Caderno de Filosofia Ufs

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    Aldo Dinucci

    Alfredo Julien

    Adriana Tabosa

    Antonio Carlos Tarqunio

    Jovelina Maria Ramos de Souza

    Luiz Roberto Alves dos Santos

    Raimundo Arajo dos Santos

    Geraldo Alves Teixeira Jnior

    Joelson Santos Nascimento

    CADERNOS UFS -

    FILOSOFIAFasc. XI - Vol. 5 - 2009

    ISSN: 1807-3972

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    Editora da UFS, CADERNOS UFS - DIREITO, So Cristvo: Fasc. XI, VOL. 1, 2009.

    REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPEProf. Josu Modesto dos Passos Subrinho

    VICE-REITOR

    Prof. Angelo Roberto AntoniolliCONSELHO EDITORIAL DA UFSLuiz Augusto de Carvalho Sobral (Coordenador do Programa Editorial)Antnio Ponciano BezerraPricles Morais de Andrade JuniorMrio Everaldo de SouzaRicardo Queiroz GurgelRosemeri Melo e SouzaTerezinha Alves de Oliva

    CONSELHO EDITORIAL DA UFS FILOSOFIA

    Dr. Alberto Oliva (UFRJ)Dr. Aldo Dinucci (UFS)Dr. Deyve Redison Melo dos Santos (UFPB)Dr. Jos Maria Arruda (UFC)Dr. Mrcio Gimenes de Paula (UFS)Dr. Marcos Andr de Barros (UFS)Dr. Marcos Antonio da Silva (UFS)Dra. Mirtes Mirian Amorim Maciel (UFC)

    EDITORES DO CADERNO UFS FILOSOFIADr. Aldo Dinucci; Dr. Marcos Antonio da Silva

    CENTRO DE EDUCAO SUPERIOR A DISTNCIACoordenadora GrficaGiselda Santos BarrosEditorao EletrnicaAdilma Menezes

    CADERNOS UFS - FILOSOFIA/Universidade Federal deSergipe. - vol. 6 (2004) - So Cristvo: Editora daUFS, 2008

    106 p.

    Semestral

    I. Filosofia. - Peridicos. I. Universidade Federal deSergipe.

    CDU: 37(05)

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    SUMRIO

    APRESENTAO .................................................................................. 5

    - NOTAS SOBRE A TEORIA ARISTOTLICA DA LINGUAGEM .................. 7 Aldo Dinucci

    - A PSICOLOGIA HISTRICA DE JEAN-PIERRE VERNANT .....................17Alfredo Julien

    - A SUPERAO DOS HUMANOS: O BIOPODER, AINSTRUMENTALIZAO E A MANIPULAO DO HOMEM..................25

    Adriana Tabosa

    - EPICTETO E A PAIXO NO CORAO DO PENSAMENTO:AS DUAS CAUSAS DE CRISIPO E O MERGULHO EM DEUS ................35

    Antonio Carlos Tarqunio

    - PLATO E A CRTICA MIMTICA MMESIS ....................................49Jovelina Maria Ramos de Souza

    - TICA SOFSTICA: O PAPEL EDUCATIVO DA RELATIVIZAODOS VALORES ................................................................................57

    Luiz Roberto Alves dos Santos

    - O FEDRO NA PERSPECTIVA DIALGICO-DRAMTICADA FILOSOFIA DE PLATO ...............................................................73Raimundo Arajo dos Santos

    - FILOSOFIA DA TEORIA POLTICA: ALGUNS MOMENTOS ....................89Geraldo Alves Teixeira Jnior

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    - A FILOSOFIA COMO TERAPIA DA ALMA EM SNECA ...................... 105Joelson Santos Nascimento

    - NORMAS .......................................................................................113

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    APRESENTAO

    Nesse quinto volume dos CADERNOS UFS DE FILOSOFIA oferecemos umamplo panorama da pesquisa brasileira atual em filosofia clssica e helensticae seus desdobramentos. Aldo Dinucci trata da teoria aristotlica da lingua-gem, Alfredo Julien analisa o pensamento de Pierre Vernant, Adriana Tabosaaborda o pensamento de Sloterdijk, Antonio Tarqnio fala de Epicteto, JovelinaMaria Ramos de Souza se detm sobre a questo da mmesis em Plato, LuizRoberto Alves dos Santos discute a sofstica, Raimundo Arajo dos Santosproblematiza a relao de Plato com a retrica, Geraldo Alves Teixeira Jniordiscorre sobre a filosofia poltica desde seus primrdios na Grcia at os diasatuais e Joelson Nascimento reflete sobre a noo de filosofia como medicina

    da alma em Sneca. Os textos so de agradvel leitura e muito informativos,cumprindo uma dupla misso: a de atender a preciso tanto dos pesquisado-res docentes de atualizar seus conhecimentos e perceber novas perspectivas,quanto dos discentes, que nesses textos encontraro oportunidade de seremintroduzidos aos mais variados aspectos do pensamento antigo e sua relaocom a contemporaneidade.

    Dr. Marcos Antonio da Silva; Dr. Aldo DinucciEditores dos CADERNOS UFS DE FILOSOFIA

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    NOTAS SOBRE A TEORIA ARISTOTLICA DALINGUAGEM

    Aldo Dinucci, Doutor em Filosofia Clssica pela PUC/RJe professor adjunto do Departamento de Filosofia da UFS

    Resumo: Neste artigo falarei sobre os conceitos principais da teoriaaristotlica da linguagem, tais como smbolo e signo, bem como sobreas conseqncias das reflexes aristotlicas sobre a linguagem humanaquanto ao jogo dialtico e quanto fundamentao do princpio de no-contradio.Palavras-chave:Aristteles, teoria da linguagem, dialtica.

    Abstract: In this paper I will talk about the main concepts of the aristotelictheory of language, as symbol and sign, and also about theconsequences of Aristotles reflections on human language concerning thedialectic game and the foundation of non-contradiction principle.Key-words: Aristotle, theory of language, dialectic.

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    Diz-nos Aristteles no De Interpretatione1: As coisas na voz so os sm-bolos das afeces da alma e as coisas escritas [so os smbolos] das coisasna voz. Vemos assim que Aristteles define a palavra como smbolo (symbolon)de afeces da alma (pathmata ts psychs). Mas o que quer dizer Aristte-les quando afirma que as coisas na voz so smbolos? Para esclarecermos

    isto, citaremos a seguir as trs passagens onde Aristteles2

    se refere explici-tamente ao conceito de smbolo no De Interpretatione:

    As coisas na voz so os smbolos das afeces na alma, ascoisas escritas [so os smbolos] das coisas na voz. (1,16 a3-4)Nenhum nome [tal] por natureza, mas [apenas] quando elese torna smbolo. (1,16 a 28)As afirmaes e as negaes na voz so os smbolos daque-las na alma. (1,24 b 2)

    Em geral observa Chiesa3 a relao smbolo de se refere relaoentre os sons da voz e as modificaes da alma, assim como a relao entreos caracteres da escritura e as expresses vocais. Os sons ou coisas na voz(t en t phon) incluem nomes, verbos, o discurso e suas formas. J pode-mos constatar a diferena crucial entre as teorias sofsticas da linguagem e ade Aristteles: no pensamento do estagirita no se trata mais do princpio daaderncia total que liga a palavra ao ser, to caro aos sofistas; a palavra emAristteles dita smbolo de um estado psquico, o que equivale a dizer que arelao da linguagem com o ser no imediata.

    A frase (2) tornada mais clara pelo seguinte passagem do DeInterpretatione:

    E, do mesmo modo que as letras no so as mesmas paratodos, as vozes no so as mesmas, enquanto os estados dealma, de que essas expresses so imediatamente os signos,so idnticos para todos, como so idnticas tambm as coi-sas das quais os estados psquicos so as imagens.4

    Aristteles, ciente da diversidade das lnguas, reconhece que as palavrasno so significantes por elas mesmas, enquanto que os estados de alma

    so semelhantes s coisas que lhes correspondem5. Se as palavras fossemnaturais (ou seja, se no fossem convencionais), no haveria mais que umanica lngua para todos os homens, o que manifestamente um absurdo: O

    1 Aristteles, De Interpretatione, 1 16 a, 3-42 Chiesa, 1986, P.2063 Idem, ibdem.4 Aristteles, De Interpretatione, 1, 16 a 4-85 Aubenque, 1983, p.107

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    critrio do carter convencional das formas lingsticas, orais e escritas, con-siste no fato, empiricamente observvel, de que elas dependem de regras deuso que mudam de uma comunidade outra 6. Como a palavra smbolo deum estado psquico, e como este ltimo uma imagem das coisas reais, alinguagem no tem qualquer relao de semelhana com as coisas:

    O smbolo no toma pura e simplesmente o lugar da coisa, eleno tem nenhuma semelhana com ela [isto afirmar que huma ligao, mas tambm uma distncia, pela qual o smbolose distingue da relao de semelhana] e, no entanto, a elaque ele nos reenvia [significando-a].7

    Aristteles evita simultaneamente as teorias da linguagem de Grgias e deAntstenes. Deste, ao afirmar a impossibilidade factual de uma ligao natu-ral e imediata entre as palavras e as coisas. Daquele, por conservar umarelao, ainda que mediata, entre linguagem e realidade, evitando assim oabismo entre palavras e coisas, apontado por Grgias.

    Acrescentemos que as coisas na voz, ou as vozes, no se restringem aestas que so conformes conveno, que podemos chamar tambm devozes significativas ( phon semantik) ou smbolos ou vozes significati-vas convencionais. Podemos reconhecer em Aristteles algo que chamare-mos de vozes significativas no convencionais: Mesmo se os sonsinarticulados, como aqueles dos animais brutos, exprimam alguma coisa, ne-nhum entre eles , entretanto, um nome 8. H, portanto, vozes significativasnaturais ou no convencionais mas estas no so palavras nem smbolos:so, outrossim, os sons inarticulados dos animais, como, por exemplo, os

    cantos das aves para o acasalamento. Temos, assim, por um lado, o somnatural e no articulado e, por outro, o som convencional e articulado:

    Os nomes, os verbos e os discursos so vozes significativas esimblicas, convencionais e analisveis em letras [pois a escri-ta smbolo das palavras faladas e, correlativamente, todalinguagem susceptvel de ser escrita]; os sons dos animaisso vozes significativas e expressivas, naturais e no analisveisem letras. Da resulta... que os smbolos da linguagem huma-na representam uma espcie particular que pertence ao gne-

    ro comum das vozes significativas animais, quer dizer, como definido no De Anima9 , os sons do ser animado10.

    6 Chiesa, 1986, p.2077 Aubenque, 1983, p.1088 Aristteles, De Interpretatione, 16 a 28-299 Idem, De Anima, 420 b 510 Chiesa, 1986, p.209

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    As palavras, ou vozes significativas convencionais, so compostas, e suaspartes no so por si ss significativas. So apenas vozes11, sons vocaisdesprovidos de sentido que poderamos chamar de vozes no significati-vas12. A significao das palavras, por sua vez, ou o fato delas serem sig-nificativas, se deve ao fato de serem constitudas por uma certa estrutura

    articulada, absolutamente convencional: Se a voz a matria dos smboloslingsticos, a estrutura articulada a forma da qual depende a significao,pois o sentido , a princpio, em funo da estrutura13.

