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DE FORMACAO PARA INTEGRA- CADERNO CAO DO ENLACE Enlace-PSoL GB Campinas/Regional

Caderno de Formação Política e Integração do Enlace

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caderno produzido pelo GB Campinas

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CAO DO ENLA

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Enlace-PSoL

GB Campinas/Regional

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ENLACE-PSOL

CADERNO DE FORMAÇÃO

PARA INTEGRAÇÃO DO ENLACE

Organizador: GB Campinas/Regional Apresentação: Vinicius Almeida Revisão: Andréia Pagani Diagramação: Daniel Nunes 2012

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

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PARTE I – MARXISMO REVOLUCIONÁRIO ATUAL

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PARTE II – MOVIMENTO PROLETÁRIO REVOLUCIONÁRIO

33

PARTE III – NOSSA CONCEPÇÃO DE SOCIALISMO

53

PARTE IV – OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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APRESENTAÇÃO: O NOVO QUE NASCE DO VELHO, E O VELHO RENOVADO

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Apresentação: o novo que nasce do velho, e o velho renovado

“Se pretenderem desenvolver tendências novas, devem baseá-las nos alicerces que foram fundados pelos melhores pensadores e lutadores das gerações precedentes.” Ernest Mandel

Não, a revolução mundial não aconteceu! Por mais que isto seja difícil de conceber para alguns, podemos ainda admitir que não só a revolução não aconteceu de forma generalizada (constatação mais óbvia), como o capitalismo está ainda mais forte do que nos tempos de Marx e Engels. O espectro que rondou a Europa por séculos, anunciado pelos autores do Manifesto Comunista é, contudo, ainda presente.

No entanto, mesmo em 2011, no quarto ano de uma crise do capitalismo que se combina nas esferas financeira, de fornecimento, ecológica e, portanto, civilizatória, a essência da relação social Capital nunca esteve tão reproduzida e determinante no modo de vida das sociedades humanas. As relações capitalistas não são apenas de venda e troca, salário, preço e lucro; dívidas, especulação e propriedade. O capitalismo é arte, comportamento, corpo, vida, humor, política! Partes essas entrelaçadas num composto complexo, contraditório e multifacetado. A realidade precisa ser transformada, mas agora precisa de novo ser compreendida e interpretada.

O mundo devotado ao Capital já não o faz mais tanto de forma política, mas natural. Tão natural é se render ao consumismo, aos exageros, às desigualdades, aos desperdícios, ao individualismo e à competição que não é preciso pregar, lutar por isso. O século XX foi marcado por uma intensa disputa entre esse mundo e alternativas a ele, muitas vezes de forma bélica. Por um lado do mundo, a estratégia utilizada foi a bonança e a ampliação da liberdade. A participação política, restrita ao voto, ainda transparecia semelhante a uma sociedade igualitária comparado aos regimes latino-americanos, dentre eles o brasileiro de 1964 a 1985. No outro extremo, o desejo de liberdade era sufocado em porões, em carros pretos e matagais com sangue, ferro e fogo.

Antes o mundo se via à beira do colapso, o que poderia ter sido bom, mas não foi, nem mesmo para os socialistas e sucessores de Marx. A luta contra a opressão plena teve como resposta a opressão plena. Os regimes totalitários tomaram conta do mundo por um período suficientemente importante, para que muitas lições fossem tiradas por nós.

E quem somos nós? A militância do Enlace e do PSOL pode responder que somos uma nova experiência. Mas será mais bem definida se afirmar uma continuidade, um resgate, uma tradição. As tradições de nosso tempo, de nosso comum, devem ser estilhaçadas e tudo que é sagrado profanado, sem dúvida. Porém, o costume transmitido de geração em geração, de lutar contra toda e qualquer forma de opressão, não nos convêm ter vergonha em reivindicar.

Nesse sentido, a formação é condição para o estado “ser militante”. E se militante do

Enlace e do PSOL, de nosso coletivo, essa regra é ainda mais justa. Não falamos em auto-proclamação, glorificação ou desprezo por qualquer outro grupo que levante a bandeira do socialismo de forma independente, obstinada e com retidão. Ao contrário, uma formação singular e marxista, por isso, revolucionária, é aquela que dignifica o indivíduo a partir de sua construção coletiva, autocrítica e ousadia para se transformar na luta do dia-a-dia, até que o cotidiano seja extraordinário.

Marx em A Miséria da Filosofia afirmou que “a dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns (...). Na luta, (...), essa massa se reúne, se constitui classe para si mesma”. Essa visão foi muito debatida por diversos autores. Nesse raciocínio iniciado por Marx, é na própria realidade capitalista e no enfrentamento das relações de opressão geradas em seu seio que formamos uma resposta nova. Por isso, uma advertência necessária é quando nos deparamos com propostas ditas “inteiramente novas”. Se somos uma proposta nova, de maneira nenhuma apontamos para uma ideia “separada da história e isolada de todo o passado, como se esse passado nada tivesse a ensinar-nos nem a dar-nos”, como dizia Ernest Mandel em sua discurso para a juventude da SDS .

Não existe ideia inteiramente nova na perspectiva do marxismo, mas sim inovações diante do profundo estudo e balanço de nossas experiências de lutas passadas. Não basta sabermos o quanto os oprimidos sofreram diante dos donos do mundo, precisamos reconhecer que levamos a frente às batalhas por revolução em todo o mundo. A primeira condição para mudar a realidade é conhecê-la, como disse Eduardo Galeano. Nesse sentido,

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APRESENTAÇÃO: O NOVO QUE NASCE DO VELHO, E O VELHO RENOVADO

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lançamos este caderno de texto, para compilar o que avaliamos serem passos iniciais necessários a integração do pensamento e da prática do Enlace, nossa tendência interna do PSOL. Não restrita a disputa interna de nosso partido, nossa organização traz para o pensamento revolucionário brasileiro contribuições de autores de diversos países que colaboraram para que o marxismo permanecesse vivo, pulsante e intenso. O caderno de Formação para Integração do Enlace foi dividido em cinco partes, levando em conta alguns temas essenciais de nossa discussão.

Na primeira parte, o Marxismo Revolucionário Atual será debatido por Daniel Bensaïd, Michel Löwy e Ernest Mandel em dois temas: a atualidade do pensamento de Marx e um balanço inicial de Mandel sobre a proposta dos bolcheviques russos de partido revolucionário. Nessa fatia de nossa formação enuncia-se o método de observar o atual e o futuro tendo profunda consciência do passado. Essa é a essência de A atualidade do Manifesto Comunista e Por um marxismo crítico. Nesse bojo, o pensamento marxista segue um balanço de sua experiência prática mais impactante na história da humanidade: o triunfo dos trabalhadores na Rússia em construir uma revolução socialista. O papel do partido revolucionário foi decisivo, mas nem por isso preponderante diante da tomada de consciência dos oprimidos russos e sua ação voltada para a construção de um mundo novo.

Na segunda parte, investigamos através de dois textos clássicos, a relação entre partido e movimento revolucionário. O movimento de massas passou por diversas fases e a aplicação de fórmulas prontas pelos partidos, ou seu anseio em decidir sozinho o porvir, muitas vezes fez

com que o nascente socialismo fosse abortado. Rosa Luxemburgo em Greve de massas, partido e sindicatos expressa o sentimento de que o partido fundamental é aquele que reconhece o protagonismo da massa na disputa de mundo. Quando é nítido e claro o levante dos despossuídos, pelas barricadas, braços cruzados e mares de gente nas ruas acontece, o partido revolucionário celebra e se prepara para o horizonte em suas mãos. Quando o capitalismo entorpece a razão e os sonhos proletários de um mundo de pessoas apenas vivendo o hoje, cabe ao revolucionário não desanimar e encontrar formas de mudar o leme da história. No chamado refluxo que o partido tem papel ainda mais central, em As táticas da Frente Única, León Trotsky demonstra que, mesmo apenas quatro anos depois da maior revolução proletária de nosso tempo tendo ocorrido, a burguesia já respondia de forma cruel e implacável para manter seus quinhões. A unidade dos trabalhadores, em tempos de ofensiva dos possuidores, é nossa jóia, nossa riqueza, nossa esperança. Tanto quanto uma greve de massas.

Na terceira parte, iniciamos a resposta mais difícil: o que é, para nós, o socialismo. O mais difícil é controlar a ansiedade e não responder plenamente, mas sim considerar pistas e caminhos que já percorremos e que, por isso, nos ajudarão a tropeçar menos. Em Nossa concepção de socialismo abordamos como vislumbramos os primeiros passos para a sociedade futura, o que significa a materialização de nosso projeto político e de sociedade. O Ecossocialismo é um novo olhar sobre o socialismo, crítico às experiências “produtivistas” e procura responder ao “processo destrutivo do capitalismo”, pelas palavras de

Marx e do próprio Michel Löwy, fundador do movimento mundial ecossocialista e autor do artigo que trazemos sobre o tema para este caderno.

O internacionalismo e a perspectiva de revolução permanente caminham junto desse programa radicalmente oposto ao modo de produzir do capital, depositando no poder dos oprimidos e em ninguém mais a solução para os males de nossos dias. Nossa ousadia está em reconhecer que autores que nunca se viram como Trotsky, Mariátegui e Gramsci, observaram pelo calor das lutas e o inverno do exílio e prisão, que muitas ideias se combinam e nascem da experiência real e da dedicação inexorável ao novo mundo.

Na quarta parte, que definimos precariamente aqui como Outros movimentos sociais, há um esforço em demonstrar que nossas batalhas são de diversas trincheiras e com diferentes formas de ver os mesmos atores. É uma crítica e autocrítica à esquerda, que se fecha em esquemas e esquece que os sujeitos históricos são homens e mulheres, de todas as etnias, que vivem de maneira diversa e plural. As revoluções passadas pecaram ao relegar às mulheres papéis inferiores aos dos homens; aos gays, segregação e preconceito para liderar e ter protagonismo, ao negar que em muitos países (especialmente no Brasil) a cor da pele conta tanto, muitas vezes, quanto seu dinheiro no bolso. Que de qualquer lugar é possível transgredir o status quo, até mesmo em seu pólo de reprodução intelectual, a universidade.

Para os navegantes com desejo de vento, já dizia Galeano, a memória é um ponto de partida. Em nossa quinta (e última) parte, o debate sobre nosso agrupamento partidário

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APRESENTAÇÃO: O NOVO QUE NASCE DO VELHO, E O VELHO RENOVADO

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retoma por completo o debate sobre o mundo futuro. Precisamos construí-lo agora, o quanto antes. E precisamos aprender com nossos erros, inovar sabendo o que passou. Um partido amplo foi uma aposta da esquerda brasileira de trinta anos atrás. Muitos dizem que seu modelo foi a razão de seu fracasso. Vamos debater a tese do Enlace apresentada no III Congresso Nacional do PSOL e, quanto possível, criticar nossa linha e direção para afinar respostas de nossos novos dilemas.

Se não estivéssemos no PSOL, onde estaríamos? De que valeria toda a autocrítica contra o autoritarismo e sectarismo na própria esquerda? Devemos reconhecer que hoje nosso desejo de construção de um partido para a revolução está distante (apesar de que a história nos prega peças e acelera-se sem avisar). O capital venceu no Brasil porque é um projeto global. O Partido dos Trabalhadores foi um lampejo sucumbido pelo neoliberalismo mundial. Sem isentá-lo de culpa, seria delírio achar que, da noite pro dia, poderíamos reconstruir uma alternativa de esquerda nacional. O modelo petista estimulou inúmeros balanços. Antes de definir por qual aderimos, identificamos que a esquerda brasileira que restou sem se perder nas malhas do poder institucional burguês, precisa se reunificar numa mesma proposta política.

O ideal era que a unidade da esquerda brasileira fosse ao redor de um partido revolucionário de massas, mas muitos companheiros e companheiras, com justeza e nosso desacordo, apontam que parte do fracasso petista está na proposta de partido de tendências permanentes. Que seja então uma Frente, um movimento, uma ação contínua que mantenha lutadores juntos contra o Capital. O PSOL só será

um partido necessário para o socialismo se assumir protagonismo na realização desse plano.

Sem fetiche com o PSOL, ou qualquer legenda partidária, nossa aposta política não se resume em sua defesa, filiação e compromisso de crescimento. Reconhecemos que nosso partido não é capaz hoje de, por si só, organizar a luta contra o capitalismo no país. Ao contrário, o risco maior é que seus passos sigam o PT e o mesmo represente mais uma afirmação do modo representativo, corrupto e ditatorial de fazer política do mundo burguês. Podemos até sentir surpresa que a capitulação deste grupo ainda não tenha se dado, diante de tanto oportunismo político de boa parte de sua direção e militância.

Contudo, o potencial de nosso partido é claro, pois diante de imensas limitações, sua característica plural torna menos amarga a realidade desunida da classe trabalhadora tupiniquim. Sua representação pública mostra às massas, que o sonho de uma sociedade economicamente justa ainda existe. Sua expressão contraditória, e que surpreende aos mais céticos na sua crescente participação popular em movimento, pode nos iludir, mas por enquanto permite a esperança e a fé. A fé sem concretude não nos serve para nada, mas sem ela não nos movemos.

É dessa fé que anunciamos o que para nós é o mais importante da discussão apresentada por este caderno. Sua distinção é no objetivo de servir como uma ferramenta de atração da nova militância. Para isso, sua condição é a admissão de seus profundos limites, assim como de todas as ditas “formações teóricas”. Nossa formação está a serviço de uma

organização de gente concreta, real. Está repleta de segundas intenções, sem se contradizer com a primeira, a nossa apresentação e formação. Formar para nós será incompleto se for através de uma discussão em grupo de textos, ou mesmo a partir da aceitação acrítica de nossas intervenções. Queremos, acima de tudo, os descontentes, os inconformados e os indignados.

Vinicius Almeida, secretário do GB Campinas/Regional do Enlace

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PARTE I

MARXISMO REVOLUCIONÁRIO ATUAL

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PARTE I – MARXISMO REVOLUCIONÁRIO ATUAL

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PARTE I – MARXISMO REVOLUCIONÁRIO ATUAL

A Atualidade do Manifesto Comunista

Escrito por Daniel Bensaïd, 1998

Primeira Edição: Comunicação apresentada no Congresso Internacional dos 150 anos do Manifesto Comunista, em Paris, em 1998. Transcrição de João Machado Borges Neto. Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 310, outubro 1999.

Fonte: "Marxismo, Modernidade e Utopia", Editora Xamã, São Paulo, 2000).

Transcrição: Daniel Monteiro - Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.

A ronda infernal do capital

1. O Manifesto do Partido Comunista capta na fonte a extraordinária vitalidade do Capital enquanto “potência social” impessoal cujo dinamismo subverte o mundo e constitui o segredo da aceleração da história:

“Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar friamente sua posição social e suas relações mútuas”.(1)

2. Ele capta a lógica íntima deste movimento de extensão e de aceleração, pelo qual a burguesia tende à “exploração do mercado mundial”, retira da indústria sua base nacional, gera novas necessidades, desenvolve uma “interdependência universal” tanto das “produções materiais” quanto das “produções do espírito”, até gerar uma “literatura universal” a partir das literaturas locais e nacionais.

3. O que o jargão jornalístico designa pela palavra dissimuladamente neutra de “globalização” não é senão, na realidade, a conclusão da generalização planetária das relações mercantis. A mercadoria se apossa de tudo, tudo se torna mercantil, os corpos e os órgãos, as obras e os bens comuns. Esta universalização mercantil mutilada, longe de homogeneizar um mundo em que os últimos alcançariam os primeiros, cristaliza novas desigualdades, novas divisões, novas opressões, novos particularismos: o imperialismo se transforma, não desaparece. Longe de suavizar os costumes, o comércio de todos com todos, entregue à lei impiedosa da concorrência, alimenta a guerra de todos contra todos. O desenvolvimento das ciências e das técnicas revela possibilidades e capacidades até agora desconhecidas, mas as condições de opressão e de exploração metamorfoseiam este potencial de libertação em novas servidões e exclusões, em miséria política e moral.

4. O Manifesto anuncia a “revolta das forças produtivas modernas contra as relações modernas de produção e contra o regime de propriedade que condicionam a existência da

burguesia e sua dominação”. Há 150 anos, quaisquer que sejam as saídas provisórias, este conflito nunca cessou. Tomou a forma de crises, guerras, revoluções.

Nas origens destas crises está a existência dupla da mercadoria, o desdobramento do valor em valor de uso e valor de troca, a separação da compra e da venda, da produção e da realização da mais-valia, a autonomização dos momentos da reprodução social uns com relação aos outros, cuja unidade apenas a violência restabelece periodicamente.

A generalização planetária das relações mercantis gera assim uma crise de civilização inédita, que assume a forma combinada de crise social e de crise ecológica. Esta crise se manifesta por uma nova partilha imperialista do planeta, em que desigualdades sociais e ecológicas se aprofundam e se superpõem.

5. Não se trata do “fim do trabalho” no sentido antropológico, mas sim de uma crise específica do trabalho assalariado, da relação entre trabalho assalariado e capital, da lei do valor enquanto lei impessoal de alocação de recursos e de distribuição de riquezas. O processo de troca reduz cada dia o trabalho concreto ao trabalho abstrato, o trabalho complexo ao trabalho simples, uniforme, indiferente, “por assim dizer destituído de toda qualidade”; a “uma abstração social”, cujos seres trabalham realmente, eles mesmos reduzidos a uma simples “carcaça de tempo”, tornam-se “simples órgãos”.

Marx tinha previsto que a tendência histórica à socialização, à complexificação do trabalho, à incorporação do trabalho intelectual

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e coletivo à produção, tornaria esta medida (2) cada vez mais miserável e irracional. Chegamos a isso.

Quando o nível de desenvolvimento das forças produtivas permitiria limitar voluntariamente sua utilização, quando o produto do trabalho se torna efetivamente social e coletivo, quando o trabalho deixa de ser “sob sua forma imediata” a grande fonte da riqueza, quando o tempo de trabalho necessário à sociedade poderia ser reduzido em proveito do tempo livre ou destinado à satisfação de novas necessidades não compráveis, a lei do valor continua a decidir cegamente a alocação dos recursos, a criação e a distribuição do emprego. Pela primeira vez na história do capitalismo, ela opera mesmo no curto prazo, de maneira quase instantânea em escala planetária, através dos mercados financeiros e dos deslocamentos rápidos de capitais.

Continuar a medir com base no tempo de trabalho “as gigantescas forças sociais acumuladas”, aprisioná-las na golilha da lei do valor, leva assim às injustiças, às crises, à desordem generalizada. A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das relações sociais à medida comum do tempo de trabalho social se traduzem assim em um desemprego de massa endêmico, exclusões massivas, crises cíclicas de reprodução, mas também na incomensurabilidade crescente de atividades sociais irredutíveis apenas ao padrão do trabalho abstrato.

6. Do mesmo modo, a lógica mercantil deprecia o futuro e ignora os efeitos de limiar, de amplificação, de irreversibilidade próprios à

biosfera. Duas lógicas antagônicas se enfrentam. A da natureza maximiza os estoques a partir do fluxo de raios solares, a do capital maximiza os fluxos em detrimento dos estoques não mercantis e não renováveis, que nenhum balanço puramente contábil pode levar em conta. Enquanto os ritmos naturais se harmonizam no longo prazo, a razão econômica procura ganhos rápidos e lucros imediatos. O capital vive no dia a dia, na imediatidade do gozo e na despreocupação do amanhã. Só a burocracia, com seu egoísmo estreito, pode rivalizar com ele.

Contra as idéias aceitas do fetichismo mercantil, a ecologia crítica dá seu veredito implacável: o mercado não satisfaz as necessidades, mas a demanda; a moeda não é o real, mas sua representação fantástica; a utilidade coletiva é irredutível a uma soma de utilidades individuais; os lucros do dia não fazem necessariamente os empregos de amanhã; (3) enfim, a economia mercantil não é compatível com as leis da biosfera, e sua pequena bolha funciona em detrimento do conjunto. A crítica ecológica do cálculo econômico revela assim a contradição explosiva entre a racionalidade mercantil, que ignora por princípio o jogo das reservas, e a solidariedade da espécie através da sucessão das gerações. Ela põe a nu a incomensurabilidade entre a temporalidade do mercado e a da biosfera. Exige uma avaliação a longo prazo das necessidades e das riquezas distinta desta, imediata, do jogo da concorrência.

7. Então: Marx, gênio mau produtivista ou anjo da guarda ecologista?

Seria evidentemente absurdo exonerá-lo das ilusões prometeuanas de seu tempo. Mas seria abusivo fazer dele o cantor despreocupado da industrialização a qualquer custo e do progresso numa via de mão única. Sua crítica da economia mercantil enquanto campo da racionalidade parcelaria o conduz, de fato, a constatar que a reprodução sempre ampliada do capital e do consumo implica “a exploração da natureza inteira”, e a “exploração da Terra em todos os sentidos”. A natureza se torna assim “um objeto para o homem”, uma “pura questão de utilidade”, submetida ao imperativo categórico do lucro.

É por isto que Marx não se deixa levar a uma apologia cega do progresso. O desenvolvimento das forças produtivas e das necessidades enriquece certamente o desenvolvimento potencial do indivíduo e da espécie. Mas sua determinação pela coação do capital, pelo caráter alienado do trabalho e pela reificação mercantil, mutila estas necessidades: faz das forças produtivas um fetiche hostil. A universalização engendrada pelo círculo sempre ampliado da produção e da circulação é assim uma universalização truncada, desigualitária, formal.

Não é o progresso que é condenável, mas seu caráter abstrato e unilateral: a maneira pela qual os progressos da técnica “aumentam apenas a potência objetiva que reina sobre o capital” e reduzem a natureza a um objeto de exploração oferecido gratuitamente. Este progresso, socialmente determinado pela relação de produção capitalista consiste em “mudar a forma da servidão”, sem suprimi-la. Conduz ao esgotamento das “condições naturais” da reprodução da espécie. Assim, “todas nossas invenções e nossos progressos

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parecem dotar de vida intelectual as forças materiais enquanto estas reduzem a vida humana a uma força material bruta”.

Diante de seus desgastes e de suas desilusões, o progresso ainda deve portanto, ser inventado, segundo critérios conforme às necessidades humanas e que respeitem sua ligação à natureza: o da redução massiva do tempo de trabalho obrigatório, o que permitiria reencontrar o sentido do jogo e dos prazeres do corpo, hoje submetidos ao princípio do rendimento; o da transformação qualitativa das relações entre os sexos, que constituem a primeira experiência simultânea da diferença irredutível do outro e da universalidade da espécie: o critério enfim de uma universalização efetiva e solidária da humanidade, prefigurada pelo internacionalismo revolucionário.

8. A lei do mercado e a relação de exploração são indissociáveis da propriedade privada.

Esta questão está no coração do Manifesto e do projeto comunista que enuncia: “Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada”; “em todos os movimentos, colocam a questão da propriedade, em qualquer grau de evolução que possa ter atingido, como a questão fundamental do movimento”. Não se trata, é claro, de abolir toda forma de propriedade, mas explicitamente “a propriedade privada de hoje, a propriedade burguesa” e o “modo de apropriação” fundado sobre a exploração de uns pelos outros.

A disseminação relativa ou aparente dos proprietários marcha hoje junto com

concentração sem precedentes da propriedade privada e de seu poder em detrimento dos espaços e dos poderes públicos. Não se trata apenas da privatização ou da reprivatização da produção, mas também da informação, dos serviços, da água, do ar, da moeda, do direito, da violência.

