia e campesinato. Em seguida, apresentam-se os procedimentos tecnológicos desenvolvidos pela Embrapa Caprinos para a pecuária em questão, relacionando-os ao contexto camponês que envolve o segmento. Por fim, são pontuadas as considerações finais a respeito do assunto estudado.

tecnologia e campesinato

TECNOLOGIA

Diversos pesquisadores da área de Economia concordam que a variável tecnológica só passou a ser reconhecida como elemento central das economias capitalistas com as contribuições de Joseph A. Schumpeter, nas primeiras décadas do século XX. De fato, a abordagem schumpeteriana lançou as bases dos estudos a respeito da tecnologia ao distinguir entre os ajustes contínuos de antigas combinações de materiais de produção, decorrentes de pressões de demanda, e as novas combinações (SCHUMPETER, 1997).

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116 José Raimundo Cordeiro Neto

De acordo com Schumpeter (1997, p. 75), novas combinações “seriam capazes de romper o fluxo circular, originando o fenômeno do desenvolvimento” e estariam relacionadas à entrada de um novo bem no mercado, à introdução de um novo método de produção, à abertura de um novo mercado, à conquista de uma nova fonte de matéria-prima e/ou ao estabelecimento de uma nova organização de qualquer setor.

Como qualquer uma dessas inovações faria iniciar um fluxo diferenciado, com um deslocamento do estado de equilíbrio previamente existente, o agente econômico empreendedor da nova combinação enfrentaria como principal dificuldade a necessidade de operar em uma situação inusitada em relação as suas experiências anteriores. Ele estaria desprovido dos novos dados, que passariam a marcar as circunstâncias, ao mesmo tempo em que necessitaria planejar conscientemente sua conduta em todos os particulares. O agente inovador, denominado por Schumpeter (1997) de empresário, possuiria, contudo, diversas razões para empreender a nova combinação (a distinção social, o desejo de conquistar um reino privado, a alegria de criar, o exercício da engenhosidade, etc.). Além disso, sendo uma condição para a realização da nova combinação, o seu trabalho poderia ser concebido como um meio de produção singular, o que lhe proporcionaria uma remuneração específica: o lucro empresarial, que existirá enquanto a nova combinação não se difundir3.

De acordo com Dalcomuni (2000, p. 201), a partir desse marco teórico, a tecnologia passa a ser conceituada como conhecimento, “o qual pode estar materializado em máquinas, equipamentos, instalações, mas também constituindo-se em conhecimento abstrato, seja explícito [...] ou tácito”.

As relações entre esses conceitos teóricos e a atividade agropecuária adquirem sentido quando se observam as idéias de Schultz (2005, p. 147): “a base econômica do crescimento lento associado com a agricultura tradicional é explicada pela dependência de um determinado conjunto de fatores de produção, cuja rentabilidade já está esgotada”. Sendo assim, esse autor acredita que o progresso técnico no setor primário apenas

3 Com a difusão, os novos métodos serão incorporados ao fluxo circular normal, abolindo-se o direi-to da liderança do empreendedor a ele imputado: “então o novo processo de produção se repetirá. E para isso a atividade empresarial não é mais necessária” (SCHUMPETER, 1997, p. 145).

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117 As inovações tecnológicas na ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês ...

pode ocorrer por incorporação de novos fatores de produção às práticas produtivas, o que envolve, além de insumos materiais, as habilitações e as aptidões de um povo, passíveis de ampliação pelo investimento em capital humano4.

Para Schultz (2005), a dinamização dos segmentos produtivos rurais dependeria da geração de insumos com uma taxa de retorno capaz de justificar o investimento adicional do seu emprego. Para tanto, necessitar-se-ia de instituições de pesquisa, já que, embora os fatores materiais da inovação pudessem ser importados, eles necessitariam ser adequados aos contextos particulares; além do mais, o capital humano exigiria investimentos próprios.

A efetivação desse processo, contudo, mostra-se problemática em muitos casos, em especial nas economias subdesenvolvidas, não apenas pelas dificuldades de modernização do setor primário, mas também, e sobretudo, em razão dos efeitos da introdução da nova base tecnológica. A heterogeneidade do grupo de agentes econômicos encontrada nas zonas rurais e as desiguais condições socioeconômicas em que esses agentes atuam comprometem a realização de uma mudança técnica que envolva todos os segmentos existentes e, simultaneamente, beneficie o conjunto da população rural. Pesam, nesse contexto, os problemas relativos à concentração fundiária, além das assimetrias do acesso ao crédito entre as unidades produtivas, das diferenças regionais e do contexto particular das atividades produtivas para as quais se propõe mudança tecnológica. Ainda têm destaque entre os grupos sociais a serem atingidos a lógica de organização socioeconômica de cada um, as condições objetivas em que operam para produzir, a natureza das dificuldades enfrentadas e das suas necessidades. Isso significa admitir que uma determinada tecnologia possa mostrar-se apropriada a um grupo e inapropriada a outro (ARAÚJO, 1988).

4 Os impactos desse tipo de investimento podem ser visualizados pelos conceitos de efeito traba-lhador (direto) e efeito alocativo (indireto), relacionados aos retornos da educação na produção agropecuária. “O aumento da educação permite ao trabalhador produzir mais com os recursos em mãos – esse é o efeito trabalhador. Mas o aumento da educação pode aumentar, também, a habilidade do trabalhador em adquirir e decodificar informações sobre características produtivas e custos de outros insumos, o que constitui o chamado efeito alocativo” (FIORI; ARAÚJO, 2002, p. 646).

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Campesinato

O campesinato é entendido aqui como um grupo que possui substância e identidade sociais próprias5. Embora a produção camponesa seja frequentemente denominada pequena produção, não é a dimensão territorial do estabelecimento produtivo que irá defini-la, mas as características inerentes à organização do seu processo produtivo e à sua forma de inserção na sociedade mais ampla. Em primeiro lugar, como ressalta Araújo (1988, p. 26), a propriedade campesina produz, prioritariamente, alimentos, e

[...] a denominada unidade de exploração ou unidade de trabalho é também uma unidade de consumo. Esta dupla dimensão se põe em realidade devido à produção ser praticada pelo grupo doméstico. Este fato vai dar à unidade de trabalho um caráter familiar.

Conforme esse autor, a administração desse tipo de produção tem sempre como base de cálculo o consumo socialmente necessário ao grupo doméstico, por um lado, e os recursos disponíveis para fazer frente a essa necessidade, por outro.

Pelo fato de essa produção se relacionar estreitamente com o ambiente natural, torna importante destacar o conceito de ecótipo camponês, “um sistema de transferência de energias do meio ambiente para o homem” (WOLF, 1976, p. 36). O autor distingue dois tipos de ecótipos: o paleotécnico, no qual o trabalho humano e o animal são predominantes na produção de alimentos e na criação de mais homens e animais, as máquinas empregadas são simples e as técnicas de cultivo, tradicionais; e o neotécnico, influenciado pela industrialização e caracterizado pela confiança crescente no uso dos combustíveis elaborados e de aperfeiçoamentos científicos.5 As conceituações de campesinato são muitas, conquanto os primeiros estudos a respeito desse grupo remontem ao século XVIII. Até as últimas décadas, o tema foi objeto de estudo de diver-sas vertentes em diferentes ciências: economia, antropologia, agroecologia, entre outras, o que proporcionou um acúmulo de conhecimento sobre o assunto em que vários fatores se somam nos esforços de compreendê-lo. Para uma revisão dos principais conceitos de campesinato, ver Sevilla Gusmán; Mollina (2005).

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É também importante considerar a concepção de racionalidade econômica incompleta. Para Abramovay (1992, p. 115), “nada mais distante da definição do modo de vida camponês que uma racionalidade fundamentalmente econômica”. Isso se deve ao fato de que, na verdade, o ambiente social das comunidades camponesas promove um conjunto de normas próprias e vínculos personalizados, critérios organizadores da vida, que, juntamente com alguma racionalidade econômica, determinam o uso dos fatores produtivos e o consumo.

Nesse sentido é que se acrescentam à definição de campesinato diversos elementos, como os conceitos de integração parcial aos mercados e do caráter incompleto desses mercados (ELLIS apud ABRAMOVAY, 1992). De acordo com essas idéias, a integração social do camponês nas relações mercantis não é uma condição fundamental à sua reprodução social, dadas a sua flexibilidade para entrar e sair dos mercados e a garantia de que a autoprodução assegura parte da subsistência; e, na comercialização dos seus produtos, os camponeses não se apóiam, essencialmente, em transações impessoais, mas, pelo contrário, as condições locais com vínculos personalizados são as bases das suas trocas comerciais, e permitem influência individual de certos agentes econômicos sobre a formação de preços.

No que concerne à função da tecnologia no contexto da pequena produção camponesa, esta é explicada por Araújo (1988) com base no conceito de grau de auto-exploração do grupo doméstico no processo de trabalho, o qual destina-se a garantir a quantidade de produtos necessários ao consumo familiar da unidade produtiva. Para o autor,

[...] é de supor que acréscimos na produtividade física da propriedade ou mesmo na produtividade do trabalho contribuiriam para reduzir a penosidade do trabalho em termos globais para a família e, consequentemente, satisfazer a demanda familiar com menos esforço (p. 27).

O incremento da produtividade é também uma estratégia básica na solução de um tradicional dilema camponês: “contrabalançar as exigências do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no

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120 José Raimundo Cordeiro Neto

atendimento às necessidades dos seus familiares” (WOLF, 1976, p. 31). Nessa concepção, em resposta ao problema colocado, o camponês pode, por meio da incorporação de inovações técnicas, obter um maior nível de produção, que lhe permita o crescimento de sua produção de gêneros para o auto-consumo, bem como dispor de um maior valor em produtos que possam ser comercializados, para gerar uma renda destinada à compra daqueles bens que a unidade doméstica não produz e necessita adquirir nos mercados.

A Empresa brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as inovações na ovinocaprinocultura

A EMBRAPA

Sendo uma instituição vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, fundada em 1973, a Embrapa atua efetivamente por meio de quarenta e uma Unidades Descentralizadas, distribuídas entre diversas regiões brasileiras. O caráter dessa organização pode ser entendido pela observação da missão que adota: “viabilizar soluções para o desenvolvimento sustentável do espaço rural, com foco no agronegócio, por meio da geração, adaptação e transferência de conhecimentos e tecnologias, em benefício dos diversos segmentos da sociedade brasileira” (EMBRAPA, 2007a).

A missão institucional adotada pela Embrapa Caprinos, uma das Unidades Descentralizadas, não se diferencia muito, obviamente, da apresentada, apenas acrescenta o “foco no agronegócio da caprinocultura e da ovinocultura” e enfatiza, em consonância com o IV Plano Diretor da Embrapa, “a inclusão social, a segurança alimentar, as expectativas de mercado e a qualidade do meio ambiente” (EMBRAPA, 2007b).

Transcorridas mais de três décadas desde a sua criação, a Embrapa apresenta-se atualmente como instituição que atua não só nos segmentos ocupados prioritariamente pela grande produção, como é o caso da soja e do gado bovino. Conforme seu discurso oficial, alguns de seus programas específicos se voltam para a organização de tecnologias e

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sistemas de produção que logram “aumentar a eficiência da agricultura familiar e incorporar pequenos produtores no agronegócio, garantindo melhoria na sua renda e bem-estar” (EMBRAPA, 2007a).

As tecnologias disponibilizadas pela Embrapa Caprinos

No quadro 1, a seguir, são listados os principais procedimentos tecnológicos concebidos pela Embrapa Caprinos. Em geral, os sistemas de exploração modernos derivados das técnicas a serem listadas dizem respeito “à sanidade, alimentação, práticas de manejo animal e de instalações, além daquelas de maior refino, destinadas à melhoria do padrão genético dos plantéis, como a inseminação artificial e a transferência de embriões” (NOGUEIRA FILHO; KASPRZYKOWSKI, 2006, p. 20).

*Alimento animal originado de forrageiras, que são constituídas “de vegetação, natural ou plantada, que cobre uma área e é utilizada para alimentação de animais, seja ela formada por espécies de gramíneas, leguminosas ou plantas produtoras de grãos” (ORMOND, 2004, p. 132).

tECNoloGIA DEFINIÇÃom a n i p u l a ç ã o d a Vegetação Nativa

Conjunto de técnicas que buscam promover uma maior disponibilidade de forragem* na pastagem nativa da Região Nordeste.

Sistema de Produção de Caprinos e ovinos para processamento de Carne e Pele

Processo que visa solucionar problemas referentes à alimentação, nutrição, sanidade, reprodução, melhoramento, instalações, raça e manejo dos animais. Também orienta no sentido de priorizar a administração gerencial da atividade.

Sistema de Produção de Cabras de leite

Sistema que envolve o manejo diário das fêmeas, em suas diversas categorias, a fim de racionalizar o consumo de insumos, promover a produção do leite em conformidade com critérios de higiene e estabelecer uma regularidade produtiva ao longo do ano.

terminação de Cordeiros e Cabritos em Pastagem Cultivada

Consiste no acabamento de cordeiros e cabritos para o abate, em pastagem cultivada, com idade precoce, com tamanho de carcaça considerado satisfatório e com elevada qualidade da carne, no tocante a sabor, cheiro, maciez e teor de gordura.

terminação de Cordeiros Confinados

Confinamento de um grupo de cordeiros homogêneos em peso, idade e raça, para, ao final de 70 dias, apresentar-se com peso e conformação programados para o abate.

Continua

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Quadro 1 – Tecnologias para a ovinocaprinoculturaFonte: Construção própria com base em informações disponíveis em Embrapa (2007c).

Formação e Uso do banco de Proteínas

Consta de uma área isolada, cultivada com espécies forrageiras ricas em proteínas, de boa palatabilidade, de crescimento rápido e com alto poder de rebrota.

manejo Reprodutivo de Caprinos e ovinos

Uso de métodos e práticas de controle e de organização do rebanho, nos quais se consideram, por exemplo: separação por sexo, estabelecimento de época de acasalamento, observância de peso e idade ao primeiro cruzamento ou cobertura, intervalo entre partos, relação macho/fêmea, uso do rufião** e desmame.

tecnologia de Sêmen de Caprinos e ovinos

Série de etapas que envolve a colheita, o processamento, a avaliação e a armazenagem do sêmen.

Indução e Sincronização do Estro e Inseminação Artificial

Consiste em se promover, em meio às fêmeas adultas de um rebanho caprino ou ovino, o desencadeamento simultâneo do estro, ou cio.

b i o t e c n o l o g i a d e Embriões

Colheita, criopreservação e transferência de embriões com vistas ao melhoramento genético e dimensionamento rápido dos rebanhos de elite.

Soluções tecnológicas para o Controle das Principais Doenças de Caprinos e ovinos

Série de práticas e processos tecnológicos destinados à prevenção, à identificação e ao controle das doenças mais importantes que acometem os caprinos e ovinos.

Processamento Agro-industrial de Carne de Caprinos e ovinos

São técnicas de transformação/industrialização da carne, na perspectiva de agregar-lhe valor de mercado, que dão mais opções de consumo e reduzem os desperdícios.

Cortes Padronizados de Carcaças de Caprinos e ovinos

Processo de separação em pedaços (peças) de carcaças de caprinos e ovinos, em que se guarda uma estreita proporção entre o peso e a relação carne/osso de cada peça.

Produção higiênica do leite de Cabra

Consiste nos cuidados a serem dispensados durante as seguintes etapas de obtenção do leite: ordenha, acondicionamento, transporte e entrega para o processamento.

Derivados do leite de Cabra

transformação do leite de cabra em queijos, doces, patês, entre outros produtos.

Cuidados e tratamento da Pele de Caprinos e ovinos

Trata de como se deve proceder desde a retirada, limpeza, salga e armazenagem até a comercialização da pele, para evitar que ela venha a adquirir defeitos irreversíveis e a consequente classificação de refugo.

** “Macho estéril utilizado para descobrir as fêmeas que estão no cio para serem cobertas pelo reprodutor” (ORMOND, 2004, p. 245).

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O quadro 1 demonstra que há um desenvolvimento significativo de “novas combinações” para a pecuária de caprinos e de ovinos. Diante disso, pode-se falar em mudança tecnológica nessa atividade naqueles casos em que práticas como essas são incorporadas pelos produtores.

Considere-se que, de fato, o que a mudança tecnológica representa é o surgimento e a utilização de novos fatores produtivos em um dado processo de produção. Associando a essa idéia as técnicas e procedimentos descritos, entende-se que expressões como processos de manejo da caatinga, administração da propriedade, pastagens cultivadas, confinamento, formação e uso de banco de proteína, práticas de controle e organização do rebanho, organização do manejo reprodutivo, produção de animais superiores, práticas e técnicas que evitam, controlam e combatem doenças, processamento e transformação de carnes, peles e leite designam fatores de produção elaborados, sejam eles materiais ou relativos a habilitações humanas6.

Esse contexto marca a entrada de novos processos produtivos na ovinocaprinocultura. Dessa forma, a manipulação da vegetação nativa envolverá novas práticas de utilização de plantas diversas e novos métodos de interferência nos seus ciclos de vida. Semelhantemente, o manejo alimentar, sanitário e reprodutivo dos animais incorpora elementos externos aos procedimentos tradicionais, como a atenção à composição nutricional de rações, a adoção de vermífugos e medicamentos em geral e o controle sobre as funções reprodutivas dos caprinos e ovinos. Também os animais deixam de ser tratados como um conjunto homogêneo e a atividade passa a exigir ações diferenciadas para cada tipo, a depender da espécie, da idade, do sexo, do peso, da função no rebanho, do estado de saúde, da raça, do produto a fornecer, entre outros critérios7. Acrescente-se que passa a se praticar o estabelecimento de metas a serem atingidas em determinado período em função das exigências de mercado quanto ao peso dos animais e qualidade das carnes. Ademais, todas essas novidades tendem a exigir uma nova forma de acompanhamento administrativo da atividade, relativamente à maior especificidade da função gerencial.6 Essas práticas guardam grande distância do padrão tradicional, extensivo e rudimentar das criações caprina e ovina do Nordeste (SOUZA NETO, 1986).7 Assim, o acompanhamento alimentar e sanitário torna-se segmentado, por exemplo, entre caprinos e ovinos, entre animais filhotes, jovens e adultos, entre machos e fêmeas, entre fêmeas solteiras, na prenhez e em lactação, entre animais destinados ao corte, à produção de leite e à reprodução.

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É oportuno salientar que a maior parte das inovações não se limita ao aperfeiçoamento de procedimentos tradicionalmente praticados na ovinocaprinocultura. Isto é, não se trata meramente de incrementos ao padrão tecnológico. As técnicas em questão introduzem mudanças que vão além de pequenas adições ao modelo tradicional de criação de caprinos e ovinos, sobretudo aquelas tecnologias de maior interferência nos organismos8.

A noção schumpeteriana de mudança descontínua e de perturbação do equilíbrio aplica-se a esse contexto de modificação da ovinocaprinocultura, porquanto há invenções que adentram nos processos de produção. É oportuno destacar que isso envolve a introdução no mercado de novos bens derivados da atividade, sejam raças, doses de sêmem, embriões ou ainda apresuntados, linguiças, salames e hambúrgueres à base de carnes ovinas e caprinas. Na terminologia de Schumpeter, também se abrem mercados pela conquista de segmentos do consumo até então latentes e descoberta de fontes de matérias-primas, como compostos para ração, das novas espécies vegetais9, e substâncias químicas para o tratamento de doenças.

A difusão das novidades tem, inclusive, a capacidade para reorganização do setor produtivo da ovinocultura nordestina, de modo que o padrão tradicional da produção camponesa possa ser convertido no que Schumpeter chamou de nova organização10.

Aspectos importantes da relação entre as novas tecnologias na ovinocaprinocultura nordestina e o contexto camponês dessa atividade

Pressupondo uma situação na qual os componentes técnicos inovadores listados no quadro 1 passem a participar do processo produtivo de unidades camponesas, podem-se tecer algumas considerações concernentes à relação entre a mudança tecnológica em questão e a dinâmica camponesa.8 A biotecnologia aparenta ser o segmento da mudança tecnológica com maior capacidade transfor-madora sobre a ovinocaprinocultura, na medida em que inicia a intervenção humana no processo produtivo antes mesmo do nascimento de caprinos e ovinos, por meio das práticas de colheita, processamento, avaliação e armazenagem de sêmen desses animais e da inseminação artificial.9 Uma dessas novas espécies é a leucena, leguminosa rica em proteínas. 10 Nesse sentido, a pesquisa realizada por Cordeiro Neto (2007) parece indicar o início de um pro-cesso desse tipo na microrregião do Cariri cearense, quando observa a concentração das inovações tecnológicas em propriedades ovinocaprinocultoras de organização empresarial, evidenciando a marginalização da produção camponesa na atividade tecnologicamente modificada.

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Em princípio, pode-se afirmar que a nova tecnologia na ovinocaprinocultura pode surtir efeitos diretos sobre o manejo dos recursos naturais nos ecótipos camponeses11. Quando incorporados por unidades de produção camponesas, os processos inovadores representam em alguma medida uma aproximação ou aprofundamento de sistemas caracterizados por ecótipos neotécnicos, nos quais a atividade produtiva do campesinato passa a confiar crescentemente na capacidade de métodos não tradicionais.

Isso significa que ao adotar esses procedimentos – o que não implica, necessariamente, a adoção da totalidade deles – o pequeno produtor começa a lidar com meios distintos dos tradicionalmente utilizados na sua experiência. Esse caráter de novidade é o responsável pela importância que as formas de aprendizado assumem nesse ambiente. Pelo fato de a origem dos métodos ocorrer externamente à prática do agente em questão, ele necessita do acesso às informações sobre o seu uso. Mais que isso, ele carece de um determinado cabedal de conhecimentos que o permita assimilar tais informações. O grau de escolaridade do pecuarista pode ser, então, determinante da sua decisão em fazer uso das tecnologias disponíveis e da produtividade alcançada na incorporação dos fatores gerados.

É igualmente importante observar que o adepto dessas tecnologias passa a se sujeitar, em diferentes graus, a incertezas antes inexistentes, já que não conhece tão bem a eficiência técnica dos artigos usados quanto daqueles repetidamente empregados anteriormente. Semelhantemente, diante da inserção em novos mercados, o pequeno produtor terá de lidar com um ambiente mercantil até certo ponto estranho, por fazer que seus negócios se tornem, num primeiro momento, incertos.

Essa mudança tecnológica pode elevar a inserção do inovador ao mercado, por isso se torna essencial considerar esse aspecto no caso do camponês. Como discutido, a integração parcial a mercados incompletos é uma característica camponesa. Porém, essa parcialidade só é permitida porque, entre outros fatores, o campesinato não faz uso de meios de produção

11 Não se trata, de forma alguma, de tecnologia capaz de tornar a atividade independente dos fatores de ordem natural, já que diz respeito mais a formas diferentes de acompanhamento humano dos organismos animais e vegetais, que a métodos de substituição desses organismos por elementos artificiais – permuta esta que, logicamente, não possui muitas possibilidades.

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adquiridos exclusivamente no mercado, mas trabalha com meios obtidos também por maneiras diversas, como a herança e o compartilhamento com vizinhos, ou ainda a concessão. Se os instrumentos tiverem de ser comprados exigindo-se desembolsos financeiros, o camponês precisará assegurar o retorno do investimento, mediante a venda de produtos proporcionados pelo emprego desses instrumentos.

Se o impacto levar o ovinocaprinocultor a comercializar nos padrões convencionais dos mercados capitalistas e a perder assim a estabilidade das negociações rotineiras, garantida pelos vínculos personalizados que mantinha no âmbito local, ficará sujeito a flutuações típicas dos novos circuitos comerciais, em que seus produtos podem ser ora favorecidos, ora desvalorizados, de acordo com a conjuntura de cada instante. Será essencial, nesse novo ambiente, estar atento às informações de demanda, de concorrência, de mercados de insumos, entre outras. A constante busca de elementos que possam diferenciar produtos será uma necessidade se existirem outros produtores capazes de fazê-lo e então ameaçar a presença do camponês nos canais de comercialização12.

A permanência em canais mercantis que assegurem uma taxa adequada de rentabilidade do novo aparato tecnológico empregado pelo produtor será tão mais crucial quanto maiores tiverem sido os investimentos realizados nas inovações empreendidas, o que incorpora o seu custo na busca de habilidades que teve de adquirir, bem como as desvantagens e as dificuldades em que incorreria na busca por outras capacitações.

Observe-se também que as inovações tecnológicas podem levar a pecuária de caprinos e ovinos a disputar meios de produção antes destinados a outras atividades camponesas das propriedades familiares, marcadas como são pela diversidade produtiva. Essa perspectiva exige que se pense na possibilidade de transformação do pequeno produtor em um ovinocaprinocultor especializado, que deverá retirar da atividade toda a renda da qual necessitará. Especializando-se, a tendência à integração total aos mercados se aprofunda, já que o auto-abastecimento, antes possibilitado pela presença de culturas que proviam parte do consumo interno da unidade familiar, deixa de existir. O sucesso comercial passa 12 O aprender a aprender (learning to learn) poderá ser a estratégia mais eficiente para garantir o bom desempenho comercial, uma vez que os dados poderão mudar constantemente.

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a ser a única forma de constituir a renda, eliminando a flexibilidade nas opções de consumir ou comercializar, típicas da alternatividade camponesa. Não restaria espaço para a parcialidade mercantil.

Além disso, note-se que algumas técnicas apresentadas no quadro 1 apontam para o caminho da agroindustrialização13. Certamente, trata-se de procedimentos que apresentam elevada exigência de ferramentas e equipamentos externos à unidade de produção e cuja valorização, mediante obtenção de um nível adequado de rentabilidade, é ainda mais dependente da comercialização dos produtos.

A capacidade de aquisição dos meios de produção externos será em grande parte determinada pelo nível de acumulação alcançado anteriormente pela pequena produção e pelo grau de dificuldade encontrado na obtenção de crédito. O segundo fator tenderá a sobrepujar o primeiro na maioria dos casos, em razão dos baixos volumes monetários mobilizados pelas famílias camponesas em períodos anteriores. Desse modo, a vinculação de pequenos produtores ao sistema de crédito pode ser uma condição para a mudança tecnológica na ovinocaprinocultura.

Por todos esses aspectos, o gerenciamento da produção tecnologicamente modificada passará a divergir da forma camponesa tradicionalmente executada, pois as bases da administração produtiva e do consumo mudam decisivamente. Itens que antes não eram essenciais para a reprodução das condições de vida das unidades familiares podem tornar-se elementos centrais para esse fim14.

Considerações finais

Pelas considerações feitas até aqui, aparece mais a possibilidade de que as inovações tratadas não sejam adotadas por produtores camponeses, em virtude das exigências que decorrem do conjunto de fatores produtivos a serem utilizados. Tais exigências podem levar a 13 Como a transformação e processamento de carnes caprinas e ovinas, a fabricação de derivados de leite e o beneficiamento da pele dos animais. 14 As situações de mercado, a atenção ao surgimento de raças melhoradas, a busca de aperfeiço-amento dos produtos comercializados são exemplos de processos que possivelmente passam a constituir a gerência da produção.

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pecuária com a nova base tecnológica a mostrar-se inviável para a unidade camponesa, dada a inabilidade inicial do pequeno produtor para lidar com ela ou a falta de condições da unidade para a aquisição e execução dos novos métodos de criação.

Da mesma forma, não será difícil que o novo padrão tecnológico, quando adotado pelo campesinato, apresente grande probabilidade de produzir efeitos que impeçam a reprodução das unidades camponesas com a sua lógica de funcionamento interno. Isso se deve à provável tendência à integração total aos mercados, que elimina o caráter local da comercialização e suprime boa parte dos laços de interconhecimento comunitários. Deve-se também à tendência à especialização, que destrói a marca da diversidade produtiva e reforça as relações comerciais como centrais na determinação da sobrevivência familiar.

É importante, contudo, não descartar a possibilidade de que a mudança tecnológica seja realizada em unidades camponesas. Estas podem estar associadas a organizações que proporcionem a superação dos principais entraves à aquisição e ao uso dos novos fatores. Ações relacionadas à capacitação tecnológica, à busca de informações sobre conjuntura de mercados, ao auxílio creditício e à constante inovação dos produtos podem ser empreendidas por tais entidades ou por instituições de apoio e solucionar problemas que raramente seriam contornados individualmente. Também é possível que camponeses com uma acumulação prévia de recursos possam favoravelmente adotar os processos produtivos discutidos.

Uma vez adotadas as novas tecnologias, pode haver situações nas quais as características camponesas sejam mantidas entre os ovinocaprinocultores. Esse seria o caso em que fossem feitos arranjos que possibilitassem manter a importância dos mercados locais na comercialização dos produtos, o que não exclui a participação em mercados mais vastos. Semelhantemente, a diversidade produtiva pode ser permitida de forma a combinar a ovinocaprinocultura de nova base tecnológica com as culturas anteriormente desenvolvidas e, consequentemente, a assegurar que parte das necessidades da família

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camponesa seja atendida mediante a sua própria produção. Assim, a inserção nos mercados se manteria parcial e o espaço para os laços comunitários seria preservado.

Essa incorporação da mudança tecnológica pelas propriedades típicas do campesinato apresentaria a vantagem de aumentar a produtividade dos fatores alocados na ovinocaprinocultura e fortalecer o padrão camponês da atividade. Assim, as unidades camponesas teriam a redução das taxas de mortalidade dos animais, o aumento das taxas de natalidade, um melhor controle das doenças que acometem os rebanhos, a utilização de raças adequadas ao produto final, a redução da idade de desmame e de abate, entre outros benefícios que garantiriam melhores condições de acesso aos mercados e, consequentemente, contribuiriam na elevação dos rendimentos familiares.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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metodologia do Ensino Superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis

Márcia Mineiro de Oliveira 1

Resumo: O artigo apresenta a ótica dos docentes de Contabilidade sobre a disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES) presente em cursos de especialização. Busca-se caracterizar tal disciplina, levantando características dos profissionais de Contabilidade que lecionam. Discute-se ainda sobre didática, planejamento e avaliação educacional, relação ensino-aprendizagem e dificuldades do ensino superior. Metodologicamente, decorre de uma pesquisa teórico-empírica, delineada como exploratória, apoiada em survey e subsidiada pela pesquisa bibliográfica e eletrônica. Interdisciplinar, este trabalho alia conhecimentos da Ciência Contábil e da Pedagogia.

Palavras-chave: Pedagogia. Ciências Contábeis. Metodologia do Ensino Superior.

College teaching methodology: subsidies to teach Accounting Science

Abstract: The article presents the Accounting Professors’ point of view about the discipline College Teaching Methodology (MTC) offered in specialization courses. It tries to characterize the discipline MTC, by surveying the characteristics of the Accounting professionals who teach. It’s also mentioned 1 Mestre em Contabilidade (Gestão Pública) pela Fundação Visconde de Cairu. Professora da Uni-versidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 131-149 2009

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didactic, planning and educational evaluation, the relation teaching-learning and college teaching difficulties. Methodologically, it comes from a theoretic-empirical research, faced as exploratory, supported by survey, bibliographic and electronic research. Interdisciplinary, this paper puts together Accounting Science and Pedagogy knowledge.

Keywords: Pedagogy. Accounting. College Teaching Methodology.

Introdução

Os cursos superiores de Ciências Contábeis objetivam a formação de profissionais liberais, os chamados bacharéis. Não se percebe durante o curso superior a preparação para lecionar. Muitos contadores desejam dedicar-se ao ensino e ficam à procura de complementar sua formação recorrendo à disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES) cursada na maior parte das vezes em cursos de especialização.

No município de Vitória da Conquista há dois cursos superiores de Ciências Contábeis em entidades diferentes e o quadro docente é formado em sua maioria por especialistas e mestres.

A pesquisa partiu de observações assistemáticas prévias, estas suscitaram duas considerações preliminares: (1) Os melhores profissionais liberais de Contabilidade nem sempre são os melhores professores, em termos de didática na visão dos discentes; (2) Mesmo os profissionais liberais de Contabilidade que cursam a disciplina Metodologia do Ensino Superior em algum curso de especialização, não se consideram preparados para lecionar por não superarem suas limitações didáticas.

Esclarece-se que este artigo é fruto de monografia de título análogo que possuiu como elementos basilares:

• Questão Problema: na visão dos docentes de Contabilidade a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em cursos de especialização (lato sensu e/ou stricto sensu), prepara verdadeiramente o profissional para lecionar em cursos superiores?

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• Hipótese de Pesquisa: na visão dos docentes de Contabilidade a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em cursos de especialização (lato sensu e/ou stricto sensu) não prepara verdadeiramente o profissional para lecionar em cursos superiores.• Objetivo Geral: apresentar a ótica dos docentes de Contabilidade sobre a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em cursos de especialização (lato sensu e/ou stricto sensu).

Objetivos Específicos:– Caracterizar a disciplina Metodologia do Ensino Superior;– Levantar as características dos profissionais de Contabilidade que lecionam em Vitória da Conquista;– Diagnosticar as possíveis dificuldades dos profissionais de Contabilidade ao lecionar.Entende-se que ao procurar, mesmo que indiretamente, a melhoria

da prática docente no curso de Ciências Contábeis, este trabalho garantirá sua importância, visto que se propôs a investigar a disciplina Metodologia do Ensino Superior sob a ótica dos professores de Contabilidade que a cursaram em nível de especialização. Tal melhoria embasaria um salto na qualidade do ensino Contábil e na formação dos futuros Contadores, profissionais essenciais à sociedade atual.

A importância teórico-prática do trabalho se reflete na busca do alicerce pedagógico sobre o planejamento, a avaliação, o ensino-aprendizagem e o papel do professor de nível superior aplicada à realidade encontrada nos cursos de Vitória da Conquista.

Na área contábil, poucos são os livros e periódicos que lidam diretamente com a questão da metodologia do ensino. Esta comunicação de pesquisa, então, contribui para ampliar o leque de conhecimentos sobre a área, trazendo maior informação à classe contábil que pouco conhece sobre pedagogia, bem como proporciona aos pedagogos as especificidades dos cursos de bacharelado, em especial o curso de Ciência Contábil em nível docente superior.

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Subsídios teóricos

Uma ampla e rebuscada revisão teórica não contempla a objetividade desta comunicação científica, todavia sabe-se a necessidade de explicitar, ainda que de forma sucinta, quais os princípios que norteiam a pesquisa. Assim, parte-se para breve exposição teórica sobre alguns pontos relevantes mostrados no trabalho monográfico do qual este artigo é oriundo.

A disciplina metodologia do Ensino Superior (mES)

Concorda-se com Nérici (1967, p. 13) quando este diz que a educação superior tem por finalidade formar os responsáveis maiores pelo planejamento, organização e execução de todas as atividades sociais. Ao passo que se aduz que o responsável pelo planejamento da relação ensino-aprendizagem, seja qual for a área do conhecimento, é o professor, assim entende-se que é imprescindível que este conheça as especificidades do “ensinar”.

Tais aspectos específicos são tratados pela disciplina “Metodologia do Ensino Superior”, presente em cursos de especialização de nível lato e/ou stricto sensu. Durante o curso de bacharelado em Ciências Contábeis no Brasil é raro encontrar uma matéria que aborde a questão do ensino da Contabilidade. Isto acontece pela feição do curso: Trata-se de um bacharelado e não uma licenciatura. Decorre então que os egressos são formados visando o preparo de sua habilitação como profissional liberal e não como professor.

Todavia, de acordo com a vigente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), para lecionar no nível superior são exigidos do profissional cursos de pós-graduação – preferencialmente stricto sensu – na área do conhecimento em que se vai atuar.

“Metodologia do Ensino Superior” é a designação mais comum que recebe a disciplina, a qual aborda a prática da docência em nível superior, sob aspectos didáticos, metodológicos, planejamento e avaliação da aprendizagem, atrelando teoria à prática.

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É patente que o ensino deve partir de uma série de objetivos para então destacar conteúdos. Não é simples selecionar e organizar os conteúdos de uma disciplina, especialmente por dois motivos: (1) Há sempre muitas questões a serem estudadas em pouco tempo; (2) A escolha implica em uma postura crítica e política sobre a forma de ser e fazer educação, necessitando, pois, de critérios claros para a escolha dos conteúdos.

São frequentemente selecionados pelos professores de MES os seguintes conteúdos:

Abordagens pedagógicas do ensino;Relação ensino x aprendizagem;Planejamento educacional; e Avaliação.

A relação ensino-aprendizagem

O ensino é abordado por vários autores na tentativa de conceituação e entendimento do termo. É perceptível que o ensino na qualidade de processo social, decorrente da interação de várias pessoas e fatores, não pode ser controlado como uma experiência de laboratório.

Para Gagné (apud MOREIRA, 1985, p. 14) o ensino é “uma atividade de planejamento e execução de eventos externos, ou condições externas à aprendizagem com finalidade de influenciar os processos internos para atingir [...] capacidades a serem aprendidas”.

Na visão piagetiana, o ensinar provoca o desequilíbrio na mente do aprendiz, fazendo com que ele procure o reequilíbrio e ao reestruturar-se cognitivamente acaba por aprender.

A aprendizagem, por sua vez, é um processo pessoal e gradativo, não hereditário, que depende do envolvimento de cada um, de seu esforço e de sua capacidade. Ela é um processo acumulativo, em que cada nova obtenção se junta ao repertório já conseguido.

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Nas palavras de Gil (1997, p. 58), a aprendizagem ocorre “quando uma pessoa manifesta aumento da capacidade para determinados desempenhos em decorrência de experiências que passou”.

O mesmo autor (p. 58) aduz ainda que no que tange à educação, o conceito de aprendizagem se torna mais específico referindo-se à “aquisição de conhecimentos ou ao desenvolvimento de habilidades e atitudes em decorrência de experiências educativas, tais como aulas, leituras, pesquisas, etc.”.

Na prática, o aprender e o ensinar são verbos que comumente aparecem juntos, mas não quer dizer que eles sejam sinônimos ou mesmo que devam ser conjugados juntos. A relação existente entre eles pressupõe ‘complementaridade’, mas não implica dizer que se um acontece o outro fatalmente também ocorre.

É comum que aconteça aprendizagem sem o ensino e também ensino sem aprendizagem, em outras palavras: não é porque você ensinou que necessariamente seu aluno aprendeu. O ensinar modernamente é entendido como “orientar a atividade do aluno num sentido valioso para a vida” (GONÇALVES, 1985, p. 67) e o “aprendizado é mais poderosamente reforçado quando um professor estimula os estudantes a se preocupar com sua matéria e a se dedicar muito para dominá-la” (LOWMAN, 2004, p. 22, grifo nosso). Tais estímulos estão ligados com a motivação para o aprendizado e para o ensino.

Entende-se então, que ensinar e aprender são ações complementárias e o olhar do professor a cada uma delas deve ser diferenciado, abrangente e não dicotomizado.

Planejamento

As metas na relação ensino-aprendizagem demandam mais ou menos tempo para ser atingidas. Seja qual for a duração da meta, exige-se para sua consecução uma série de ações. Detalhá-las articuladamente é o papel dos planejamentos educacionais, para que a prática educativa seja reflexiva, intencional e libertadora.

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Vasquez (apud VASCONCELLOS, 2000, p. 79) confirma esta idéia ao dizer que “vários atos desarticulados ou justapostos casualmente não permitem que se fale de atividade (de planejamento); é preciso que os atos singulares se articulem ou estruturem, como elementos de um todo, ou de um processo total que culmina na modificação de uma realidade”.

Numa perspectiva micro, sem maiores aprofundamentos sobre os tipos de planejamento de ensino, cabe destacar a diferença que há entre planejamento e plano, visto que aquele é o processo contínuo, reflexivo de escolher caminhos, agir em prol deles e acompanhar a ação; já este é algo pontual, na realidade é um produto da reflexão e do processo maior, que se caracteriza como um registro passageiro. “O planejamento, enquanto processo, é permanente. O plano, enquanto produto é provisório” (VASCONCELLOS, 2000, p. 80).

Na visão Contábil de orçamentos, o planejar pode ser entendido como: estabelecer missão, objetivo, estudar, selecionar os caminhos alternativos, implantar estrutura e implementar os planos e idéias escolhidas. Esta ótica não se distancia da visão pedagógica, visto que o planejar pedagógico também estabelece objetivos, seleciona conteúdos e caminhos (métodos) alternativos para atingir os objetivos da melhor maneira possível (eficiência), implementa os planos na aula.

O orçamento empresarial é um plano que em muito se assemelha aos planos pedagógicos. Em suma, aquele dispõe da melhor forma, ou seja, dos recursos disponíveis para atingir os objetivos traçados, e isso é o que se pretende com os mais variados planos pedagógicos. De forma sintética, alguns dos planos principais que norteiam a prática dos docentes no ensino superior são:

• Plano de Escola/ Projeto Político-Pedagógico – É o plano pedagógico e administrativo da instituição, no qual se explicita a concepção pedagógica do corpo docente, as bases teórico-metodológicas da organização didática, a contextualização social, econômica, política e cultural da instituição, a caracterização dos sujeitos envolvidos, os objetivos educacionais gerais, a estrutura curricular, diretrizes metodológicas

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gerais, o sistema de avaliação do plano, a estrutura organizacional e administrativa;

• Plano de disciplina – Este plano delineia o ensino de forma macro, expondo em linhas gerais os objetivos de determinada disciplina ao longo de um tempo pré-determinado, em geral, no ensino superior, um semestre;

• Plano de unidade – Um plano que traz a identificação da unidade e seu detalhamento em termos de carga horária, objetivos (gerais e específicos), conteúdo, procedimentos e estratégias metodológicas, recursos necessários, a forma de avaliação e as referências que embasam e garantem um aprofundamento de conhecimentos;

• Plano de aula – Tal plano se restringe a “prever o desenvolvimento a ser dado à matéria e às atividades docentes e discentes que lhe correspondem, dentro do âmbito particularizado de cada aula” (MATTOS, 1971, p. 163).