    Aristteles, embora afirmando a linguagem como um conjunto de smbolosou vozes significativas convencionais, reserva um espao para as vozes noconvencionais. As vozes naturais, embora significativas, no so, entretanto,consideradas como linguagem simblica, so somente os sons dos animais.As vozes no significativas s so possveis enquanto letras ou slabas quecompem as palavras. Aristteles concebe para a linguagem humana o car-ter simblico. O discurso humano reenvia s afeces da alma, relacionando-se mediatamente s coisas: ao utilizar a voz enquanto smbolo, aquele quefala comunica quele que escuta um contedo determinado [...] que permitefixar seu pensamento assim como o do outro14.

    Mas Aristteles, por outro lado, define a linguagem tambm como signo:As afeces da alma, das quais as vozes so primariamente os signos, soas mesmas para todos 15. Um signo (semion) tudo aquilo que manifestaou evidencia alguma coisa que no ele prprio. Nesse sentido, por exemplo, afumaa signo do fogo. Mas a linguagem, enquanto simblica e convencio-nal, no pode ser identificada com a totalidade dos signos, pois muitos des-tes se relacionam real e naturalmente quilo de que so signos.16

    Se a linguagem enquanto smbolo signo, porque, constituindo-se como

    uma voz significativa convencional, evidencia ou manifesta estados psqui-cos. Assim, a linguagem no manifesta as coisas, mas as significa17. O sm-bolo , portanto, um signo convencional ou, em outras palavras, smbolo um conceito especfico enquanto signo o conceito genrico que compreen-de o primeiro.18

    Entretanto, a significao dos nomes no prejulga a existncia ou ainexistncia das coisas; no juzo, pois faz abstrao da existncia ouinexistncia da coisa significada (e precisamente por isso podemos significaro fictcio)19: Eu quero dizer que, por exemplo, a palavra homem significa

    11 Aristteles, De Interpretatione, 16 b 3212 Chiesa, 1986, P.20813 Idem, ibdem, p.20914 Idem, ibdem, p.21015 Aristteles, De Interpretatione, 16 a 6-716 Aubenque, 1983, p.10917 Idem, ibdem, p.11018 Chiesa, 1986, p.21619 Aubenque, 1983, p.110

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    alguma coisa, mas no [...] que ele ou no : no haver afirmao ounegao se no se acrescentar outra coisa20. No De Interpretatione, Arist-teles define a verdade em termos de similitude: Os discursos verdadeirosso semelhantes s prprias coisas 21. Alm disso, nem todo discursosignificante uma afirmao ou negao: apenas estas so capazes de ser

    verdadeiras e capazes de ser falsas22

    , sendo verdadeiras quando revelaremconexes que existem realmente nas coisas e falsas no caso contrrio:

    A proposio diz-nos AUBENQUE23 , portanto, o lugar pri-vilegiado onde o discurso sai de alguma maneira de si mesmo[i.e. deixa de ser simplesmente significante] para tentar atin-gir as coisas nelas mesmas em sua ligao recproca e, por a,em sua existncia. Em termos modernos, dir-se-ia que o juzo ao mesmo tempo sntese de conceitos e afirmao dessasntese no ser.

    O discurso se assemelha s coisas no na medida em que discurso, masna medida em que reflete conexes reais, isto , na medida em que verda-deiro. Ora, o ato de estabelecer ligaes entre os termos no pertence propri-amente linguagem: as conexes possuem um estatuto psquico; se revelamnas afeces psquicas e so efetuadas pela psych. o intelecto que capaz de receber as formas inteligveis e estabelecer as relaes entre osuniversais. necessrio notar que a funo judicativa pertence mais propria-mente psych que ao discurso, mas, correlativamente, a psych no podefazer abstrao desses signos convencionais. Em outras palavras: o homemno pode pensar sem utilizar os smbolos lingsticos. Portanto, o discurso

    verdadeiro se remete imediatamente a uma afeco psquica, onde se realizauma sntese que reflete relaes reais. verdadeiro no tanto enquanto sm-bolo convencional, mas na medida em que signo imediato de uma afecosemelhante a algo real, manifestando imediatamente esta similitude (afeco)e mediatamente a coisa existente.

    fundamental notar como, at aqui, Aristteles evita todas as dificulda-des apontadas por Grgias e Antstenes para o estabelecimento da cincia:promovendo o afastamento entre o ser e o discurso, evita por um lado osparadoxos de Antstenes para este, sendo o ser irremissivelmente atado linguagem, impossvel dizer o falso. A lgica de Aristteles, por sua vez,

    necessita de proposies com estrutura S P capazes de ser verdadeiras ecapazes de ser falsas, e a teoria de Antstenes que afirma a impossibilidadede dizer o falso impossibilita a silogstica aristotlica. Em Aristteles, o afas-

    20 Aristteles, De Interpretatione, 4, 16 b 2821 Idem, ibdem, 9, 19 a 3322 Idem, ibdem, 4, 16 b 2723 Aubenque, 1983, p.111

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    tamento entre logos e ser se reflete na reduo do lgos a vozes convencio-nais significativas. O verdadeiro e o falso tornam-se possveis e explicveisatravs de operaes psquicas que refletem ou no relaes entre coisasreais simbolizadas pela linguagem. Para o estagirita, dizer o falso no dizer ono-ser, mas compor uma proposio formada de termos significantes evi-

    denciando uma afeco ou um pensamento errneo, isto , que exprime co-nexes no existentes entre coisas reais simbolizadas pela linguagem. O mes-mo afastamento rechaa Grgias. A linguagem, embora convencional, signode afeces que podem tratar de conexes acertadas; a linguagem pode ligar-se mediatamente ao real, expressando-o no discurso apofntico, revelador.

    Voltemo-nos demonstrao aristotlica do princpio de no-contradio,no livro IV da Metafsica, para, a partir do que vimos, compreender o queAristteles quer dizer ao pedir que seus adversrios digam algo com significa-o para eles e para outros. importante notar, em primeiro lugar, que Arist-teles quer mostrar que qualquer um ao falar no pode se furtar ao dever depronunciar uma voz significativa convencional se quiser realmente se fazercompreender e compreender o que ele prprio diz. Uma voz no significativano daria conta dessa tarefa. Uma voz natural significativa tampouco o faria:no seria linguagem e, por essa razo, no seria transcodificvel em letras.No se trataria de dizer algo determinado, pois, se assim o fosse, teramos deadmitir que os animais falam (j que a eles propriamente pertencem as vozesnaturais significativas), o que um absurdo, pois suas vozes no so maisque os signos naturais de seus estados psquicos que manifestam dor, raiva,medo, etc. Aristteles, portanto, exige do sofista uma voz significativa con-vencional, a qual (enquanto smbolo) se revela como o elemento fundamentalde significao do discurso humano. O discurso no pode fazer abstrao

    dos smbolos vocais e, correlativamente, a composio desses smbolos naforma proposicional pode revelar a estrutura do mundo real.

    A teoria da linguagem de Aristteles envolve a afirmao de uma visocompletamente distinta daquela dos sofistas no que se refere natureza dodilogo entre os homens. Para Grgias, por exemplo, a palavra tem sobretudouma funo persuasiva; em sua doutrina no h espao para as funes deexpresso e transmisso24 do discurso. Aristteles, ao afirmar que as pala-vras significam, implicitamente reconhece que, no discurso, no apenas fala-mos a algum, mas tambm falamos de algo determinado25.

    No jogo dialtico, isso implica que dois interlocutores podem falar de coi-

    sas absolutamente opostas a respeito de um mesmo tema. As seguintesseriam, a partir da teoria aristotlica da linguagem, as regras do jogo dialtico26:a primeira seria afirmar a possibilidade de que dois interlocutores se contradi-

    24 Idem, ibdem, p. 9825 Wolff, 1996, p.1426 Idem, ibdem, p.16

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    gam. Isso tornado possvel, como vimos acima, pelo distanciamento entre oser e o discurso. Nesse mbito, j est pressuposto o princpio de no-contra-dio, pois para fazer uma assero qualquer [...] necessrio admitir impli-citamente que a mesma coisa no pode ao mesmo tempo pertencer e nopertencer a algo 27. A segunda regra seria que uma mesma pessoa no pode

    se contradizer no jogo dialtico: a tambm est implicado o princpio de no-contradio, pois essa regra nada mais que a formulao psicolgica desteprincpio. O interlocutor, claro, pode se recusar a seguir as duas regras do

    jogo dialtico derivadas da teoria da linguagem de Aristteles. Porm, para oestagirita, a exigncia de que fale algo determinado e significativo evidencia aimpossibilidade de que estas duas regras estejam ausentes de um verdadeirodilogo:

    Quem quer que fale [...] fala verdadeiramente e no se con-tenta em no dizer nada, mas fala verdadeiramente a algumacerca de alguma coisa [reconhecendo implicitamente] o prin-cpio, pelo simples fato desta dupla relao consubstancial linguagem, este a e este de.28

    Em outras palavras, ao falar de algo determinado, o sofista implicitamentereconhece que este algo no um no-algo. Assim, caso quisesse continuarnegando o princpio, teria de dizer algo e no-algo e ser compreendido, oque impossvel.

    Aristteles, entretanto, passa a analisar dois problemas que poderiam ame-aar a significao nica no mbito da prpria teoria da linguagem:

    E nada importa que algum diga que [o nome] significa vriascoisas, contanto que sejam em nmero limitado, pois a cadaconceito se poderia dar um nome diferente; por exemplo, sese dissesse que homem no significa uma coisa nica, masvrias, das quais uma seria animal bpede, havendo, porm,vrios outros enunciados, ainda que em nmero limitado; poisse colocaria um nome particular a cada conceito, e se no secolocasse, mas se se dissesse que significava infinitas coi-sas, claro que no poderia haver raciocnio; pois no signifi-car alguma coisa no significar coisa alguma, e, se os nomes

    no significam nada, impossvel dialogar uns com os outros,e, em verdade, tambm consigo mesmo; no possvel, comefeito, que pense nada aquele que no pensa uma coisa [...] Onome [portanto] tem uma significao [...] nica.29

    27 Idem, ibdem.28 Idem, ibdem, p.17.29 Aristteles, Metafsica, G, 4, 1006 a, 31 - 1006 b, 11.

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    Este texto deve ser aproximado de um texto das Refutaes Sofsticas paraser bem compreendido:

    Ora, entre nomes e coisas no h semelhana completa: osnomes so em nmero limitado, assim como a pluralidade

    das definies, enquanto as coisas so em nmeroindeterminado. , por conseguinte, inevitvel que muitas coi-sas sejam significadas por uma mesma definio e por ummesmo nome.30

    Aristteles ressalta que no possvel uma correspondncia biunvocaentre coisas e palavras. As primeiras so em nmero indeterminado, as se-gundas em nmero limitado. A conseqncia disso que uma mesma palavrapode significar vrias coisas, o que equivale a afirmar a possibilidade daequivocidade:

    Longe de ser um simples acidente da linguagem, [aequivocidade] aparece primeiramente como o vcio essencial.Mas essa conseqncia deve ser corrigida: porque se umamesma palavra significa simultaneamente esta e aquela coi-sa, como se entender na discusso?31

    A equivocidade parece incontornvel no mbito dos indivduos concretos:Scrates, Clias, Csar, Clepatra; todos esses so seres humanos e, en-quanto tais, recebem a mesma definio: animal racional. A distino feitapelos nomes prprios , entretanto, meramente acidental: quando percebe-

    mos, por exemplo, Scrates, o vemos fundamentalmente como ser humanoou como branco ou filsofo e apenas acidentalmente como Scrates32. Po-rm, correlativamente, se s percebemos os indivduos concretos numa pers-pectiva universal, esta equivocidade amenizada pelo fato de que, quandodizemos homem, significamos, ainda assim, uma coisa determinada, o con-ceito de ou o universal homem, o qual captado por um ato de simplesapreenso, por uma induo imperfeita, no silogstica. O universal apreen-dido sem que seja necessrio que passemos em revista a todos os indivduosconcretos que possuam este universal como caracterstica. Assim, o queAristteles tem em vista aqui no a unidade do significado e sim a da

    significao33, pois os significados ltimos so em nmero ilimitado: a mes-ma palavra significa vrias coisas porque a linguagem significa em ltima

    30 Idem, Ref. Sof., 165 a 10-1331 Aubenque, Le Problme..., p.11832 Aristteles, De Anima, 6, 418 a33 Aubenque, 1983, p. 119

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    anlise os indivduos 34.A significao, por outro lado, aquilo atravs doque o significado visado 35.