As negociações sobre o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) ou sobre o Novo Mercado Transatlântico (NTM) ilustram este apetite insaciável da empresa privada, que sonha ditar sua lei aos povos varrendo os obstáculos estatais.

9. O Manifesto se inscreve na iminência do acontecimento anunciado.

Desde junho de 1848 a figura das revoluções futuras se desvela, a luta de classes parte em duas a história do mundo. O Manifesto é o enunciado programático límpido desta ruptura. Do mesmo modo que “a revolução burguesa alemã não poderia ser senão o prelúdio imediato de uma revolução proletária”, a revolução democrática torna-se daí por diante indissociável da revolução social. É esta lição que a idéia de “revolução em permanência” traduz, na Mensagem à Liga dos Comunistas, dois anos depois.

Ela conjuga, em uma só fórmula algébrica, a passagem da revolução democrática à revolução social, a passagem da revolução política à revolução econômica e cultural, a passagem enfim da revolução nacional à revolução mundial.

10. No momento da primavera dos povos, o espaço estratégico da política, onde se entrelaçam as correlações de força, é o do Estado Nacional. Para os autores do Manifesto, “o proletariado de cada país deve, em primeiro lugar, conquistar o poder político, erigir-se em classe dominante da nação, tornar-se ele mesmo a nação; ele é por isso nacional, embora de nenhuma maneira no sentido burguês da palavra”.

Pois “a estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se a cada dia mais impossíveis”. O que já era verdade em 1848, é mais verdade ainda hoje.

A mundialização conduz a uma metamorfose dos espaços e dos ritmos da política, a uma crise das regulações nacionais, sem que uma regulação transnacional coerente se imponha ainda. Nenhuma época orgânica emerge no horizonte de nosso época crítica, em que se defrontam as ordens seculares dos territórios, das nações, dos Estados. É a hora incerta das decomposições sem recomposições, das contradições sem sínteses, dos conflitos sem superação.

11. A crise de representação e o descrédito freqüentemente invocado da política são apenas o efeito visível da grande prostração das fundações modernas.

Ilustram o risco, anunciado por Hannah Arendt, de que “a política desapareça completamente do mundo”, de que a cidadania seja esmagada entre os automatismos do horror econômico e as consolações ilusórias do moralismo humanitário. Logo o mesmo

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acontece com as condições de possibilidade, presentes e futuras, de uma cidadania realmente democrática.

E contudo lutam…

12. “A história de todas as sociedades até nossos dias não foi senão a história da luta de classes”: o Manifesto desvenda o segredo do espectro e lhe dá carne, decifrando o enigma do movimento histórico.

A Revolução Francesa consumou a transformação das ordens e estados políticos antigos em classes sociais modernas, dissociou a vida política da sociedade civil, separou a profissão da posição social. O velho espírito corporativo sobreviveu, entretanto, no coração da sociedade moderna através da burocracia do Estado, cuja supressão só é possível se o interesse geral se torna efetivo e se o interesse particular se torna geral.

13. O Manifesto não se contenta em pôr a nu a relação de classe dominante, inerente ao reino do capital. Anuncia uma simplificação crescente desta relação, uma polarização cada vez mais despojada que confronta burgueses e proletários. Este prognóstico cumpre uma função política. Contribui para resolver a contradição presente no próprio Manifesto: enquanto o desenvolvimento industrial aumenta a força, a concentração e a consciência do proletariado, a concorrência o “esfarela”.

Como, apesar de tudo, do nada tornar-se tudo?

Como seres privados das finalidades de seu trabalho, mutilados pelo despotismo da fábrica, submetidos ao fetichismo da mercadoria, podem quebrar o círculo de ferro da exploração e da opressão? Por qual prodígio o proletariado realmente existente pode arrancar-se aos sortilégios do mundo encantando?(4)

A resposta do Manifesto se reduz a uma aposta sociológica na “constituição dos proletários em classe dominante”. O prefácio de 1890 de Engels o confirma:

“Para a vitória definitiva das proposições enunciadas no Manifesto, Marx se remetia ao desenvolvimento intelectual da classe operária, que deveria resultar da ação e da discussão comuns”.

Como se o desenvolvimento sociológico do proletariado determinasse mecanicamente sua emancipação política…

A história dolorosa do nosso século arruinou este otimismo, estreitamente associado às ilusões do progresso e às tentações cientistas do século passado.

14. O Manifesto não oferece uma teoria sociológica das classes.

A construção conceptual das relações de classe é elaborada posteriormente, até o último capítulo, inacabado, de O Capital.(5) Seja então O Capital, enquanto exposição não sociológica da questão: a teoria de Marx não é nem uma análise econômica, nem uma sociologia empírica das classes. Contra a racionalidade instrumental, que ordena e classifica, inventaria

e registra, acalma e pacifica, ela se liga à lógica interna do conflito social, que permite penetrar nos segredos da fantasmagoria mercantil.(6) Não que os diversos antagonismos sejam reduzidos à relação de classe: a diagonal da frente de classe os liga, os trabalha, e os combina sem confundi-los. Enquanto a sociologia positiva pretende “tratar os fatos sociais como coisas”, Marx trata-os como relações. Não define “uma classe”. Apreende relações de oposição e luta através das quais “as classes” determinam-se reciprocamente.

15. É preciso, portanto, esperar O Capital para ver as classes desdobrarem suas determinações através do próprio movimento do capital, para vê-las aparecer enfim, no seu lugar, não no nível da produção, nem da circulação, mas no nível da reprodução de conjunto.(7)

O processo de produção traz uma primeira determinação através da relação de exploração e da luta pela partilha do tempo de trabalho entre tempo necessário e sobretrabalho; mas, “no curso ordinário das coisas”, o trabalho fica dolorosamente subordinado ao capital que dita sua lei.

O processo de circulação determina a relação de classe sob o ângulo do antagonismo entre compra e venda da força de trabalho, do conflito entre o assalariado detentor da sua força de trabalho e o capitalista detentor do capital monetário; o contexto do conflito não é mais aqui a extensão imediata da mais-valia, mas a negociação conflitiva da força de trabalho enquanto mercadoria.

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No processo de reprodução de conjunto enfim, as classes são determinadas pela combinação concreta da extorsão de mais-valia, da divisão e da organização do trabalho, da distribuição da renda, da reprodução da força de trabalho em todas as esferas da vida social.

Só então as classes podem aparecer como uma coisa distinta da soma de indivíduos que cumprem uma função social análoga. Na medida em que “a taxa média de lucro depende do grau de exploração do trabalho total pelo capital total”, a luta de classe não se reduz à soma de interesses convergentes, mas manifesta “a exploração da classe operária pelo conjunto do capital”, “do trabalho total pelo capital total”.(8) As relações de classe são então irredutíveis ao face à face patrão — assalariado na empresa: pressupõem o metabolismo da concorrência, a determinação do tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução geral da força de trabalho; dizendo de outra maneira, a própria luta que decide as condições desta reprodução.

16. Se O Capital deixa em suspenso (inacabado e talvez inacabável) o capítulo sobre as classes, por outro lado não impede uma representação simplificada do conflito de classe.

Sublinha, com efeito, que a divisão em classes, mesmo nos países mais desenvolvidos, não aparece jamais em sua forma pura, que aí também “os estados intermediários e transitórios encobrem as linhas de demarcação”.(9) Dizendo de outra maneira, a formação social real não se reduz à armação nua das relações de produção. Integra as dimensões

políticas e culturais das relações ao Estado, da memória coletiva, da experiência das lutas.

Se, “à primeira vista”, mas apenas à primeira vista, a propriedade respectiva do capital, da terra e da força de trabalho parecem determinar “as grandes classes”, “entretanto”(10), à segunda vista, estas grandes divisões se complicam no campo da luta política. É no 18 Brumário e em As lutas de classes na França que é preciso portanto ir buscar a luta de classes em atos, em toda a plenitude complexa de suas determinações.

17. O lugar dos conflitos de classe não decorre em Marx de uma descrição fenomenal dos antagonismos sociais. Está no coração das relações de produção e de troca capitalistas, da acumulação, e das crises.

Não seria possível, portanto, apreender indiferentemente o movimento histórico tanto segundo as relações de classe, quanto segundo as relações de família, de sexo, de geração, de raças, ou de nações. Na época do capital, a relação de classe constitui a chave da inteligibilidade da dinâmica histórica.

Entre as diversas representações simbólicas e políticas possíveis da conflitividade social, as construções em termos de pertencimento fechadas, corporativas ou comunitárias, se reforçam à medida que enfraquecem a construção e a consciência de classe. No encadeamento de contradições múltiplas que trabalham o corpo social, ao contrário do espírito de paróquia e de capela, a frente de classe fornece um fio condutor, portador de universalidade: para o proletário, há

sempre do outro lado do muro, da fronteira, ou da fé, um outro si-mesmo.

18. A questão de hoje não é a do desaparecimento das classes (quem duvida seriamente da existência da burguesia, do reforço e da concentração da propriedade privada, da realidade quotidiana da exploração?), mas a das incertezas ligadas ao processo de construção/desconstrução em obra nas metamorfoses do trabalho e do próprio salariado.

Em quais condições as novas formas de organização, a individualização e a privatização do consumo, a atomização social generalizada, podem permitir a reconstrução de práticas e de uma consciência coletivas? Em quais condições a fratura entre o movimento social e a representação política pode ser superada em um mundo em que o espaço público é entregue à privatização e onde o bem comum escapa ao controle político?

As respostas acham-se em primeiro lugar na preparação de um novo ciclo de experiências acumuladas: a prova suficiente das classes, é que elas lutam; a prova suficiente da burguesia, é o barão Seillières.

19. A luta não é um jogo. Como o jogo infinito, a luta de classes não conhece senão resultados provisórios (vitórias, derrotas, ou compromissos). A convocação fica aberta para sempre. Mas a teoria dos jogos tem por princípio que “ninguém pode jogar se é forçado a jogar” e que “quem é obrigado a jogar não pode jogar”.

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Nas nossas sociedades modernas, pode-se sempre procurar mudar de jogo e de condições passando de uma classe a outra. A mobilidade social permite estas transferências e estas promoções dentro de certos limites. O indivíduo pode assim ter a ilusão de escolher sua classe e seu lugar em torno do pano verde. Coletivamente, os papéis não deixam de ser menos solidamente distribuídos e perpetuados pela reprodução social. O oprimido é condenado a resistir, sob pena de ser pura e simplesmente esmagado. Esta obrigação de lutar proíbe toda confusão entre a luta das classes e a teoria dos jogos: lutar não é jogar.

20. Se as classes são o resultado de múltiplas determinações, nos níveis da produção, da circulação, da reprodução, e do Estado, a luta de classes concreta não se reduz à relação de exploração na empresa. A estrutura social não determina mecanicamente a representação e o conflito políticos. Estes supõem múltiplas mediações (nações, Estados, partidos, relações internacionais de dependência e de dominação) que fazem da luta uma luta política.

21. As relações de opressão entre sexos são irredutíveis às relações de classe específicas de uma época e de um modo de produção determinados. São entretanto, imbricadas e articuladas.

No modo de produção capitalista, a economia doméstica é subordinada à economia mercantil sem se reduzir a ela. O trabalho doméstico diz respeito a uma duração distinta, a uma temporalidade distinta, a um cálculo

distinto do referente ao trabalho assalariado, mas a economia de troca capitalista não abole a economia de transferência doméstica. Explora seu papel oculto na acumulação permanente básica, tanto na escala dos mercados nacionais quanto na da troca desigual internacional.

Daí a necessária autonomia estratégica do movimento de emancipação das mulheres.

22. O jargão da pós-modernidade é usado para pluralizar indefinidamente os conflitos, para negar qualquer modo de regulação global e toda coerência da relação social.

Levados no turbilhão de interesses fragmentados e egoístas, os indivíduos estariam condenados à solidão desolada de mônadas sem janelas e o parcelamento identitário generalizado seria o estádio supremo do fetichismo da mercadoria. O discurso pós-moderno dissolve assim o próprio capital em uma rede indiferenciada de relações e instituições.

Ora, se a acumulação do capital se alimenta de diversas opressões, e molda-as, perpetua-as, combina-as e unifica-as sob seu bastão, nem por isso o conflito de classe passa a ser apenas um conflito entre outros: ele estrutura a socialização no seu conjunto e determina os outros modos de conflito.

O movimento real em que se abole a ordem existente

23. O Manifesto Comunista não traça os planos da sociedade futura. Não propõe um modelo pronto para o uso da sociedade perfeita. Não propõe substituir “a atividade social” pelo “engenho” dos inventores de sistemas, “as condições históricas da emancipação por condições fantasiosas”, a organização paciente do proletariado em classe pelas “experiências em pequena escala”, apenas pela “força do exemplo” destinada ao fracasso.

Procura explicitar o movimento real de abolição da ordem existente para “atacar a sociedade existente em suas próprias bases”: nada de cidade ideal, nada de “melhor dos mundos”, portanto, mas uma lógica da emancipação e do possível, enraizada na realidade do conflito.

24. A derrubada da ordem estabelecida tem por horizonte “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

O comunismo aparece assim como o máximo de desenvolvimento individual, que não poderia ser confundido com as miragens de um individualismo sem individualidade: a espécie encontra no desenvolvimento singular de cada um (uma), de suas necessidades e de suas capacidades, a condição de seu próprio desenvolvimento universal.

Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um não se concebe sem o livre desenvolvimento de todos: a emancipação não é um prazer solitário.

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25. Dirigido para este horizonte, o Manifesto não propõe um programa detalhado, mas indicações, às quais, como dirá mais tarde Engels, não se deve dar uma importância exagerada. Nem por isto deixam de ser significativas.

Tocam o essencial, e sob diversos ângulos: a “violação despótica do direito de propriedade e do regime burguês de produção”, quer se trate da “expropriação da propriedade fundiária”, do imposto fortemente progressivo ou da abolição do direito de herança.

Tendem à primazia da política sobre a economia, do bem comum sobre o interesse egoísta, do espaço público sobre o espaço privado, quer se trate da centralização do crédito, de um serviço público de transporte, da criação de empresas públicas, da reorganização do território pelo aproveitamento das terras incultas e melhora das terras cultivadas segundo um plano geral”, ou ainda da “educação pública e gratuita para todos”.

Põem enfim em questão a divisão do trabalho na sua forma mais extrema, a divisão entre cidades e campos, entre o trabalho agrícola e o trabalho industrial.

26. O Manifesto apreende praticamente no seu nascimento as correntes políticas que, sob formas diversas, percorrem duradouramente a história do movimento operário.

O “socialismo feudal”, nostálgico de uma passado mítico, se reencontra sob múltiplas variantes do populismo reacionário. Não

encontrando as “condições materiais para a libertação do proletariado”, e procurando “uma ciência social” e “leis sociais” que possam “criar as condições”, os socialistas utópicos caem facilmente na utopia cientista. Outros enfim se contentam de corrigir as “anomalias sociais” da ordem burguesa organizando a beneficência em nome de uma moral humanitária.

Entre estas correntes reacionárias, reformadoras, utopistas, cientistas, há uma que merece uma atenção particular: o estado “embrionário do proletariado” e a “ausência de condições materiais de sua emancipação” alimentam um “igualitarismo grosseiro” ou um “comunismo grosseiro”. Suas características anunciam o fenômeno do despotismo burocrático: longe de realizar o desaparecimento das classes, generaliza o salariado; longe de realizar o desaparecimento do Estado na livre associação, cumpre a estatização integral da sociedade; longe de abolir a exploração capitalista, realiza a acumulação primitiva sob a forma de uma exploração burocrática e parasitária.

27. Sobre a via da emancipação, a conquista do poder político constitui a alavanca da transformação econômica e da libertação cultural: “O proletariado se servirá de sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital à burguesia”.

No Manifesto, esta “primeira etapa da revolução operária”, na qual o proletariado se constitui em classe dominante, é rigorosamente sinônimo de “conquista da democracia” e de estabelecimento do sufrágio universal.

Ao fio e à medida dos progressos da associação e do desaparecimento dos antagonismos de classe, o poder público é chamado a “perder seu caráter propriamente político”. Assim, a Comuna de Paris será percebida como a “retomada do poder de Estado pela sociedade de que ele se torna a força viva, no lugar de ser a força que a domina e subjuga”, como “a forma política da emancipação social” em detrimento do Estado parasita, “aborto sobrenatural da sociedade”.

O problema, é que esta emancipação audaciosa, sua impaciência libertária, oposta a todo fetichismo burocrático do Estado, faz um curto-circuito na elaboração paciente de um pensamento institucional e jurídico da democracia: o desaparecimento anunciado deve resolver as antinomias da representação democrática.

28. Se o comunismo do Manifesto sublinha as questões sempre tão decisivas da propriedade, da conquista do poder e da democracia, da constituição do proletariado em classe, as experiências acumuladas desde então permitem medir suas lacunas e fraquezas:

— a passagem contínua da classe social à “classe política” não permite pensar a especificidade da luta política, e das formas institucionais e jurídicas da democracia.

— a revolução das relações de propriedade e de produção parece determinar mecanicamente a transformação das relações de produção de conjunto, como se sua suposta mudança automática dispensasse de pensar precisamente a transformação dos conteúdos e da divisão do

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trabalho, das relações de poder, ou das relações de sexo.

Boas vindas ao espectro que volta.

29. A questão para nós, já que o projeto comunista foi associado para sempre à promessa revolucionária do Outubro russo, é a de saber o que fica hoje desta imensa esperança.

Se não ficasse mais que apenas o fato de ter ousado, pela primeira vez, desafiar a servidão moderna, o acontecimento, a profecia política de que é portador, seria demasiado importante, como foi a Revolução Francesa, “para não ter de ser posto de lado em memória dos povos”. Tanto quanto a Restauração monárquica não pôde apagar da memória “a hipótese do cidadão e da representação do povo, a restauração presente não poderá afastar a hipótese da partilha” que o estalinismo traiu.

30. Se fomos duplamente vencidos, pelo inimigo declarado burguês e pelo inimigo burocrático do interior, e se algumas vezes também nos enganamos, nosso grande erro consiste nesta superestimação do homem, que compartilharam todos os “príncipes do possível”. Ninguém poderia reprová-los por ter tentado ultrapassar os limites em que se apagam os últimos traços de um Deus de sinistra memória. Seria incomparavelmente mais grave, realmente vergonhoso, e fundamentalmente humilhante, não ter nem mesmo tentado, ter dobrado a espinha diante do sentido da história, ter-se resignado a suas servidões voluntárias.

31. Terá então sido necessário o desaparecimento de suas caricaturas e de suas contrafações para que o espectro do comunismo volte a assombrar o mundo. Pois o de hoje não é menos violento, menos desigual, menos inaceitável que o de ontem.

Trata-se sempre de revolucioná-lo. Os fracassos e as derrotas do século que transcorreu lançamentretanto, dúvidas sobre as vias e os meios desta grande transformação.

Ao fio das experiências históricas, a idéia da Revolução foi carregada de um triplo significado. Fórmula algébrica da mudança das sociedades modernas, ela se revestiu em primeiro lugar do sentido mítico (no sentido soreliano do termo) de uma imagem ainda imprecisa do futuro desejado e da humanidade libertada. Através da prova sangrenta das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris, ela foi carregada de um conteúdo programático, que ligou indissoluvelmente a revolução democrática à revolução social. Com nosso século atormentado, o “das guerras e das revoluções”, a Revolução se enriqueceu enfim com um conteúdo estratégico, com um sentido da iniciativa e do movimento, da ação desenvolvida em uma temporalidade partida, feita de discordâncias e de contratempos.

A combinação explosiva da crise social e da crise ecológica põe em questão o futuro mesmo da civilização e da espécie humana. Confirma, para conjurar a catástrofe, a urgência e a atualidade de uma palavra revolucionária de alerta e de despertar, “aberta ao que abala”, mesmo se as circunstâncias são inéditas e se é necessário explorar caminhos novos: como os

militares, sempre atrasados em uma guerra, porque alimentados pelas batalhas passadas, os revolucionários estão sempre atrasados em uma (ou várias) revoluções.

Mais vale sabê-lo, para libertar o mito mobilizador de sua parte de crença, e para imaginar uma revolução profana sem grande sujeito heróico. Uma revolução permanente, em que se entrelaçam, nas misérias do presente, o ato de enfrentamento político e o processo duradouro das mudanças econômicas e culturais.

32. Começado com a grande promessa dos amanhãs que cantam, o século se encerra com o desencanto de suas esperanças inaugurais. Deixando na sua esteira um amontoamento de ruínas, ele anuncia um futuro mais estreito, obscuro, e cheio de perigo, acuado entre o desgaste dos que não podem mais dominar e a impotência dos que não podem ainda.

Mudar o mundo não se torna menos necessário, mas mais difícil do que tinham imaginado os pioneiros do comunismo. Nenhum grande fetiche com maiúsculas — nem Divina Providência, nem Tribunal da História, nem Verdade Absoluta da Ciência — pode daqui por diante nos aliviar de uma responsabilidade prosaicamente humana nas incertezas da história aberta. Mudar o mundo, é então também, e ainda, interpretá-lo.

Quanto mais nos recusamos a sofrer as vontades imaginárias de uma História fetiche, mais temos a fazer, sem a bela certeza de uma fé passada, sem contarmos histórias a nós mesmos, na temível obrigação, em cada detalhe leiga e

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profana, de trabalhar para a incerteza. Este compromisso sem garantia de sucesso, no perigo do erro e da derrota, é uma aposta na improvável necessidade de abolir a ordem estabelecida.

33. Mesmo quando, tendo em vista os crimes cometidos em seu nome, as palavras estejam hoje doentes e comprometidas, até o ponto de ser necessário tomar emprestadas ou inventar novas, continuaremos no fundo comunistas (comunistas marranos se preciso), simplesmente porque o comunismo é a expressão histórica e programática mais exata da luta contra a lógica despótica do capital. Expressa:

“o movimento emancipador, o levantamento requerido, desde que alguém se declare estar com a paciência esgotada por ter experimentado que os outros nomes, ? democracia e liberdade?, são dominação, exploração, e consenso em que abole-se a política; houve a haverá comunismo, porque as sociedades modernas são fendidas, disjuntas entre o irreversível princípio igualitário e a obstinação raivosa da dominação, porque o diferente se aloja no próprio oco da palavra liberdade”.(11)

Notas:

(1) As citações sem referências são extraídas do Manifesto do Partido Comunista.

(2) Bensaid se refere à lei do valor: a medida do valor das mercadorias com base no tempo de trabalho (Nota do tradutor).

(3) Referência uma um slogan lançado pela social-democracia alemã, justificando sua defesa dos lucros: “os lucros de hoje são os investimentos de amanhã e os empregos de depois de amanhã” (Nota do tradutor).

(4) Bensaid faz aqui uma referência a uma passagem de O Capital, na parte final do Capítulo XLVIII do Livro III, “A fórmula trinitária”, em que Marx resume o absurdo da visão ideológica da economia capitalista, propagada pelos economistas que ele chama de “vulgares”: “Em capital-lucro ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário, nessa trindade econômica que faz a conexão entre os componentes em geral do valor e da riqueza em geral com suas fontes, está consumada a mistificação do modo capitalista de produção, a coisificação das relações sociais, o amalgama direto das relações materiais de produção com sua determinação histórico-social: o mundo encantado, invertido e posto de cabeça para baixo em que Monsieur le Capital e Madame la Terre dançam sua ronda fantasmagórica como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como simples coisas”. Para Marx, nem o valor (ou a riqueza em geral) são formados pela soma de lucros (ou juros), renda da terra e salários, e muito menos estas três categorias econômicas correspondem à contribuição ao produto dos três “fatores de produção” (“capital”, “terra” e “trabalho”). Mas é desta maneira que as relações capitalistas são percebidas pelos que ficam presos dentro da ideologia burguesa. (Nota do tradutor).