Com a linguagem contábil os planos e sua integração poderiam ser assim comparados:

Figura 1 – Comparação entre planejamentos.

Fonte: Elaboração própria.

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Avaliação

O conhecimento Contábil, especificamente os estudos de Controladoria, contribui com o conceito de controle, este costumeiramente vem atrelado ao conceito de planejamento e se relacionam pelo caráter de interdependência concomitante que mantém.

Para Nakagawa (1993) o controle consiste em 4 pontos básicos:

• Conhecer a realidade;• Compará-la com o que “deveria ser”;• Tomar conhecimento rápido das divergências e suas origens; e • Tomar atitudes para sua correção

A pedagogia, por sua vez, refletida nos estudos de Melchior (1999), também contempla esses pontos básicos, sob a denominação de avaliação, uma vez que parte-se de conhecer o aluno, a matéria, a instituição (todo o contexto educacional) para planejar e de forma paralela, a avaliação para ser completa também leva em consideração esses aspectos.

Como o ponto de partida educacional é o objetivo (assim como o empresarial), é preciso comparar se este foi atingido ou não, e isso norteia o restante das ações do professor (o “tomador de decisões” no processo educacional); em se atingindo o objetivo deve-se manter o curso dos trabalhos, e em caso contrário, devem ser tomadas atitudes corretivas de ajustar o processo para o atendimento das metas propostas, retomando o que foi ensinado (mas não aprendido) de forma diferenciada, visto que os métodos antes aplicados não foram eficientes, tão pouco eficazes.

Há ainda a questão temporal, é preciso ajustar o processo de ensino antes que seja tarde, assim como o controle empresarial, precisa ser concomitante, evitando prejuízo empresarial irreversível.

Professores preocupados com uma prática avaliativa que garanta a aprendizagem buscam respostas para cinco questões que determinam a concepção sobre avaliação. São elas: O que é avaliar? Por que avaliar? A quem avaliar? O que avaliar? Quando avaliar?

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Na busca por respostas que cada vez mais promovam uma prática avaliativa integral, intencional e inclusiva, propõe-se esboçar sua caracterização.

Há uma concentração de esforços e preocupações na área de avaliação como se isso fosse o elemento essencial do ensino. O paradigma da nota está instalado e enraizado com a prova de efetivo aprendizado, não há a difusão da idéia de que não é preciso provar nada para ninguém, mas sim que é preciso mediar um acompanhamento da aprendizagem, controlando-a e monitorando-a na busca pela consecução de objetivos.

Didática

A Didática é um dos ramos da Pedagogia, e se configura como a disciplina que estuda os objetivos, os conteúdos, os meios e as condições do processo de ensino visando a Educação. Ela lida diretamente com a operacionalização da ação educativa na sala de aula e em seus outros ambientes e atividades, portanto, não está dissociada das outras matérias que lhe servem de base.

Cabe a ressalva que a Didática não estabelece uma “melhor técnica de ensino”, pois a cada caso há uma técnica mais exequível e aconselhável, portanto é necessária a compreensão da situação real sobre a qual o professor vai atuar.

Concluindo sobre Didática entende-se que esta não se limita a estabelecer as técnicas específicas de orientação e direção da aprendizagem (planejamento, motivação, orientação, fixação, verificação, etc.), mas também os critérios e as normas práticas que regulam a ação docente de forma racional; em suma, é muito mais abrangente que a metodologia.

Dificuldades do Ensino Superior

O valor do professor é alardeado e pouco reconhecido na função que exerce. Dele é exigida a qualidade em seu trabalho e, para tanto, o docente deve ser consciente de seu trabalho e de suas atividades.

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No entender de Gonçalves (1985, p. 27), a formação profissional do professor perpassa eminentemente pela pedagogia, pois é através dela que o docente pode “orientar a aprendizagem do aluno, desenvolver sua personalidade integralmente [...] ao meio social.” Aduz ainda que a qualidade do ensino é responsável direta pelo grau de civilização de um povo e que o professor é o sujeito “vitalizador do ensino, de quem depende a eficiência do mesmo.”

As dificuldades na educação são muitas e costumam ser exógenas (aquelas externas que dependem do sistema) e endógenas (aquelas mais próximas da realidade do professor cuja intervenção pode alterar e superar). No nível superior de ensino não é diferente, por exemplo, no tocante à experiência no ensino superior de Ciências Contábeis apontam-se, entre outras dificuldades:

• o aspecto temporal, visto que os cursos de Contábeis são noturnos na sua maioria e os alunos trabalham em tempo integral, ou seja, a dedicação, o compromisso com os estudos e a aprendizagem por parte destes costuma ser comprometida. É desnecessário comentar que o aluno trabalhador tem menos disposição para estudar, em muitos casos ele tem compromisso e responsabilidade, mas é vencido pelo cansaço que arrebata a tentativa exausta em aprender, focalizando sua atenção e energias para a evolução da aula. Tal realidade é imposta também ao professor que tendo trabalho extra-docente não pode preparar sua aula devidamente por falta de tempo, e à noite já não tem mais energias para ministrar uma aula de qualidade; o mesmo sucede ao professor em tempo integral que é obrigado a possuir muitas turmas para garantir sua dignidade econômica;

• muitos docentes desconhecem a intencionalidade da avaliação e sua relação prioritária com o aprendizado e a mudança da realidade. Por terem vivenciado durante toda a vida a práxis avaliativa repressiva, tradicional, preocupada com a nota, a sua tendência é repeti-la com seus discentes. No máximo, alguns conhecimentos pedagógicos poucos sólidos adotam práticas pseudo-superadoras, alterando nomenclaturas,

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instrumentos avaliativos, que não mudam a postura e nem a concepção educativa;

• número de alunos por sala: com a mercantilização da educação, sobretudo nas faculdades particulares, o número de alunos por sala tende a aumentar para garantir a lucratividade dos investidores, sem a preocupação com a pessoalidade e a interação necessária para a aprendizagem, que acaba por ser comprometida por conversas, indisciplinas e uma pseudo-aprendizagem, é a lógica do “você finge que ensina e eu finjo que aprendo”, o que não é difícil de acontecer despercebidamente pelo professor em meio a turmas numerosas;

• desmotivação: em meio a facilidades eletrônicas e a uma carga excessiva de trabalho, poucas atitudes e atividades despertam o interesse dos discentes;

• resistência a mudanças: muitos discentes e docentes acostumados e acomodados com práticas de ensino-aprendizagem passivas e alienantes não aceitam mudanças renovadoras e impõem muitos empecilhos para a mudança das atitudes em sala de aula;

• Desconhecimento didático-pedagógico: muitos professores pensam que somente conhecer bem a matéria técnica lhe garante a aprendizagem dos alunos, creem que ensinam muito bem, não se colocam no lugar do discente e rejeitam cursos na área pedagógica, por acreditarem que estes não influem numa boa relação de ensino-aprendizagem, que tudo é culpa do aluno que não estuda. É muito fácil culpar outros por algo que possui parcelas igualitárias de responsabilidade. “É necessário ser ousado para ser educador” (MELCHIOR, 1999, p. 140);

• Horários mal construídos;• Falta de interdisciplinaridade;• Falta de recursos;• Projeto político-pedagógico que não reflete a postura do grupo; além de • Falta de incentivo à pesquisa.

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metodologia

Tratou-se de uma pesquisa teórico-empírica, pois a mesma oscilou entre os escritos e conhecimentos já produzidos sobre a temática e estabeleceu uma vinculação com a realidade e o diálogo entre a Ciência Contábil e a Pedagogia.

A natureza do trabalho é qualitativa, já que as áreas de conhecimento macro e as necessidades da pesquisa exigem um tratamento social, entretanto, para a análise dos dados, não se deixou de lado a análise quantitativa apoiada em estatística simples, descritiva e inferencial.

Pela busca de conhecer mais sobre as prévias observações, o trabalho ora apresentado delineia-se como exploratório, apoiado em levantamento que se caracteriza pela “interrogação direta das pessoas cujo comportamento se deseja conhecer” (GIL, 2002, p. 50). E é subsidiado ainda pela pesquisa bibliográfica e eletrônica, ou seja, pelo conhecimento já produzido por outros pesquisadores e estudiosos no sentido de estabelecer um vínculo entre a teoria e a prática, esteja este conhecimento em livros e periódicos científicos ou à disposição na internet.

Os instrumentos de coleta usados para conferir execução à pesquisa foram o questionário e observação assistemática.

Este trabalho foi desenvolvido nos períodos compreendidos entre o mês de setembro de 2005 a janeiro de 2006. Com as informações gerais adquiridas, foram formuladas análises e conclusões. Os dados foram coletados por meio de um questionário, a população constituiu-se dos docentes do Curso de Ciências Contábeis que são bacharéis em Contabilidade e lecionam na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e/ou na Instituição de Ensino Superior particular da cidade que mantém o curso. Os dados foram apresentados através de tratamento estatístico simples com o auxílio de tabelas, gráficos e quadros. Os mesmos foram também textualmente apresentados, analisados e comentados.

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Foram entregues 19 questionários, dos quais, foram respondidos e retornados 16, tendo esta pesquisa uma representatividade de 84% dos questionários.

Análise de dados

De início algumas das perguntas do questionário tinham como intenção conhecer o perfil dos professores de Ciências Contábeis de Vitória da Conquista. Depreendeu-se que 100% são contadores e lecionam no Ensino Superior, destes, 94% possuem especialização lato sensu.

Sete possuem especialização em controladoria, destes, 2 com mais de uma especialização (Finanças, Perícia Contábil e Língua Inglesa); 4 possuem especialização em auditoria, havendo ainda um professor(a) com especialização em Contabilidade, outro em Gestão e Direito Tributário e outro em Orçamento Público. Dois professores, não fizeram especialização lato sensu, partindo diretamente para o mestrado, todavia eles também fizeram a disciplina MES. Somente um professor afirmou não ter cursado a disciplina MES por não ter concluído curso de especialização stricto sensu ainda.

Percebe-se uma busca por qualificação na área contábil e pouco diálogo com outras áreas do conhecimento, visto que poucos foram os profissionais que buscaram especializações fora do âmbito contábil. Tais profissionais se dizem pessoas “não resistentes a mudanças” e inovações, todavia é muito difícil intercambiar disciplinas no curso de Contábeis, conforme observação assistemática.

Dos pesquisados, 94% relataram conhecerem suas próprias limitações, estas foram descritas como problema de tempo, problemas didático-pedagógicos e problemas visuais e de uso dos recursos audiovisuais.

Para 56% dos pesquisados, a docência não é sua atividade exclusiva, isso reflete, no mínimo duas coisas: (1) a docência no âmbito contábil é uma atividade secundária, e (2) para sobreviver como docente

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é preciso extrapolar a carga horária de trabalho, pois a profissão não é valorizada nem social e nem economicamente.

Dos questionados, 2 não cursaram a disciplina MES, apesar de terem feito especialização. Tal fato se deve pela distinção que costuma ser dada entre as especializações com finalidades profissionais e aquelas com finalidades acadêmicas. Nesse caso, os professores fizeram especialização que oferecia a disciplina MES à parte, e por na época não pensarem em lecionar, não a cursaram, de acordo com conversa informal. Como já foi mencionado, há também o caso de um professor que não concluiu sua especialização lato sensu e por isso ainda não cursou a disciplina MES. Ou seja, dos 94% de professores que possuem especialização, 81% deles cursaram a disciplina MES.

Tal disciplina, na opinião de 50% dos questionados foi muito genérica, não aprofundando questões didático-pedagógico e muito menos “ensinando” a lidar com a realidade da sala de aula de Contábeis, como afirmou um dos professores em conversa informal. Em somente 31% dos casos a disciplina MES teve o enfoque que deveria, aplicando-se realmente para o ensino da Contabilidade.

Muito da satisfação e da profundidade dos assuntos abordados na disciplina MES depende bastante de sua carga horária. Percebeu-se uma disparidade e uma dispersão muito grande entre a duração horária desta disciplina nos vários cursos de especialização. Para se ter idéia, 25% dos professores responderam que a disciplina teve 60 horas de duração, em contrapartida, há 24% que cursaram MES com 30 horas, a metade da carga horária do outro percentual mais relevante. É importante uma padronização quanto a esse dado, pois aí podem residir alguns dos despreparos apontados na pesquisa, visto que 68% dos questionados responderam que o tempo para a disciplina foi insuficiente dada sua importância, sendo somente 2 os professores que concordaram sobre o tempo destinado ter sido suficiente.

Aliás, sobre importância, 81% dos professores reiteraram a essencialidade da disciplina como basilar para quem pensa em se tornar docente em Ciências Contábeis, 13% alegou que MES é uma disciplina

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importante, ou seja, o somatório dos docentes que creem na importância da MES perfez-se um total de 94% dos docentes.

Questionou-se sobre quais os conteúdos foram abordados, independentemente da forma de apresentação. Em tal quesito foi dada a liberdade de marcar mais de um item. As quatro respostas mais assinaladas foram: recursos didáticos (13 marcações), Avaliação e Planejamento de Ensino e Didática (ambas com 11 marcações).

Dos pesquisados, 81% reportaram melhoras significativas na sua prática docente após terem cursado a disciplina MES, prova que ela é mesmo meio de mudança e melhoria na qualidade do ensino e na formação de profissionais que dependem do ensino para construírem seus conhecimentos.

Os dois maiores problemas apontados pelos docentes são: a falta de recursos didáticos na instituição, que garantem suporte para aulas mais dinâmicas e motivadoras, bem como uma sobrecarga de trabalho.

Percebeu-se pela análise e conversas informais com os docentes que o plano de disciplina é o único tipo de planejamento elaborado pela maior parte dos professores (63% deles de acordo com o questionário), já 13% dos questionados alegaram fazer um plano de aula antes de cada aula e segui-lo. Há que se destacar a sinceridade de um professor que afirmou preparar um plano de disciplina por semestre e não cumpri-lo.

Ao responderem sobre a hipótese de um profissional de contabilidade lecionar a disciplina MES nos cursos de especialização, qual seria a opinião dos docentes, isso favoreceria aos intuitos da disciplina ou não contribuiria? E sobre isso 63% (10) dos questionados responderam que creem importante que a disciplina MES seja ministrada por profissional de Contabilidade em cursos de especialização lato senso em público voltado para a área contábil.

Considerações finais

Verifica-se a atuação de profissionais liberais – contadores – lecionando em cursos de Ciências Contábeis, muitos deles desejam

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dedicar-se ao ensino e ficam à procura de subsídios pedagógicos mais especificamente através da disciplina Metodologia do Ensino Superior (MES) cursada na maior parte das vezes em cursos de especialização lato sensu (e até mesmo stricto sensu).

Cabe a ressalva que a disciplina MES não é a solução de todos os problemas educacionais em nível superior, visto que: (1) mesmo cursando a disciplina alguns professores ainda se sentem despreparados pedagógico-didáticamente para exercerem a docência visto que são bacharéis e não licenciados e/ou porque a disciplina foi muito curta para sentirem-se preparados; (2) e muitos são os problemas exógenos que os docentes precisam lidar continuamente para garantirem aulas e ensino de qualidade.

Propõe-se que a carga horária da disciplina seja ampliada e padronizada e que, seja ministrada por profissional contábil com formação pedagógica. Como reflete a pesquisa, visto que 63% (10) dos questionados responderam que creem importante que a disciplina MES seja ministrada por profissional de Contabilidade em cursos de especialização lato sensu ao público da área contábil e justificaram dizendo que eles dispõem de conhecimento sobre as matérias contábeis e pedagógicas estando cientes das dificuldades de assimilação do conteúdo.

Para esta pesquisa partiu-se da hipótese de que na visão dos docentes de Contabilidade a disciplina Metodologia do Ensino Superior oferecida em cursos de especialização lato sensu não prepara verdadeiramente o profissional para lecionar em cursos superiores. Tal hipótese foi corroborada pela pesquisa, visto que tal disciplina cursada, na opinião de 50% dos questionados foi muito genérica, não aprofundando questões didático-pedagógico e muito menos “ensinando” a lidar com a realidade da sala de aula de Contábeis como afirmou um dos professores em conversa informal.

Percebeu-se que 100% são contadores e destes, 94% possuem especialização, estas em sua maioria são relacionadas à área contábil. Os profissionais pesquisados afirmam não serem resistentes a mudanças e

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inovações, embora seja muito difícil intercambiar disciplinas no colegiado de Contábeis, conforme observação assistemática da pesquisadora. Eles dizem conhecerem suas próprias limitações (94% deles). E 56% não possuem a docência como atividade única, as cargas horárias de trabalho são muito grandes. As dificuldades dos profissionais de Contabilidade foram apontadas pelos docentes como: despreparo didático-pedagógico, mesmo ao cursar MES, falta de recursos didáticos na instituição, que garantem suporte para aulas mais dinâmicas e motivadoras, e sobrecarga de trabalho.

A importância deste trabalho se apóia em procurar, mesmo que indiretamente, a melhoria da prática docente no curso de Ciências Contábeis, uma vez que se propõe a investigar a disciplina Metodologia do Ensino Superior sob a ótica dos professores de Contabilidade que a cursaram em nível de especialização. Tal melhoria embasaria um salto na qualidade do ensino Contábil e na formação dos futuros Contadores, profissionais essenciais à sociedade atual.

Referências

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LOWMAN, J. Dominando as técnicas de ensino. São Paulo: Atlas, 2004.

MATTOS, L. A. de. Sumário de didática geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Aurora, 1971.

MELCHIOR, M. C. Avaliação pedagógica: função e necessidade. 2. ed. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1999.

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MOREIRA, M. A. Ensino na universidade: sugestões para o professor. Porto Alegre, 1985.

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VASCONCELLOS, C. dos S. Planejamento: projeto de ensino-aprendizagem e projeto político-pedagógico. 8. ed. São Paulo: Libertad, 2000. v. 1.

______. Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança. Por uma práxis transformadora. 4. ed. São Paulo: Libertad, 1998. v. 6.

______. Avaliação: superação da lógica classificatória e excludente. Do é proibido reprovar ao é preciso garantir a aprendizagem. 4. ed. São Paulo: Libertad, 1998. v. 5.

Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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hans jonas: ética para a civilização tecnológica

Flaviano Oliveira Fonseca 1

Resumo: Este artigo apresenta a ética da responsabilidade. Hans Jonas é o filósofo mais importante na crítica ao modelo tecnocêntrico de civilização ao propor os imperativos do cuidado e da precaução; seu viés teórico imbrica filosofia, ética, bioética e medicina. Nesse sentido, o olhar ecológico e o resgate ético de Jonas são lapidares na construção do novo paradigma engendrado pela ética da responsabilidade.

Palavras-chave: Ética. Tecnologia. Responsabilidade.

hans jonas: ethics for the technological civilization

Abstract: The present article rescues the notion of the responsibility. Jonas’ meaning of balance while organic system, this allows an approach among Philosophy, Medicine (techne ietriké), Ethics and Bioethics. Hans Jonas believes that technological developments are in fact so hostile to our deepest needs, indeed to our future, that we must completely rethink our etchics and etchical responsibilities.

Keywords: Ethics. Technological. Responsibility.

1 Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor da UFS. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 151-168 2009

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Preâmbulo

Este artigo se define fundamentalmente como uma provocação para os reais e profundos desafios pelos quais passa a “civilização tecnológica”. Hoje, não apenas a filosofia, mas os diversos ramos do saber têm se deparado com uma realidade marcada por profundas e rápidas transformações e com um brutal poder de interferência da tecnociência na vida das pessoas, das comunidades humanas e extra-humanas. Cada ramo das “ciências” ao perceber tal fenômeno tem procurado identificar as causas, interpretar os fatos e, consequentemente, apresentar possibilidades de enfrentamento ou mesmo de convivência com as mais díspares das situações. Certamente, todos buscam e querem encontrar um caminho capaz de responder às demandas e ou mesmo pactuar com o real estado em que as coisas se encontram. Essa, porém não é a opção de Hans Jonas (19792) e que veremos mais adiante. Ainda falando em âmbito panorâmico podemos dizer que no campo das psicologias é muito comum falar dos sintomas de uma cultura narcísica (LASCH, 1984) e do espetáculo (DEBORD, 1997), de uma “subjetividade rasa”, de uma sociedade depressiva que prefere curar as doenças do espírito utilizando uma terapia medicamentosa. No âmbito da sociologia fala-se de um mal-estar na pós-modernidade (BAUMAN, 1998), de um mal-estar na atualidade (BIRMAN, 1999); no campo ético-filosófico veremos que a associação dos avanços da ciência e da tecnologia encontram-se eivados de um niilismo crasso, de um progressivismo por vezes cego, ou mesmo um vazio ético sem paralelos na história (JONAS, 1979)3. Dessa maneira, a civilização tecnológica está pronta para desencadear processos cujas consequências não são possíveis de conhecimento prévio e, por isso mesmo, poderão comprometer 2 JONAS, Hans. Das Prinzip Verantwortung. Primeira edição alemã, 1979. JONAS, Hans. the Imperative of the Responsibility: in search of an ethics for the technological age. Translated by Hans Jonas with the collaboration of David Herr. Chicago: University of Chicago Press, 1984. Edição inglesa. Edição utilizada: HANS, Jonas. o princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006.3 Neste texto utilizaremos basicamente a edição traduzida para o português.

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a vida humana e extra-humana em curto, médio e longo prazo. Hans Jonas empreende em O Princípio Responsabilidade de 1979, um forte apelo pela renovação da ética.

Éticas tradicionais e centradas no sujeito: principais características

Na senda de Hans Jonas4 passaremos a expor os elementos mais importantes presentes nas concepções das chamadas “éticas tradicionais”, e que gravitam em torno dos seguintes elementos: todo o domínio das relações com o mundo extra-humano, toda a dimensão da techne (habilidade), com exceção da medicina, era considerado eticamente neutro. O lócus específico da ética estava diretamente ligado à polis. Assim, o tear do homem estava estritamente dirigido para essa finalidade. Outro elemento importante diz respeito ao caráter antropocêntrico da ética tradicional. A significação ética estava stricto sensu relacionada diretamente ao homem com o homem. Visto dessa forma, a relação com as coisas e com os seres naturais em geral, é no fundo, mediata entre pessoas. Aprofundando um pouco mais a reflexão sobre as características das éticas tradicionais temos o agir humano se preocupando com as relações imediatas, jamais requerendo um planejamento para médio ou longo prazo. Os efeitos remotos ou consequências distantes da ação não eram levados em conta, e sim considerados obras do acaso. Pois, o universo moral consiste nos contemporâneos e o seu horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera de ação (JONAS, 2006, p. 36). Ainda na mesma perspectiva, Jonas ao analisar a moral kantiana e citando o prefácio da metafísica dos Costumes afirma que em matéria de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exatidão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples, e que não é necessária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. Dessa forma, para saber o que fazer e para que uma determinada vontade seja moral não há necessidade de nenhuma perspicácia de longo alcance e que, mesmo acometido por inexperiência 4 Idem, ibidem.

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na compreensão do percurso do mundo, ainda assim é possível agir em conformidade com a lei moral. Portanto, a ética tradicional se define fundamentalmente por ser uma ética da simultaneidade e da imediatez (p. 36). Concluindo o viés interpretativo, referindo-se ao autor da moral dos costumes, Jonas arremata declarando que “nenhum outro teórico da ética foi tão longe na diminuição do lado cognitivo do agir moral” (p. 37).

Ética da responsabilidade: uma nova ética!

Jonas diz claramente que as novas capacidades de ação exigem uma nova ética, e isso está explicitamente anunciado em sua obra mais importante O Princípio Responsabilidade, de 1979 (JONAS, 2006). Na senda da renovação da ética podemos afirmar que a humanidade vive um tempo absolutamente novo, ímpar, sem parâmetros anteriores. A técnica moderna se especializou tanto e assumiu dimensões jamais imaginadas com uma exequibilidade fascinante e arrebatadora, com uma eficácia pragmática de alta grandeza, tudo isso com novos objetos e consequências que os regulativos das éticas tradicionais se tornaram obsoletos, ineficazes. Isso porque em termos éticos nada mais é suficiente, sejam os preceitos dos deuses, os interditos religiosos de toda ordem ou mesmo a advertência aos indivíduos para que respeitem as leis, pois nada mais é passível de se contrapor às contundentes e potentes ações humanas. Nem sequer a ética de amor, “amor ao próximo” com suas prerrogativas de justiça, misericórdia, honradez, e outras, tudo isso se têm mostrado inefetivos para operar nesse novo contexto. É verdade que no âmbito das tecnologias as sociedades mais pretéritas não experimentaram uma engenhosidade de tal proporção, e talvez até possamos dizer que há certo débito em relação às implementações tecnológicas em tais sociedades. Dessa maneira, importa notar que os “expedientes” da tecnociência impuseram ao homem contemporâneo uma nova forma de agir, tanto frente aos seus semelhantes, quanto ao próprio mundo extra-humano. O Princípio Responsabilidade de Jonas deixa muito evidente esse tipo de abordagem. Nas pesquisas de Neves (1999),

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e remetendo a um texto de Jonas datado também de 1979, encontra-se a afirmação que já em Toward a Philosophy of Technology (Para uma Filosofia da Tecnologia) o “nosso filósofo” desenvolveu e sistematizou essa problemática5. Assim, a tecnologia do passado é vista como da “posse” (possession) e do “estado” (state), isso em virtude dela ser exercida tradicionalmente pela posse de instrumentos em vista de um estado de equilíbrio entre meios, necessidades e objetivos. Tudo era tido como “um conjunto de empreendimentos e capacidades”. Todavia a tecnologia contemporânea, objeto das análises de Jonas, é caracterizada como uma “empresa” (enterprise) e um “processo” (process), não aparecendo mais o elemento de satisfação de necessidades de forma isolada, ele acontece como um agregado numa relação circular entre meios e fins, em que cada ciclo de sucesso é “passport” para um novo desenvolvimento futuro, pois a realidade se apresenta como um “impulso dinâmico” (dymanic thrust).6

Hans Jonas analisa que a era tecnológica moderna avança de forma exponencial e sua “auto-procriação cumulativa” se reverte em “auto-proliferação”; trata também que a capacidade do homem esgotar os recursos em vista de favorecer a um maior consumo de progresso tecnológico é qualquer coisa de avassalador, tudo isso em vista de um auto-justificado consumo de bens7. Na visão de Jonas esse processo autojustificador se imbrica numa rede que também se auto-alimenta de forma sincronizada. É de se notar que, com esse procedimento “auto” a técnica começa a ganhar vida própria. Parece que se invertem os papéis, ou seja, o homem “cede” o seu lugar de sujeito para os “expedientes” tecnológicos que operam sob a forma de um processo

5 JONAS, Hans. Toward a Philosophy of Technology. the hastings Center Report, n. 1, p. 34-43, 1979. Apud NEVES, Maria do Céu Patrão. Éticas tradicionais e ética do futuro: contri-butos e insuficiências do pensamento de Hans Jonas. In: ______. Da natureza e do sagrado. Homenagem a Francisco Vieira Jordão. Edição da Fundação Eng. Antonio de Almeida, Porto, 1999. p. 589-623. 6 Idem, ibidem, p. 591.7 toward a Philosophy of technology (apud NEVES, 1999, p. 592). Aqui pode-se conferir que “Jonas apresenta o exemplo do ‘modesto motor a vapor para bombear água para fora das chaminés das minas’ e facilita a extração de carvão de James Watt, para mostrar como cada uma das suas funções foi exigindo quantidades crescentes de carvão e de ferro, tendo-se tornado num dos maiores consumidores do seu próprio produto. Jonas refere-se a esse processo como ‘síndrome’ de auto-proliferação”.

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integrado e integrador, ele ganha vida própria e passa à posição de comando, a um processo de modo autônomo, ditando normas e maneiras de como o homem deve proceder. Jonas (2006, p. 43) denuncia então que, o Homo faber se colocou acima do homo sapiens, visto que, “o triunfo do homo faber sobre o seu objeto externo significou, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição interna de homo sapiens,8 da qual outrora ele costumava ser uma parte servil”. Jonas faz uma advertência diretamente ao âmbito da “filosofia da tecnologia” e diz que entrou em jogo agora a problemática dos fins da humanidade. Essa denúncia é grave e isso será a substância fundamental de todo o seu tear ético-filosófico. Sendo assim, a intervenção tecnológica acopla ao seu conteúdo a mais fundamental dimensão da vida humana, ou seja, a sua finalidade. Naturalmente que aqui se manifesta e se materializa cabalmente o ideal baconiano, para o qual o único obstáculo é a exequibilidade, e “tudo o que é possível deve ser realizado, isso desconhecendo todos e quaisquer limites que não sejam o da exequidade” (NEVES, 1999, p. 593). Daí Jonas conclui que a divisão entre saber teórico e prático desapareceu, o que deu origem a uma nova forma de saber – preditiva – que incide sobre as implicações futuras das ações presentes”9. Ainda na mesma perspectiva, Jonas insiste que atendendo à dimensão escatológica da tecnologia, o saber preditivo é indispensável e obrigatório para uma ação responsável – definindo, desta sorte, o novo desempenho do conhecimento no domínio moral (suprimindo a separação radical kantiana entre moral e conhecimento)10.

Importa tomar consciência que não há mais uma separação entre o que é natural e o que é extranatural, há uma simbiose, uma imbricação tal que os seus fins e destinos estão entrelaçados visceralmente. A fronteira entre o que é fruto da natureza e o que é produto do homem diluiu-se sobremaneira e o artificial tomou conta da totalidade do real. Desse modo, a “transformação da essência do agir humano” é apontada por Jonas como uma alteração qualitativa que a tecnologia moderna operou sobre todas as formas de vida. Assim, a ação especificamente 8 “[...] mesmo desconsiderando suas obras objetivas, a tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que ela agora ocupar subjetivamente nos fins da vida humana”. 9 toward a Philosophy of technology (apud NEVES, 1999, p. 594).10 Idem, ibidem.

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humana não se limita mais às relações interpessoais, nem tampouco se restringe ao aqui e agora, antes ao contrário, o agir humano ampliou sobremaneira o seu raio de influência; o seu poder de interferência transpõe o tempo e o espaço, decididamente estamos todos, a saber, a nossa geração e as gerações futuras sob as influências das decisões que hoje tomarmos e consequentemente sujeito aos efeitos dos acertos ou “eventuais” descalabros daí decorrentes. Jonas (2006, p. 66) assinala que “capacidades de ação de um novo tipo exigem novas regras de ética, e talvez mesmo uma ética de novo tipo”, dessa forma a técnica exige uma filosofia ética capaz de dar suporte aos seus empreendimentos. Isso significa dizer que o agir técnico que já havia abandonado o seu aspecto de thecne (sentido aristotélico de exercício da criatividade para produzir objetos – poiesis) assume o status de empresa tecnológica; a consequência imediata aponta para um agir humano destituído de toda e qualquer neutralidade. Inegavelmente que o “nosso filósofo” situa a tecnologia como “vocação” da humanidade (JONAS, 2006, p. 43). Todavia, a reflexão sobre a questão da técnica ao que se pode compreender não pode mais ser empreendida como mera descrição dos fatos produzidos, muito menos vista de forma isolada, antes ao contrário, sobre todos os empreendimentos oriundos da tecnologia, deve ser imputada uma responsabilidade moral correspondente, ou seja, em tudo que haja a interferência da tecnociência há que se “contabilizar” um ônus moral capaz de corresponder à ação de quem o faz.

A questão dos impactos da tecnologia que afetam o mundo e as pessoas foi introduzida por Heidegger (2002); foi ele quem deu visibilidade ao tema, então qual a singularidade de Jonas? Importa afirmar que o novum de Jonas está no fato de que “a ação técnica ganha significação ética” (NEVES, 1999, p. 595). Dito de outra forma, Heidegger não elabora uma reflexão sobre a ética propriamente dita, talvez ele trace as condições de possibilidades, sua reflexão vai muito mais em direção a uma ontologia fundamental sobre o esquecimento do ser, isso sim é o seu proprium. O autor de O Princípio Responsabilidade, ao contrário, se debruça sobre uma pragmática, ele elabora propriamente uma teoria ética, e que

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veremos mais adiante os seus fundamentos. A propósito do pensamento de Heidegger pode-se classificar como profundamente pessimista quanto ao papel da técnica enquanto força capaz de impulsionar e imprimir maior velocidade às inventividades humanas. Seguramente ele tinha o pressentimento da força destruidora presente na técnica e, naturalmente, associada ao poder, isso implicaria numa conjugação extremamente perigosa. Destituir a tecnociência de sua neutralidade e suspeitar do poder por ela controlado e manipulado, eis o aspecto privilegiado por Jonas para empreender o seu tear ético-filosófico, seu esforço teórico convergirá nessa direção. É bom deixar claro que o aspecto perigoso do poder da tecnociência para Jonas e, portanto sua preocupação precípua não é a associação entre poder e técnica, isso é próprio de Heidegger (NEVES, 1999, p. 596). Para Jonas, o risco maior está no fato de que a tecnologia ganhe status próprio, vida própria. Jonas prevê que a própria técnica irá assumir as alavancas do processo. O “nosso filósofo”, portanto, insiste na natureza e objeto específicos da ação técnica moderna. Ele projeta na elaboração de uma “filosofia da tecnologia”, a estruturação de uma ética do futuro e a justificação da necessidade de uma nova orientação política” (p. 597). Outro questionamento que vem à tona pode ser expresso da seguinte forma: Com o vislumbrar da possibilidade e ao mesmo tempo do apelo por uma nova organização política, não seria o marxismo uma teoria de grande valor e com força capaz de integrar e “humanizar” 11 os desafiantes problemas da tecnociência? Jonas não vê o marxismo como uma saída para os grandes problemas que a humanidade enfrentará com o advento dos “novos poderes”, ao contrário, ele irá se contrapor à teoria progressivista proposta por Karl Marx. Enquanto o desenvolvimento técnico-científico advindo da modernidade atingiu patamares gigantescos, de forma que o princípio de Francis Bacon “saber é poder” tornou-se a regra geral impulsionadora e justificadora de uma infinidade de ações, e mais preocupante ainda é que encontrou um verdadeiro acoplamento na teoria social de Marx. Para se evidenciar melhor basta ter presente que a centralidade do autor de O Capital está no trabalho, e naturalmente, o 11 Humanizar na acepção de conceber o existir em suas potencialidades e fragilidades; vida que carece da racionalidade instrumental para se organizar, mas que também perece sem a precaução e a prudência para usar uma terminologia jonasiana.

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conceito de trabalho em Marx é equivalente à práxis12. Partindo desse ponto de vista efetivamente o autor de O Capital é progressivista, pois ele crê no trabalho como atividade criadora e transformadora, isso é inegável, aliás, essa é a espinha dorsal de toda a sua teoria social. Nesse particular Jonas irá criticar e se contrapor a essa política utópica, Jonas é muito mais pragmático, ele quer se confrontar com os grandes problemas que afligem as sociedades13, e deixa em segundo plano a sistematização de uma ação política.

Resgatando a perspectiva analítica do presente trabalho, observa-se que os novos cursos da ação resultaram por denunciar a inefetividade dos antigos balizamentos éticos oriundos das chamadas éticas tradicionais ou centrados, e aqui se pode citar desde os interditos religiosos e míticos, ou ícones a exemplo de Hipócrates, Aristóteles e Kant também os pragmáticos consequencialistas, a exemplo de Mill e Bentham. Dessa maneira, se por um lado as éticas tradicionais não respondem mais, isto é, não alcançam mais as problematizações do contexto contemporâneo, tampouco as utopias modernas. É natural que, nos deparamos diante de um “vazio ético”14.

Fundamentos da ética da responsabilidade

Para que a ética da responsabilidade adquira status próprio, ou seja, para que ela garanta validade universal, a exigência precípua é que passe por uma fundamentação de cunho filosófico. Para tanto, os seus enunciados teóricos (exigência de racionalidade) são necessários, porém insuficientes porque existem também exigências de ordem prática a satisfazer. Jonas dirá que a primeira questão diz respeito “à doutrina dos princípios da moral; e a segunda, à doutrina de sua aplicação”.15 Ele elege a responsabilidade como princípio fundamental para dirigir

12 Nota-se que em Marx também existe o trabalho (arbeit) alienado, porém neste artigo não nos deteremos nessa categoria. 13 Neste contexto pode se elencada todas as questões que fizeram parte e sua atuação ética, a saber: manipulação genética, prolongamento da vida, controle de comportamento, as crises ambientais, e outros.14 Para aprofundar a questão ver: Jonas (2006, p. 65).15 Idem, p. 69.

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a ação e fundamentar uma ética para a era tecnológica. Para efetivar esta empreitada Jonas vai se defrontar com muitas teorias e que, em vez de obstacular o caminho, antes ao contrário, elas farão com que as aparentes dificuldades se revertam em oportunidades a mais para expor o seu tratado. Seguindo esse raciocínio, O Princípio Esperança de Ernest Bloch16 é um desses desafios a ser superado, o que para o autor da “nova ética” não passa de um exercício para apontar os equívocos desse princípio. Pensar a ética da responsabilidade e decidir agir de acordo com a compreensão que dela se procura ter caracterizam uma oposição ao utopismo de Bloch (NEVES, 1999, p. 602), fato que permite abrir espaço necessário para a construção de uma das colunas de sustentação da ética do futuro. Assim, Jonas contrapõe O Princípio Esperança ao Medo, fruto da precaução, da prudência; nisto consiste a superação e enfrentamento que Jonas empreende na sua teoria da responsabilidade. Iniciaremos propriamente a fundamentação da “nova ética” não pelo caráter comum da responsabilidade, mas exatamente pondo em relevo as características singulares que tal noção assume no pensamento jonasiano. Expondo o aspecto decisivo da natureza e do desempenho da responsabilidade presentes no tear filosófico da “nova ética”, Jonas expõe-na primeiramente, como “sentimento”, oriunda daquilo que ele mesmo intitula “heurística do temor”, e como tal ela acontece como aconselhamento do agir17. Todavia, parecem-nos oportuna as seguintes indagações: como investigar adequadamente a categoria temor (ou medo)? Temor de quê ou de quem? Quais os pressupostos para entender esse temor contrapondo-se à esperança? Até que ponto o medo jonasiano não induziria a pensar que estamos a embasar a “nova ética” a partir de uma atitude medrosa, certo terrorismo de mentes “depressivas” e pessimistas em relação ao progresso tão útil e até necessário para o desenvolvimento da humanidade? Será que se trata de uma ética com a função específica para disseminar medo e estabelecer limites, através de uma fuga mundi? É possível entender racionalmente a

16 Ernest Bloch em sua obra O Princípio Esperança retoma e desenvolve a utopia marxista.17 “We know much sooner what we do not want than what we want” (Cf. JONAS, 1984, p. 27). (Sabemos primeiro o que não queremos do que o que queremos.). Aqui se trata claramente de uma referência ao daimon socrático, neste caso, o mau prognóstico é mais imediato que o bom.

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categoria do medo? Como essas indagações são inevitáveis, cremos que suas respostas assumem um caráter de obrigatoriedade – é o que faremos a seguir. Respondendo objetivamente sobre a origem do medo, é sensato deixar claro que o medo nos advém sim da utopia do progresso, pois na contemporaneidade ele se nos apresenta com um caráter ilimitado, com uma força brutal e estruturado a partir de uma “metodologia própria”, e que nas palavras do próprio Jonas (2006, p. 235) se trata da “ameaça de catástrofe decorrente do êxito excessivo”. Isso se contrapõe à própria natureza humana e extra-humana que já apresenta sinais de limites. Para verificar isso basta recordar as grandes questões de ordem prática que se tornaram matéria frequentes nas reflexões e conferências de Jonas (2006, p. 235-237), a saber: a questão que se nos apresenta diz respeito à alimentação, suscitado pelo aumento demográfico e que exige uma maior exploração dos solos, recursos mais intensos e adubos artificiais, provocando a contaminação química dos mananciais, por outras causas a salinização do solo, erosão, as chuvas ácidas e outros; o das matérias-primas que, ao nível em que são exploradas, não são inesgotáveis. E que, sendo amplamente utilizadas na produção de energia, implica em outros tipos de problema, a saber: o da energia, no seu uso crescente, quer no que se refere às fontes renováveis, quer às que não são, acentuando-se aspectos negativos como a poluição, o “efeito estufa”, com a elevação da temperatura geral do planeta, o degelo das calotas polares, a subida do nível dos oceanos e outros; e o problema térmico que se coloca mesmo quando, no caso da energia nuclear, permanece afastado o “efeito estufa”, mas toda energia produzida se decompõe em calor e o calor dissipa-se fato que implica no sobreaquecimento do ambiente18. São alguns dos efeitos de um poder autônomo, “enquanto sua promessa transformou-se em ameaça e sua perspectiva de salvação, em apocalipse” (JONAS, 2006, p. 237). É da natureza do pensamento de Jonas deixar evidente que ele não está falando de um medo paralisador do agir, egoísta, que só receia por si, um “medo patológico” tratado por Hobbes (p. 72)19, mas ao contrário, o que está em jogo é um medo 18 Neves (1999, p. 597), amplia essa análise com outros elementos. 19 Neste particular Hobbes está falando de uma mal que nos atinge, enquanto em Jonas o mal é apenas uma ameaça.