    A equivocidade da significao facilmente solucionada por Aristteles:basta distinguir as diferentes significaes dando um nome distinto a cadauma delas. Por exemplo: homem e cavalo so animais e o termo animal

    parece ter uma significao equvoca (o que aquivale a no significar nadadeterminado), mas basta que acrescentemos uma diferena especfica a cadacaso e a indeterminao se esvai: homem ser animal racional e cavaloanimal mais sua devida diferena especfica. Tudo correr bem se a palavrativer um nmero determinado de significaes. Se assim no o for, jamaisdistinguiremos entre todas as significaes (j que precisaramos para isto deum tempo infinito), e no poderemos falar essa palavra e sermos compreendi-dos, pois sua significao seria para sempre equvoca.

    sobre a pluralidade das significaes observa Aubenque36que se apoiam a maior parte [...] dos argumentos sofsticos.O paralogismo, no sentido estrito do termo, consiste em to-mar a mesma palavra em acepes diferentes no curso doraciocnio.

    Essa reflexo confirmada pelo prprio Aristteles: Os que no tm ne-nhuma experincia da virtude significante dos nomes fazem falsos raciocni-os, ao mesmo tempo discutindo com eles mesmos e escutando os outros 37.E fazem isso supondo que o que se passa com os nomes se passa tambmcom as coisas 38, ignorando que, por no podermos utilizar na discusso asprprias coisas, nos servimos de seus nomes como smbolos, e que esses

    nomes, para serem compreensveis, tm de possuir uma significao nica oupelo menos um nmero limitado de significaes.

    Aristteles analisa ainda uma outra questo:

    E no ser possvel que uma mesma coisa seja e no seja [...]como se, ao que ns chamamos homem, outros chamemno-homem? Porm, a dificuldade no est em saber se possvel que uma mesma coisa seja e no seja simultanea-mente homem quanto ao nome, mas na realidade.39

    Temos aqui a objeo fundada sobre a convencionalidade da lngua. Mas jvimos que as vozes convencionais significativas so signos de afeces ps-

    34 Idem, ibdem.35 Idem, ibdem.36 Idem, ibdem, p.12337 Aristteles, Ref. Sof., 165 a 15-1738 Idem , ibdem, 165 a 15-1739 Aristteles, Metafsica, G, 4, 1006 b 18-21

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    quicas e que estas so iguais para todos os homens. Em outras palavras, aunidade de sentido no se funda sobre os idiomas particulares, pois a estru-tura de toda lngua particular contingente, acidental, convencional, masencontra seu fundamento na regra semntica, que necessariamente40 a mesmapara todas as lnguas. Como os estados psquicos so os mesmos para to-

    dos, pessoas que utilizam diferentes idiomas, ao observarem as mesmas coi-sas ou pensarem sobre os mesmos temas, sero afetadas psiquicamente demodo idntico, muito embora utilizem smbolos diferentes, os quais serodiferentes signos que evidenciaro as mesmas afeces. Palavras diferentessignificaro as mesmas coisas, mas no haver equivocidade: bastar efetuara necessria traduo entre as palavras para se constatar que so vozes con-vencionais significativas que significam a mesma coisa, o mesmo conceitoou o mesmo universal. A teoria da linguagem de Aristteles envolve, portan-to, a afirmao de comensurabilidade radical entre palavras e coisas, e aunidade de sentido se revela como condio de possibilidade de toda lingua-gem41, condio que tem como fundamento o princpio de no-contradio.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    ARISTTELES. De Interpretatione. (Tricot). Paris: Vrin, 1959._____. De Lme. (Rodier). Paris: Vrin, 1900._____. Les Rfutations Sophistiques. (Tricot). Paris: Vrin, 1977._____. Metafsica. (Yebra). Madri: Editorial Gredos, 1970.AUBENQUE, Pierre.Le Problme de Ltre chez Aristote. 2.ed. Paris: PressesUniversitaires de France, Paris, 1983.

    _____. La Dialectique chez Aristote, in LAtualit della ProblematicaAristotelica, Padua 6-8, 1967.CHIESA, Curzio. Symbole et signe dans le De Interpretatione. In: Philosophiedu Langage et Grammaire dans lantiquit. Bruxelas: Ousia, 1986, p. 203-18.WOLFF, Francis.Les Trois Langage-mondes in La Libert de LEsprit, Hachete,Paris, maro de 1996.

    40 Wolff, 1996, p. 20-141 Idem, ibdem, p. 23

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    A PSICOLOGIA HISTRICA DE JEAN-PIERRE VERNANT

    Alfredo Julien,Doutor em Histria pela USP e professor do DHI-UFS

    Resumo:

    A obra de Jean-Pierre Vernant constitui-se um instrumento valioso para osestudos sobre a Antigidade Clssica. Um dos principais helenistas dacontemporaneidade, contribuiu decisivamente para a reflexo da naturezado pensamento mtico e da emergncia da racionalidade grega antiga.

    Neste artigo abordamos traos de sua trajetria acadmica e intelectual,discutindo elementos tericos e metodolgicos que marcam sua obra.Palavras chaves: razo, mito, religio.

    Abstract:

    The works of Jean-pierre Vernant constitute an valuable instrument for thestudies about classical antiquity. One of the main Hellenists of our days, hehas contributed decisively for the reflection about the mythic thought andthe emergence of ancient Greek rationality. In this paper we will deal withsome aspects of his academic and intellectual trajectory, discussing theoricand methodologic elements which mark his work.Key-words: reason, mith, religion.

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    Vernant nasceu em 1914 e morreu em 2007, aos 93 anos de idade. Teveuma longa vida, quase centenria, na qual desde a juventude engajou-sepoliticamente, buscando participar das questes sociais e polticas que mar-cavam sua poca. Adolescente, integrou uma organizao revolucionria atiacom sede em Moscou. Em 1932, entrou para o Partido Comunista Francs, do

    qual saiu somente em 1970. Durante a II Guerra Mundial foi membro ativo daresistncia francesa. Com o fim da Guerra, voltou a lecionar filosofia, discipli-na em que havia se graduado para ministrar aulas no sistema escolar francs.Em 1948, passou a integrar o Centro Nacional de Pesquisas Cientficas. Em1958, foi nomeado diretor da VI seo da Escola Prtica de Altos Estudos, naqual se associou com Fernand Braudel. Em 1964, fundou seu prprio centrode pesquisas: o Centro de Pesquisas Comparadas Sobre as Sociedades Anti-gas. De 1975 a 1984, integrou o corpo de professores do College de France,sendo o responsvel pela cadeira de Histria Comparada das Religies Antigas.Militante, Vernant compartilhou os ideais revolucionrios de sua poca, engajando-se na onda comunista que se espalhou pela Europa aps a Revoluo Russa1917. A rica biografia de Vernant e sua participao nas questes polticas esociais de seu tempo mostram a envergadura e importncia de sua obra. Intelec-tual, professor e pesquisador, ajudou s revolucionar as prticas tradicionais queditavam as regras no mbito dos estudos clssicos, inovando na formulaode problemas, objetos de estudos e procedimentos de pesquisas.

    Em seu percurso intelectual, absorveu influncias das mais variadas cor-rentes de pensamento que marcaram presena no sculo XX europeu. Pode-mos notar em seus livros a marca de sua militncia, da influncia do marxis-mo, da sociologia durkheiminiana e do estruturalismo francs. Particularmen-te, se deve sublinhar a importncia de duas pessoas na sua formao, dois

    mestres que o orientaram nos incios de seu percurso acadmico e que servi-ram-lhe de modelo: Louis Gernet e Ignace Meyerson. A forma como se refere aeles e as qualidades com que os caracteriza so uma boa maneira de visualizaros modos de atuao com que procurou pautar sua vida acadmica:

    Gernet era um especialista em todos os campos, um mestreem filologia, em cincia do direito, em histria social e econ-mica. Era tambm um daqueles que entenderam de maneiramais refinada e mais profunda as formas de religiosidade gre-ga. Habituado tanto com debates filosficos quanto com os

    dos tribunais, conhecedor das obras dos poetas assim comoas dos historiadores ou dos mdicos, Gernet podia sempreconsiderar o homem grego total, respeitando contudo a espe-cificidade dos diversos setores da experincia humana, sualngua e sua lgica prpria. (VERNANT, 2002, p.158)

    Gernet foi um de seus exemplos pesquisador. Vernant considerava perfeitoo seu conhecimento sobre os assuntos que o interessavam. Porm, nos diz

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    Vernant, nele no se podia encontrar nem sombra de pedantismo, pois suaerudio no estava a servio da autopromoo e da busca de honrarias. Elaera usada apenas como instrumento pelo qual buscava colocar corretamente,e com clareza, as questes propostas por suas pesquisas.