(5) O Livro III de O Capital termina com o fragmento inacabado de um capítulo (Capítulo LII) chamado As Classes. (6) Nova referência à passagem de O Capital citada anteriormente. O tema da “fantasmagoria” das relações mercantis começa a ser desenvolvido no primeiro capítulo do Livro I, na famosa passagem sobre o “fetichismo da mercadoria”, atravessa todos os três Livros e é retomado na última seção do Livro III, em que estão o capítulo sobre A fórmula trinitária e o capítulo (fragmento) sobre As classes (Nota do tradutor). (7) Marx divide O Capital em três livros; o primeiro trata do processo de produção do capital, o segundo do processo de circulação, e o terceiro do processo de conjunto. É ao final deste último, como foi dito, que se inicia o fragmento sobre as classes. (8) Bensaid faz aqui referência à formação de uma taxa geral de lucro, determinada pela razão entre a mais-valia global e o capital adiantado global, estudada por Marx na segunda seção do Livro III de O Capital, especialmente no Capítulo IX, onde aparecem as expressões entre aspas (Nota do tradutor). (9) Frase do último capítulo (fragmento) de O Capital (Nota do tradutor). (10) Referências ao fragmento sobre as classes: “(…) o que forma uma classe? (…) À primeira vista, a identidade dos rendimentos e das fontes de rendimento. São três grandes grupos sociais, cujos componentes (…) vivem respectivamente de salário, lucro e renda da terra (…). Entretanto, deste ponto de vista, médicos e funcionários também formariam duas classes (…)” (Nota do tradutor). (11) Alain Brossat, “Comme en finir avec la politique (à propos d?un Livre noir et d?un énergumène)”, Critique Communiste 151, primavera 1998.

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Por um marxismo crítico

Escrito por Michael Löwy

Resumo:

O resgate do marxismo como conhecimento científico, crítico e projeto emancipatório tem que incorporar as conquistas dos marxismos do século XX. A nova visão de mundo inaugurada por Marx é hoje — em tempos em que o mercado capitalista se tornou uma verdadeira religião secular — mais atual que nunca. Mas a herança da análise marxista apresenta também limitações, particularmente no que diz respeito às relações da produção com a vida social e cultural e com o ambiente natural. E a melhor forma de superá-las é considerar o pensamento de Marx como um canteiro de obras, sobre o qual continuam a trabalhar as gerações de marxistas críticos.

Depois de mais de meio século de “marxismo” de Estado, ideologia oficial a serviço de um sistema burocrático autoritário ou (segundo os casos) totalitário, nada é mais legítimo do que o desejo de voltar a Marx, desembaçar seu pensamento das escórias acumuladas e retomar o diálogo (crítico) com a obra original.

Partilhamos desta intenção, sugerida tanto no título desta coletânea (Marx após os marxismos), como no texto proposto pelos editores da revista Futur Antérieur. Com a

condição, todavia, de evitar um sério equívoco: crer que podemos abstrair um século de história do marxismo, uma história em que encontramos, ao lado de muitos impasses (sem falar das aberrações stalinistas), uma imensa riqueza e pistas indispensáveis para compreender nossa época. Não se pode simplesmente “voltar a Marx” negligenciando Rosa Luxemburgo e Lenin, Trotski e Gramsci, Lukács e Bloch, Walter Benjamin e Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Max Horkheimer, E.P. Thompson e Raymond Williams, Lucien Goldmann e Jean-Paul Sartre, Ernest Mandel e C.L.R. James, Henry Lefebvre e Guy Debord, José Carlos Mariátegui e Ernesto Che Guevara — poderíamos alongar a lista.

São os marxismos do século XX — partindo de Marx, mas indo bem mais além — que nos ajudaram a compreender o imperialismo e o fascismo, o stalinismo e a sociedade do espetáculo, as revoluções sociais nos países periféricos e as novas formas de capitalismo. Não se trata de uma herança homogênea ou de uma linha ortodoxa, mas de uma diversidade conflituosa e aberta, que nos é tão necessária, do ponto de vista de uma crítica do estado de coisas existente — ou da busca de uma alternativa radical — quanto as obras de Marx e Engels. Se eu continuo a me referir ao marxismo é porque não penso que Marx fosse (para retomar uma fórmula célebre) “um homem de ciências como os outros”. Seu pensamento introduz, como destaca com razão Gramsci, uma cisão no campo cultural, tanto teórica como prática, filosófica e política, cujos efeitos repercutem até o presente. Ela inaugura não uma “ciência da história” — que já existia antes dele — mas uma nova concepção de mundo, que permanece uma referência

necessária para todo pensamento e ação emancipadores.

O marxismo não tem sentido se não é crítico, tanto em face da realidade social estabelecida — qualidade que faz imensa falta aos “marxismos” oficiais, doutrinas de legitimação apologética de uma ordem “realmente existente” — quanto ante ele próprio, ante suas próprias análises, constantemente questionadas e reformuladas em função de objetivos emancipadores que constituem sua aposta fundamental. Reclamar-se do marxismo exige portanto, necessariamente, um questionamento de certos aspectos da obra de Marx. Parece-me indispensável um inventário que separe o que permanece essencial para compreender e para mudar o mundo, do que deve ser rejeitado, criticado, revisto ou corrigido. Não pretendo que meu balanço seja o único legítimo, nem que ele seja mais “marxista” ou “marxiano” do que os outros. Eu o proponho como uma contribuição para um debate pluralista, sem temer, como dizia Lucien Goldmann, ser ortodoxo, nem herético.

A primeira e talvez maior contribuição de Marx à cultura moderna é seu novo método de pensamento e de ação. Em que consiste esta nova visão de mundo, inaugurada pelas Teses sobre Feuerbach de 1845? A melhor definição me parece ainda a de Gramsci: filosofia da práxis. Este conceito tem a grande vantagem de destacar a descontinuidade do pensamento marxista em relação aos discursos filosóficos dominantes, rejeitando tanto o velho materialismo da filosofia das Luzes — mudar as circunstâncias para libertar o homem (com seu corolário político lógico: o apelo ao déspota esclarecido ou a uma elite virtuosa) — quanto o

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idealismo neohegeliano (libertara consciência humana para mudar a sociedade). Marx cortou o nó górdio da filosofia de sua época, proclamando (terceira tese sobre Feuerbach) que na práxis revolucionária coincidem a mudança das circunstâncias e a transformação das consciências. Daí decorre, com rigor e coerência, sua nova concepção de revolução, apresentada pela primeira vez em A ideologia alemã: é por sua própria experiência, no curso de sua própria práxis revolucionária, que os explorados e oprimidos podem quebrar ao mesmo tempo as “circunstâncias” exteriores que os aprisionam — o capital, o Estado — e sua consciência mistificada anterior. Em outras palavras:a auto-emancipação é a única forma de emancipação autêntica. Deste ponto de vista, a célebre fórmula do Manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores resume, em sua brevidade lacônica, o núcleo mais central do pensamento político marxiano: “A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A revolução como práxis auto-libertadora é simultaneamente a mudança radical das estruturas econômicas, sociais e políticas, e a tomada de consciência, pelas vítimas do sistema, de seus verdadeiros interesses, a descoberta das idéias, aspiraçõá

stalinista — que não é um “desvio teórico” mas um monstruoso sistema de monopólio de todos os poderes por um “Estado” (Stand) parasitário — aquele que se produziu neste nível foi sem dúvida o pior.

A filosofia da práxis tem também uma outra dimensão decisiva: contra o materialismo antigo que coloca o indivíduo contemplativo (Anschauend) ante às “circunstâncias sociais”, isto é, em face da “sociedade burguesa” enquanto conjunto de leis sociais e econômicas

“naturais”, independentes da vontade ou da ação dos indivíduos, ela percebe a sociedade como rede “prática”, concreta, de relações sociais, como estrutura criada pelos seres humanos no curso de sua atividade histórica e de sua apropriação da natureza pelo trabalho. Em outras palavras, a concepção da práxis está no coração da crítica marxista das alienações e, mais tarde, do fetichismo da mercadoria — ao mesmo tempo como “ilusão necessária” e como forma de objetivação social no capitalismo.

Hoje, quando somos mais do que nunca submetidos ao que Etienne Balibar chama “o totalitarismo da forma mercantil”, isto é, a uma condição na qual “os indivíduos são aprisionados na estrutura objetiva da troca, a partir do momento onde não somente os objetos com os quais os indivíduos têm negócios são mercadorias, mas a própria força de trabalho se torna mercadoria” e sua própria subjetividade é submetida à forma mercadoria (Balibar, 1994-95: 94).

Neste final do século XX, quando o mercado capitalista se tornou uma verdadeira religião secular, com seu culto fanático e restrito, seu cortejo de dogmas intolerantes, seus rituais de expiação, seu clero internacional de “especialistas”, sua excomunhão de todas as heresias, a crítica marxiana do fetichismo permite se desembaraçar desta capa de chumbo esmagadora, deste conformismo sufocante e desta hegemonia usurpadora do “pensamento único”. Ela inspirou alguns dos mais interessantes avanços da teoria social no século XX, da análise da reificação por Lukács até a crítica da razão instrumental pela Escola de Frankfurt e a da sociedade do espetáculo pelos situacionistas.

O que constitui a força do pensamento de Marx e que explica sua persistência, sua vitalidade, seu ressurgimento perpétuo apesar das “refutações” triunfantes, dos repetidos enterros e das manipulações burocráticas, é sua qualidade ao mesmo tempo crítica e emancipadora, a saber, a unidade dialética entre a análise do capital e a convocação à sua derrocada, o estudo da luta de classes e o engajamento no combate proletário, o exame das contradições da produção capitalista e a utopia de uma sociedade sem classes, a crítica da economia política e a exigência de “eliminar todas as condições no seio das quais o homem é um ser diminuído,submetido, abandonado, desprezado” (Marx, 1971: 81).

Se a crítica marxista do capital guarda todo o seu valor é antes de tudo porque a realidade do capitalismo, como sistema mundial, apesar das mudanças inegáveis e profundas que ele conheceu depois de um século e meio, continua a ser a de um sistema baseado na exclusão da maioria da humanidade, na exploração do trabalho pelo capital, na alienação, na dominação, na hierarquia, na concentração de poderes e de privilégios, na quantificação da vida, na reificação das relações sociais, no exercício institucional da violência, na militarização, na guerra. Para compreender esta realidade, suas contradições e as possibilidades de sua transformação radical, a obra de Marx permanece um ponto de partida indispensável, uma ferramenta insubstituível, uma bússola sem a qual temos boas chances de perder o caminho.

É um fato que o mundo do trabalho conheceu transformações profundas, principalmente no curso das últimas décadas:

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declínio do proletariado industrial e desenvolvimento do setor de serviços, desemprego estrutural, formação (notadamente nos países do Terceiro Mundo) de uma massa de excluídos à margem do processo de produção — o “pobretariado”. Estes são fenômenos não previstos por Marx e que não podemos de forma alguma dar conta com conceitos como “trabalho improdutivo” ou “lumpemproletariado”.Mas o proletariado, no sentido amplo, isto é, aqueles que vivem da venda de sua força de trabalho — ou que tentam vender (os desempregados) — permanecem o principal componente da população trabalhadora e o conflito de classe entre o trabalho e o capital continua a ser a principal contradição social das formações capitalistas — assim como o eixo em torno do qual podem se articular os outros movimentos com vocação emancipadora.

O final do século XX é uma época caracterizada tanto pela globalização capitalista mais avançada – a universalização mercantil da economia-mundo – quanto pela multiplicação dos retrocessos identitários, das neuroses territoriais obsessivas, dos fetichismos nacionais mórbidos; estas são duas faces da mesma moeda. A reconstrução paciente das solidariedades entre explorados e oprimidos — fundamento concreto de uma nova universalidade — permanece o único fio que permite encontrar a saída do labirinto identitário.

Tudo isso não impede a existência de problemas, dificuldades, limitações e insuficiências no pensamento de Marx. Parece-me que os aspectos mais discutíveis da herança marxista se situam na análise das relações da produção com a vida social e cultural e com o ambiente natural . No quadro desta curta contribuição posso apenas assinalar estes

problemas, sem ter condições de discuti-los de forma mais sistemática.

Pode-se constatar em Marx uma certa tendência a subestimar as formas não-econômicas e não-classistas de opressão: nacional, étnica ou sexual. A questão da dominação patriarcal sobre as mulheres, que afeta a metade da humanidade, está longe de ser um tema essencial para crítica marxiana da sociedade (Engels era muito mais atento ao problema), que permanece androcêntrico de uma maneira sofrível. Encontram-se páginas emocionantes em O Capital sobre o sofrimento das mulheres operárias impiedosamente exploradas pelos capitalistas ingleses, mas procuraremos em vão em suas obras uma análise consistente da opressão específica das mulheres enquanto tais, da construção do gênero como categoria social hierárquica ou da discriminação contra as mulheres no seio do próprio movimento operário.

Da mesma forma, a autonomia relativa dos fatos culturais como a religião ou a ética, sua irredutibilidade às relações de produção, não foram sempre levadas em conta por Marx ou Engels. Se eles tinham captado perfeitamente a natureza contraditória da religião — expressão da miséria real e protesto contra ela — estavam totalmente convencidos de que o papel de protesto da religião tinha terminado com a revolução puritana inglesa do século XVII. Sua abordagem dos fenômenos religiosos como sobrevivências do passado não permitiu darmos conta nem da persistência tenaz de formas obscurantistas e retrógradas (“o ópio do povo”) ao longo do século XX e, em particular, em nossos dias, nem da aparição de formas progressistas e mesmo revolucionárias de religiosidade (a Teologia da Libertação).

De outro lado, sua crítica frequentemente justificada do “moralismo” idealista e da ideologia jurídica os conduziu a recusar a formulação de valores éticos e de direitos humanos universais. Existe, é verdade, uma ética emancipadora universal que atravessa a obra de Marx e Engels, mas eles sempre se opuseram a sua explicitação e articulação teórica. Esta lacuna favoreceu, ao longo de toda a história do marxismo, as tentativas questionáveis de completar a herança marxiana com uma ética kantiana, utilitarista, fenomenológica ou liberal.

Permanece, enfim, a questão que exige talvez as revisões mais profundas do corpo teórico marxista: a relação entre produção e natureza. Dizer que “o marxismo é um produtivismo” como repetem nossos amigos ecologistas é pouco esclarecedor: ninguém denunciou tanto quanto Marx a lógica capitalista da produção pela produção, a acumulação do capital, de riquezas e de mercadorias como objetivo em si. A própria idéia de socialismo — contra o que foram suas miseráveis contrapartidas burocráticas — é a de uma produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação de necessidades humanas. O objetivo supremo do progresso técnico para Marx não é o crescimento infinito de bens (“o ter”) mas a redução da jornada de trabalho e o crescimento do tempo livre (“o ser”).

Por outro lado, é verdade que há às vezes em Marx (e ainda mais nos marxistas posteriores) uma tendência a fazer do “desenvolvimento das forças produtivas” o principal vetor do progresso e uma postura pouco crítica frente à civilização industrial, principalmente em sua relação destruidora do ambiente. O texto “canônico” deste ponto de

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vista é o célebre prefácio à Contribuição à crítica da economia política (1859), um dos escritos de Marx mais marcados por um certo evolucionismo, pela filosofia do progresso, pelo cientificismo (o modelo das ciências da natureza) e por uma visão sem nenhuma problematização das forças produtivas. Encontramos aqui e ali, em O Capital, referências ao esgotamento da natureza pelo capital, como nesta passagem bem conhecida: “Cada progresso da agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas ainda na arte de espoliar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Mais um país, os Estados Unidos da América do Norte, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais este processo de destruição se realiza rapidamente. A produção capitalista apenas desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde brota toda riqueza: a terra e o trabalhador” (Marx, 1969: 363).

Pode-se encontrar outros exemplos. Mas permanece o fato de que falta a Marx uma perspectiva ecológica de conjunto. Sua concepção otimista e “prometéica” do desenvolvimento ilimitado das forças produtivas, uma vez eliminado o obstáculo representado pelas relações de produção capitalistas que o restringem, não é mais defensável hoje em dia. Não somente do ponto de vista estritamente econômico — integração dos custos ecológicos no cálculo do valor, risco de esgotamento das matérias primas — mas sobretudo considerando a ameaça de destruição do equilíbrio ecológico do planeta pela lógica

produtivista do capital (ou de sua pálida imitadora, a burocracia “socialista”). O crescimento exponencial da poluição do ar, do solo e da água, a acumulação de dejetos nucleares incontroláveis, a ameaça constante de novas Chernobyl, a destruição em um ritmo vertiginoso das florestas, o efeito estufa e o perigo de ruptura da camada de ozônio (que tornaria impossível toda a vida sobre o planeta) configuram um cenário-catástrofe que questiona a própria sobrevivência da humanidade.

A questão ecológica é, do meu ponto de vista, o grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no limiar do século XXI. Ela exige dos marxistas uma profunda revisão crítica de sua concepção tradicional de “forças produtivas” e uma ruptura radical com a ideologia do progresso e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial moderna.

Walter Benjamin foi um dos primeiros marxistas do século XX a colocar este tipo de questão: em 1928, em seu livro Sens unique ele denunciava a idéia de dominação da natureza como “um ensinamento capitalista” e propunha uma nova concepção da técnica como “mestre da relação entre a natureza e a humanidade”. Alguns anos depois, nas Teses sobre o conceito de história ele se propunha enriquecer o materialismo histórico com as idéias de Fourier, este visionário utópico que tinha sonhado “com um trabalho que, muito longe de explorar a natureza, estava em condições de fazer nascer dela as criações que dormiam em seu seio” (Benjamin, 1978: 243).

Ainda hoje o marxismo está longe de ter superado seu atraso neste terreno. Uma das

pistas para uma nova abordagem é sugerida por um texto recente de um marxista italiano que — partindo de uma passagem de A ideologia alemã onde Marx evoca as forças produtivas que se tornam, sob o regime da propriedade privada, forças destrutivas — propõe: “A fórmula segundo a qual se produz uma transformação das forças potencialmente produtivas em forças efetivamente destrutivas, sobretudo em relação ao ambiente, parece-nos mais apropriada e mais significativa que o esquema bem conhecido da contradição entre forças produtivas (dinâmicas) e relações de produção (que as aprisionam). Além disso, esta fórmula permite dar um fundamento crítico e não apologético ao desenvolvimento econômico, tecnológico, científico e portanto de elaborar um conceito de progresso diferenciado (E. Bloch)” (Bagarolo, 1992: 25). Entretanto, os ecologistas se enganam se pensam poder dispensar a crítica marxista do capitalismo: uma ecologia que não leve em conta as relações entre “produtivismo” e lógica do lucro está condenada ao fracasso — ou pior, à sua recuperação pelo sistema. Como compreenderam perfeitamente os ecossocialistas — o primeiro Gorz, James O?Connor, Juan Martinez Alier, Jean-Paul Déléage, Frieder Otto Wolff — a racionalidade estreita do mercado capitalista, com seu cálculo imediatista de perdas e ganhos, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica que leve em conta atemporalidade longa dos ciclos naturais e a necessidade social de proteger o ambiente. Contra o fetichismo da mercadoria e a autonomização reificada da economia, o caminho do futuro é a edificação de uma economia política não-mercantil, baseada em critérios não monetários e extra-econômicos: em outros termos, a “reimbricação” (para retomar a

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expressão de Karl Polanyi) da economia no ecológico, no social e no político.

Gramsci insistia na idéia de que “a filosofia da práxis se concebe, ela mesma, historicamente, como uma fase transitória do pensamento filosófico”, destinada a ser substituída em uma nova sociedade, baseada não mais sobre as contradições de classes e a necessidade, mas sobre a liberdade (Gramsci, 1979: 115-116). Mas enquanto vivermos em sociedades capitalistas divididas em classes sociais antagônicas, será em vão querer substituir a filosofia da práxis por um outro paradigma emancipador. Deste ponto de vista, penso que Jean-Paul Sartre não se enganou em ver no marxismo “o horizonte intelectual de nossa época”: as tentativas de “ultrapassá-lo” conduzem a regressão para níveis inferiores do pensamento, não para mais alémde Marx. Os novos paradigmas atualmente propostos — quer sejam a ecologia “pura” ou a racionalidade discursiva cara a Habermas, para não falar da pós-modernidade, do desconstrutivismo ou do “individualismo metodológico” — aportam freqüentemente contribuições interessantes, mas não constituem de forma alguma alternativas superiores ao marxismo em termos de compreensão da realidade, de universalidade crítica e de radicalidade emancipadora.

Como então corrigir as numerosas lacunas, limitações e insuficiências de Marx e da tradição marxista? Através de uma abordagem aberta, uma disposição para aprender e se enriquecer com as críticas e as contribuições vindas de outras partes — e antes de tudo dos movimentos sociais, “clássicos”, como os movimentos operários e camponeses, ou novos como a ecologia, o feminismo, os movimentos pelos direitos do homem ou pela

libertação dos povos oprimidos, o indigenismo, a teologia da libertação.

Mas é necessário também que os marxistas aprendam a “revisitar” as outras correntes socialistas e emancipadoras — e inclusive aquelas que Marx e Engels tinham por muito tempo “refutado” — cujas intuições, ausentes ou pouco desenvolvidas no “socialismo científico”, revelaram-se freqüentemente fecundas: os socialismos e feminismos “utópicos” do século XIX (owenistas, saint-simonistas ou fourieristas), os socialismos libertários (anarquistas ou anarco-sindicalistas), os socialismos religiosos e, em particular, o que eu chamaria os socialismos românticos, os mais críticos ante as ilusões do progresso: William Morris, Charles Péguy, Georges Sorel, Bernard Lazare, Gustav Landauer.

Enfim, a renovação crítica do marxismo exige também seu enriquecimento pelas formas mais avançadas e mais produtivas do pensamento não-marxista, de Max Weber a Karl Mannheim, de George Simmel a Marcel Mauss, de Sigmund Freud a Jean Piaget, de Fernand Braudel a Jürgen Habermas (para ficar em apenas alguns exemplos), assim como que levemos em conta os resultados limitados mas freqüentemente úteis de diversos ramos da ciência social universitária. É necessário se inspirar aqui no exemplo do próprio Marx, que soube utilizar amplamente os trabalhos da filosofia e da ciência de sua época — não somente Hegel e Feuerbach, Ricardo e Saint Simon, mas também de economistas heterodoxos como Quesnay, Fergunson, Sismondi, J. Stuart, Hodgskin, de antropólogos fascinados pelo passado comunitário como Maurer e Morgan, de críticos românticos do capitalismo como Carlyle e Cobbett, e de

socialistas heréticos como Flora Tristan ou Pierre Leroux — sem que isso diminua minimamente a unidade e a coerência teórica de sua obra. A pretensão de reservar ao marxismo o monopólio da ciência, rejeitando as outras correntes de pensamento para o purgatório da pura ideologia, não tem nada a ver com a concepção que Marx tinha da articulação conflituosa de sua teoria com a produção científica contemporânea.