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que implica numa desresponsabilização do sujeito. Quanto ao termo “heurística”, esse evoca a “noção” de descoberta, de poder, cabe ser traduzido também como a atitude de pôr boas questões suscitadas pelo receio, pela possibilidade de vulnerabilizar algo ou alguém. Com base nessa hermenêutica é que Jonas toma-o como suporte para a sua teoria. Eis a razão porque o que aparentemente parecia fraqueza agora se constitui numa forma de empoderamento (empowerment), força para agir, coragem para assumir receios, mas também “estímulo para a investigação ou procura de conhecimento, senão dos efeitos, pelo menos das possibilidades dos efeitos” (NEVES, 1999, p. 603). Importa dizer que o medo não se instala automaticamente, a exemplo de uma reação abrupta, algo parecido com uma atitude instintiva de defesa, o medo Jonasiano é anterior ao desejo e atua “bem cedo” como “motivação psicológica, subjetiva da filosofia moral; [...] a heurística do medo, ultrapassa a racionalidade científica, positiva, a favor do que se confirmará como uma racionalidade metafísica” (NEVES, 1999, p. 605). A responsabilidade deve ser entendida como medo primeiro, como uma ação que se antecipa ao agir e que podemos compreendê-la como prudência em vista de possíveis consequências desconhecidas da ação humana. Além de entendermos como “sentimento” podemos considerá-lo também como uma forma de conhecimento, ou seja, um “saber de possibilidades”. É possível também ganhar a denotação de cuidado e para pôr em relevo essa dimensão trazemos presente a fábula-mito do cuidado presente originalmente em Ser e Tempo de Heidegger20.

A referida fábula-mito de origem latina, porém, remonta o espírito da mitologia grega, e quer transmitir algo sobre a essência do ser humano, 20 “Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita do barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto viver. “E uma vez que entre vocês há uma acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

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que implica necessariamente numa atitude de compartilhamento dos saberes, de humildade e imbricação de deveres. Estamos diante de uma complexidade de situações que importa não ter a pretensão de tomar para si todas as instâncias do poder de decisão, antes ao contrário, a atitude de humildade talvez seja a melhor companhia quando a realidade inspira incertezas, dúvidas e conhecimentos que ainda não se encontram disponíveis ou mesmo ao nosso alcance. Importa compreender a fábula como uma instância que nos chama a atenção para a complexidade da vida, e que urge não reduzi-la a uma única dimensão rácio-instrumental, antes ao contrário, o saber na vida e mesmo o saber para a vida implica numa atitude de cuidado, responsabilidade, de prudência em vista do alter de que é “moldado”, do Rosto (expressão presente em Levinas) que se nos apresenta na radicalidade de sua diferença.

O pensamento ético de Jonas chama a atenção dos mais importantes teóricos, considerando, por exemplo, Jean Greisch (1994), ele assevera que a responsabilidade ganha um status maior do que de uma simples virtude, ela se torna A virtude por excelência, ou seja, ela atinge o patamar de “sabedoria prática” e que pode ser traduzida por prudência, e que longe de estabelecer limites, a prudência se caracteriza pelo fato de ela se comportar como uma atitude antecipatória. Já no entender de Bernard Seve (apud NEVES, 1999, p. 605), o medo para Jonas se nos apresenta como o motivo racional, preditivo21 da responsabilidade, e torna-se seu móbil sensível, à maneira do “respeito” invocado em Kant. Contudo, ainda poderíamos indagar: ora, se o medo é um sentimento subjetivo, como então escapar de um iminente subjetivismo? Para responder a essa investida Jonas procura ampliar a questão, no intuito de atingir esse fim: “ele recua para o plano maximamente amplo da existência, da vida perspectivada em termos metafísicos [...] a reivindicação da responsabilidade, portanto começa com a existência e esta, por sua vez, está ligada ao direito à existência. Existência reclama existir pelo simples fato de existir”. Aqui o direito não se encontra fundado na reciprocidade. Daí que se afirma a responsabilidade parental como modelo. Quando ele 21 De acordo com o Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, preditivo é equivalente a prognosticar, antecipar acontecimentos futuros.

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diz que “o arquétipo de toda responsabilidade é o recém-nascido, isso acontece porque a sua total vulnerabilidade reclama cuidados, e se torna mais forte ainda porque o estado da criança está fora dos parâmetros de reciprocidade (JONAS, 2006, p. 219). O modelo do fato em questão se insere no contexto de uma relação de gratuidade, tipifica, portanto, a materialização mais profunda do sentimento de proteção e acolhida daquele pequenino ser, no caso em questão, a criança. Sem tais cuidados ela incorrerá no risco de morte, de desaparecer, sendo condenada à condição de não-ser, porém não é isso que a responsabilidade reclama, é justo o contrário, ou seja, ela reclama e quer a elevação do recém-nascido à condição de ser. Por essa ótica, a responsabilidade pela criança ganha força como modelo para a demonstração da ética de Jonas. Todavia, a atitude assimétrica como fundante da relação não é originariamente de Jonas, ela faz parte mais propriamente da estrutura do pensamento de Lévinas (apud PELIZZOLI, 2002, p. 94-95), uma vez que, a alteridade é fortemente tematizada em Totalidade e Infinito22. Para Pelizzoli (2002), “o olhar – expressão do Rosto implica como que uma ‘conversão’ da visão, da consciência ativa e do processo intencional-objetivante [...] a epifania do Rosto – súplica e apelo vindas de uma nudez e estranheza”, nessas expressões ficam patentes que o outro se encarna na ausência do mesmo, o que caracteriza a emergência de Outrem. O tema da alteridade assimétrica, posto em pauta primeiramente por Lévinas é retomado, ampliado e elevado à categoria de mote basilar para a ética da responsabilidade por Hans Jonas. Então, qual seria o proprium de Jonas? Inegavelmente a originalidade de Jonas aparece no fato de ampliar sobremaneira o conceito de alteridade, pois ele deixa o âmbito estritamente intersubjetivo dirigido aos humanos e amplia para as outras dimensões da existência, ou seja, para a vida extra-humana. Assim, é 22 Quando ele afirma imperativamente que o ser é exterioridade, visto dessa forma “o próprio exercício de seu ser consiste na exterioridade, e nenhum pensamento poderia obedecer melhor ao ser senão ao deixar-se dominar por esta exterioridade... A verdadeira essência do homem apresenta-se em seu Rosto no qual ele é infinitamente outro [...]”. Partindo dessa afirmação Pelizzoli comenta: “[...] antes estamos às voltas com o sentido maior da subjetividade que aflora na “relação ao outro” [...] que o desejo de infinito”. E continua, em face desse contexto é bom ter presente que “o outro comporta uma alteridade inviolável que se exprime em parâmetros de linguagem, temporalidade e espacialidade totalmente adversas, também a interdiscursividade que ratifica a própria assimetria dos termos, e que a mantém porque o Outro tem efetividade e vida própria” (Cf. LEVINAS, 1961).

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que o ainda não existente (JONAS, 2006, p. 89) ganha direito de existir, pois enquanto totalmente outro, e mais ainda, enquanto materialmente “ausente”, mas ao mesmo tempo ele se torna presente sob o ícone da alteridade que reclama o seu direito de “via-a-ser23”, de existir. Aqui se insere o “primeiro princípio de uma ‘ética para o futuro’, no qual se pode notar uma metafísica a dar suporte, e não sobrecarregando o próprio princípio como doutrina do fazer (à qual pertencem todos os deveres para com as gerações futuras), mas radicando sua base numa instância ôntica, como doutrina do Ser, da qual faz parte a idéia de homem” (JONAS, 2006, p. 95). Com essa grade de entendimento, a ética da responsabilidade de Jonas fundada na assimetria das relações, encontra no recém-nascido o paradigma ôntico de um “Dever-Ser”. O recém-nascido, portanto se nos impõe como um “apelo do Ser” que nos comove os sentimentos e nos arrebata em direção a um dever, ele é quem nos impulsiona para que assumamos a afirmação do ser, em vez de condená-lo à condição de “não-ser”. A criança aqui é tomada como expressão de uma fragilidade sem par e que urge tomar os cuidados fundamentais como condição necessária para que se afirme como ser-existente; a sua indefensável condição se me impõe um dever, que forçosamente se converte em um irrecusável fazer. A ética da responsabilidade, portanto, reveste-se da prerrogativa de caminhar em direção ao “Dever-fazer”, e elegeu como imperativo fundamental o dever de tomar para si responsabilidade pelo que ainda estar por vir expresso na fórmula: “Age de tal forma que as consequências de tua ação não interrompam a possibilidade de a vida continuar se manifestando em todas as suas expressões como hoje nós a percebemos”.

Considerações finais O modelo de fundamentação de Jonas primeiramente se

deteve na alteridade assimétrica objetivando superar a pura e simples reciprocidade; em segundo lugar, a investida em busca de fundamentos 23 Aqui se pode perfeitamente invocar o vir-a-ser de Heráclito; no campo jurídico o direito dos nascituros.

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para a responsabilidade de Jonas ancorou o seu pensar ético no direito próprio do ainda não existente, como uma entidade que reclama pela possibilidade de existir. Assim, com o objetivo de encontrar uma profícua fundamentação Jonas enceta como recurso o exemplo da natureza, traz à baila o gesto da procriação, gesto esse inteiramente desinteressado e oblativo24. Essa ação, enquanto exercício para a ética do futuro tende sempre a imbricar na relação parental o paradigma da responsabilidade. Quanto a Kant, no seu imperativo, ele recorreu a uma dedução de um princípio que se dirige ao comportamento do indivíduo privado, Jonas ao contrário, a responsabilidade está cravada em nós, e “essa é a única classe de comportamento inteiramente altruísta fornecida pela natureza” (JONAS, 2006, p. 89). Em todo caso, o existir não está vinculado a um direito de existir propriamente, mas a um dever-existir, que inclui o dever da reprodução, pois a “obrigação incondicional” da existência futura da humanidade decorre da idéia de homem e que implica em sua encarnação no mundo, condição sine qua non para a existência de uma “ética para o futuro”. Assim, o primeiro princípio da ética da responsabilidade não se encontra nela mesma, como doutrina do fazer, mas na metafísica como doutrina do Ser, a qual engendra a idéia de homem. Portanto, “a primeira regra é a que aos descendentes futuros da espécie humana não sejam permitido nenhum modo de ser que contrarie a razão que faz com que a existência de uma humanidade como tal seja erigida” (JONAS, 2006, p. 94). Aqui Jonas resolve o problema prático de sua ética: estabelece o imperativo da existência, imperativo ontológico.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação

Henrique Oliveira de Araújo 1

Resumo: O presente trabalho trata do cerne da “ação comunicativa” humana: o processo de diálogo. Partindo do entendimento de que a comunicação nasce de uma relação dialética entre diferentes alteridades e contextos, o trabalho pretende traçar um caminho que ajude a melhor compreender o papel das subjetividades e dos seus trâmites de enunciação na construção da comunicação humana.

Palavras-chave: Eu. Tu. Alteridade. Dialética. Comunicação.

the creation of the self by the other: the paper of the subjectivities in the enunciative paths of the communication.

Abstract: The present work discusses the central point of the human “communicative action”: the dialogue process. Taking into consideration the understanding that the communication is born of a dialectic relationship between different alterities and contexts, the work intends to establish a way that helps to understand the paper of the subjectivities and its enunciation procedures in the construction of the human communication.

Keywords: Self. Other. Alterity. Dialectic. Communication.

1 Graduado em Comunicação Social pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 169-186 2009

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Introdução Somos o “outro” por essência. Em todos os momentos,

procuramos nos afirmar na imagem de uma alteridade. Ao olharmos para uma parede ou para o pôr do sol, mesmo sozinhos estamos colocando nossas subjetividades para duelar com o “outro”, que se encarna em todo o contexto que nos cerca. O mundo que não nos é traz em si esta figura da alteridade. O “eu”, pois, dialoga, a cada instante, com o “tu”. Muito mais do que uma teoria comunicacional ou psicanalítica, essa afirmação já é a própria explicação da nossa essência humana. Nascemos para sermos seres da comunicação. Em nenhuma circunstância deixamos de comunicar. Nunca perderemos essa essência. E isso se dá justamente porque em nenhum tempo da existência humana os sujeitos deixaram de buscar a si mesmos. Olhando percebemos sentidos. E, encadeando esses sentidos, conversamos com os universos significativos presentes no mundo, e esses universos de significação nos dizem a todo instante que a objetividade do mundo nada mais é do que uma busca eminentemente subjetiva. Uma busca por perfeição, uma busca por deuses estranhos.

Mas quem são esses deuses da nossa busca? Justamente na pergunta é que se esconde a resposta: no enigma do “outro” é que buscamos nossas divindades do entendimento. As imagens dos outros sujeitos, das outras coisas, das outras sombras, guardam a essência do poder que nos faz chegar à compreensão da materialidade do nosso próprio corpo e da nossa própria vontade. Para que busquemos o palpável, temos que dominar o diálogo com a alteridade. E a alteridade é um espectro indefinido que se encarna em todas as coisas, sob diversos momentos e angulações. O transeunte na rua, com suas roupas extravagantes, é uma alteridade que conosco dialoga. A palmeira que se arvora na janela e que nos impressiona com aquele verde inconfundível também o é. Assim, pode-se dizer que o cerne de toda a nossa existência é um embate constante com todos estes “outros” que em nós se amontoam para formar o entendimento. Com essas alteridades dialogamos para construir a nossa consciência.

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O “eu” se constrói pelo “tu”. E o mundo que existe e que tanto queremos tocar com a razão nunca fugiu de um processo comunicativo. É isto que o leitor vai encontrar neste texto: uma busca por um melhor entendimento acerca da colocação do sujeito no processo comunicativo, que é base para que os indivíduos construam a percepção que têm de si mesmos e dos contextos com os quais dialogam constantemente. Uma investida para discutir a formação da nossa consciência do “real”.

o sujeito e a enunciação

O homem dialoga com seus mundos. Vive imerso em realidades dotadas de contextos perceptivos mutantes que lhe cobram diversos e constantes movimentos reflexivos, contemplativos e de ação. Percebe-se isso quando se comparam os diversos âmbitos socioculturais pelos quais a humanidade transitou antes de culminar no nosso vertiginoso conglomerado de sensações imagéticas. Como nos demonstra Stephens (1993, p. 117), ao analisar a transição da cultura de “notícias orais” para outra de “notícias escritas”, o homem elaborou suas próprias formas momentâneas de enxergar seus universos. Ao passar, num determinado momento histórico, de uma cultura oral para uma cultura letrada, os sujeitos mudaram e reconfiguraram completamente o que anteriormente chamamos de “contextos perceptivos”. Sendo assim, ele escreve:

A escrita, por causa das suas implicações para o desenvolvimento do pensamento humano, merece compartilhar a autoria de nossa civilização. Por causa da capacidade de anotar, registrar, a mente é libertada do fardo de ter que memorizar a sabedoria do passado. As fórmulas perdem um pouco de seu domínio sobre a linguagem e o pensamento.

Ora, ao demarcar essa “transição” perceptiva evidenciada na passagem da cultura oral para a cultura de palavras escritas, o exemplo dado por Stephens nos mostra que há diferentes contextos perceptivos

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que, entrecortados por diversas e constantes alterações, se reformulam historicamente. Em outras palavras, o homem não dialoga somente com um contexto ao longo de sua história, mas, sim, com vários.

Logo não existem “contextos perceptivos fixos” e, ao longo da sua história, o homem modificou constantemente suas “maneiras de perceber”. Como afirmamos, os contextos perceptivos humanos são, por essência, mutantes. Para assim afirmarmos, entendemos também que ainda não se comprovou um estado no qual o homem esteja desligado completamente de sua realidade e dentro de uma espécie de contexto “não-perceptivo”. Mesmo nos sonhos (e isto a tradição psicanalítica e a nossa experiência inconsciente podem nos comprovar), existem padrões dialéticos compositores de uma estrutura de entendimento. Para os padrões humanos, mesmo em um “estado vegetativo” (EV), não se pode asseverar uma ausência perceptiva. Por exemplo, a Federação Internacional das Associações dos Médicos Católicos (FEDERAÇÃO..., 2007) afirma que o EV consiste em um:

[...] estado de não reacção, actualmente definido como uma condição caracterizada pelo estado de vigilância, alternância de ciclos sono/vigia, ausência aparente da consciência de si e do ambiente circunstante, falta de respostas comportamentais aos estímulos ambientais, conservação das funções autónomas e de outras funções cerebrais.

Essa explicação, declaradamente calcada em bases científicas ainda inseguras, de uma “ausência aparente da consciência”, então divulgada pela Federação, dá margem para que se entenda que, realmente, não se chegou a uma certeza quanto a um estado de não-consciência do homem. E essa incerteza pode ser comprovada se confrontarmos mais opiniões acerca do comportamento humano no EV. Em um grande meio de comunicação brasileiro, por exemplo, foi divulgado um estudo do Conselho de Pesquisa Médica do Reino Unido, em setembro de 2006, segundo o qual “uma mulher de 23 anos que entrou em estado vegetativo depois de um acidente de carro parece ser capaz, de alguma forma, de entender o que está

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acontecendo ao seu redor e de seguir ‘mentalmente’ um pedido em forma verbal” (FOLHAONLINE, 2006). As contradições das afirmações das instituições médicas citadas evidenciam, justamente, uma não-precisão de uma “nulidade” perceptiva e comunicativa das pessoas.

Desse modo, se existe, entre importantes centros de pesquisa, uma controvérsia tão forte sobre a existência e permanência de um estado de “não-consciência” nos homens, não podemos admitir aqui, de uma maneira que seria completamente arbitrária, um comprovado estado de “vazio perceptivo” nas conformações basilares do entendimento dos seres humanos. Ou melhor, devido a essa incerteza, não permitiremos neste trabalho um contexto incluso em algum período “não-perceptivo” da vida humana.

Por entendermos que os sujeitos não estão imersos em uma condição de “vazio perceptivo”, o homem e seus universos participam de uma espécie de “conversa universal”, na qual seus deuses afirmam a existência por meio de representações lúcidas (ou não) e perfeitamente encadeadas. A humanidade, em sua consciência, discute suas formas e conteúdos essenciais, busca seus caminhos de gênese. O homem e seu ideal de perfeição e infinitude são as formas mais puras de inconformismo e de mobilidade crescente: fluente bater de pernas contra o afogamento no profundo rio de suas elucubrações; contínua busca por entendimento, por formulações intersubjetivas ainda mais extensas. Afinal, como nos diria Foucault (1999, p. XVI),

[...] os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá que lidar e nas quais há de se encontrar.

E é nessa conformação que os seres humanos criam seu

entrelaçamento simbólico com as coisas (ou, mesmo, com o espectro delas) e criam, de maneira não menos intensa, suas idéias dessas próprias coisas. No seio desse movimento, os homens passaram a entender seu

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corpo e seus “moldes subjetivos” como algo banhado nesse cosmos de buscas por idéias. E, nas diversas semelhanças interpretativas do entendimento, quase numa contradição, talharam as paralelas de um infinito nas quais se acelera o potencial de interpretação e enunciação. Numa interpretação com grande veia saussureana, percebe-se mais claramente que, como um texto vivo2 e ambulante, o homem se faz. E, na sua linguagem, elabora a condição imagético-sonora, que se reflete nos seus mais nítidos espelhos. Empenhando-se em possuir a si mesmo, pintando sua própria imagem, ou, mesmo, em visitas a um imaginário consciente ou não, o sujeito se recria constantemente como texto e assume a variedade de uma fala. Percorrendo o curso do próprio entendimento, o homem desatou os nós de qualquer certeza, fez-se menos palpável e, ambiguamente, mais literal; transformou-se num complexo livro aberto, em um anseio crescente por comunicação e em uma reconstrução frenética do seu “outro”.

Nesse “outro” está sua noção de existência. No entendimento do que está no final da enunciação, o sujeito (enquanto tal) “realmente” se faz. É pelo “outro” que o sujeito se constrói, e é na linguagem que ele se estrutura enquanto “holograma inteligível”. A partir dessa percepção, um discurso inquietante sobre o que existe e sobre o que vai existir se elabora: o estar na comunicação ganha sentido e apresenta o que se adaptou a chamar-se de realidade. Tem-se, pois, uma elucubração quase infindável que flutua entre a verdade e a falsidade e que se aglomera junto a um infinito de contingências, de entraves e de omissões na qual, com surpreendente habilidade, tudo se reordena constantemente e, obviamente, a subjetividade se faz presente. Criaram-se, também, o contexto e a evolução intencional de formas discursivas que tentavam esconder a si mesmas; revelou-se uma nova forma de fluxo. 2 Segundo Gianfranco Bettetini (1993, p. 66), “o texto, num nível mais imediato, é definível como um conjunto de enunciados que se atualizam em relações recíprocas e que dão origem a uma estrutura finalizada da construção de um sentido. O texto é portanto um corpo semiótico orgâ-nico e coerente e a sua estrutura semântica (aquela que comumente vem definida como estrutura textual e que considera os aspectos de conteúdo do texto) revela as inscrições e as hierarquias das codificações sobre as quais funda-se a construção superficial do próprio texto”. No entanto, é preciso que nos atentemos para o fato de que o homem, como “texto vivo”, pode-se pautar em trâmites dotados de muito menos rigidez e formular seus mundos subjetivos como textos muito mais fluidos ou livres.

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A comunicação, no seio das edificações imprecisas da humanidade, rompeu e, ao mesmo tempo, voltou-se a uma grande narrativa deformadora, cunhando, sob a luz de um tempo intocável e imensurável, a grande liberdade que recolocava agentes em uma guerra por tentativas simbólicas. Comunicar passou a ser requisito para uma “auto-imagem”, e para uma afirmação ainda mais complexa dos trâmites do “eu”. Os sujeitos tinham que se mostrar e estar presentes no entendimento do “outro”, tinham que procurar um destino ou mesmo uma razão para estarem representados no mundo.

Esse é o motivo para a criação das formas relacionais que nascem da comunicação. O agir comunicativo, como nos sugeria Habermas (1999), cunhou nossa própria noção de interação. E essa interação representou o mundo como uma sombra imprecisa que nascia da luz emanada das palavras e dos outros signos. Começamos, pois, a imaginar uma realidade comum, aceitável e contada por enunciações rebeldes que não cansavam de se arvorar para si, metamorfoseando-se em constantes certezas ilusórias e dando base para as relações dialógicas entre os homens, suas formas conscientes, inconscientes e, principalmente, com uma necessária alteridade: evolução que viria a ser base para que se pensasse o mundo enquanto um movimento de subjetivação e o que existe de real como uma invenção do sujeito.

O entendimento humano nasce, pois, de um diálogo, de um processo comunicativo que, constantemente, refunda o sujeito e seus contextos. E cria, por causa desse processo, a necessidade que temos de falar, escrever, gesticular, por exemplo. Nossa comunicação é o próprio sedimento da nossa auto-afirmação, da nossa história. Criamos interlocutores que vão, em nossas primeiras intenções, atestar as representações de realidade que nos são comuns. Necessitamos desses interlocutores e da sua “escuta”, que é, justamente, o local de uma grande revelação; uma revelação que, como brilhantemente nos disse o doutor Lacan (1998, p. 257), “é a fala presente, que atesta a realidade atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade”. Na próxima seção, para um melhor entendimento dessas questões, trabalharemos

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um pouco mais detidamente sobre a idéia de “sujeito” que, até aqui, estamos propondo para o nosso trabalho.

A noção de sujeito na comunicação

No século XVII, no terceiro livro do Ensaio Acerca do Entendimento Humano, John Locke (1973) dava-nos uma pista sobre a forma como se estrutura a percepção dos homens. Em um texto de aguçado senso observador, o filósofo inglês dizia:

[...] Deus, tendo designado o homem como criatura sociável, não o fez apenas com inclinação e necessidade para estabelecer camaradagem com os da sua própria espécie, mas o forneceu também com a linguagem, que passou a ser o instrumento mais notável e laço comum da sociedade. O homem, portanto, teve por natureza seus órgãos de tal modo talhados que está ocupado para formar sons articulados, que denominamos palavras. Isto, porém, não foi suficiente para produzir linguagem [...].

[...] Além de sons articulados, portanto, foi mais tarde necessário que o homem pudesse ter a habilidade para usar esses sons como sinais de concepções internas, e fazê-los significar as marcas das idéias internas de sua própria mente, pelas quais elas serão conhecidas pelos outros, e os pensamentos das mentes dos homens serão mutuamente transmitidos (p. 227).

O homem sociável, portanto, como indicou Locke, teve, concretizada nessa capacidade linguística, a principal “ferramenta”3, que é inata, do seu processo de construção cultural e do seu próprio entendimento subjetivo do mundo. Através da habilidade de trabalhar racionalmente com a linguagem e de formular conteúdos discursivos, o sujeito passa a ter condições para exteriorizar ou, mesmo, materializar 3 Para alguns linguistas conhecidos como “inatistas”, entender a linguagem como um mero instru-mento humano é uma visão no mínimo questionável. Defendendo essa opinião, Benveniste (1988, p. 285) nos diz: “Falar em instrumento é pôr em oposição o homem e a natureza. A picareta, a flecha, a roda não estão na natureza. São fabricações. A linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou. [...] Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É o homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”.

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seus pensamentos ou “concepções internas”. Nessas concepções, ele começa a se fundar enquanto ser complexo e participante da edificação do mundo e enquanto agente da representação do “real”. Poderíamos ainda dizer que esse é o momento em que, como humanos, demos os primeiros passos rumo a um marcante e paradoxal rompimento com várias das muitas barreiras à capacidade perceptiva que tão firmemente nos engajamos em desenvolver. Passamos a iniciar o que viríamos a conceber como palpável ou cognoscivelmente existente. E nessa mesma constituição (de uma maneira nada lacônica – como é característica na humanidade), iniciamos nossa penetrante intervenção nas falas: criando nuances, veredas, infinitos e ilusões.

Nessa observação, percebemos que o sujeito realiza seus movimentos de emancipação quando se “liberta”4 (em algum momento obscuro da gênese discursiva) de sua simples inserção irracional no planeta. Com a linguagem, ele formula conteúdos capazes de reformar o próprio contexto imaginário que o cerca. Passa a ter, pelo encadeamento e expressão de suas idéias, forças para modificar toda uma percepção que, notavelmente, lhe serve como guia do seu “estar-no-mundo”. Ao captar e reconstruir, em seus discursos, os “materiais” mundanos, o homem passa a interferir no seu próprio destino, passa a formular os conteúdos que articulariam a “prevalência intelectual” da humanidade sobre os outros grupos de animais. É, pois, na linguagem, nos discursos e na comunicação que as subjetividades definitivamente se formam e se firmam enquanto tais.

Avançando um pouco, analisemos um trecho de Benveniste (1988, p. 289):

4 É importante que percebamos: essa “liberdade” se calca em bases bem relativas. Na própria tradição dos estudos semiológicos, ao se perceber a grande penetração dos fatores culturais, sociais e históricos na conformação e “uso” da fala (e, consequentemente, da língua), admite-se que existe, por exemplo, um momento de desigualdade e/ou de prevalência de minorias privile-giadas (os chamados “grupos de decisão”) sobre maiorias, que sofrem uma espécie de imposição. Isso coloca, dentro da dinâmica da fala, os importantíssimos (e não esquecidos aqui) fatores sociológicos e antropológicos como determinantes da ação de fala dos diferentes sujeitos. Como exemplo, observemos um trecho de Barthes (2003, p. 34): “Pode-se dizer, mais amplamente, que as elaborações do grupo de decisão, isto é, as logotécnicas, são, elas próprias, apenas os termos de uma função sempre mais geral, ou seja, o imaginário coletivo da época: a inovação individual é assim transcendida por uma determinação sociológica (de grupos restritos) e estas determinações sociológicas, por sua vez, remetem a um sentido final, de natureza antropológica”.

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A linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão; e o discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas. A linguagem de algum modo propõe formas ‘vazias’ das quais cada locutor em exercício de discurso se apropria e as quais refere à sua ‘pessoa’, definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro como tu. A instância de discurso é assim constitutiva de todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais apenas designamos sumariamente as mais aparentes.

Além de, como já indicamos, fornecer grande parte das “coordenadas” definidoras do sujeito, a prática discursiva coloca uma questão que se faz de suma importância para nós: a relação dialógica entre subjetividades.

Ora, se nos esforçarmos um pouco em nossas análises, perceberemos que é exatamente o diálogo que preenche a essência do processo comunicativo. Seguindo novamente uma visão habermaseana, podemos afirmar que é impossível que um ato comunicativo se desenvolva sem que exista um contexto que englobe pelo menos dois atores. A comunicação se dá, justamente, pelas vias de uma relação dialógica. Isso pressupõe que os usuários da linguagem, ou seja, aqueles que a colocam em movimento, estejam envoltos em um uma realidade ou, mesmo, numa representação comum de realidade, capaz de tornar seus conteúdos enunciativos compreensíveis aos diferentes “sujeitos usuários”. Obviamente, esses sujeitos teriam que estar devidamente inseridos num universo de códigos linguísticos comuns que estabelecesse uma necessária (e evidente) compreensão recíproca (HABERMAS, 1999).

É justamente aí que se encontra o momento característico do processo de comunicação e a questão central para que entendamos como o sujeito é formado em toda essa conjunção. Afinal, nessa relação de diálogo, fica claro que a enunciação subjetiva de conteúdos depende eminentemente da figura do que, anteriormente, denominamos o “outro”.

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É para esse “outro” que o sujeito se forma na linguagem. É prevendo a existência dessa “alteridade comunicativa” que ele formula seus conteúdos e inicia o que Goffman (2007, p. 25) chamaria de “representação” ou busca pela crença de uma platéia atenta à sua reestruturação da realidade. O homem dialoga com seus “outros” e com as diferentes alteridades que ele encontra na sua rede de vivências sociais. Ao se socializar, o individuo começa, numa relação pautada pela linguagem, a lidar com diferentes presenças, que se consolidam como partes compositoras da realidade que ele considera aceita ou dada. Nessa realidade, o indivíduo passa a estabelecer “aproximações subjetivas” que serão de suma importância para a conformação do seu “eu”. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que, ao nascer, os seres humanos estão destinados a lidar com conformações que foram criadas e legitimadas antes do seu nascimento. Nesse movimento, ele defronta-se, invariavelmente, com outros indivíduos que já compunham o organismo social que ele veio, também, a habitar. É nesse encontro de alteridades que se movimenta a linguagem e se estabelece, como processo fundamental, a comunicação. É justamente nesse tecido social regado a diversidades que surge o que Goffman (2007) já denunciava: a representação de papéis pelo “eu” na “dramatização” da vida cotidiana.

No texto Carta a Meu Pai, Kafka (1976) coloca de maneira brilhante essa encenação que se encontra nas “entranhas dialéticas” da sociedade. Ao descrever sua peculiar relação com seu pai e a opressão que advinha desse relacionamento, o escritor nos transporta para uma imagem que nos mostra claramente que, dentro das instituições sociais (no caso desse escrito de Kafka, a família), existe um estabelecido relacionamento dialético, que é, realmente, um seio de representações e de confrontos de subjetividades. Isso se cristaliza em uma série de práticas ou, mesmo, “convenções-guia” das condutas tidas como normais ou aceitas. Sobre isso, vejamos um trecho em que Kafka (1976, p. 77) descreve sua percepção acerca da configuração do “papel” desempenhado por seu pai:

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Acreditavas que devia ser, mais ou menos, assim: durante toda a tua vida trabalhaste duramente, sacrificando tudo pelos teus filhos e especialmente por mim; como consequência disso, vivi de modo dissipado, tive inteira liberdade para aprender o que desejasse, não tive razão para me preocupar pelo sustento; isto é, nenhuma inquietação; não pedias gratidão em troca, conheces o agradecimento dos filhos, mas, ao menos uma aproximação, sinal de simpatia.

Ao representar seu “papel” de provedor, o patriarca da família Kafka interioriza, como diria Berger e Luckmann (1985), um comportamento historicamente tido como certo para aquela situação. A estrutura familiar com a qual o jovem Franz e seu pai tinham que conviver (mesmo que problematicamente) era, pois, o terreno sobre o qual se desvelavam as condições para que se instaurasse aquele determinado conhecimento de mundo, que confirmava uma forma dialética de construção das subjetividades.

Como o âmbito familiar, todas as outras formas contextuais da sociedade participam ativamente da afirmação subjetiva do “eu” e da visão diversificada que temos do “outro”. É justamente neste encontro com nossos semelhantes que formamos nossos comportamentos e, com o evidente auxílio da linguagem, construímos nossas formas de agir e ver o mundo. No entanto, só podemos entender a construção dessas relações perceptivas se admitirmos que todo esse processo, como indicamos anteriormente, se dá dialeticamente e sob as demandas de um processo de compreensão das diversas situações em que se desenvolvem as formas de agir dos homens. Só então entenderemos porque Goffman (2007) afirma que os indivíduos e/ou atores se aglomeram em torno de uma grande “fachada”: de uma construção que se dá como uma peça teatral em que o forte é o convencimento de um “público”.

Ora, ao admitir essa “dramatização” da realidade sugerida por Goffman, estamos, ao mesmo tempo, aceitando que os processos sobre os quais são sustentadas as realidades sociais se calcam em um outro processo que é comunicativo por essência, e no qual se pressupõe a criação de uma mensagem que seja destinada a uma “platéia de outros”

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receptores e decodificadores de mensagens específicas. Eis que se apresenta novamente o diálogo como criador da própria noção do papel do sujeito no ato de comunicação.

Afinal, como nos revela a anterior passagem que transcrevemos da obra de Benveniste, a proposta de uma atividade realmente discursiva pressupõe a presença de parceiros. Quando ele fala de um eu e de um tu como agentes de uma ação comunicativa, está atestando o caráter eminentemente dialógico sobre o qual o sujeito e a comunicação se fundam. Uma vez habilitada pela linguagem, a palavra, enquanto manifestação de um código formal posto a serviço de uma situação discursiva qualquer, se renova constantemente para dar movimento a um formato linguístico que contém a própria imagem do homem: um homem que se afirma na linguagem, enquanto ser único e enquanto um locutor participante da frenética edificação simbólica do mundo.

Se avançarmos numa interpretação lacaniana5, teremos ainda mais nítida a idéia de “outro” que aqui estamos tentando colocar. Notaremos, em uma forte abstração, que, até se não existir uma presença corporal de outro ser humano à frente da pessoa que fala, o sujeito estabelece uma relação (para compor seu discurso) com um ouvinte criado dentro de si mesmo. Nessa visão psicanalítica, a essência da conformação linguística da subjetividade está no que ele chamou de confronto de “significantes”6, ou seja, na articulação do desejo7 como uma forma sistemática de significação e de criação de um “imaginário contextual” e de comunicação. Esta quase subversão impetrada por Lacan dentro do campo dos estudos linguísticos, justamente ao inverter a tradicional noção de signo estabelecida por Saussure, trouxe um terceiro elemento dialógico para a constituição do sujeito: o homem falando para si mesmo e descobrindo, também numa alteridade, a conformação do 5 Sugiro que ancoremos nossas interpretações das teorias de Lacan ainda mais em textos de outros interpretadores e comentadores do estudioso francês, como Bento, Ziliotto, Cukiert e Prates (2004). 6 Chama-se de signo “o total resultante da associação de um significante [=imagem acústica] e de um significado [=conceito] [...]” (BENVENISTE, 1988, p. 53).7 “Numa palavra, em parte alguma evidencia-se que o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro” (LACAN, 1998, p. 268).

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seu inconsciente enquanto linguagem. Para Lacan, mesmo não estando numa situação formal e corporal de fala (com um eu e um tu em carne e osso), os “seres falantes” são capazes de movimentar a linguagem. E é nesse imaginário ato de fala dos sujeitos com seus “outros” mentais que se desvendará, pelas curvas que as entrelinhas da palavra escondem, a real constituição da afirmação subjetiva e do entendimento dos homens. Por isso, para entender a complexidade da conformação da idéia de sujeito, devemos, em primeiro lugar, entender que sua constituição se faz na comunicação. E que, fora desse processo de interação, a própria concepção de realidade desaparece, se esgota. É no discurso que brota a subjetividade pulsante dos homens e é nele que nos reconhecemos. E na fala é que temos casa, pois

[...] ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real (LACAN, 1998, p. 259).

Os homens, então, fundam sua pequenez e sua grandeza representativa no seio dos atos comunicativos: comunicando, criam história, refazem caminhos, edificam e despedaçam quimeras.

Conclusão

O papel do “outro” na comunicação é, pois, crucial. Podemos afirmar isso se entendermos que o próprio ato enunciativo se constrói sobre bases dialéticas. Bases que, como já indicamos, pressupõem um contato entre subjetividades que constroem constantemente o entendimento e que são de cabal importância para que o homem coloque em atividade a linguagem sobre a qual está calcado. Afinal, nenhum ser humano se insere no ato comunicativo sem pressupor a presença de um “destinatário” à sua mensagem, como afirma Benveniste (2006, p. 84):

[...] imediatamente, desde que se declara locutor e assume a língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o

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grau de presença que ele atribua a este outro. Toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um alocutário.

Ora, se o homem pressupõe na sua comunicação uma necessária alocução, não podemos concluir outra coisa a não ser o fato de que ele se funda enquanto ser dialógico na medida em que se coloca em frente da presença marcante do “outro”. Nessa alteridade é que ele estabelece a condição de fala, temporalidade e colocação significativa da sua vida social. Assim, por meio de uma inserção discursiva no mundo, o homem funda seu tempo: um tempo constantemente renovado, que cria as sensações de continuidade e presença que irão, constantemente, tocar seus formatos subjetivos.

Fundamos-nos, assim, no “outro”. A própria percepção do nosso corpo se dá, inevitavelmente, porque partimos da visão primeira do formato daquela alteridade que nos guia. Quando bebês, ao nos olharmos em um espelho, por exemplo, temos nossa primeira noção de alteridade. Criamos, quando crianças, no que Lacan (1998, p. 100) chamou de estádio do espelho, uma “função da imago” que nos revela como seres inseridos numa realidade crivada de diálogos. Percebemos a ilusão da nossa imagem como uma espécie de semelhança idealmente perfeita com outros seres que compõem a nossa espécie. Nessa busca por similitudes, e com o aparato da linguagem, fundamos nossos discursos; saímos à procura incessante por aquela mesma imagem que o espelho nos forneceu, procuramos o início de uma interação que se dirá social. Partimos, portanto, para os terrenos de uma interação que nos colocará em frente dos fantasmas daqueles que nos são iguais. Esses “fantasmas”, por sua vez, serão explicitados numa edificação discursiva e no aparato do enunciado.

Entre os indivíduos será estabelecida, pois, uma colaboração para a construção simbólica da realidade e assim inaugurada, “pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial [...], a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas” (LACAN, 1998, p. 101). Constroem-se, então, os fundamentos do “eu social”: os indivíduos passam a ter as condições para estabelecer as

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interações que se constituirão no cerne para sedimentação dos seus aparatos discursivos. Esses aparatos existirão, por sua vez, em todo o percurso comunicativo da vida humana, desde as formas comunicativas mais primitivas dos homens sociais até as elaboradas e complexas relações inauguradas por instrumentos fluidos como a Internet. Na relação com o “outro”, o homem poderá entender os trâmites que legitimam as matérias do seu mundo e dos seus objetos formadores; elaborará o mundo imagético e de imersão ativa percebido por Bergson (1999) em Matéria e Memória e dará a mobilidade às edificações essenciais que formam seus anseios por comunicação e enunciações.

Esta característica coloca necessariamente o que se pode denominar o quadro figurativo da enunciação. Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo (BENVENISTE, 2006, p. 87).

Entendemos, portanto, que a comunicação humana se funda no momento em que se consolida a qualidade interativa dos indivíduos com o “outro”. Ao se estruturar no diálogo, o homem inicia seu próprio nascimento enquanto movimentador da linguagem. Por isso, dizemos que o papel do “outro”, nos processos comunicativos, está ligado à própria vida e ao crescimento do entendimento do homem. Afinal, sem a percepção dessa alteridade, não se dá início à conformação do sujeito enunciador e, ao mesmo tempo, não se pode criar o “real”. Dito de outra maneira, a comunicação não existe sem a presença da figura de um alocutário.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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NúmERo 6jUl./DEZ. 2006

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jogos de Poder: análise dos pressupostos do sistema de controle no cotidiano de uma unidade prisional

Odilza Lines de Almeida1

Resumo: Estudos sobre a justiça penal de países do hemisfério norte-ocidental apontam para transformações importantes do significado do cárcere nas três últimas décadas. De uma instituição desprestigiada e destinada a abolição, a prisão vem sendo assumida como um locus das políticas e estratégias punitivas que caracterizam a modernidade tardia naqueles países. Entendendo que a reabilitação e o “welfarismo” penal nunca foram a tônica dominante do sistema prisional brasileiro, como podemos caracterizar as nossas prisões? O presente trabalho discute o cotidiano do cárcere a partir das ações e significados dos atores sociais que transitam no espaço de uma grande unidade prisional do Estado da Bahia. Resultados iniciais permitem afirmar que a prisão está mais adaptada aos jogos de poder entre estes atores do que a qualquer estratégia geral no sentido seja da reabilitação seja da punição.

Palavras-chave: Prisão. Sistema de controle. Punição.

Power Games: an analysis of the assumptions of the control systems in the daily routine of a penitentiary

Abstract: Studies on the judicial system in North-western hemisphere countries point to important changes in the meaning of incarceration in the last three decades. Formerly considered a discredited institution doomed to extinction, prisons have now become the locus of punitive policies and strategies which 1 Doutoranda pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 189-212 2009

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characterize the delayed modernity in those countries. Understanding that penal rehabilitation and welfarism have never been the at the core of Brazilian penitentiaries, how can we characterize our prisons? This work examines the daily routine of incarceration by analyzing the actions and roles of the social actors in transit in a large penal unit in the State of Bahia. Initial results lead us to state that imprisonment is more suited to power games among those actors than to any overall strategies concerning rehabilitation or punishment.

Key words: Prison. Control system. Punishment.

1 Introdução

Estudos sobre a justiça penal de países do hemisfério norte-ocidental apontam para transformações importantes do significado do cárcere nas três últimas décadas. De uma instituição desprestigiada e destinada a abolição, a prisão vem sendo assumida como um locus das políticas e estratégias punitivas que caracterizam a modernidade tardia naqueles países. É mister salientar que essas estratégias punitivas tentaram acompanhar as mudanças observadas na natureza dos delitos e nos índices de criminalidade sendo, portanto, caracterizadas por um esforço para reverter situações já estabelecidas, não havendo noticias sobre estudos prospectivos ou com sinceras intenções de prevenção.

Garland (2005) faz uma análise histórica dessa mudança e conclui que os processos de modernização que pareciam tão consolidados nesse âmbito – racionalização e civilização – parecem reverter-se. As políticas do sistema de controle social migram do ideal de reabilitação do welfarismo penal que tomou o lugar dos castigos retributivos, para a reaparição da política oficial de sentimentos punitivos e gestos expressivos. Diferentemente das criminologias do Estado de bem-estar, estas novas criminologias veem o delito como algo próprio da interação social normal e explicável através de padrões motivacionais, o que tem gerado novos estilos de gestão e práticas de trabalho e uma sensação permanente de crise.

Poucos são os estudos nacionais sobre o contexto prisional mas, em sua maioria, atestam a ambiguidade existente nos discursos e nas práticas carcerárias. Se, por um lado, podemos identificar a falta

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de pretensões reabilitadoras no discurso do staff e na implantação de regimes que objetivam tão somente a segregação, por outro, encontramos programas típicos do espírito do welfarismo que tentam resgatar o sentenciado da criminalidade proporcionando-lhe experiências diversas das vivenciadas até então.

Por detrás das cortinas das possíveis políticas de controle social existentes, encontramos a prisão, como representante supremo, naturalis, do sistema punitivo e, ao mesmo tempo, receptora e agente ativo dessas virtuais políticas. A dinâmica encontrada na prisão atesta que esse instrumento de controle não é passivo no processo de estabelecimento de ações e programas para o setor.

Para discutir o jogo de forças que atravessam as relações entre os diversos atores que transitam pela prisão, apresentamos, neste trabalho, um estudo de caso de uma prisão localizada no Estado da Bahia. Nele, defendemos que, no contexto estudado, a prisão está mais adaptada aos jogos de poder entre estes atores do que a qualquer estratégia geral no sentido seja da ressocialização seja da punição. Tais jogos de poder, por sua vez, se manifestam na coexistência de fenômenos aparentemente conflitantes mas que, numa análise mais minuciosa, se complementam, como a legitimidade das lideranças criminosas, a inadequação do comportamento do staff, a impropriedade da estrutura física, a ausência de serviços básicos, a disseminação da insegurança, a permissividade em relação a bens e serviços e a concessão de regalias.

2 Dos Sistemas de Controle Social

A noção de “controle social” tem sido utilizada de muitas formas dentro do campo das Ciências Sociais. Por esse caráter polifônico, cabe-nos, pois, delimitar de qual lugar estamos falando ao nos referirmos a esse conceito. Alvarez (2004), numa tentativa de recuperar a trajetória da idéia de “controle social”, remete-nos às formulações de Durkheim acerca do problema da ordem e da integração social como precursoras das questões que permeiam a expressão ora discutida. Mas é na Sociologia norte-americana,

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continua Alvarez, especialmente em Mead e Ross, que o termo é utilizado para especificar um campo de estudos e para se referir aos mecanismos de cooperação e coesão voluntária daquela sociedade, excluindo, deste modo, a análise da ordem social como regulada pelo Estado e privilegiando aspectos microssociologicos dentro da tradição da Escola de Chicago.

Após a Segunda Guerra Mundial, a expressão toma outra direção e recupera questões macrossociológicas, como a da relação do Estado com os mecanismos de controle social e a coesão social passa a ser vista como resultado de práticas de dominação organizadas pelo Estado (ALVAREZ, 2004). Essa orientação que o autor chama de “negativa” marca os estudos revisionistas das práticas penais dos anos 60 promovidos por autores como Edward Palmer Thompson e Michel Foucault. A partir dos anos 80 essa abordagem sofre novas críticas. Cohen (1989 apud ALVAREZ, 2004) critica a idéia de submissão completa daqueles que estão sob os mecanismos de controle, presente nos estudos revisionistas que também privilegiam as práticas formais e o papel do Estado, em detrimento das práticas informais. Os estudos atuais buscam modelos multidimensionais para compreender a expressão “controle social”. Nesse caminho, delimitamos nossa abordagem acerca do termo ao caracterizá-lo através da concepção de Cohen citada por Alvarez (2004). Segundo o autor a noção deve ser capaz de:

- indicar a que práticas sociais específicas corresponde;- recuperar as diferentes respostas dos agentes submetidos aos mecanismos de controle;- mostrar que essas práticas podem ser produtivas e não apenas repressivas, já que podem produzir comportamentos em indivíduos e grupos sociais e não somente restringir e controlar as ações;- evitar a dicotomia Estado/sociedade e pensar as práticas de controle social constituindo-se na relação entre as diversas dimensões institucionais da modernidade;- não cair numa visão por demais finalista da racionalidade dos mecanismos de controle social.

Estabelecida a idéia de controle social da qual nos aproximamos, é de bom alvitre operacionalizarmo-la. Aqui, subimos nos ombros

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de Garland (2005) para compreendermos o controle social como composto por uma rede governamental de produção de ordem social que inclui o sistema legal e, acrescentamos, o sistema punitivo que, juntos, formam o sistema de controle do delito; o mercado de trabalho; e as instituições do Estado de Bem-Estar Social. O sistema punitivo, representado pelas instituições de controle do delito, modifica sua configuração na medida em que as mudanças na estrutura dos campos sociais e das instituições contíguas são estabelecidas. As instituições formais do controle de delito tendem, assim, a ser reativas e adaptativas; funcionam buscando complementar os controles sociais da vida cotidiana. A re-configuração do campo do controle do delito envolve muito mais que uma simples mudança na resposta da sociedade frente ao delito. Também implica novas práticas de controle das condutas e de fazer justiça, concepções revisadas da ordem e do controle social e das maneiras de se manter a coesão social e manejar as relações entre os grupos sociais (GARLAND, 2005).

Na prática, o controle do delito é considerado um tipo específico de controle social – identificação e respostas a condutas consideradas desviantes – que é típico das sociedades modernas, onde conflitos e ações indesejáveis ou danosas, que eram resolvidas de variadas formas, passaram para a órbita do sistema de justiça criminal, sendo tipificadas como delitos. Nestas sociedades, o controle do delito se apropriou e colonizou o controle social, levando a que ambas expressões sejam consideradas sinônimas.

2.1 A análise genealógica do sistema de controle do delito segundo David Garland

Para melhor compreender as práticas emergentes contemporâneas, Garland (2005) faz uma análise genealógica das mudanças ocorridas nas políticas do controle do delito nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, a qual aqui resumidamente apresentamos. Podemos dizer que a trajetória percorrida pelo sistema de controle do delito pode ser inicialmente localizada no inicio da Europa Moderna quando os soberanos prometiam

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paz e justiça aos seus súditos. Nesse momento, se atribuía à vontade soberana e a imposição de Sua lei era sinônima de controle do delito. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a atividade policial, o ajuizamento e o castigo dos delinquentes foram cada vez mais monopolizados pelo Estado. As disputas privadas e os danos infligidos aos indivíduos se reconstruíram como assuntos públicos a serem tratados por tribunais penais. As leis e os castigos saíram das mãos de autoridades seculares e espirituais para se concentrar nas novas instituições, profissionalizando o poder de polícia e regulamentando os castigos.

Na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, as novas agências da justiça penal estatal trabalhavam em paralelo aos mecanismos de vigilância e controle do delito da sociedade civil. Com o tempo, as forças policiais privadas se debilitaram e as queixas eram orientadas cada vez mais ao Estado e menos frequentemente os cidadãos organizavam respostas privadas. O aparato estatal moderno começa então a ser configurado e legitimado vez que culminou com a diminuição das taxas de criminalidade e violência até a metade do século XX, embora não se possa atribuir esses índices apenas às novas instituições penais, mas a outras forças e instâncias sociais, segundo Garland (2005).

Com raízes em 1890 e ápice nas décadas de 1950 e 1960 vimos desenvolver o welfarismo penal na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Sua filosofia básica consistia na crença de que as medidas penais deviam ser intervenções destinadas à reabilitação envolvendo práticas como individualização do tratamento, avaliação e classificação feitos por especialistas, investigação criminológica, condenações indeterminadas, dentre outras. Seus princípios tendiam à reprovação do uso do encarceramento, considerado como contraproducente do ponto de vista da correção individual, preferindo os regimes especializados de custódia. O ideal de reabilitação era, assim, o principio organizador do complexo penal-welfare que passou a atribuir um lugar central aos especialistas, tanto na execução do sistema quanto na elaboração de políticas públicas, o que possibilitou o desenvolvimento de uma disciplina criminológica nas Universidades.

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Os princípios do welfarismo penal baseavam-se em dois axiomas derivados da cultura política progressista do período: 1. considerava como algo evidente que a reforma social, junto com a afluência econômica, eventualmente reduziria a frequência do delito. O segundo axioma, também produto desse momento histórico especifico, era que o Estado é responsável pela assistência aos delinquentes tanto como de seu castigo e controle. O sujeito culpado tanto era um “delinquente” como um “cliente”. Mas se o delito era um problema social, as medidas individualizadas e correcionalistas fatalmente fracassariam, diziam os críticos.

Em meados da década de 1970, o welfarismo penal começou a sofrer ataques contra suas premissas e práticas que resultaram na re-configuração do campo do controle do delito. Um documento publicado pelo Grupo de Trabalho do Comitê de Serviços de Amigos Americanos, em 1971, considerava inconsistente, discriminatório, paternalista e hipócrita, dentre outros adjetivos negativos, a penologia progressista. Criticava, ainda, os pressupostos deterministas e positivistas que consideravam as violações à lei como sintomáticas de patologia individual. Assim, no inicio da década de 1970, novas teorias apresentavam o delito como forma de ação racional e portadora de sentido, sendo produto das relações de poder e não de patologia individual.

O desempoderamento da teoria correcionalista minou a credibilidade das instituições e proporcionou uma desmoralização do sistema de justiça penal alimentada pela sensação de fracasso devido às taxas de delito em crescimento nos anos setenta e oitenta. Observa-se também, nesse período, um aumento da população de risco e mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais. Esse contexto fez surgir novas formas de criminologia e uma nova agenda de controle do delito que desvalorizava a reabilitação e o correcionalismo.

Nesse novo contexto, as políticas penais do Estado de Bem-Estar Social se apresentavam como custosas e os contribuintes já não podiam/queriam pagá-las e as viam como indulgentes e contraproducentes. O delito passou a funcionar como justificativa para o desenvolvimento de um Estado disciplinador que o vê como um problema de falta de

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autocontrole social, próprio de personalidades anti-sociais ou de escolhas racionais, e que deve ser punido. A imagem do delinquente deixa de ser aquela do ofensor necessitado e passa a ser mais ameaçadora. A simpatia é direcionada para a vítima e para o público temeroso. A filosofia da “não intervenção radical”, e até do abolicionismo, que simbolizava o ideal progressista dos anos sessenta é agora alterada para a “tolerância zero” e focada nas “classes perigosas”, leia-se nos pobres que passam a ser considerados não merecedores.

Destarte, diferentemente das criminologias do Estado de bem-estar, estas novas criminologias veem o delito como algo próprio da interação social normal e explicável através de padrões motivacionais, o que tem gerado novos estilos de gestão e práticas de trabalho e uma sensação permanente de crise. Porém, nota-se ambivalência na adoção das estratégias do sistema de controle por parte das autoridades governamentais. A depender das circunstâncias, do tipo de delito ou de delinquente podem atuar reativando o velho mito do Estado soberano, gerando o surgimento de modalidades expressivas de enfrentamento, manifestando o sentimento público e toda a força da autoridade estatal.

Duas estratégias no atual sistema de controle são identificadas por Garland (2005, p. 237-239) “associações preventivas” – fazendo referência ao esforço de compartilhar a responsabilidade do controle do delito e de construir uma infra-estrutura de prevenção do delito cada vez mais fora do Estado – e “segregação punitiva”, estratégia que faz referência a nova confiança nas medidas, sobretudo nas políticas de encarceramento em massa e de tolerância mínima, desenhadas para castigar e excluir. A estratégia de segregação punitiva é caracterizada 1. por sua severidade, configurada como uma ação expressiva mais lógica que instrumental e que envolve longos períodos de privação de liberdade em cárceres sem comodidade, além de uma existência vigiada e estigmatizada para os egressos; 2. por ser popular e politizada, isto é, as políticas são formuladas por comitês de ações políticas e 3. para dar um lugar privilegiado às vitimas, invocando o sofrimento atual

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ou futuro dessas vitimas para justificar qualquer tipo de medida de repressão penal.

Ao analisar as instituições de controle do delito no Brasil, especialmente o sistema prisional, percebemos que nenhuma das abordagens se constituiu a tônica dominante.

2.2 A noção de poder em Foucault

Para falar do sistema punitivo é condição sine qua non nos referirmos a Foucault e a sua noção de poder que embasa grande parte dos estudos sobre castigo ou prisão.

Focault (1999), diferentemente das teorias que até então focavam o poder em termos centrais, de constituição, soberania ou econômicos e de aparelho do Estado, chama a atenção para o que chama de “malha fina” da rede do poder. Considera que a análise da engrenagem do poder das instituições é fundamental para se compreender a sua concretude. Os mecanismos de poder referidos por Foucault são aqueles capilares, que se inserem no cotidiano em suas ações e discursos (GARLAND, 1999). E para seu estudo, o autor adverte que algumas precauções metodológicas devem ser observadas a fim de que o pesquisador não caia na noção de dominação-sujeição ao se analisar o poder. Uma delas foi particularmente útil para o trabalho desenvolvido nessa investigação (FOUCAULT, 1999, p. 102):

Terceira precaução metodológica: não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder − desde que não seja considerado de muito longe − não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas

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suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando−os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.

Foucault (1999, p. 119) evidencia outros aspectos do poder. Um deles diz respeito ao custo do poder quando diz que o “poder não se exerce sem que se custe alguma coisa” e que pode ser observado cotidianamente nas relações estabelecidas entre staff e população carcerária. Outro aspecto é a desconstrução da idéia de verticalidade de poder que implicaria em dominação daqueles que estão na base. Foucault (1999, p. 122) aponta que o “ápice e os elementos inferiores da hierarquia estão em uma relação de apoio e de condicionamento recíprocos; eles se sustentam” e estas táticas ou tecnologias de poder são “inventadas, organizadas a partir de condições locais e de urgências particulares”.

Esses aspectos explicam, inicialmente, a dificuldade de se estabelecer políticas ou programas específicos para a área penitenciária. Segundo Foucault, sempre existem formas de escapar às malhas da rede e as resistências imperam; os internos não são tabulas rasas ou pessoas a serem reformados para que possam voltar à produção.

Garland (1999), ao dialogar com Foucault, considera que, embora se exagere a sua originalidade e singularidade pois vários de seus temas já tinham sido desenvolvidos por Nietzsche e Weber, há que se reconhecer o foco nos aspectos internos do funcionamento das instituições e a concentração nas tecnologias reais de poder e evita qualquer sugestão de

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uma totalidade coerente, analisável por modelos estruturais. Os limites da teoria estariam no enfoque perspectivo, ao observar os fenômenos penais desde o ponto de vista poder-conhecimento-corpo, ignorando qualquer outro ângulo de interpretação ou ponto de vista e excluindo outras teorias. Considera que isso contrapõe ao que ele pretendia com seu trabalho pois desaprovava uma teoria geral do castigo.

Mas, certo é que, na prisão, é visível como as malhas do cotidiano, seus discursos e suas estratégias asseguram seu funcionamento e permanência. Seguimos as recomendações de Foucault e baseados nos pressupostos do sistema de controle apontados por Garland, apresentamos os discursos e as práticas cotidianas para que possamos compreender, de dentro, as malhas que sustentam essa instituição cuja abolição, morte ou reformulação foram sempre vaticinadas mas nunca efetivamente cumpridas.

4 Dos caminhos metodológicos

O trabalho ora apresentado está em andamento em uma Penitenciária de Grande Porte no Estado da Bahia. Como tal, é considerada de segurança máxima e destina-se ao recolhimento de condenados à pena de reclusão em regime fechado. Sua capacidade total, teoricamente, é de 1402 internos e sua população atual2 é de 1458 pessoas. Essa Unidade é composta de cinco pavilhões e acolhe sentenciados da Capital e de cidades do interior do Estado não atendidas por unidades prisionais regionais. Em cada pavilhão existe o que os internos chamam de Linha de Frente e que, até recentemente, o staff chamava de Comissão. Cada Comissão tem um líder, atualmente denominado, interlocutor. Os internos, por sua vez, o chamam de patrão.

A metodologia empregada é a etnográfica através de observação participante. Técnicas como diários de campo, entrevistas, pesquisa documental e registro de narrativas são também utilizadas com o intuito

2 Dados atualizados em 14/09/2008. A capacidade é teórica, pois um dos pavilhões encontra-se em processo de desativação por sua estrutura ter sido condenada recentemente. Sua capacidade real ainda não foi atualizada no site da Secretaria de Justiça.

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de compor um mosaico que possa, minimamente, dar uma idéia de como se entremeia os fios dos quais são tecidos a teia que envolve as relações de poder no cotidiano prisional.

O clima de uma Unidade Prisional é sempre de incerteza e instabilidade e, certamente, esse aspecto dificulta em muito o trabalho de pesquisa e compreensão do fenômeno a ser estudado. As relações estabelecidas através de jogos de poder e força, de ambos os lados, do “lugar do ladrão” (como os autores de delitos privados de liberdade se auto-referenciam) – galerias e pátio – e do lugar dos funcionários e policiais – “do lado de cá” – podem ser quase que tocadas, de tão concretas o que dificulta o estabelecimento de relações de confiança.

Nesse tempo do trabalho, houve mudanças na gestão da Unidade e remoção de parte do staff que contribuía para facilitar acessos, indicar participantes ou apresentar dados úteis para a pesquisa. Várias incursões policiais resultantes de operações para desarticular quadrilhas dentro da Unidade também criaram um clima de insegurança e temor pois a lei do silencio e os demais controles tornam-se mais rígidos nessas ocasiões, impedindo, inclusive, a saída dos internos para outros Setores da Unidade. Além disso, o campo nem sempre está à disposição do pesquisador. Por vezes, deparamo-nos com ausência de instalações adequadas para o trabalho, revistas gerais, falta de Agentes para a condução de internos e também com os próprios limites de uma observação participante que pode nos colocar em papéis ora facilitadores ora dificultadores. E, além do mais, o tempo em uma Unidade Prisional se revela restrito em função dos horários pré-estabelecidos. Por mais que coloquemo-nos à disposição em horários diferenciados, existe o tempo da rotina, dos procedimentos, das visitas... Paciência e persistência são instrumentos fundamentais.

O trabalho a que se refere esse artigo começou a ser desenvolvido, de forma sistematizada, a partir de outubro de 2007, com previsão de término para o trabalho de campo em dezembro de 2008. Os dados aqui apresentados referem-se ao período de outubro/2007 a junho/2008.

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5 Dos jogos de Poder

Ao se adentrar numa Unidade Prisional, não se sabe ao certo, de antemão, o que iremos encontrar. Apesar da experiência que acumulamos na área, cada Unidade tem uma personalidade própria e apresenta modos próprios de inter-relação, tanto entre o staff quanto entre os internos e, especialmente, entre o staff e os internos.

A questão inicial que norteia nosso trabalho está relacionada ao modelo de sistema de controle que pode ser identificado no contexto em análise que, em ultima instância, irá indicar como é a dinâmica do poder, como se apresenta e com quais personagens o poder ora se encontra.

À observação inicial, o visitante menos acostumado com as rotinas existentes pode ficar confuso ao tentar definir como se estabelecem as relações de poder e quais as estratégias de controle existentes. Quem, afinal, manda ali? A tônica do trabalho aqui desenvolvido está na ressocialização ou na punição? O interno sente-se assistido pelo Estado? Existem programas específicos? Pode-se perguntar aquele visitante desavisado.

5.1 As estratégias de controle

Podemos analisar as estratégias de controle do staff em relação à população carcerária e aquelas que essa população aplica a si próprio, isto é, como se auto-governam. Ao analisar o cotidiano desses grupos percebemos que essas estratégias estão intimamente relacionadas e são mutuamente interdependentes.

Dentro do Pavilhão, quem detém o poder e o controle sãos os líderes. O staff não tem legitimidade unânime da população para intervir e usar de estratégias de controle embora se cobre que exerça o papel que lhe cabe. As falas de dois internos ilustram essa sutil diferença e delimita os papeis e o poder de cada ator dentro da prisão:

Eu ainda não entendo direito esse lado do Agente intervir. Porque, queira ou não, dentro do Sistema, tem que ter uma

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pessoa que comande aquela população [o líder]. Não é, dentro do Sistema, ter a polícia pra comandar a população; que aí o Sistema fica desgovernado. Tem que ter alguém para massa falar, pedir algo. Aí ele vai ver se dá, vem falar com o Diretor, se o Diretor aceitar, aí ele tem o livre arbítrio pra fazer o que ele quiser. Mas lá dentro a Policia [os agentes] não interfere em nada. Quem manda é o “home” [o líder]. A policia manda daqui pra fora (interno, 38 anos).

A Segurança... eles deram muito espaço, muita facilidade... Como um preso pode ter a chave da própria cela? [referindo-se a um episódio de repercussão envolvendo um grande líder da Unidade] Mesmo ele sendo linha de frente da cadeia, a Segurança é quem dá as regra (Interno, 32 anos).

Nessas falas, percebemos que os internos delimitam o espaço e a função de cada um dos grupos de atores existentes. Os narradores têm consciência dos limites do papel de cada um e dos excessos cometidos, embora possamos perceber, na segunda fala, críticas que camuflam sentimentos de injustiça e oposicionismo em relação às regalias dos líderes. Mas, como é instituída essa delimitação de papeis? Um Agente Penitenciário explica esse processo de forma bem clara:

O que acontece é o seguinte: geralmente esse tipo de organização parte do crime ou do delito que tem a maior repercussão, que tem o maior grau de inteligência, por exemplo, assaltante de banco ou um sequestrador. Quando chegam nas Unidades Prisionais, eles possuem um certo respeito fora; tem influências lá fora com alguns parceiros, com algumas pessoas do crime. Quando chegam a Unidade Prisional, essas relações se estreitam cada vez mais por que eles precisam, eles têm essa necessidade de estabelecer diversos grupos dentro da Unidade Prisional para proteção, caso seu grupo ou ele próprio venha a sofrer alguma represália lá na frente. Geralmente esses grupos começam a se fortalecer. Vamos dizer assim: eles levam um certo prestigio que eles já têm no mundo do crime e trazem isso para a Unidade prisional. [...] Aqui encontram os “fariseus”, pessoas que cometeram delitos simples, desprovidos, a família abandona, não tem trabalho... Ai o que acontece? E estas pessoas, os fariseus,

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ficavam abandonados desrespeitados nas Unidades Prisionais. Quando começam a servir, saem do anonimato e vão para a frente da batalha. Começam a participar dentro das Unidades, como a gente chama, de “soldados” e, esse grupo cada vez mais se fortalece. A Unidade Prisional sempre tem um cabeça, mas o cabeça precisa de seus tentáculos e esses tentáculos são os fariseus; eles o colocam na frente e ficam por trás, como se fosse a guerra, onde o verdadeiro general não vai para o campo de batalha, ele só fica fazendo as articulações dele, as estratégias, e coloca o grupo na frente. E os fariseus se submetem por uma questão de força, por uma questão de ameaça, de sobrevivência... Ai o que acontece? Aparece uma oportunidade o cara nunca teve mulher dentro da Unidade Prisional, o cara nunca teve dinheiro para comprar o que gosta de fumar, o cara nunca teve dinheiro para comprar uma coca-cola, um refrigerante, uma merenda, possivelmente drogas e ai o que o Cabeça faz? Arregimenta. No lugar de afastar esse “fariseu” ele traz esse “fariseu”, que é soldado hoje, para perto dele.

Diversos aspectos podem ser discutidos a partir da fala desse Agente. Um deles é a configuração do poder. Como diz Foucault, o poder funciona em cadeia e não está circunscrito a uma pessoa. Os “soldados” são transmissores do poder exercido nas relações cotidianas a serviço do Líder que tem a exata noção de como o poder circula e trabalha buscando estratégias para delimitá-lo e fortalecê-lo. A saída do anonimato e da invisibilidade proporcionada pela passagem do papel de “fariseu” para o de “soldado”, como aponta a fala do Agente, retrata um outro lado do aspecto do poder. Ser, de algum modo, associado ao líder retira o interno do anonimato e o investe de um poder e “respeito” que funcionam como ingredientes reforçadores nesse caldo de cultura. Os soldados encontram aí elementos que lhe dão uma identidade que mereça ser cultivada e preservada pela satisfação egoica recém adquirida.

O poder econômico, ou a falta dele, também especifica quais os possíveis lugares de cada um e permeia grande parte dos processos observados na prisão. Os “fariseus” são alvos de assédio e se tornam vulneráveis pela falta de assistência do Estado: por não

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terem visitas ou por terem familiares muito pobres podem passar por muitas necessidades que vão desde a falta de materiais de higiene pessoal até a deficiência na assistência jurídica, médica e psicossocial. E essas necessidades são satisfeitas pelos lideres e não pelo Estado. E o Estado tem clara consciência e está a par desses procedimentos pois os líderes são institucionalizados e não surgem à revelia da Administração. Por vezes, são convidados para tal mister e pactos são feitos com o objetivo de “não se ter problemas”, isto é, os líderes “seguram” os problemas que venham a existir em cada pavilhão em troca de não interferência na gestão interna e na concessão de algumas regalias. Um outro excerto de entrevista feita com um líder de pavilhão, igualmente, nos fornece detalhes dos meios utilizados pelas lideranças para suprir as necessidades da população carcerária, cujo perfil é caracterizado por pessoas pobres, bem como nos indica como os pactos são feitos:

Há quatro anos atrás o Corpo era de um jeito. Aí teve uma mudança, que os responsáveis de lá saíram. A Segurança tirou porque era muito violento. Aí a Segurança me convidou e comigo foi mais cinco; aí eu aceitei porque muita coisa eu via: muito estorquimento, muita oprimissão; então junto com meus colegas eu procurei ver se fazia uma coisa diferente. Tinha muita morte... Nois ta ali dentro de uma cela, vendo do outro lado uma pessoa morrendo, aí aquela semana pra nois não presta mais. Antigamente quando alguém chegava no Pavilhão, se procurava saber se ele tinha inimigo, se tinha dinheiro pra comprar coisa lá dentro, droga, esses negócios. Se fosse barão, ia pro pátio logo; mas se não fosse, era até discriminado. E agora não. A única coisa que nois procura saber é se quer fazer jejum, quer fazer oração, tem que querer. Se não quiser, sai. Se quiser, entra. Então ele tem que se adaptar a outro regime de cadeia. Lá não tem discussão, xingamento, não pode... Dia de visita tem que ter respeito, mais ainda. Nois viu que lá mudou totalmente dos outros Pavilhão. [...] É uma coisa até que a Secretaria já tentou fazer, não conseguiu e lá com a união nós conseguimos. Porque o Estado quando vem fazer uma coisa, vem para mostrar pra sociedade uma coisa que ele não ta fazendo. Chega ali e mostra uma coisa mas lá dentro, geralmente, não está fazendo aquilo.

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A gente queria que mostrasse e fizesse mesmo; não vim só mostrar pra imprensa e, por isso, muitos [dos internos] não quer contribuir pra nada. Sabendo que é por força de vontade de cada um, aí apóia. Muitos projetos já vi isso acontecer: o trabalho do preso, o projeto Futura, Menos Presos Mais Cidadãos... Aí fica no papel; na prática, não acontece. [...] Lá, 42 presos teve semi-aberto. Só dois não voltaram. A gente, nesse reunião, dá conselho. Por exemplo: tinha um cara que saiu e um mês depois foi morto no interior. Aí o irmão dele ia sair pra matar o cara que matou o irmão dele. Aí nós conversamos, ele saiu, voltou; agora já saiu de novo e está na casa da mãe dele. Ontem eu falei com a mãe dele, aí ela disse que segunda-feira ele retorna. Então os que nois tava orientando a se afastar, realmente ta acontecendo. Aí, o que a Policia não ta conseguindo, a Secretaria não ta conseguindo, o Estado, não ta conseguindo e lá dentro a gente ta conseguindo fazer isso. Um deles de Ilhéus até botou meu nome agradecendo numa rádio; aí um irmão desceu pra me avisar. Isso é tipo o que a Assistente Social tinha que fazer e não faz: acompanhando, incentivando pro interno voltar; sair e não fazer nada errado; horário de ta em casa... [...] Vez ou outra tem uma confusão. A que aconteceu ontem [preso que foi espancado] já vinha há meses. Antes de acontecer nois foi a Segurança, conversei com o Diretor... Era um rapaz que não concordava com as mudanças no Pavilhão. [...] Na verdade ele queria tomar o lugar aí ele tomou um bocado de cacetada lá. Não tem como evitar 100% a violência. Mas 90%, já conseguimos. As pessoas do interior na tem dinheiro pra viajar aí saí e bate uma carteira pra conseguir dinheiro e vai preso de novo. Então a gente ajuda na alimentação da família, no transporte, remédio, conselho... Quando alguém ta precisando de ajuda, é difícil mandar pro Psicólogo então o que nós faz; a gente coloca outro cristão pra ajudar ele. [...] Acho que o Sistema – se não tiver a orientação como a gente tem lá – piora as pessoas, em geral. Porque num lugar como esse é a mesma coisa de chegar,em um depósito e colocar aquele material velho ali e trancar. Só isso. Comida, alimentação, tratamento tudo é precário. Por isso que nós tentamos melhorar o ambiente (Interno, 45 anos).

Vemos que o pavilhão se auto-gerencia e supre necessidades que não são assistidas pelo Estado. Mas, percebemos também, que para manutenção do status quo e da configuração de poder, algumas tentativas

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de assistência por parte do Estado sofrem boicotes da população carcerária (leia-se dos líderes) pois a falta dessa assistência serve como lócus de fortalecimento da influência exercida pelas lideranças. O papel do líder, porém, é ambivalente: por vezes, controla a situação dentro dos pavilhões mas também são os autores da violência física existente. Conforme diz um interno: “Os que mandam aí, qualquer coisa é paulada... os que sofrem mais são aqueles que estão envolvidos com drogas, dívidas, aqueles que não paga na data certa; a violência é demais”. De fato, a tolerância às lideranças deve-se à fragilidade dos sistemas de controle do Estado que precisa se associar com a própria população carcerária, além dos outros atores externos, para que possa geri-la de alguma forma.

Percebemos, ainda, na fala do líder de pavilhão que um dos pactos principais diz respeito ao controle da violência. Se um pavilhão começa a ficar muito violento, a administração usa um dos poucos mecanismos de controle que tem nas mãos: a transferência do líder e sua Comissão, vulgarmente chamado de “bonde”. A violência interfere na imagem do Sistema e, desde que a violência esteja controlada, as demais ocorrências podem ser administradas com maior flexibilidade. A ocorrência desses pactos é, relativamente, recente no sistema penitenciário baiano. Ao buscar sua gênese, um interno esclarece:

A mudança foi com a ajuda da direção porque de 2003 pra cá, a direção da Segurança era do seu X que teve uma instrução de um preso. E devido a idéia que o preso deu a ele, ele chamou os preso pro acerto: “se começar a matar, começar a ter fuga, eu vou pegar vocês e mando pra outro lugar. Faça o que vocês quiserem lá dentro mas não façam na minha vista”. Eu mesmo, tentei fugir e fui lá pra Jequié, depois fui pra Valença; fiquei longe da minha família. Tudo consequência do que eu fiz (Interno, 39 anos).

E, após a Administração perceber que a transferência era a punição mais temida pelos internos, começou a utiliza-la nas situações limites, não controláveis pelos outros poucos meios disponíveis:

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Já vi muita barbaridade na cadeia, tanto do lado do preso, como do lado dos policiais. Às vezes por não ter acordo, por eles querer cortar a regalia do preso e o preso querer reivindicar na força... Preso não vai ter força... Quando acontece isso, [de reivindicar na força] acontece de perder vida, outros ser transferido... (Interno, 37 anos).

A questão da desigualdade da “força” e a consciência do que se pode perder numa situação de crise no Sistema, que também aparece nesse trecho, parece ter sido realmente o discurso utilizado para se buscar a negociação e evitar situações de maior violência na prisão. Embora, no momento de crise, a força do preso pareça ser determinante por conta de repercussão, as consequências desse processo ficam submetidas a uma força da qual eles não têm controle [transferências, violências cotidianas e perdas de regalias] e que tomam uma proporção maior ao longo do tempo.

Assim, os líderes se utilizam de controles internos para evitar a violência e para que possa manter sua posição, evitando, deste modo, os controles externos. Para tanto, editam normas e, socializam procedimentos. As regras de convivência dentro dos pavilhões são rígidas e a quebra das normas implica em sanções que vão da segregação em cela, passando pelo espancamento até a execução sumária. “As normas tem que ser seguidas sem questionamentos”, ouvimos dizer com frequência. Um interno que retornou para o Sistema após as mudanças decorrentes dos pactos estabelecidos, descreve esse processo:

Aí quando eu voltei, voltei encontrando um Sistema diferente: a gente não podia fazer rebelião, já não podia fugir. E algumas regras que foi implantada no Sistema devido algumas consequências que os presos tinham sofrido. Então, se tem uma liderança aqui que faz essas coisas na cadeia, ela vai transferido pra outro lugar. Então, o que existiu foi um acerto. Não existe morte na cadeia, não existe fuga, não existe rebelião. E a pessoa ia tirar a cadeia dele. Então, quando eu cheguei na cadeia, o pessoal me chamou e disse que não podia colocar arma em cadeia mais, não pode fugir pela frente mais; passou pelo buraco você pula o muro...

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E aí eu tive que respeitar porque não podia quebrar as regra do comando. Então, graças a Deus, parou de existir assalto na cadeia; ele não permite, a liderança da cadeia; porque a realidade é essa: se não existir uma liderança na cadeia, existe crime. Porque antigamente era assim... A gente podia fazer qualquer coisa na cadeia... assaltar, matar... existia varias quadrilha. Hoje não. Hoje tem um comando que procura um modo da pessoa viver lá dentro pra cumprir sua pena e sair. Às vezes faz isso de maneira errada, mas é o crime. É uma convivência que o próprio governo criou. [...] Hoje, como ta, a pessoa tem que aprender um modo de conviver ali dentro sem tirar sangue. Porque se eu apronto na cadeia, a diretoria, a segurança da cadeia dá bonde pra Serrinha, pra UED, Juazeiro... Aí tem que seguir as regra, porque se não seguir, sofre as consequência; se tentar algo vai tomar umas porrada e passar o portão para não ter problema para os outros. A última morte que teve foi no 4, de Jorge. Devido ele ter matado a mulher... a frente já tinha chamado ele e falou pra ele que não era pra fazer isso. Aí ele fez, os cara foi e matou. Então, ele quebrou uma regra da cadeia (Interno, 38 anos)

Esse relato revela as mudanças ocorridas após os pactos e como o interno se sente diante dessa nova realidade. Mas como, realmente, os líderes são vistos pelos demais? Entre a massa carcerária, há os que agradecem e veneram o papel exercido pela liderança; há os que não concebem ser ordenados por outros presos, e ainda, aqueles que querem tomar o lugar do líder. As lideranças têm consciência de que não há uma submissão completa ao seu comando e encontram situações cotidianas de conflitos e tentativas de “tomadas” do poder que se dão através da demonstração de força física. Um dos líderes revela:

Lá no Pavilhão tem 180 pessoas que andam junto com nóis, mas dessas 180 mesmo pode ter alguém que ta querendo tomar o lugar. Hoje somos dois. Ontem eu botei mais seis pra ir estudando o proceder de um “frente”, para seguir aquele regime que a gente tem lá. Eu vou preparando assim: quando tem uma coisa pra resolver, ao invés de eu ir, eu mando eles e fico à parte pra ver como vão resolver. Esse rapaz que ta lá comigo, ele foi feito assim. Aí depois foi chamado e apresentado como frente. Mas quando tava em três, esse que saiu tava querendo tomar o

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meu lugar. Já tava com um grupo de vinte e oito pessoas pra me pegar e me tirar de lá. Aí não conseguiu. Tentou tomar à força quando eu tava sentado almoçando. Aí um colega que tava atrás de mim percebeu; aí antes de fazer o que ele ia fazer avisou e a gente pegou. Ele tava com uma faca... (Interno, 45 anos).

A cobiça pela liderança reside nas regalias que lhe são permitidas e, principalmente, na possibilidade de obter ganhos monetários na função através da venda de diversos produtos e mercadorias que não estão disponíveis facilmente nos pavilhões. Dentro dos pactos informais estabelecidos, ao líder é permitido, por exemplo, ter uma lista de visitantes própria, fora dos procedimentos normais de controle; ter direito ao “sereno”, isto é, ficar até mais tarde no pátio; ficar em cela individual; ter fácil acesso à Segurança e à Direção; não pegar fila da refeição; cobrar valores por serviços feitos, dentre outros. É o líder quem determina, inclusive, quem pode ou não comercializar no pavilhão. O líder, pode, ainda, receber parte do que é comercializado pelos demais internos.

Notamos, também, nesse trecho, como os líderes podem ser preparados dentro do Sistema. Normalmente são recrutados entre os que apresentam características de assertividade, lealdade e agressividade.

Diante dessa organização e dos pactos existentes, cabe, agora, pensar qual a percepção que o staff tem em relação ao seu papel dentro de uma unidade prisional. Os internos se auto-gerenciam e delimitam, como já dito, os papéis de cada grupo de atores; as políticas de controle não são formalizadas e nem sempre estão claras e, além disso, nem sempre se sabe ao certo com quem está o poder naquele momento. Dentro de uma unidade prisional como essa o poder circula diuturnamente a depender dos acontecimentos intra e extra-muros. Um servidor compartilha seu sentimento:

Como servidor, é bastante complicado porque cada vez mais você fica perdido ao ver grupos dentro de Unidades como um poder paralelo. Eu me sinto, vamos dizer assim, um pouco refém do sistema porque eu não tenho poder de política, e mesmo assim que eu tenha eu seria uma só pessoa em relação ao grupo

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da organização, do tráfico, dos delinquentes, das pessoas que estão no crime, no delito. Não que eu esteja coagido, muito pelo contrário, [...] Mas eles acham que o agente penitenciário é o “polícia” dentro da Unidade Prisional.

E essa associação do Agente com a Polícia – que acirra os ânimos nos relacionamentos cotidianos – fica mais evidente quando o Estado, nas tentativas de demonstrar poder e controle, investe, de algum modo, contra a população carcerária. Em uma recente investida ocorrida dentro da unidade prisional contra um dos líderes de um pavilhão, quando foi encontrada com grande quantidade de dinheiro, drogas e armas, percebemos o aumento da tensão existente entre os atores, assim como a desorganização das forças e a desestabilização dos pactos existentes. Um extrato do diário de campo demonstra como se deu esse momento:

Fico sabendo, por um e outro, que foram encontrados dinheiro (R$ 280.000,00), droga e armas na cela do líder do pavilhão X. Houve uma ação inopinada da Polícia Federal, através de mandato judicial, às seis horas da manhã, exclusivamente na cela desse líder a qual foi encontrada fechada com uma tramela por dentro, artifício comum em algumas celas e sempre quebradas nos “baculejos” mas sempre recolocadas pelos internos. Vou à Segurança e vejo quando passam quatro internos para conversarem com a Direção, o Coordenador de Segurança e o Comandante da Guarda Militar. Percebo que passam empoderados diante de todos que ali aguardavam o desenrolar dos acontecimentos. Minutos depois, os internos saem da sala e se dirigem para o interior do pavilhão. Atrás deles, vem o Coordenador de Segurança e solicita aos Agentes presentes que desçam para abrir as celas pois os internos garantiram que não vai haver nada contra o staff. Ele adentra no Corpo seguido de outros Agentes. Vendo que a situação se normaliza, retorno para a administração e aguardo o Diretor para tomar ciência dos procedimentos a serem adotados.