    Ignace Meyerson, homem a quem Vernant destinava grande apreo, teve

    um papel fundamental na formulao dos procedimentos metodolgicos doque viria a ser chamado de psicologia histrica na Frana. Polons, Meyersonchegou Frana em 1905, onde concluiu cursos de medicina e filosofia. Em1907 entrou para o partido socialista e, na I Guerra Mundial, participou comomdico na Legio Francesa. Aps a Guerra, desenvolveu trabalhos na rea depsicofisiologia, no recm-criado Instituto de Psicologia de Paris. Foi secret-rio da Sociedade Francesa de Psicologia e do Jornal de Psicologia Normal ePatolgica. Aps a II Guerra, na qual participou ativamente da ResistnciaFrancesa, integrou o corpo da Escola Prtica de Altos Estudos, quando suaateno voltou-se exclusivamente para a psicologia histrica. O prprio Vernantresumiu a mxima que fundamentava os procedimentos metodolgicos quecaracterizaram sua psicologia histrica. Segundo ele, Meyerson teria contri-budo decisivamente para colocar a psicolgica histrica frente ao seu verda-deiro objeto: o homem tal como agiu, experimentou e construiu sua vida,abandonando a posio terica e formal que at ento predominava no cam-po da psicologia. Nessa perspectiva, o esprito do homem encontrar-se-ia nassuas obras. Suas formas de imaginao, mentalidades e funes psicolgicasdeveriam ser buscadas naquilo que foi produzido em seus atos culturais. ParaVernant, no existiria, assim, entidades ou prticas sociais que no remetes-sem para formas determinadas de pensamento e vice-versa. Elas seriam inter-dependentes. O pensamento, a vida social, poltica e econmica existiriam

    em relao de correspondncia1.Sua percepo de que o homem formava uma totalidade indissolvel com

    todos os campos e esferas da organizao da vida social levou-o a produzirexplicaes em que o mental, o social, o econmico, o poltico e o religiosono formassem compartimento estanques, isolados um dos outros. ParaVernant, o religioso era econmico e vice-versa. As esferas de organizao domundo humano viviam em relao de dependncia umas com as outras.Talperspectiva integradora das realidades humanas, no entendendo as diversasesferas da vida social como entidades estanques, isoladas uma das outras,contribuiu para sua inclinao para a multidisciplinaridade, por meio da qual

    visava integrar diversos campos do saber com o propsito de buscar sempre

    1 O esprito est engajado no social, em constante interao, a cada instante e ao mesmo tempo efeito ecausa [...] As estruturas sociais no permanecem para ele como formas vazias, no humanas. Existem apenasem funo de seus comportamentos, porque as anima com suas representaes, com seus sentimentos, comseus desejos [...] A histria social uma obra humana que os homens elaboram com suas paixes, seusinteresses e suas representaes. Mas, reciprocamente, por meio dessa, os comportamentos humanos setransformam e o homem, por sua vez, elabora a si mesmo [...]A experincia social e o pensamento socialtransformam-se reciprocamente (VERNANT, 2002, p.148, nosso grifo).

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    novos caminhos que pudessem recortar seus objetos de estudos de forma aproduzir questionamentos mltiplos e variados.

    Vernant iniciou suas pesquisas sobre a antigidade grega buscandoreformular as bases sobre quais eram colocadas a questo sobre a emergn-cia do pensamento racional no mbito da cultura grega antiga. At ento, ela

    era colocada sobre o signo do milagre grego, no qual a irrupo do pensa-mento racional era vista como manifestao da genialidade, sendo expressodo esprito, de uma capacidade completamente nova que no possuiria pon-tos de contato com a materialidade religiosa, mtica, pr-lgica que a teriaantecedido. A idia de milagre reforava a concepo de mudana abruptaque no guardaria relaes com as condies sociais, econmicas e polticas.Assim, o milagre grego no seria a contrapartida de condies sociais objeti-vas, mas um fenmeno vindo de fora das relaes sociais concretas. Era aracionalidade grega vista como manifestao de um esprito absoluto, exis-tente fora da histria, de suas lutas reais e concretas, que se manifestavapelos homens e no como uma criao sua.

    Foi essa explicao a-histrica da irrupo do racionalismo grego que Vernantbuscou reformular em seu trabalho As Origens do Pensamento Grego, poispara ele a histria do esprito no seria uma histria puramente individual,nem uma histria no ar: ela teria razes na vida material e social dos homens,excluindo tanto o acaso quanto a predestinao2. Segundo Vernant, a racio-nalidade grega, como se manifestou no perodo clssico, no poderia sertomada como obra de um esprito metafsico e a-histrico que existisse foradas relaes humanas, mas sim como uma obra humana. No seria o espritoque faria a histria, mas sim os homens que, no processo concreto de suasvidas, moldavam suas formas e condutas, sendo o verdadeiro comportamen-

    to do homem o que ele faz como ser social em suas relaes com os outros.Assim as origens da racionalidade grega deveriam ser buscadas na esferadas relaes sociais concretas e no em uma irrupo milagrosa de um espri-to a-temporal.

    Sua preocupao com a racionalidade grega conduziu-o ao estudo da religi-osidade grega e suas formas mticas de expresso. O estudo a respeito dasorigens do pensamento racional grego levara-o ao encontro do mito e dareligio, pois para ele a insurgncia das novas formas de pensar, que caracte-rizariam a Atenas Clssica, no poderiam ser obra do acaso ou da predestinaode um povo que encarnaria um esprito que existiria fora das relaes sociais.

    Assim, o pensamento racional somente poderia ter surgido das bases do

    2 Uma sociedade um sistema de relaes entre homens, atividades prticas que se organizam no plano daproduo, da troca, do consumo, em primeiro lugar, e depois em todos os outros nveis e em todos os outrossetores. E na concretude de sua existncia, os homens tambm se definem pela rede de prticas que osligam uns aos outros e da qual eles aparecem, em cada momento da histria, ao mesmo tempo como autorese como produtos. (VERNANT, 2002, p.54)

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    pensamento mtico, caracterizando-se, ao mesmo tempo, por uma relao decontinuidade e de ruptura em relao a ele. Esse foi o ponto de partida que oguiou ao College de France como especialista em Histria Comparada dasReligies Antigas.

    Como Vernant mesmo apontou, tal trajetria poderia parecer paradoxal

    para quem iniciou sua carreira como militante comunista, membro de umaassociao revolucionria atia a especialista em Histria das Religies. Po-rm, para ele, o paradoxo residiria muito mais na nossa sensibilidade modernado que na contradio em si que tal oposio encerraria, pois na AntigidadeGrega no encontraramos a clara distino que operamos, modernamente,entre a religio e as outras esferas constituintes da vida cultural do homem.

    A esse respeito ilustrativo seu comentrio da tese sobre a noo detrabalho em Plato, seu primeiro trabalho na rea de Antigidade. Vernantobserva que, ao inici-lo, estava abordando o trabalho como uma categoriapsicolgica perfeitamente delimitada e constante; porm, levado pela suapesquisa, chegou concluso de que a verdadeira questo seria, no fundo,se os gregos, nas suas formas de pensar e sentir, comungariam conosco anossa noo de trabalho. A categoria trabalho no poderia ser empregada demodo universal, pois se refere nossa forma de perceber o mundo e no dos gregos antigos3.

    A questo se encontrava dentro daquilo que Vernant chamou de psicologiahistrica: as formas de pensar e de sensibilidade dos gregos antigos eramdistintas das nossas, portanto no poderamos estud-los a partir de catego-rias prprias de nosso mundo, tomando-as como se fossem universais. Opapel do estudioso dessas sociedades seria assim o de pesquisar suas for-mas de comportamento dentro de seus prprios quadros mentais, deixando

    vir tona as formas de sensibilidade que lhes foram peculiares. nesseponto que o papel da religio assume sua importncia. No pensamento anti-go, o mundo surge perpassado por realidades que hoje classificaramos comoreligiosa. A poltica, a organizao social, o trabalho no eram sentidas comorealidades autnomas e independentes, mas sim percebidas e sentidas comoelementos com forte conotao religiosa. A religio perpassava os diversossetores do mundo grego, e Vernant, seguindo sua trilha, acabou chegandoat ela.

    No homem, segundo Vernant, tudo seria simblico, tudo seria significativoe a religio seria a esfera de sua vida em que mais estaria presente esse

    carter do pensamento humano. Para ele, o homem constri sua vida produ-

    3 A verdadeira questo, na verdade, era: existia o que ns chamamos de trabalho, ou seja, um comportamento,uma atitude geral oposta ao lazer, que possui valor econmico, que implica a idia de que o homem produtor e que, nessa atividade produtiva, ele estabelece relaes sociais com os outros? Nada disso aprpria categoria era problemtica [...] certamente o homem trabalha, mas no existe o trabalho, existemdiversos tipos de trabalho muito diferentes dependendo se so agrcolas, artesanais; e o homem est longede ter vivido suas atividades de trabalho da mesma forma que ns. (VERNANT, 2002, p. 65)

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    zindo um mundo cultural repleto de smbolos, cujas significaes remetem smais variadas experincias de seu ser, sendo a religio o aspecto da vida emque a dimenso simblica estaria mais presente: A religio, ele nos diz (2002,p.64), consiste em afirmar que, por trs de tudo que se v, de tudo que sefaz, de tudo que se diz, existe outro plano, um alm. Como tambm nos diz

    Vernant, a religio o smbolo em ao.Vernant buscava abordar as religies antigas dentro de seus prprios ambi-entes de significao. Para ele, as religies antigas no seriam nem menosricas espiritualmente nem menos complexas e organizadas intelectualmentedo que as de hoje. Seriam apenas diferentes. Do paganismo ao mundo con-temporneo, ele nos diz, ter-se-ia modificado o prprio estatuto da religio,seu papel, suas funes, tanto quanto o seu lugar dentro do indivduo e dogrupo. Entre o mundo antigo e o contemporneo haveria mesmo uma mudan-a total do universo espiritual e psicolgico do indivduo, o que obrigaria aopesquisador a tomar muito cuidado ao estudar essas sociedades, para noconduzir suas pesquisas a partir de pressupostos prprios do mundo atual,abstendo-se assim de cristianizar a religio que ele estivesse estudando.

    O instrumental metodolgico presente em seus trabalhos variado, pormpodemos notar a presena, por ele mesmo afirmada, de duas correntes depensamento importantes: o marxismo e o estruturalismo. Segundo Vernant,o marxismo seria um instrumento indispensvel para colocar corretamentequestes de histria. O estruturalismo, por sua vez, proporcionaria um instru-mental metodolgico sem o qual sequer seria possvel fazer histria da reli-gio4. Porm, para Vernant, o bom resultado de uma pesquisa sobre os povosantigos no residia apenas na aplicao de mtodos criteriosos de anlise.Embora considerasse a metodologia sempre importante para o bom

    equacionamento de uma questo, entendia que ela possua seus limites. Otrabalho de compreenso do universo mental e psicolgico dos antigos nopoderia ser obtido somente pela aplicao de procedimentos analticos comose fossem regras prontas para a conduo da pesquisa. Para Vernant, alm daaplicao de mtodos precisos, era necessrio tambm participar do texto,aproximando-se dele por uma relao de simpatia. Nesse sentido, ele escreve:

    O outro sempre incompreensvel [...] Conhecer o outro ,em um dado momento, fazer uma espcie de aposta, simpati-zar repentinamente com ele, procurar capt-lo por meio de

    4 Fui profundamente marcado pelo marxismo, no qual mergulhei desde minha adolescncia [...] Falo domarxismo de Marx, no desse catecismo revisto e corrigido, s vezes at censurado, ao qual foi reduzido,primeiro para justificar determinada prtica poltica, em seguida para justificar um sistema de Estadoburocratizado e de governo autoritrio [...] Quanto ao estruturalismo, o termo no me parece menos ambguo.Se o entendermos no sentido da moda que assolou por algum tempo o meio intelectual parisiense e quelevou a expulsar a histria do campo das cincias sociais, em proveito de modelos formais, de esquemasabstratos, no me sinto estruturalista. Mas, se levarmos em conta o que os estudos lingsticos trouxeram denovo [...] direi apenas que no se pode mais fazer histria das religies sem ser, nesse sentido estruturalista.(VERNANT, 2002, P.56)

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    todas as suas manifestaes, seus signos suas condutas,suas confidncias [...] Essa a condio humana, e no muito diferente quando procuramos entender um texto. Ago-ra que estou mais velho, sinto-me mais livre em relao forma tradicional dos escritos cientficos, dou mais de mim

    mesmo e procuro passar o que acreditei sentir em mim. As-sim, no caso das Bacantes, tenho meu Dionso que talvez noseja exatamente o dos outros, de forma que, em certo senti-do, estou presente no que escrevo. (VERNANT, 2002, p. 68)

    Assim, encontramos na obra de Vernant, marxismo, estruturalismo, crticafilolgica precisa, simpatia para com o outro, rigor cientfico e sensibilidaderomntica. Uma mistura de elementos que para muitos poderia parecer con-traditria, mas que em seu pensamento adquiriu a harmonia de uma grandesinfonia. Coisa que somente os grandes maestros sabem fazer. A ns, cabeapenas admir-los.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    VERNANT, J-P. Mito e Religio na Grcia Antiga. So Pualo: Martins fontes,2006_________. Mito e Religio na Grcia Antiga. So Pualo: Martins fontes, 2006_________. Mito e Sociedade na Grcia Antiga. 2 ed. Rio de Janeiro:JosOlympio, 1999.