A obra de Marx foi freqüentemente apresentada como um edifício monumental, de arquitetura impressionante, cujas estruturas se articulavam harmoniosamente, dos alicerces até o telhado. Mas não seria melhor considerá-la como um canteiro de obras, sempre inacabado, sobre o qual continuam a trabalhar gerações de marxistas críticos?

BIBLIOGRAFIA

BAGAROLO, Tiziano. (1992). “Encore sur marxisme et écologie”. Quatrième Internationale,nº 44, mai-juillet.

BALIBAR, Etienne. (Hiver 1994-1995). “Débat entre Jean-Marie Vincent et Etienne Balibar”. Critique Communiste, nº 140.

BENJAMIN, Walter. (1978). Sens unique. Paris, Lettres Nouvelles-Maurice Nadeau

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GRAMSCI, Antonio. (1979). Il materialismo storico. Torino, Editori Riuniti.[Gramsci, Antonio (1979). Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.]

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Atualidade da Teoria Leninista da Organização à Luz da Experiência Histórica

Ernest Mandel

Transcrição autorizada

Fonte: MANDEL, Ernest. A Teoria Leninista da Organização. Lisboa: Edições Antídoto, 1975. pp. 119-154.

Transcrição: Daniel Monteiro

Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucionária.

1. Marx não nos deixou uma teoria acabada da formação da consciência de classe do proletariado nem, do mesmo modo, uma teoria acabada do partido. Existem nas suas obras elementos fragmentários duma tal teoria, mas esses elementos aparecem muitas vezes como contraditórios, pois evidenciam quer um quer outro dos aspectos da formação desta consciência de classe que prevalecem na análise marxista. Umas vezes surge o elemento que opta pela maturação subjetiva do proletariado a longo prazo — em função da própria condição proletária, quer dizer, em função da posição que o proletariado ocupa no processo de produção capitalista, e na sociedade burguesa em geral. Outras vezes, surge o elemento que destaque a imaturidade subjetiva imediata do mesmo proletariado — em função do peso da miséria, da alienação, do embrutecimento e, sobretudo, da sujeição à ideologia da classe dominante,

tudo isto resultante, igualmente, da condição proletária.

Coube a Lenin o mérito histórico de ter combinado estes elementos dispersos para formular uma teoria coerente da formação da consciência de classe proletária, teoria que constitui o alicerce da sua teoria de organização. Muitos dos mal-entendidos formulados a respeito desta teoria de organização e muitos dos processos de intenção imputados a Lenin ao longo de todo o século XX provêm da recusa em compreender este ponto de partida teórico. É certo que, quando se fala de uma teoria leninista de organização, tende-se a fazer referência exclusivamente à brochura Que Fazer? e a reconverter mais de um quarto de século de atividade incansável no domínio da organização unicamente aos princípios enunciados nesta obra. Na medida em que não se veja em Lenin um Maquiavel hipócrita, que passa deliberadamente em silêncio uma parte das suas intenções sempre que “a conjuntura é desfavorável" na medida em que se lhe reconheça o mínimo de boa-fé e de coesão ideológica, sem as quais a discussão das suas ideias perde todo o sentido, esta tentativa simplificadora torna-se evidentemente infundada. Há na obra de Lenin uma constância de certos temas-chaves que se encontram expostos da maneira mais clara e mais convincente em Que Fazer? Mas à medida que a sua experiência se enriqueceu — antes de mais a experiência das lutas revolucionárias do proletariado russo de 1905, 1906 e 1917, e numa medida não negligenciável, a experiência do movimento operário internacional durante e após a 1ª Guerra Mundial — Lenin integra na sua teoria de organização uma série de elementos suplementares, que encontraremos

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elaborados sobretudo nos escritos sobre a falência da Social-Democracia em 1914-1916, em O Estado e a Revolução e noutros escritos fundamentais de 1917, nos documentos dos primeiros congressos da Internacional Comunista e em “O Esquerdismo: doença infantil do comunismo”. É o conjunto destes elementos agrupados em torno das teses fundamentais de Que Fazer? e corrigindo-as em certos aspectos, que constitui a teoria leninista neste domínio, e não um momento desta, limitado no tempo.

Outra observação preliminar refere-se à tentativa de muitos críticos recusarem a teoria leninista de organização com base nas práticas burocráticas da URSS pós-leninista. Trata-se dum manifesto erro metodológico.

Certamente que a unidade da teoria e da prática de que se reclamam os marxistas — e que Lenin teria sido o primeiro a assumir por sua própria conta — permite confrontar, constantemente, as teorias com os seus resultados práticos. Mas ela exige que se demonstre que tais resultados derivam da teoria — e não de fatores diferentes, ou até de teorias opostas. Condenar um manual de cirurgia porque um cirurgião falhou uma operação depois de ter feito os seus estudos com base nesse manual não é um procedimento científico muito sério. É preciso ainda demonstrar que foi a aplicação das teorias expostas no manual que causou a morte do paciente — e não um dos mil fatores diferentes, independentes do teórico, que podem influir no desenrolar da intervenção cirúrgica, ou como consequência duma recusa deliberada em seguir o ensinamento recebido.

Por fim, é necessário distinguir o que, na teoria leninista de organização possui um valor

universal, quer dizer, o que se aplica ao conjunto da época da crise geral do capitalismo, e deriva assim do conjunto das características fundamentais da sociedade burguesa, da produção capitalista e da natureza de classe do proletariado — e o que não é senão acidental, derivando de condições específicas do tempo e do espaço. Só para dar um exemplo: quantas vezes não se citou a passagem de Que Fazer? contra a eleição dos comitês de partido, e a favor da sua designação pelo Centro, como prova das atitudes visceralmente “antidemocráticas” de Lenin? Esquecem-se de acrescentar que Lenin justifica estas proposições exclusivamente pelas condições difíceis de clandestinidade nas quais se encontrava o jovem Partido Social-Democrata Operário Russo; que a brochura Que Fazer? proclama ao mesmo tempo a necessidade da eleição e da maior divulgação de todos os comitês e de todos os mandatários do Partido, desde que esteja assegurado o mínimo de liberdades democráticas e que as Teses do II Congresso da Internacional Comunista reafirmam o princípio da elegibilidade de todos os comitês, abrindo de novo explicitamente, exceções, para as condições de clandestinidade extrema.

2. A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária parte da distinção, que é essencial para o marxismo, entre a classe em si e a classe para si, que o jovem Marx tinha já estabelecido em A Miséria da Filosofia. Desta distinção decorrem o conceito da existência objetiva das classes sociais, independentemente do seu nível de consciência, e o conceito de luta de classes objetiva, independentemente do nível de auto-compreensão dos interesses históricos das classes em presença. Estes dois conceitos de

classes objetiva, e de luta de classes objetiva, são indispensáveis para a coesão interna do materialismo histórico e para se compreender a famosa definição do Manifesto Comunista: “(...) Toda a história da humanidade é a história da luta de classes.”

É evidente que os escravos da Antiguidade e que os servos da Idade Média tinham ainda muito menos consciência dos seus interesses históricos de classe que os trabalhadores britânicos ou americanos de hoje. Negar o caráter de luta de classes aos grandes afrontamentos entre o Capital e o Trabalho, às grandes ações de classe do proletariado como, por exemplo, a greve geral italiana de 14 de Julho de 1948 ou as greves gerais belgas de 1950 e de 1960-1961, sob o pretexto de que a consciência dos proletários empenhados nestas batalhas não estava à altura das exigências da história, ou que estes se batiam por objetivos políticos que não saíam do domínio da democracia burguesa, é enterrar este conceito de classe objetiva e de luta de classes objetiva, e por um ponto de interrogação sobre todo o materialismo histórico. Não seria já a existência social que determinaria a consciência, mas a consciência - e só ela - que permitiria ajuizar da realidade de uma luta social que implica milhões de indivíduos. Mas, assim como a teoria leninista de organização nega os desvios deste subjetivismo extremo, também se opõe resolutamente ao objetivismo não menos mecânico que, sob o pretexto de que a luta de classes é para Marx o resultado inevitável da existência da sociedade capitalista e dos antagonismos que a dilaceram, vê na consciência o reflexo automático da existência social, e apaga assim a particularidade essencial da luta de classe proletária, aquela que a

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distingue de qualquer luta de classe do passado, a saber: a obrigação em que se encontra a classe operária de substituir uma sociedade e uma economia regidas por leis cegas e objetivas pela construção deliberada de uma sociedade e de uma economia novas e regidas pela direção consciente dos produtores associados.

Uma vez que a construção do socialismo não pode ser o resultado automático nem da luta de classes no seio da sociedade burguesa, nem da simples libertação dos elementos da nova sociedade, presentes no seio da sociedade antiga, mas de uma organização consciente dos produtores, o nível de consciência desses produtores determinará, numa medida apreciável, nas possibilidades de sucesso do empreendimento. Por outras palavras: da distinção estabelecida por Marx entre o conceito de classe em si e o de classe para si, Lenin deduziu a distinção do conceito de luta de classe elementar — resultado espontâneo, inevitável, das contradições de classe que o próprio modo de produção capitalista introduziu no seio da sociedade burguesa — e da luta de classe revolucionária, que é a única que permite transformar a primeira num assalto vitorioso contra a economia capitalista e o Estado burguês, e cujo êxito depende essencialmente do nível de consciência, de organização e de direção do proletariado.

Certamente, a crítica de “voluntarismo” tantas vezes dirigida a Lenin é injustificada porque, na sua teoria, a luta de classe revolucionária não é nunca separada, mecanicamente, da luta de classe elementar. Ela não pode ser senão o produto desta, em certas condições históricas objetivas, claramente delimitadas. Contrariamente aos populistas, Lenin jamais acreditou que a simples “vontade

revolucionária” ou “educação revolucionária” pudessem produzir uma revolução vitoriosa nas condições do czarismo. Sempre se preocupou em precisar que esta “vontade” e esta “educação” deviam partir da luta de classe elementar de uma classe social específica, o proletariado, ao qual o desenvolvimento do capitalismo na Rússia ia atribuir capacidades de luta e de organização de que não dispunha qualquer outra classe social da Rússia pré-capitalista. Nunca se esqueceu também de precisar que só em condições históricas bem determinadas — condições que geram periodicamente crises pré-revolucionárias, devido às contradições acumuladas no seio da sociedade russa sob o czarismo — o esforço de transformar a luta de classe elementar em luta de classe revolucionária podia dar os seus frutos.

Na ausência destas premissas — as únicas que permitem explicar de que modo a luta de classe elementar pode produzir uma “classe em si”, pode produzir a consciência de classe proletária — a obra de uma vanguarda revolucionária não podia ter sucesso. Será interessante examinar os fundamentos socioeconômicos destas premissas, no quadro do materialismo histórico; voltaremos mais adiante a isso. Mas retenhamos, de momento, apenas isto: o que distingue a teoria leninista de organização de outras teorias, mecanicistas ou voluntaristas, não é o fato de negar as ligações evidentes entre luta de classe elementar do proletariado e luta de classe revolucionária, nem de contestar que a primeira constitui a pré-condição da segunda (que uma maior amplitude da primeira não pode senão facilitar a eclosão da segunda). O que a distingue, é que ela contesta ligações automáticas e espontâneas entre a primeira e a segunda, prevê que a

segunda não derivará da primeira se, às condições objetivas que presidem à sua eclosão, não se juntarem uma série de condições subjetivas que constituem o seu corolário fatal. É aí que encontramos todo o aprofundamento da teoria marxista da formação da consciência de classe proletária efetuada por Lenin, através da sua teoria de organização.

3. O nível preciso de consciência do proletariado não é nem o produto automático do seu lugar no processo de produção, nem também, o produto automático da sua experiência (e, portanto, da amplitude das suas lutas passadas e presentes). Esse nível resulta dum conjunto de fatores muito mais complexos, e só a sua interação permite explicar, em última análise, por que razão, numa época determinada, num país determinado, este nível é aquele que é.

A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária começa por explicar que essa formação representa um processo desigual e descontínuo. Esse processo desigual e descontínuo de formação da consciência de classe proletária é, em primeiro lugar, o reflexo do processo histórico desigual e descontínuo da formação do próprio proletariado.

O conjunto dos operários assalariados, tal como aparecem num dado momento, num determinado país, não foi condenado; no mesmo momento, e nas mesmas circunstâncias a vender a sua força de trabalho. Uns são proletários industriais, filhos de proletários industriais, desde há várias gerações. Outros, acabaram de ser arrancados à sua aldeia natal e à agricultura ancestral. Uns, estão marcados

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pela vida e disciplinas coletivas da grande fábrica. Outros, sofrem a influência corporativa da pequena empresa e do trabalho semi-artesanal. Uns, estão impregnados da civilização dos grandes centros urbanos, onde a vida coletiva fora da fábrica prolonga muito naturalmente os impulsos solitários derivados do próprio trabalho industrial. Outros, sofrem o duplo efeito alienante da condição proletária e do habitat semi-rural isolado e atomizante. Uns, são educados, desde a infância, nas organizações operárias. Outros, estão submetidos à influência ideológica da classe burguesa transmitida pelas organizações clericais ou “neutras”. A diversidade da consciência do proletariado, num determinado momento, é assim função duma estratificação que reflete as origens históricas e as diferentes condições de vida e trabalho das diversas camadas proletárias.

Às raízes objetivas dessa estratificação do proletariado juntam-se raízes subjetivas não menos importantes. Cada operário não sofrerá da mesma maneira e no mesmo grau a influência ideológica da classe dominante. Diferenças de experiência, de inteligência, de temperamento, de caráter, farão reagir diferentemente diferentes membros duma mesma classe social, submetida às mesmas forças de exploração e de opressão. Mais cedo ou mais tarde a grande maioria da classe empenhar-se-á na luta — mas o fato de uns o fazerem mais depressa que outros, e compreenderem melhor o alcance geral da luta, tem evidentemente, uma importância decisiva sobre o comportamento cotidiano de uns e de outros — sobretudo fora dos períodos de grandes lutas. Se a estratificação social do proletariado tem causas objetivas, a estratificação subjetiva determina em ligação com ela, ao caráter

descontínuo do desenvolvimento da consciência de classe. Este resulta por seu lado de uma característica fundamental da sociedade capitalista e da condição proletária, que é preciso lembrar a este propósito.

A classe operária sofre a exploração capitalista não em função duma qualquer prévia escolha ideológica, mas em função duma obrigação econômica inevitável à qual não pode escapar, em condições “normais”. Ela não pode deixar de trabalhar permanentemente, sem se ver condenada a morrer de fome (nos países neocapitalistas, de legislação social “generosa”, as indenizações de desemprego são impiedosamente suprimidas passado um certo tempo, se as autoridades burguesas chegarem à conclusão de que “o rapaz não quer mas é trabalhar”). Quer dizer: no seu conjunto, a classe operária não pode estar permanentemente em luta e, fora dos períodos de luta revolucionárias que põem na ordem do dia o derrubamento do regime capitalista, toda a luta de classe neste regime desemboca inevitavelmente numa “reprivatização” parcial da classe, uma vez terminado o combate. Só os elementos mais conscientes, os mais enérgicos, os mais obstinados, resistirão a esta tendência em voltar à “luta pela existência”, à “vida privada”, que resulta da própria estrutura da sociedade e da economia capitalistas.

Esta mesma estrutura objetiva reflete-se, igualmente, através de uma estrutura mental, ideológica, por uma tendência à interiorização e à aceitação cotidiana das relações de produção capitalista. Até os operários mais “refratários” compram pão, pagam rendas e impostos e reproduzem assim, diariamente, as relações

mercantis que constituem o fundamento do modo de produção capitalista, sem se aperceberem disso. E travaram ao longo de decênios, lutas de classe ferozes, inclusivamente lutas políticas (como as dos Cartistas britânicos) inclusive insurreições, (como a dos operários de Lyon), sem por isso compreenderem que o capitalismo seria impossível sem a generalização das relações mercantis, sem a transformação da força de trabalho em mercadoria, e dos meios de produção em capital.

É indispensável um esforço de informação e formação teórica para desnudar todos os segredos e todos os mistérios da exploração capitalista. Este esforço, por definição, pode ser individual (ou no melhor dos casos, empreendido por grupos restritos de indivíduos); não pode ser o produto imediato da experiência. Ora, a grande massa só aprende pela experiência. Chegada ao seu estádio supremo, o da elaboração e da assimilação da teoria científica, a formação da consciência de classe do proletariado torna-se portanto, inevitavelmente, um processo individualizado e individualizante (isto é, aliás, um dos mecanismos essenciais pelos quais o operário alienado e desumanizado pode começar a conquistar uma individualidade independente. Mas isto é outra história). Torna-se, pela mesma razão, um processo de diferenciação no seio da classe operária.

4. O conceito leninista da consciência de classe proletária levado ao seu mais alto nível apoia-se, também, no papel relativamente autônomo da teoria marxista no processo histórico. Implica, por outras palavras, a impossibilidade de aceder a uma consciência global da condição

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proletária e das condições da sua superação — a uma consciência global do capitalismo e do socialismo — numa base puramente experimental, empírica, pragmática.

A experiência dos trabalhadores e de alguns grupos de trabalhadores é, forçosamente, uma experiência fragmentária e fragmentada da realidade social, limitada pelo horizonte preciso no qual se desenrola a sua existência: algumas empresas, alguns bairros, algumas cidades. As lutas que partem dessa experiência imediata são por esse fato marcadas pelo selo duma consciência parcelarizada que reflete — mesmo que se tente negá-lo — o trabalho parcelarizado, que é característico do proletariado, com o seu corolário inevitável de reificação, de alienação e de “falsa consciência”.

O caráter, inevitavelmente corporativista, destas lutas implica que a consciência de classe elementar, que resulta das lutas de classe elementares comporta numerosos aspectos que estão em contradição com uma luta de classe no sentido profundo e histórico do termo. Pois esta consciência parcelarizada reproduz divisões no seio do proletariado, que resultam das condições da própria produção capitalista e que a burguesia se esforça por manter a todo o custo. O proletariado não se torna uma classe para si — não se “constitui em classe”, para retomar a fórmula de Marx — senão na medida em que esses fatores de divisão setorial, corporativista, localista, regionalista, nacionalista, racista, cedam o passo à consciência unificadora dos interesses comuns a todos os proletários, independentemente das particularidades de profissão, de ocupação, de qualificação, de habitat, de raça, de religião, ou de nacionalidade.

Mas se, numa certa etapa do seu desenvolvimento, o modo de produção capitalista favorece, incontestavelmente, a eclosão de lutas unificadores e gerais da classe operária, vê-se claramente que essas lutas não chegam para substituir a consciência fragmentária e parcelarizada por uma consciência global, totalizante, de todas as contradições capitalistas e de todas as condições de vitória do socialismo. Independentemente dos fatores acima mencionados, que entravam a formação duma tal consciência globalizante, há o simples fato de que essas lutas generalizadas não são mais que momentos “pontuais” da existência operária, que só se produzem uma ou duas vezes durante a vida de cada geração operária (e em certas gerações nem sequer uma única vez confrontar a Alemanha entre 1933 e 1968!). Nestas condições, a origem puramente empírica duma tal consciência de massa, baseada naquilo que foi efetivamente vivido, torna os fatores que determinam o caráter fragmentário da consciência operária infinitamente mais poderosos que os fatores que operam em sentido contrário.

Uma das ideias-mestras de Que Fazer?, que conserva hoje todo o seu valor universal como no momento em que esta obra foi redigida, é que o proletariado não pode — aceder a uma consciência global da realidade capitalista — da sua própria existência — senão através duma prática social globalizante, isto é, através duma prática política. Mais exatamente: que só pode aceder a esta consciência de classe, levada à sua mais alta expressão, aquela minoria da classe operária disposta a (e capaz de prosseguir uma atividade política permanente mesmo nos períodos de recuo do movimento de massa, mesmo nas fases de “reprivatização” da

maioria dos trabalhadores, mesmo nas fases de ascenso da influência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa no seio da classe operária. Eis o fundamento materialista da necessidade dum partido de vanguarda, proclamado por Lenin.

A maneira como Lenin privilegiou, deliberadamente, esta práxis política que traz constantemente ao de cima todos os aspectos da realidade capitalista, oposta à práxis trade-unionista (“economicista”) que se contenta em agitar os trabalhadores em torno da exploração e da opressão imediatas, sofridas na sua própria empresa, bairro, cidade, (e quando muito: região, país) está na base de inúmeros mal-entendidos e interpretações mal intencionadas. Os fundamentos teóricos desta concepção são contudo, manifestos. O que Lenin contesta — e o que contestaram antes dele Marx e Engels, salvo talvez em algumas frases das suas obras de juventude, e mesmo estas isoladas em geral do seu contexto — é que a acumulação gradual e descontínua da experiência imediata conduz “no fim de contas” a reproduzir uma análise teórica, que somente um esforço particular tinha podido produzir inicialmente (evidentemente num contexto histórico determinado, em última análise, pela existência prévia da sociedade burguesa e da luta de classe proletária). Cem greves por reivindicações imediatas, mesmo que travadas com o maior ardor do mundo, não levarão necessariamente a uma consciência de classe globalizante, socialista. Basta estudar a experiência das lutas de classe na Grã-Bretanha durante a segunda metade do século XIX, a experiência das lutas de classe nos Estados Unidos durante o período 1940-1970, para nos apercebermos disso, imediatamente.

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Somente uma atividade que ultrapasse as lutas “economicistas” pode, em definitivo, conduzir a uma consciência que ultrapasse o trade-unionismo. Dificilmente se podem aceitar as premissas da dialética materialista, da teoria marxista do conhecimento, e contestar a razão de ser desta tese de Lenin. A necessidade de um partido operário de vanguarda decorre, portanto, da necessidade de desenvolver permanentemente tal atividade, e da impossibilidade em que se encontra a massa operária no seu conjunto de a desenvolver de maneira contínua em regime capitalista, em função da sua própria estratificação objetiva e dos poderosos obstáculos subjetivos que impedem uma acumulação constante, gradual, contínua, da consciência de classe no seu seio.

O partido de vanguarda funciona assim, objetivamente, como a memória coletiva da classe operária, a qual impede que os conhecimentos acumulados durante as fases de lutas generalizadas se percam nas inevitáveis fases consecutivas de refluxo dessas lutas, a qual assegura a continuidade da acumulação de consciência nas condições de descontinuidade da atividade política das massas.

5. Assim, o conceito de partido de vanguarda reconduz-nos ao da periodicidade das lutas de classe generalizadas, do caráter cíclico das grandes explosões operárias. Descobrimos, assim, um fundamento materialista suplementar da teoria leninista de organização. Porque a organização separada da vanguarda operária é função das tarefas a cumprir. Ela é um instrumento de trabalho destinado a um fim preciso: transformar as explosões operárias generalizadas, em assaltos vitoriosos contra a

economia capitalista e o Estado burguês; derrubar com sucesso o sistema capitalista e edificar um Estado operário — a ditadura do proletariado — que prepara, com êxito, a construção duma sociedade socialista.