Como vimos, nas situações onde os arranjos são desfeitos, surge a insegurança e a incerteza de como as relações estão estabelecidas bem como sobre as retaliações que podem advir contra o staff. Notamos,

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assim, como essa insegurança imobiliza o staff que, vendo-se sem suporte das políticas de Estado, não se sentem confortáveis em exercer qualquer tipo de controle.

5 Conclusão

Como em um jogo de xadrez, numa unidade prisional as peças se movimentam em função do movimento do outro e das jogadas futuras. O poder se alterna e, ora a administração está em “xeque”, ora a população carcerária encontra-se “encurralada” conforme dizem, isto é, sem direitos a muitas regalias e submetidos a um poder coercitivo que minam os arranjos cotidianos.

Diante desse retrato, não se visualiza uma política de controle do delito, quer nos moldes welfaristas quer nos moldes atuais de rigidez e punição. Os princípios do welfarismo que priorizavam a reforma social e a responsabilidade do Estado pela assistência daqueles que rompem com as normas socialmente estabelecidas, não são encontradas na instituição prisão. A assistência fornecida pelo Estado é infinitamente menor do que aquela fornecida pelos líderes que, inclusive, se utilizam dessa lacuna para perpetuar seu poder. Do mesmo modo, as decisões relacionadas ao Sistema Prisional não se baseiam nas opiniões dos especialistas ou em um programa específico; baseiam-se na resposta social que será dada com uma ou outra medida e em sua repercussão política.

Por outro lado, quando os pactos são realizados entre Administração e população carcerária, algumas regalias e afrouxamentos são permitidos desde que a violência esteja sob controle. Deste modo, não encontramos também claramente as estratégias da segregação punitiva. Embora seja possível identificar “associações preventivas”, nesse caso, com a própria população prisional, não é razoável afirmar que exista aqui um Sistema caracterizado por sua severidade, configurada por ações lógicas. As ações instrumentais são mais perceptíveis e a vigilância é mínima.

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Não perdemos de vista, obviamente, que existem outras Unidades Prisionais onde podem ser observadas uma tônica maior da segregação, como no caso das unidades de regime diferenciado. O que chama atenção, todavia, é que essas unidades (embora não seja o foco do nosso estudo), aos poucos, também se dobram aos jogos de poder, sendo já possível encontrar, dentro delas, os arranjos que burlam o poder estabelecido e abrem espaços para a negociação e os pactos.

Parece-nos, assim, que as políticas de controle, no que concerne a área prisional, podem ser definidas como políticas de emergência que ficam a mercê da pressão exercida pela própria população interna, pela mídia e pela população extra-muros e se prestam a dar uma resposta a situações especificas, de forma paliativa. O sistema de controle prisional parece-nos, assim, revestido de imediaticidade e mediaticidade, caracterizando-se como inseguro, instável e perdulário posto que, por vezes, programas são defendidos, recursos destinados mas não aplicados de forma eficiente e racional.

Referências

ALVAREZ, M. C. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 168-176, jan./mar. 2004.

FOUCAULT, M. microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

GARLAND, D. Castigo y sociedad moderna. Un estudio de teoría social. Madri: Sieglo Veintuno Editores, 1999.

______. la cultura del controle. Crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Gedisa, 2005.

Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Sociedade do risco e moderno Direito Penal: tendências da política criminal no brasil após a Constituição de 1988

Carolina Porto Nunes1

Resumo: Demonstrada a relação entre Direito, Democracia e política criminal, analisa-se as tendências do Direito Penal Brasileiro após a Constituição de 1988 oscilantes entre (i) o garantismo do regime democrático e (ii) o Direito Penal do Inimigo traduzido pelo endurecimento das penas, tipificação de condutas e interferência midiática neste processo, fenômenos influenciados pelo conceito moderno de sociedade do risco. Investiga-se estudos dogmáticos e não dogmáticos, comparando políticas criminais e comprovando a tendência de adotar-se, no Brasil, uma política não democrática, rígida e inconstitucional.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Política criminal. Cultura do medo. Direito Penal do Inimigo.

Societé du risque et moderne Droit Pénal:tendances de la politique criminelle au brésil aprés la Constitution de 1988

Résumé: Après avoir démontré la relation entre droit, démocratie et politique criminelle, on analyse les tendances du droit pénal brésilien après la Constitution Federél de 1988, celles-ci oscillant entre (i) l’assurance du régime démocratique et (ii) le droit pénal de l’ennemi, celui traduit par le durcissement des peines, l’augmentation des conduites criminalisées et l’interférence des médias dans 1 Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 213-235 2009

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ce processus, un phénomène caracterisé par le concept moderne de société du risque. On examine des études dogmaqiques et non dogmatiques, en comparant des politiques sur la criminalité et en vérifiant la tendance à adopter, au Brésil, une politique anti-démocratique, rigide et inconstitutionnelle.

mots-clés: Inconstitutionnalité. Politique criminelle. Culture de la peur. Droit pénal de l’ennemi.

Introdução

O frequente bombardeio da imprensa, em especial da mídia televisiva, acerca de acontecimentos delitivos cometidos por pessoas de baixa renda tem levantado questões importantes na sociedade brasileira. Como demonstram os fatos, sempre que crimes bárbaros são cometidos e amplamente noticiados, a população sente-se compelida a pressionar o Poder Legislativo para um tratamento mais rígido em relação ao criminoso (especialmente o rotulado/etiquetado), conduzindo a política criminal nacional para o Direito Penal do Inimigo. A título de ilustração, o amplamente noticiado crime contra a vida do impúbere João Hélio, no Rio de Janeiro (2007), cometido por quatro indiciados por homicídio doloso, dentre os quais um adolescente, fez com que a opinião pública se inclinasse a favor da redução da maioridade penal, hipótese que agride os direitos constitucionais do ser humano em desenvolvimento para quem as políticas penais não podem ser essencialmente punitivas, mas acima de tudo educacionais e ressocializantes.

Este fenômeno esconde a ideologia amparada no capitalismo cujo objetivo aplicado é ampliar na sociedade mundial a idéia de carência de segurança, a necessidade de rigidez estatal e a busca de segurança privada. A condução das discussões e os rumos do Direito Penal têm alertado os estudiosos do Direito e das Ciências Sociais. A preocupação não é inédita, posto que vasta bibliografia acerca do tema já foi construída por pesquisadores brasileiros e outros estudiosos. Guimarães (2006), no artigo El caso Minas Gerais: de la atrofia del Estado

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Social a la maximización del Estado Penal, demonstra como a cultura do medo é responsável diretamente pela capitalização do Direito Penal, criando uma verdadeira indústria do medo alimentada por uma mídia comprometida, pela privatização de serviços dentro dos presídios e pelo aumento de empresas de segurança particular. Machado (2005) apresenta um estudo profundo sobre as origens da sociedade do risco e como este conceito tem conduzido legislações em diversos Estados à flexibilização dos instrumentos dogmáticos e ao sacrifício dos pressupostos clássicos e garantias individuais como tentativa de adaptar o Direito Penal ao controle dos novos fenômenos do risco.

Entretanto, essas medidas são caracterizadas por uma política criminal equivocada e a construção da política criminal vigente fere de morte os princípios constitucionais, passando por cima de direitos fundamentais historicamente conquistados. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), por exemplo, destoa das garantias constitucionais de que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante, de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito (a decisão pela medida é administrativa), de que não haverá no sistema penas cruéis e de que ao preso será assegurada a integridade física, direitos estes insertos no texto constitucional, art. 5º. Em contrapartida, o ainda tímido movimento garantista, fortemente presente na douta jurisprudência do Rio Grande do Sul, procura opor-se ao sistema operante e apresentar uma alternativa verdadeiramente democrática, constitucional e efetiva.

Apontando-se as alterações na legislação penal após a instituição formal de uma república democrática, pretende-se demonstrar o retrocesso material a que se submete a Ciência Penal sempre que os riscos se tornam mais evidentes, enrijecendo um sistema que, constitucionalmente, deveria ser de prestação social. Para isso, buscar-se-á explicar o que é uma sociedade de risco e suas origens históricas, a forma como este fenômeno é explorado pela lógica capitalista e como os Três Poderes contribuem para a consolidação desta situação de extremo caos e agonia social. Alternativamente, demonstrar-se-á

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também como políticas públicas aliadas ao Direito Penal Garantista podem contribuir para a materialização do Estado de prestação social e da função ressocializante, retributiva e preventiva do Direito Penal, através de penas alternativas e da consolidação do Direito Penal Liberal ultima ratio.

Direito Penal Clássico

O Direito Penal Liberal, de inspiração iluminista, adquiriu status de Ciência no Século das Luzes (XVIII) nas lições de Montesquieu e Beccaria, adotando-se uma tutela de direitos subjetivos contra arbitrariedades estatais, limitando e equilibrando o uso do jus puniendi. Desde então foi adotado um valor-princípio de suma significância, posto que dele emanam todos os demais direitos individuais: a dignidade da pessoa humana. Alicerçado neste princípio, este modelo de política criminal e seu sistema jurídico caracterizam-se pela (i) fragmentariedade, (ii) subsidiariedade e (iii) intervenção mínima. Significa dizer que o Direito Penal só tutela bens penalmente relevantes, i. e., apenas quando se configurar uma autêntica violação ao bem jurídico é que se recorrerá ao jus puniendi. Implica em que sejam, o Direito Penal e a privação da liberdade, a última alternativa para a tutela de bens e para o controle social. O bem jurídico penalmente protegido há que ter seus contornos bem definidos, sendo certo, escrito e estrito, funcionando como limite à ampla criminalização de condutas. Assim, penalmente relevante será a conduta que atente contra a ordem social e a moral pública. Neste sentido:

Unicamente a ofensa intolerável às liberdades asseguradas pelo contrato social é a que justifica a intervenção penal na liberdade humana (rectius: é a que pode ser considerada infração penal propriamente dita). Por outra parte, é absolutamente imprescindível que o poder estatal seja delimitado estritamente e que as múltiplas formas de sua ingerência na liberdade individual sejam delimitadas estritamente e claramente descritas na lei penal – lex certa ou princípio da taxatividade (GOMES, 2005 apud ROCHA, 2005, p. 2).

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O Direito penal clássico é direito público, uma vez que é manifestação do monopólio estatal que visa à proteção dos direitos subjetivos dos indivíduos. Aparece de forma indissociável ao princípio da legalidade como principal garantia do cidadão contra possíveis arbitrariedades do Estado. Teoricamente, tem cunho preventivo geral negativo, inibindo coativamente comportamentos não desejados pelo direito. Aliado aos fins preventivos gerais, os indivíduos infratores teriam a resposta de acordo com sua conduta, recebendo a sanção na medida do descumprimento do pacto social. Finalmente, por tratar-se de uma democracia e de um Estado de Direito de prestação positiva, seu papel principal é ressocializar o infrator para que o pacto social seja restabelecido.

Cumpre mencionar, sem pretender esgotar tão vasto tema, os princípios constitucionais penais presentes no ordenamento que deveriam, dentro desta proposta, motivar a direção do sistema penal, mas que devido à falibilidade dos meios adotados e do fraco aparato governamental indiferente a políticas públicas de redução da criminalidade, são deixados de lado, abrindo lacunas para a adoção de um modelo inconstitucional e equivocado. São eles: liberdade, tolerância, taxatividade, secularização, retroatividade benéfica, proibição de excesso, necessidade, intervenção mínima, legalidade, adequação, ampla defesa, suficiência, responsabilidade subjetiva, limitação e pessoalidade da pena, subsidiariedade, fragmentariedade, fundamentação das decisões, irrelevância penal dos fatos, anterioridade, irretroatividade, proporcionalidade, humanidade, presunção de inocência, especialidade, contraditório, lesividade, razoabilidade, non bis in idem.

Este modelo amplamente garantista e social não consegue, entretanto, funcionar como proposto na atualidade. A sociedade se transformou, as culturas foram alteradas, avanços tecnológicos e novas formas de exclusão social ganharam lugar. A partir da II Guerra Mundial verificou-se a violação de toda essa principiologia, fazendo surgir teóricos defensores de profundas alterações no sistema penal vigente até então, aparecendo os Direitos penais de Primeira, Segunda

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e Terceira Velocidades. O primeiro é exatamente este direito liberal que trata crimes clássicos (furto, roubo, homicídio, fraude,...) assegurando no processo penal todas as garantias supramencionadas, mas admitindo conforme o caso a sanção mais gravosa que é a privação de liberdade. As demais velocidades relativizam direitos, como se explicará mais adiante.

Ineficácia do modelo clássico

Após a II Grande Guerra, o advento das transformações econômicas, políticas e sociais, aliadas à pós-industrialização e à era da informação, conduziu o Direito Penal Liberal nos seus moldes originais a uma desinteligência e ineficácia ante a manutenção da ordem pública e da paz social. Completou-se a migração do sertanejo e do miserável para as zonas urbanas, onde buscavam melhores condições de vida e sustento para si e sua família e não encontraram qualquer política pública que lhes desse perspectiva, sendo empurrados para as periferias, onde também encontraram outros excluídos: os negros libertos que anos atrás receberam o mesmo tratamento. A tecnologia e a pesquisa atribuíram um diferente valor ao trabalho humano, sendo imprescindível uma boa capacitação profissional para fazer parte do mercado de trabalho seletivo. A educação foi sucateada, a saúde privatizada e a casta menos (ou nada) beneficiada viu-se forçada a criar um código moral e uma regulamentação das relações humanas paralelos ao sistema convencional. Por outro lado, danos ambientais de grandes proporções, biotecnologia, crimes de internet, novos riscos e novas condutas ampliaram o rol de crimes e de criminosos, os de “colarinho branco”. Novas situações exigem nova regulamentação.

Ante esta situação, inevitável é a reformulação do sistema penal de forma a adequá-lo à realidade atual, sem, contudo, perder de vista os princípios constitucionais que o motivam. O que se tem notado na legislação penal brasileira após a edição da Constituição Cidadã é, em contrapartida, uma inovação que relativiza certas barreiras erigidas sob as exigências do Direito Penal clássico. Em outras palavras, os princípios de contenção da esfera penal têm sido tratados como barreiras impeditivas

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de um direito penal adequado às necessidades preventivas e de proteção da sociedade do risco. Figueiredo Dias (apud MACHADO, 2005) ilustra a necessidade de flexibilização, como se pode conferir:

Não está o direito penal, por outra parte – argumenta-se –, preparado para a tutela dos grandes riscos se teimar em ancorar a sua legitimação substancial no modelo do “contrato social” rousseaniano, fundamento último de princípios político-criminais até agora tão essenciais como o da função exclusivamente protectora de bens jurídicos, o da secularização, o da intervenção mínima e de ultima ratio. Porque se quiser manter estes princípios, tal significará – assinalou-o Stratenwerth em duas conferências a vários notáveis – a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na proteção das gerações futuras: como entre outros e, principalmente, os temas dos atentados ao ambiente, da manipulação genética e da desregulação da atividade produtiva se vão encarregando já de mostrar ou prenunciar. Não uma função minimalista de tutela de bens jurídicos na acepção moderna, constituintes do padrão crítico de uma legitimação, mas a atribuição sem rebuços, ao direito penal, de uma função promocional e propulsora de valores orientadores da ação humana na vida comunitária – eis a única via que se revelaria adequada aos desafios da sociedade do risco.

É a partir deste raciocínio que novas teorias e movimentos como a Nova Direita Penal, a Tolerância Zero ou Direito Penal do Inimigo, o Movimento de Lei e Ordem, o Direito Penal de Dupla Velocidade e o Direito Penal de Três Velocidades apresentam inovações inconstitucionais amplamente divulgadas pela mídia como sendo a única alternativa para a reaquisição da segurança pública, tratando os novos riscos como matéria penal, quando são matérias política, étnica e social. Todas as correntes aqui mencionadas podem ser estudadas dentro de um fenômeno maior denominado Moderno Direito Penal, o qual se mostra retrógrado em relação aos princípios e direitos historicamente conquistados, amparado este fenômeno na idéia de sociedade mundial do risco, cuja análise está obrigatoriamente vinculada ao ideal capitalista de gerar riqueza e concentrá-la sempre nas mãos de poucos.

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transformação social e (in)adequação do modelo liberal

Por certo período de tempo o modelo liberal foi útil ao controle social e à manutenção da ordem pública. Todavia, o surgimento de novos riscos e realidades passou a exigir uma postura estatal acerca de temas inéditos ou nunca antes alarmados. Nas décadas de sessenta e setenta um movimento de deslegitimação do direito penal e de crítica à resposta punitiva do Estado ganhou espaço. A realidade pós anos 80 (redemocratização) criou uma onda de expansão do Direito Penal, em virtude dos anseios da sociedade por mais segurança, sobretudo nos delitos de grande monta chamados de delito dos poderosos, tais como os econômicos, ambientais e políticos. Percebe-se a crise do direito penal, mas concomitantemente verifica-se a sua expansão como resposta jurídica a problemas sociais.

A população brasileira era predominantemente rural, os freios sociais funcionavam, a religiosidade do povo reprimia excessos e os coronéis conduziam os submissos. A violência do modelo não vinha à tona pela insipiência dos meios de comunicação. A incidência da criminalidade era baixa e dominada formal ou informalmente pela polícia. Foi neste contexto que veio a lume a legislação processual penal vigente até nossos dias. Vem daí também a estrutura básica da Justiça, do Ministério Público, do sistema prisional e da Polícia Judiciária, que se organizaram para atender ao modelo então proposto. Para a época, o comboio de segurança pública era satisfatório.Vamos para a década de 50, quando a ousadia de JK despertou o gigante e as mudanças começaram a acontecer. A era do rádio chegou ao interior, as rodovias facilitaram o trânsito e a migração para as cidades teve início. Os freios sociais começaram a afrouxar e, com isso, a criminalidade passou a tomar nova feição e a exigir mais das instituições. O caso Aída Cury, retratado por David Nasser nas páginas d’O Cruzeiro, levantou o véu da droga e do crime na alta sociedade. Apesar desses fatos novos, a forma de atuação do aparato policial-judiciário-penal continuou a mesma.Nas duas décadas seguintes as mudanças sociais aceleraram. No regime militar as comunicações se desenvolveram e a televisão implodiu as convenções que informavam a vida familiar e social.

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A “juventude transviada”, a liberação sexual e a descoberta de um novo mundo além do horizonte levaram ao aumento brutal de conflitos individuais e coletivos, gerando crimes cada vez mais complexos. Ainda assim, o modelo traçado para a segurança pública continuou intocado. Ou melhor, extinguiram o Juiz de Paz, que tinha um papel moderador importante e, em 1968, cometeram à Polícia Militar a exclusividade do policiamento ostensivo fardado. Apesar dessa nova atribuição, completamente diversa de sua missão original, a PM absurdamente manteve inalterado o modelo organizacional e, até hoje, arca(mos) com as consequências (SETTE CÂMARA, 2002, p. 15-16).

Não obstante a afirmação de doutrinadores no sentido de que o direito penal clássico permaneceu inalterado e inoperante frente às novas realidades, as questões cotidianamente criadas têm, em sua maioria, uma carência e uma preocupação muito mais política do que criminológica. A ausência de prestação social do Estado em todos os setores principais – educação, saúde, cultura e desporto, saneamento básico e segurança pública – contribui para o aumento dos índices de violência e criminalidade. Da mesma forma, o não enfrentamento sério dos conflitos étnicos e econômicos induz ao terrorismo, havendo já a hipótese de co-responsabilização do Estado pela não prestação positiva na prática de determinados delitos. A complacência e o envolvimento direto dos políticos e desembargadores com o crime organizado (como aponta a operação Têmis que autuou ministros do Superior Tribunal de Justiça e outros membros do Judiciário) demonstram que há interesses políticos e econômicos na permanência do crime organizado. As leis apresentadas para solucionar penalmente os delitos oferecem para o hipossuficiente marginalizado e sem oportunidades a privação da liberdade como forma de livrar a sociedade do problema, ao passo que para o hipersuficiente causador de danos ao meio ambiente ou aos cofres públicos se oferece uma série de privilégios como o mero pagamento ao Estado de multas e, às vezes, prisão domiciliar.

O modo como o Direito Penal foi compreendido no aspecto clássico (Iluminismo) não atende mais aos novos tempos dos fins do séc.

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XX e início do XXI. Tanto que hoje se fala em direito penal de duas e até de três velocidades, isto é, modos diferentes de justificar e aplicar o sistema penal a pessoas de classes diferentes, fenômeno estudado pela criminologia como a “teoria da rotulação ou etiquetagem” que seleciona o tipo de criminoso que se inserirá no sistema penitenciário e o que não fará parte disto.

Hassemer e Muñoz Conde (1995) identificam este fenômeno e arriscam uma idéia abolicionista para o Direito Penal se este permanecer nos moldes atuais:

Se o Direito penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício.

Sociedade mundial do risco

A sociedade industrial construiu um arcabouço ideológico que legitimou a concretização do acúmulo de conhecimento e de tecnologias impactantes como meios para realizar um mundo mais igualitário. Esses meios, fundamentados na ciência e na tecnologia, seriam capazes de prover o mundo de abundância, diminuir e/ou controlar a escassez e a fome, as calamidades naturais, as pandemias, etc. Considerava-se que os problemas econômicos eram exclusivos das ciências econômicas, os problemas de saúde pública eram próprios das ciências da saúde, os problemas sociais eram específicos das ciências sociais e das iniciativas assistencialistas para consolidar a modernidade e administrar os riscos. O progresso se deu sem as precauções devidas e foi descoberto que o problema de uma área afetava diretamente outra; que a engenharia de alimentos afetava a produção em massa; que a produção industrial diminuía empregos; que a diminuição de empregos aumentava a

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criminalidade e afetava o meio ambiente; que as consequências do progresso desordenado e sem planejamento eram graves e a situação de risco que poderia ter sido evitada agora estava diante da sociedade nos extremos limites.

No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura, o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (BECK, 1997 apud MACHADO, 2005). Ainda de acordo com Machado (2005):

Para Ulrich Beck, o processo de industrialização é indissociável do processo de produção de riscos, uma vez que uma das principais consequências do desenvolvimento científico industrial é a exposição dos indivíduos a riscos e a inúmeras modalidades de contaminação nunca observados anteriormente, constituindo-se em ameaças para as pessoas e para o meio ambiente. Portanto os riscos acompanham a distribuição dos bens, decorrentes da industrialização e do desenvolvimento de novas tecnologias. Estes riscos foram gerados sem que a produção de novos conhecimentos fosse capaz de trazer a certeza de que estes riscos diminuiriam ou seriam passíveis de controle e monitoramento eficazes. Esta certeza nos controles favorecidos pela ciência e pela tecnologia teve sua base na modernidade clássica onde os riscos eram compreendidos como fixos e restritos a determinados contextos localizados, e mesmo que atingissem à coletividade, estes seriam frutos do desenvolvimento de novas tecnologias. Já na sociedade de risco, os riscos ultrapassariam os limites temporal e territorial, e seriam produtos dos excessos da produção industrial (CASTIEL, 2001). O diferencial se refere ao papel da tecnologia na própria configuração do risco, deslocando o foco da ordem para a dúvida. São os avanços tecnológicos que, ao ampliarem o domínio do conhecimento e da visibilidade, ampliam igualmente o domínio da incerteza.

O estudo de Machado demonstra como o pensamento de Ulrich Beck enfatiza a produção social de riquezas/industrialismo como causa da produção social dos riscos e alerta que a ordem jurídica estabelecida não mais garante paz e estabilidade, mas legitima as ameaças. Riscos

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modernos são encontrados nos campos da globalização da economia e da cultura, do meio ambiente, das drogas, do sistema monetário, das migração e inter-migração, do processamento de dados, da violência juvenil. Na medida em que a sociedade do risco se consolida os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais escapam do controle dos mecanismos criados pelas instituições organizadas para manter a proteção da sociedade. Nesse contexto, a idéia de segurança torna-se o “contraconceito” do risco, introduzindo desafios para a efetividade dos mecanismos de controle social, dentre os quais se encontram o Direito Penal e as instituições governamentais – órgãos executivos e tribunais – encarregadas de aplicá-lo.

Uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana torna-se terreno fértil para o desenvolvimento de um direito penal de emergência, cuja justificação sociológica voltada para a prevenção facilmente encontra respaldo e legitimação. Todos se sentem vulneráveis, vítimas em potencial e a expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais aceitem mais facilmente a sugestão ou a prática da punição ou do extermínio preventivo dos supostos agressores potenciais. Assim se configura a cultura do medo e o capitalismo busca, de algum modo, lucrar através de empresas de seguros de vida e seguro contra roubo, empresas de segurança residencial e terceirização do setor penitenciário, criando a indústria do medo.

opinião pública e a mídia como instrumento ideológico capitalista

A inserção da população nas discussões sobre segurança e políticas públicas é um importante passo para a consolidação de um sistema democrático. Isto porque democracia e pluralismo político não consistem exclusivamente na livre associação partidária e no direito de votar e ser votado. Mais que isso, implica em atuar politicamente desde o âmbito municipal ao federal, promover e participar de debates na comunidade, livre associar-se a idéias e ideais, formar opiniões, fiscalizar

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a atuação dos agentes políticos eleitos e aos quais o Poder (que emana do povo) foi delegado, fazer valer direitos, utilizar-se dos mecanismos constitucionais como o mandado de segurança e a ação popular, enfim, agir politicamente. É deste modo que o cidadão efetiva seu dever cívico e contribui na condução dos rumos políticos do país.

Entretanto, quando a pauta dos debates e ações é a segurança pública, esta não é compreendida pela população com a amplitude que lhe cabe, posto que o seu julgamento já está condicionado por certos fatores. Quando se associam violência, criminalidade e (in) segurança pública, a impunidade é o primeiro fator apontado como causa daqueles. É a partir deste raciocínio que se exige do Poder Público, especialmente do Poder Legislativo, um rigor maior para com o delinquente, retomando idéias ultrapassadas, datadas do nascedouro da Criminologia, as quais se encontram superadas teoricamente. Isto porque a Criminologia moderna e todas as suas ramificações teóricas entendem que o fenômeno criminoso implica não apenas em se avaliar (culpar?) a pessoa do delinquente, mas também a sociedade criminógena, elementos intrínsecos e extrínsecos ao crime, fatores ambientais e sociais, bem como a reação do Estado e o funcionamento de seu aparato (policial, judiciário e penitenciário) como co-responsável pela delinquência.

Perceptível é a contribuição da mídia para a consolidação da cultura e da industrialização do medo. Basta sejam observadas as manchetes diárias e os apresentadores de telejornais induzindo o homem médio a temer mais e mais. O caso Daniela Perez fez com que a população pressionasse o Legislativo para o encrudecimento da lei de crimes hediondos; o caso João Hélio tenta forçar o Legislativo a inconstitucionalmente reduzir a maioridade penal. É de se notar que boa parte da expansão do Direito Penal é causada pelo emocionalismo excessivamente aumentado pelo sensacionalismo midiático e pela opção política equivocada em fundamentar o sistema penal em bases de tendências autoritárias, demagógicas e expansivas. Essa exacerbada intervenção penal é, entretanto, uma ilusão repressiva alimentada por essa mídia de massa que tenta colocar o sistema penal como instrumento

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para afrontar problemas sociais muito mais complexos e, diante de sua ineficácia para tal, induz a sociedade a alimentar uma indústria do medo diretamente vinculada ao capital.

A indústria do controle do delito volta-se para a produção de seguros patrimoniais, para a seleção e o recrutamento de agentes de segurança privada, para a fabricação de armas e venda para civis (ante a ineficiência do Estado, o cidadão seria responsável pela sua própria proteção e de sua família), pelo lucro através da indústria do cárcere (saúde, educação, alimentação, trabalho dos presos). Toda uma política é desenvolvida em cima disso, principalmente pelo apoio da mídia.

Ante a histeria coletiva da delinquência crescente, se aceita a mercantilização das relações sociais pela lógica capitalista, bem como um Estado irresponsável que propicia uma abundância de leis penais casuísticas, motivadas pela opinião dos “penalistas de plantão do Jornal Nacional (Rede Globo)”, mas que não traz nenhum embasamento científico que comprove que um sistema penal mais rigoroso reduz a criminalidade ou a violência. O próprio sistema penal da forma como se aplica já é uma violência em si. Vera Andrade citada por Queiroz (apud PORTO, 2006, p. 67), na obra Funções do Direito Penal: Legitimação versus Deslegitimação do Sistema Penal menciona que:

Falar de direito penal é falar, inevitavelmente, de violência, mas não apenas da violência que é materializada pelos fatos considerados delituosos (homicídio, latrocínio, estupro), como também é falar da violência que é o próprio direito penal e seus modos de atuação, pois ele é em si mesmo violência seletiva, desigual, e de discutível utilidade, de sorte que tão grave e importante quanto o controle da violência é a violência do controle (VERA ANDRADE). A pena de morte, as penas privativas de liberdade, as prisões cautelares, por exemplo, distinguem-se do homicídio e do sequestro pelo só fato de que aqueles constrangimentos estão autorizados pelo direito, enquanto estes últimos não, ou seja, a pena de morte e as medidas privativas da liberdade outra coisa não são senão autênticos homicídios e sequestros levados a cabo pelo Estado legalmente.

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O Direito Penal de Emergência ou pan-penalismo revela toda a incoerência e insensatez de um sistema jurídico-penal que se imagina racional e que acaba reduzindo-se a sua menor expressão, a punitivista, quando se sabe que a luta pela contenção da violência é sinônima da luta pela afirmação dos direitos humanos, pois a ordem pública não pode se confundir com comoção social. Ordem pública significa exatamente a preservação do Estado de Direito e o respeito às suas garantias.

moderno Direito Penal

O Moderno Direito Penal aparece como uma crítica ao Direito Penal Clássico por este não possuir pressupostos de enfrentamento à criminalidade devido a uma supervalorização dos princípios que seriam óbices à nova eficácia do direito penal. A proposta se baseia, justamente, em um desvio dos conceitos originais e fundamentadores da intervenção punitiva, adotando conceitos inovadores, mas de constitucionalidade duvidosa, fragmentando e enfraquecendo a noção de Estado de Direito. Ao trazer uma política criminal de expansão do Direito Penal, as teorias funcionalistas adotadas principalmente por Jakobis (apud MACHADO, 2005, p. 135) se equivocam ao revelar como único bem jurídico penal a reafirmação da identidade normativa da sociedade e não os direitos individuais.

A teoria que se desenvolve a este respeito faz a separação entre dois sujeitos específicos: o cidadão (pessoa) e o inimigo (indivíduo). Cometendo um fato delitivo, o cidadão comete deslize reparável e não ameaça a comunidade ordenada, ao passo que o inimigo, este sim precisa ser destruído, posto que suas atitudes refletem um distanciamento duradouro do Direito. Nesses moldes, ao cidadão são devidas as garantias processuais penais, mas para o inimigo, já desvinculado do Direito e envolvido em atividades que revelam a negação dos princípios políticos ou socioeconômicos básicos, tais garantias não cabem, aplicando-lhes a coação como direito de guerra. Segundo Jakobis (2005, p. 30), “o Direito penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do Inimigo é

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daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra”.

Estes “indivíduos”, por demonstrarem com suas condutas uma recusa veemente de participação no estado de cidadania, não podem usufruir dos seus benefícios. O Direito Penal do Inimigo nega-lhes, então, a condição de pessoas. A identificação deste grupo de “inimigos” se daria mediante a habitualidade, a reincidência, o profissionalismo delitivo e a integração em organizações delitivas estruturadas.

As atividades e a ocupação profissional de tais indivíduos não ocorrem no âmbito das relações sociais reconhecidas como legítimas, mas naquelas que são na verdade a expressão e o expoente da vinculação desses indivíduos a uma organização estruturada que opera à margem do Direito, e se dedica às atividades inequivocamente delituosas (GRACIA MARTÍN, 2007, p. 88).

O Direito Penal do Inimigo, inspirado no Movimento de Lei e Ordem e voltado para a prevenção, estende a proteção a bens jurídicos supra-individuais voltando-se para a prevenção geral mediante antecipação da tutela penal a esferas anteriores ao dano, flexibilização das regras de causalidade, normas penais em branco, delitos de perigo abstrato e tipos penais abertos (devido a uma ingerência penal nos campos da economia, do meio ambiente, da saúde pública, etc.), ampliação e desproporcionalidade das penas, constante tipificação de condutas irrelevantes penalmente em leis esparsas, responsabilização criminal das pessoas jurídicas, restrições processuais, instituição de um Regime Disciplinar Diferenciado e de meios coativos na fase instrutória do processo penal.

Estes são alguns dos aspectos observáveis no direito penal do risco chocando-se com princípios e regras clássicos, fragilizando o sistema de garantias. Referindo-se a tal fenômeno Silva Sánchez (1998, p. 66) avisa que o direito penal será um direito já crescentemente unificado, “pero también menos garantista, en el que se flexibilizarán las reglas de imputación y en el que se relativizarán las garantias politico-criminales,

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substantivas y procesales”. Se até a década de setenta buscava-se a tutela de bens jurídicos por intermédio de políticas públicas, agora se recorre ao Direito Penal para exercer a função de solucionar conflitos que, essencialmente, fogem à sua esfera (conflitos geopolíticos, étnicos, religiosos, administrativos). Apenas entre 1988 e 2004, setenta e cinco novas leis penais foram lançadas. Há uma crise da legalidade, observáveis, a título exemplificativo, as seguintes leis nacionais:

LEI 7960/89 (institui a modalidade da prisão temporária) – De forma gritante viola o princípio da não culpabilidade, além de ter resultado de medida provisória (meio inidôneo para criação de norma penal), padecendo de legalidade. A prisão temporária cabe quando: a) imprescindível para as investigações do inquérito policial, b) quando o indiciado não possuir residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e c) quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na lei penal, que atestem a autoria ou participação do suspeito/indiciado nos crimes de latrocínio, estupro, tráfico, crimes contra o sistema financeiro e extorsão mediante sequestro.

LEI 8072/90 (crimes hediondos) – As ciências criminais não têm uma definição do que seja hediondez e isto viola o princípio da taxatividade. A equiparação entre todas as ações abrangidas no tipo penal “atentado violento ao pudor” viola o principio da proporcionalidade (p. ex., beijo lascivo e forçar alguém a manter relação diversa da conjunção carnal).

LEI 8930/94 (homicídio qualificado e hediondez) – Esta lei equiparou todas as formas de homicídio qualificado ao crime hediondo. Também o fez com o homicídio simples executado em atividade de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente. Nos crimes hediondos a lei nega ao criminoso a anistia, a graça e a fiança. São as vedações expressas. Porém, para malefício do réu, na prática nega-se também a liberdade provisória e o indulto, violando o princípio da liberdade.

LEI 9034/95 (lei de combate ao crime organizado) – Proíbe a liberdade provisória e a apelação em liberdade, estipulando o regime inicial fechado. Permite o acesso a dados, documentos e informações

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fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, convertendo-se a pessoa do juiz em investigador, envolvendo-se como parte e prejudicando a parcialidade do julgamento, segundo aqueles que são contra a construção formal desta lei.

LEI 9426/96 – Modificou o parágrafo 3º do art. 157 do Código Penal, aumentando para sete anos a pena mínima do roubo qualificado pela lesão corporal grave. A pena mínima para homicídio é de seis anos, carecendo de proporcionalidade a nova regra.

LEI 9605/96 (lei de crimes ambientais) – Por ter o texto bastante aberto com termos indefinidos cujo preenchimento cabe aos profissionais da área ambiental, os crimes ali descritos nessas condições violam a legalidade e a taxatividade. Ademais, questiona-se a necessidade da interferência penal em lesões ambientais (poderia recair nas esferas civil, tributária e administrativa) e a falta de proporcionalidade nas penas.

LEI 9613/98 (lavagem de dinheiro) – Ao instituir a delação premiada, incentiva a traição, o que é eticamente reprovável num Estado alicerçado na dignidade da pessoa humana.

movimento Garantista: Direito Alternativo

O Direito Alternativo é o gênero do qual o Direito Penal Garantista, defendido por Ferrajoli, é espécie. Apesar de tudo o que foi aqui apresentado e dos rumos complicados pelos quais se conduz o Direito Penal, é viável a manutenção de um Direito Penal mínimo, garantista e liberal, configurado em um modelo-limite ao exercício incontido do poder punitivo do Estado, pois seu amparo está na própria Carta Magna. Considerando que a intervenção jurídico-penal só se mostra útil e legítima ante a indisponibilidade de outros meios de controle social, só deveria intervir o Leviatã em casos de ataques violentos contra os bens de maior relevância.

A vanguarda sulista (em especial no Rio Grande do Sul, cujos magistrados possuem uma formação inspirada nas escolas garantistas

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da Espanha e da França) propõe a contenção do Direito Penal dentro de um núcleo rígido de garantias amparadas constitucionalmente, sem impedir o Estado de exercer seu controle sobre o intolerável, sem que com isso sejam questionadas sua autoridade e sua legitimidade. Entende, essa corrente doutrinária, que a necessidade política do direito penal se justifica como mecanismo de tutela dos direitos fundamentais, sendo estes os seus limites. Não se trata de benevolência com o crime, mas de saber contê-lo dentro dos limites socialmente toleráveis.

O Direito Penal de Intervenção, defendido por Hassemer, explica que delitos de pequeno potencial ofensivo devem ser tratados na esfera administrativa, os de médio potencial ofensivo remediados com penas alternativas e os de grave potencial ofensivo abordados com o direito penal clássico e suas garantias, mas podendo culminar na privação da liberdade.

Em suma, o Direito Alternativo pretende que o Direito Penal não se renda à prática de criação de leis oportunistas encomendadas por pesquisas de opinião pública numa Política Criminal comprometida com a satisfação imediata do anseio popular sem que se ataque as reais motivações do crime, as quais são, muitas vezes, a conjuntura social que merece uma reestruturação responsável.

Considerações finais

Inegável é que o modelo penal e o processual penal apresentados ao longo desta discussão não se adéquam às necessidades emergentes de uma sociedade do risco em que novos perigos, novos fatos e circunstâncias se apresentam a cada dia. Um novo modelo precisa ser criado e posto em prática para acompanhar e controlar tantas inovações, mas o legislador só pode optar por um sistema penal em acordo com os princípios de uma república democrática de direito. Ante um Direito Penal antidemocrático que se oferece como única solução pra a questão da segurança, doutrinadores garantistas como Amilton Bueno de Carvalho (2007) apresentam um “direito alternativo” amparado pela constitucionalidade. O autor defende a submissão plena dos Códigos

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Penal e Processual Penal à interpretação principiológica constitucional, observando-se os fatos típicos de maneira empírica e não meramente finalista. A responsabilização de outras esferas jurídicas como a administrativa e a civil para o trato de delitos menores, reduzindo o problema da superlotação carcerária que, no fim das contas, não previne nem ressocializa é alternativa apresentável.

É indispensável o cuidado para que o Direito Penal não deixe a sua condição de garantidor da liberdade do homem, mas ações governamentais e institucionais urgem ante o fenômeno da globalização. O que se pugna é pela cobrança efetiva e constante de políticas de reformas estruturais, tanto no plano social quanto no plano econômico, e a implementação de outros meios de controle social. Ao contestar com repressão e castigo problemas cuja natureza é essencialmente social, ao não respeitar os direitos humanos básicos com o encarceramento em massa dos excluídos pelas próprias políticas públicas está configurada a transição do Estado social para o Estado penal.

O fulcro da questão está no modelo. A estrutura organizacional de uma instituição é concebida para realizar uma tarefa predeterminada. No caso policial-judiciário, a tarefa está rigidamente explicitada nos códigos processuais. A forma dos procedimentos, os passos a serem seguidos, enfim todo o modus operandi foi disciplinado em 1942 para um Brasil diferente do atual, quando o volume de trabalho permitia tantos preciosismos; quando o tipo de conflitos e a retaguarda existente davam vazão à demanda. Hoje o momento é outro. Ou atualizamos o modelo que aí está e, com ele, reestruturamos as instituições para seu novo papel, ou nos distanciaremos ainda mais da finalidade última do Estado (SETTE CÂMARA, 2002, p. 17).

Inconteste também é o aproveitamento pelo capitalismo de toda a situação de insegurança e medo causadas pela evolução moderna e alarmada pela mídia comprometida bem mais com os ideais de lucro que com o direito de informação de todo cidadão. Sobre isso, é preciso ter em mente que direitos fundamentais não são negociáveis ou alienáveis,

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ainda que indiretamente. Nesse sentido, Luis Gracia Martin (2007, p. 42) alerta que “não pode ser lícito nenhum ordenamento que estabeleça regras e procedimentos de negação objetiva da dignidade do ser humano, sob hipótese alguma”.

Aos estudiosos do Direito Penal e ao legislador penal cabe a difícil tarefa de adequar as políticas criminais à dogmática penal. É imprescindível que neste momento de crise, movimento natural para o nascimento de uma nova realidade, o legislador brasileiro defina os rumos do direito penal de acordo com a legalidade, isento de vícios e comprometido unicamente com a ordem social e o bem-estar do cidadão brasileiro. Para que tal objetivo se alcance, não se pode admitir como válida a inserção de regras incompatíveis com a dignidade do ser humano, princípio basilar e limitador do Direito Penal, sob pena de tornar-se o sistema injusto e desvinculado do Estado de Direito, já que a justiça é um valor superior do ordenamento jurídico no Estado de Direito.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Aspectos da violência urbana

Itamar Rocha dos Santos 1

Resumo: O presente trabalho traz como foco aspectos da violência urbana que na contemporaneidade estão imbricados no cotidiano das cidades. A compreensão desses aspectos de forma crítica e reflexiva é colocada neste trabalho como de importância crucial para conscientizar as autoridades políticas sobre a necessidade de direcionarem políticas públicas que diminuam os índices de violência no contexto urbano. Enfim, trata de uma realidade vivenciada neste novo milênio pelas pessoas que habitam nas cidades, não importando o tamanho destas.

Palavras-chave: Globalização. Política Neoliberal. Insegurança.

Street violence aspects

Abstract: This article concentrates in some aspects about urban violence that in present o nove quatidian. The understanding of this subject may help us make some critique, because it is necessary to reflect and tell politicions haw important is to make public politics that devases the violence rortes. Finally it is a fact present in new Millennium, the people is afraid and something must be done.

Key words: Globalizacion. Neoliberal Politics. Insecurity.

1 Especialização em Psicopedagogia pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação (IBPEX)/Facul-dade Internacional de Curitiba (FACINTER). Professor da Rede Estadual de Educação da Bahia. E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 237-250 2009

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Introdução

Nos primeiros anos do novo milênio, no contexto urbano, a violência vem sendo foco da atenção dos moradores das grandes, médias e pequenas cidades. Não importa o tamanho destas para que delitos, de variados tipos, ocorram, o que deixa os moradores apreensivos em relação às causas de tanta violência.

A mídia televisiva, diariamente, noticia casos de violência ocorridos nas cidades. Por outro lado, ao transitarmos a pé pelas ruas dos grandes centros urbanos, percebemos, nas conversas dos transeuntes, que o assunto está relacionado a crimes e fatos delituosos. Há tempos atrás, ouvíamos dessas pessoas diálogos relacionados à imigração, futebol ou à industrialização crescente.

Nas cidades de médio porte, as pessoas assistem estarrecidas ao crescimento do índice de violência, paralelo ao surgimento de bolsões de pobreza, em que os integrantes podem estar “à espreita” nos locais de risco, cognominados como tais após a padronização do espaço urbano entre classes abastadas.

Nas cidades de pequeno porte, as pessoas começam a conviver com casos de violência, desde a doméstica aos crimes contra os costumes – envolvendo pessoas idosas do sexo masculino, por exemplo –, além de outros tipos, que antes eram vistos pelos moradores destas cidades somente por meio da mídia televisiva.

A violência urbana, para Pinheiro (2003), subverte e desvirtua a função das cidades, drena recursos públicos, já escassos, ceifa vidas – especialmente as dos jovens e dos mais pobres – dilacera famílias, modificando nossas existências, dramaticamente, para pior.

Ao pesquisarmos sobre violência urbana é interessante que tenhamos em mente a situação social, impactada pela política econômica globalizada, a qual afeta instituições como a família, a escola e a Igreja. Devemos, ainda, apreender e compreender a influência dessa política econômica sobre cada uma dessas instituições.

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Também, ao pesquisarmos sobre esse fato presente no âmbito da sociedade contemporânea, é de grande importância abordamos a maneira e a forma pelas quais está surgindo a polarização do espaço urbano com a criação dos bolsões de pobreza, e como as pessoas que estão inseridas nessas áreas elaboram suas táticas e estratégias de sobrevivência no sistema capitalista, em que modos de vida são padronizados, principalmente pela mídia.

Além disso, nos espaços de exclusão social, como guetos, favelas e demais periferias, devemos compreender de forma crítica o porquê da substituição de ferramentas de trabalho como pá, enxada, machado e foice, por outras formas de sobrevivência, e qual a influência da mídia televisiva na criação de um padrão de comportamento para as pessoas que ali vivem assim como de que forma surge a economia informal nestas áreas.

Igualmente de suma importância será a abordagem da influência da violência simbólica dos meios de comunicação em massa, os quais, ao adentrarem no contexto das instituições como família, Igreja e escola – principalmente nas cidades de pequeno porte – influenciam a cultura das pessoas, mediante padrões de vida tidos como dominantes no mundo capitalista, assim como a análise da consequência da imposição desses padrões em tais instituições.

Para Bourdieu (2007), o espaço social e as diferenças que nele se desenham espontaneamente tendem a funcionar simbolicamente como estilos de vida ou como “stands”, ou seja, grupos caracterizados por comportamentos diferentes. Além disso, na luta pela imposição da visão legítima de mundo social – em que as ciências, muitas vezes, estão envolvidas – os agentes responsáveis detêm um poder proporcional ao seu capital ou ao grupo que representa.

O poder simbólico, para Bourdieu (2007, p. 188), é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que um credita o outro, uma fides, uma auctoritas, que se lhe confia, depositando nele sua confiança; é algo como a potência mágica, o crédito, o carisma, a crença, o credo, a obediência ao divino de onde se espera a proteção.

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Neste jogo das interações da vida cotidiana, os dominados nas relações de forças simbólicas entram na luta em estado isolado, não restando outra escolha a não ser a da aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição dominante de sua identidade ou da busca da assimilação, a qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma (no estilo de vida, no vestuário, na pronúncia etc.) e que tenha em vista propor, por meio de estratégias de dissimulação e embustes, a imagem de si, o menos afastada possível da identidade legítima.

O tema “violência urbana” surge, assim, como proposta de estudo interdisciplinar, em um núcleo integrado por diversas áreas das ciências sociais (Sociologia, Pedagogia, Filosofia, Antropologia, Economia, Psicologia, Comunicação, Direito, História e demais áreas afins), com o propósito de compreendermos, mediante pesquisas e trabalhos científicos, os diversos aspectos da violência urbana, e direcionarmos mudanças sócio-ideológicas que nortearão políticas públicas voltadas para as causas e consequências da violência nesse meio.

Aspectos da violência urbana

Na conjuntura do terceiro milênio, todo morador da cidade é abordado pela violência. Esta separa os homens, mas ao mesmo tempo os une no medo que inspira.

As cidades, que antes eram sinônimos de civilização, hoje são percebidas como um meio fragmentado segregado e descivilizado.

Segundo Pedrazzini (2006), as divisões territoriais e o urbanismo da opressão, que as sociedades urbanas instauram para afrontá-los, atualizam novas técnicas de invasões bárbaras que devem brotar do interior da cidade.

Os baixos salários e o desemprego, que causam o empobrecimento da classe média e o aumento do número de miseráveis (bolsões de pobreza), têm gerado muito dos crimes contra o patrimônio, tais como furtos, roubos e assaltos.

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A ocupação de terrenos e conjuntos habitacionais ainda em construção, a depreciação de equipamentos de uso coletivo, a agressão ao meio ambiente e o alcoolismo, são alguns dos sintomas de nossa sociedade em conflito. Esses aspectos revelam que as cidades cresceram, expandiram-se e fizeram surgir bairros periféricos, onde as condições precárias de vida dos moradores e a degradação do meio ambiente mostram uma face da violência urbana.

O mercado, a industrialização, a proletarização e as fábricas pertencem a uma sociedade desigual; a cidade industrial foi uma transposição construída, e a cidade pós-industrial, a transposição ao vivo de uma sociedade “sem trabalho”, o que não exclui a exploração de classes.

Para Pedrazzini (2006), as divisões urbanas não são socialmente neutras; elas atuam em Benefício de alguns e contra a “libertação” das massas, fato que preocupa alguns ideólogos.

Abandonados pelas instituições, os atores sociais adotam novas estratégias de sobrevivência para se inserir nos padrões estabelecidos pela política neoliberal. Pode-se afirmar que a desestruturação urbana, em seus aspectos mais visíveis, como a informalidade espacial, econômica e social, criou, ao longo do tempo, novas formas de reprodução social ligadas, paradoxalmente, aos três pilares da socialização formal: Família, Trabalho e Educação.

Os moradores, conforme sua compreensão intuitiva da “realidade das coisas” acostumaram-se com seu caráter mutante (senso comum) e sua necessária identificação com essas mudanças; sem buscar compreender – de forma crítica – teorizar e resistir, apropriam-se delas dentro de uma lógica do caos.

Isso acontece, segundo Pedrazzini (2006), porque os moradores precisam, antes de tudo, viver. O estado caótico do espaço urbano não lhes convém nem contribui para suas atividades, sejam elas formais ou informais. Os primeiros a compreender que ninguém cuidaria de seu infortúnio foram os mais pobres. A violência, muitas vezes, situa-se à margem de suas atividades diárias e, outras vezes, passa a ser o meio de sobrevivência daquelas pessoas.

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A violência urbana, para Pedrazzini (2006, p. 91), deve ser analisada como parte de um sistema socioespacial dinâmico cujos elementos estruturantes seriam a economia liberal globalizada e a cidade como modelo ambiental hegemônico. Diante desses dois elementos fundadores da nossa “civilização”, entrariam outros componentes especificamente sociais (crescimento das desigualdades), políticos (criminalidade da pobreza), espaciais (fragmentação do território) ou ideológicos (sujeição da democracia à segurança), os quais se combinam entre si para traçar um projeto de sociedade selvagem e inquietante.

Para o citado autor, é importante analisar como os principais setores da economia globalizada instauram um determinado modelo de urbanismo, de arquitetura e de “cidades globais”, e, desde então, como a urbanização contemporânea globalizada começou a impor práticas sociais e espaciais que contribuíram para o crescimento da violência urbana (PEDRAZZINI, 2006).

A cidade contemporânea é perigosa, na medida em que a globalização a divide em fragmentos antagônicos, transformando-a em um conflito de forças e interesses.

Desde a década de 80 do século XX, os programas de estabilização macroeconômica e de ajuste estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial aos países em desenvolvimento para que suas dívidas fossem renegociadas levaram centenas de milhões de pessoas ao empobrecimento. Programas como o de Ajuste Estrutural (PAES) contribuíram, amplamente, para desestabilizar moedas nacionais e arruinar as economias dos países em desenvolvimento.

Os PAES, segundo Chossudovsky (1999), desempenharam um papel chave na decomposição da economia nacional de países endividados com o FMI e Banco Mundial, além de recompô-los em uma nova relação com a economia global. As reformas econômicas, para esse autor, implicaram a decomposição/recomposição das estruturas produtivas e do consumo nacionais. Dentro desta realidade, a compressão dos ganhos reais acarretou a diminuição dos custos da mão-de-obra e o declínio dos níveis de consumo de massa (artigos de

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primeira necessidade), pela grande maioria da população. Por outro lado, houve uma ampliação do consumo do segmento de alta renda, que envolve bens de consumo duráveis e outros bens de luxo, alcançáveis apenas por um pequeno segmento da população.

Essa decomposição/recomposição da economia dos países endividados e sua inserção na economia globalizada, baseada na mão-de-obra barata, provocaram a compressão da demanda interna e dos níveis de vida – pobreza, salários baixos e uma abundante mão-de-obra barata – com reflexos na contínua explosão da violência urbana.

Essas causalidades, segundo Pedrazzini (2006, p. 73) – apesar de difíceis de serem comprovadas pela natureza de sua complexidade e superposição dos múltiplos níveis de realidade – não impedem que o observador dos fatos sociais urbanos questione a violência urbana na sociedade contemporânea.

Segundo Giddens (apud BOURDIEU, 2007), se compreendermos, propriamente, como os outros vivem, podemos adquirir melhor entendimento dos problemas em que eles estão envolvidos. Além disso, os aspectos da vida social modelam nossa forma de sentir, pensar e agir.

A violência dos pobres dissimula a violência da Globalização e da fragmentação estratégica imposta às cidades. Antes, porém, de formularmos qualquer “pré-conceito” sobre os conflitos urbanos, cabe a nós identificar os habitantes dos territórios dominados pela violência, pois são eles os detentores incontestes das respostas sobre esses conflitos. É preciso ir ao bairro pobre para questionar as pessoas que vivem ali e buscar respostas fecundas para a relação da violência, a relação com o outro, o estranhamento do seu próximo e os atos aterrorizantes.

Como vimos, os espaços mais afetados pelas tensões da globalização são evidentemente os bairros mais pobres das cidades, por estarem mais expostos aos efeitos negativos da política liberal globalizada. Os governantes são, em grande parte, responsáveis por essa situação, pois já não oferecem mais aos moradores uma real proteção contra os efeitos desse mal.

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A nova geração de jovens dos bairros pobres das cidades constitui um problema para as autoridades e para a polícia. Certamente, a violência é uma resposta imediata e muitas vezes cômoda a um universo em permanente mutação.

A mídia televisiva, emissoras radiofônicas, os outdoors, as vitrines das lojas, estampam produtos que representam padrões de conforto, bem estar e status. Trabalha-se, luta-se para conseguir a posse desses objetos que parecem fazer as pessoas felizes, ricas e importantes. A felicidade, portanto, condiciona-se à posse destes bens materiais.

Observa-se que o fenômeno da violência urbana é constituído por uma série de situações conflitantes e cada vez mais complexas, bem como incontroláveis, tanto pelos poderes públicos, quanto pelos especialistas do setor privado.

Neste contexto de sociedade globalizada, constata-se um enfraquecimento das defesas tradicionais do sistema social, com valores de solidariedade e laços comunitários, os quais estão relativizados pelas sociabilidades individualistas do mundo contemporâneo.

Em razão da complexidade das causas da violência urbana dentro do domínio alarmante da globalização econômica e cultural, surge a necessidade de pesquisá-la dentro de um contexto interdisciplinar, a fim de termos um conhecimento científico com resultados que possam direcionar políticas públicas eficazes para a redução da violência urbana e seus efeitos sobre os cidadãos.

o lucro com a insegurança

A violência nas cidades tem assustado e isolado seus habitantes em suas próprias residências, que estão se transformando em verdadeiras fortalezas.

Em cidades grandes, médias, ou, até mesmo, de pequeno porte, não é preciso ir muito longe para observarmos o grande número de casas com cercas elétricas, portas e janelas com grades de proteção ou até mesmo com placas que identificam empresas de segurança privada que

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monitoram algumas residências vinte e quatro horas por dia, evitando que estas casas sejam invadidas por pessoas que escolheram a vida do crime como forma de sobrevivência na dinâmica social.

Muitas pessoas até mesmo cuidam de se equipar com tudo o que oferece a moderna tecnologia em termos de alimentação, informação, comunicação e lazer, evitando ao máximo sair de casa. Nessa condição, desfrutam os fins de semana entre DVDs, televisores de plasma, “tele-pizza”, banheiros com hidromassagens, jogos eletrônicos, horas a fio ao celular etc. Aos que não têm acesso a esse tipo de solução dispendiosa e cara, sobra a programação da tevê.

As pessoas que se arriscam a sair de casa em determinados horários são aquelas que não têm quase nada a oferecer aos delinquentes. No entanto, aquelas que têm algo de valor saem em horários pré-estabelecidos e frequentam lugares e espaços onde é oferecida uma maior segurança, pública ou privada.

A expansão de empresas de segurança privada que vendem seus serviços, os quais variam desde cercas elétricas com monitoramento a seguranças particulares, é uma realidade, em se tratando das mais variadas cidades. Essas empresas crescem e as pessoas que podem arcar com o custo dos seus serviços não se incomodam em pagar por eles, para se sentirem mais seguras dentro de suas casas ou ao saírem delas para seus afazeres diários.

Percebemos, ainda, a enorme procura por serralharias que fabricam grades e portões de ferro maciço que deem o mínimo de proteção às pessoas de ganho mais inferior quando estiverem dentro de suas residências.

Em outra extremidade da esfera social, nos bairros periféricos, onde a pobreza mostra-se explicitamente, as pessoas que ali residem e vivem do suor de seu trabalho, para terem o mínimo de segurança, usam cacos e pontas de garrafas de vidro presos com massa de cimento nos muros, evitando que suas casas sejam invadidas por delinquentes que convivem em seu meio.

Nos centros das cidades, carros padronizados de empresas de segurança privada transitam pelas ruas, e, no período noturno, ficam

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em pontos estratégicos, prontos para o primeiro sinal de alerta vindo da central de monitoramento. Percebemos que o “Ponto Base” da segurança pública – a prevenção – está, aos poucos, sendo substituído e administrado por empresas privadas, que, na falta de políticas públicas sérias voltadas para a segurança, ganham espaço.

Nas ruas, pessoas apressadas agarram as suas pastas e bolsas. Não param mais para dar alguma informação, ou, quando respondem, o fazem com o olhar atento aos movimentos de quem pergunta e atento às pessoas que passam ao seu redor. As pessoas também já não passeiam mais a pé para conhecer e “curtir” a cidade.

Em determinados locais e horários, motoristas não obedecem mais aos sinais de trânsito com medo de assaltos, e, quando param o veículo por algum motivo, fazem-no o mais rápido possível. No jargão popular, algumas pessoas nos dizem que estamos no tempo de “Murici”, cada um cuidando de si, e Deus é quem cuida de todos.

Ao percorrermos, à noite, as ruas da cidade, podemos assustar outra pessoa simplesmente pelo olhar, ou vice-versa. Calamos o medo e desviamos nossos olhares.

Para Pedrazzini (2006), houve tempos em que a cidade era vista como um “bem” para o ser humano (a promessa de um futuro melhor). Era um progresso importante para o homem e para o território, por representar o avanço da civilização, o aumento da cultura, a ampliação do mercado, dos bens negociáveis, das oportunidades e muito mais.

No entanto, esses tempos se passaram para aqueles que, atualmente, veem a cidade como um espaço de sobrevivência em condições (relativamente) aceitáveis.

Vivemos nos tempos das cidades duais. A violência, a insegurança, o pânico, as micro-guerras dos meninos de rua e o tráfico são alguns dos elementos duais evocados atualmente.

A cidade contemporânea, segundo Pedrazzini (2006, p. 70), é perigosa na medida em que a globalização a divide em fragmentos antagônicos, transformando-a em um conflito de forças e interesses.

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O cenário urbano apresenta uma série de rupturas, fissuras, sinuosidades, conflitos, dissensões e distorções no campo social. Com isso, pode-se afirmar que a violência urbana provém de aspectos contemporâneos da urbanização que envolvem modos ditados pela globalização e pela política neoliberal, para promoverem estratégias de dominação no mercado global.

Do bairro pobre, parcialmente globalizado, como fragmento de uma cidade ou metrópole globalizada, emerge uma categoria de atores potencialmente e simbolicamente globalizados para práticas de atividades criminosas. Esses atores adquirem, por meio de atividades ilegais e internacionais, uma cultura cosmopolita não correspondente ao contexto e à cultura do bairro ou cidade onde moram.

Nessa realidade, um grande número de jovens e adolescentes afronta a política neoliberal na ilegalidade e na violência. Ao traficarem, eles esperam conservar a liderança e a possibilidade de participarem do modo de vida ditado pelo mundo globalizado.

A “profissão” de traficante está em constante mutação; a atividade é exercida de maneira artesanal nas esquinas de algumas ruas das cidades e, segundo especialista está se tornando um dos setores mais rentáveis na economia mundial.

No entanto, nesta “profissão de sobrevivência”, a ascensão social é, na maioria das vezes, interrompida brutalmente. Estima-se que mais de 60% dos jovens dos bairros pobres dos países do terceiro mundo acabam em presídios ou são mortos.

Assim, a maioria das cidades e metrópoles contemporâneas aparece como fábrica do medo, que favorece o projeto de divisão social, dando a certos atores o poder de se orientar, de definir certos objetivos e os meios de os alcançarem dentro de uma ordem social capitalista.

A poluição, a violência, a pobreza, a fome, assim como os “milagres” dos meios de comunicação, a pluralidade de culturas, etnias e tradições, o aumento de criadores, inventores e fazedores da história, são algumas das dores e alegrias que as metrópoles e as cidades podem oferecer ou retomar de seus habitantes.

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248 Itamar Rocha dos Santos

Os habitantes criam estratégias de defesa contra seus próprios fantasmas. Essas estratégias táticas variam consideravelmente, como vimos anteriormente, conforme o bairro da residência, o nível cultural, o modo de vida e a profissão.

A tendência, como foi colocada em parágrafos anteriores, à privatização dos meios de segurança mediante o aumento do aparato de seguranças particulares e empresas privadas que oferecem esse serviço para os proprietários de residências, seja elas de ricos, seja de pobres, caminha para uma segregação do espaço urbano, onde o sucesso da arquitetura urbana passa a ser um modelo de arquitetura “policial ou militarizada”, o que vem a expressar também a busca do lucro em função da insegurança nas cidades.

As iniciativas públicas e privadas que visam a oferecer segurança aos cidadãos erguem apenas uma civilização em clausura. O urbanismo contemporâneo, na visão de Pedrazzini (2006), é geralmente uma atividade policial, segundo o modelo implantado por Hausmann em Paris, no século XIX, que visava a um melhor controle dos espaços públicos. Para esse autor, se o urbanismo atual (contemporâneo) privilegia a segurança, essa arquitetura é dissuasiva e militar (arquitetura de fortificações relativamente dissimuladas nas paisagens urbanas e uma ocupação militar do solo urbano). Diante disso, assistimos ao triunfo do medo e à banalização do urbanismo do medo.

Não só as classes mais favorecidas submetem o espaço urbano à privatização por razões de segurança. Os pobres também os submetem. Porém, o preço a pagar pelo reforço das barreiras edificadas entre o universo da prosperidade e da precariedade não é o mesmo para todas as pessoas. Portões e grades de ferro, cacos de garrafas e vidros têm custos bastante razoável se comparados aos contratos de empresas de segurança para monitoramento 24 horas das residências e comércios. Neste contexto crescente de segregação, os privilégios de propriedade cedem o passo aos privilégios de acesso.

A segurança passou a ser um serviço e um acesso que são oferecidos como artigos de luxo aos clientes das camadas mais privilegiadas da população.

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249 Aspectos da violência urbana

O urbanismo contemporâneo, ainda na visão do citado autor, pressupõe a propagação do sentimento de insegurança. Entretanto, os projetos de segurança concebidos para proteger o conjunto de habitantes das cidades favorecem, de forma desigual, seu acesso aos locais “seguros”. Assim, para esse autor, o urbanismo do medo ocasiona uma radicalização dramática dos processos de segregação espacial, levando a uma clássica fragmentação urbana, além de uma nova fragmentação planejada dos “Territórios”, tendo em conta o grau de segurança ou de perigo.

Essa seleção pode ser observada no reaquecimento do mercado imobiliário, principalmente em zonas centrais, que, ao passarem por um período de quase abandono estatal e imobiliário, renascem para projetos de requalificação urbana (PEDRAZZINI, 2006, p. 121).

O surgimento de um urbanismo de segurança, no entanto, não traz melhorias para a segurança das cidades ou região em questão. Instaura, apenas, uma dualidade nas práticas de segurança, como respostas à dualidade do medo e da violência dos ricos e dos pobres, que se escutam, se imitam ou se opõem, de cada lado, à cortina de ferro econômica.

Ao combinarem o urbanismo do medo e a detenção do poder nas mãos de poucos, além da combinação com o urbanismo da urgência e a precariedade de vida de muitos, as medidas de segurança, criadas nesse contexto, estão modelando, cada vez mais, um meio segregado. A segurança passa a ser o fetiche para conjurar o mal e apresenta-se como a origem da construção de novas desigualdades sociais no contexto urbano.

De outro lado, ao levarmos em conta que o mercado mundial da defesa contra o terrorismo é avaliado em 100 bilhões de euros, e o da segurança das redes de informações em 50 bilhões, estamos cônscios de que Osama Bin Laden, aos lançar os aviões sobre as cidades de Nova York e Washington, estava convencido de que daria início a uma guerra contra o terror. No entanto, não calculou que o início desse conflito atrairia um mercado que lucra de forma demasiada com a insegurança com que as pessoas convivem.

A insegurança e a incerteza do mundo, segundo Pedrazzini (2006), não surgiram com os ataques dos terroristas islâmicos, mas suas ações

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250 Itamar Rocha dos Santos

espetaculares estimularam a venda de armas e de sistemas de segurança, em razão do acesso desigual dos ricos e dos pobres a tais equipamentos. Assim, o capital da segurança soma-se ao capital financeiro e ao capital simbólico.

A violência urbana e a insegurança que atingem as pessoas são elementos que estão acoplados ao cotidiano de quem convive nas ou habita as cidades. Entender esses elementos de um ponto de vista e com uma visão interdisciplinar será uma das formas de levarmos aos poderes públicos respostas para certas incógnitas relacionadas aos efeitos de políticas públicas implantadas nas cidades.

Referências

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MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

PEDRAZZINI, Yves. A violência das cidades. Tradução de Giselle Unti. Petrópolis: Vozes, 2006.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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o neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista e seus limites e desafios a

uma proposta de economia solidária

Maristela Miranda Vieira de Oliveira 1

Resumo: Este artigo faz uma reflexão crítica sobre os possíveis limites e desafios de se promover a Economia Solidária no âmbito de políticas públicas nos marcos do capitalismo neoliberal. A análise busca confrontar o conceito de Economia Solidária com a realidade ora observada, entendendo as atividades econômicas e sociais como uma totalidade complexa, portanto, não particularizada e dissociada da lógica que rege a totalidade do sistema. Em razão da abrangência do tema e de sua problemática, define-se como objeto de estudo as teorias e conceitos desenvolvidos pelos autores França Filho, Laville e Gaiger.

Palavras-chave: Capitalismo. Estado. Neoliberalismo. Economia solidária.

Neoliberalismo while mark of the relationships of market in the capitalist system and their limits and challenges to a proposal of

solidary economy

Abstract: This article makes a critical reflection on the possible limits and challenges of promoting the Solidary Economy in the extent of public politics in the marks of the neoliberal capitalism. The analysis looks for to confront the 1 Mestranda em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento Social e Desenvolvimento Regional pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Técnica Universitária da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected]

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 251-263 2009

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concept of Solidary Economy with the reality now observed, understanding the economical and social activities as a complex totality, therefore, no particularized and dissociated of the logic that governs the totality of the system. Due to inclusion of the theme and of her problematic it is defined as study object the theories and concepts developed by authors França Filho, Laville and Gaiger.

Keywords: Capitalism. State. Neoliberalismo. Solidary economy.

Introdução

A evolução histórica do sistema capitalista, observada em vários séculos de existência, demonstra a sua capacidade de legitimação através do tempo, utilizando-se não só de modelos econômicos para se reproduzir, mas também da formação de ideologias no âmbito das relações de Estado, capazes de justificar a sua existência e regular os interesses do capital. Como em outros momentos da história da humanidade, o iniciar do século XXI aponta para uma nova forma de reprodução dessas relações, buscando um retorno ao que se chamou liberalismo econômico e que serviu para disseminar os interesses capitalistas durante os séculos XIX e XX. Porém, agora, com a denominação de neoliberalismo, age no sentido de fragmentar a ação do Estado, diminuindo a sua atuação e transformando-o, estritamente, em um agente construtor dos interesses do capital.

Na tentativa de construir um conceito para o entendimento desse fenômeno, Moraes (2001) apresenta algumas proposições que refletem maneiras diferentes de explicá-lo, as quais levam à compreensão de que se trata de uma corrente de pensamento, um movimento intelectual ou um conjunto de políticas adotadas pelos governos. Contudo, conclui que o neoliberalismo representa a ideologia do capitalismo na era da financeirização da riqueza, através de um ataque às formas de regulação econômica. A ideologia neoliberal prevê o afastamento do Estado das questões econômicas, bem como a diminuição do seu poder por meio de políticas de reformas orientadas para o mercado. Entre os defensores desse pensamento, destacam-se Friedrich von Hayek que ao

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publicar O Caminho da Servidão (1944), lançou um manifesto inaugural da ideologia neoliberal. Seguindo essa lógica, vários países da América Latina, incluindo o Brasil, iniciaram a partir dos anos 90, uma onda de reformas que incluíam o Estado e o seu aparelho administrativo em nome de uma espécie de reengenharia na Administração Pública, considerada pesada e de difícil operacionalização. Essas reformas foram acompanhadas de medidas de combate à inflação, seguindo orientação de caráter neoliberal de órgãos internacionais como Banco Mundial e FMI (SIMIONATTO, 1997).

A partir desse momento, assiste-se a uma redefinição do papel do Estado que passa a responder mais precisamente aos interesses do capital, não de forma direta, mas agindo na regulação das relações sociais, contribuindo na manutenção das relações capitalistas em seu conjunto (OFFE, 1984 apud HÖFLIN, 2001).

Todavia, a hegemonia do capitalismo em suas diversas formas, incluindo aí a ideologia neoliberal, não só produz o acúmulo de riquezas, mas também desperta reações contrárias que resultam em resistência ao modelo vigente. Uma dessas tentativas é visível nos movimentos a favor da promoção de uma Economia Solidária, tendência que vem crescendo e fomentando um debate em torno da possibilidade de se pensar em uma nova forma de se fazer economia, combinando aspectos de uma economia mercantil, com a economia não-mercantil e não monetária.

É tomando-se por base essas conjecturas que se propõe neste artigo uma reflexão acerca dos limites e desafios para promover a Economia Solidária no âmago de um Estado que reproduz uma ideologia neoliberal, atuando enquanto regulador das relações sociais, a fim de responder aos interesses capitalistas, baseados estritamente na economia mercantil.

A economia solidária

O sentido do termo Economia Solidária ainda é algo relativamente novo, apesar de que as práticas que a traduzem não representem nada de inédito entre comunidades de países da América Latina e Europa

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(FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2006), onde mais se tem observado iniciativas dessa natureza. Porém, a novidade está em unir todas essas práticas em uma só denominação, fazendo com que ao invés de existirem isoladas, elas transformem-se em evidência, adquiram força de revolução contra o comportamento econômico que ora se apresenta, e que se baseia estritamente na economia de mercado, desacreditando a possibilidade de uma economia que seja plural como pretende a economia solidária.

Através de um processo de emancipação individual e coletiva, baseado na lógica do aprender, entender e transformar (informação verbal)2, essa tendência propõe um novo olhar sobre a maneira de se pensar a economia contemporânea, buscando novas formas que vão além da economia de mercado. Para tanto, propõe uma articulação entre o mercado, o Estado e os grupos excluídos do atual sistema produtivo, na expectativa de se consolidar enquanto estratégia de desenvolvimento local. Logo, o mercado, o Estado e setores da sociedade civil excluídos do sistema produtivo tornam-se pilares de sustentação e construtores de relações capazes de fortalecer e definir o campo de atuação desse novo modo de se pensar a economia.

França Filho e Laville (2004) observam que as sociedades tradicionais priorizavam a manutenção dos vínculos sociais em relação à produção de riquezas, tornando a economia imbricada nas relações sociais. Porém, na modernidade presencia-se uma legitimidade da economia de mercado, onde esta reside num desejo da pacificação das relações sociais, mediante a busca da satisfação dos interesses individuais.

A atual concepção de economia de mercado, cria uma dissociação entre o plano econômico e o social, o que elimina o debate político das questões econômicas. Contudo, o que se almeja é a experiência de um mercado pautado na economia social, criando relações que “examinam as condições, permitindo conciliar o modo de produção econômico com uma redução da pobreza que ameaça a ordem estabelecida” (p. 50).

2 Palestra apresentada por Paul Singer durante o “Seminário de Economia Solidária” realizado pela Secretaria de Infra-estrutura do Estado da Bahia (SEINFRA), Salvador, abril de 2007.

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A observação das condições sociais no âmbito das relações de mercado, inclui o Estado enquanto agente regulador dessa relação. E como pensou Offe (1984, p. 125), “existe uma, e somente uma estratégia geral de ação do Estado. Ela consiste em criar as condições segundo as quais cada cidadão é incluído nas relações de troca”.

Considerando a posição de Claus Offe, o estado deve ser entendido como poder público e não se confunde com governo a ser governado, nesse sentido ele é independente da sociedade civil, porém a influencia, e é influenciado por ela. Nessas condições, os setores da sociedade civil que se encontram à margem do atual sistema, passam a representar as células de edificação dessa redefinição de Estado através do qual se formará o elo para a aproximação desses setores e do mercado.

É com base nessa estreita ligação envolvendo o mercado, o Estado e setores da sociedade civil, que as vertentes teóricas defensoras da Economia Solidária a definem através de quatro princípios de comportamento econômico, representando um olhar diferenciado em relação ao agir econômico em sociedade3. Constituem, portanto, preceitos voltados para a domesticidade, através da produção para usufruto próprio ou do seu grupo; reciprocidade, relação conduzida pela dádiva e que representa uma economia não-monetária; redistribuição, em que a produção fica a cargo de uma autoridade para ser redistribuída, também definida como não-mercantil, e nesse caso, assume a idéia de atuação do poder público, que intervêm através da construção de relações de reciprocidade entre os agentes partícipes desse modelo econômico, para tanto, agindo na formulação de políticas públicas; e por último o mercado, que representa o lugar de encontro entre a oferta e a demanda de bens e serviços para fins de troca, este por sua vez, sendo o princípio que predominou nas relações econômicas capitalistas orientando a reprodução de um sistema hegemônico e excludente através do tempo.

3 FRANÇA FILHO; LAVILLE, op. cit., 2004. Baseado no estudo de Karl Polaniy (1983) sobre a origem política e econômica do nosso tempo (domesticidade, reciprocidade, redistribuição e mercado).

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A Economia Solidária, portanto, sinaliza para uma articulação entre a econômica mercantil, não-mercantil e não-monetária, convergindo para a solidariedade que se transforma em centro de uma relação que permeia os objetivos de natureza social, política ou cultural (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004).

Relações neoliberais enquanto limite e desafio para a economia solidária

Antes de propor uma análise sobre as relações neoliberais que vão influenciar a proposta de uma Economia Solidária, cabe uma breve reflexão sobre o que se pode depreender ao optar pela utilização das expressões “limites e desafios” na construção do presente raciocínio.

Como limite, entende-se um ponto ou linha terminal, além dos quais, cessa a continuidade. Por desafio, subtende-se instigar, incitar, provocar. A significância desses dois verbetes torna-se quase que antagônicas, na medida em que o primeiro propõe um sentido de fim, enquanto que o segundo é um chamado à continuidade.

Logo, a vinculação de termos por si só conflitantes para a construção da análise das relações neoliberais frente à Economia Solidária, presume o caráter polêmico que tal reflexão engendra, uma vez que estes limites podem ser visualizados de maneiras diferentes, pressupondo um fim ou um começo, a depender da reflexão que se faz. Se forem encarados enquanto paradigmas, tornam-se um convite a serem ultrapassados e, portanto, transformam-se em desafios.

Consequentemente, a reflexão desvincula-se de um caráter estritamente pontual, para adquirir um perfil instigador na medida em que propõe em suas entrelinhas a análise sobre qual caminho seguir na busca pela diminuição dos impactos provocados por um sistema hegemônico e excludente, aquele que levará a um fim de linha, ou seja, uma fronteira que não será ultrapassada, ou aquele que será construído e reconstruído para além de suas próprias fragilidades?

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Relações de mercado

Diante da lógica da Economia solidária percebe-se, portanto, a grande dimensão por ela auferida uma vez que aspira transcender a um único comportamento econômico estritamente voltado para as relações de mercado. Evidencia-se assim, uma proposta que reivindicando uma economia plural, deve praticar a economia de mercado combinada com a economia do não-mercado (poder púbico) e a não-monetária (reciprocidade) sem, contudo, reproduzir as relações capitalistas que dominam o cenário mundial.

Por esse viés, a competição deverá dar lugar à cooperação. O acúmulo de capital não deverá participar das aspirações da Economia Solidária que precisa se auto-sustentar através da redistribuição de suas sobras, além do que, a sua produção deverá atender não só ao mercado, bem como aos seus próprios participantes. Logo, ela também deverá praticar preços justos sem perder de vista o foco na qualidade, o que servirá de impulso para sua permanência no mercado.

Políticas públicas

Políticas públicas devem ser entendidas como o “Estado em Ação” na medida em que implanta projetos de governo, programas e ações voltadas para setores específicos da sociedade. Constituem a natureza da intervenção do Estado (FALEIROS, 1995), suas intenções, criando assim uma agenda pública que vai nortear os seus trabalhos (LAHERA, 2002). As políticas públicas traduzem-se ainda em ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado e que representam uma redistribuição de benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico (HÖFLING, 2001).

Lahera (2002) faz ainda uma outra distinção em relação às políticas públicas, quando dissocia políticas de governo e políticas de Estado, sendo aquelas compreendida como as políticas de um governo, enquanto estas

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são interpretadas como as ações que transcendem a um período específico delimitado por um governo e tornam-se direitos inalienáveis.

A Economia Solidária, enquanto campo de práticas ainda em construção, que não está unicamente voltada para a esfera mercantil e que retoma o diálogo entre a economia e a política como forma de sustentação de seus interesses, tem como desafio construir bases sólidas no âmbito das políticas públicas, do “agir no espaço público” 4 que segundo França Filho e Laville (2004) é uma forma de conciliar o projeto de uma Economia Solidária com a esfera política e econômica concomitantemente.

Nessa perspectiva, a existência de programas e projetos de incentivo a essas iniciativas e que se limitam a políticas de governo, deixando uma lacuna na esfera das políticas de Estado, denota uma intenção efêmera de apoio por parte do Estado, sendo este sujeito e regulador das relações capitalistas e portanto, respondendo à lógica do mercado.

Por conseguinte, é fundamental a criação de instituições que fortaleçam a construção do marco legal para o fomento de empreendimentos solidários (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004). Todavia, sabe-se que um dos pontos fortes do capitalismo está em conseguir “legitimar-se e reproduzir-se historicamente utilizando-se de aspectos como a tecnologia criada sob sua égide e outras formas de alimentação do sistema” (GAIGER, 2004). Essas outras formas de legitimação pode ser caracterizada pela legitimação política, através do fortalecimento de instituições que preservem o campo de atuação de interesse do capital. E atualmente, esse pensamento se fortalece através da ideologia neoliberal reproduzida por muitas esferas do governo.

Moraes (2001, p. 35) apresenta uma síntese das principais idéias neoliberais que podem confirmar o grande desafio para promover a Economia Solidária no interior do sistema capitalista:

Elas acentuam duas grandes exigências gerais e complementares: privatizar empresas estatais e serviços públicos, por um lado; por

4 Expressão utilizada por França Filho (2004) na defesa da inclusão da proposta de Economia Solidária no âmbito das políticas de Estado.

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outro, “desregulamentar”, ou antes criar novas regulamentações, um novo quadro legal que diminua a interferência dos poderes públicos sobre os empreendimentos privados.

É notável, portanto, que a Economia Solidária caminha na contramão da ideologia neoliberal vigente, tendo como uma de suas prerrogativas, contar com o apoio do poder público para se fortalecer. Uma vez que na ideologia neoliberal o Estado passa a se eximir de certas responsabilidades, acentuando a atuação do mercado frente às demandas sociais e econômicas, transformando-se em agente regulador dessas relações, a sua atuação junto ao ideal de uma economia plural torna-se fraca ou até mesmo incoerente.

De um lado, o neoliberalismo age no sentido de enfraquecer o Estado diante das relações de mercado, dessa forma, responde aos interesses do capital. De outro, a Economia Solidária propõe uma economia plural baseada em três pilares, mercado, Estado e grupos excluídos do atual sistema produtivo numa concepção de união de forças visando o bem comum. Poderia o Estado, servir aos interesses do capital e do social ao mesmo tempo? Considerando uma economia de mercado que alimenta a concorrência, o individualismo e, portanto, não considera a problemática social como um desequilíbrio gerado dentro desse sistema, como promover uma economia mercantil e contribuir com uma economia plural?

Evidentemente, algumas ações do Estado devem ser pontuadas como forma de fortalecimento da tendência da Economia Solidária, entre elas a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego e que tem como principal desafio implementar o Programa de Economia Solidária em Desenvolvimento. Assim como inúmeros programas de governo em diversos municípios que apóiam essas iniciativas.

Contudo, ao optar por uma via neoliberal, este Estado utiliza-se de estratégias que servem ao sistema vigente, como ferramentas, planejamentos, avaliações, enfim, as políticas públicas são formuladas sob a ótica do neoliberalismo, suas ações respondem à pressão do mercado,

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seus resultados deverão ser quantificáveis conforme a lógica do sistema (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2006).

Controle social

Observa-se ainda, enquanto limite para a Economia Solidária a questão do controle social que dentro da lógica neoliberal é desestimulado como forma de enfraquecer o poder do Estado (TORRES, 2004). Contudo, sabe-se que o Estado é um reflexo histórico, a sua qualidade se encontra na cidadania popular mobilizada e organizada. Para se pensar na soberania desse Estado em relação ao mercado é preciso pensar em mudança, através do fortalecimento da cidadania, o que é desestimulado na ideologia neoliberal (VERZA, 2000).

Esse quadro traduz perfeitamente a realidade que ora se apresenta em relação à formulação de políticas públicas, uma vez que se presenciam políticas sociais incapazes de resolver os problemas em sua origem, mas apenas servem como paliativos para situações extremas de pobreza.

Ainda como forma de legitimação do sistema capitalista, percebe-se a introdução de ideologias neoliberais agindo na desarticulação do controle social. Isso acontece até mesmo com a massificação de termos que passam a ser utilizados no âmbito das ações de caráter privado e público e que tendem a ser reproduzidos nas práticas solidárias, confundindo-as com as estratégias de autopromoção da economia de mercado. Como exemplo, observa-se a utilização do termo “eficiência” que, segundo Gaiger (2004) refere-se, dentro da ideologia do mercado apenas aos aspectos quantificáveis, desprezando o lado social da produção. Enquanto que em uma economia solidária, esse mesmo termo vai considerar aspectos inerentes à questão social como qualidade de vida, satisfação de objetivos culturais e éticos-morais.

Pode-se citar ainda o termo “empreendedorismo”, que conforme Moraes (2001), remete a um elemento básico do sistema capitalista, vez que representa a função empreendedora do indivíduo, que se move orientado por um planejamento baseado na idéia de concorrência e

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numa complexa divisão social do trabalho. O mesmo que Harvey (2004, p. 100) denomina de “empreendimentismo” quando o associa com um individualismo possessivo na medida em que

[...] a inovação e a especulação criativos podem florescer, embora isso também implique uma proliferante fragmentação de tarefas e responsabilidades, bem como uma transformação necessária das relações sociais que chega a ponto de forçar os produtores a ver os outros em termos puramente instrumentais.

Isso revela uma articulação da economia de mercado onde esta é vista como um modelo de funcionamento para as demais instituições sociais (MORAES, 2001), e que as instituições do não-mercado (poder público) acabam tomando para si na iminência de corrigir falhas inerentes à sua realidade. Esse mesmo risco ronda as práticas da economia solidária, que assim como a administração pública, carece de desenvolvimento de ferramentas próprias, baseadas numa realidade que deve responder acima de tudo aos interesses sociais e não aos interesses individuais, como quer a economia de mercado.

Conclusão

Com base na idéia central do artigo, a caracterização do neoliberalismo enquanto construtor de relações que respondem à economia de mercado, revela-se um desafio dentro da proposta da Economia Solidária, vez que esta presume uma interação entre a economia e a política social para a construção de um modelo econômico mais justo, fora da concepção única do princípio de mercado. Para tanto, a vinculação desta nova forma de se pensar a economia com as políticas públicas, criando um espaço de atuação para um novo modelo, presume uma atuação forte do Estado, muito além de oferecer oportunidades iguais para ideologias diferentes, pois seria o mesmo que distribuir armas para ambos e eximir-se da responsabilidade, deixando mais uma vez a solução para o que mostrar-se mais forte, seguindo a

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lógica da concorrência, o que reflete atitudes neoliberais. E ao analisar os limites ora descritos, pontua-se ainda um desafio, grande o suficiente para responder a todas as armadilhas do Estado Neoliberal, ou seja, construir uma nova forma de ação pública que se mostrasse coerente com a proposta da Economia Solidária.

Referências

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Mercado florestal brasileiro: uma análise sobre as políticas públicas e perspectivas de cenário econômico

João Ferreira Gomes Neto1

Renato Leone Miranda Léda2

Resumo: As florestas plantadas, juntamente com as florestas nativas, são responsáveis pelo abastecimento do setor de base florestal brasileiro. Este trabalho analisa a conjuntura econômica atual do mercado florestal brasileiro, abordando o cenário do segmento no Estado da Bahia. Concluiu-se que o setor florestal nacional e estadual está em expansão em virtude da favorável conjuntura macroeconômica, das adequadas condições ambientais para essa atividade e das ações do poder público a partir da implantação de políticas públicas de fomento para o setor. Também são apontados alguns questionamentos sobre os impactos sociais e ambientais dessa atividade econômica.

Palavras-chave: Desenvolvimento econômico. Meio ambiente. Políticas públicas. Segmento florestal.

brazilian forest market: an analysis on the public and perspective politics of economic scene

Abtract: The planted forests, together with the native forests, they are responsible for the provisioning of the section of base forest Brazilian. This work analyzes

1 Graduado em Administração pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected] 2 Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor adjunto do Departamento de Geografia da UESB. E-mail: [email protected] Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 265-278 2009

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266 João Ferreira Gomes Neto e Renato Leone Miranda Léda

the current economical conjuncture of the Brazilian forest market, approaching the scenery of the segment in the State of Bahia. It was ended that the national and state forest section is in expansion by virtue of the favorable macroeconomic conjuncture, of the appropriate environmental conditions for that activity and of the actions of the public power starting from the implantation of public politics of fomentation for the section. Also mentioned are some questions about the social and environmental impacts of economic activity

Key-words: Economical development. Environment. Public politics. Setment Forest.

Introdução

Alguns dos grandes desafios da civilização contemporânea residem na geração de mecanismos de mediação capazes de enfrentar as contraditórias relações dos homens com o meio ambiente na atual fase do capitalismo. Nesse sentido, o Estado enquanto mediador da relação entre sociedade e território e como gestor ambiental por excelência tem como uma de suas funções principais, neste campo, a elaboração e implementação de políticas públicas diante das demandas e dos problemas econômicos, sociais e ambientais que se configuram na atualidade.

Os debates recentes sobre a gestão sustentável dos recursos naturais, e as pressões frente ao Estado perante a necessidade de programas governamentais pretensamente capazes de resolver ou pelo menos mitigar problemas tais como a pobreza e o desemprego, colocam em evidência as discussões sobre o aproveitamento das potencialidades naturais locais para o desenvolvimento de atividades econômicas que supostamente geram emprego e renda para a população. Uma dessas atividades que proporcionam algumas das discussões mais acaloradas do momento é o plantio do eucalipto, devido aos substanciais impactos nos territórios onde é desenvolvido, em virtude da utilização de grandes extensões de terra e dos vultosos aportes de capital necessários à implantação dos empreendimentos florestais.

Para o levantamento das informações e consecução dos objetivos inicialmente propostos utilizou-se de instrumentos metodológicos que

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envolveram a revisão bibliográfica acerca do tema e o levantamento de dados secundários em fontes especializadas referentes ao mercado do agronegócio florestal no Brasil.

Dessa forma, o trabalho aqui apresentado tem como proposta central a análise da conjuntura econômica do setor florestal brasileiro, abordando o cenário do segmento no Estado da Bahia. Para isso, com o objetivo de contextualizar o tema, procedeu-se discussão acerca das relações entre desenvolvimento econômico, meio ambiente e políticas públicas. Em seguida, foi realizado breve relato histórico das políticas públicas no Brasil e no Estado da Bahia, e, finalmente, a análise de alguns dados para a compreensão do fenômeno em questão.

Desenvolvimento econômico, meio ambiente e políticas públicas

O paradigma do desenvolvimento se assenta no princípio de que o crescimento econômico seria indefinido, a partir de um processo de uso intensivo de capital, diminuição da mão-de-obra e larga utilização dos recursos naturais (LIMA, 2004). Nesse contexto, conforme define Costa (1997), estabeleceu-se efetivamente uma ideologia em que a industrialização (e correspondente exploração do ambiente como fonte de insumos e depositário de resíduos), era sinônimo de desenvolvimento. De certo modo, tal visão hegemônica era compartilhada por correntes teóricas divergentes quanto a outras questões econômicas essenciais, tais com as correntes neoclássicas e keynesiana. Essa última, em particular, se afirmou como “base ideologia desenvolvimentista” e sua proposição peculiar:

[...] se fundamenta na crise econômica dos anos 1930, quando o principal problema enfrentado era o desemprego. A maximização do uso de mão de obra e de capital era o desafio estabelecido na época. Os recursos naturais renováveis pareciam ainda extremamente abundantes e a energia era barata (CAPORALI, 2002 apud LIMA, 2004, p. 23).

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Tal modelo, em um sistema aberto, para se sustentar, dependeria de suprimentos inesgotáveis de energia e matéria-prima, e de uma infinita capacidade do meio de reciclar matéria e absorver resíduos. É pertinente afirmar que predominava nessa ideologia uma consciência distorcida no concernente às relações sociedade-natureza, aos impactos ambientais e à degradação ecológica proveniente das atividades econômicas, desconsiderando seus condicionantes e limites biofísicos (ROMEIRO; REYNDON; LEONARDI, 1997).

É a partir da percepção da incompatibilidade de desenvolvimento econômico com o equilíbrio do meio ambiente gerada por esse modelo que a sociedade começa a dedicar maior atenção a essa complexa problemática. Assim, conforme defende Cavalcanti (2002), surge a concepção de “sustentabilidade”, que envolve aceitar que o desenvolvimento sócio-econômico tem possibilidades definidas, isto é, limites de crescimento. Em vários países, inclusive no Brasil, a idéia de proteção ao meio ambiente e de conservação dos recursos naturais como uma da necessidade social começa a ser difundida, embora de maneira incipiente, entre os anos de 1960 e 1970, durante a fase de emergência do chamado “moderno ambientalismo” (BAYLISS-SMITH; OWENS, 1996), e se intensificou a partir da década de 1980/90, o que pressionou o Estado a considerar a variável ambiental na formulação das políticas públicas, mesmo que de maneira fragmentária e tecnocrática.

Uma das políticas governamentais que pretendem alinhar desenvolvimento econômico e conservação do meio ambiente é a concernente aos reflorestamentos. Por meio dessas políticas, o Estado brasileiro procura criar condições para o fornecimento contínuo de energia e matérias-primas para a indústria, tendo em vista pressões econômicas como as crises derivadas dos choques do petróleo, a crescente busca por alternativas energéticas, bem como, e particularmente, o estímulo aos investimentos nesse setor devido ao crescimento do comércio internacional de produtos de origem florestal, com taxa média de 6,8% entre 1985 e 2006 (SBS, 2007). Por outro lado, a mobilização da opinião pública em torno das questões

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ambientais, sobretudo após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), estaria impondo a conservação dos recursos naturais como uma variável das políticas neste setor, especificamente no que tange à diminuição da pressão sobre as florestas nativas.

Entretanto, como advoga Frey (2000), o Estado enquanto expressão da disputa entre grupos de representação de interesses político-institucionais, nem sempre tem em suas ações o objetivo efetivo de satisfazer às necessidades da população, mas sim, atender aos interesses de grupos sociais específicos que formatam estruturas e estratégias para influenciar nas decisões governamentais.

Essa perspectiva fica clara ao se analisar a política florestal brasileira de apoio à produção de madeira, pois essa historicamente não considerou os agricultores e as áreas das localidades mais vocacionadas à atividade florestal (CARVALHO, 1987 apud LIMA, 2004). Por isso, as ações governamentais voltaram-se predominantemente ao desenvolvimento setorial sem a integração ao desenvolvimento rural das localidades onde as atividades foram desenvolvidas. Assim, conforme Lima (2004), os investimentos do setor público e as políticas públicas para a área do reflorestamento foram formulados com o objetivo de se criar uma infra-estrutura de apoio à dinamização e modernização da economia regional, o que permitiu o beneficiamento das grandes empresas do segmento. Porém, na visão desse mesmo autor, as políticas estatais e o próprio setor não perceberam os enormes impactos sociais e ambientais futuros de sua implantação.

Políticas públicas de reflorestamento no Brasil

As políticas públicas para o setor de reflorestamento no Brasil se configuraram efetivamente durante o período de Ditadura Militar, cujos primeiros marcos da ação governamental foram, conforme Léda (1986), a criação dos Parques Nacionais e Florestas Nacionais, através do Código Florestal; a instalação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento

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Florestal (IBDF), cujo objetivo era formular, dirigir, coordenar e implementar as políticas florestais do país; e, simultaneamente à criação desse órgão, a instituição e regulamentação dos incentivos fiscais para reflorestamento, o que caracterizou o início de uma política destinada à reposição florestal. Ainda na época do Governo Militar foi formulado o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que perdurou entre os anos de 1974 e 1979 e tinha como uma das vertentes orientar e reger as políticas públicas voltadas para a atividade florestal, as quais “[...] apontavam os reflorestamentos com as finalidades simultâneas de dar suporte à reformulação do setor energético e às atividades industriais [...], assumindo um papel estratégico no modelo de desenvolvimento econômico brasileiro” (LIMA, 2004, p. 24).

A partir do declínio da Ditadura Militar e da elaboração da Constituição Federal de 1988, a sociedade pressionara o Estado ao atendimento de novas necessidades sociais e interesses políticos introduzidos no contexto brasileiro. Assim, em 1989, foi criado o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Nessa mesma perspectiva, em seguida, no Estado da Bahia ocorreu a fundação do Centro de Recursos Ambientais (CRA) que tinha por finalidade a administração da política ambiental em nível estadual (LIMA, 2004).

No final da década de 1980, o Estado da Bahia constituiu estratégias voltadas ao meio ambiente, das quais se pode citar:

a) democratização da informação e da gestão ambiental; b) promoção da conscientização da sociedade sobre a importância da questão; c) estímulo à participação popular e comunitária no planejamento e execução da política de defesa do meio ambiente; e d) manutenção de uma política de transparência e veracidade das informações, institucionalizando mecanismos de avaliação de impactos e de gestão ambiental (PEREIRA, 1989 apud LIMA, 2004, p. 35).

Através do decreto n° 3.420 de 20 de abril de 2000 o governo federal criou o Plano Nacional de Florestas (PNF), que tem por

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objetivo diminuir a demanda pelo desmatamento ilegal, bem como evitar que o Brasil se torne importador de madeira, preocupação que se justificaria pela defasagem entre o incremento médio anual para o abastecimento dos setores econômicos e a oferta desse tipo de matéria-prima (SCARPINELLA, 2002). Conforme Scarpinella (2002, p. 60), alguns dos objetivos específicos do PNF são: a) estimular o uso sustentável de florestas nativas e plantadas; b) fomentar as atividades de reflorestamento, notadamente em pequenas propriedades rurais; c) apoiar as iniciativas econômicas e sociais das populações que vivem em florestas; d) reprimir desmatamentos ilegais e extração predatória de produtos e subprodutos florestais; e) promover o uso sustentável das florestas de produção, sejam nacionais, estaduais, distritais ou municipais; f) ampliar os mercados interno e externo de produtos florestais; g) valorizar os aspectos ambientais, sociais e econômicos dos serviços e dos benefícios proporcionados pelas florestas públicas e privadas; h) estimular a proteção da biodiversidade e dos ecossistemas florestais.

Mas antecipando a necessidade de incentivar o reflorestamento e disciplinar a conservação dos recursos florestais, o governo do Estado da Bahia, a partir do decreto n° 7.396 de 04 de agosto de 1998, já havia instituído o Programa Florestas para o Futuro, que tem por finalidades: a) promover o desenvolvimento econômico sustentável da atividade florestal, utilizando racionalmente os recursos naturais disponíveis, objetivando a melhoria da qualidade de vida da população; b) ampliar a oferta de madeira plantada, através do reflorestamento com espécies de rápido crescimento e alto valor econômico, para os consumidores de produtos florestais, prioritariamente os pequenos e médios; c) melhorar a rentabilidade da propriedade rural, prioritariamente dos pequenos e médios produtores rurais; d) utilizar racionalmente a cobertura florestal nativa existente, destacando-se os remanescentes de caatinga e cerrado; e) reduzir os desmatamentos; f) recuperar áreas antropizadas com o plantio de florestas produtivas; g) preservar os remanescentes da cobertura florestal existente, principalmente da Mata Atlântica; h) ampliar a oferta de empregos, através da inserção das atividades florestais na atividade

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produtiva rural; i) reduzir o fluxo migratório para os grandes centros urbanos; j) divulgar à população os benefícios do uso racional dos recursos florestais; k) promover a formação e estruturação da economia e da cultura florestal no Estado (BAHIA, 1998, p. 1).

Percebe-se o alinhamento dos objetivos traçados nos programas quanto ao incentivo ao reflorestamento e à preservação dos recursos naturais, tanto no plano nacional quanto no estadual, considerando a satisfação da demanda pelos produtos agroflorestais, a necessidade de conservação e/ou recuperação ambiental e a melhoria da qualidade de vida da população através da geração de emprego e renda. Entretanto, a generalidade dos objetivos, a falta de explicitação dos instrumentos e meios para sua consecução, além das condições objetivas muitas vezes desfavoráveis à sua implementação, fazem de tais programas uma coleção de boas intenções que se restringem aos documentos, não sendo concretizadas na realidade, especialmente nos quesitos ambiental e social, tal como foi possível observar no caso da recente implantação de projeto de reflorestamento no município de Cândido Sales, Bahia (GOMES NETO, 2008).

Resultados e discussão

O Brasil apresenta hoje um dos maiores índices de produtividade no setor florestal em todo o mundo. Isso ocorre por conta da composição de fatores que dão ao país vantagem competitiva frente aos demais nesse segmento. Dentre esses fatores se destacam as condições ambientais, as quais tornam o país propenso ao desenvolvimento florestal em seu território, seja para a existência e crescimento de florestas naturais, como para a formação de maciços florestais de espécies consideradas exóticas. A título de exemplo, o ciclo de corte do eucalipto no país (planta mais utilizada no cultivo de florestas plantadas no Brasil e no mundo) varia entre 5 e 7 anos, enquanto que nos países do Hemisfério Norte esse prazo oscila entre 20 e 25 anos. Além disso, outros três aspectos contribuem para a ampliação dessa produção madeireira no Brasil: a)

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o emprego da mecanização; b) a fertilização dos solos; e c) a utilização da biotecnologia.

Conforme informações levantadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), atualmente, as áreas de plantações florestais no Brasil correspondem a cerca de 5,4 milhões de hectares, dos quais 60% são do gênero Eucalyptus, 36% do gênero Pinus e 4% de outras espécie, sendo que o segmento de base florestal representa cerca de 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, se responsabilizando por 17,8% das exportações do agronegócio e 7,4% do total das exportações brasileiras, não obstante, no ano de 2004, este comércio totalizou U$S 1,7 bilhão em exportações para a balança comercial do país.

Em 2005, pesquisas realizadas pela Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO) demonstraram que o reflorestamento comercial na América Latina pode aumentar em quatro milhões de hectares até 2020, permitindo ao Brasil, nesse contexto, fazer com que sua indústria de base florestal possa dobrar as exportações até lá e alcançar a marca de 6% do comércio mundial desse ramo em expansão.

O setor de base florestal brasileiro desempenha um papel representativo na dinâmica sócio-econômica nacional no concernente à geração de emprego, pois no ano de 2006 esse segmento empregou aproximadamente nove milhões de pessoas de maneira direta e indireta o que corresponde a 12,5% da população economicamente ativa do país, sendo as atividades de implantação e manutenção dos empreendimentos florestais as que empregam o maior número de pessoas no setor florestal (BRASIL, 2006).

Mas, de acordo com estudos setoriais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) realizados em 2002, mesmo diante de toda essa conjuntura favorável o Brasil corre o risco iminente de sofrer um “apagão florestal” a partir de 2004, em virtude do déficit interno de madeira oriunda de florestas plantadas, fenômeno que atingirá de maneira heterogênea cada região do país por conta do ritmo de exploração das coberturas vegetais originais e do ritmo de reflorestamentos desenvolvidos.

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Segundo estimativas de Bacha e Barros (2004), para o Brasil como um todo manter estável o seu estoque de área plantada existente em 2000 (4,98 milhões de hectares), o plantio mínimo anual no período de 2001 a 2010 deveria ser de 237 mil hectares por ano, porém as perspectivas de reflorestamento de alguns agentes reflorestadores principais – empresas de celulose, siderúrgicas e pequenos produtores – somam aproximadamente 229.845 hectares no ano de 2010, ou seja, um déficit de 7.155 hectares de área plantada. Nas figuras 1 e 2 pode-se observar a evolução da oferta e do consumo de madeira entre 1990 e 2006.

Figura 1 - Evolução da Produção Anual de Madeira em Tora para Uso Industrial de Floresta Plantada no Brasil: 1990 – 2006 (1.000 m3).Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas, 2007 apud Sociedade Brasileira de Silvicultura, 2007

Figura 2 – Evolução do Consumo Anual de Madeira em Tora para Uso Industrial de Floresta Plantada no Brasil: 1990 – 2006 (1.000 m3).Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas, 2007 apud Sociedade Brasileira de Silvicultura, 2007.

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Comparativamente, observa-se que a partir de 2004 todo o volume da produção de madeira industrial em tora é consumido, colocando o Brasil em uma situação de risco, pois as perspectivas de aumento da demanda energética no país poderão levar a duas situações: a uma deficiência no fornecimento, caso não haja eficazes projetos de reflorestamentos para fins comerciais; ou ao aumento do desmatamento em função da pressão sobre as florestas naturais para o abastecimento do mercado futuro.

A partir desse diagnóstico, o Estado da Bahia formulou políticas de incentivo à atividade florestal em seu território, dentre as quais se podem exemplificar a que atualmente está em vigência: Programa Floresta Bahia Global (anteriormente denominado Programa Florestas para o Futuro). Essas políticas têm por objetivo reverter (mesmo que tarde) a ameaça do dito “apagão florestal” em uma oportunidade de desenvolvimento de uma atividade econômica, pelo menos em tese, geradora de emprego e renda, de modo que a Bahia possa se tornar fornecedora de matérias-primas de base florestal aproveitando-se da alta demanda pelos produtos agroflorestais e das condições naturais propícias à silvicultura.

Entretanto, alguns questionamentos devem ser apontados em face de tal estratégia de incentivo à atividade florestal, tanto como política de desenvolvimento, como na vertente da “gestão ambiental” do território, pois o aproveitamento das chamadas “vantagens comparativas ambientais” e da conjuntura de mercado favorável pode reforçar a especialização da economia regional na produção commodities e a tendência à regressão produtiva (BRANDÃO, 2007), numa versão tecnológica e ideologicamente atualizada de velhos modelos nos quais a exploração das “vantagens naturais” enquanto trunfo de “competitividade real”, possivelmente reforça estruturas socioeconômicas vigentes ao invés de contribuir para a consecução dos objetivos sociais e ambientais preconizados.

Considerações finais

Neste trabalho foi possível analisar alguns aspectos do mercado de base florestal como um segmento em franca expansão em virtude do

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crescimento econômico verificado no Brasil e no mundo, nos primeiros anos deste século, o que implica em uma maior necessidade de fontes de energia para o abastecimento do sistema.

No setor florestal o Brasil aparece como um dos mais eficientes países no desenvolvimento de florestas plantadas, isso ocorre por conta das propícias condições ambientais encontradas no território para essa atividade, da utilização da mecanização, da fertilização do solo e do emprego da biotecnologia no desenvolvimento dos empreendimentos florestais. Tal expansão tem sido favorecida pela a ação do Estado por meio de políticas de fomento para o setor, viabilizando as condições técnicas, legais e financeiras.

Apesar de uma conjuntura favorável em relação ao setor florestal, o Brasil sofre com a defasagem entre a demanda e a oferta de madeira. Nesse contexto, o Estado da Bahia fixou o objetivo estratégico (pelo menos do ponto de vista econômico) de se tornar fornecedor de matéria-prima de base florestal, e para isso elaborou e está executando políticas voltadas ao incentivo dessa atividade, buscando atrair investimentos externos, o que, em tese, contribuiria para diversificar as atividades produtivas e gerar emprego e renda para a população local.

Na verdade, o impacto da atividade florestal no Brasil é tão forte na geração de emprego, na balança comercial e na geração de divisas, que muitas vezes as devidas precauções com relação à implantação dos empreendimentos florestais, principalmente no concernente ao aspecto ambiental, são desconsideradas, o que poderá implicar em enormes custos sociais e ambientais no futuro.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 279-296 2009

Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico

Moisés dos Santos Viana 1

Lúcia Gracia Ferreira 2

Adriana Guerra Ferreira 3

Sandra Lúcia da Cunha e Silva 4

Resumo: O presente artigo é uma reflexão acerca da linguagem, o discurso científico e a divulgação do discurso científico, sendo este último discurso expresso no jornalismo, tratando da questão dos gêneros de discurso em geral e do gênero de divulgação científica em particular. Para iniciarmos tal abordagem, partimos do cabedal teórico do filólogo russo Mikhail Bakhtin e de alguns expoentes da Análise do Discurso (AD), tratando de referenciais como o universo linguístico gêneros do discurso, necessários à comunicação na sociedade. Ademais fazemos uma teorização sobre o discurso cientifico e sua relação locutor-interlocutor e também a sua relevância e precisão na criação do discurso de divulgação científica (midiática) que tem características próprias. Assim, este artigo tem o objetivo de fazer uma reflexão teórica sobre a divulgação científica, mais precisamente o discurso jornalístico que realiza essa tarefa.

Palavras-chave: Ciência. Gênero de discurso. Análise do discurso.

1 Jornalista. Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)/Itapetinga. Mestrando em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor Auxiliar UESB/Itapetinga. E-mail: [email protected] Pedagoga. Mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: [email protected] Graduanda em Matemática pela UESC. E-mail: [email protected] Doutora em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Professora Titular da UESB/Itapetinga. E-mail: [email protected]

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Gender of speech and scientific spreading: journalistic speech challenges

Abstract: The present article is a reflection about language, the scientific speech and the spread of the scientific speech, being the last speech reported in journalism, dealing with gender of speech generally and with scientific spread in particular. In order to start such a broach, we depart from the russian philosopher Mikhail Bakhtin and from some state of Speech Analysis, dealing with references like the linguistic universe of speech gender, necessary to society communication. Furthermore, we set a theorization about scientific speech and speaker-interspeaker and as well its importance and accuracy in the scientific spread of speech (midiatic) which has proper features. Thus, this article has objective to set a theoretical reflection on a scientific spread, however precisely the journalistic speech that accomplishes this task. Keywords: Science. Speech gender. Speech Analysis.

Introdução

Este artigo trata de questões relacionadas ao discurso, a linguagem, a divulgação cientifica e ao discurso jornalístico. A partir disso, analisamos a relevância dos gêneros dos discursos no entendimento dos gêneros de discurso envolvido na divulgação científica. Assim, esta reflexão tem um caráter especificamente teórico, e para sua realização construímos um referencial, a partir de autores como Bakhtin (2002, 2003); Brandão (1990); Burkett (2004); Foucault (2003); Hernando (1977); Lage (2001); Lopes (2003); Serra (2001); Zamboni (2001) dentre outros. O artigo tem o objetivo de fazer uma reflexão teórica sobre a divulgação científica, mas precisamente, o discurso jornalístico. Partimos da idéia de que o sujeito, após produzir seu discurso e transmiti-lo, o faz por si só, assumindo o papel de locutor ou sujeito falante de uma situação: “[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ [...]” (BRANDÃO, 1990, p. 63). Eles carregam consigo um conjunto de fatores que proporcionam

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o desenvolvimento articulado de enunciados referentes às áreas familiares e pertinentes à vida desses indivíduos, ou seja, trazem em seu discurso a sua experiência de vida. Assim, tem-se o gênero de discurso, uma referência à locução verbal fixado em um campo do conhecimento ou situacional: “[...] o gênero pode ser definido como um tipo relativamente estável de discurso, elaborado por cada esfera de utilização da língua” (ZAMBONI, 2001, p. 88).

Ademais, aqui tomamos como referência teórica o parecer de Lilian Zamboni ao encontrar gêneros diferentes de discurso quando há a locução verbal entre cientistas: discurso científico (um tipo); e quando o discurso do cientista é intermediado por outros sujeitos para um público não-iniciado no campo científico, fazendo surgir um discurso diferente, o de divulgação científica.

linguagem e discurso: uma questão de gênero

Em seus estudos sobre a linguagem e o discurso, Bakhtin (2003, p. 261) levanta a hipótese de que há diversos tipos de discursos para as diversas variedades de áreas do corpo social, que envolvem as relações do ser humano “Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas acima de tudo, por sua construção composicional”.

Nessas áreas, segundo Mondin (1980, p. 36), o universo linguístico torna-se representações da realidade em que o ser humano se insere. “[...] a linguagem é o instrumento ideal da intencionalidade essencial do homem. Este é um ser aberto e em movimento constante, orientado para a realidade que o circunda e ameaça”. Por isso, o discurso é instrumento, uma brecha para descrever o espaço, o tempo e o contexto onde o sujeito está inserido: “Essa abertura dispõe para a comunicação e a comunicação faz-se principalmente por intermédio da linguagem” (MONDIN, 1980, p. 36). Desse modo, a função do discurso é a representação, a descrição e

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a interlocução de acordo com a dinâmica contextual que o sujeito atua e se relaciona. Para cada dinâmica um tipo de linguagem e de discurso.

Bakhtin chama de gênero de discurso os tipos estáveis do discurso, aplicados dentro de um campo. Destaca-se o domínio de produção do discurso: “[...] características dos discursos dependem essencialmente de suas condições de produção situacionais nas quais são definidas as coerções que determinam as características da organização discursiva e formal [...]” (CHARAUDEAU, 2004, p. 251). Tudo porque, cada gênero torna-se dependente do contexto de produção que o rodeia e o define. Em Bakhtin, há duas categorias de base, que ele chama de gêneros primários e gêneros secundários de discurso. Os gêneros primários são espontâneos e se ligam ao cotidiano dos sujeitos; são também heterogêneos e dialógicos, constituindo uma troca enunciativa imediata, sem muita sofisticação; já o gênero secundário está ligado às elaborações sofisticadas, derivados dos gêneros primários, são mais complexos e especialmente organizados. Contudo, há que se ressaltar a importância do estudo conjunto e mútuo desses campos discursivos, conforme salienta a observação bakhtiniana sobre os gêneros, pois eles refletem o conteúdo do tema abordado, o estilo verbal e a construção composicional do enunciado:

Uma determinada função (científica, técnica, publicista, oficial, cotidiana) em determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados tipos de enunciados estilíticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis (BAKHTIN, 2003, p. 266).

Bakhtin (2003) ainda discute as relações entre os enunciados e os gêneros do discurso e salienta que, de um lado, há uma certa individualidade do enunciado e, por outro, a variedade dos gêneros do discurso. Que o estilo está ligado ao enunciado e aos gêneros do discurso. E que tanto a escolha dos gêneros como a escolha do estilo do enunciado são decorrentes da assunção de que cada enunciado tem autor e destinatário.

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283 Gêneros do discurso e divulgação científica: desafios do discurso jornalístico

Gênero, temática e estilo se unem e mudam de acordo com o campo específico da formulação do discurso. Aí, encontra-se a presença e a função do sujeito, seu objetivo comunicacional. Ao ser locutor do enunciado, ele delimita sua área de atuação interagindo, modulando e delimitando seu parecer discursivo: “[...] cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida, dependendo das diversas funções da linguagem e das diferentes condições e situações de comunicação é de natureza diferente e assume formas várias” (p. 275).

Na opção por um gênero do discurso, deve-se levar em conta o objeto e o sentido; o projeto do discurso no locutor; bem como as formas que compõem os gêneros.

O objetivo do discurso se esgota, exaure-se ao se tornar tema de um enunciado. O autor como que define a idéia enunciada. “Essa idéia determina tanto a própria escolha do objeto [...] quando os seus limites e sua exauribilidade do enunciado: [...] também a escolha da forma do gênero na qual será construído o enunciado [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 281). Assim sendo, essas condições semântico-objetais são tematizadss pelos participantes. A sua exaurabilidade depende da destreza pelo qual é utilizado o gênero determinado. Com relação ao projeto discursivo, a individualidade do discurso é perpassada pela situação, determinando o gênero a ser usado para a ação comunicacional. É o sujeito falante que elabora o projeto das cadeias enunciativas. No que diz respeito às formas gramaticais e de língua, essas se apresentam ao sujeito falante junto com as cadeias de vocabulários e sintaxe (instrumentos linguísticos determinantes na comunicação enunciativa). Estas são as normas recebidas pelo sujeito, que é obrigado a se subordinar ao parecer preestabelecido pela sociedade, onde ele está inserido ou a um subgrupo social em que ele é iniciado. Em síntese, os gêneros de discurso se entrelaçam, a partir do sujeito, posicionado num determinado campo, acabando por exaurir seu objeto e o seu sentido:

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Por isso, cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um determinado conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios linguísticos e dos gêneros de discursos é determinada, antes de tudo, tarefas (pela idéia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido. É o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estilísticos-composicionais (BAKHTIN, 2003, p. 289).

As realidades que contextualizam e preparam o sujeito em sua expressão enunciativa também determinam a escolha do gênero de discurso. Ao sujeito locutor, com sua índole individual, cabe, ainda, os sentidos que dá ao objeto do enunciado e seu objetivo específico. Este se liga ao destinatário (a comunicação tem objetivo), ou seja, “um traço essencial (constitutivo) do enunciado e o seu direcionamento a alguém, o seu endereçamento” (BAKHTIN, 2003, p. 301). Desse modo, interessa ressaltar que, para atingir o objetivo do discurso e da comunicação, o interlocutor tem uma participação importante:

A quem se destina o enunciado como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero (BAKHTIN, 2003, p. 301).

É o destinatário que pode apresentar o grau de percepção suficiente, o nível de conhecimento, sua inteiração e concepção de mundo, até os preconceitos. Por isso, o gênero de discurso leva em conta a posição social, idade, grau de instrução e o nível social do falante, bem como o do receptor. Na comunicação de massa de mercado, essas características são catalisadas no que se conhece por “perfil de público”.

No discurso, o receptor assume um papel de participante, pois tem influência sobre o locutor e seu enunciado. Assim, a composição e o estilo do discurso dependem da percepção e da imagem que o locutor formula do destinatário (ZAMBONI, 2001, p. 93).

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Discurso científico

Para Bakhtin (2003, p. 390), os enunciados são destinados e variados em grau de assimilação do destinatário. O locutor projeta e antecipa a compreensão daquilo que é formulado: “Quem fala e a quem fala. Tudo isso determina o gênero, o tom e o estilo do enunciado: a palavra do líder, a palavra do juiz, a palavra do mestre, a palavra do pai, etc.”. Nesse sentido, pode-se argumentar que o discurso científico seja diferente do discurso de divulgação científica, o qual surge dentro de um contexto, enunciativo sócio-cultural específico, abrangendo tempo e espaço.

Segundo o físico norte-americano Lawrence M. Krauss, nessa época contemporânea, a ciência tem precedência e valor de verdade, por conta da “transparência”, do uso da metodologia e dos benefícios e desenvolvimento social que ela proporciona, incluindo também o que os cientistas têm a dizer sobre seus estudos:

Ela acontece em um contexto social, e os resultados dela têm implicações importantes para a sociedade, mesmo se usados apenas para compreender como nós humanos nos encaixamos no Cosmos. Portanto, a simples geração de conhecimento, sem nenhuma tentativa de disseminá-lo e explicá-lo, não é suficiente (KRAUSS, 2004, p. 89).

Entretanto, o desenvolvimento e o resultado teórico da ciência é restrito a certos indivíduos, grupos especializados:

Numa visão sociopolítica mais alargada, as comunidades de cientistas formam-se no interior de instituições de pesquisa, nas universidades, nos centros de pesquisa privados, nos laboratórios, com finalidades e motivações de variada ordem [...] (ZAMBONI, 2001, p. 30).

Os cientistas formam um corpo de analistas, que desenvolveram uma práxis dedutiva ou indutiva sob o objeto qualquer de sua escolha, num determinado campo do conhecimento. Tal postulado é um ponto

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que pode esclarecer a formação de um tipo de discurso pertencente às pessoas que desenvolvem as ciências. Como salienta o filósofo Michel Foucault, eles compõem um grupo privilegiado, instituído de qualificação para tal procedimento: criar um enunciado verbal e competente no assunto. A fala científica se restringe nessa área: “[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT, 2003, p. 37). A competência desse discurso é restringida tecnicamente e por isso, determinada pela sociedade que Foucault denomina “sociedade de discurso” e que tem e usa mecanismos restritivos eficientes: “[...] cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los somente segundo regras estritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição” (p. 39). A questão do discurso é posta de forma a abranger o produtor, o locutor do enunciado dentro de normas restritas.

Nos discursos científicos há a presença do locutor e do interlocutor. Eles estão num mesmo nível de conhecimento, numa mesma comunidade científica. Eles falam para seus pares: “Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 266). Esses dados são avaliados num nível horizontal na comunidade restrita. “Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de concretude, de compreensibilidade, etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra do discurso procura e antecipa” (p. 333).

Para Lopes (2003) o discurso dos cientistas é sustentado pela harmonia com o tempo lógico e o tempo histórico, concebendo um discurso como uma totalidade:

[...] o princípio da não-contradição interna, pelo qual o módulo deve dar conta do tempo lógico em que o discurso se inscreve; o princípio da não-contradição externa, que exige que se dê conta do tempo histórico presente na obra; o princípio da responsabilidade científica, que reclama do autor do discurso o desempenho consciente em sua produção (LOPES, 2003, p. 118).

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Ademais, em seus estudos, Zamboni (2001) salienta a importância do discurso científico e o concebe como um enunciado hermético, por se tratar de uma área restrita de campos específicos de vários níveis de gêneros científicos, como o discurso científico de audiência leiga (mas não se trata de um discurso de divulgação científica – gênero –, pois tem as características dos enunciados científicos, expressados por cientistas); o discurso científico especializados (circulam como descobertas antigas, servem como forma pedagógica de um conhecimento); e o discurso científico altamente especializados (trata-se de novidades de pesquisas inéditas, descobertas recentes e originais). Outra peculiaridade desse discurso se apresenta nas esferas sintática, semântica e lexical com seus repertórios e a escolha do repertório científico que provoca um sentido linguístico dentro do meio científico.

Nesses gêneros científicos há o caráter esotérico e duro para um público não iniciado nesse tipo de leitura. No caso, a autora esquematiza as partes competentes desses discursos que podem ser divididos em: a) introdução; b) material e métodos; c) resultados e discussão. A introdução compõe o início, como numa dissertação, onde se apresenta o problema, a hipótese e é comum apresentar o “[...] objeto específico que está sendo investigado [...], importância da pesquisa [...]” (ZAMBONI, 2001, p. 37). Os materiais e métodos correspondem a parte caracteristicamente desse discurso que mais se restringe ao grupo enunciador desses gêneros, uma parte importante: “[...] apresentação detalhada do material, a potencialidade de permitir a repetição da experiência em outro centro de pesquisa [...]” (p. 37). Os resultados e a discussão é a parte conclusiva, onde se tabulam as deliberações expressadas na pesquisa: “[...] as consequências originadas pelo emprego da metodologia adotada, apresentam-se os resultados [...], os comentários acerca dos resultados [...]” (p. 38). Vale ressaltar que essas idéias nem sempre são acessíveis a quem está fora da comunidade científica e iniciados.

Por tudo isso, pode-se falar que há o processo pragmático e plástico da pesquisa. Ele é base do processo enunciativo desses gêneros. Assim, os enunciados científicos não são meras repetições discursivas, mas

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possuem um caráter de sustentáculo e genealógico para outros gêneros, sem esquecer, é claro, da dimensão contínua dos discursos em geral:

Nenhum enunciado pode ser o primeiro e último. Ele é apenas o elo na cadeia, de fora dessa cadeia não pode ser estudado. Entre os enunciados existem relações que não podem ser definidas em categorias nem mecânicas nem linguísticas. Eles não têm analogias consigo (BAKHTIN, 2003, p. 371).

Especificamente, o discurso científico inspira e nutre o discurso de divulgação científica ou discurso midiático: “Em realidade, repetimos, todo enunciado além do seu objeto, sempre responde (no sentido amplo da palavra) de uma forma ou de outra aos enunciados do outro que o antecederam” (BAKHTIN, 2003, p. 300). Portanto, tal proposição indica o surgimento e o uso do gênero discursivo diferente e mais acessível.

Discurso de divulgação científica

Segundo Zamboni a divulgação científica é um gênero de discurso distinto de outros, contudo, como os demais, assume o caráter pouco autônomo, necessitando de outros discursos fontes. O discurso de divulgação é elaborado tendo em vista a acessibilidade de um tipo de receptor que não pertence exclusivamente ao âmbito dos cientistas: “O destinatário, que era originalmente a comunidade científica, passa a ser agora um público aberto, tido como leigo em matéria de ciência [...]” (ZAMBONI, 2001, p. 10). Assim, o gênero de discurso de divulgação se torna um conjunto de enunciados interpretantes do discurso científico para o público de não-cientistas. “[...] o divulgador falando por um outro, o cientista, e para um outro, o público leigo” (p. 85). Dessa maneira, o que pode caracterizar bem esse tipo de discurso é uma estrutura resultante da peculiaridade de sua produção, como a presença de termos científicos diluídos didaticamente, mas que surgem no discurso de divulgação.

Lage (2001, p. 123) afirma que o objetivo de quem informa sobre ciência é transformar conhecimento científico em conteúdo divulgador,

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isto é, clarear e simplificar as hipóteses, teorias da pesquisa científica para o público, a exemplo do jornalismo científico:

O jornalismo procura grau distinto de precisão, determinado pela amplitude diversa de seu público, que é extenso e disperso. O texto jornalístico traduz conhecimento científico em informação jornalística científico-tecnológica, procurando tornar conteúdos da ciência compreensíveis e atraentes.

Há a tentativa de compartilhar o saber que o receptor não possui, para isso, é preciso determinados graus de inteligibilidade, variadas por mecanismos eficazes, junto com o uso de formas instrumentais tais como denominações, exemplificações, classificações, sinônimos, comparações: “[...] representações que os enunciadores fazem das lacunas dos seus destinatários e atribuem, por consequência, graus diferentes de didaticidade, laicidade ou cientificidade” (ZAMBONI, 2001, p. 97). Uma mediação interessante e salutar, cujo objetivo é mostrar e expor numa superfície social o trabalho científico.

Além de comunicar fatos científicos, idéias, processos, o jornalista deve entender e tratar do contexto em que a ciência é gerada e usada, de sua gênese, que é também política e econômica, de seus efeitos e entrelaçamentos sociais e culturais às vezes dramáticos. Em uma palavra, o jornalista científico não pode apenas informar. Comunicar a ciência jornalisticamente implica comunicar de forma crítica, situada, contextual, rigorosa. Ao mesmo tempo, implica comunicar de maneira interessante, cativante, ágil e dentro dos vínculos frustrantes que o funcionamento da mega-máquina midiática impõe (CASTELFRANCHI, 2008, p. 19).

Falar sobre ciência é antes de tudo colocá-la a serviço da sociedade, juntamente com sua aplicação prática, abrangendo temas que alcançam o cotidiano, como destaca o estudioso do jornalismo científico, Burkett (1990, p. 5): “Redigir ciência também abrange temas como aplicação da ciência através da engenharia e tecnologia e, especialmente as ciências-arte, da medicina e cuidados com a saúde”.

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Dessa maneira, o periódico de caráter científico tem como objetivo mediar as instâncias entre o público leigo e o mundo das descobertas científicas: “[...] a redação científica tende a ser dirigida para fora, para a audiência além da estreita especialidade científica onde a informação se origina. [...] a redação científica ajuda a transpor a brecha entre cientistas e não-cientistas” (p. 6).

Fabíola Oliveira (2002) vem nos apontar algumas diferenças entre os discursos da ciência e os jornalísticos:

A redação do texto científico segue normas rígidas de padronização e normatização universais, além de ser mais árida, desprovida de atrativos. A escrita jornalística deve ser coloquial, amena, atraente, objetiva e simples. A produção de um trabalho é resultado não raro de anos de investigação. A jornalística rápida e efêmera. O trabalho científico normalmente encontra amplos espaços para publicação nas revistas especializadas, permitindo linguagem prolixa, enquanto o texto jornalístico esbarra em espaços cada vez mais restritos, e portanto deve ser enxuto, sintético (p. 43).

Forma-se a opinião pública sobre a ciência (fórum privilegiado), mostrando o poder desses grupos, que detêm o conhecimento, e sua posição em relação aos demais grupos. Nos seus estudos ligados à nutrição, Serra apresenta e denomina a presença do discurso midiático como mediador entre os enunciados científicos com o público. Seus estudos não salientam a presença de um discurso de divulgação, mas o gênero midiático, com seu caráter universal e seus enunciados acessíveis: “A característica distintiva do discurso midiático é o fato de o âmbito da sua legitimidade não ser delimitado pelas fronteiras de um domínio restrito da experiência, ou seja, a mídia se apropria do discurso e da experiência de diversas áreas de conhecimento” (SERRA, 2001, p. 17).

Nas idéias defendidas pela nutricionista, em suas análises discursivas, o discurso midiático é aberto, público e pode ser entendido por muitas pessoas que se interessam pelo assunto. Diferente das características esotéricas dos enunciados puramente científicos, limitados

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a um grupo e, portanto, restritivos, fechados e difíceis: “Desse modo, a mídia, mesmo quando utiliza termos científicos, os expressa em palavras do domínio público, atribui a determinados termos científicos, significados populares” (SERRA, 2001, p. 17). Apresenta-se então um caráter democrático e possível de ser avaliado em outras esferas sociais que perpassam a vida humana. Quem emite o discurso de divulgação, segundo Hernando (1977, p. 19), deve assumir o papel de interlocutor junto à fonte: “El periodista científico debe ser, ante todo, periodista. En outro lugar, y al hablar de los problemas de la difusión de la ciencia [...]”. Assim, o divulgador deve, por conseguinte, conhecer o assunto a que se refere e saber traduzir, em uma linguagem fácil o conhecimento acerca do tema abordado:

El periodista científico debe cumplir una doble condición: conocimientos científicos y conocimientos de técnica periodística. Lo que importa, en definitiva, es disponer de una capacidad de selección de lo que es verdaderamente importante y debe llegar a la opinión pública y que el tratamiento de la información sea correcto (HERNANDO, 1977, p. 20).

Para isso, Zamboni (2001, p. 62) destaca a necessidade de refazer o discurso científico, traduzindo-o com resumos, resenhas e paráfrases, surgindo daí a divulgação. “Submetido a outras condições de produção, o discurso científico deixa de ser o que é”. Isso é feito sobre a matéria-prima retirada dos papers de ciência, notícias, entrevistas, press releases. Depois são aplicados mecanismos que proporcionam, ao conhecimento criado pelos cientistas, o nivelamento máximo possível ao grande público, conforme demonstra a Figura 1.

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locutor Gênero de discurso Receptor

Cientistas Discurso científico Cientistas

Reelaboração

Divulgador Discurso de divulgação Grande público

Figura 1 - Processo de elaboração e reelaboração do discurso científico, com vistas ao público alvo.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Consequentemente, exposta através dos veículos de informação, a característica da ciência perde, de certa forma, a pureza objetiva da análise científica. Tudo porque muitos conceitos são empobrecidos, ou até mesmo retirados, para o entendimento geral do conteúdo informativo, ao se transmitir a informação para um público fora do círculo científico:

À medida que os escritores de ciência espalham informações fora do núcleo das disciplinas científicas, a ciência perde alguma precisão e muito do jargão técnico. Nos meios de comunicação de massa – jornais, rádio e televisão – a ciência torna-se popularizada [...]. Portanto, o redator de ciência deve procurar o “significado” para o seu público-alvo (BURKETT, 1990, p. 8-9).

O rigorismo e a postura sisuda do cientista, outrora presente no discurso científico, é posto de lado, pois na divulgação científica, interessa muito mais envolver emocionalmente o leitor, num ritmo e entonação discursiva cativante, numa maneira de dizer peculiar dos gêneros discursivos

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mais populares. Uma outra característica da divulgação é a aproximação da ciência, suas descobertas, com a vida das pessoas e seu dia-a-dia (O que poderia ser útil? O que é interessante saber sobre ciência?).

Zamboni (2001) ressalta as peculiaridades desse gênero, cujas funções e formas linguísticas das inserções lexicais na sintaxe discursiva, são métodos eloquentes que acentuam com “aspas” ou itálicos as partes léxicas diferentes do resto do corpo enunciativo, podendo vir marcado tanto termos científicos como familiares ou coloquiais. Nesse caso, ele assume um valor conotativo para uma melhor assimilação do conteúdo científico, aproximando do léxico comum do público. Um outro ponto destacado pela autora diz respeito à nomeação (função legitimadora), para melhor elucidar as questões, tais como o mecanismo se chama..., o nome da nova teoria é..., o método de pesquisa é denominado..., entre outros. Há uma reformulação do discurso por parte do divulgador, com vistas à “facilitar a compreensibilidade, na tentativa de aproximar o leigo do recorte de mundo de que vai se tratar” (ZAMBONI, 2001, p. 134). Zamboni destaca ainda, a necessidade da existência de profissionais de comunicação (não-cientistas), mas divulgadores do discurso científico. Por último a definição (função explicadora), semelhante à nomeação, faz-se presente para esclarecer certos termos incomuns ao público, desse modo são explicitados. Ela se subdivide em definição por aproximação, definição por justaposição metalinguística e definição por conceituação. A primeira garante a compreensão do destinatário, assim são usados termos familiares ao leitor, mas com resguardo conceitual e igualdade de valor com o objeto científico, a exemplo de: “a luz viaja no espaço” e “os buracos da lua”. A segunda definição introduz termos de metalinguagem diante de um jargão científico (termo técnico): “nanômetro é o nome que se dá a escala de medida para objetos pequeninos”. Na definição por conceituação o termo técnico recebe uma conceituação e assim é entendido, identificando os objetos que são estudados pela ciência: “O DNA é uma estrutura, em escala nanométrica, de um esqueleto formado de duas colunas de bases protéicas”.

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Portanto, é necessário para boa divulgação da ciência, enquanto informação difusa, a percepção de intermediador. A ciência, de uns poucos cientistas, pode ser compreendida e permeada por quem tem acesso ao discurso de divulgação científica dos veículos informativos, que a apresentam como uma especialidade. Põe no contexto social e cultural o receptor da mensagem de divulgação científica, a partir do discurso matriz (científico), para o público, usando códigos num nível desse destinatário, observando os interesses e necessidades de cada um. Seria a combinação entre o conhecimento adquirido e conquistado com o interesse do público: “[...] a exposição que combina interesse do assunto com o maior número possível de dados formando um todo compreensível e abrangente” (LAGE, 2001, p. 112).

Conclusão

Diante do exposto, a divulgação é a área de construção do discurso informativo, o qual irá perpassar a realidade como tentativa de explicar o todo, para isso é interessante retomar o argumento da objetividade comunicativa, justificando a existência da argumentação e da retórica no discurso, ou seja, “comunicar, explicar, legitimar e fazer compartilhar o ponto de vista que ali se exprime e as palavras que o dizem; ou então, ao contrário, de eliminar os discursos concorrentes para reinar soberano em seu domínio” (PLANTIN, 2004, p. 376). Ao tratar de ciência, a divulgação funciona como forma de transmissão de informação, com uma identificação objetiva e ideológica. Segundo Lage (2001, p. 122) “ao informar, complementa e atualiza conhecimentos e neste sentido, educa; ao transmitir conhecimento, atua sobre a sociedade e a cultura, determinando escolhas econômicas e, no fim, opções político-ideológicas”. O discurso científico se torna um poderoso meio persuasivo na concretização de idéias. Através dos meios de divulgação, ele se torna acessível e se cristaliza tornando-se base singular dos discursos ideológicos vigentes, e para tanto faz uso do poderoso instrumento de difusão informativo.

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Referências

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296 Moisés dos Santos Viana et al.

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Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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o discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais

na prática jornalística

Moisés dos Santos Viana 1 José Everaldo Oliveira Santos 2

Resumo: O presente artigo é uma elucidação acerca do discurso em geral, e do discurso ecológico em particular no discurso jornalístico. Destacam-se a importância do contexto, do diálogo como características principais para desenvolvimento dessas manifestações da linguagem, os discursos. Para tanto, observa-se neles um espaço dialógico de inúmeros enunciados que se alternam infinitamente, comunicando-se dentro de infinitas possibilidades, como o discurso ecológico e o discurso jornalístico. Assim, dentro do contexto atual há um diálogo rico e necessário entre esses dois discursos.

Palavras-chave: Discurso ecológico. Discurso jornalístico. Linguagem. Dialogismo.

1 Jornalista. Especialista em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Itapetinga. Mestrando em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor Auxiliar da UESB/Itapetinga. E-mail: [email protected] Mestre em Educação. Professor do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvi-mento pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), campus de Itapetinga. Professor Assistente da UESB/Itapetinga. E-mail: [email protected].

Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas Vitória da Conquista-BA n. 5/6 p. 297-312 2009

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the ecological discourse in the journalism discourse: new attitudes mental, social and environmental in the journalism

Abstract: This article is an elucidation about the in general, and in the ecological discourse and the journalism discourse. To be detached the importance of context dialogue and main features for development of these manifestations of the language, the discourses. However notes a space of dialogue which listed numerous alternate infinitely. Communicating within infinite possibilities, such the ecological discourse and the journalism discourse. Thus within in this context there is a rich and necessary dialogue in the discourses.

Keywords: Ecological discourse. Journalism discourse. Language. Dialogism.

Introdução

A linguagem é forma de expressão do indivíduo dentro de um campo social. Uma faculdade que o ser humano tem para apresentar seu pensamento, usando, nesse caso, o suporte da língua humana (organização de sons, os fonemas). A linguagem pode ter variações, dependendo do contexto que é empregada dentro da realidade, e como apoio na construção dos vínculos sociais.

Para Saussure (1972, p. 17), essa linguagem não se desvincula da língua, pois esta faz parte daquela e ambas se completam, à medida que contribui para formação e coesão coletiva dos indivíduos: “É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”. Por isso, não se pode separar a vida em sociedade da prática da linguagem. Elas se confundem, assinala Orlandi (1987, p. 89), conservando uma homogeneidade histórica e enraizada em tradições culturais antigas: “[...] a língua não é só um instrumento, nem um dado, mas um trabalho humano, um produto histórico-cultural”. A produção da linguagem se origina na interação social ou no conflito de idéias entre sujeitos heterogêneos. Nesse caso, a linguagem é mais que símbolos arbitrários, palavras em uso. Representa valores e pensamentos já cristalizados ou impostos na sociedade.

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299 O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ...

Assim, as premissas sociais, para formar a questão do ato comunicacional da linguagem, tornam-se conteúdo comunicado ou partilha de convicções dos sujeitos da língua, que se entendem mutuamente no discurso. Quanto à formação do discurso, deve-se levar em conta o contexto que o determina, pois ele é fruto da junção sócio-cultural e histórica. A possibilidade do discurso é o contexto sociocultural, sua condição de produção. Para tanto, Marcondes Filho salienta que o discurso não é gratuito por si só, ele tem sentido num dado momento quando é produzido e quando é posto em uso:

Uma palavra não é só uma palavra, ela produz, ao ser pronunciada, algo de novo, inesperado, estranho que se acrescenta a ela. Trata-se de algo criado apenas naquele momento específico, que se instala lá dentro, um ‘qualquer coisa’ de inspirado, que toma corpo dentro das palavras. (MARCONDES FILHO, 2004, p. 53).

Portanto, na produção do discurso emergem significações e sentidos, ou seja, é na construção do sentido que se encontra a formação discursiva. Os sentidos que se inter-relacionam no estado social do emissor (locutor do discurso e interlocutor) e do receptor, chama-se situação de comunicação: “[...] dependem da estrutura das formações sociais e decorrem das relações de classes, tais como descritas pelo materialismo histórico”3 (MARCONDES FILHO, 2004, p. 114). Tudo isso forma as condições de produção do discurso. No contexto de produção surge a interface em que o discurso é assumido, ele se liga ao sujeito que o elabora, e nem por isso não deixa de fazer parte das condições preestabelecidas que fazem surgir o fenômeno discursivo. Em outra palavras, o sujeito do discurso está inserido nas condições de produção.

3 Para Karl Marx (1818-1883), filósofo alemão, a realidade deve ser entendido do ponto de vista material e econômico-social. Ora, a realidade histórica, segundo o marxismo, baseando-se em Hegel, interpreta a história como o palco da luta entre classes opostas (escravos X senhores, burgueses X proletários). A realidade social é fruto dos meios de produção e de sua distribuição. Constituindo a realidade do materialismo histórico: “Marx, por su parte, encargará de hacer una lectura materi-alista de la realidad donde Hegal había hecho una lectura idealista. [...] la historia es el producto de condiciones materiales tanto de la naturaleza como de la historia” (ELLACURÍA, 1991, p. 23).

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Desse modo, nesse artigo, através de uma pesquisa bibliográfica, apresenta-se uma reflexão acerca do discurso gerado no contexto atual de crise ecológica. A pesquisa teve como com objetivo de encontrar as características do discurso ecológico e tecer uma relação com o discurso jornalístico. A pesquisa recorre à teoria do discurso, em Bakhtin (2002) e o conceito de Ecologia em Guattari (1991). Destacam-se a análise das variações enunciativas, comunicativas no universo interpessoal

Na primeira parte fazemos elucidações sobre o discurso jornalístico e como este nasce do contexto social. Após isso, refletimos sobre os aspectos do discurso ecológico e como este se faz presente atualmente em meio aos desafios sócio-ambientais da contemporaneidade.

Discurso jornalístico

Há a necessidade de quem produz o discurso, de voltar-se para os mecanismos fornecidos pela linguagem e, a partir disso, medir seus efeitos de sentidos dentro do contexto social que envolve as condições de produção. Dessa maneira, na formação do discurso, o emissor antecipa as representações do receptor e funda estratégias de discurso para obter êxito no seu objetivo.

Assim, tem-se o sujeito falante do discurso que é o porta-voz que dialoga subjetivamente com o contexto discursivo. Ele assume o papel social e o papel discursivo. Ele que possui as ferramentas da linguagem para utilizar na língua sua forma morfológica, suas regras sintáxicas e o sentido semântico de cada palavra expressada.

Ele é o interlocutor não o autor do discurso, formulando-o e reformulando-o, para expressá-lo. Escolhe, privilegia e determina maneiras ou formas para expressar seu pensamento, adequando-o para obter sucesso na comunicação. No sujeito, o discurso se faz numa perspectiva do “eu” com o “tu”, uma troca interlocutiva. Depois, o “tu” determina o que o “eu” irá dizer, seguido por um anseio pela completude, o sujeito do discurso se completa interagindo com o outro.

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Há assim um diálogo intradiscursivo que se chama dialogismo: “Fenômeno que participa da estrutura interna de todo discurso. Criticando a filosofia da linguagem e a linguística por terem estudado o diálogo apenas como uma forma composicional de construção do discurso [...]” (ZAMBONI, 2001, p. 23). Ademais, a interatividade do discurso é instante pelo qual o sujeito passa a ser espectador e ator, interagindo com o outro, variando o papel discursivo. A interação entre os sujeitos é percebida, no momento em que os observadores conhecem os efeitos do discurso sobre os interlocutores, um feedback discursivo. Desse modo, pode-se argumentar sobre a existência de vários sujeitos discursivos, um é o enunciador e o outro é o destinatário. Eles sempre alternam os papéis que formam a interdiscursividade.

O sujeito é essencialmente histórico num espaço social, projeta-se num tempo, situando-se numa correlação com o discurso do outro, inserindo-se no discurso do outro, reformulando e reelaborando. O discurso sempre se localiza em relação ao já enunciado como verdade já discutida, julgada e escolhida ou rejeitada. Ele aparece de modo implícito ou explícito no sistema de produção de novos enunciados discursivos. Assim sendo, tenta-se elucidar, a partir do teórico russo, Mikhail Bakhtin, o que seria o enunciado, expresso por um sujeito, anteriormente ou posteriormente ao silêncio entre os interlocutores:

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o “dixi” percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou (BAKHTIN, 2003, p. 275).

É a enunciação que contém os conceitos, as idéias e a informação, codificados e relacionados no corpo do discurso. A enunciação frequente singulariza o discurso com jogos enunciativos, dando–lhe um corpo linguístico. A frequência regular dos enunciados constitui o discurso, dentro de relações históricas. É no acontecimento histórico que há

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a realização de um enunciado, pois ele só existe durante o discurso, uma aparição momentânea chamada enunciação, contudo, ela precisa do sujeito para que tenha sentido, juntamente com um contexto. Portanto, o sujeito da enunciação procede de modo a responder ao contexto discursivo, levando em conta a contextualidade no qual surge o enunciado e sua função no discurso. Uma leva desses enunciados reunidos forma o discurso, que seria, então, um conjunto de enunciados numa mesma estruturação discursiva.

No discurso jornalístico há o espaço de diálogo entre diversos enunciados. Nele se encontra também a dinâmica dialética que concede à categoria discursiva uma peculiar maneira de apresentar a realidade. Há nesse tipo de discurso uma síntese que apresenta o contexto enquanto espaço conflitante: “[...] em um instante qualquer, os objetivos reais praticados no cotidiano superam a ordem do discurso e vêm à tona na ordem real, provocando o rearranjo das forças em conflito” (BARROS FILHO; MARTINO, 2003, p. 160). Portanto, no discurso do jornalismo o contextual se faz presente intradiscursivamente, bem como o diálogo que é influenciado de forma bem relevante e se sintetiza: “O texto só tem vida contactando com o outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo” (BAKHTIN, 2003, p. 401). O discurso jornalístico busca uma meta denominada síntese:

Se tratarmos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos as divisões das vozes (a alternância de sujeitos falantes), o que é extremamente possível (a dialética monológica de Hegel), o sentido profundo (infinito) desaparecerá (bateremos contra o fundo, poremos um ponto morto) (BAKHTIN, 2003, p. 401).

Dessa maneira é interessante salientar que no discurso jornalístico forma-se a partir do discurso do outro que pode aparecer inter-relacionados, de acordo com o contexto e com o fim que é direcionado: “As palavras e expressões de outrem integrados no discurso indireto e percebidos na sua especificidade (particularmente quando são postos

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entre aspas), sofrem um ‘estranhamento’ [...], justamente na direção que convém às necessidades do autor [...]” (BAKHTIN, 2002, p. 163). Assim sendo, pode-se examinar a questão do jornalismo como espaço do discurso do outro. Nessa perspectiva examinamos como o discurso ecológico pode ocupar esse espaço, inter-relacionado-se com diversos enunciados.

o discurso ecológico no discurso jornalístico

A palavra ecologia vem dos vocábulos gregos: eco casa, lar e logia, que significa estudo. Ecologia é o estudo da casa, do meio onde os seres vivem, onde se constrói o bem-estar, o habitat. O cientista alemão Ernest Haechel, cunhou o termo na biologia em 1866 (morfologia geral dos organismos). Depois disso o conceito se amplia e se torna multidisciplinar: “Através da Ecologia, por fim, valores filosóficos de unidade da vida e integração homem/natureza, presentes em várias culturas tradicionais da humanidade estão renascendo numa linguagem prática e acessível ao homem moderno” (LAGO; PÁDOA, 1984, p. 11). Ecologia envolve o cuidado da casa que se relaciona de forma íntima com a mente, a sociedade e o cosmos. Desse modo, pode-se falar de ecologia em três níveis: ecologia mental, ecologia social e ecologia ambiental.

A ecologia mental é a ecologia da pessoa. Ela nasce do desejo de autoconhecimento, desenvolvendo ações emocionais positivas que se desdobram num processo de interação intrapessoal e interpessoal. Faz-se mister construir valores de integração humana para bem-viver, de boa saúde corporal e espiritual. A violência do ser humano contra si mesmo é a imagem real da ação contra a natureza. Disso, busca-se o cultivo da paz e a transmissão desta num nível coletivo (GUATTARI, 1990).

As guerras, o capitalismo no seu modelo mais grotesco (neoliberalismo) desacredita a sociedade e a justiça social. Há uma degeneração das pessoas, uma agressividade gerada num meio desumano e miserável, onde qualquer tipo de valor ético se desfaz na luta da lei do mais rico, mais forte ou do mais armado (GUATTARI, 1990).

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Nessa ecologia social, a integração de um bem-estar pessoal se amplia na busca por uma sociedade igualitária, justa e equilibrada. Despertam-se valores de respeito pelo trabalho, pelo bem-estar material e cultural das pessoas. Nessa ecologia tenta-se interagir a cidade com seus habitantes, pensando numa economia auto-sustentável, com equidade, e estruturas de poder mais democráticas, para gerar dignidade, justiça e paz. A integração da ecologia mental e a social gera uma ecologia do sujeito total num processo de valor e luta contra a injustiça gerada pelo capitalismo que concentra os meios de produção nas mãos de uns poucos e aliena milhões, causando sofrimento e destruição (GUATTARI, 1990).

Gradualmente progresa el reemplazo del sistema ecológico natural por el sistema ecológico humano. Este progreso no es uniforme [justo] sino que depende de los avances intelectuales y técnicos que, por lo general, están directamente correlacionados com la acumulación de riqueza, tomando ésta en términos de aquellos valores de intercambio que puedan comprar alimento, recursos y servicios (HOLDRIDGE, 1996, p. 117).

Aqui, é desejoso restabelecer novas atitudes sociais, éticas e econômicas. E, além de tudo restabelecer valores que modificam para melhor a visão e relação com o planeta.

A problemática ambiental gerou mudanças globais em sistemas socioambientais complexos que afetam as condições de sustentabilidade do planeta, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a gestão democrática dos recursos naturais. Estes processos estão intimamente vinculados ao conhecimento das relações sociedade-natureza: não só estão associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias conceituais que orientam a construção de uma racionalidade produtiva sobre bases de sustentabilidade ecológica e de equidade social (LEFF, 2002, p. 60).

Precisa-se passar para uma nova maneira de compreender o mundo. Este não é uma máquina fragmentada, mas um organismo vivo

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que se auto-regula, um ser vivo que interage e inter-relaciona com tudo e com todos. Esse planeta é o lar, a casa, o ethos: “Chegamos assim a teoria de Gaia, que considera que a evolução dos organismos é de tal modo inseparável da evolução de seu ambiente físico e químico, que juntos constituem um único processo evolutivo, auto-regulável” (LOVELOCK, 1991, p. 39). Por isso, deve-se entender que os elementos constituintes do ecossistema: água, ar, rochas e outros se relacionam com as partes vivas formando reações físico-químicas. Eles constituem um todo sistêmico e não podem ser fragmentados. “A relação da parte com o todo tem a especial reciprocidade associada à noção de organismo em que a parte está para o todo; mas essa relação prevalece em toda a natureza e não se inicia no caso especial dos organismos mais complexos” (WHITEHEAD, 2006, p. 185). Desse modo, a justiça e a paz social se desdobram numa relação de integração ambiental, é a ecologia cósmica.

Ela envolve indivíduos que querem a saúde mente-corpo, buscando com dignidade e harmonia comunitária e ambiental, mediante o cuidado e o respeito pela natureza e os outros seres que formam a vida. Vive-se na busca de uma interação com o todo, com o planeta, criando mecanismos alternativos de desenvolvimento socioeconômicos. Por fim, é preciso haver a integração das três ecologias, pois o planeta é um organismo vivo, um sistema complexo de inter-relações constantes que nos proporciona a vida e o bem-estar. Portanto, ecologia diz respeito a vida e a sobrevivência, desafio na busca de novas atitudes mentais, sociais e ambientais.

Desse modo, é preciso que se compreenda a ecologia para ser elaborada e divulgada segundo um discurso ecológico contundente e esclarecedor. A responsabilidade dos profissionais de comunicação é imensa, porque eles devem orientar e proporcionar conceitos, mudanças de hábito e comportamentos através dos diversos meios de comunicação social, mensagens e dinâmicas dos processos comunicacionais (diversos meios e mídias). Também o discurso ecológico nos meios de comunicação deve proporcionar envolvimento da população na conservação dos recursos naturais, fazendo entender os impactos da

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degradação ambiental à saúde, ao trabalho, às condições de vida, ao lar, ao lazer, à escola e à comunidade.

Esta questão faz-se, então, presente criando enunciados próprios que emergem de um contexto social, fruto de uma dialética entre saber e realidade, também entre interesses diversos, formando o discurso. Assim sendo, ele é um acontecimento constituído sob diversos pontos de vista: atores, espectadores, autores e leitores. Destarte, o discurso faz-se referência às relações de significação que perpassam o acontecimento e seus protagonistas na sociedade.

O discurso está na apresentação situacional e histórica, pois narra o evento e envolve diversos níveis inter-relacionados e díspares. Aqui, pode-se assumir o parecer de Maingueneau (2004, p. 171), ele apresenta o discurso como embrião de um contexto: “[...] não se pode, de fato, atribuir um sentido a um enunciado fora do contexto”. Exemplificando: a frase jornalística, “Desmatamento da Mata Atlântica ameaça mico-leão-dourado”, resume-se num discurso diferente do adágio, “Penso, logo existo”. Assim, a matéria jornalística sobre o desmatamento de um bioma e a possível extinção de uma espécie é entendida diferentemente de um tratado filosófico de metafísica, cada um desses discursos tem suas próprias regras de apresentação contextual.

Numa perspectiva bakhtiniana, pode-se argumentar que a formação do discurso é especificamente realizada no mínimo em duas instâncias que se inter-relacionam que se interagem na concepção do enunciado. Dessa maneira, o enunciado toma para si confrontos que formam relações de âmbito semântico denominado dialogismo para assim compor a realidade percebida:

Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria vida humana. A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2003, p. 348).

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A realidade aponta para um contexto onde a questão ecológica atinge fundamentalmente todos os seres humanos. No momento atual, o discurso ecológico envolve os problemas da cidade, das casas e das pessoas, do meio ambiente. Por isso, é errado pensar em ecologia separada do cotidiano. Aqui, entra a inter-relação entre discurso ecológico e discurso jornalístico, pois o jornalismo narra o cotidiano. O discurso ecológico faz parte do dia-a-dia, e o jornalismo como práxis que compõe o fenômeno da comunicação humana participa disso, interpretando e narrando o problema ecológico. A questão ecológica impacta na sociedade humana uma situação sem precedentes.

Eventualmente, à medida que os efeitos da crise ecológica, intensificam-se, os desequilíbrios de poder entre nações em desenvolvimento provavelmente não serão suficientes para proteger si quer os cidadãos mais ricos dos conflitos sociais vividos agora pelos países em desenvolvimento (HUTCHISON, 2000, p. 23).

A crise existe e atinge toda civilização provocando desastres ecológicos inimagináveis à condição humana. Assim, há o desejo de entender a ecologia como mudança humana e histórica. O discurso ecológico parte desse pressuposto contextual. Essa é sua condição de produção. A agressão ao corpo humano, ao psicológico, às neuroses urbanas, agressão ao sistema da terra ao desequilíbrio ambiental. Esse discurso apresenta-se numa perspectiva globalizante. Num primeiro momento, voltado para preservação de espécies ameaçadas de extinção, fim das poluições objetivas e destruição das florestas. Depois se discute a questão social e o atual sistema de produção-consumo do capitalismo de mercado que privilegia uns e desabona a maioria.

Deve-se ter pensamentos e ações que construa a paz, acabando com os conflitos, estabelecendo novos paradigmas para construção da justiça e da equidade.

A necessidade de recuperar um sentido de conexão com o mundo natural e do homem com a comunidade da Terra como

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um todo surge como uma tarefa cultural essencial para que possamos responder efetivamente ao desafio ecológico. Tal recuperação precisará ser multifacetada, envolvendo pessoas de todas as idades e profissões, e de todas as instituições sociais (HUTCHISON, 2000, p. 136).

Propõem-se a construção uma nova cultura onde valores como ternura, fraternidade se faça presente na dia-a-dia como forma basilar de comportamento das pessoas, como ética. A responsabilidade dos enunciados jornalísticos se encontra na elaboração de mensagens e dinâmicas que fundamentem melhores ações para uma nova realidade ecológica.

Para Bakhtin (2003, p. 379), o enunciado como produto final se relaciona numa mescla construtiva entre agentes discursivos que interagem, completando-se, formando o discurso: “Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é a reação à palavra do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas [...]”. O jornalismo é porta-voz do seu contexto, assimilando, rejeitando, redistribuindo discursos com a realidade onde todos se envolvem.

Portanto, o discurso jornalístico pode nutrir-se do discurso ecológico na sua formação. Daí o jornalismo assumiria uma vocação esclarecedora, educadora e formadora. Desse modo, é preciso que se compreenda a ecologia para ser elaborada e divulgada segundo um discurso ecológico contundente e esclarecedor.

O discurso ecológico se estrutura ao redor da teia de relações, interdependências e inclusões que sustentam e perfazem nosso universo. Junto com a unidade (um só cosmos, um só planeta Terra, uma só espécie humana, etc.) vigora também a diversidade (conglomerados galácticos, sistemas solares, biodiversidade e multiplicidade de raças, culturas e indivíduos) (BOFF, 2004, p. 211-212).

Há, aqui, ainda, a concepção da realidade do discurso jornalístico que é composto de inúmeros enunciados que dialogam entre si através

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do polissêmico da fala da fonte (emissor), do jornalista (interlocutor) e do ouvinte/leitor/telespectador (receptor).

O discurso ecológico é fonte para o jornalismo ao fornecer a concepção de uma ecologia mental que nasce do autoconhecimento, desenvolvendo ações emocionais mais positivas num processo de interação intrapessoal e interpessoal. Faz-se mister a integração humana da saúde corporal e espiritual. “A singularidade do discurso ecológico não está no estudo de um ou de outro pólo, tomados em si mesmos. Mas na interação e na inter-relação entre eles” (BOFF, 2004, p. 16). Disso, busca-se o cultivo da paz e transmiti-la num nível coletivo. A ecologia social amplia-se na busca por uma sociedade igualitária, justa e equilibrada. Desperta-se valores de respeito pelo trabalho, pelo bem-estar material e cultural das pessoas.

O jornalismo apreende da ecologia a possibilidade numa economia auto-sustentável, com equidade, e estruturas de poder mais democráticas, para gerar dignidade, justiça e paz. O jornalismo ao assumir o discurso ecológico pode enriquecer-se para influenciar e convencer para uma nova mentalidade, uma ecologia cósmica. “Este saber se plasma num discurso teórico, ideológico e técnico, e circula dentro de diferentes esferas institucionais e ordens de legitimação social” (LEFF, 2002, p. 144). Desse modo, a justiça e a paz social se desdobram numa relação de integração ambiental, saúde mente-corpo, dignidade e harmonia comunitária, cuidado e o respeito pela natureza e os outros seres que formam a vida.

Conclusão

Portanto, o discurso ecológico nasce no desafio de novas atitudes mentais, sociais e ambientais e desdobra-se na prática jornalística, elaborada para divulgar nos meios de comunicação uma nova mentalidade ecológica. Fazendo com que se entenda os impactos da degradação ambiental à saúde, ao trabalho, às condições de vida, ao lar, ao lazer, à escola e à comunidade como um todo, pois o jornalismo é

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uma práxis a ser exercida em casa, na rua, no bairro, no trabalho e no cotidiano como a ecologia em seus três níveis.

A interdiscursividade compreende ações e elucidações comunicativas que levem o sujeito a ser ator do seu contexto. E o desafio da linguagem, enquanto processo comunicativo é expressar rompimento, quebra de paradigma, morte e por isso mesmo renascimento, esperanças, transformações.

Cabe ao discurso ecológico em sua força nascente, em seu poder natalício, impregnar-se em todos os âmbitos humanos, potencializando o desejo de superar a crise cultural que passa a estabelecer novos valores inter-relacionados, cujo cerne é a integralidade humana e o meio ambiente complexo chamado comunidade da Terra (BOFF, 2004).

Como é de se esperar, esse processo é paulatino, mas iminente, diria urgente, por isso necessário ser canalizado pelos meios de comunicação, no discurso educacional e institucional, inserido no jornalismo como fonte principal de todo enunciado.

O discurso jornalístico como transmissor de informação e um espaço privilegiado de desenvolvimento mental, pode e deve assumir a missão de popularizar, apresentar e introduzir o desejo da ecologia: integrar todos seres vivos, renovar o desejo de pertença ao imenso nicho ecológico, organismo vivo que engloba a humanidade complexa, fascinante e evolutiva.

Referências

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BARROS FILHO, Clóvis de; MARTINO, Luís Mauro Sá. o habitus na comunicação. São Paulo: Paulus, 2003.

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311 O discurso ecológico no discurso jornalístico: novas atitudes mentais, sociais e ambientais ...

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

CÂMARA JÚNIOR, J. Mattoso. Dicionário de linguística e gramática. Petrópolis: Vozes, 1986.

ELLACURÍA, Ignacio. Filosofía de la realidad historica. Madrid: Editorial Trotta, 1991.

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HOLDRIDGE, Leslie R. Ecologia basada en zonas de vida. San José: C. R. Instituto Interamericano de Cooperación para la Agricultura, 1996.

HUTCHISON, David. Educação ecológica: idéias sobre consciência ambiental. Porto Alegre: Artmed, 2000.

LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2002.

LAGO, Antônio; PÁDOA, José Augusto. o que é ecologia. São Paulo: Brasiliense, 1984.

LOVELOCK, James. Reconhecer gaia. In: ______. Gaia: a prática científica da medicina planetar. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. p. 33-50.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. p. 168-172.

MARCONDES FILHO, Ciro. Até que ponto, de fato, nos comunicamos? São Paulo: Paulus, 2004.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Pontes, 1987.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1972.

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312 Moises dos Santos Viana e José Everaldo Oliveira Santos

WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006.

ZAMBONI, Lilian Márcia Simões. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: FAPESP/Editora Autores Associados, 2001.

Recebido em: agosto de 2008Aprovado em: abril de 2009

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NoRmAS PARA APRESENtAÇÃo DE tRAbAlhoS

título da revista: Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas

Informações gerais: É uma edição semestral destinada à publicação de trabalhos originais nas áreas de Ciências Sociais Aplicadas, sob a responsabilidade do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e conta com a contribuição de docentes e pesquisadores que desenvolvam estudos em Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia, Comunicação Social e áreas afins.

Envio dos trabalhos: Serão publicados nos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas trabalhos inéditos em português, na íntegra, preferencialmente apresentados sob a forma de artigos e ensaios, podendo, ainda, ser contemplados resenhas, comentários e opiniões com enfoque temático nas áreas já mencionadas. Somente serão publicados os trabalhos que obtiverem parecer favorável emitido pelo Conselho Editorial da Revista. Na cópia encaminhada para análise e parecer, serão omitidos os dados relativos à identidade do(s) autor(es) e de sua(s) instituição(ões). A coordenação editorial do periódico se encarregará de informar aos autores sobre a aceitação ou não de seus artigos para publicação. Os trabalhos encaminhados à Revista não serão devolvidos.

Endereço: Os trabalhos concorrentes à publicação deverão ser entregues/encaminhados para:Universidade Estadual do Sudoeste da BahiaDepartamento de Ciências Sociais Aplicadas (DCSA)Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Sociais Aplicadas (Nepaad)Estrada do Bem-querer, Km. 4 E-mail: [email protected] - Vitória da Conquista – Bahia

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O trabalho deverá ser digitado em Word for Windows, em duas cópias do trabalho completo, impressas em papel tamanho A4, material que deve vir acompanhado de uma cópia gravada em disquete. Os candidatos deverão, ainda, elaborar uma folha à parte de identificação pessoal, contendo:

• Título do trabalho acompanhado pelo resumo e palavras-chave em português;

• Nome completo do(s) autor(es);• Graduação e nome da Instituição onde se graduou (maior

Titulação);• Pós-graduação e nome da Instituição onde se pós-graduou

(maior Titulação);• Instituição de origem e função que exerce atualmente;• Endereço eletrônico e telefone para contatos (caso possua

home-page, indicar).

Formatação dos trabalhos: Os trabalhos candidatos à publicação, deverão ser digitados da seguinte forma:

1. Título do trabalho em fonte Arial, tamanho 12, em negrito e caixa baixa, centralizado no alto da página;

2. Abaixo do título deverá vir o resumo do trabalho, com o máximo de 80 (oitenta) palavras ou 200 (duzentos) caracteres em um só parágrafo, com uma versão em português e uma outra versão em inglês ou francês;

3. Logo abaixo de cada resumo deve ser apresentada a citação de, no máximo, 05 (cinco) palavras-chave ( em português e em inglês ou francês);

4. Títulos secundários em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito somente com as primeiras letras em maiúsculo e alinhado à esquerda da página (não devem ser numerados);

5. Figuras e fotos devem vir no corpo do texto, em local desejado pelo autor;

6.Gráficos devem vir no final do trabalho, de maneira legível e com indicações por extenso;

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7. A margem deve conter 3,0 cm de borda superior, 2,5 cm de borda inferior, 3,0 cm de borda à esquerda e 2,5 cm de borda à direita, em papel tamanho A4;

8. A fonte do corpo do texto deverá ser Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento de 1,5 cm entre as linhas;

9. Os trabalhos não deverão ultrapassar 15 (quinze) páginas, incluindo-se as referências bibliográficas para artigos e, para as demais seções, até 06 (seis) páginas;

10. O trabalho deve ser digitado segundo as normais atuais da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Condições Contratuais: Os autores dos trabalhos publicados nos Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas deverão abdicar dos direitos autorais sobre o texto selecionado para publicação, em favor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e receberão doação de 3 (três) exemplares do número do Caderno em que seu texto estiver incluído.

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EQUIPE tÉCNICA

CooRdenAção EditoRiAl e NoRmAlizAção técnicA Jacinto Braz David Filho

CAPA

Marcelo Costa LopesReformulação: Luiz Evandro de Souza RibeiroDRT-BA 2535

EditoRAção EletRônicA Ana Cristina Novais MenezesDRT-BA 1613

ReVisão de linguAgem (textos em Português)

luciana moreira Pires Flôres (Revisora - Edições Uesb)

- A possibilidade da pessoa casada constituir união estável - Um olhar sobre a reforma do estado brasileiro nos anos de 1990- Desafios ao desenvolvimento econômico de Juazeiro do Norte-CE: uma discussão a partir da qualidade de vida dos residentes- As inovações tecnológicas geradas para a ovinocaprinocultura e o contexto econômico camponês dessa atividade no nordeste brasileiro- A criação do eu pelo tu: o papel das subjetividades nos trâmites enunciativos da comunicação

maria Dalva Rosa Silva (Revisora - Edições Uesb)

- O sincretismo do processo civil brasileiro: uma análise da viabilidade de um sistema processual único e multifuncional- Criminalística: origens, evolução e descaminhos- Causas gerenciais e ambientais da mortalidade de micro e pequenas empresas: um estudo com empresários de Vitória da Conquista – Bahia - O neoliberalismo enquanto marco das relações de mercado no sistema capitalista e seus limites e desafios a uma proposta de economia solidária- Metodologia do ensino superior: subsídios para o ensino de Ciências Contábeis- Hans Jonas: ética para a civilização tecnológica

obS.: os demais artigos que não constam dessa relação, a revisão de linguagem é de responsabilidade dos próprios autores.

Impresso na empresa GráfIca da bahIa

Na tipologia Garamond 11/15/papel offset 90g/m²Em: agosto/2009