    _________. Mito e Pensamento entre os Gregos: estudos de psicologia histri-ca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990._________. As Origens do Pensamento Grego. 6 ed. Rio de Janeiro: EditoraBertrand Brasil S.A., 1989._________. O Universo, os deuses,os homens. So Paulo: Cia. Das Letras,2000._________. Entre Mito e Poltica. 2 ed. So Paulo: Edusp, 2002._________; VIDAL- NAQUET, P. Mito e Tragdia na Grcia Antiga. So Paulo:Livraria Duas Cidades 1977.

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    A SUPERAO DOS HUMANOS: O BIOPODER, AINSTRUMENTALIZAO E A MANIPULAO DOHOMEM

    Adriana Tabosa,doutoranda em filosofia pela UNICAMP

    Resumo:

    Este artigo discute a crise do humanismo e suas possveis conseqncias apartir de uma anlise de Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk.Palavras-chave: Sloterdijk, antropotcnica, humanismo.

    Abstract:

    This article talk about the crisis of the humanism and its possibleconsequences from an analysis ofRules for the human parkof PeterSloterdijk.Key Words: Sloterdijk, anthropotechnics, humanism.

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    I REGRAS PARA O PARQUE HUMANO: SLOTERDIJK E A CRISE DOHUMANISMO

    Em 1999, na Alemanha, Peter Sloterdijk forosamente iniciou uma grandepolmica que ficou conhecida como o affaire Sloterdijk, com a conferncia

    Regeln fr den Menschenpark: Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief berden Humanismus. Tal celeuma foi causada pela descontextualizao de duasquestes abordadas no seu discurso: a primeira, onde Sloterdijk afirma quena era da tcnica e da antropotcnica a tendncia que os homens cada vezmais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleo, ainda que noprecisem ter se dirigido voluntariamente para o papel de selecionador. E faz aseguinte declarao: [...] h um desconforto no poder de escolha, e em breveser uma opo pela inocncia recusar-se explicitamente a exercer o poder deseleo que de fato se obteve(SLOTERDIJK, 2000, p. 45). A segunda, ondeSloterdijk, diante de um futuro evolutivo obscuro e incerto, indaga:

    Se o desenvolvimento a longo prazo tambm conduzir a umareforma das caractersticas da espcie se uma antropologiafutura avanar at um planejamento explcito de caractersti-cas, se o gnero humano poder levar a cabo uma comutaodo fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e sele-o pr-natal (SLOTERDIJK, 2000, p. 47).

    A conferncia de Sloterdijk, partindo da abordagem de dois aspectos adeduo miditica e gramatolgica da humanitas e a reviso histrica e antro-polgica do motivo heideggeriano da clareira (a inverso parcial da relao

    entre ntico e ontolgico) teve como tema central: o perigoso fim dohumanismo literrio enquanto utopia da formao humana (SLOTERDIJK,2000, Posfcio, p. 60).

    Sloterdijk inicia o seu discurso evocando o sentido originrio do termohumanitas, que desde a poca de Ccero e Varro significa a educao dohomem como tal: forma acabada, ideal ou esprito do homem. Era nessesentido que os antigos usavam a palavra humanitas, correspondente ao grego

    paideia, da qual derivou o substantivo humanismus. Em seguida, lembra queo humanismo, entendido como movimento literrio e filosfico nascido naItlia no sculo XIV, participa no seu sentido mais amplo e mais restrito, das

    conseqncias da alfabetizao (SLOTERDIJK, 2000, p. 7).Sloterdijk ressalta que foi por intermdio da escrita que a filosofia conse-

    guiu manter-se desde seus incios, h mais de dois mil e quinhentos anos, athoje, e seu xito deve-se sua capacidade de fazer amigos por meio dotexto. E de uma maneira metafrica, em que se utiliza da definio do escritorJean Paul, de que livros so cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas,Sloterdijk afirma que a filosofia prosseguiu sendo escrita como uma correntede cartas ao longo das geraes. E nessa corrente de cartas, o elo mais

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    importante foi sem dvida a recepo da mensagem grega pelos romanos, poisfoi a recepo romana que introduziu o texto grego para o Imprio, tornando-oacessvel, pelo menos indiretamente, aps a queda da Roma ocidental, s cul-turas europias posteriores. Segundo Sloterdijk, sem a disposio dos leitoresromanos de entabular amizade com as mensagens dos gregos, e se os romanos

    no tivessem aderido ao jogo (a relao simultnea de propagadores e de recep-tores) com a sua notvel receptividade, as mensagens gregas jamais teriamalcanado a rea da Europa ocidental na qual ainda vivem os que ainda hoje seinteressam pelo humanismo. Em suma, para Sloterdijk, no teria existido nem ohumanismo, nem o discurso filosfico em latim e tampouco culturas filosfi-cas posteriores em lnguas vernculas, se no houvesse existido a receptividadee disposio dos romanos de lerem os escritos gregos como se fossem cartasa amigos da Itlia (SLOTERDIJK, 2000, pp. 8-9). Tomando em considerao asconseqncias da correspondncia greco-romana, o papel da escrita torna-seessencial no envio e recepo de textos filosficos.

    Como afirma Sloterdijk, (2000, pp. 12-13), os nacional-humanismoslivrescos estiveram em seu apogeu no perodo de 1789 a 1945. Entretanto, apoca do humanismo nacional-burgus findou no somente porque, na atua-lidade, os homens so conduzidos por uma espcie de nimo decadente eno esto mais dispostos a cumprir sua tarefa literrio-nacional, mas, so-bretudo, pela impossibilidade da unio dos laos telecomunicativos entre oshabitantes de uma moderna sociedade de massas:

    Com o estabelecimento miditico da cultura de massas noPrimeiro Mundo em 1918 (radiodifuso) e depois de 1945(televiso) e mais ainda pela atual revoluo da Internet, a

    coexistncia humana nas sociedades atuais foi retomada apartir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrarsem esforo, so decididamente ps-literrias, ps-epistolarese, consequentemente, ps-humanistas. Quem considera de-masiado dramtico o prefixo ps nas formulaes acimapoderia substitu-lo pelo advrbio marginalmente de for-ma que nossa tese diz: apenas marginalmente que os meiosliterrios, epistolares e humanistas servem s grandes socie-dades modernas para a produo de suas snteses polticas eculturais (SLOTERDIJK, 2000, p. 14).

    Isso no significa que a literatura tenha chegado ao fim. Contudo, os livrose as cartas perderam o seu papel predominante. No contexto atual, os novosmeios de telecomunicao assumiram a liderana na formao dos indivdu-os. A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formaoterminou porque no se sustenta mais a iluso de que grandes estruturaspolticas e econmicas possam ser organizadas segundo o amigvel modeloda sociedade literria.

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    O desmoronamento dessa iluso teve incio com a Primeira Guerra Mundial.Depois do trmino da era nacional-humanista, aps 1945, o modelohumanista experimentou uma florescncia tardia. Tratou-se de uma renascen-a planejada e reativa, que numa fase sombria se caracterizou por um surtode fantasias e auto-iluses:

    Nos nimos fundamentalistas dos anos ps1945, para mui-tos, e por motivos compreensveis, no era suficiente retornardos horrores da guerra para uma sociedade que mais uma vezse apresentasse como um pblico pacificado de amigos daleitura como se uma juventude goetheana pudesse fazeresquecer uma juventude hitlerista. Naquele momento, pare-cia para muitos absolutamente indispensvel, ao lado dasrecm-instauradas leituras romanas, retomar tambm as se-gundas, as leituras bblicas bsicas dos europeus, e evocaros fundamentos do recm-descoberto Ocidente no humanismocristo. Esse neo-humanismo, que desesperadamente voltaos olhos para Roma passando por Weimar, foi um sonho desalvao da alma europia por meio de uma bibliofiliaradicalizada um entusiasmo melanclico esperanoso pelopoder civilizador e humanizador de leitura clssica se, por ummomento, nos dermos a liberdade de conceber Ccero e Cristolado a lado como clssicos. (SLOTERDIJK, 2000, pp. 15-16)

    nessa passagem do discurso que Sloterdik estabelece o seu argumento:o de que o humanismo, como palavra e como assunto, desde os romanos at

    a era dos modernos Estados nacionais burgueses possui duas faces. No por mera coincidncia que nas eras onde ocorreram experincias particularescom o potencial brbaro, que se libera nas interaes de fora entre os ho-mens, foi justamente onde o humanismo tornou-se mais forte e urgente. Ou,como afirma Sloterdijk, o embrutecimento humano, hoje e sempre, surge quan-do h um grande desenvolvimento do poder, seja como rudeza imediatablica e imperial, seja como bestializao cotidiana das pessoas pelos entre-tenimentos desinibidores da mdia(2000, p. 17). Portanto, o tema latente dohumanismo o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente queas boas leituras conduzem domesticao.

    Para Sloterdijk, o fenmeno do humanismo atual merece ateno porque,acima de tudo, recorda de uma maneira oculta que na cultura elitizada aspessoas constantemente esto submetidas a dois poderes de formao asinfluncias inibidoras e desinibidoras. Como tambm, a crena do humanismoreside na convico de que os seres humanos so animais influenciveis eque, portanto, imperativo prover-lhes o tipo certo de influncias. SegundoSloterdijk, o humanismo recorda de modo falsamente inofensivo a contnuabatalha pelo ser humano que se produz como disputa entre tendncias

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    bestializadoras e tendncias domesticadoras. Por fim, conclui a primeira partedo seu discurso sustentando que o humanismo significa mais que a buclicasuposio de que a leitura forma. A questo do humanismo envolve umaantropodicia que deve ser entendida como uma definio do ser humano emface de sua abertura biolgica e de sua ambivalncia moral. a partir dessa

    concluso que as duas questes forosamente descontextualizadas deSloterdik podem ser de fato apreendidas. Nessa passagem Sloterdijksubjacentemente evoca o outro significado de humanitas: quando ohumanismo entendido enquanto gnero humano, espcie humana compre-endida enquanto entidade biolgica. A humanitas apreendida nesse sentidoremete-se prpria histria ou aos feitos da humanidade sobre a terra, ouespecificamente sua evoluo biolgica. Esse outro sentido representa aoutra face do humanismo, pois ele tornaria explcito e assentado que ahumanitas no significa apenas a amizade do ser humano pelo ser humano:ele implica tambm que o homem representa o mais alto poder para o prpriohomem. sob esse outro conceito de humanitas que se revela a tese de queos homens so animais dos quais alguns dirigem a criao e outros socriados; na qual se efetua a distino entre os que existem como mero objetoe outros como sujeitos de seleo. (SLOTERDIK, 2000, p. 44).