A organização de vanguarda, separada das massas, não é o único modelo de organização operária possível. Ela é função duma perspectiva histórica precisa: a da inevitabilidade das explosões revolucionárias a médio ou longo prazo, que não se transformarão em revoluções vitoriosas senão graças à atividade da vanguarda organizada. A margem desta atualidade da revolução, a organização separada da vanguarda apenas se justifica em função de objetivos puramente ideológicos, que correm o risco de degenerar em sectarismo. Sempre que as únicas lutas previsíveis forem lutas parciais, apenas é possível para as largas massas a acumulação gradual de experiências, e o único papel mediador que a vanguarda poderia desempenhar seria o da transmissão dos conhecimentos pela propaganda e pela educação — um papel que não justifica uma organização separada e que pode ser realizada no seio das organizações de massa, com a condição que elas respeitem um mínimo de democracia interna.

É preciso sublinhar a este propósito, que antes de 1914, Lenin apenas tinha uma visão precisa da atualidade da revolução para a Rússia (e alguns outros países da Europa oriental). Em função desta perspectiva, absteve-se de preconizar a organização separada da vanguarda em relação aos partidos sociais-democratas de massa antes de 4 de Agosto de 1914. Contentou-se em promover uma coordenação bastante frouxa entre as diversas correntes de esquerda, no seio da 2ª

Internacional, sobretudo quando das discussões que estalaram quanto à atitude a adotar em relação à guerra imperialista que se anunciava. Só quando o deflagrar desta guerra o convenceu de que o sistema capitalista mundial passava por uma fase histórica de crise geral, que colocava a revolução na ordem do dia num grande número de países, só nessa altura, estendeu o princípio da organização separada da vanguarda ao conjunto do globo e se pronunciou pela criação da Internacional Comunista.

O caráter cíclico das explosões de grandes lutas do conjunto do proletariado, que são potencialmente revolucionárias, deriva da complexidade das circunstâncias necessárias para abalar profundamente a sociedade burguesa e para conduzir os trabalhadores a ultrapassarem o estádio das lutas pelas reivindicações imediatas. Só excepcionalmente o conjunto dos fatores necessários se encontrarão reunidos, quer os fatores objetivos (crise profunda das relações de produção capitalistas) quer os subjetivos (desunião e paralisia crescentes das classes dominantes; enfraquecimento do aparelho de repressão; descontentamento crescente das massas laboriosas atingindo o nível duma cólera surda; sentimento crescente de que os motivos de descontentamento não podem ser sanados pela via das reformas graduais e de reajustamentos “legais”, antes exigem urna ação direta; uma confiança crescente das massas na sua própria força, quer dizer, na sua capacidade de desencadear tal ação, etc.). É evidente, que atendendo às tendências profundas à interiorização das relações capitalistas, e à reprivatização duma massa de operários, após as lutas parciais, tendências essa inerentes ao

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próprio modo de produção capitalista, o concurso de circunstâncias que torna a situação madura para as explosões revolucionárias, ou potencialmente revolucionárias, tem de ser forçosamente excepcional. Pelas mesmas razões — às quais se alia neste caso o peso da derrota e do ceticismo que a engendra — uma explosão abortada, que não atingiu o seu objetivo, não pode ser seguida, a breve prazo, por uma outra vaga ascendente de lutas generalizadas, mas sim por um declínio da combatividade das massas, até que um novo conjunto de condições favoráveis desencadeie um novo ascenso. Falamos aqui de “explosões” não no sentido de acontecimentos isolados, mas de fases da luta de classes radicalizando-se e generalizando-se progressivamente, em oposição a outras fases de lutas dispersas, reduzidas e em volta de objetivos unicamente imediatos (não podemos aqui tratar das relações entre o ciclo econômico e o ciclo da luta de classes, mas indicaremos somente de passagem que estas relações não são as de uma relação mecânica e diretamente causal).

O papel que a organização de vanguarda tem a cumprir em relação às explosões periódicas de lutas generalizadas deve ser examinado simultaneamente pelas fases preparatórias das lutas potencialmente revolucionárias e pelas fases de lutas generalizadas propriamente ditas. Trata-se dum duplo aspecto da relação dialética “vanguarda/massas” que estão por elucidar. Mas a própria natureza da revolução socialista, e da tomada do poder pela destruição do aparelho de Estado burguês implica a necessidade duma ação conscientemente centralizadora de lutas parciais, mesmo que tenham uma grande amplitude. Se a sociedade burguesa pode

efetivamente começar a desintegrar-se na periferia, nas fases de crise revolucionária agudas, esta desintegração nunca pode levar à dissolução automática do Estado burguês. Este tem de ser conscientemente destruído. Sempre que esta destruição não se efetiva, um processo contra-revolucionário pode ser encetado com êxito, mesmo por forças numericamente restritas, opondo-se a massas muito numerosas. O papel desempenhado pelos restos do exército imperial durante as semanas decisivas de Novembro 1918 - Março 1919 na Alemanha é disso a melhor ilustração, com as mais trágicas consequências históricas.

6. A relação entre a vanguarda e as massas em período não-revolucionário é antes de mais uma relação pedagógica de mediação. A organização de vanguarda não funciona só como a memória coletiva da classe, mas esforça-se, constantemente, por comunicar os conhecimentos acumulados, graças às lutas e às experiências passadas, ao maior número possível de proletários.

Quando falamos de processo pedagógico, não esquecemos, evidentemente, o caráter dialético desse processo, no qual não existe uma verdade acabada que é transmitida de maneira passiva a uma multidão que se supõe ignorante, mas antes um metabolismo de experiências, um fluxo e refluxo constante de impressões e de ideias, entre a massa menos politizada e a vanguarda organizada. Só quando este fluxo é firmemente estabelecido nos dois sentidos a vanguarda terá superado, definitivamente, o risco de se tornar uma seita ou uma capela, e desempenhará verdadeiramente o papel de

memória e de acumulador de experiências coletivas de toda a classe.

A mediação entre o programa, resumindo todos os ensinamentos das lutas passadas e a sua generalização teórica, e às massas, cujas preocupações permanecem circunscritas em volta de objetivos imediatos, não pode fazer-se, exclusivamente, através duma pedagogia literária ainda que Lenin tenha sublinhado, justamente, que o que separa o revolucionário do reformista ou do centrista, é que o revolucionário prossegue a propaganda revolucionária e a preparação da revolução mesmo nas fases não-revolucionárias. Esta mediação exige, igualmente, uma forma específica de ação. O “grande plano estratégico” de Lenin contido em Que Fazer? que consiste em transformar o partido de vanguarda em confluente e estimulante de todos os movimentos de protesto e de rebelião contra o regime estabelecido que não sejam objetivamente reacionários, foi mais tarde estendido por ele para o conceito de reivindicações transitórias, retomado por Trotsky no seu Programa de Transição, em 1938.

A estratégia das reivindicações transitórias implica a elaboração de reivindicações que, embora partindo das preocupações imediatas das massas, não são realizáveis e assimiláveis no quadro do regime capitalista. Sempre que se tornam eixos de ações generalizadas da classe operária, as reivindicações transitórias tendem, portanto, a quebrar os quadros da economia capitalista e do Estado burguês. Só quando as massas têm imediatamente tais objetivos para as suas ações, é que estas poderão, dificilmente, ser reabsorvidas pelo regime, pela concessão de reformas. Ora elas só têm tais objetivos no

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momento duma greve geral, se tiverem sido sistematicamente preparadas anteriormente, tanto pela propaganda como pelas “ações exemplares”, e pela formação no seu seio de quadros operários que encarnem todo este processo de mediação e que o transmitam quotidianamente aos seus companheiros de trabalho.

Seria acreditar em milhares de milagres supor a massa capaz de encontrar, por instinto, no momento duma grande explosão revolucionária, as reivindicações necessárias para fazer triunfar a revolução e capaz de encontrar a resposta às mil e uma manobras reformistas que permitiram o estrangulamento de todas as explosões revolucionárias na Europa Ocidental apesar das relações de força momentaneamente bastante favoráveis à revolução.

A centralização do partido, sobre a qual Lenin insistiu fortemente no debate em volta de Que Fazer? é antes de mais uma centralização política, a compreensão do fato de que a massa operária não acederá à consciência de classe, ao seu nível mais elevado, a não ser com a condição de ultrapassar o horizonte estreito das experiências nascidas de lutas parciais na condição, por outras palavras, de centralizar as suas experiências. O aspecto puramente organizacional desta centralização é secundário, no raciocínio de Lenin, e muito influenciado ainda pelas condições específicas de ilegalidade em que se construiu a social-democracia russa.

A fraqueza da argumentação de Rosa Luxemburgo contra Lenin, é que ela concentra o seu fogo sobre o aspecto organizacional da centralização leninista, menosprezando largamente o seu aspecto político. Fazendo isto,

é obrigada a sugerir uma teoria da formação da consciência de classe proletária diferente da de Lenin, muito mais simplista e simultaneamente muito mais otimista, que considera que esta consciência de classe só pode ser função da luta e que a luta é suficiente para lhe assegurar a formação. A experiência histórica, e nomeadamente a da revolução Alemã, nega esta tese. Nem sequer as lutas mais amplas, mais tumultuosas, mais longas (pense-se no período de agitação e de lutas de massa quase ininterruptas de 1918 a 1923) bastaram para assegurar por si próprias um nível de consciência suficientemente elevado às massas operárias alemães que lhes permitisse levar a cabo uma revolução vitoriosa. Como estas lutas estão condenadas ao declínio periódico, qualquer teoria que vê a formação desta consciência como simples função duma experiência de luta descontínua, sem papel acumulador, centralizador de experiências, e memória comitiva do partido de vanguarda, condena esta formação a um trágico trabalho de Sísifo.

Para prestar justiça a Rosa Luxemburgo, é necessário acrescentar que desde 1914, e sobretudo desde a eclosão da revolução Alemã, ela compreendeu perfeitamente que a diferenciação ideológica do proletariado não seria automaticamente ultrapassada pela amplitude das próprias lutas. É por isso que preconizou a organização autônoma da vanguarda operária, conceito que inclui nos seus escritos programáticos tais como “O Que quer a Liga Spartacus?”. Pode-se dizer, portanto, que se tornou igualmente leninista, no final da sua vida.

7. Quando examinamos a relação “vanguarda/massas” em período revolucionário, o quadro muda e as insuficiências dos debates de 1902-1903 aparecem claramente. É sobretudo a propósito destas experiências que Lenin fez importantes correções à sua teoria de organização, depois de 1905, de agosto de 1914 e sobretudo em 1917.

A experiência histórica demonstrou, com efeito, que a existência dum Partido Social-Democrata organizado (para retomar a terminologia de Lenin dos anos 1902-1903) não é de modo nenhum garantia do papel objetivo que desempenhará na crise revolucionária. A história ofereceu-nos o exemplo de numerosos partidos que tendo, durante anos, apregoado as suas convicções marxistas, no momento duma crise revolucionária não só não se esforçaram por conduzir esta até à conquista do poder pelo proletariado, como ainda refrearam por todos os meios o ardor revolucionário desse mesmo proletariado, ou mesmo tomaram a iniciativa de organizar, deliberadamente, a vitória da contra-revolução. O comportamento da social-democracia alemã durante a crise revolucionária em 1918-1919 é disso o exemplo mais típico — mas não o único. A chegada ao poder de Hitler não é mais que o resultado final da derrota da revolução Alemã, derrota na qual a responsabilidade histórica dos Noske, Ebert, Scheidemann foi evidente.

Rosa Luxemburgo e Trotsky pressentiram tal eventualidade mais cedo que Lenin, nos anos 1903-1906. Por outras palavras, compreenderam que as próprias massas operárias que, nas condições de funcionamento “normal” do capitalismo, eram fortemente influenciadas pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa, podiam, em momentos de

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crise revolucionária, dar provas de uma iniciativa, de uma combatividade, de uma energia revolucionária que ultrapassava de longe as dos militantes educados durante anos na teoria marxista.

Quando examinamos o balanço histórico das lutas de classe desde 1914, encontramos esta lição não uma vez ou duas, mas literalmente dezenas de vezes. Enumerar toda a lista de explosões revolucionárias em que os partidos operários foram ultrapassados pela atividade revolucionária das massas, é enumerar, praticamente, todas as crises revolucionárias que sucederam nos países imperialistas — e também de uma série de crises nos países coloniais e semi-coloniais.

Quererá isto dizer que a história demonstrou que a iniciativa espontânea das massas (inclusivamente as massas não organizadas) é condição suficiente de vitórias revolucionárias e que basta eliminar os “travões organizados” para assegurar a queda do capitalismo? De modo nenhum. Porque o balanço histórico é duplo a este respeito. Por um lado, as massas revelaram-se em numerosos momentos, “mais revolucionárias” que os partidos. Mas essas mesmas massas mostraram-se igualmente incapazes de assegurar por elas próprias o derrubamento do capitalismo.

Na ausência de uma vanguarda organizada que conquiste a hegemonia política no seu seio e que concentre a sua energia em objetivos precisos — destruição do aparelho de Estado burguês; tomar nas mãos os meios de produção e a sua organização num modo de produção socializado; construção de um novo poder — os seus mais corajosos assaltos, as suas mais audaciosas vitórias, permanecerão sem

futuro. O exemplo mais trágico e mais convincente a este respeito foi fornecido pela experiência espanhola de Julho de 1936. Pode-se extrair uma série de conclusões, por conseguinte deste balanço histórico o que permite efetuar uma atualização da teoria leninista de organização — atualização essa que o próprio Lenin efetuou no decurso do período 1914-1921.

Antes de mais, é claro que a dialética “massas/partidos” complica-se e alarga-se, à luz do 4 de Agosto de 1914. Torna-se, assim uma dialética “massas-partidos não seguindo uma linha revolucionária-partidos revolucionários”. A existência de partidos não constitui por si só uma garantia contra a reabsorção da classe operária pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Pelo contrário, pode tornar-se o motor e o veículo desta reabsorção como foi o caso, primeiro, da Social-Democracia e, seguidamente, de uma série de PC de massa (em França, Itália, Grécia, etc.). Não se trata já de opor simples e mecanicamente a “organização” à “espontaneidade”, mas de examinar em que condições teóricas e práticas a organização eleva a consciência de classe do proletariado, estimula a sua hostilidade em relação à sociedade burguesa no seu conjunto, prepara a sua intervenção massiva nas crises revolucionárias, no sentido do seu aprofundamento e da sua generalização, e educa os seus próprios militantes (a vanguarda) para uma intervenção nas crises, com vista à sua transformação em revoluções socialistas vitoriosas.

Por outro lado, é claro que a amplitude da atividade das massas, no momento de crises revolucionárias, não permite confinar o processo histórico à única relação recíproca “partidos-massas não organizadas”. Toda a crise

revolucionária, mesmo num país mediamente industrializado, levou, quase sempre, até agora, à criação de formas de auto-organização das massas (Sovietes, conselhos operários), embriões do futuro poder proletário e instrumentos imediatos de uma dualidade de poder de fato. O aspecto profundamente revolucionário destes órgãos de autor-organização e de auto-governo das massas, é que eles abrangem precisamente o conjunto do proletariado e dos explorados, incluindo as camadas não organizadas ou inativas durante os períodos “calmos” ou de lutas de classe apenas parciais.

Lenin apreendeu a importância-chave do fenômeno dos Sovietes com um pouco de atraso relativamente a Trotsky, que via neles, desde 1906, a forma de organização geral da futura revolução russa vitoriosa, e a forma de organização universal das revoluções proletárias. Mas compreendeu-a a fundo — a não apenas de maneira “oportunista”, nos momentos revolucionários — como lhe reprovam críticos contemporâneos mal intencionados. E Lenin compreendeu melhor que Trotsky a dialética particular “Sovietes-partido revolucionário” que este último não assimilou a fundo senão em 1917: se é impossível uma revolução num país industrializado sem organização de tipo Soviético — o que não implica evidentemente que a terminologia seja por todo o lado a mesma — do conjunto do proletariado, é igualmente impossível uma revolução vitoriosa sem que no seio dos Sovietes uma vanguarda organizada conquiste a hegemonia política através de um trabalho de explicação de propaganda e de agitação incansável, sem a sua ação organizadora, centralizadora, sobre a imensa

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energia das massas libertadas no momento da crise revolucionária.

Este “papel dirigente do partido” não implica nem o conceito de partido único (que contradiz pelo contrário o conceito de organização soviética, pois esta, na medida em que deve ser a organização do conjunto dos trabalhadores, há de refletir inevitavelmente a diversidade dos níveis de consciência, de filiação ideológica e organizacional do próprio proletariado, quer dizer, implica a inevitável multiplicidade dos partidos operários e das tendências operárias), nem o de uma hegemonia adquirida por medidas administrativas ou repressivas. A história da revolução russa confirma-o: o emprego de tais medidas esteve sempre na proporção inversa da hegemonia política que detinha o partido bolchevique no seio do proletariado e das mais amplas massas. Durante todo o tempo em que essa hegemonia esteve garantida — adquirida pela superioridade da sua linha política e pela sua capacidade de convencer as massas desta — não teve de recorrer a nenhuma medida repressiva no seio da classe operária e da própria organização soviética (salvo medidas de auto-defesa contra aqueles que tinham, no sentido literal do termo, desencadeado a luta armada contra o poder dos Sovietes). Toda a medida administrativa e repressiva que foi levado a tomar no seio da classe operária resultou de um declínio prévio da sua influência política no seio de determinados sectores desta.

Podem-se procurar as causas deste declínio neste ou naquele erro político conjuntural cometido pelos dirigentes bolcheviques, em determinado momento preciso; o debate a este respeito, dura desde há meio século e não terminará tão cedo. Mas para

quem estude esta época histórica com um mínimo de sentido objetivo, é evidente que as razões essenciais do isolamento progressivo dos bolcheviques no seio das massas em 1920-1921 não residem neste ou naquele aspecto secundário da situação ou da política de Lenin, mas nas condições objetivas que determinavam, por seu turno, uma passividade crescente das massas. (Não extraímos daqui, evidentemente, a conclusão menchevique, segundo a qual mais teria valido “não tomar o poder num país atrasado”, nem a conclusão apologética para o estalinismo segundo a qual “o socialismo não se podia construir na Rússia senão com meios bárbaros, terroristas”. Tudo depende do grau relativo da atividade das massas; uma política correta do Partido poderia reformá-la, depois de 1923, poderosamente).

É aqui que se pode reconhecer quanto se enganam todos aqueles que, na esteira da Rosa Luxemburgo de 1903 — a de 1918 era já mais prudente! — acreditam ainda hoje que o recurso à atividade das massas é o único remédio histórico para os riscos de burocratização conservadora do partido. Pelo menos no caso da URSS a passividade crescente das massas precedeu (e numa larga medida determinou) a burocratização crescente do partido. E pode reconhecer-se a Lenin este mérito histórico se se comparar o grau de atividade das massas nos sovietes dirigidos politicamente pelos bolcheviques e a de outros sovietes, a duração do funcionamento real dos sovietes na Rússia com a do funcionamento de organismos de tipo soviético nos países onde os bolcheviques não foram nada hegemônicos no seio da classe operária, a existência e o “papel dominante” dum partido revolucionário de vanguarda de tipo leninista, não somente não podem ser

considerados como a antítese de uma organização autônoma das massas em organismos de tipo soviético, mas pelo contrário asseguram-lhe uma existência mais longa e um melhor e mais eficaz funcionamento.

8. É evidente, que Lenin subestimou no decurso do debate de 1902-1903, os perigos que para o movimento operário podiam surgir do fato de se constituir uma burocracia no seu seio. Concentrou, nesta época, o seu fogo sobre a intelligentsia pequeno-burguesa e os “trade-unionistas”, de horizontes curtos. Como Rosa Luxemburgo assimilou melhor a experiência da social-democracia alemã, que já nesta época era muito ambígua, pôde, melhor do que Lenin, pressentir que o perigo maior de conservadorismo e de adaptação ao status quo, não surgiria nem de uma nem de outros, mas do próprio aparelho social-democrata. Instalado nas organizações de massa e encostado às migalhas da “democracia burguesa”, este aparelho tinha na realidade já “realizado o socialismo por sua própria conta”. Ia adotar uma orientação fundamentalmente conservadora, racionalizada pela necessidade de “defender as conquistas feitas”. O revisionismo e o reformismo encontram aí as suas raízes materiais e sociais bem como ideológicas. Esta “dialética das conquistas parciais” foi em seguida estendida pela burocracia stalinista à escala mundial.

À luz da experiência histórica, Lenin aprendeu muito melhor, a partir de 1914, o papel-chave que a burocracia das organizações operárias pode desempenhar na transformação destas, de instrumento para impulsionar revoluções socialistas, em instrumentos de

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defesa do status quo social. Na sua luta contra a social-democracia internacional, deu uma importância essencial à análise da sua burocratização. A partir de 1918, apreendeu, profundamente, o perigo de burocratização do primeiro Estado operário, e consagrou uma boa parte dos últimos anos da sua vida a um combate contra este perigo.

Ao fazê-lo, Lenin elevou aliás o problema do domínio ideológico e psicológico (“os hábitos burocráticos”, “os métodos burocráticos”, “a mentalidade burocrática”) ao nível social. Para ele a burocracia é uma camada social que defende interesses sociais determinados (essencialmente no domínio da retribuição, do modo de vida, dos rendimentos. É por isso que não é uma classe social, não ocupa um lugar particular e historicamente necessário no processo de produção, coisa que fizeram, pelo menos numa época determinada da sua história, todas as classes sociais). E desde 1918, transfere uma boa parte deste raciocínio para o domínio do Estado soviético e para a luta contra a deformação burocrática deste.

Brandiu-se contra Lenin o argumento de que o modelo de organização do partido que defendia teria facilitado o processo de burocratização na URSS. Como esta crítica lhe foi efetivamente dirigida desde 1902-1903, aparece com a auréola de análise profética. Respondemos anteriormente à objeção segundo a qual Lenin teria proposto um modelo de organização não-democrático. Porém, a questão do modelo de organização possível dos partidos operários merece uma análise mais detalhada.

Na medida em que se rejeite o clube de discussão ou a reunião informal e descontínua de indivíduos, a história forneceu-nos dois

modelos essenciais de organização dos partidos operários: modelo baseado na seleção individual de militantes, a partir do seu nível de consciência individual e da sua atividade; e o das secções baseadas na circunscrição eleitoral, agrupando todos aqueles que afirmam a sua adesão aos princípios socialistas. Estes dois modelos, um “restrito”, o outro “lato”, mostram bastante bem a divisão da social-democracia russa em “bolcheviques” e “mencheviques”.

Qual dos dois modelos se revelou mais democrático? Diremos à luz da experiência histórica, que o segundo se burocratizou mais rapidamente que o primeiro e que ao burocratizar-se, se reconverteu, aliás fundamentalmente, no segundo modelo.

Não é difícil compreender que o agrupamento de grande número de membros passivos — geralmente ausentes às reuniões — sem nível de consciência e “comprometimento” elevados, é bem mais facilmente manipulável por um aparelho ou por demagogos individuais, do que uma comunidade de ativistas comprometidos toda a sua vida na luta por uma mesma causa, que julga a eficácia de cada um à luz da contribuição que ele traz para a defesa desta causa. Quantos mais elementos passivos um partido “lato” tiver, mais fácil se torna a burocratização. Quanto mais um partido de vanguarda for composto exclusivamente de militantes ativos, maior é a garantia contra a burocratização. Foi, aliás afogando os elementos ativos e conscientes num grande número de aderentes passivos, que Stalin facilitou grandemente a burocratização do partido bolchevique, depois da morte de Lenin, que já exprimira tal receio no seu famoso Testamento.

O problema da burocratização do partido operário — fenômeno social facilitado ou entravado por um determinado modelo de organização, mas de modo nenhum causado por este — está estreitamente ligado ao da democracia operária, isto é, à possibilidade de controle dos membros sobre o aparelho, e da elaboração da linha política em função dos interesses de classe a defender (e não, tendo em vista interesses sectoriais, ou pior ainda, tendo em vista a auto-justificação, perigo que ameaça qualquer organização numa sociedade baseada na produção mercantil e na divisão social do trabalho). A este respeito, o balanço histórico é também claro. No tempo de Lenin, o partido bolchevique foi um partido vivo e democrático, atravessando periodicamente debates de tendência apaixonados, permitindo a expressão de opinião em desacordo com as da direção (ou da sua maioria) não excomungando nenhuma das posições oposicionistas, permitindo que a experiência resolvesse as divergências tácticas. Pode afirmar-se, sem cair em erro, que este partido foi mais democrático, e permitiu debates de tendência mais sistemáticos, do que qualquer partido operário importante na história — e certamente do que os partidos social-democratas.

É verdade que no momento em que foi maior o isolamento dos bolcheviques, no momento da introdução da NEP, Lenin propôs e conseguiu que se aprovasse a interdição das frações no partido. De resto, só propôs isso por razões conjunturais e como medida passageira, e nunca como questão de princípio. Pode pensar-se que esta decisão foi errada — e à luz da história pensamos que o foi efetivamente, porque permitiu a Stalin asfixiar

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progressivamente o direito de tendência, e deste modo toda a democracia no interior do partido.

Mas aqueles que citam triunfalmente este “pecado” de Lenin como a confirmação do seu “pecado original” pretensamente anti-democrático esquecem, com demasiada facilidade, que no próprio momento em que Lenin se comprometeu a favor da supressão do direito de fração, confirmou solenemente o direito do oposicionista Chliapnikov imprimir os seus pontos de vista oposicionistas e de os distribuir, pagos pelo partido, a todos os membros do partido, em centenas de milhares de exemplares: que nos mostrem um único partido social-democrata em que isto tenha sido praticado, não dizemos sistematicamente, mas mesmo, só ocasionalmente!

E até no X Congresso do PCR, em que foi tomada a decisão de proibir as frações, Lenin tornou a confirmar, não menos solenemente, o direito de tendência, opondo-se a uma emenda de Riazanov que quis impedir que se elegesse no futuro o comitê central segundo as plataformas de tendências. Se surgem divergências fundamentais, não se pode impedir que elas sejam resolvidas perante o conjunto do partido, exclamou ele (“Obras Completas”, tomo 32, página 267 da edição alemã, Dietz Verlag, Berlim 1961). Foi a partir do momento em que a burocracia impediu tais discussões, e este direito de tendência, que o partido cessou de ser o instrumento revolucionário forjado por Lenin. Um outro argumento tem ainda sido citado para justificar a “tendência burocrática inerente” às concepções bolcheviques de organização que o próprio Lenin se teve que opor ao seu próprio “aparelho” cada vez que esboçou uma viragem para o “movimento revolucionário de massas”,

principalmente em Abril de 1917. Aqueles que defendem esta concepção esquecem um pequeno detalhe: é que neste drama histórico não havia apenas três personagens principais: o herói “positivo” — as massas revolucionárias; o “traidor” — o aparelho central do partido; e Lenin, oscilando entre uns e outros. Havia ainda milhares de operários bolcheviques militantes de base. Foi o empenhamento resoluto destes trabalhadores de vanguarda que permitiu que as “Teses de Abril” de Lenin triunfassem tão rapidamente sobre a resistência da maioria do comitê central, no início da revolução russa. Foi a ausência desta camada mediadora decisiva que impediu Lenin de realizar o mesmo sucesso em 1922-1923, no decurso do seu “último combate” contra Stalin.

Eis-nos, portanto, chegados a uma categoria sociológica, em lugar de considerações psicológicas e puramente ideológicas. É esta categoria de trabalhadores de vanguarda, que encarnam a consciência de classe do proletariado, quase sós nas fases de recuo ou de estagnação do movimento de massas, em comunhão intima com a maioria da sua classe quando este mesmo movimento de massas atinge o seu nível mais elevado, que constitui o elo central da concepção leninista de organização.

Resumiremos esta concepção afirmando que ela consegue efetuar a união dos elementos de continuidade e de descontinuidade, de pedagogia e de aprendizagem permanente dos educadores, de centralização e de democracia, inerentes à luta proletária. Encarna, assim, a tradição humanista e revolucionária da história contemporânea.

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PARTE II

MOVIMENTO PROLETÁRIO REVOLUCIONÁRIO

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PARTE II – MOVIMENTO PROLETÁRIO REVOLUCIONÁRIO

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PARTE II – MOVIMENTO PROLETÁRIO REVOLUCIONÁRIO

Greve de Massas, Partido E Sindicatos (1906)

Escrito por Rosa Luxemburgo

Retirado de Textos escolhidos de Rosa Luxemburgo (org. Isabel Loureiro)

No ? m de dezembro de 1905, Rosa Luxemburgo, na época jornalista do Vorwärts (órgão central do SPD) e também membro da direção do Partido Social-Democrata da Polônia e Lituânia (SDKPiL), parte para Varsóvia a ? m de acompanhar de perto a revolução russa, que havia começado em janeiro desse ano (Varsóvia e uma parte da Polônia integravam o Império russo). Em março é presa com seu companheiro Leo Jogiches. Ameaçada de execução, é libertada no ? m de junho graças a uma ? ança paga pelo SPD. Obrigada pelas autoridades tsaristas a ? xar residência em Kuokkala, pequena cidade ? nlandesa perto de São Petersburgo, onde encontra os principais revolucionários russos, Lenin entre eles, Rosa redige Greve de massas, partido e sindicatos, texto que marca o início da ruptura coma direção da social-democracia alemã.

Que este seja um de seus escritos mais conhecidos e mais reeditados, não é por acaso. É aqui que ao analisar um processo político concreto, a revolução de 1905 na Rússia, Rosa dá sua contribuição original à teoria marxista. Ao fazer o balanço da revolução russa (tirando lições para o movimento operário em geral e para a social-democracia alemã em particular), ela mostra que na greve de massas o momento subjetivo, a consciência de classe, se articula com o momento objetivo da história, com as tendências do desenvolvimento capitalista. A greve de massas seria a perfeita tradução da dialética entre organização e espontaneidade, política e economia, ? cando o elemento criativo do lado da espontaneidade das massas. A experiência revolucionária direta fortaleceu nela a convicção de que as grandes transformações históricas não são fabricadas pelas organizações políticas – ainda que estas tenham um papel relevante a desempenhar – e de que a consciência de classe é antes criada na ação que produzida pela leitura de obras teóricas marxistas, ou de pan? etos revolucionários.

Não só Greve de massas, partido e sindicatos, como também os artigos poloneses dessa época expõem claramente a convicção de Rosa Luxemburgo de que a revolução só pode ser obra das próprias massas, nunca de grupos armados, nem de vanguardas intelectuais que se põem no lugar das massas. Contra todos os que querem “organizar” uma revolução, é evidente para ela que a “fabricação da revolução” (Revolutionsmacherei) leva à substituição das massas, não só no decorrer da revolução,mas também depois.

Essa ideia, que representa uma parte importante de sua ? loso? a política, também a encontramos em trabalhos posteriores, entre outros, A Revolução russa.”

Ao voltar para Berlim em setembro de 1906, Rosa passa a divulgar incansavelmente sua concepção de greve de massas, procurando ao mesmo tempo dar novo conteúdo ao papel que desempenha no SPD: não ser apenas crítica, mas também direção intelectual e política de uma esquerda revolucionária. É quando começa a tomar corpo a formação de uma ala esquerda independente, em divergência com o centro do partido, para o qual o marxismo era apenas a ideologia legitimadora do reformismo. Em setembro participa do Congresso do SPD em Mannheim, onde suas ideias sobre a greve de massas são rejeitadas. A partir dessa época, Rosa passa a ser vista como demasiado radical pela maioria do partido, cada vez mais afeito às ideias reformistas, e a ter cada vez mais di? culdade para publicar seus artigos nos jornais do SPD. Apesar desse isolamento político, ela é convidada, à guisa de compensação, a lecionar economia política e história econômica na escola de quadros do SPD, um cargo bem remunerado que ocupa, com algumas interrupções, até 1914. A partir desses cursos, escreve Introdução à economia política (publicada postumamente em 1925) e sua obra teórica mais importante, A acumulação do capital (publicada em 1913). Greve de massas, partido e sindicatos tem 8 capítulos; começamos com excertos do capítulo 2.

Isabel Loureiro

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[...] A revolução russa ensina-nos assim uma coisa: é que a greve de massas nem é “fabricada” arti? cialmente nem “decidida” ou “difundida” no éter imaterial e abstrato, é tão somente um fenômeno histórico resultante, num certo momento, de uma situação social a partir de uma necessidade histórica. […]

É tão difícil “propagar” a greve de massas como meio abstrato de luta, como “propagar” a revolução. A “revolução” e a “greve de massas” são conceitos que não representam mais do que a forma exterior da luta de classes e só têm sentido e conteúdo quando referidas a situações políticas bem determinadas. Empreender uma propaganda adequada à greve como forma de ação proletária, querer difundir essa “ideia” para com ela ganhar pouco a pouco a classe operária seria uma ocupação tão ociosa, tão vã e insípida como encetar uma campanha de propaganda em prol da ideia de revolução ou do combate nas barricadas. Se a greve se transformou agora num vivo centro de interesse para a classe operária alemã e internacional é porque ela representa uma nova forma de luta e, como tal, o sintoma correto de transformações interiores profundas nas relações entre as classes e nas condições da luta de classes. […]

3

[...] as greves de massas se apresentam na Rússia sob formas tão variadas que é absolutamente impossível falar de “a” greve de massas, de uma greve esquemática, abstrata. Não só cada

elemento da greve de massas, mas também a sua particular característica, segundo as cidades e as regiões, e principalmente o seu próprio caráter geral, se modificaram com frequência no decorrer da revolução. As greves conheceram na Rússia uma certa evolução histórica que ainda continua. Assim, quem queira falar de greve de massas na Rússia deve, antes de tudo, ter a sua história diante dos olhos. […]

Desde a primavera de 1905 até o pleno verão, assistiu-se, nesse gigantesco Império, ao nascimento de uma poderosa luta econômica de todo o proletariado contra o capital; a agitação alcança, no topo, as pro? ssões liberais e a pequena burguesia, empregados comerciais, bancários, engenheiros, atores, artistas, e penetra na base, conquistando os empregados domésticos, os agentes subalternos da polícia, e até as camadas do lumpemproletariado, estendendo-se simultaneamente aos campos, batendo mesmo à porta dos quartéis.

Eis o painel imenso e variado da batalha geral do trabalho contra o capital; vemos re? etir-se nele toda a complexidade do organismo social, da consciência política de cada categoria e de cada região; vemos desenvolver-se toda uma gama de conflitos, desde luta sindical, conduzida em boa e devida forma pelo bem treinado exército de elite do proletariado industrial, até a explosão de uma revolta anarquista de um punhado de operários agrícolas e ao levantamento confuso de uma guarnição militar, até a revolta discreta e distinta, de punhos de renda e colarinhos altos numa mesa de jogo, e aos protestos, tímidos e audaciosos, de policiais descontentes, secretamente reunidos num posto enfumaçado, escuro e sujo.

Os partidários das “batalhas ordenadas e disciplinadas” concebidas segundo um plano e um esquema, os que em particular querem sempre saber com antecedência como “será preciso fazer”, consideram que foi um “grave erro” retalhar a grande ação da greve política geral de janeiro de 1905 numa in? nidade de lutas econômicas, visto que isso conduziu, a seus olhos, a uma “paralisação” da ação e à sua transformação num “fogo de palha”. O próprio partido social-democrata russo que sem dúvida participou da revolução, mas não a “faz”, e é obrigado a aprender as leis da revolução ao longo do desenvolvimento da própria revolução, se encontrou desorientado por algum tempo com o re? uxo aparentemente estéril da primeira maré de greves gerais. Contudo, a história, que cometera esse “grande erro”, concluía assim um gigantesco trabalho revolucionário tão inevitável quanto incalculável nas suas consequências, sem se preocupar com as lições dos que a si mesmos se instituíram como mestres.

A brusca sublevação geral do proletariado em janeiro, desencadeada pelos acontecimentos de S. Petersburgo, era, na sua ação exterior, um ato político revolucionário, uma declaração de guerra ao absolutismo. Mas essa primeira luta geral e direta de classes provocou uma reação mais poderosa que a anterior, ao acordar, pela primeira vez, como um choque elétrico, o sentimento e a consciência de classe em milhões e milhões de homens. Esse despertar da consciência de classe imediatamente se manifesta do seguinte modo: uma multidão de milhões de proletários descobre de súbito, com um sentimento de acuidade insuportável, o caráter intolerável da sua existência social e econômica, do qual era escravo há decênios, sob o jugo do capitalismo.

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De repente, desencadeia-se uma sublevação geral e espontânea para sacudir esse jugo, para quebrar as algemas. Sob mil aspectos, os sofrimentos do proletariado moderno reavivam a recordação dessas feridas sempre sangrentas.

[...] tudo isso é bruscamente despertado pelo relâmpago de janeiro, lembra-se de seus direitos e procura febrilmente recuperar o tempo perdido. Na realidade, a luta econômica não constituía uma fragmentação, uma dispersão da ação, mas uma mudança de frente; a primeira batalha contra o absolutismo transforma-se rápida e naturalmente num ajuste de contas geral com o capitalismo, que,de acordo com sua natureza, assume a forma de con? itos parciais em favor dos salários. É falso dizer-se que a ação política de classe em janeiro foi destruída porque a greve geral se fragmentou em greves econômicas. É exatamente o contrário: uma vez esgotado o conteúdo possível da ação política, feito o balanço da situação e da fase em que a revolução se encontrava, esta fragmentou-se, ou antes, transformou-se em ação econômica.

De fato, que mais podia obter a greve geral de janeiro? É preciso ser inconsciente para esperar, de uma só vez, o esmagamento do absolutismo com uma só greve geral “prolongada”, segundo o modelo anarquista. É pelo proletariado que o absolutismo na Rússia tem de ser derrubado. Mas para tanto, o proletariado tem necessidade de um alto grau de educação política, de consciência de classe e organização. Não pode aprender todas essas coisas em brochuras ou em pan? etos; tal educação ele a adquirirá na escola política viva, na luta e pela luta, no decorrer da revolução em marcha. Aliás, o absolutismo não pode ser derrubado, seja quando for, com a exclusiva

ajuda de uma dose suficiente de “esforços” e “perseverança”. A queda do absolutismo não é mais que um sinal exterior da evolução interior das classes na sociedade russa. […]

O resultado mais precioso, porque permanente, nesse brusco ? uxo e re? uxo da revolução é seu peso intelectual: o crescimento intermitente do proletariado no plano intelectual e cultural é uma garantia absoluta do seu irresistível progresso futuro, tanto na luta econômica, quanto na luta política. Mas não é tudo: as próprias relações entre operários e patrões sofrem transformações; após a greve geral de janeiro e as greves seguintes de 1905, o princípio do capitalista senhor em sua casa é praticamente suprimido. Vimos constituir-se espontaneamente comitês operários, únicas instâncias que negociam com o patrão, nas maiores fábricas de todos os centros industriais mais importantes. E, por ? m, algo mais: as greves aparentemente caóticas e a ação revolucionária “desorganizada” que sucederam à greve geral de janeiro transformam-se no ponto de partida de um febril trabalho de organização. A história ri dos burocratas apaixonados por esquemas “pré-fabricados”, guardiões ciumentos da felicidade dos sindicatos. As sólidas organizações concebidas como fortalezas inexpugnáveis cuja existência tem de ser assegurada, antes de eventualmente se pensar na realização de uma hipotética greve de massas na Alemanha, são, ao contrário, fruto da própria greve de massas. E enquanto os ciumentos guardiões dos sindicatos alemães temem, antes de tudo, ver quebrar em mil pedaços essas organizações, como uma preciosa porcelana no meio do turbilhão revolucionário, a revolução russa apresenta-nos um quadro completamente diferente: o que emerge dos turbilhões e da tempestade, das chamas e das brasas das greves de massas, como

Afrodite surgindo da espuma dos mares, são... sindicatos novos e jovens, vigorosos e ardentes.

4

[...] A greve de massas, tal como nos é apresentada pela revolução russa, é um fenômeno tão móvel que re? ete em si todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e todos os momentos da revolução. O seu campo de aplicação, a sua força de ação, os fatores do seu desencadeamento transformam-se continuamente. Ela abre repentinamente novas perspectivas à revolução no momento em que esta parecia atravessar um impasse e falha no momento em que se pensa poder contar seguramente com ela. Ora a vaga do movimento invade todo o Império, ora se divide em uma rede gigantesca de pequenas correntes; ora brota do solo como uma fonte viva, ora se perde na terra. Greves econômicas e políticas, greves de massa, e greves parciais, greves de protesto ou de combate, greves gerais abrangendo setores particulares, ou cidades inteiras, lutas reivindicativas pací? cas ou batalhas de rua, combates de barricadas – todas essas formas de luta se cruzam ou se tocam, se interpenetram ou desaguam umas nas outras: é um mar de fenômenos eternamente novos e ? utuantes. E a lei do movimento desses fenômenos surge claramente: não reside na própria greve de massas, nas suas particularidades técnicas, mas na relação entre as forças políticas e sociais da revolução. A greve de massas é tão somente a forma adquirida pela luta revolucionária e qualquer deslocamento na correlação das forças em luta, no desenvolvimento do partido e na divisão das classes, na posição da contrarrevolução, in? ui imediatamente sobre a

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ação da greve por meio de inúmeros caminhos invisíveis e incontroláveis. Entretanto, a própria ação da greve de massas não para um só instante. Adquire somente outras formas, modi? ca a sua extensão, os seus efeitos. Ela é a pulsação viva da revolução e ao mesmo tempo o seu motor mais poderoso. Em resumo: a greve de massas, como nos mostra a revolução russa, não é um meio engenhoso inventado para reforçar o efeito da luta proletária, mas é o próprio movimento da massa proletária, a forma de manifestação da luta proletária na revolução.

Partindo daí, podemos deduzir alguns pontos de vista gerais que permitem julgar o problema da greve de massas.

1. É absolutamente falso imaginar a greve de massas como ação isolada. A greve de massas é antes um termo que designa globalmente todo um período da luta de classes que se estende por vários anos, às vezes por décadas. Se considerarmos as inúmeras e diferentes greves de massa que ocorreram na Rússia há quatro anos, uma única variante, e esta de importância secundária, corresponde à de? nição de greve de massas como ato único e breve de características puramente políticas, desencadeado e suspenso arbitrariamente segundo um plano pré-concebido: trata-se da simples greve de protesto. Ao longo de um período de cinco anos, vemos na Rússia só algumas greves de protesto, em pequeno número e, fato notável, ordinariamente limitadas a uma cidade. [...]

2. [...] Porém, o movimento no seu conjunto não se orienta unicamente no sentido de uma passagem do econômico ao político, mas orienta-se também no sentido inverso. Cada uma das grandes ações políticas de massas se

transforma, após ter atingido o seu apogeu, numa multiplicidade de lutas econômicas. Isso não é somente válido para cada uma das grandes greves, também o é para a revolução no seu conjunto. Quando a luta política se estende, se clari? ca e intensi? ca, não só a luta reivindicativa continua como se estende, se organiza e se intensifica paralelamente. Há uma completa interação entre ambas.

Cada novo arranque e cada nova vitória da luta política impulsionam poderosamente a luta econômica, alargando as suas possibilidades de ação exterior, e dão novas forças ao proletariado para melhorar a sua situação aumentando a sua combatividade. Cada vaga de ação política deixa atrás de si um terreno fértil, onde em breve surgem mil rebentos: as reivindicações econômicas. E, inversamente, a incessante guerra econômica que os operários travam com o capital mantém alerta a sua energia combativa, mesmo nas horas de calma política; de certo modo, constitui um reservatório permanente de energia, no qual a luta política busca sempre novas forças. Ao mesmo tempo, o infatigável trabalho de luta econômica do proletariado provoca, ora aqui ora ali, con? itos agudos a partir dos quais explodem bruscamente os con? itos políticos.

Em suma, a luta econômica apresenta uma continuidade, é o ? o que une os diferentes nós políticos; a luta política é uma fecundação periódica que prepara o solo para as lutas econômicas. Causa e efeito sucedem-se, alternam-se incessantemente, e assim os fatores políticos e econômicos, longe de se distinguirem claramente ou de se excluírem reciprocamente como pretende o pretensioso esquema, constituem no período da greve de massas dois aspectos complementares da luta da classe

proletária russa. É precisamente a greve de massas que dá forma à sua unidade. A sutil teoria disseca arti? cialmente, com a ajuda da lógica, a greve de massas para obter uma “greve política pura”: ora, uma tal dissecação – como todas as dissecações – não nos permite observar o fenômeno vivo, entrega-nos um cadáver.

3. Por ? m, os acontecimentos da Rússia mostram-nos que a greve de massas é inseparável da revolução. A história da greve de massas na Rússia confunde-se com a história da revolução. Na verdade, quando os campeões do oportunismo ouvem falar da revolução na Alemanha, pensam imediatamente no sangue vertido, nas batalhas de rua, na pólvora e no chumbo, e daí deduzem com toda a lógica que a greve de massas conduz inevitavelmente à revolução, logo nós devemos evitá-la. E de fato constatamos na Rússia que quase todas as greves levam a um confronto sangrento com as forças da ordem tsarista; isso é verdade tanto para as chamadas greves políticas, quanto para os con? itos econômicos. Mas a revolução é outra coisa, é mais que um simples banho de sangue. Com exceção da polícia, que entende a revolução simplesmente do ponto de vista das batalhas de rua e dos tumultos, quer dizer, do ponto de vista da “desordem”, o socialismo cientí? co vê na revolução uma profunda transformação interna nas relações de classe. Dessa perspectiva há entre a revolução e a greve de massas na Rússia uma relação bem mais profunda que a estabelecida pela constatação trivial, ou seja, a de que a greve de massas termina, geralmente, em um banho de sangue. [...]

4. Basta resumir o que atrás dissemos, para descobrir a solução para o problema da direção consciente e da iniciativa da greve de

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massas. Se a greve de massas não representa um ato isolado, mas todo um período da luta de classes, e se esse período se confunde com o período revolucionário, é claro que não se pode desencadear arbitrariamente a greve de massas, mesmo se a decisão vier de instâncias supremas do mais poderoso partido socialista. Tanto não está ao alcance da social-democracia suscitar ou travar revoluções a seu bel-prazer, que o enorme entusiasmo e a enorme impaciência das hostes socialistas não conseguiram provocar um período de greve de massas que fosse um movimento popular poderoso e vivo. [...] Mesmo durante a revolução, as greves não caem do céu. É preciso que sejam feitas, de uma maneira ou de outra, pelos operários. A resolução e a decisão da classe operária desempenham também o seu papel, mas é necessário frisar que a iniciativa e a direção de ulteriores operações naturalmente dizem respeito ao setor mais esclarecido e mais bem organizado do proletariado, à social-democracia. Mas essa iniciativa e essa direção só se aplicam na execução de tal ou tal ação isolada, de tal ou tal greve de massas, logo que o período revolucionário esteja em curso, e mais frequentemente no interior de uma dada cidade. Já vimos, por exemplo, a social-democracia, mais de uma vez, dar expressamente, e com sucesso, a palavra de ordem para a realização de uma greve em Baku, Varsóvia, Lodz, S. Petersburgo. Tal iniciativa tem menos probabilidades de sucesso se for aplicada a movimentos gerais que englobem todo o proletariado. Por outro lado, a iniciativa e a direção das operações têm os seus limites determinados. Justamente durante a revolução, é extremamente difícil a um organismo dirigente do movimento operário prever e calcular a ocasião e os fatores que provoquem ou não o levantamento. Tomar a iniciativa e a direção das operações, também aqui, não

consiste em dar ordens arbitrariamente, mas sim em adaptar-se à situação o mais habilmente possível, mantendo o mais estreito contato com o moral das massas. O elemento espontâneo desempenha, como vimos, um enorme papel em todas as greves de massas na Rússia, quer como elemento motor, quer como freio. Esse fato não é motivado por a social-democracia russa ser ainda jovem e fraca, mas porque em cada ato particular da luta tomam parte uma in? nidade de fatores econômicos, políticos e sociais, gerais e locais, materiais epsicológicos, de tal maneira que nenhum deles pode ser de? nido ou calculado como um exemplo aritmético. Mesmo se o proletariado, com a social-democracia à cabeça, desempenhar o papel dirigente, a revolução não é uma manobra do proletariado, mas uma batalha que se desenrola enquanto à sua volta desmoronam e se deslocam sem cessar todos os alicerces sociais. Se o elemento espontâneo desempenha um papel tão importante na greve de massas na Rússia, não é porque o proletariado russo seja “deseducado”, mas porque as revoluções não se aprendem na escola. [...]

Mas se a direção da greve de massas, no sentido de comandar seu desencadeamento e de avaliar e cobrir seus custos, cabe ao período revolucionário, em outro sentido, totalmente diferente, a direção das greves de massas cabe à social-democracia e aos seus órgãos diretivos. Em vez de quebrar a cabeça com o lado técnico, com o mecanismo da greve de massas, a social-democracia é chamada, também em pleno período revolucionário, a tomar a sua direção política. A tarefa mais importante de “direção” no período de greve de massas consiste em dar a palavra de ordem da luta, em orientá-la, em dirigir a tática da luta política de tal modo que, em cada fase e em cada instante do combate,

seja realizada e posta em ação a totalidade do poder do proletariado, já comprometido e lançado na batalha, e que esse poder se exprima pela posição do partido na luta; é preciso que a tática da social-democracia, no tocante à sua energia e rigor, jamais se encontre aquém do nível da correlação de forças real, mas que, ao contrário, ultrapasse esse nível; essa é a mais importante tarefa da “direção” no período das greves de massa. E assim a direção política transformar-se-á automaticamente em certa medida numa direção técnica. Uma tática socialista consequente, resoluta, avançada, provoca na massa um sentimento de segurança, de con? ança, de combatividade; uma tática hesitante, fraca, alicerçada na subestimação das forças do proletariado, paralisa e desorienta as massas. No primeiro caso, as greves de massas explodem “espontaneamente” e sempre “oportunamente”; no segundo caso, é em vão que a direção do partido chama diretamente à greve. A revolução russa oferece-nos exemplos sugestivos de ambos os casos. [...]

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Segundo essa perspectiva, o problema da organização nas suas relações com o problema da greve de massas na Alemanha adquire uma ? sionomia totalmente diferente. [...]

A concepção rígida e mecânica da burocracia só admite a luta como resultado da organização que atinja um certo grau de força. Ao contrário, a evolução dialética, viva, faz nascer a organização como produto da luta. Vimos já um exemplo magnífico desse

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fenômeno na Rússia, onde um proletariado quase desorganizado começou a criar uma vasta rede de organizações depois de um ano e meio de lutas revolucionárias tumultuosas.[...]

O plano que consistiria em desencadear uma importante greve de massas a título de ação política de classe com a exclusiva ajuda dos operários organizados é absolutamente ilusório. Para que a greve, ou melhor, as greves de massas, a luta de massas seja coroada de êxito, elas têm de transformar-se num verdadeiro movimento popular, quer dizer, têm de arrastar para a batalha as mais largas camadas do proletariado. Mesmo no plano parlamentar, o poder da luta das classes proletárias não se apoia num pequeno núcleo organizado, mas sim na vasta periferia do proletariado com simpatias revolucionárias. Se a social-democracia quisesse conduzir a batalha eleitoral com o exclusivo apoio de algumas centenas de milhares de organizados, condenar-se-ia a si mesma ao aniquilamento. E ainda que a social-democracia deseje acolher nas suas organizações quase todo o contingente dos seus eleitores, a experiência de 30 anos mostra que o eleitorado socialista não aumenta em função do crescimento do partido mas, ao contrário, são as camadas operárias recentemente conquistadas no curso da batalha eleitoral que constituem o terreno que em seguida será fecundado pela organização. Também aqui não é só a organização que fornece as tropas combatentes, mas também é a batalha que fornece, numa maior escala, recrutados para a organização. Isso é, evidentemente, muito mais válido para a ação política direta de massas que para a luta parlamentar. Ainda que a social-democracia, núcleo organizado da classe operária, esteja na vanguarda de toda amassa de trabalhadores e o movimento operário busque a sua força, a sua

unidade e consciência política nessa mesma organização, o movimento operário nunca deve ser concebido como movimento de uma minoria organizada. Toda verdadeira grande luta de classes deve alicerçar-se no apoio e na colaboração das mais largas massas; uma estratégia de luta de classes que não contasse com essa colaboração, e não visse mais que os des? les bem ordenados da pequena parte do proletariado arregimentada nas suas ? leiras, estaria condenada a uma lamentável derrota.

Na Alemanha as greves de massas, as lutas políticas de massas não podem ser conduzidas unicamente pelos militantes organizados, nem podem ser comandadas por uma “direção” saída do comitê central do partido. Nesse caso, como na Rússia, há menos necessidade de “disciplina”, de “educação”, de uma avaliação tão precisa quanto possível das despesas e subsídios do que de uma ação de classe resoluta e verdadeiramente revolucionária, capaz de atingir e arrastar as camadas mais extensas das massas proletárias desorganizadas, mas revolucionárias por sua disposição e condição.

A superestimação e a falsa apreciação do papel organizativo do proletariado na luta de classes está ligada geralmente a uma subestimação da massa proletária desorganizada e da sua maturidade política. Só num período revolucionário, na efervescência das grandes lutas de classes tempestuosas se manifesta o papel educador da rápida evolução do capitalismo e da in? uência socialista nas grandes camadas populares; em tempo normal, as estatísticas das organizações, ou até as estatísticas eleitorais, não dão mais que uma pálida ideia dessa in? uência. [...]

No operário alemão esclarecido, a consciência de classe incutida pela social-democracia é uma consciência teórica, latente: no período do domínio parlamentar burguês, geralmente não tem ocasião de se manifestar por uma ação direta de massas; é o resultado ideal das 400 ações paralelas das circunscrições durante a luta eleitoral, dos numerosos con? itos econômicos parciais etc. Na revolução, em que a própria massa aparece na cena política, a consciência de classe torna-se prática, ativa. Assim, um ano de revolução deu ao proletariado russo essa “educação” que 30 anos de lutas parlamentares e sindicais não podem arti? cialmente darao proletariado alemão. Por certo, esse vivo e ativo instinto de classe que anima o proletariado decrescerá sensivelmente, mesmo na Rússia, uma vez acabado o período revolucionário e uma vez instituído o regime parlamentar legal burguês, ou pelo menos transformar-se-á numa consciência oculta, latente. [...] Seis meses de revolução contribuirão mais para a educação dessas massas atualmente desorganizadas do que dez anos de comícios públicos e de distribuição de pan? etos. E quando a situação na Alemanha tiver atingido o grau de maturidade necessário a um tal período, as categorias hoje mais atrasadas e mais desorganizadas constituirão, naturalmente, o elemento mais radical, mais impetuoso e mais ativo da luta. Se se produzirem greves de massas na Alemanha é quase certo que não serão os trabalhadores mais organizados– certamente não serão os grá? cos – mas os operários menos organizados ou completamente desorganizados, como os mineiros, os operários têxteis, ou talvez os camponeses, que desenvolverão maior capacidade de ação. [...]

A social-democracia é a vanguarda mais esclarecida e mais consciente do proletariado.

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Ela não pode nem deve esperar com fatalismo, de braços cruzados, que se produza uma “situação revolucionária”, nem que o movimento popular espontâneo caia do céu. Ao contrário, tem o dever como sempre de preceder o curso dos acontecimentos, de procurar precipitá-los. Não o conseguirá, se entregar a “palavra de ordem” de greve ao acaso de qualquer momento, oportuno ou não, mas deve fazer com que as camadas mais largas do proletariado compreendam que a chegada de um tal período revolucionário é inevitável, explicando-lhes as condições sociais internas que a isso conduzem, assim como as suas consequências políticas. Para arrastar as camadas mais largas do proletariado a uma ação política da social-democracia e, inversamente, para que a social-democracia possa assumir e manter a direção efetiva do movimento de massas, para que domine todo o movimento no sentido político do termo, precisa saber fornecer com toda clareza, coerência e resolução a tática e os objetivos ao proletariado alemão para o período das lutas futuras.

7

Vimos que na Rússia a greve de massas não é o produto arti? cial de uma tática imposta pela social-democracia; é antes um fenômeno histórico natural gerado no solo da atual revolução. Ora, quais são os fatores que provocaram a nova forma em que se produziu a revolução? [...]

[Na Rússia] A burguesia não é hoje seu [da revolução] elemento motor, como acontecia

outrora nas revoluções ocidentais, enquanto a massa proletária, afogada no seio da pequena burguesia, servia como massa de manobra da burguesia; ao contrário, é o proletariado consciente que constitui o elemento ativo e dirigente, enquanto as camadas da grande burguesia se mostram ou abertamente contrarrevolucionárias ou moderadamente liberais; só apequena burguesia rural e a intelligentsia pequeno-burguesa das cidades adotam uma atitude francamente opositora e até revolucionária. Mas o proletariado russo, chamado assim a desempenhar um papel dirigente na revolução burguesa, envolve-se na luta no momento em que perdeu as ilusões na democracia burguesa e em que a oposição entre capital e trabalho está fortemente acentuada; em contrapartida, possui uma aguda consciência dos seus interesses especí? cos de classe. Essa situação contraditória manifesta-se, porque nessa revolução formalmente burguesa o con? ito entre a sociedade burguesa e o absolutismo é dominado pelo con? ito entre o proletariado e a sociedade burguesa; porque o proletariado luta simultaneamente contra o absolutismo e a exploração capitalista; porque a luta revolucionária tem ao mesmo tempo por objetivo a liberdade política e a conquista do dia de trabalho de 8h., assim como uma existência material humanamente digna para o proletariado. Esse duplo caráter da revolução russa se manifesta na união e na interação estreitas entre a luta econômica e a luta política que os acontecimentos da Rússia nos deram a conhecer e que se exprimem precisamente na greve de massas.

Nas anteriores revoluções burguesas foram os partidos burgueses que se encarregaram da educação política e da direção da massa revolucionária, e, por outro lado,

tratava-se pura e simplesmente de derrubar o antigo governo; então o combate de barricadas, de curta duração, era a forma mais apropriada de luta revolucionária. Hoje, quando a classe operária é obrigada a esclarecer-se, a unir-se e a orientar-se a si mesma no decorrer da luta e quando a revolução é dirigida tanto contra a exploração capitalista como contra o antigo poder de Estado, a greve de massas aparece como o meio natural de recrutar, revolucionar e organizar as mais amplas camadas proletárias no momento da ação, sendo ao mesmo tempo um meio de minar e derrubar o antigo Estado e de conter a exploração capitalista. O proletariado industrial urbano é hoje a alma da revolução na Rússia. Mas, para empreender uma ação política de massas, é preciso primeiro que o proletariado se una em massa; para isso, é preciso que saia das fábricas e das o? cinas, das minas e dos altos fornos, e ultrapasse a dispersão e a fragmentação a que o jugo capitalista o condena. Desse modo, a greve de massas é a primeira forma natural e espontânea de qualquer grandiosa ação revolucionária do proletariado; quanto mais a indústria se transformar na forma predominante de economia numa sociedade, tanto mais o proletariado desempenha um papel importante na revolução, tanto mais a oposição entre trabalho e capital se aguça e tanto mais as greves de massas necessariamente adquirem amplitude e importância. O que era antes a principal forma da revolução burguesa, o combate nas barricadas, o confronto direto com as forças armadas do Estado, só constitui na revolução atual o ponto culminante, um momento de todo o processo da luta de massas proletária.

Assim, a nova forma da revolução permitiu alcançar o estágio “civilizado” e

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“atenuado” das lutas de classe profetizado pelos oportunistas da social-democracia alemã, os Bernstein, os David e consortes. Na verdade, eles imaginavam essa luta de classes atenuada, civilizada, segundo suas ilusões pequeno-burguesas e democráticas, pensavam que a luta de classes se limitava exclusivamente à batalha parlamentar e que a revolução, no sentido de combate de ruas, seria simplesmente abolida. A história solucionou o problema a seu modo, que é ao mesmo tempo mais profundo e mais sutil: fez surgir a greve de massas revolucionária que, evidentemente, não substitui nem torna supér? uos confrontos diretos e brutais na rua, mas os reduz a um momento do longo período de lutas políticas e, ao mesmo tempo, liga a revolução a um gigantesco trabalho civilizador no sentido preciso do termo: a elevação material e intelectual de toda a classe operária, “civilizando” as formas bárbaras de exploração capitalista.

A greve de massas aparece assim não como um produto especí? co do absolutismo russo, mas como uma forma universal de lutadas classes proletárias, determinada pelo estágio atual do desenvolvimento capitalista e da correlação de classes. As três revoluções burguesas, a grande Revolução Francesa em 1789, a revolução alemã em 1848 e a atual revolução russa constituem, segundo esse ponto de vista, uma cadeia de evolução contínua: re? etem a grandeza e a decadência do século capitalista. Na grande Revolução Francesa, os con? itos internos ainda latentes da sociedade burguesa dão lugar a um longo período de lutas brutais em que as oposições, rapidamente germinadas e amadurecidas no calor da revolução, rebentam com uma violência extrema e sem qualquer freio. Meio século mais tarde, a revolução da burguesia alemã,

explodindo na metade do caminho do desenvolvimento capitalista, é interrompida pela oposição dos interesses e pelo equilíbrio das forças entre capital e trabalho, abafada por um compromisso entre o feudalismo e a burguesia, reduzida a um breve e lastimoso episódio rapidamente amordaçado. Mais meio século e a revolução russa atual explode num ponto do caminho histórico situado já na outra vertente da montanha, passado o apogeu da sociedade capitalista: a revolução burguesa já não pode ser sufocada pela oposição entre a burguesia e o proletariado e, ao contrário, estende-se por um largo período de con? itos sociais violentos que fazem parecer irrisórios os velhos ajustes de contas com o absolutismo, quando comparados aos novos exigidos pela revolução. A revolução realiza hoje, no caso particular da Rússia absolutista, os resultados do desenvolvimento capitalista internacional; aparece-nos menos como herdeira das velhas revoluções do que como precursora de uma nova série de revoluções proletárias no Ocidente. O país mais atrasado, precisamente porque agiu com um atraso imperdoável a levar a cabo a sua revolução burguesa, mostra ao proletariado da Alemanha e dos países capitalistas mais avançados as vias e os métodos da futura luta de classes. [...]

As Táticas da Frente Única

León Trotsky

Escrito: Em Moscou, em março de 1922 para o Pleno do Comitê Executivo da Internacional Comunista que entrou em sessão em fevereiro do mesmo ano, como material para um informe sobre a questão dos comunistas franceses.

Primeira Edição: Em 1924 como parte da recompilação Pyat Let Kominterna pelo Editorial do Estado, Moscou.

Fonte deste texto: Las Tácticas del Frente Único. Editorial CEPE, Buenos Aires, 1973.

Digitalização: Ramiro Alvarez, 2009.

Esta edição: Marxists Internet Archive (espanhol), maio de 2010.

Tradução para o português: Vinicius Almeida e Rodrigo Santaella.

I. CONSIDRAÇÕES GERAIS SOBRE A FRENTE ÚNICA

1. A tarefa do Partido Comunista é a de dirigir a revolução proletária. A fim de orientar o proletariado na sua conquista direta do poder, o

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Partido Comunista deve se embasar na predominante maioria da classe trabalhadora.

Enquanto o Partido não contar com essa maioria, deve lutar para alcançá-la.

O Partido só pode alcançar este objetivo se for uma organização absolutamente independente, com um programa claro e uma estrita disciplina interna. Isso porque o Partido teve que romper organizativa e ideologicamente com os reformistas e os centristas que não lutam pela revolução proletária, que não têm o desejo de preparar as massas para a revolução e que, com sua conduta, limitam essa tarefa. Os membros do Partido Comunista que se aliaram em seu rompimento com os centristas em nome “das massas proletárias” ou da “unidade de frente” estão demonstrando sua incompreensão do ABC do Comunismo, e estão na fileiras do Partido Comunista apenas por acidente.

2.Assim que assegurar uma completa independência e homogeneidade ideológica de seus quadros, o Partido Comunista lutará por influenciar a maioria da classe operária. Esta luta pode assumir um caráter rápido ou lento, que depende das condições objetivas e da eficácia da tática seguida.

Mas é bem evidente que o cotidiano de classe do proletariado não se detém a esse período preparatório para a revolução. Os choques com os industriais, com a burguesia, com o aparato de Estado, respondendo sejam as iniciativas de um setor ou de outro, seguem seu curso.

Nestes choques, que envolvem os interesses do conjunto do proletariado, ou de sua maioria, ou de um ou outro setor, as massas operárias sentem a necessidade de uma unidade de ação: de unidade para resistir ao ataque do capitalismo, ou da unidade para tomar a ofensiva em resposta. Todo Partido que se oponha mecanicamente a esta necessidade do proletariado de unidade na ação será condenado inevitavelmente pelos operários.

Por outro lado, a questão da Frente Única não é, nem em sua origem nem em sua essência, uma questão de relações mútuas entre a fração parlamentar comunista e a socialista, ou entre os Comitês Centrais de ambos Partidos, ou entre “L´Humanité” e “Le Populaire”. O problema da Frente Única – apesar do fato de ser inevitável uma separação nessa época entre as organizações políticas que se embasam no voto – surge da necessidade urgente de assegurar à classe operária a possibilidade de uma Frente Única na luta contra o capitalismo.

Para aqueles que não compreendem que todo Partido isolado é uma sociedade propagandística e não uma organização para a ação das massas.

3. Nos casos em que o Partido Comunista ainda permanece como uma organização composta por uma minoria numericamente insignificante, a questão de sua conduta na frente de luta de massas não assume um significado político e organizativo decisivo. Em tais condições, as ações de massas permanecem dirigidas pelas velhas organizações que continuam cumprindo um papel decisivo em virtude de sua tradição ainda poderosa.

Por outro lado, o problema da Frente Única não surge nos países onde – Bulgária, por exemplo – o Partido Comunista é o único dirigente das massas exploradas.

Mas onde quer que o Partido Comunista constitua-se como uma força política poderosa e organizada, mas não de uma magnitude decisiva – ali onde o Partido abarque organizativamente, digamos, uma quarta parte, uma terceira e ainda uma proporção maior da vanguarda proletária organizada – o problema da Frente Única se coloca em toda a sua agudeza.

Se o Partido conta com uma terceira parte ou a metade da vanguarda proletária, logo, o resto deverá estar organizado pelos reformistas e os centristas. É bem evidente que os operários que ainda apoiam os reformistas e centristas se interessam vivamente por manter níveis de vida mais elevados e a maior liberdade de ação que seja possível. Em conseqüência, devemos projetar nossa tática a evitar que o Partido Comunista, que no futuro próximo abarcará os três terços do proletariado, se converta em um obstáculo organizativo no caminho da luta proletária atual.

Mais ainda, o Partido deve assumir a iniciativa de assegurar a unidade da luta presente. Somente assim o Partido se aproximará destes dois terços que ainda não seguem sua direção, que ainda não confiam nela porque não a compreendem. Apenas desta maneira pode o Partido ganhar-los.

Se o Partido Comunista não tivesse rompido drasticamente e de forma irreconciliável com os social-democratas, não se teria convertido no Partido da revolução

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proletária. Não poderia ter dado os primeiros passos sérios no caminho da revolução. Teria permanecido como uma válvula parlamentar de segurança sob o Estado burguês.

Quem não compreende isso, não conhece a primeira letra do ABC do Comunismo.

4. Se o Partido não procurasse construir um caminho organizativo, que possibilitasse em qualquer momento ações coordenadas conjuntas entre as massas comunistas e as não-comunistas (incluindo as que apoiam a social-democracia), deixaria clara sua incapacidadede ganhar – sobre a base de ações de massas – a maioria do proletariado. Degeneraria-se numa Sociedade de propaganda comunista, nunca se desenvolveria como um Partido que luta pela conquista de poder.

Não é suficiente contar com uma espada, ela deve estar afiada; não é suficiente que esteja afiada: é preciso saber usá-la.

Depois de separar os comunistas dos reformistas, não é suficiente fundir os comunistas entre si através da disciplina organizativa; é necessário que essa organização aprenda a guiar todas as atividades coletivas do proletariado em todas as esferas da luta de classes.

Esta é a segunda letra do ABC do Comunismo.

DIRIGENTES REFORMISTAS NO INTERIOR DA FRENTE ÚNICA

5. A Frente Única abrange apenas as massas trabalhadoras ou inclui também seus dirigentes oportunistas?

O simples fato de fazer essa pergunta demonstra em si uma incompreensão do problema.

Se pudéssemos simplesmente unir o proletariado em torno da nossa bandeira ou ao redor de nossas consignas práticas, e passar por cima das organizações reformistas, tanto de partidos quanto de sindicatos, logicamente, isto seria o melhor dos mundos. Nesse caso, o problema da Frente Única não existiria em sua forma atual.

A questão surge porque alguns setores muito importantes do proletariado pertencem a organizações reformistas ou as apoiam. Sua experiência atual é muito insuficiente para permitir-lhes que as abandonem e que se unam a nós. É precisamente a partir da intervenção naquelas atividades de massas que estão na ordem do dia, que se produzirá uma grande mudança na situação.

É isso que buscamos. Mas os fatos ainda não tem essas características: atualmente, o setor organizado do proletariado está dividido em três agrupamentos.

Um deles, os comunistas, tem como objetivo a revolução social e precisamente por isso apoia todo movimento dos explorados contra seus exploradores e contra o Estado burguês.

Outro grupo, dos reformistas, persegue a conciliação com a burguesia, mas não querendo perder sua influência sobre os operários, é empurrada, contra os próprios desejos de seus dirigentes, a apoiar os movimentos parciais do proletariado contra a burguesia.

Finalmente, existe um terceiro grupo: os centristas, que vacilam constantemente entre os dois, e não tem uma atuação independente.

As circunstâncias, portanto, tornam completamente possíveis as ações conjuntas a respeito de uma série de questões vitais entre os trabalhadores unidos em torno dessas três organizações respectivamente, e as massas organizadas que as apóiam.

Os comunistas, como já dissemos, não só não devem se opor a tais ações como, pelo contrário, devem assumir a iniciativa, precisamente pela razão de que quanto mais sejam impulsionadas as massas para o movimento, maior será a sua confiança em si mesma, o movimento terá mais confiança nele mesmo e será mais capaz de marchar decididamente adiante, não importa quão modesta seja a consigna inicial da luta. E isto significa que o crescimento do conteúdo de massas do movimento o faz revolucionário e cria condições muito mais favoráveis para as consignas, métodos de luta e, em geral, para um papel dirigente do Partido Comunista.

Os reformistas temem o potente espírito revolucionário das massas; suas arenas mais apreciadas são a tribuna parlamentar, os gabinetes dos sindicatos, das cortes de justiça e as ante-salas dos ministérios.

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Ao contrário, o que nos interessa, além de toda outra consideração, é tirar os reformistas de seu paraíso e colocá-los ao nosso lado diante das massas. Usando uma tática correta, só podemos vencer. O comunista que duvida ou teme isto, parece aquele nadador que conhece na teoria o melhor modo de nadar, mas que não quer arriscar-se a mergulhar.

6. A unidade de frente pressupõe então, dentro de certo limites e em torno a questões específicas, correlacionar na prática nossas ações com a de organizações reformistas, diante daquilo em que, ainda hoje, elas expressem a vontade de importantes setores do proletariado combativo.

Mas, afinal de contas, não nos separamos ontem deles? Sim, porque não estávamos de acordo em questões fundamentais do movimento operário; e apesar disso buscamos acordos com eles? Sim, em todos aqueles casos em que as massas que os seguem estão dispostas a ligar-se em uma luta conjunta com as massas que nos seguem, e quando os reformistas em um maior ou menor grau, são empurrados a transformarem-se em um órgão dessa luta.

Mas não dirão que mesmo depois de nos separarmos deles, ainda os necessitamos? Sim, seus charlatães poderiam dizer isso. Aqui e ali alguns elementos de nosso Partido podem se assustar com isso. Porém, no que diz respeito ao conjunto das massas proletárias – ainda aquelas que não nos seguem e que ainda não compreendem o objetivo que perseguimos, mas que vêem duas ou três organizações operárias conduzindo numa existência paralela – estas massas chegarão à seguinte conclusão de nossa

conduta: que apesar de toda divisão, estamos fazendo todo o possível para facilitar a unidade de ação para as massas.

7. A política que tende a assegurar a Frente Única, claro que não inclui garantias de que a unidade de ação será alcançada em todos os seus pontos. Pelo contrário, em muitos casos, e talvez na maioria deles, os acordos organizativos serão alcançados parcialmente ou não serão alcançados. Mas é necessário que as massas em luta tenham sempre a possibilidade de se convencer de que a impossibilidade de conseguir a unidade de ação não foi por conta de nossa política irreconciliável, mas sim pela falta de uma vontade real de luta por parte dos reformistas.

Ao entrar em acordos com outras organizações, naturalmente assumimos certa disciplina na ação. Porém esta disciplina não pode ser absoluta. No momento em que os reformistas comecem a frear a luta, em detrimento do movimento, e a atuar contra a situação e a vontade das massas, nós, como organização independente sempre nos reservaremos o direito de dirigir a luta até o fim, e isto sem nossos semi-aliados temporários.

Isto pode dar início a uma nova agudização da luta entre nós e os reformistas. Contudo, esta já não implicará numa simples repetição de um conjunto de idéias dentro de um círculo fechado, mas sim significará – se nossa tática for correta – a extensão de nossa influência sobre setores novos e frescos do proletariado.

8. Só é possível ver na nossa tática uma reconciliação com os reformistas do ponto de vista do jornalista que pensa que se afasta do reformismo criticando-o ritualmente, sem sequer abandonar seu escritório de redação, que teme chocar com o reformismo diante das massas, e teme dar a estas a oportunidade para colocar aos comunistas e reformistas num mesmo plano da luta de classes. Neste aparente temor revolucionário à “reconciliação”, reside em essência uma passividade política que busca perpetuar um estado de coisas no qual os comunistas e os reformistas têm cada um suas esferas de influência rigidamente demarcadas, seu próprio público nos comícios, sua própria imprensa, e que tudo isto crie a ilusão de uma séria luta política.

9. Rompemos com os reformistas e centristas a fim de obter uma completa liberdade de criticar a deslealdade, a traição, a indecisão e o espírito passivo no seio do movimento operário. Por essa razão, toda classe com acordo organizativo que limite nossa liberdade de crítica e de agitação é completamente inaceitável para nós. Participamos da Frente Única, mas em nenhum instante nos diluímos nela. Atuamos na Frente Única como um grupo independente. É precisamente no curso da luta que o conjunto das massas deve aprender por experiência que nós lutamos melhor que os demais, que vemos melhor, que somos mais audaciosos e decididos. Desta forma, nos aproximamos cada vez mais da conquista da Frente Única revolucionária, sob a indiscutível direção comunista.

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II. SETORES NO MOVIMENTO PROLETÁRIO FRANCÊS

10. Se nos propusermos a analisar o problema da Frente Única e sua aplicação na França, se abandonar o terreno destas teses, que surgem do conjunto da linha política da Internacional Comunista, devemos então perguntar-nos: nos encontramos na França com uma situação na qual os comunistas representam, desde o ponto de vista da ação prática, uma magnitude insignificante? Ou, pelo contrário, abarcam a grande maioria dos trabalhadores organizados? Ou por um acaso ocupam uma posição intermediária? São suficientemente fortes para que a sua participação no movimento de massas a reverta a maior importância, mas não fortes o bastante para concentrar em suas mãos a direção?

É bastante claro que nos encontramos diante do terceiro caso.

11. Na esfera partidária, o predomínio dos comunistas sobre os reformistas é enorme. A organização e a imprensa comunistas superam muito a imprensa dos chamados socialistas, tanto em tiragem quanto em riqueza e vitalidade.

Esta manifesta preponderância, entretanto, longe de assegurar ao Partido Comunista Francês a direção indiscutível do proletariado francês, não conseguiu até agora, principalmente porque o proletariado está influenciado poderosamente por tendências e

preconceitos antipolíticos e antipartidários, alimentados principalmente pelos sindicatos.

12. A particularidade sobressalente do movimento operário francês consiste nisso, em que os sindicatos serviram por muito tempo como uma cobertura para um Partido político do particularismo, anti-parlamentar e que leva este nome: sindicalismo. Ainda que os sindicalistas revolucionários possam tratar de delimitar sua atuação da política ou de um Partido, não podem refutar o fato de que eles mesmos constituem um Partido político, que busca basear-se nas organizações sindicais do proletariado. Este Partido tem suas próprias tendências revolucionárias positivas, mas também seus próprios aspectos sumariamente negativos: a falta de um programa genuíno e definitivo e de uma organização constituída. A organização dos sindicatos não corresponde em absoluto à organização do sindicalismo. No sentido organizativo, os sindicalistas representam um núcleo político amorfo injetado nos sindicatos.

O problema se complica ainda mais pelo fato de que os sindicalistas, como todos os outros grupos no proletariado, se dividiram desde a guerra em duas partes: os reformistas, que apoiam à burguesia e portanto se inclinam à colaboração estreita com os reformistas parlamentares, e o setor revolucionário, que está buscando o caminho para esmagar seu adversário e está se movimento, nas pessoas de seus melhores elementos, para o comunismo.

É precisamente esta urgência de preservar a unidade (de classe) de frente que inspirou não só aos comunistas mas também

aos sindicalistas revolucionários, à tática absolutamente da luta pela unidade da organização sindical do proletariado francês. Por outro lado, com o instinto de traidores que faz com que saibam que diante das massas não podem – na ação, na luta – se enfrentarem com a ala revolucionária, Jouhaux, Merrhaim e companhia, tomaram o caminho da cisão. A luta absolutamente importanet que envolve atualmente o conjunto do movimento sindical francês, a luta entre reformistas e revolucionários, constitui para nós ao mesmo tempo uma luta pela unidade da organização dos sindicatos e da Frente Única Sindical.

III. O MOVIMENTO SINDICAL E A FRENTE ÚNICA

13. O comunismo francês enfrenta uma situação sumariamente importante no que diz respeito à idéia da Frente Única. Na estrutura da organização política, o comunismo francês triunfou ao conquistar a maioria do velho Partido Socialista, com o qual os oportunistas agregaram a toda sua lista anterior de adjetivos o de “dissidentes”, ou seja, divisionistas. Nosso Partido se serviu desta expressão no sentido de que implantou a designação de divisionistas às organizações social-reformistas francesas, dando assim à vanguarda a certeza de que os reformistas são destruidores da unidade de ação e da unidade de organização.

14. No campo do movimento sindical, a ala revolucionária e sobretudo os comunistas, não

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podem ocultar, nem tampouco seus adversários, o quão profundas são as diferenças entre Moscou e Amsterdam – diferenças que de modo algum são simples sombras que obscurecem o panorama do movimento operário, sim um reflexo do profundo conflito que comove à sociedade moderna, além, especialmente, do conflito entre a burguesia e o proletariado. Mas ao mesmo tempo, a ala revolucionária, ou seja, antes de tudo e principalmente os conscientes elementos comunistas, nunca propugnaram a tática de abandonar os sindicatos ou de dividir as organizações sindicais. Tais consignas são características de grupos sectários, de “localistas”, KAPD, certos grupinhos “libertários” de anarquistas na França, que nunca tiveram influência no âmbito do proletariado, que não tentam nem aspiram a conquistar essa influência, mas que se contentam com pequenas seitas próprias e com congregações rigidamente demarcadas. Os elementos verdadeiramente revolucionários entre os sindicalistas franceses, sentiram instintivamente que a classe trabalhadora pode ser ganha na arena do movimento sindical apenas se se enfrentam o ponto de vista e os métodos revolucionários com os dos reformistas, no terreno da ação de massas, preservando ao mesmo tempo o mais alto grau possível de unidade na ação.

15. O sistema de frações nas organizações sindicais, adotado pela ala revolucionária, significa a forma de luta mais natural para a influência ideológica para a unidade da frente, sem perturbar a unidade da organização.

16. Tal como os reformistas do Partido Socialista, os reformistas do movimento sindical tomaram a iniciativa para a cisão. Mas se deve antes de tudo à experiência do Partido Socialista, que lhes fez ver claramente que o tempo avançava a favor dos comunistas, e que a única forma de contra-atacar essa influência era forçando uma divisão. Por parte do grupo dirigente da CGT, podemos ver todo um sistema de medidas para desorganizar a ala esquerda, para privá-la daqueles diretos que os sindicatos lhes dão e, finalmente, através da expulsão aberta – contra todo o estatuto e regulamento de forma a colocá-la formalmente fora dos sindicatos.

Por outro lado, temos à ala revolucionária lutando para defender seus direitos no terreno das normas democráticas das organizações operárias, e resistindo com toda a sua força à cisão implantada desde cima, convocando a base à unidade da organização sindical.

17. Todo o operário francês consciente deve saber que quando os comunistas eram uma sexta parte, ou uma terceira parte do Partido Socialista, não tentaram separar-se, pois tinham absoluta certeza de que a maioria do Partido os seguiria em um futuro próximo. Quando os reformistas se viram reduzidos a uma terceira parte se separaram, carentes de esperanças em ganhar a maioria da vanguarda proletária.

Todo operário francês consciente deve saber que quando os elementos revolucionários tiveram que enfrentar o problema sindical, apesar de serem neste momento uma minoria insignificante, buscaram uma saída na forma do trabalho nas organizações de base, pois estavam

convencidos que a experiência da luta nas condições de uma época revolucionária empurraria em seguida à maioria dos trabalhadores organizados para o programa revolucionário. Quando os reformistas, entretanto, perceberam o crescimento da ala revolucionária nos sindicatos, acudiram imediatamente ao método da expulsão e da divisão.Daqui podemos tirar conclusões da maior importância:

Primeiro, a enorme profundidade das diferenças que refletem, como já dissemos, a contradição entre a burguesia e o proletariado, foi clarificada.

Segundo, o “democratismo” hipócrita dos opositores da ditadura fica desnudado até as raízes, principalmente quando os cavalheiros não se inclinam a tolerar, não só na estrutura do Estado mas também na estrutura das organizações operárias, os métodos democráticos. Onde quer que essas organizações operárias se voltam contra eles, as abandonam, tal como os dissidentes no Partido, ou expulsam aos demais como faz a camarilha de Jouhaux Desmoulins. É monstruoso supor que a burguesia poderia permitir que a luta contra o proletariado chegasse a uma decisão dentro de uma estrutura democrática, quando até os agentes da burguesia nos sindicatos e nas organizações políticas se opõem a resolver as questões do movimento operário através da base das normas da democracia proletária, adotadas voluntariamente por eles.

18. A luta pela unidade da organização operária e da ação sindical seguirá sendo, no futuro, uma das tarefas mais importantes do Partido

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Comunista, não só uma luta no sentido de empurrar constantemente até a unidade de grandes setores operários em torno do programa e tática dos comunistas, mas também no sentido de que o Partido Comunista – no caminho até a realização deste objetivo – tanto de forma direta como através dos comunistas nos sindicatos, se esforça por meio da ação, por reduzir a um mínimo os obstáculos que são as divisões para o movimento operário.

Se apesar de nossos esforços por restabelecer a unidade, a divisão na CGT se afirma sem remédio num futuro imediato, isso não significa absolutamente que a “CGT Unitaire”, sem ter em conta se metade ou mais da metade dos trabalhadores organizados se unirão a ela no próximo período, deve levar adiante sua tarefa ignorando simplesmente a existência da CGT reformista. Uma política desta natureza significaria dificuldades ao extremo, e até excluiria a possibilidade de realizar ações coordenadas do proletariado, e ao mesmo tempo facilitaria ao máximo a possibilidade de que a CGT reformista cumprisse, em benefício da burguesia, o papel de “Ligue Civique” diante das greves, manifestações, etc.; e ao mesmo tempo daria à CGT reformista uma espécie de justificativa, ao argumentar que a CGT Unitaire provoca ações inoportunas, e que deve carregar toda a responsabilidade por elas. É bem evidente que em todos os casos onde as circunstâncias o permitirem à CGTU revolucionária, esta iniciará uma campanha quando considere necessária, dirigindo-se abertamente à CGT reformista com propostas e demandas para um plano concreto de ações coordenadas, e obrigá-la a sofrer a pressão da opinião pública proletária, expondo ante tal opinião pública cada um dos passos incertos e evasivos dos reformistas.

Ainda no caso de que a divisão na organização sindical seja um fato, os métodos de luta pela Frente Única conservaram todo seu significado.

19. Podemos, portanto, estabelecer que em relação ao o setor mais importante do movimento operário – os sindicatos – a tática da Frente Única exige que os métodos com que levamos adiante a luta contra Jouhaux e companhia, sejam aplicados de forma mais consistente e com mais persistência e decisão do que nunca.

IV. A LUTA POLÍTICA E A FRENTE ÚNICA

20. No plano do Partido, existe uma grande diferença com os sindicatos; a preponderância do Partido Comunista sobre o Partido Socialista é enorme. Portanto, é possível supor que o Partido Comunista como tal é capaz de assegurar a unidade da frente política, e que por conseguinte não há razões que o empurrem a dirigir-se à organização dos dissidentes com propostas para ações concretas. Esta questão, a ser pleiteada em uma estrita forma legista, baseada em relação de forças e não em um radicalismo verbal, deve ser apreciada como merece.

21. Quando consideramos que o Partido Comunista conta com 130.000 membros enquanto os socialistas tem 30.000, os êxitos enormes da idéia comunista na França se fazem evidentes. Por outro lado, se consideramos a relação entre esses números e a força numérica do proletariado em seu conjunto e a existência

de sindicatos reformistas, além da existência de tendências anti-comunistas nos sindicatos revolucionários, então a questão da hegemonia do Partido Comunista no movimento operário se apresenta como uma tarefa muito difícil, ainda longe de resolver-se com nossa preponderância numérica frente aos dissidentes. Estes últimos podem, sob outras condições, constituir um fator contra-revolucionário muito mais importante dentro do proletariado do que poderia parecer quando se julga somente através da debilidade de sua organização e a insignificância da tiragem e do conteúdo ideológico de seu órgão, “Le Populaire”.

22. A fim de apreciar a situação, é preciso dar uma síntese clara de seu desenvolvimento. A transformação da maioria do velho Partido Socialista em Partido Comunista se produziu como resultado de uma onda de insatisfação e resulta engendrada pela guerra em todos os países da Europa. O exemplo da Revolução Russa e as consignas da Terceira Internacional indicaram o caminho para sair desta situação. Contudo, a burguesia pôde sustentar-se no período de 1919-20 e pôde, através de medidas combinadas, estabelecer um certo equilíbrio baseado nos cimentos do pós-guerra, equilíbrio que foi socavado pelas mais terríveis contradições e que conduz a grandes catástrofes, mas que provém de certa estabilidade no momento, e por um período muito imediato. A Revolução Russa, superando as maiores dificuldades criadas pelo capitalismo mundial, foi capaz de levar à cabo suas tarefas socialistas apenas de forma gradual, as custas de uma extraordinária drenagem de todas as suas forças. Como resultado disso, o fluxo inicial das tendências revolucionárias deu lugar a um

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refluxo. Somente os setores mais decidido, audazes e jovens do proletariado mundial permaneceram sob a bandeira do comunismo.

Isso naturalmente não significa que os amplos setores do proletariado que se desiludiram nas suas esperanças de uma revolução imediata, de rápidas transformações radicais, etc., voltaram em conjunto a suas antigas posições do pré-guerra. Não, sua insatisfação é mais profunda do que nunca, seu ódio a seus exploradores mais agudo. Mas ao mesmo tempo, se encontram politicamente desorientados, não vêem o caminho da luta e, assim, permanecem passivamente na expectativa, criando a possibilidade de agudas oscilações para um ou outro lado, de acordo com como se apresenta a situação.

Esta grande reserva de elementos passivos e desorientados pode, sob determinadas circunstâncias, ser utilizada pelos divisionistas contra nós.

23. Para apoiar o Partido Comunista, é necessário ter fé na causa revolucionária, ser leal e ativo. Para apoiar aos dissidentes, são necessárias e suficientes a desorientação e a passividade. É absolutamente natural que o setor revolucionário e ativo do proletariado recrute de suas fileiras uma proporção muito maior de membros para o Partido Comunista do que é capaz de prover o setor passivo e desorientado para o Partido dos divisionistas.

O mesmo se pode dizer da imprensa. Os elementos indiferentes lêem pouco. A insignificância da circulação e conteúdo de “Le Populaire” reflete as condições de um setor do

proletariado. O fato de que haja uma ascendência dos intelectuais profissionais sobre os trabalhadores no Partido dos divisionistas não contradiz em absoluta nossa análise; que o proletariado passivo e parcialmente desiludido, parcialmente desorientado, serve, especialmente na França, de fonte de alimento para camarilhas políticas formadas por advogados e jornalistas, curandeiros reformistas e charlatães parlamentares.

24. Se contemplamos a organização do Partido como um exército ativo e às massas proletárias desorganizadas como as reservas, e se garantimos que nosso exército ativo é três ou quatro vezes mais poderoso que o exército ativo dos divisionistas, então, sob uma dada combinação de circunstâncias, as reservas podem se dividir entre nós e os social-reformistas em uma proporção muito menos favorável para nós.

PERIGO DE UM NOVO PERÍODO PACIFISTA

25. A idéia de um “bloco de esquerda” está penetrando na atmosfera política francesa. Depois de um novo período de Poncareismo, que se constitui numa tentativa da burguesia de servir um prato requentado – feito com as ilusões do povo de conseguir a vitória – é bem provável uma reação pacifista em amplos círculos da sociedade burguesa, especialmente entre a pequena burguesia. As esperanças de uma pacificação universal, de um acordo com a URSS, de obter desta, sob condições vantajosas,

matérias primas e o pagamento de suas dívidas, diminuem esmagadas pelo militarismo; e, desta maneira, o programa ilusório do pacifismo democrático pode durante um certo período se transformar no programa de um bloco de esquerda, que substituirá o bloco nacional.

Desde o ponto de vista do desenvolvimento da revolução na França, a mudança de regime será um passo adiante só no caso de que o proletariado tenha sido alcançado muito pouco pelas ilusões do pacifismo pequeno burguês.

26. Os divisionistas reformistas são a atuação do “bloco de esquerda” na classe trabalhadora. Seus êxitos serão maiores conforme menos o proletariado seja alcançado pela idéia prática da Frente Única contra a burguesia. Um setor dos trabalhadores, desorientado pela guerra e a demora no advento da revolução, pode aventurar-se a apoiar o bloco de esquerda como um mal menor, na crença de que não está arriscando nada, e porque não vê outro caminho.

27. Um dos meios mais efetivos para contra-atacar no proletariado as formas e as idéias do bloco de esquerda, ou seja, um bloco formado pelos trabalhadores e certo setor da burguesia contra outro setor da burguesia é insistir decidida e persistentemente na idéia de um bloco formado por todos os setores do proletariado contra o conjunto da burguesia.

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28. Em relação aos divisionistas, isso significa que não devemos permitir-lhes ocupar impunemente uma posição temporalmente evasiva para com o movimento operário, e usar declarações platônicas de simpatia pelos trabalhadores, como uma cobertura para aplicar por trás dos opressores burgueses. Em outras palavras, podemos e devemos, em todas as circunstâncias adequadas, propor aos divisionistas uma forma específica de ajuda conjunta aos grevistas, operários sob lock-out, desempregados, inválidos de guerra, etc., informando às massas sobre sua resposta a nossas propostas, e desta forma, opô-los a certos setores do proletariado politicamente indiferente ou semi-indiferentes, entre os quais os reformistas esperam encontrar logo o apoio, em certas condições propícias.

29. Esse tipo de prática é tão mais importante conforme os divisionistas estão intimamente ligados à CGT reformista, e constituem com esta última as duas alas da atuação burguesa no movimento operário. Devemos tomar a ofensiva simultaneamente no campo sindical e político contra essa agenda de dupla face, aplicando os mesmos métodos táticos.

30. A lógica da nossa conduta impecável e simultaneamente persuasiva na agitação é a seguinte: “Vocês, os reformistas do sindicalismo e socialismo”, dizemos a eles diante das massas, “dividiram os sindicatos e o Partido mediante idéias e métodos que consideramos equivocados e criminais. Exigimos que pelo menos se abstenham de colocar obstáculos nas tarefas do proletariado, e que tornem possível a

unidade de ação. Na situação concreta dada, propomos tal e tal programa de luta”.

31. De forma similar, o método indicado poderia ser empregado com êxito em atividades municipais e parlamentares. Dizemos às massas: “os dissidentes, devido a que não querem a revolução, dividiram os trabalhadores. Estaríamos loucos se confiássemos na sua ajuda para a revolução proletária. Mas estamos dispostos, dentro e fora do parlamento, a entrar em certos acordos práticos com eles, tendo em conta que esses acordos sejam sobre questões que nos obriguem a escolher entre os interesses conhecidos da burguesia e as reivindicações definitivas do proletariado; para apoiar a este último na ação, os divisionistas só podem ser capazes de tais ações se renunciam a suas ligações com os partidos da burguesia, ou seja, o bloco de esquerda e a disciplina burguesa”.

Se os divisionistas fossem capazes de aceitar essas condições, então os trabalhadores que os seguem seriam rapidamente absorvidos pelo Partido Comunista. