Caderno de Direito Administrativo - Durval Carneiro

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    UFBA - DIREITO ADMINISTRATIVO

    Prof. Durval Carneiro Neto

    INTRODUO AO DIREITO ADMINISTRATIVO

    Sumrio: 1) A evoluo do Estado e o contexto histrico do surgimento do Direito Administrativo. 1.1)O Estado de Polcia. 1.2) O Estado de Direito. 2) Objeto e taxinomia do Direito Administrativo. 3)Administrao Pblica nos sentidos subjetivo e objetivo. 4) As mutaes do Direito Administrativo e aamplitude da atividade administrativa. 4.1) A fase do liberalismo clssico (O Estado-Mnimo). 4.2) Afase do estatismo (A Administrao Burocrtica. 4.3) A fase da democracia (A AdministraoGerencial. 5) Fontes do Direito Administrativo. 6) O regime jurdico administrativo (regras e princpiosadministrativos). 6.1) Sentido e classificao dos princpios nas cincias. 6.2) A funo dos princpiosna cincia jurdica. 6.2.1) A evoluo da principiologia jurdica. 6.2.2) A normatividade principialista eo Bloco da Legalidade. 6.2.3) Distino clssica entre normas-regra e normas-princpio. 6.2.4) Crticasaos critrios de distino. 6.2.5) Proposta conceitual de Humberto vila. 6.3) Classificao dosprincpios jurdicos. 6.3.1) quanto amplitude: fundamentais, gerais e setoriais. 6.3.2) quanto aoreconhecimento no direito positivo: explcitos e implcitos. 6.4) Princpios da administrao pblica.6.4.1) Supremacia e indisponibilidade do interesse pblico. 6.4.2) Crticas ao dogma da supremacia dointeresse pblico. 6.4.3) A doutrina dos interesses primrios e secundrios (Renato Alessi). 6.4.4)Princpios expressos no art.37 da CF/88: princpio da legalidade; princpio da impessoalidade; princpioda moralidade administrativa; princpio da publicidade; princpio da eficincia. 6.4.5) Outros princpiosreconhecidos: princpio da presuno de legitimidade e veracidade; princpio da hierarquia; princpio daespecialidade; princpio do controle ou tutela; princpio da autotutela; princpio da continuidade do

    servio pblico; princpios da razoabilidade e da proporcionalidade; princpio da motivao; princpio dasegurana jurdica; princpio da proteo confiana e boa-f; princpio do controle judicial dos atosadministrativos; princpio da obrigatoriedade do desempenho da atividade administrativa; princpio daresponsabilidade do Estado.

    1) A EVOLUO DO ESTADO E O CONTEXTO HISTRICO DO SURGIMENTO DO DIREITOADMINISTRATIVO.

    Onde h a Sociedade, a estar o Direito, j diziam os romanos (Ubi Societas Ibi Jus). De fato,qualquer grupo social, por mais rudimentar que tenha sido, sempre pressups a existncia denormas de convivncia, sem as quais os homens no poderiam delimitar o alcance da grandevariedade de interesses frente s limitaes materiais da vida.

    O ser humano encontra-se em estado convivencial e pela prpria convivncia levado a interagir;assim sendo, acha-se sob influncia de outros homens e est sempre influenciando outros. E comotoda interao produz perturbao nos indivduos em comunicao recproca, que pode ser maiorou menor, para que a sociedade possa se conservar mister delimitar a atividade das pessoas quea compe mediante normas jurdicas. (...) Somente as normas de direito podem assegurar ascondies de equilbrio imanentes prpria coexistncia dos seres humanos, possibilitando a todose a cada um o pleno desenvolvimento das suas virtualidades e a consecuo e gozo de suasnecessidades sociais, ao regular a possibilidade objetiva das aes humanas.1

    J o Estado, como produto da convivncia humana, nem sempre existiu na realidade social,sendo, portanto, uma criao posterior ao Direito. Tempos remotos houve em que, apesar de

    existirem normas que de certa forma regiam a convivncia entre os homens na sociedade, estesno se submetiam a qualquer fator de autoridade organicamente instituda, isto , ainda no seconcebiam as figuras dos governantes e dos governados. Nestas sociedades primitivas, como disseHans Kelsen, predominava o princpio da autodefesa.

    Nas ordens jurdicas primitivas a reao da sano situao de fato que constitui o ilcito estcompletamente descentralizada. deixada aos indivduos cujos interesses foram lesados pelo atoilcito. Estes tm poder para determinar, num caso concreto, a verificao do tipo legal do ilcitofixado por via geral pela ordem jurdica e para executar a sano pela mesma determinada.Domina o princpio da autodefesa.2

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    DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 15. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, v 1, p. 06-07.2 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 6. ed. . So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 43.

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    Tal ausncia do poder organizado fazia com que o homem vivesse no chamado estado danatureza, onde ele usava a prpria fora para garantir os seus direitos, gerando, por outro lado,insegurana social e predominando a chamada lei do mais forte. Passou-se ento a ver que sefazia necessrio a criao de um ente poltico com fora dominante e soberana sobre a sociedade,um mal necessrio como chegaram a afirmar alguns: o ideal era que o homem pudesse viversem se submeter a uma fora superior, o que, todavia, no se mostrou possvel.

    A ameaa contnua de conflitos internos e fragilidade dos meios de proteo levaramcomunidades insegurana. Essa situao de fraqueza e impotncia para defender seus direitoslevou os homens no estado da natureza a idealizarem e a criarem um ente superior aos grupos,visando segurana e ao resguardo das pessoas e respectivas propriedades. A esse entetransferiu-se parte do poder de cada membro, para que ele se organizasse de modo a proteger atodos e garantir-lhes a propriedade.3

    Caminhou-se assim para uma centralizao da ordem jurdica na figura do Estado, cuja atuaodeveria se dar atravs de rgos e agentes, de acordo com o que Kelsen chamou de princpio dadiviso do trabalho, restringindo ao mximo o princpio da autodefesa:

    Com o decorrer da evoluo, esta reao da sano ao fato ilcito centralizada em grau cada vezmaior, na medida em que tanto a verificao do fato ilcito como a execuo da sano soreservadas a rgos que funcionam segundo o princpio da diviso do trabalho: aos tribunais e sautoridades executivas. O princpio da autodefesa limitado o mais possvel. Mas no pode sercompletamente excludo. Mesmo no Estado moderno, no qual a centralizao da reao coercitivacontra o fato ilcito atinge o grau mximo, subsiste um mnimo de autodefesa. o caso da legtimadefesa.4

    Concebeu-se ento a idia de Estado, em seu conceito clssico de nao politicamente organizada,composto basicamente de trs elementos (povo, territrio e soberania), como produto dasnecessidades sociais. Uma organizao instrumental imprescindvel para a convivncia humana.

    Desta forma, o Estado, cujos elementos essenciais so a populao, o territrio e o poder, define-se como uma ordem jurdica relativamente centralizada, limitada no seu domnio espacial etemporal de vigncia, soberana ou imediata relativamente ao Direito Internacional e que ,globalmente ou de um modo geral, eficaz.5

    Desde o seu surgimento, a concepo de Estado vem passando por constantes transformaesao longo do tempo e no espao, de acordo as foras polticas e os fatores reais de poderpredominantes em cada poca e lugar, sobretudo, conforme a finalidade a que se prope.

    Alexandre Groppali acrescenta mais um elemento componente do Estado, que a finalidade. Elaseria o objetivo para o qual o Estado orientaria a consecuo das suas atividades. A estruturaestatal no seria um fim em si mesmo, uma entidade acima dos valores fundamentais da pessoa

    humana, mas teria natureza instrumental, atravs da qual o Estado atenderia aos interesses dacoletividade. Para o mencionado autor, toda estrutura estatal existe para cumprir um determinadoobjetivo, que fixado de acordo com as circunstncias histrico-poltico-sociais.6

    Nessa variada tipologia de formas histricas de Estados, Jorge Miranda7 cita o Estado Oriental, oEstado Grego, o Estado Romano, o Estado Medieval e o Estado Moderno.

    3 FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de Direito Administrativo Positivo, 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 67.4 KELSEN, op. cit., p. 43.5Idem, p. 321.6

    AGRA, Walber de Moura.Manual de Direito Constitucional. So Paulo: RT, 2002, p. 68-69.7 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituio. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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    1.1) O ESTADO DE POLCIA.

    Foi no Estado Moderno, iniciado na Europa aps o Renascimento, que se concebeu a idia desubmisso da Administrao Pblica lei, como garantia das liberdades do cidado.8

    Os tempos modernos trouxeram a perda do prestgio de que a Igreja desfrutava na Idade Mdia

    e, em conseqncia, geraram a concentrao do poder nas mos do prncipe. dessa poca osurgimento das monarquias absolutas como nica soluo possvel para conduzir unidade doEstado perdida no perodo feudal. A primeira etapa do Estado moderno conhecida como Estadode Polcia, em que a forma de Governo adotada a monarquia absoluta. A segunda etapacorresponde ao surgimento do Estado de Direito.9

    Na primeira fase do Estado Moderno, aps o Renascimento e at meados do sculo XVIII,cultivou-se a idia do Estado-Polcia (tambm chamado de Estado-providncia ou Estado-fim),em que predominavam os regimes absolutistas, no havendo espao para as liberdadesindividuais. Nesta poca, a figura do Estado estava voltada basicamente s questes de seguranae garantia da ordem pblica. No existiam normas que limitassem o agir do Estado perante osindivduos, conforme foi retratado na clssica obra O Prncipe de Maquiavel e simplificado na

    clebre frase de Lus XIV (O Rei Sol): O Estado sou eu (lEtat cest moi).

    No Estado de Polcia, o detentor do poder estatal vale-se de um direito ilimitado para administrar;no se reconhecem direitos do indivduo frente ao soberano; o particular um objeto do poderestatal, no um sujeito que se relaciona com ele.10 Na monarquia absolutista, vista por Bossuet,

    Deus estabelece os reis como seus ministros e reina atravs deles sobre os povos... Os prncipesagem, portanto, como ministros de Deus. Nesse contexto da teoria divina, predominava aideologia de que o rei no poderia fazer mal (na expresso francesa, le roine ne peut mal faire),ou seja, de que o rei no comete erros (entre os ingleses, dizia-se the king can not wrong).

    Numa sntese de como se dava o exerccio do poder poltico no regime absolutista, assinalaCarlos Ari Sundfeld:

    a) O Estado, sendo o criador da ordem jurdica (isto , sendo incumbido de fazer as normas), nose submetia a ela, dirigida apenas aos sditos. O Poder Pblico pairava sobre a ordem jurdica.

    b) O soberano, e, portanto, o Estado, era indemandvel pelo indivduo, no podendo estequestionar, ante um tribunal, a validade ou no dos atos daquele. Parecia ilgico que o Estado

    julgasse a si mesmo ou que, sendo soberano, fosse submetido a algum controle externo.

    c) O Estado era irresponsvel juridicamente: le roi ne peut mal faire, the king can do no wrong.Destarte, impossvel seria exigir ressarcimento por algum dano causado por autoridade pblica.

    d) O Estado exercia, em relao aos indivduos, um poder de polcia. Da referirem-se os autores,

    para identificar o Estado da poca, ao Estado-Polcia, que impunha, de modo ilimitado, quaisquerobrigaes ou restries s atividades dos particulares. Em conseqncia, inexistiam direitosindividuais contra o Estado (o indivduo no podia exigir do Estado o respeito s normas regulandoo exerccio do poder poltico), mas apenas direitos dos indivduos nas suas recprocas relaes (oindivduo podia exigir do outro indivduo a observncia das normas reguladoras de suas relaesrecprocas).

    8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Discricionariedade administrativa na Constituio de 1988. 2. ed. So Paulo: Atlas, 2001.9

    Idem, p. 17-18.10 GORDILLO, Agustn. Tratado de Derecho Administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, t 1, p. II.1.

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    e) Dentro do Estado, todos os poderes estavam centralizados nas mos do soberano, a quemcabia editar as leis, julgar os conflitos e administrar os negcios pblicos. Os funcionrios sexerciam poder por delegao do soberano, que jamais o alienava.11

    Ainda no final desta primeira fase do Estado Moderno, as foras polticas aos poucos vierampregando um maior controle do poder estatal. Foi nesse momento que na Alemanhadesenvolveu-se a teoria do Fisco, que pugnava por uma espcie de bifurcao da personalidade

    do Estado de Polcia, conforme explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

    Para combater esse poder absoluto do prncipe, elaborou-se, em especial por doutrinadoresalemes, a teoria do fisco, em consonncia com a qual o patrimnio pblico no pertence aoprncipe nem ao Estado, mas ao fisco, que teria personalidade jurdica de direito privado,diversa da personalidade do Estado, associao poltica, pessoa jurdica de direito pblico, compoderes de mando, de imprio. O primeiro submetia-se ao direito privado e, em conseqncia, aostribunais; o segundo regia-se por normas editadas pelo prncipe, fora da apreciao dos tribunais.Com isso, muitas das relaes jurdicas em que a Administrao era parte passaram a ser regidaspelo direito civile a submeter-se a tribunais independentes, sem qualquer vinculao ao prncipe.Esses tribunais passaram a reconhecer, em favor do indivduo, a titularidade de direitos adquiridoscontra o fisco, todos eles fundamentados no direito privado. Mas o Estado, pessoa jurdica,

    enquanto poder pblico, continuava sem limitaes estabelecidas pela lei e indemandveljudicialmente pelos sditos na defesa de seus direitos. A bifurcao da personalidade do Estadoapenas abrandou o sistema ento vigente, mas no o extinguiu. (...) correspondeu a umabifurcao de regimes jurdicos: de um lado, o jus politiae (direito de polcia), que partindo daidia de poder sobre a vida religiosa e espiritual do povo, concentrou em mos do prncipe poderesde interferir na vida privada dos cidados, sob o pretexto de alcanar a segurana e o bem-estarcoletivos; de outro lado, o direito civil, que regia as relaes do Fisco com os sditos e queficavam fora do alcance do prncipe, gerando direitos subjetivos que podiam ser assegurados pormeio de controle judicial. Esse sistema teve o mrito de submeter uma parte da atividade doEstado lei e aos Tribunais.12

    Sobre essa noo alem de Fisco (Fiskus), escreve Jean Rivero:

    Nos direitos administrativos alemes do Sculo XIX, ainda prximos, no incio do Estado de Polcia Polizeistaat no qual a soberania do Estado exclua sua personificao jurdica, o Fisco, nootransposta do Direito Romano do Baixo-Imprio, era de algum modo a Caixa do Estado, o TesouroPblico, o Errio, personificado. Sob os traos do Fisco, o Estado tornava-se pessoa, no que diziarespeito s relaes financeiras (aqui compreendidas as nascidas do imposto) com os sujeitos,sendo tais relaes consideradas como de direito privado. Assim, tornavam-se possveis umcontencioso e umaproteo jurdica dos indivduos, que teriam sido, sem tal desvio, inconcebveis,nas relaes do sdito e do soberano. Esta noo, em declnio desde o fim do sculo XIX,desapareceu nos dias de hoje, mas mesmo no perodo de maior florescimento, seu ar de difusopermaneceu estritamente limitado aos pases diretamente germnicos.13

    Tambm na Frana se desenvolveu doutrina parecida, denominada teoria dos atos de gesto,como tais considerados os atos praticados pelo Estado na gesto dos negcios administrativos(Estado administrao, com personalidade jurdica), distinguindo-os dos chamados atos de impriopraticados pelo Monarca no exerccio da sua soberania (Estado potestade pblica, desprovido depersonalidade). Nessa viso, somente os atos de gesto eram passveis de controle jurdico eproteo aos indivduos por eles atingidos, da se reconhecer personalidade jurdica ao Estado. Jos atos de imprio, ficavam fora do regramento jurdico.

    Na poca se afirmava que, ao praticar atos de gesto, o Estado teria atuao equivalente a dosparticulares em relao aos seus empregados ou prepostos; como para os particulares vigorava a

    11 SUNDFELD, Carlos Ari.Fundamentos de Direito Pblico. 4. ed. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 34-35.12

    DI PIETRO,Discricionariedade administrativa, cit., p. 18-19.13 RIVERO, Jean. Curso de direito administrativo comparado. Traduo de J. Cretella Jr. So Paulo: RT, 1995, p.151-152.

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    regra da responsabilidade, nesse plano o Estado tambm seria responsabilizado, desde quehouvesse culpa do agente. Ao editar atos de imprio, estreitamente vinculados soberania, oEstado estaria isento de responsabilidade.14

    Mas, tal como aconteceu com a teoria do Fisco, se no primeiro momento a teoria dos atos degesto teve o mrito de abrandar a irresponsabilidade que at ento caracterizava os atos do

    Estado absolutista, propiciando algum controle judicial, posteriormente ela veio perdendoprestgio, na medida em que se constatou ser muito difcil, se no impossvel, distinguir os atosde imprio dos atos de gesto do Estado. Frequentemente, esses atos se mesclavam; s vezes,um mesmo ato apresentava aspectos de gesto e de imprio, tornando, na prtica, tormentosa asua diferenciao.15

    1.2) O ESTADO DE DIREITO.

    Mais adiante, no final do sculo XVIII, teve lugar a segunda fase do Estado Moderno,sobretudo com a Revoluo Francesa, quando ocorre o enfraquecimento do Estado absolutista e oadvento do Estado liberal e constitucional, buscando-se garantir os Direitos do Homem e doCidado. Alm do Estado Francs de 1789, destacam-se ainda as revolues liberais ocorridas no

    Estado da Virgnia (1776) e nos Estados Unidos da Amrica (1787).Inicia-se, nesse contexto, a construo de uma concepo que veio depois a ser denominadaEstado de Direito (ou Estado-meio), num primeiro momento caracterizado pelo individualismoliberal, passando-se a considerar o Estado como um instrumento para a satisfao dos interessesindividuais e exigindo-se dele o respeito aos direitos naturais e inalienveis do homem. Talliberalismo clssico reduziu ao mnimo as tarefas do Estado e elevou ao mximo a liberdadeindividual, seja no campo jurdico, seja no campo econmico (a famosa teoria liberal do laissezfaire, laissez passer).

    Em suma, enquanto o Estado absolutista colocava-se acima dos direitos individuais, a partir daRevoluo passou-se a instituir limitaes ao agir do Estado, abrindo-se espao para o

    desenvolvimento do movimento constitucionalista e para o surgimento das primeiras normasregulando a atuao do Estado, advindas inicialmente dos julgados do Conselho de EstadoFrancs.

    A transformao do Estado absolutista em Estado de Direito verificou-se, como visto antes, com aimplantao da teoria da diviso de poderes do Estado: Legislativo, Executivo e Judicirio,desenvolvida por Montesquieu. A Frana foi um dos primeiros pases a adotar a tripartio depoderes, antecedida pelos Estados Unidos da Amrica do Norte. Hoje, a tripartio adotada namaioria dos Estados modernos. Visto apenas pelo prisma positivista, o Estado de Direito aqueleque se submete s leis por ele prprio criadas, voltadas para a promoo do interesse social. salutar ter em cognio que as leis devem ser justas e democrticas, de modo a traduzir osverdadeiros e reais interesses da sociedade. As leis, divorciadas desses valores, so injustas e

    contrariam a idia de Estado de Direito. Assim, pode-se considerar Estado de Direito aquele queprima pela democracia, zela pela moralidade pblica e administrativa, promove a Justia, asegurana pblica e o bem-estar coletivo e, ainda, se submete s leis por ele criadas.16

    Essa transio do Estado-Polcia para o Estado de Direito tambm comentada por CarlosAri Sundfeld:

    Perceba como as normas sobre o exerccio do poder se ampliam. At ento, todas as pocasanteriores, destinavam-se a impor praticamente sem limites e sem controles a obedincia daspessoas s determinaes do poder poltico. Agora, cuidaro ainda de fazer prevalecer o poder

    14 MEDAUAR, Odete.Direito administrativo moderno. 5. ed. So Paulo: RT, 2001, p. 429.15 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rgo. Problemas de responsabilidade civil do Estado. In: FREITAS, Juarez (org.). Responsabilidade Civil do

    Estado. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 42.16 FARIA, op. cit., p. 68.

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    poltico sobre os indivduos (que pagaro impostos ao Estado, submeter-se-o ao seu julgamento,obedecero s leis por ele produzidas); mas tambm e sobretudo de organizar o Estado paralimitar e controlar seu poder (os cidados escolhem em eleies os parlamentares, o Parlamentofaz normas para regular a cobrana de impostos pelo Executivo, um Tribunal pode anular a lei feitapelo Parlamento, o indivduo pode mover uma ao judicial para se furtar da cobrana ilegal deimpostos) (...). Cunha-se, a partir de ento, o conceito de Estado de Direito, isto , de um Estado

    que realiza suas atividades debaixo da ordem jurdica, contrapondo-se ao superado Estado-Polcia,onde o poder poltico era exercido sem limitaes jurdicas, apenas se valendo de normas jurdicaspara se impor aos cidados.17

    Pela primeira vez na histria, foram sistematizados critrios jurdicos para dirimir os conflitos entreadministrados e a Administrao Pblica, dando origem a doutrinas clssicas que procuravamapontar a dicotomia existente entre o Direito pblico e o Direito privado18.