    A tentativa do humanismo que teve como tarefa formar/domesticar o ho-mem por intermdio das boas artes, das disciplinas que educassem o ho-mem, como meio para a formao de uma conscincia humana, aberta emtodas as direes, atravs da conscincia histrico-crtica da tradio cultu-ral, est irremediavelmente esgotada. Na moderna sociedade de massas oantigo mtodo do humanismo de formao/domesticao do indivduo porintermdio das boas leituras foi substitudo pelo estabelecimento miditico

    da cultura de massas. O atual mecanismo de formao/domesticao autilizao das mdias inibidoras e desinibidoras. As mdias se tornaram osmeios comunitrios e comunicativos pelos quais os homens se formam a simesmos para o que podem e o que vo se tornar (SLOTERDIJK, 2000, pp.19-20). Na cultura contempornea trava-se uma luta entre os impulsosdomesticadores e os bestializadores, e seus respectivos meios de comunica-o. Sabe-se que uma onda de violncia irrompe nas escolas em todo o mun-do ocidental, sobretudo nos Estados Unidos da Amrica. Do mesmo modoque na Antiguidade o livro perdeu a luta contra as arenas, atualmente a esco-la est gradativamente perdendo a batalha contra as foras indiretas de for-

    mao: a televiso, os filmes e jogos eletrnicos violentos, entre outras mdiasdesinibidoras. (SLOTERDIJK, 2000, p. 46)

    Com os prenncios nos campos da biotecnologia, engenharia gentica,medicina, nanotecnologia, robtica etc., o futuro evolutivo obscuro e incer-to que desponta revela os provveis procedimentos efetivos deautodomesticao que a humanidade ou suas elites culturais utilizaro. Nes-se contexto que podemos constatar que num desenvolvimento em longoprazo sero conduzidas as reformas genticas das caractersticas da espcie,

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    na qual uma antropotcnica futura avanar at um planejamento explcito decaractersticas do gnero humano. Como uma justificativa e tentativa de ob-ter sucessos mais significativos no campo da domesticao, diante de umprocesso de civilizao em que uma onda desinibidora sem precedentes avan-a de forma aparentemente irrefrevel (SLOTERDIJK, 2000, p. 46), o que

    poderamos antever e denominar como o ltimo estgio do humanismo.

    II DOMESTICIDADE E CRIAO: O OUTRO LADO DO HUMANISMO

    O discurso de Sloterdijk dividido em trs partes: a primeira, na qual sefundamenta na crtica de Heidegger a que rejeita o sentido de humanismocomo toda filosofia que tome o homem como medida de todas as coisas,sentido estabelecido por Protgoras. Heidegger viu nesse sentido a tendnciafilosfica a tomar o homem como medida do ser, e a subordinar o ser aohomem, em vez de subordinar, como deveria, o homem ao ser, e a ver nohomem apenas o pastor do ser (Holzwege, 1950, pp. 101-102. In:ABBAGNANO, p. 519). Ao expor esse argumento, Heidegger inaugurou umanova via de pensamento transumanista ou ps-humanista, na qual temcontinuado desde ento uma parte essencial da reflexo filosfica sobre o serhumano. A segunda, na qual Sloterdijk analisa a terceira parte de Also sprach

    Zarathustra (Assim falava Zaratustra), sob o ttulo Von der verkleinerndenTugend (Da virtude apequenadora). Sloterdijk afirma que nesse trecho ocul-ta-se um discurso terico sobre o ser humano como fora domesticadora ecriadora. A terceira, na qual Sloterdijk analisa O Poltico de Plato, afirmandoque desde O Poltico e desdeA Repblica, os discursos que falam da comuni-dade humana a tratam como um parque zoolgico que ao mesmo tempo um

    parque temtico; a partir de ento, a manuteno de seres humanos em parquesou cidades surge como uma tarefa zoopoltica. (SLOTERDIJK, 2000, p. 48).

    Desde a dcada de 1930, a questo da possibilidade da produo industri-al dos seres humanos ocupa o pensamento de Heidegger. A partir da distin-o aristotlica das coisas que so por natureza (physei onta) das que soproduzidas (poioumena), Heidegger pensa o perigo de a tcnica se sobrepor natureza, assim como quando formula a questo de se um ser humano produ-zido quimicamente nasceu ou se, pelo contrrio, a produo torna o nasci-mento impossvel, pois os seres humanos produzidos so entes que nonasceram. Tal argumento pode ser identificado quando Heidegger constata a

    objetivao extrema da relao do homem com a terra, substituindo o cultivopelo trabalho industrial mecanizado. Segundo Heidegger, esse tipo de agricul-tura no permite nascer nem crescer, ela faz os produtos agrcolas e, dessemodo, aniquila os frutos da terra que alimentam os humanos. Mais uma vez,fundamentando-se na distino aristotlica, conclui que as coisas produzidasno so coisas naturais, vivas, mas antinaturais, mortas. A agricultura meca-nizada no permite que as frutas nasam elas mesmas a partir delas mesmas:ela produz cadveres de frutas. Por fim, enfatizar que o perigo extremo de

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    que a tcnica se sobreponha natureza estaria na possibilidade de o homemse tornar o Senhor da cincia e da tcnica e de ser transformado, um dia,numa mquina controlada.

    A questo do domnio do homem sobre o prprio homem pode ser percebi-da na superao do humano no e pelo bermensch tratada por Nietzsche. O

    trecho em que podemos ilustrar o problema encontra-se na seo intituladaDa virtude apequenadora de Assim falava Zaratustra, no qual Zaratustrapercebe que os homens eles prprios se submeteram domesticao e puse-ram em prtica sobre si mesmos uma seleo direcionada para produzir umasociabilidade maneira de animais. Dessa percepo se origina a crtica aohumanismo de Nietzsche, como rejeio da falsa inocuidade da qual se cercao bom ser humano moderno (SLOTERDIJK, 2000, p. 40). A questo dodomnio do homem e da tcnica sobre a natureza pode ser percebida naimagem nietzscheana quanto mecanizao do ser humano como tarefa dabarbrie tecnologicamente civilizada que consistiria em fazer o homem tantoquanto possvel utilizvel, e aproxim-lo, tanto quanto possvel, de uma m-quina infalvel:[...] para essa finalidade, ele tem que ser equipado com virtu-des de mquina, ele tem que aprender a sentir os estados nos quais trabalhade maneira maquinalmente utilizvel como os de mais elevado valor [...].(NIETZSCHE, Fragmento Pstumo do outono de 1887, nr. 10 [11]. In: KSA, v.12, p.459 e s. ApudGIACOIA, p. 180). 1

    A questo da antropotcnica aparece de modo metafrico no Poltico, napassagem em que Plato trata da reproduo e da arte de criao do rebanho

    1 No sculo XIX, o escritor Villiers de lIsle Adam, unido aos simbolistas na cruzada romntica contra o atualideal de uma poca que valorizava exclusivamente a racionalidade cientfica e tcnica, criou uma obra, A EvaFutura (1886), em que antecipa as utopias da mecanizao do homem. Por intermdio de seus personagensprincipais, Thomas Edison, o criador do fongrafo, e Halady, a Eva Futura, uma ginide perfeita, Villiersfornece uma visionria alegoria dos avanos cientficos e de suas utopias. A personagem Alicia, a rplicahumana da Venus Victrix, o contraste entre perfeio fsica e vazio de esprito. Alicia representa a sntesedo ideal da sociedade moderna que Villiers critica. Ela o verdadeiro autmato que caracteriza o vaziodo real da sociedade burguesa. Suas maneiras so falsamente polidas, situaes e frases estereotipadascaem-lhe com a convenincia de um figurino adequado. Um ser que capaz de comover-se s lgrimas comsituaes redundantes de folhetim, mas incapaz de responder a uma experincia esttica: em suma, Aliciaseria a personificao da deusa burguesa. Halady, que em persa significa ideal, um ente que, sendouma rplica do ser humano, supera todas as imperfeies da natureza. Halady representa o ser ideal queconcretiza a no contingncia, encarna o absoluto, a mquina que preencher o vazio do real. A figura deThomas Edison representa uma sntese da prpria cincia na tentativa de concretizar os velhos sonhos doshomens: [...] Vou demonstrar-lhe, matematicamente, e agora mesmo como, com os formidveis recursos atuaisda cincia - e isso de uma maneira fria, talvez, mas indiscutvel posso apoderar-me de sua graa, da plenitudede seu corpo, do odor de sua carne, do timbre de sua voz, da flexibilidade de sua cintura, da luminosidade de seusolhos, das caractersticas de seus movimentos e de seu andar, da personalidade de seu olhar, de seus traos, de

    sua sombra no cho, de sua aparncia, do reflexo de sua Identidade, enfim Serei o assassino de sua animalidadetriunfante. Primeiramente, vou reencarnar toda essa exterioridade, que, para o senhor, deliciosamente mortal,em uma Apario cuja semelhana e encantos HUMANOS ultrapassaro sua esperana e todos os seus sonhos!

    [...] Forarei, nessa viso, o prprio Ideal a manifestar-se, pela primeira vez, PALPVEL, AUDVEL E MATERIALIZADO[...]. importante ressaltar que para Villiers todo o aparato cientfico leva a uma falsa pista. Longe de conduzira um fcil triunfalismo, a cincia garante o mtodo, embora nunca o resultado final. Vale lembrar que, noperodo em que Villiers escreveu a Eva Futura, parte da Europa estava vivenciando o desenvolvimento industrial,e, consecutivamente, o surgimento e o aperfeioamento das tcnicas de produo. Durante esse perodo,operrio e mquina conviviam numa relao simbitica. Posteriormente, j no sculo XX, com a justificativa demultiplicar a fora do operrio com a que advinha da eletrnica, a mo-de-obra humana gradativamente foisubstituda. A tendncia que cada vez mais os instrumentos eletrnicos substituam o trabalho manual, assimcomo o intelectual. Desta forma, a anlise de Nietzsche torna-se quase proftica.

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    humano (265 d; 9 e 265 e). Esta seria uma das partes mais difceis da arte depastorear homens e onde caberia a analogia do estadista com o tecelo.Segundo a interpretao de Sloterdijk, para Plato, o fundamento real e ver-dadeiro da arte rgia no est localizado no voto dos concidados que conce-dem ou negam de acordo com a sua vontade confiana ao poltico; tampouco

    se localiza em privilgios herdados ou novas pretenses. A razo pela qual osenhor platnico um senhor reside apenas em um conhecimento rgio daarte da criao; em uma percia, portanto, das mais raras e refletidas. Mani-festa-se nesse contexto o fantasma de um reinado de especialistas, cujofundamento de direito baseia-se no conhecimento de como as pessoas de-vem ser classificadas e combinadas, sem jamais causar danos sua naturezade agentes voluntrios. Pois a antropotcnica rgia exige de modo mais posi-tivo as caractersticas mais favorveis comunidade de indivduos voluntaria-mente dceis, de modo que sob sua direo o parque humano atinja amelhor homeostase possvel. Isso ocorre quando os dois optima referentesao carter humano, a coragem blica e a reflexo humana, so entremeadoscom a mesma fora no tecido da comunidade.

    Contudo, ambas as virtudes em seus excessos podem produzir degenera-es especficas. O excesso de beligerncia militarista pode ocasionar conse-qncias devastadoras para as ptrias. Assim como o excesso de retraimentodos habitantes calmos e de esprito cultivado do pas podem gerar indivduostbios e distantes do Estado, e que ingressariam na servido sem perceb-lo.O Estado perfeito gerado com as naturezas nobres e livres restantes, noqual os corajosos servem como os fios mais rudes da urdidura e os sensatos,como a textura mais fofa, mais suave, maneira da trama (SLOTERDIJK,2000, p. 54).

    Como conclui Sloterdijk, se lanarmos um olhar retrospectivo para os gin-sios humanistas da era burguesa e para a eugenia fascista, e ao mesmotempo vislumbrarmos a era biotecnolgica que se anuncia, impossvel igno-rar o carter explosivo dessas consideraes contidas no Poltico. O que Platoenuncia no seu dilogo o programa de uma sociedade humanista que seencarna em um nico humanista pleno, o senhor da arte rgia do pastoreio. Ea tarefa desse super-humanista [ber-Humanisten] no outra que o planeja-mento das caractersticas de uma elite que deve ser especificamente criadaem benefcio do todo (SLOTERDIJK, 2000, p. 55).

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. Traduo da 1 edio brasileiracoordenada por Alfredo Bosi. Martins Fontes: So Paulo, 2000.HEIDEGGER, Martin. Carta sobre el humanismo. Version de Helena Cortes y

    Arturo Leyte. Madrid: Alianza, 2001.JR. GIACOIA, Oswaldo. Corpos em fabricao. Natureza Humana, 5 (1), pp.175-202, jan.-jun. 2003.LOPARIC, Zeljko. A fabricao dos humanos. Manuscrito Revista de Filoso-fia, Campinas, v. 28, n. 2, pp. 391-415, jul. dez. 2005.MAIA, Antnio Cavalcanti. Biopoder, biopoltica e o tempo presente. In: OHomem mquina: a cincia manipula o corpo. Organizador: Adauto Novaes.So Paulo: Companhia das Letras, 2003.NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. Traduo de Mrio daSilva. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1986.PLATO. Dilogos. Seleo de textos de Jos Amrico Motta Pessanha ;traduo e notas de Jos Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e Joo CruzCosta. So Paulo: Abril Cultural, 1983.SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta carta deHeidegger sobre o humanismo. Traduo de Jos Oscar de Almeida Marques.Estao Liberdade: So Paulo, 2000.VILLIERS de lIsle Adam, Auguste, conde de, 1838-1889. A Eva Futura. Tra-duo de Ecila de Azeredo. Editora da Universidade de So Paulo: So Paulo,2001.

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    EPICTETO E A PAIXO NO CORAO DOPENSAMENTO. AS DUAS CAUSAS DE CRISIPO E OMERGULHO EM DEUS

    Antonio Carlos Tarqunio,doutorando em filosofia pela UNICAMP

    Resumo:

    A Doutrina estica antiga situou no corao do homem o corao da vida.Epicteto, longe de pregar a insensibilidade, aconselha a vigilnciaconstante e incansvel do sentimento a fim de que se no seja levado deroldo pelo vrtice das impresses.Palavras-chave: phantasa, horm, hegemonikn, heimarmne, eleuthera,prnoia.

    Abstract:

    The ancient stoic doctrine situates the heart of men in the heart of life.Epicteto, far from preaching the insensibility, advises the constant andrestless vigilance so that the men are not to be taken by confusion by thevortex of false impressions.Key-words: phantasa, horm, hegemonikn, heimarmne, eleuthera,prnoia.

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    O afeto est na base do pensamento, a phantasa gerada pelas impres-ses do mundo exterior que so involuntrias. Para pensar urge ser afetado e, preciso dizer, que quem afeta o prprio Ser porque ele que empurrainclinando a alma. Contudo, assim como, quando empurramos um carro,quem imprime o sentido do caminho o motorista, o Ser empurra, mas o

    homem que decide e orienta o rumo:

    Essas representaes da alma, que os filsofos denominamphantasia, pelas quais o esprito do homem imediatamente afe-tado, na primeira apario da coisa que se presenta na alma, nodepende da vontade e so livres, mas, por certa fora que lhe prpria, elas se lanam sobre os homens para serem conhecidas.Ao contrrio os assentimentos, que so nomeados sunkatthesis,graas aos quais essas representaes so reconhecidas e julgadas,so voluntrias e se fazem pela liberdade dos homens.1

    Eis porque a intrprete Gazolla, em franca oposio tradio que sedimentoucerta exegtica dos textos antigos do Prtico, fala com toda a segurana queos esticos no so contra as paixes, pois se elas fazem parte da definiodo ser desde a sua origem, como que eles poderiam ser contra?

    Os fenmenos de inclinao tm sua sede l mesmo onde osfenmenos do conhecimento tm a sua; a phantasa inseparvel da horm; toda representao indica um objetode inclinao ou de repulso, e pela natureza mesmo do ser omovimento se produz.2

    Conduzindo a palavra em torno s questes diretamente ligadas s impres-ses, Epicteto ratifica a conexo existente entre a phantasa (representao) e ahorm (tendncia). Tal conexo transparece na forma como o filsofo dirige seusconselhos no sentido de imunizar o praticante de Sabedoria, isto , o aprendiz defilosofia, contra o poder de seduo e arrastamento das impresses.

    Quando vires uma pessoa chorar porque est de luto, ou por-que o filho est ausente, ou porque perdeu o que possua,cobe-te de ceder representao de que so males que lhe

    chegam do exterior. Tem sim e desde logo pronta a seguinterepresentao: aquilo que aflige esse homem no o que lheadvm [...] sim a opinio firme que tem disso.3

    1 Pierre HADOT, 1992 e 1997, p. 175.2 mile BRHIER, 1971, p. 158.3 EPICTETO, 2007, p.28. O grifo nosso.

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    As representaes tm de ser vigiadas porque exercem influncia diretasobre a alma, gerando as aes, guindadas por elas sem nenhum critrio ouabalizadas pelo crivo que estabelece a distino entre o juzo de valor e arepresentao verdadeira do real. A phantasa inseparvel da horm, elaarrasta a alma invigilante para onde quer. Contudo, se for afrontada com

    esprito atento, amansa e perde o poder de seduzir e de desencaminhar. Aprtica da Filosofia consiste em saber distinguir o ilusrio do verdadeiro. Aphantasa sem o controle do siso fantasia mesmo, isto , iluso. Perceber aligao existente entre a phantasa e a horm muito importante porqueesclarece o modo de funcionamento das aes. A alma movida tanto pela

    phantasa real quanto pelaphantasa irreal. A diferena significativa entre elas que sobre a phantasa real se constri a paz da alma, enquanto que com airreal se constri o tormento do esprito.

    A ntima unio existente entre a phantasa e a horm sereflete tambm nomodo de compreenso das funes psquicas da alma racional. Dividida emvrios compartimentos nas filosofias anteriores, na Stoa ela se apresentamacia, integrando em torno de um nico foco, conhecimento, inclinao efora vital. Paixo e conhecimento coabitam na alma estica no mesmo ende-reo, o hegemonikn.

    1. O HEGEMNICO

    A escola estica antiga admite uma diviso da alma tambm. Mas enquan-to nas outras escolas a alma racional se apresenta apartada de outras subdivi-ses, no Estoicismo ela prpria que dividida, mas segundo um princpiode emanao:

    Existem atos ou foras que, sem serem eles mesmos racio-nais, testemunham que uma atividade racional lhes deu nas-cimento: assim a linguagem, assim o grmen que capaz dese transmutar em uma alma nova; assim as sensaes. Don-de a diviso da alma em oito partes: as cinco sensaes, alinguagem, a parte geradora; a oitava a razo em si mesma,a parte diretora (hegemonikn) de onde emanam todas asoutras.4

    Segundo Crisipo, a sede do hegemnico o corao, o que significa dizer

    que o corao a sede da razo. Atuando a partir do centro vital do homem,ele funciona como as mars, num movimento de fluxo e refluxo, indo docentro periferia do organismo e desta voltando novamente para o ponto departida. A substncia [...] do hegemonikn [...] se espalha atravs do cor-po. Firmando a coerncia da teoria da mistura total (krsis di hlon), o

    4 mile BRHIER, 1971, p. 158.

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    hegemonikn se apresenta situado no corpo do mesmo modo como a provi-dncia dos deuses no mundo. 5

    conhecida a metfora de Crisipo da aranha no centro de sua teia e dopolvo no corao dos seus tentculos para representar a forma de atuao dohegemonikn. Essa imagem ajuda a compreender a performance do hegemnico

    como princpio imanente e ponto de convergncia da alma que mantm uni-das todas as suas partes: A razo o sopro quente que tem sua sede nocorao; as partes da alma so emisses do sopro primordial atravs dosrgos correspondentes 6.

    Contudo, s partes da alma preciso ligar as funes da razo. A repre-sentao, que se produz quando o objeto exterior se imprime em sua subs-tncia, a inclinao, movimento de tenso da razo, pelo qual ela deseja seunir ao objeto representado e o julgamento, que faz do hegemonikn o centrodecisrio da alma, a faculdade de discernir as representaes verdadeiras dasfalsas:

    Acabei de empregar a palavra alma. Mas seria mais apropri-ado falar de princpio diretor, o que os esticos nomeiam dehegemonikn, e que corresponde parte superior da alma, aparte que raciocina. Como uma aranha no meio de sua teiapercebe todas as vibraes dos fios, o hegemonikn, situadono corao, percebe tudo o que afeta o corpo. Essehegemonikn um principio de percepo crtica, pode-sedizer, mas tambm um princpio de movimento. Principio depercepo crtica, porque no somente, como a aranha, per-cebe a ao de objetos exteriores sobre o corpo, mas exerce

    tambm uma atividade crtica: desenvolve um discurso interi-or, para exprimir o que sente, emite juzos de valor, e d ouno seu assentimento a esse discurso interior, a esses julga-mentos de valor. Mas tambm princpio de movimento, por-que, em funo dos sinais recebidos e interpretados pelohegemonikn, este d impulso para se agir (horm) desse oudaquele modo. essa a doutrina que est na base da teoriadas trs atividades da alma de Epicteto.7

    A doutrina da alma do Estoicismo antigo est na base da teoria das trs

    atividades da alma de Epicteto. Essas atividades, ou, exerccios espirituais,se fossem tomados parte, representariam sozinhos tudo o que Epictetoensinou com a palavra e a vida. A mensagem fundamental deles est na

    5 Ibid., p. 166.6 mile BRHIER, 1971, p.165.7 Ilsetraut et Pierre HADOT, 2004, p.28.

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    proposta de uma teraputica das paixes apoiada sobre o diagnstico de quea etiologia do cancro da alma proveniente da negligncia e do descuido dohomem com respeito s representaes.

    2. O SBIO TAMBM SE EMOCIONA

    A preocupao de Epicteto com o uso adequado das impresses, digo,apresentaes ganha muito mais sentido quando observada luz da Sabe-doria Antiga do Prtico. Agora se sabe que o homem um ser senciente cujaafetividade se revela uma parte fundamental de sua essncia. At o sbio suscetvel de se emocionar, ainda que momentaneamente, pela prpria ndoleimpressvel da realidade indissocivel do carter impressionvel dohegemonikn. O Estoicismo atesta que o homem tem antes de tudo umarelao afetiva com o mundo, e que por isso ele impressionvel:

    Quando um som aterrorizador se faz ouvir proveniente do cuou de um desmoronamento ou anunciando algum perigo, ouse qualquer coisa desse gnero se produz, inevitvel quetambm a alma do sbio fique um pouco comovida, compri-mida e aterrorizada, no que ele julgue que h nisso algummal, mas em virtude dos movimentos rpidos e involuntriosque antecipam a tarefa prpria do esprito e da razo.8

    Somos afetados pelo Ser: essa a condio humana. Somos afetados eisso involuntrio. O estico desenvolveu uma teraputica das paixes por-que o hegemnico basicamente um corao que acolhe o Ser nas malhas da

    sensao, porque o Ser corpreo afeta a alma corprea. Repito, o hegemnico um corao pensante. Sem vigilncia ele pode ser levado de roldo pelosafetos que so a base da sua relao com o mundo.

    Quando algum interpreta erroneamente as marcas dos ps do mundo naareia da alma levado ao descompasso com a physis, tornando-se infeliz:Mas o sbio no concede imediatamente seu assentimento a tais represen-taes que aterrorizam sua alma, ele no as aprova, mas as afasta e rejeita, elhe parece que no h nada a temer nessas coisas 9.

    A alma humana um corao que pensa. Da o poder sedutor das impres-ses quando no crivadas pelo tino, pelo juzo. O hegemnico no pode viver

    ao sabor das impresses que chegam e isso que fazem os ingnuos quandose entregam sem discriminao s primeiras fantasias que se lhe formam naalma.

    8 Pierre HADOT, 1992 e 1997, p.1759 Ibid., p.175.

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    Tal a diferena entre o sbio e o insensato: o insensatopensa que as coisas so como elas aparecem primeira emo-o de sua alma, isto , atrozes e apavorantes, e essas pri-meiras impresses, que parecem justificar o temor, odesassisado as aprova por seu assentimento.10

    A morte de um ente querido ocasiona grande sofrimento, e, de fato, muito difcil a aceitao de tal coisa. Por qu? O hegemnico, recebendo anotcia de que a morte de um ente querido um mal, se perturba e entra emcolapso. Como no foi feito nenhum trabalho filosfico para inform-lo corre-tamente, o hegemnico fica a merc das ms notcias. Esse o esquema daspaixes da Stoa. Com efeito, o hegemnico necessita ser bem informadopara no se perturbar e no perder o equilbrio:

    Mas o sbio, ainda que se tenha alterado num breve momen-to e rapidamente a cor do seu rosto, no d o seu assenti-mento, mas guarda a solidez e a fora do dogma que sempreteve com relao a tais representaes, a saber, que im-prescindvel no tem-las.11

    As notcias chegam sempre. Mas o que se pensa delas depende de cadaum. O que se pensa de alguma coisa12 responsabilidade da pessoa, se elacuida dessa parte nunca perder a serenidade interior, uma vez que o queperturba os homens no so as coisas, mas os seus julgamentos sobre estascoisas13. O hegemnico permanecer protegido das investidas do mundoexterior, e ser como um promontrio onde se quebram incessantemente as

    ondas; ele queda-se ereto e os estos da mar vm morrer em seu redor. 14

    Dado que Epicteto faz girar todos os seus comentrios em torno ao mani-festo impressionismo da Escola, pilar em que se apia a Epistemologia doAntigo Estoicismo, o noticiado bom uso das impresses faz com que semanifeste a ndole essencialmente passional do ser humano.

    O que se conclui de tudo isso que o homem, alm de ser capaz de crivaras representaes e ter o poder de afast-las, se quiser, pode tambm lhesconceder assentimento. No obstante, a condio de possibilidade dessesfazeres reside num nico fato: na sua susceptibilidade. Passvel de receberimpresses, se emociona e se comove e, se no fosse assim como poderia

    haver conhecimento? Sem as impresses, que so involuntrias e vm defora, do mundo exterior, como haver lugar para o assentimento? Como exer-cer a liberdade?

    10 Ibid.,p.175.11 Pierre HADOT, 1992 e 1997,p. 175.12 EPICTETO, 2007, p. 23.13 Ibid., p. 25.14 Marco AURLIO, 1973, p. 287.

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    no mbito da teoria do Destino (heimarmne) que os esticos trabalhamo conceito de liberdade (eleuthera) urdindo uma relao complexa entre ovoluntrio e o involuntrio onde o assentimento cumprir uma funo muitoimportante. O sbio ama o destino e concorda com ele em gnero, nmero egrau.

    3. O DESTINO (HEIMARMNE)

    O destino (heimarmne), fora motriz da matria, no difereda Providncia (Prnoia) e da natureza; O destino a causaentrelaante dos seres ou o lgos segundo o qual o cosmo governado [...] eles (os esticos) dizem que a arte da adivi-nhao (mantikn) possui um fundamento se existe uma pro-vidncia.15

    O Destino (heimarmne) no estoicismo muitas coisas. Tem muitos no-mes. Possui variadas funes. Com muita freqncia aparece nos textos anti-gos associado ao lgos, prnoia e noo de causa. Contudo, a grandefora da Heimarmne parece residir em sua capacidade de se apresentar comoRazo de ser de todas as coisas. Tomada nesse sentido, ela o lgos que,incrustado na matria do cosmos, assegura a legitimidade dos eventos domundo conforme uma Razo sbia e previdente.

    O lgos onipresente nadificante. plenitude que niilifica. Preenchendotodos os espaos, nega ao irracional um lugar no mundo. A vida, ento,adquire um novo sentido firmado na segurana de uma lei que rege e governao todo e a parte com Justia. D-nos a todos alcanar o Teu pensamento,

    com o qual reges todo o universo com justia16.Segundo Brhier, as filosofias de Plato e Aristteles descerram uma con-

    cepo de mundo que permite um espao considervel ao azar e a sorte: afsica estica se prope oferecer-nos uma representao do mundo comototalmente dominado pela Razo, sem qualquer resduo irracional; nada ficaentregue ao azar e desordem, como em Aristteles e Plato17.

    4. A ALMA DO MUNDO EXPULSA O ACASO PARA FORA DO MUNDO

    A doutrina do destino nasceu da pergunta sobre o porqu das coisas acon-

    tecerem assim como acontecem, da especulao sobre as causas dos even-tos no mundo. Os filsofos gregos iniciaram essas especulaes distinguin-do-os em csmicos e humanos e lhes atribuindo causas diferentes. Plato,por exemplo, consigna ao mito a discusso sobre o destino humano. Esse

    15 Rachel GAZOLLA, 1999, p.63.16 Giovanni REALE, 1994, p.312.17 mile BRHIER, 1962, p.462.

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    aparece como uma fora que premia os justos e que ao mesmo tempo contri-bui para o aperfeioamento das almas no crculo dos renascimentos. Masessas noes no tm nenhuma ligao com a idia de uma vontade superiorque fosse capaz de fazer entrar a justia no mundo.

    O motor imvel de Aristteles s pensa em si mesmo. Isolado em seu

    egosmo divino, tambm no tem olhos para o mundo:

    Quando a confiana na justia imanente diminui, o destinose torna o princpio de explicao daquilo que nas contingn-cias humanas no depende do homem. ele que na consci-ncia religiosa dos homens do sculo quarto se torna acasoou sorte, a Tykh, que transporta para a vida uma parte doarbitrrio.18

    Contra esse estado de coisas o estoicismo se levanta testificando commuita audcia e coragem a ao providencial de Deus no mundo, que pelafora mesma de sua presena desterra todo e qualquer tipo de casualidade.Na concepo estica de Kosmos no cabe o acaso, e o Destino, como lgosprovidencial, governa com perfeio todos os acontecimentos que no de-pendem do homem. Tudo o que ocorre, ocorre como o Destino quer, e elequer o bem do todo conforme os desgnios da Razo (lgos) que a tudodirige:

    O universo no a realizao mais ou menos imperfeita, con-tingente e instvel de uma ordem matemtica; um efeito deuma causa que atua conforme uma lei necessria, uma vez

    que impossvel que algum acontecimento se realize de mododistinto ao que acontece efetivamente. Deus alma de Zeus,a Razo, a necessidade das coisas, a lei divina e o Destino,todos so o mesmo para Zeno.19

    Zeno para enfrentar o arbitrrio que tripudia sobre o acaso utiliza muitasarmas: a Providncia, a Razo (lgos), a causa, a lei, e assim vai. Vale tudopara confirmar a ao providencial que essencialmente cuidado de tudo notodo, com o fim de expungir o fortuito do mundo, e salvaguardar a naturezadivina da natureza.

    Nesse particular, no houve, em toda a histria do Estoicismo, ningumque fosse melhor, ou mesmo que se igualasse a Epicteto quanto sua confi-ana incondicional na Providncia Divina. A gua fresca que mana da sua

    18 mile BRHIER, 1971, p.172.19 mile BRHIER, 1962, p.467.

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    palavra vem unicamente dessa fonte. Cingindo o sermo e a vida em torno crena inabalvel na ao providencial da divindade no mundo, lhe desvela apresena at mesmo nas coisas mais insignificantes.

    Epicteto se sente amado pelo Ser, por isso os olhos de seu corao iden-tificam a Graa (khris) por toda a parte. Esse sentimento de gratido

    (eukharista) que lhe ilumina a palavra apaixonada, testemunha do seu des-lumbramento com a vida. Essa feliz conjuno entre a confiana na Providn-cia (cifra da heimamne e do lgos) e o sentimento de gratido produz umblsamo que lhe perenizou as palavras, porque ainda hoje possvel dessedentaro esprito na paz dos ensinamentos que elas descerram:

    O Destino, que foi, no princpio do pensamento grego, afora totalmente irracional que distribua a sorte entre oshomens, agora a universal, razo segundo a qual as coi-sas aconteceram, acontecem e acontecero, razo univer-sal, inteligncia e vontade de Zeus, que dirige tanto osfatos que nomeamos antinaturais, como as enfermidades,as mutilae