    Somente a surgiu o Direito Administrativo como ramo do Direito Pblico, cujo principalpersonagem o Estado de Direito.Conforme aponta a doutrina, na poca Moderna, os autores costumam indicar o dia 28, Pluvioso

    do Ano VIII (1800), em que a Revoluo Francesa editou sua primeira lei reguladora da pblicaadministrao, como data de nascimentodo Direito Administrativo.19

    Muito corrente entre os autores franceses, italianos e ptrios a meno lei do 28 pluvioso doano VIII (1800) como ato de nascimento do direito administrativo, a qual pela primeira vez deu administrao francesa uma organizao juridicamente garantida e exteriormente obrigatria.Denominada por Debbasch de constituio administrativa napolenica, esta lei de 1800 contm,em sntese, preceitos sobre organizao administrativa e sobre soluo de litgios contra aAdministrao.20

    O novo (Estado), que se sucedeu Revoluo Francesa, pode ser sintetizado nos seguintespontos: a) formao de conjunto sistemtico de preceitos obrigatrios para autoridades

    administrativas de todos os nveis, muitos dos quais limitativos de poder; b) reconhecimento dedireitos de particulares ante a Administrao, com previso de remdios jurisdicionais; c) quanto cincia, elaborao doutrinria abrangente de todos os aspectos legais da atividade administrativa;d) elaborao jurisprudencial vinculativa para a Administrao e norteadora da construo denovos institutos jurdicos.21

    Cretella Jnior aponta que o famoso caso Blanco, fato ocorrido em 1873, na cidade francesa deBordeaux, quando a menina Agns Blanco foi atropelada por trem pblico, assinala o momentoculminante da autonomia do direito administrativo, expressa no notvel voto do conselheiro David,do Tribunal de Conflitos de Paris que, usando mtodo prprio para julgar, deixou de lado o CdigoCivil e colocou o feito em termos de direito pblico, derrogatrios e exorbitantes do direitocomum.22

    2) OBJETO E TAXINOMIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO.

    17Idem, p.36.18 Ressalte-se que esse dualismo tradicional entre o Direito pblico e o Direito privado, objeto de extensa discusso entre os doutrinadores, segundodiversas teorias (do interesse dominante; do sujeito da relao etc.), j foi h muito criticado por Hans Kelsen, por consider-lo de carter meramenteideolgico e no cientfico. De fato, pode-se dizer que a linha que separa o Direito pblico do Direito privado est cada vez mais obscurecida, haja vista ascrescentes e complexas mutaes na forma de prestao das atividades estatais, conforme ser visto mais frente. Neste sentido, no s a diviso dacincia do direito, em dois ramos pblico e privado -, como tambm a subdiviso do direito pblico em diversos campos mais de natureza pedaggicado que de ndole cientfica. CRETELLA JUNIOR, Jos.Direito Administrativo Brasileiro. 2. ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 08.19 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 52.20 MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evoluo. So Paulo: RT, 1992, p. 10.21

    Idem, p. 19-20.22 CRETELLA JUNIOR, Op. cit., p. 09.

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    Conforme visto, o surgimento do Direito Administrativo esteve estritamente relacionado quedado absolutismo, sobretudo aps a Revoluo Francesa.

    At ento, como assinala Hely Lopes Meirelles, o absolutismo reinante e o enfeixamento de todosos poderes governamentais nas mos do Soberano no permitiam o desenvolvimento de quaisquerteorias que visassem a reconhecer direitos aos sditos, em oposio s ordens do Prncipe.23

    Com o ideal do liberalismo, propagado inicialmente na Revoluo Francesa de 1789, propiciou-se aascenso de uma poltica inspirada no pensamento de Aristteles e que havia sido sistematizadapelo Baro de Montesquieu, em 1748, na clssica obra O Esprito das Leis(LEsprit des Lois),preconizando a separao dos poderes, isto , a tripartio das funes do Estado em executivas,legislativas e judiciais.

    O cerne da obra de Montesquieu est na assertiva de que somente o poder teria a fora para detero poder. Com isso, impediu-se a concentrao de poderes nas mos de uma s pessoa, de formaque se pudessem garantir as liberdades individuais contra os abusos dos governantes.

    Seguindo o critrio formal, reconheceu-se que o Estado deveria desempenhar trs funes

    distintas e independentes: legislativa, jurisdicional e administrativa.

    Celso Antnio Bandeira de Mello aponta que a funo legislativa a funo que o Estado, esomente ele, exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam inicialmente naordem jurdica, isto , que se fundam direta e imediatamente na Constituio.24

    Funo jurisdicional a funo que o Estado, e somente ele, exerce por via de decises queresolvem controvrsias, com fora de coisa julgada, atributo este que corresponde decisoproferida em ltima instncia pelo Judicirio e que predicado desfrutado por qualquer sentenaou acrdo contra o qual no tenha havido recurso tempestivo.25 Por meio da funo jurisdicionalse aplica a lei aos casos concretos.

    Por fim, segundo o citado autor, a funo administrativa a funo que o Estado, ou quem lhefaa s vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierrquicos e que no sistemaconstitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentosinfralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais vinculados, submissos todos a controle delegalidade pelo Poder Judicirio.26

    Na prtica, a funo administrativa tem sido considerada de carter residual, sendo, pois, aquelaque no representa a formulao da regra legal nem a composio de lides in concreto. Maistecnicamente pode dizer-se que funo administrativa aquela exercida pelo Estado ou por seusdelegados, subjacente ordem constitucional e legal, sob regime de direito pblico, com vistas aalcanar os fins colimados pela ordem jurdica. Enquanto o ponto central da funo legislativaconsiste na criao do direito novo (ius novum) e o da funo jurisdicional descansa na

    composio de litgios, na funo administrativa o grande alvo , de fato, a gesto dos interessescoletivos na sua mais variada dimenso, conseqncia das numerosas tarefas a que se devepropor o Estado moderno. Exatamente pela ilimitada projeo de seus misteres que algunsautores tm distinguido governo e administrao, funo administrativa e funo poltica,caracterizando-se esta por no ter subordinao jurdica direta, ao contrrio daquela, sempresujeita a regras jurdicas superiores.27

    Pois bem, o objeto do Direito Administrativo justamente essa funo administrativa, seja elaexercida pelo prprio Estado, seja exercida at mesmo por particulares.23 MEIRELLES, Hely Lopes.Direito Administrativo Brasileiro. 23. ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 45.24 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de Direito Administrativo. 24. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p.35.25Idem.26

    Ib idem, p. 36.27 CARVALHO FILHO, Jos dos Santos.Manual de Direito Administrativo, 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 4.

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    Exercendo a funo administrativa, o Estado promove a gesto dos bens, interesses e serviospblicos, os quais constituem um patrimnio da coletividade. Digenes Gasparini ressalta que anatureza da atividade ou funo administrativa a de um munus pblico e o seu fim sempre ointeresse pblico ou o bem da coletividade.28

    A funo administrativa , em regra, exercida pelo Poder Executivo. Todavia, os PoderesLegislativo e Judicirio tambm a exercem, ainda que atipicamente, porquanto, apesar de seremrgos que desempenham respectivamente as funes legislativa e judiciria, tambm tm, emseu bojo, setores administrativos.

    Portanto, a atividade administrativa predominante no Poder Executivo; mas no exclusivadeste Poder.

    Alis, a recproca verdadeira, pois h casos o Poder Executivo exerce atividades tpicas da funolegislativa (ex: edio de medidas provisrias em caso de relevncia e urgncia CF/88, art.62).

    Da mesma forma, em alguns casos o Poder Legislativo exerce atividades tpicas da funo

    judiciria (ex: julgamento de impeachment do Presidente da Repblica CF/88, art.52, I;Comisses Parlamentares de Inqurito CF/88, art.58, 3) e o Poder Judicirio exerce atividadestpicas da funo legislativa (ex: elaborao dos Regimentos Internos dos Tribunais CF/88,art.96, I, a).

    O importante salientar que a qualificao da funo (legislativa, judiciria e executiva) no estrelacionada com o Poder que a exerce (Legislativo, Judicirio e Executivo), mas sim com anatureza do ato praticado.

    Sobre o tema escreve Jos dos Santos Carvalho Filho:

    A cada um dos Poderes de Estado foi atribuda determinada funo. Assim, ao Poder Legislativo

    foi cometida a funo normativa (ou legislativa); ao Executivo, a funo administrativa; e, aoJudicirio, a funo jurisdicional. Entretanto, no h exclusividade no exerccio das funes pelosPoderes. H, sim, preponderncia. As linhas definidoras das funes exercidas pelos Poderes tmcarter poltico e figuram na Constituio. Alis, nesse sentido que se h de entender aindependncia e a harmonia entre eles: se, de um lado, possuem sua prpria estrutura, no sesubordinando a qualquer outro, devem objetivar, ainda, os fins colimados pela Constituio. Poressa razo que os Poderes estatais, embora tenham suas funes normais ( funes tpicas),desempenham tambm funes que materialmente deveriam pertencer a Poder diverso ( funesatpicas), sempre, bvio, que a Constituio o autorize.29

    Compreendida o que vem a ser a funo ou atividade administrativa, convm agora apont-lacomo o objeto do Direito Administrativo, identificando a sua taxinomia30.

    Consoante explica Alexandre Mazza, taxinomia (ou taxionomia) a natureza jurdica dedeterminado instituto do direito. Indicar a natureza jurdica consiste em apontar a qual grandecategoria do direito o instituto pertence. Quando se trata de um ramo do direito, a indagaosobre sua natureza jurdica resume-se em classific-lo como ramo do Direito Pblico ou do DireitoPrivado. Conclui assim no haver dvida de que o Direito Administrativo ramo do DireitoPblico na medida em que seus princpios e normas regulam o exerccio de atividades estatais,especialmente a funo administrativa.31

    28 GASPARINI, Digenes.Direito Administrativo. 7. ed. So Paulo: Saraiva, 2002, p.52.29 CARVALHO FILHO, op. cit., p.3.30Taxinomia, tambm chamada de taxionomia (ou, ainda, taxonomia), consiste na cincia da classificao, isto , na diviso dos objetos de conhecimento

    em categorias, de modo a racionalizar o processo de compreenso.31 MAZZA, Alexandre.Manual de Direito Administrativo. So Paulo: Saraiva, 2011, p.30.

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    No conceito dado por Celso Antnio Bandeira de Mello: O Direito Administrativo o ramo doDireito Pblico que disciplina o exerccio da funo administrativa, assim como osrgos que a desempenham.

    Neste mesmo sentido, vejamos as definies atribudas ao Direito Administrativo por outrosdoutrinadores:

    O Direito Administrativo pode ser definido como o ramo do Direito Pblico que concentra osprincpios e normas jurdicas regentes dos rgos, agentes e pessoas jurdicas administrativas queintegram a Administrao Pblica, em todos os seus nveis Unio, Estados, Distrito Federal eMunicpios -, bem como regente das atividades pblicas direcionadas a realizar os fins almejadospelo Estado (Alexandre de Moraes).

    Conjunto de princpios jurdicos que disciplinam a organizao e a atividade do Poder Executivo,inclusive dos rgos descentralizados, bem como as atividades tipicamente administrativasexercidas pelos outros Poderes (Carlos S. de Barros).

    Disciplina Jurdica reguladora da atividade do Estado, exceto no que se refere aos atos legislativos

    e jurisdicionais, instituio de rgos essenciais estrutura do regime e forma necessria daatividade destes rgos (Tito Prates da Fonseca).

    Ordenamento jurdico da atividade do Estado-poder, enquanto tal, ou de quem faa as suasvezes, de criao de utilidade pblica, de maneira direta e imediata (Oswaldo Aranha Bandeira deMello).

    O ramo do Direito Pblico Interno que regula a atividade das pessoas jurdicas pblicas e ainstituio de meios e rgos relativos ao dessas pessoas (Jos Cretella Jnior).

    Conjunto harmnico de princpios jurdicos que regem os rgos, os agentes e as atividadespblicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado

    (Hely Lopes Meirelles).Ramo do Direito Pblico que estuda o conjunto de princpios, de conceitos, de tcnicas e denormas que regem as atividades jurdicas do Estado como gestor de interesses pblicos, cujoefetivo atendimento lhe cometido pela ordem jurdica para a segurana e em benefcio dosadministrados (Diogo de Figueiredo Moreira Neto)

    O ramo do direito pblico que tem por objeto os rgos, agentes e pessoas jurdicasadministrativas que integram a Administrao Publica, a atividade jurdica no contenciosa queexerce e os bens de que se utiliza para a consecuo de seus fins, de natureza pblica (MariaSylvia Zanella Di Pietro).

    O Direito Administrativo o conjunto de normas jurdicas pertencentes ao Direito Pblico, tendopor finalidade disciplinar e harmonizar as relaes das entidades e rgos pblicos entre si, edesses com os agentes pblicos e com os administrados, prestadores de servios pblicos oufornecedores do Estado, na realizao da atividade estatal de prestar o bem-social, excludas asatividades legislativa e judiciria (Edmur Ferreira de Faria).

    Em sntese, portanto, o Direito Administrativo o ramo do Direito Pblico que surgiu pararegulamentar a atividade administrativa do Estado, pautando a conduta da Administrao Pblica edos administrados, com vistas aos interesses pblicos.

    Compreendido o objeto do Direito Administrativo, duas advertncias precisam ser feitas.

    Como primeira advertncia, urge compreender que, por ser uma cincia jurdica, o DireitoAdministrativo ocupa-se do estudo das normas que regem a atuao da Administrao e a

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    conseqente significao jurdica dada a fatos e a atos praticados por ela ou pelos cidados nacondio de administrados. No funo do Direito Administrativo lidar com questes relacionadasa mtodos ou tcnicas de gesto pblica. Isso papel da Cincia da Administrao, que no uma disciplina jurdica.

    De fato, em que pese a proximidade entre os dois ramos do conhecimento, importante no

    confundir Direito Administrativo com a Cincia da Administrao. Esta consiste no estudo dastcnicas e estratgias para melhor planejar, organizar, dirigir e controlar a gesto governamental.O certo que o Direito Administrativo define os limites dentro dos quais a gesto pblica (Cinciada Administrao) pode ser validamente realizada.32 Em suma, o Direito Administrativo ramo

    jurdico, que estuda princpios e regras do Direito e fixa limites para a gesto pblica. A Cincia daAdministrao no ramo jurdico, mas to-somente uma cincia social que estuda tcnicas degesto pblica. Essas tcnicas, objeto da Cincia da Administrao, devem obedecer s normas

    jurdicas que so objeto do Direito Administrativo.

    Como segunda advertncia, convm ressaltar ainda que, mesmo no estudo das normas e fatosjurdico-administrativos, nem todas as atividades relacionadas funo administrativa estodidaticamente inseridas no campo do Direito Administrativo. Algumas atividades especficas,

    apesar de afetas funo administrativa, passaram a compor, pela sua importncia epeculiaridades, ramos autnomos do Direito. So exemplos as atividades enfocadas pelo DireitoTributrio, pelo Direito Previdencirio, pelo Direito Urbanstico, dentre outros ramos dacincia jurdica.

    3) ADMINISTRAO PBLICA NOS SENTIDOS OBJETIVO E SUBJETIVO

    A doutrina costuma apontar o conceito de Administrao Pblica em sentido subjetivo e emsentido objetivo, devendo o estudante ter ateno para saber distinguir quando o emprego daexpresso se d num ou noutro sentido.

    Segundo Alexandre de Moraes, a Administrao Pblica pode ser definida objetivamente como a

    atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve para a consecuo dos interesses coletivos,e subjetivamente como o conjunto de rgos e de pessoas jurdicas aos quais a lei atribui oexerccio da funo administrativa do Estado.33

    Na mesma linha, Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona que basicamente, so dois os sentidos emque se utiliza mais comumente a expresso Administrao Pblica: a) em sentido subjetivo,formal ou orgnico, ela designa os entes que exercem a atividade administrativa; compreende

    pessoas jurdicas, rgos e agentes pblicos incumbidos de exercer uma das funes em que setriparte a atividade estatal: a funo administrativa; b) em sentido objetivo, material ou funcional,ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a AdministraoPblica a prpria funo administrativa que incumbe, predominantemente, ao PoderExecutivo.34

    Para alguns autores, em seu sentido subjetivo a expresso deve ser grafada com as iniciaismaisculas (Administrao Pblica), enquanto no sentido objetivo se emprega as iniciaisminsculas (administrao pblica). Assim pensa Jos dos Santos Carvalho Filho:

    O sentido objetivo, pois, da expresso que aqui deve ser grafada com iniciais minsculas deveconsistir na prpria atividade administrativa exercida pelo Estado por seus rgos e agentes,caracterizando, enfim, a funo administrativa. (...) A expresso pode tambm significar oconjunto de agentes, rgos e pessoas jurdicas que tenham a incumbncia de executar asatividades administrativas. Toma-se aqui em considerao o sujeito da funo administrativa, ou

    32 MAZZA, Alexandre.Manual de Direito Administrativa. So Paulo: Saraiva, 2011, p.30-31.33

    MORAES, Alexandre de.Direito Constitucional Administrativo. So Paulo: Atlas, 2002, p.91.34 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Direito Administrativo. 13. ed. So Paulo: Atlas, 2001, p. 45.

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    seja, quem a exerce de fato. Para diferenciar este sentido da noo anterior, deve a expressoconter as iniciais maisculas: Administrao Pblica.35

    Ou seja, escrita com iniciais maisculas Administrao Pblica um conjunto de agentes ergos estatais; grafada com minsculas, a expresso administrao pblica designa a atividadeconsistente na defesa concreta do interesse pblico. Por isso, lembre-se: concessionrios e

    permissionrios de servio pblico exercem administrao pblica, mas no fazem parte daAdministrao Pblica.36

    Saliente-se, porm, que esta distino no tocante ao emprego de iniciais maisculas e minsculasno uniforme na doutrina, de modo que a distino h de ser feita com vistas ao contexto emque se utiliza a expresso.

    4) AS MUTAES DO DIREITO ADMINISTRATIVO E A AMPLITUDE DA ATIVIDADEADMINISTRATIVA.

    O Direito, como instrumento de regulao e pacificao social, tem o seu contedo varivelconforme os ideais polticos e os fatores de poder vigentes em cada poca. Da se dizer que o

    Direito deve estar sempre em constante evoluo, para que se adapte a cada realidade em quepretende operar.

    Como ramo do Direito, o Direito Administrativo tambm est sujeito a tais variaes, razo pelaqual muitos de seus conceitos e institutos clssicos vm sofrendo reformulaes e modificaesestruturais, sobretudo a partir do final do Sculo XX.

    O surgimento e sistematizao do direito administrativo responderam a concepes enecessidades prticas de uma poca e, ao mesmo tempo, significaram todo um esforo delegitimao, em nvel de preceitos jurdicos, do exerccio do poder estatal em determinado setor deatuao, a Administrao Pblica. A construo clssica desempenhou papel relevante na busca deobjetivao do poder pblico e na garantia dos direitos individuais. Mas, ante as transformaes

    da sociedade e do Estado, torna-se necessrio realizar uma espcie de controle de validade dasconcepes tradicionais, o que, na verdade, corresponde prpria idia de cincia.37

    Tais mutaes do Direito Administrativo, como bem assinala Diogo de Figueiredo Moreira Neto,esto diretamente relacionadas s fases evolutivas por que passou a administrao pblica,citando-se a fase do absolutismo, a fase do liberalismo clssico, a fase do estatismo e a fase dademocracia.38

    Na fase do absolutismo, como j visto, ainda no existia propriamente o Direito Administrativo,pois prevalecia a vontade do rei, caracterizando a chamada administrao regaliana. Asistematizao desta disciplina jurdica somente ocorreu aps as primeiras revolues liberais.

    4.1) A FASE DO LIBERALISMO CLSSICO (O ESTADO MNIMO)Na fase do liberalismo clssico, no sculo XIX, os anseios individuais foram supervalorizados,como forma de combate ao modelo absolutista e segundo os ideais da completa liberdade demercado pugnada por Adam Smith (laissez faire, laissez passer). O Estado intervinha muito pouconos direitos individuais.

    Com a evoluo do Liberalismo e, principalmente, do Constitucionalismo emerge a necessidade deafirmao do indivduo frente ao Estado, o que leva concepo de Direito Administrativo

    35Op. cit., p. 6-7.36 MAZZA, op. cit., p.41.37

    MEDAUAR, op. cit., p. 225-226.38 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Mutaes do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2001, p. 17.

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    entendido como um arcabouo legal apto a limitar e procedimentalizar o poder do Estado egarantir os direitos dos indivduos.39

    Inmeras expresses aparecem na doutrina para designar o Estado do sculo XIX: Estado liberal,Estado censitrio, Estado burgus, Estado nacional-burgus, tat gendarme, Estado legislativo,Estado guarda-noturno, Estado-neutro, Estado mquina, Estado-aparato, Estado-mecanismo,

    Estado-catedral, Estado da potncia e da razo, Estado garantista, Estado autoridade, Estadoabstencionista. (...) O Estado do sculo XIX agrupa indivduos autnomos, independentes, livres,dotados de igualdade poltica e jurdica. Como oposio ao Estado absoluto consagraram-seliberdades e direitos dos indivduos; estes, de sditos, deveriam ascender ao grau de cidado. Daos valores desse Estado: garantia da liberdade, da convivncia pacfica, da segurana, dapropriedade; o Estado instrumento de garantia dos direitos individuais, disso decorrendo suautilidade e necessidade (...) Outro aspecto refere-se autonomia da atividade econmica emrelao ingerncia do Estado, como reao ao domnio absolutista que editava regrasreguladoras de preos e padres de mercadorias, disciplinava o treinamento de aprendizes econtrolava as inovaes e a concorrncia, tudo com o objetivo de assegurar a balana comercialpositiva, reforar reservas de ouro do pas e gerar riquezas taxveis. Consagrava-se aabsolutizao do princpio da livre iniciativa, segundo Giannini, que tinha valor positivo, como

    liberdade de empreender, e valor negativo, como remoo de obstculos ao exerccio da liberdadede iniciativa econmica, e portanto, como absteno, dos poderes pblicos, no tocante aintervenes limitativas.40

    4.2) A FASE DO ESTATISMO (A ADMINISTRAO BUROCRTICA)

    Na fase do estatismo, surgida aps a crise do capitalismo liberal e o posterior advento do Estadodo Bem Estar Social (o chamado Welfare State) em meados do sculo XX, foi marcada pelapresena macia do Estado como um fim em si mesmo, passando a prevalecer o interesse doEstado paternalista frente aos interesses individuais, o que caracterizou a chamadaadministrao burocrtica.

    Estado intervencionista, Estado-providncia, Estado de bem-estar, Estado assistencial, Estadopluriclasse, Estado social, Estado social-democrata, Estado de associaes, Estado distribuidor,Estado nutriz, Estado empresrio, Welfare State, Estado manager, Estado de prestaes, estadode organizaes, Estado neocorporativo, Estado neocapitalista, Estado promocional, Estadoresponsvel, Estado protetor, Estado ps-liberal, Estado telocrtico so nomenclaturas diversasque intitulam esse modelo de Estado, na tentativa de traduzir, mediante um nico adjetivo ousubstantivo, sua caracterstica principal. (...) Se o Estado do sculo XIX era estruturalmentesimples e era possvel delinear modelos ao menos coerentes, o Estado atual apresenta-seestruturalmente complexo, o que explicaria que no tenha sido sistematizado em modelos ou queinexista teoria de organizao e de funcionamento do novo Estado.(...) A nova concepo d aoEstado uma tarefa ampliada, bem mais difcil de realizar a contento, que a manuteno da ordempblica reclamada do Estado liberal. Exige do Estado a tarefa de propiciar a todos o bem-estar, a

    felicidade na terra. Assim, do ponto de vista axiolgico, os valores da personalidade individual,como liberdade, segurana e igualdade jurdicas, completam-se com a garantia de condiesessenciais da vida e com a correo de desigualdades econmico-sociais.41

    Em que pesem as recentes mudanas pelas quais passou a Administrao Pblica em nosso pas,os institutos tradicionais do Direito Administrativo brasileiro ainda so estudados sob reflexo domodelo de administrao burocrtica, que, conforme aponta Alexandre Mazza, marcado pelasseguintes caractersticas: a) toda autoridade baseada na legalidade; b) relaes hierarquizadasde subordinao entre rgos e agentes; c) competncia tcnica como critrio de seleo pessoal;

    39 MARQUES NETO, Floriano Peixoto.Regulao Estatal e Interesses Pblicos. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 64.40

    MEDAUAR, op. cit., p. 75-77.41Idem, p. 81-88.

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    d) remunerao baseada na funo desempenhada, e no pelas realizaes alcanadas; e)controle de fins; f) nfase em processos e ritos.42

    4.3) A FASE DA DEMOCRACIA (A ADMINISTRAO GERENCIAL)

    Na chamada fase da democracia reconheceu-se a falncia do modelo estatal maante,colocando-se em primeiro lugar a eficincia da gesto administrativa na satisfao dos interessessociais, o que configurou a chamadaadministrao gerencial.

    Desde a dcada de 60 assiste-se pregao doutrinria pela democracia administrativa, quealguns resultados j produziu. (...) Embora a passos lentos, muitas normas e medidas vem sendoimplantadas em vrios ordenamentos do mundo ocidental para que a democracia administrativa seefetive. preocupao com a democracia da investidura soma-se, na poca atual, a preocupaocom a democracia de funcionamento ou de operao, expressa tambm na doutrina publicistarecente e nas constituies promulgadas nas dcadas de 70 e 80, com reflexos nas formulaesclssicas da Administrao pblica e do direito administrativo.43

    A fase da democracia, ascendendo como prevalecente o interesse da sociedade, caracterizando aetapa da administrao gerencial. No Brasil, essa segunda transio juspoltica, da administraoburocrtica para a gerencial, est tendo seu incio antes que se houvesse completado a primeira,pois as atividades e comportamentos do Estado-administrador continuam aferrados a conceitos eprincpios do patrimonialismo, do paternalismo e do assistencialismo personalizantes eineficientes, herdados ainda da Colnia e pouco tocados no Imprio. Ainda assim, essa segundatransio comeou a ser realizada atravs de um processo convencionalmente denominado dereforma administrativa, desenvolvido em duas etapas: uma etapa constitucional, necessria para aafirmao e reformulao dos novos conceitos e princpios aplicveis, e uma etapa legislativaordinria, que dever complement-la e dar-lhe exeqibilidade.44

    Estava feita a distino entre a democracia clssica, voltada escolha dos governantes, e ademocracia emergente deste final do Sculo XX, voltada escolha de como se quer sergovernado.45

    Em sntese, o modelo gerencialna administrao pblica surgiu como forma de flexibilizar aatuao burocrtica do Estado, introduzindo-se mecanismos de avaliao de desempenho eresultados e de qualidade e eficincia dos servios pblicos, com participao popular e exerccioda cidadania.

    Buscou, assim, a democratizao do aparato estatal e a maior atuao da sociedade, com areduo do carter poltico das decises administrativas (despolitizao), para se adotar ummodelo de administrao pblica consensual (consensualidade) em que se estimula uma maior

    participao dos administrados cooperando e colaborando na definio dos rumos da atuaoadministrativa eficiente.

    Reportamos aqui s concluses de Diogo de Figueiredo Moreira Neto sobre o tema:

    Na relativamente breve mais fascinante trajetria bicentenria do Direito Administrativopodemos distinguir uma ntida evoluo conceptual em que a Disciplina surge, em seu perodo deformao, no Estado Pleo-Liberal, ainda pouco desvencilhada das instituies da monarquiaabsoluta; submete-se, progressivamente, a requisitos de legalidade, com o aperfeioamento das

    42 MAZZA, op. cit., p. 31.43 MEDAUAR, op. cit., p. 93-95.44

    MOREIRA NETO.Mutaes... cit., p. 17.45Idem, p. 41.

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    exigncias juspolticas caracterizadoras do Estado de Direito; e atende, finalmente, s demandasde legitimidade, possibilitando o advento do Estado Democrtico contemporneo. Assim, o Direito

    Administrativo nasceu como um direito do Estado enquanto administrador, passou a ser um direitodo Estado e dos administrados, e tornou-se hoje, com seu ncleo constitucional e como seuprolongamento, um direito comum dos administrados face ao Estado administrador.46

    Quanto aoprincpio da consensualidade, sua aplicao leva substituio, sempre que possvel,da imperatividade pelo consenso nas relaes Estado-sociedade e criao de atrativos para queos entes da sociedade civil atuem em diversas formas deparceria com o Estado.47

    Alexandre Mazza48 aponta o seguinte quadro comparativo entre a administrao burocrtica e aadministrao gerencial:

    ADMINISTRAO BUROCRTICA ADMINISTRAO GERENCIAL

    Perodo-base Antes de 1988 Aps 1988Norma padro DL n. 200/67 Emenda n. 19/98Paradigma A lei O resultadoValores-chave Hierarquia, forma e processo Colaborao, eficincia e parceriaControle Sobre meios Sobre resultados

    Institutos relacionadosLicitaoProcesso administrativoConcurso pblico e estabilidade

    Contrato de gesto,Agncias executivasPrincpio da eficincia

    Aps considerar que o modelo gerencial consolidou-se no Brasil com o advento da reformaadministrativa promovida pela Emenda Constitucional n. 19/98, Mazza chama porm a ateno aofato de que esse modelo acusado por muitos administrativistas de servir como pretexto paradiminuir os controles jurdicos sobre a Administrao Pblica. Aparentemente simptica, a idia deadministrao gerencial pressupe administradores pblicos ticos, confiveis, bem-intencionados... uma raridade no Brasil!, ironiza o autor.49

    Seja como for, entre cada uma das fases acima assinaladas, pode-se dizer que o DireitoAdministrativo veio se submetendo ciclicamente a crises entre velhos e novos paradigmas,passando por transformaes que o levaram a se adaptar a cada nova realidade, consoantesaliente Odete Medauar:

    O termo crise, de uso freqente na atualidade para o direito em geral, para o Estado, paradeterminadas figuras jurdicas, referido ao direito administrativo expressa a situao de passagempara um novo momento de sua elaborao. Adquirido o status de cincia autnoma, edificada suaestrutura sistemtica fundamental, seu nvel de maturidade permite que evolua, sem riscos dediluio das suas caractersticas cientficas. Parece habitual a atitude de qualificar como crise asituao de renovao de antigas regras e equilbrios. Tambm freqente se torna a afirmao deque as crises constituem oportunidades de mudana dos sistemas humanos; na medida em que

    h crises dos modos de raciocnio que surgem possibilidades de mudana. Este o significado dacrise atribuda ao direito administrativo: a passagem para um momento de modificao de antigasconcepes. Esse momento revela mudanas que vm se realizando no direito administrativo nosentido de sua atualizao e revitalizao, para que entre em sintonia com o cenrio atual dasociedade e do Estado. Algumas tendncias podem ser extradas: a) desvencilhamento deresqucios absolutistas, sobretudo no aspecto da vontade da autoridade impondo-se imponente; b)absoro de valores e princpios do ordenamento consagrados na Constituio; c) assimilao danova realidade do relacionamento Estado-sociedade; d) abertura para o cenrio scio-poltico-

    46Ib idem, p.33.47Ib idem, p.26.48

    Op. cit., p. 32.49Idem, p. 31.

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    econmico em que se situa; e) abertura para conexes cientficas interdisciplinares; f) disposiode acrescentar novos itens temtica clssica.50

    Tais consideraes servem para que estudioso do Direito Administrativo tenha sempre em mente ocontexto poltico-social vigente em cada poca, conferindo uma interpretao sistemtica s regrase princpios que compe o chamado Regime Jurdico Administrativo.

    5) FONTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO.

    Identificado o objeto do Direito Administrativo, enquanto o conjunto de normas que regem afuno administrativa estatal, convm agora identificar as fontes das quais so extradas estasnormas.

    Cretella Jnior conceitua fonte do direito como qualquer ato ou fato que concorra para formar anorma jurdica, de modo que so fontes do Direito Administrativo todos os elementos, formais ouno formais, dos quais brotam as normas de Direito Administrativo.51

    Vale dizer, tudo aquilo que, direta ou indiretamente, funcione como parmetro normativo para ascondutas da Administrao e dos administrados, condicionando-os a agir nesse ou naquele

    sentido, uma fonte do Direito Administrativo.

    Apesar de no haver uniformidade doutrinria na classificao das fontes do Direito, costuma-seapontar que as fontes jurdicas podem serprimrias (tambm chamadas de diretas ou imediatas) que so aquelas com carter prescritivo, isto , delas so extradas diretamente as normas doordenamento ousecundrias (tambm chamadas de indiretas ou mediatas) que so aquelascom carter meramente descritivo, mas que auxiliam na identificao das fontes primrias.

    Como fontes primrias do Direito Administrativo pode-se citar a legislao, os costumes e aspraxes (ou prticas administrativas), os tratados internacionais, os princpios gerais dodireito e, mais recentemente, as smulas vinculantes e decises de repercusso geral do STF(mecanismos institudos pela EC 45/2004). Como fontes secundrias podem ser citadas a

    doutrina e ajurisprudncia em geral (decises judiciais no vinculantes).A principal fonte primria do Direito Administrativo a legislao, aqui entendida como leiemsentido amplo (a se incluindo a Constituio, as leis infraconstitucionais e os diversos atosregulamentares expedidos pela Administrao).

    Na expresso lei, discorre Brando Cavalcanti, devemos compreender toda a escala das normas,na sua hierarquia, desde a Constituio at as mais elementares, que completam, em ambientes eraios de ao cada vez mais restritos, as normas jurdicas de mais alta hierarquia. Assim, as leis,os regulamentos, os regimentos, asportarias, as circulares, as instrues.52

    A lei a mais importante fonte para o Direito Administrativo, gerador de direitos e obrigaes,

    impondo-se tanto conduta dos particulares, quanto ao estatal. Na qualidade de fonte, a leitem um sentido amplo, abrangendo diversas normas produzidas pelo Estado, o que inclui, porexemplo, alm da Carta Magna, as leis complementares, ordinrias, delegadas e medidasprovisrias. (...) Os costumes e as praxes so fontes no escritas e no organizadas. Os costumesso encontrados na sociedade e as praxes no interior da Administrao. (...) Porm, a utilizaodos costumes encontra restries, no podendo ser utilizados contra a lei. (...) A doutrina fonteescrita e mediata (secundria) para o Direito Administrativo, no gerando direitos para osparticulares, mas contribuindo para a formao do nosso ramo jurdico.53

    50 MEDAUAR, op. cit., p. 226-227.51 CRETELLA JUNIOR, Jos.Direito Administrativo Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p.73.52

    Idem,p. 77.53 PRADO, Leandro C.; TEIXEIRA, Patrcia Carla de Farias. 1001 questes comentadas de Direito Administrativo. So Paulo: Ed. Mtodo, 2010, p.26.

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    No obstante esse sentido amplo de lei a que nos referimos (legislao), a Administrao somentepoder tomar medidas que estejam expressa ou implicitamente previstas em ato legislativo (leiem sentido formal, decorrente do processo legislativo previsto no art.59 da CF). Mesmo quandosejam editados regulamentos executivos (decretos, resolues, portarias, instrues normativasetc.), tais atos devem ter amparo na lei em sentido estrito. O tema ser abordado quandotratarmos do chamado poder normativo da Administrao.

    Saliente-se que, ao contrrio do que ocorre noutras cincias jurdicas, o nosso DireitoAdministrativo no codificado. Isso porque, por conta do regime federativo adotado no Brasil,cada ente poltico (Unio, Estados, DF e Municpios) tem competncia para editar normasreferentes a sua respectiva Administrao Pblica, exceo apenas para alguns assuntos cujacompetncia seja privativa da Unio.54 Destarte, as normas de Direito Administrativo estocontidas em inmeras leis esparsas editadas em mbito federal, estadual, distrital e municipal.

    Segundo assinala Jean Rivero, mesmo os pases cujo direito privado tradicionalmente codificado(civil law), no foram editados cdigos de Direito Administrativo:

    Ora, pas algum, salvo erro, possui um verdadeiro Cdigo Administrativo, devendo ficar claro que

    no se poderia aplicar o nome de Cdigo ao agrupamento de leis e de regulamentos prprios auma matria administrativa que, na Frana e em vrios pases estrangeiros, se rotulam com essenome. Isto acarreta duas conseqncias: do ponto de vista material, preciso procurar as regrasadministrativas, onde elas estiverem e elas esto, em todos os pases, esparsas em mltiplosdocumentos.55

    Fernanda Marinela assim comenta a polmica questo da codificao do Direito Administrativo:

    O Direito Administrativo no conta com uma codificao, o que acaba causando uma discussodoutrinria sobre os seus benefcios e coloca os doutrinadores em trs posies: os que negam assuas vantagens, os que defendem a necessidade de uma codificao parcial e os que propugnampela codificao total, o que representa a maioria da doutrina. A prtica atual deixou bem claro

    que o Cdigo no traz a estagnao do Direito, como defendia Savigny e seus seguidores. Assimsendo, espera-se que os legisladores brasileiros se conscientizem de sua necessidade. A atualformao dessa disciplina, que feita por leis esparsas, muitas vezes dificulta a obteno doconhecimento pelos interessados, no permitindo uma viso panormica do Direito a quepertencem. Somente o Cdigo remove esses inconvenientes da legislao fragmentria, pelaaproximao e coordenao dos textos que se interligam para a formao do sistema jurdico,dando maior segurana ao aplicador e resolvendo grandes divergncias. Pode-se apontar, comoexemplo, o Cdigo Administrativo de Portugal.56

    Acerca dos costumes, a doutrina diverge sobre a sua natureza de fonte do Direito Administrativo.Os que admitem, ressalvam que somente haveria espao aqui para os costumes secundum legem(servem apenas para interpretar a lei) e eventualmente os praeter legem (com funo supletiva,

    servem para suprir as lacunas da lei).Quanto aos costumes contra legem (derrogatrios da lei), a doutrina clssica jamais os admitiu noDireito Administrativo, haja vista o prestgio que tradicionalmente deteve o princpio da legalidadea nortear toda a atividade da Administrao. Em perodo mais recente, porm, por fora da idiaque veio se desenvolvendo na doutrina acerca da incidncia direta das normas constitucionaissobre a atividade administrativa, alguns juristas passaram a admitir at mesmo o costume contralegem em hipteses excepcionais. Nessa linha, Gustavo Binenbojm defende a possibilidade dehaver um ato administrativo violador de preceito legal, mas que ainda assim seja vlido, por fora

    54 Como ocorre, por exemplo, nas legislaes sobre desapropriao e sobre normas gerais de licitao e contratos administrativos, conforme art.22, II eXXVII.55

    RIVERO, Jean. Curso de direito administrativo comparado. Traduo de J. Cretella Jr. So Paulo: RT, 1995, p.50.56 MARINELA, Fernanda.Direito Administrativo. 4. ed. Niteri: Impetus, 2010, p. 12.

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    de princpios constitucionais. o que ele chamada de juridicidade contra legem57, em que, adespeito do vcio de legalidade, reconhece-se a juridicidade da atuao administrativa por motivosligados segurana jurdica e boa-f objetiva na conduta costumeiramente adotada pelaAdministrao, o que, numa equao de ponderao, deve prevalecer sobre a legalidade estrita.Mas o autor reconhece que o tema complexo e controvertido, sobretudo quando se trata dedescumprimento lei havida como inconstitucional pela Administrao, sem que tenha ocorrido

    prvio pronunciamento judicial.No se deve confundir os costumes com as praxes administrativas, que alguns apontamtambm como fonte do Direito Administrativo, mas isso no uniformemente aceito.58

    Praxes ou prticas administrativas so recurso que lanam mo com freqncia as autoridadesadministrativas quando, na falta de disposies legais, precisam dar soluo a determinado casosubmetido a sua apreciao. Ao contrrio do costume, que brota espontaneamente do povo, as

    prticas constituem uma srie de usos seguidos pelos funcionrios de determinadas reparties,diante dos casos concretos que exigem soluo imediata, no prevista em lei.59

    Sobre os tratados internacionais, escreve o professor Cretella Jnior:

    Denominamos tratado internacional a todo acordo de vontade entre duas pessoas jurdicas dedireito pblico externo a respeito de direitos de soberania. O objeto do tratado, como se v, dedireito pblico, nada obstando, porm, que as entidades pblicas, em jogo, pactuem normas dedireito privado, o que, nesse caso, caracterizaria mero contrato regido por princpios estranhos aodireito pblico. Autorizados tratadistas italianos negam ao tratado internacional a categoria defonte do direito administrativo, porque a recepo desse acordo de vontades depende dedispositivos constitucionais. Nesse caso, fundamental examinar a Constituio do pas,relativamente ao qual se faz a indagao, observando-se que algumas so expressas a respeito,admitindo-o como fonte, ao passo que outras exigem, para a recepo, o chamado mtodo deconverso, que tem por efeito imediato transformar o tratado em lei. No primeiro caso, o tratado fonte, no segundo, no tem fora prpria, mas eficcia da lei conversora. A qualidade de fonte

    jurdica do tratado est, pois, na dependncia de seu contedo, em primeiro lugar; em segundo

    lugar, que seja recebido na ordem jurdica interna; em terceiro lugar, que encerre preceitos paracuja aplicao sejam competentes os rgos administrativos.60

    Alexandre Mazza assinala ser cada vez mais notvel a influncia dos tratados e convenesinternacionais no Direito Administrativo interno. As regras jurdicas originrias dos pactosinternacionais de que o Brasil signatrio ingressam no ordenamento nacional dotadas de foracogente, vinculando rgos e agentes da Administrao Pblica, especialmente em matria dedireitos humanos, caso em que os tratados e convenes internacionais adquirem internamente ostatus de norma constitucional, desde que aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, emdois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros (art.5, 3, da CF).61

    Fernanda Marinela salienta que alguns autores incluem, ainda, como fonte desse ramo, os

    princpios gerais do direito, que so critrios maiores, s vezes at no escritos, percebidospela lgica ou por induo. Vale dizer que so normas que representam a base do ordenamentojurdica, estando intrnsecas a essa ordem legal, consideradas como orientaes necessrias exigncia da justia. (...) So teses jurdicas genricas que informam o ordenamento do Estado,conquanto no se achem expressos em texto legal especfico. Podem-se citar alguns exemplos:ningum deve ser punido sem ser ouvido, no permitido o enriquecimento ilcito, ningum sebeneficiar da prpria malcia, alm de muitos outros.62

    57 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.58 Segundo Digenes Gasparini, a praxe administrativa (simples rotina administrativa) no se confunde com o costume, no sendo, na opinio da maioriados autores, fonte do Direito Administrativo.Direito Administrativo, 15. ed. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 85.59 CRETELLA JNIOR,Direito Administrativo Brasileiro, cit.,p. 79.60Idem,p. 86.61

    Op. cit.,p. 45.62 MARINELA, op. cit.,p. 11-12.

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    Segundo Edmir Netto de Arajo, como proposies bsicas que se aplicam integralidade doordenamento jurdico, englobando todos os seus ramos e institutos, princpios como os dalegalidade, do devido processo legal, da isonomia, do pacta sunt servanda, da publicidade, eoutros, so invocados como meios, ao lado da analogia e da equidade, de integrao dasnormas jurdicas, pois o legislador no pode prever todas as hipteses da vida real, e o juiz no

    pode se eximir de decidir a pretexto de lacuna ou obscuridade da lei. Existe, no DireitoAdministrativo, em consonncia com os princpios gerais do Direito, toda uma principiologiasetorial, que ser focalizada mais adiante.63

    A doutrina se traduz como a atividade dos cientistas do Direito (doutrinadores) que emitem a suabalizada opinio sobre os fenmenos jurdicos, intentando descrever o ordenamento jurdiconaquilo que as suas normas dispem. Justamente por lhe faltar fora normativa, ou seja, deterapenas carter descritivo do sistema jurdico, a doutrina no fonte primria, mas serve aomenos como uma fonte secundria que auxilia na aplicao do Direito Administrativo.

    O mesmo se diga da jurisprudncia, consubstanciada nas reiteradas decises dos Tribunais,algumas delas j consagradas em smulas jurisprudenciais. Tais decises, proferidas vista de

    casos concretos nos quais encontra apenas aplicao inter partes, no se revelam como normasgerais e abstratas que obriguem a Administrao em outras situaes que no aquelas tratadasnos autos do respectivo processo judicial. Vale dizer, tais decises apenas detm fora normativaem relao s partes por elas atingidas. No mais, servem apenas como mecanismos auxiliares dainterpretao do ordenamento. At mesmo as Smulas editadas pelos Tribunais servem apenascomo orientao para a anlise de casos futuros, mas em regra no detm fora normativa ampla.Ou seja, tais smulas so meramente descritivas (interpretativas) do ordenamento, mas nointegram o prprio ordenamento.

    Exceo a isto se encontra naquelas decises proferidas pelo STF em controle concentrado(abstrato) de constitucionalidade, com efeito erga omnes (CF/88, art.102, 2), merecendodestaque tambm a figura da Smula Vinculante instituda pela Emenda Constitucional n.

    45/2004. As smulas vinculantes, previstas no art. 103-A da Constituio, detm fora normativa,integrando diretamente o ordenamento. Por isso so fontes primrias.

    Com efeito, as smulas vinculantes no so enunciados interpretativos com validade apenas paraos rgos do Poder Judicirio. O art.103-A, caput, da CF claro ao mencionar a sujeio de todosos rgos da Administrao Pblica Direta ou Indireta, federal, estadual ou municipal, aosenunciados das smulas vinculantes. Conforme ensina Rodolfo Mancuso, a smula vinculante doSTF acaba por condicionar as relaes entre a Administrao e seus agentes tanto quanto entreela e os cidados em geral. Sendo assim, se o interessado verificar que a autoridade proferiudeciso em desrespeito smula vinculante, poder, em sede de recurso, exigir que a decisoseja modificada, de sorte a se adequ-la ao enunciado sumular do STF.64

    Com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, o processo de reclamao foiespecificado pelo Legislador para casos de violao de smula vinculante. Nos termos do art.103-A, 1, da CF, inserido pela emenda mencionada, do ato administrativo ou deciso judicial quecontrariar a smula aplicvel ou que indevidamente a aplicar, caber reclamao ao SupremoTribunal Federal, que, julgando-a procedente, anular o ato administrativo ou cassar a deciso

    judicial reclamada, e determinar que outra seja proferida com ou sem aplicao da smula,conforme o caso. Mais tarde, a possibilidade do uso da reclamao frente a atos administrativos eatos da Administrao que descumprem smulas vinculantes do STF foi, de certo modo, limitadacom a edio da Lei n. 11.417/06 que regulamentou o art.103-A da Constituio, alterou a LPA(Lei n. 9784/99 - Lei do Processo Administrativo), incluindo os arts. 64-A e 64-B, e disciplinou aedio, a reviso e o cancelamento de enunciado de smula vinculante pelo STF. O art.7 da Lei n.

    63

    ARAJO, Edmir Neto de. Curso de Direito Administrativo. So Paulo: Saraiva, 2005, p. 43.64 NOHRARA, Irene Patrcia; MARRARA, Thiago.Processo Administrativo. Lei 9784/99 comentada. So Paulo: Atlas, 2009, p.410.

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    11.417/06 esclareceu duas questes importantes e que merecem destaque. A um, deixou claroque o administrado poder utilizar os mais diversos meios admitidos em direito para afastar adeciso administrativa que no aplicou ou aplicou incorretamente uma smula vinculante. A dois,limitou o uso da reclamao perante o STF. Por determinao do art.7, 1, da Lei n. 11.417/06,o uso da reclamao somente ser admitido aps o esgotamento das vias administrativas. Issosignifica que, perante o descumprimento de smula, deve o administrado recorrer instncia

    administrativa competente at que esgote o limite de trs instncias administrativas regra geralprevista no art.57-A da LPA ou o nmero mximo de instncias previsto em lei especfica duas,quatro ou mais instncias. Caso as instncias administrativas no tenham sido esgotadas, podero interessado no processo administrativo recorrer ao Poder Judicirio. Contudo, no poder sevaler especificamente da reclamao perante o STF.65

    6) O REGIME JURDICO ADMINISTRATIVO (REGRAS E PRINCPIOS ADMINISTRATIVOS).

    Todo estudo sistematizado pressupe a fixao das normas que lhe confiram carter cientfico.

    No campo do Direito, tais elementos sedimentados constituem os diversos regimes jurdicos(conjuntos de normas jurdicas).

    A partir do pensamento de ilustres jusfilsofos como Ronald Dworkin e Robert Alexy, grande parteda doutrina contempornea considera que as normas (gnero) no se revelam apenas sob a formade regras, mas, tambm, comoprincpios (espcies):

    REGIME = CONJUNTO DE NORMAS = REGRAS + PRINCPIOS

    6.1) SENTIDO E CLASSIFICAO DOS PRINCPIOS NAS CINCIAS

    Cretella Jnior diz que, no sentido vulgar, princpio tem o sentido de aquilo que vem antes deoutro, origem, comeo, momento em que se faz uma coisa pela primeira vez, contrapondo-se

    idia de fim. J na linguagem tcnico-cientfica o vocbulo vago, indeterminado, flutuante, nooferecendo nenhuma indicao precisa sobre o sentido exato da proposio que se considera, oque no significa que a palavra deva ser banida do vocabulrio das cincias. Todos os sentidos,porm, esto ligados pelo menos por um ponto de contato comum. Princpio , antes de tudo,

    ponto de partida. Princpios de uma cincia so as proposies bsicas, fundamentais, tpicas,que condicionam todas as estruturas subseqentes. So os alicerces, os fundamentos de umacincia66.

    Cabe principiologiaa exposio terica e crtica dos princpios, definindo-os, antes de tudo,classificando-os sob vrios ngulos. uma teoria dos princpios.

    Entre as inmeras classificaes, tem-se a que separa os princpios com base no critrio de

    abrangncia, procurando defini-los e indagar at que ponto se referem a esta ou quela cincia.

    Princpios onivalentes: So os primeiros princpios, premissas lgicas vlidas para todas ascincias, pois esto na base de todas as outras proposies. So proposies gerais, universais,princpios diretores do conhecimento que se dirigem ao exerccio do pensamento, como osprincpios da identidade (h similitude total entre uma noo e todas as suas conotaesconstitutivas), da contradio (duas proposies contraditrias no podem ser, ao mesmo tempo,ambas verdadeiras, ou ambas falsas), do terceiro excludo, (havendo duas proposiescontraditrias, se uma for verdadeira, a outra ser necessariamente falsa e, reciprocamente, semque haja uma terceira soluo), da razo suficiente (nada existe sem que haja uma razo paraisso).

    65

    Idem, p. 411-412.66 CRETELLA JNIOR, Jos.Direito Administrativo Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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    Princpios plurivalentes: So princpios regionais, dotados de menor grau de generalidade ecomuns apenas a um grupo de cincias (apesar de no haver uma classificao segura sobre adiviso das cincias em grupos). Cretella cita, por exemplo, que o princpio do alterum non laedere(no prejudicar a outrem) pode ser aplicado tanto na cincia moral quanto na cincia jurdica. Oprincpio da causalidade vlido para as cincias fsicas; o princpio da sociabilidade nas cincias

    sociais.Princpios monovalentes: So proposies que servem de fundamento a um conjunto de juzosrelativos a um s campo do conhecimento. Haver tantos princpios monovalentes quantascincias cogitadas pelo esprito humano. So proposies especficas que s valem paradeterminado campo do conhecimento humano, como ocorre, na cincia jurdica, com os chamados

    princpios gerais do direito.

    Dentro do campo dos princpios monovalentes esto os gerais e os setoriais (especficos), sendoestes as proposies bsicas que informam os diversos setores em que se divide a cincia.

    Cretella menciona a existncia de princpios setoriais do direito administrativo, que podem serestudados em linha horizontal e em linha vertical, servindo de pilares para a construo

    sistemtica de um regime jurdico administrativo.

    6.2) A FUNO DOS PRINCPIOS NA CINCIA JURDICA

    Nem sempre se reconheceu fora normativa aos princpios. Classicamente os princpios vieramsendo estudados como meros mtodos de integrao do direito, ou seja, havendo lacuna,inexistncia de regra para determinada situao, recorria-se aos princpios, dentre outrosparmetros, para buscar uma soluo jurdica. Havia assim uma espcie de preeminncia dasregras em relao aos princpios.

    Esse pensamento mudou com a evoluo da principiologia jurdica, da decorrendo a emergnciade uma teoria dos princpios, no mais como fonte meramente integrativa ou de recomendao,

    seno como verdadeiras fontes de normas jurdicas.6.2.1) A EVOLUO DA PRINCIPIOLOGIA JURDICA

    So basicamente trs os momentos pelos quais passaram os princpios na cincia jurdica: i) fasedo jusnaturalismo; ii) fase do positivismo; iii) fase do ps-positivismo.

    Paulo Bonavides, a propsito do tema, leciona que a evoluo da compreenso dos princpios,para a cincia do direito, pode ser demarcada em trs fases distintas: a) a jusnaturalista, naqual se recusa a sua normatividade jurdica; b) a positivista, em que se reconhecem os princpioscomo normas, mas como fonte normativa subsidiria; e a atual fase, c) ps-positivista, segundoa qual a norma admitida como um gnero cujas espcies so os princpios e as regras.67

    Lus Roberto Barroso68 ensina que o jusnaturalismo formado a partir do sculo XVI era impregnadode valores sob a forma de princpios que buscavam orientar o sentido de justia para alm dasnormas fixadas pelo Estado. Foram esses valores, inclusive, que inspiraram a burguesia comocombustvel para as revolues liberais, porm, paradoxalmente, uma vez incorporados aosordenamentos, acabaram sendo superados por uma viso positivista. Com a promulgao doscdigos, escreve Bobbio, sobretudo o napolenico, o jusnaturalismo exauriu a sua funo nomomento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transpondo o direito racional para o cdigo, nose via nem admitia outro Direito seno este. O recurso a princpios ou normas extrnsecos aosistema do direito positivo foi considerado ilegtimo.

    67 PIRES, Lus Manoel Fonseca. Controle judicial da discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 35-36.68

    BARROSO, Lus Roberto.Apontamentos sobre o princpio da legalidade (delegaes legislativas, poder regulamentar e repartio constitucional dascompetncias legislativas), in Temas de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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    Todavia, prossegue Barroso, o triunfo do positivismo, do fetiche da lei, do legalismo acrtico, serviude disfarces para autoritarismos de matizes variados. Para Bobbio, o Positivismo, que seapresentou como cincia pretensamente livre de juzos de valor, neutra, rigorosamente cientfica,acabou tendo uma funo poltica e ideolgica, o que levantou a resistncia de jusfilosfos desde oincio do sculo XX (Jurisprudncia dos Interesses, de Ihering; Movimento pelo Direito Livre,Ehrlich), levando a sua decadncia emblematicamente associada derrota do Fascismo e do

    Nazismo.

    No contexto do positivismo, os princpios passaram a ser reconhecidos pela cincia jurdica, pormrelegados a segundo plano, apenas como elementos teis integrao do Direito nas hipteses delacunas no ordenamento. Ou seja, na ausncia de uma regra jurdica a resolver uma questo nocaso concreto, deveria o jurista recorrer aos princpios do Direito para encontrar uma soluo. Forada, porm, o princpio no deveria ser invocado.

    Por fim, a superao histrica do Jusnaturalismo e o fracasso poltico do Positivismo legalistaabriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexes acerca do Direito, suafuno social e sua interpretao, ao que se designou Ps-Positivismo e uma Nova HermenuticaConstitucional. A valorizao dos princpios, sua incorporao, explcita ou implcita, pelos textos

    constitucionais e o reconhecimento da ordem jurdica de sua normatividade fazem parte desseambiente de reaproximao entre Direito e tica.

    Os princpios tiveram de conquistar o status de norma jurdica, superando a crena de que teriamuma dimenso puramente axiolgica, tica, sem eficcia jurdica ou aplicabilidade direta eimediata.

    6.2.2) A NORMATIVIDADE PRINCIPIALISTA E O BLOCO DA LEGALIDADE.

    O jurista portugus Paulo Otero69 diz ter havido uma transfigurao da legalidade administrativade um Direito de regras num Direito de princpios, um sistema tendencialmente fechado substitudo por um sistema predominantemente aberto, de modo que a legalidade torna-se

    principialista.Isso decorre da natureza compromissria da grande maioria dos textos constitucionais surgidos nametade do sculo XX, procurando um equilbrio entre orientaes polticas opostas (aspectopoltico), de modo que se buscou uma nova tcnica jurdica de elaborao de normas. Uma talmudana de contedo das normas constitucionais, refletindo uma postura constituinte pluralista eprpria de uma sociedade aberta, permite recortar um sistema constitucional centrado na distinonuclear entre regras e princpios.

    O Direito de princpios que hoje invade a legalidade administrativa o resultado de um sistemaconstitucional tendencialmente principialista (aberto), refletindo um pluralismo poltico dassociedades modernas (sntese do compromisso das foras polticas com programas divergentes),

    fazendo da Administrao uma estrutura intermdia na realizao de ponderaes entre diferentese contraditrios princpios constitucionais. Reconhece que alguns juristas alertam, porm, para orisco de se transferir para os tribunais a funo de limitao do poder e de proteo dosparticulares que a lei, enquanto Direito de regras, antes desempenhava. Eliminou-se, assim, altima rstia da separao dos poderes que ope o poder poltico e o poder judicial, conduzindo aum governo de juzes.

    No campo do Direito Administrativo isso significou um avano em termos de controle jurisdicionaldos atos administrativos discricionrios.

    69 OTERO, Paulo.Legalidade e Administrao Pblica o sentido da vinculao administrativa juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003.

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    Gustavo Binenbojm70 salienta o surgimento de doutrinas com base no que se convencionouchamar de discricionariedade justicivel, decorrente da vinculao da Administrao no apenass regras escritas dos textos legislativos, mas ao sistema jurdico como um todo, a includosprincpios jurdicos.

    Valendo-se das clssicas lies do jurista Adolf Merkl, o autor defende que a emergncia da noo

    de juridicidade administrativa, com a vinculao direta da Administrao Constituio, nomais permite falar, tecnicamente, numa autntica dicotomia entre atos vinculados e atosdiscricionrios, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculao dos atos administrativos

    juridicidade, ao que corresponder, via de regra, a um maior ou menor grau de controle.

    O mrito ncleo do ato -, antes intocvel, passa a sofrer a incidncia direta dos princpiosconstitucionais, e ao invs de uma dicotomia em moldes tradicionais (ato vinculado v. atodiscricionrio), j superada, passa-se a uma classificao em graus de vinculao

    juridicidade, em uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa: 1) atos vinculadospor regra; 2) atos vinculados por conceitos jurdicos indeterminados; c) atos vinculadosdiretamente por princpios. Houve assim um estreitamento do mbito do chamado mritoadministrativo.

    Assim concebido o sentido da juridicidade administrativa, infere-se que a Administrao Pblicaest obrigada a cumprir no apenas as regras extradas diretamente dos textos das leis, mastambm os princpios consagrados expressa ou implicitamente na Constituio, alm de outrosinstrumentos normativos.

    o que a doutrina francesa h muito costuma chamar de Bloco da Legalidade, na expressoempregada por Maurice Hauriou, como o conjunto das fontes normativas que integram o regime-

    jurdico administrativo, ou seja, o ordenamento jurdico encarado como um todo sistmico.

    Significa dizer que as regras vinculantes da atividade administrativa emanam de outros veculosnormativos a saber: a) Constituio Federal, incluindo emendas constitucionais; b) Constituies

    Estaduais e Leis Orgnicas; c) medidas provisrias; d) tratados e convenes internacionais; e)costumes; f) atos administrativos normativos, como decretos e regimentos internos; g) decretoslegislativos e resolues (art.59 da CF); h) princpios gerais do direito.71

    Nesse sentido amplo, cumprir a lei no significa obedincia apenas a determinado dispositivo legal,mas, sim, a todo o sistema jurdico positivo composto por regras e princpios extrados dos maisdiversos veculos normativos que vinculam a Administrao.

    A implementao legislativa dos mencionados princpios constitucionais, envolvendo umainevitvel tcnica enunciativa das normas legais em termos vagos, imprecisos e ambguos, remetepara o aplicador do Direito no caso concreto a ponderao, a escolha da deciso sobre harmoniapossvel entre os diversos princpios acolhidos pela Constituio.

    6.2.3) DISTINO CLSSICA ENTRE NORMAS-REGRA E NORMAS-PRINCPIO

    clssica a distino entre regras e princpios, como espcies do gnero norma, apontada porJ.J. Gomes Canotilho e referida por diversos autores72:

    Na conceituao de princpios, fez j escola a distino capitaneada por J. J. Gomes Canotilho,segundo a qual embora tanto o princpio como a regra sejam espcies de norma -, o princpiodiferencia-se da regra porque, em livre resumo, o princpio tem maior grau de abstrao (e,portanto, menor grau de delimitao conceitual, a que Canotilho chama de indeterminao),

    70 BINENBOJM, op cit.71 MAZZA, op. cit., p. 77.72

    Mas, apesar disso, criticada por alguns, a exemplo de Humberto vila, que, no seu livro Teoria dos Princpios, formula crticas aos tradicionais critriosdistintivos das regras e princpios, mencionando ainda uma nova categoria, por ele chamada depostulados normativos aplicativos.

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    porque o princpio traz sempre um carter de fundamentalidade dentro do sistema e um maiorcompromisso com a idia de Justia e, enfim, porque o princpio o prprio fundamento da regra,sendo esta um desdobramento casustico do princpio. Assim, se no conceito de norma estoabrangidos tanto os princpios quanto as regras jurdicas, cumpre ter em mente a superioridade doprincpio frente regra, seja porque o princpio que serve de fundamento regra73.Na esfera especfica do Direito Administrativo, tem-se o regime jurdico-administrativo,

    consubstanciado nas normas que orientam a atividade administrativa, vale dizer, as regras eprincpios fundamentais do Direito Administrativo.

    Lucia Valle Figueiredo74 denomina regime jurdico administrativo ao conjunto de regras eprincpios a que se deve subsumir a atividade administrativa no atingimento de seus fins e quecontm regras prprias com aspectos inteiramente diversos do Direito Privado.

    6.2.4) CRTICAS AOS CRITRIOS DE DISTINO

    Os critrios de distino apontados pela doutrina nunca foram uniformes. Humberto vila75 citavrios autores que propuseram definies para as espcies normativas. Josef Esser props umadistino qualitativa. Para Karl Larenz os princpios indicariam somente a direo em que est

    situada a regra a ser encontrada. Para Canaris, a distino estaria no contedo axiolgico dosprincpios e o seu modo de interao com outras normas. Dworkin atacou o positivismo dizendoque as regras so aplicadas ao modo tudo ou nada, enquanto os princpios possuem umadimenso de peso demonstrvel na hiptese de coliso. Alexy princpios so deveres deotimizao, negando a existncia de peso entre os princpios (ao contrrio de Dworkin), cabendohaver uma ponderao em cada caso concreto em busca de uma regra de prevalncia.

    Para vila, portanto, h distines fracas entre os pensamentos de Esser, Larenz e Canaris, edistines fortes entre Dworkin e Alexy, o que demanda sejam investigados modos deaperfeioamento desses critrios.

    Diz que a doutrina constitucional vive hoje uma espcie de Estado principiolgico, mas que a

    euforia do n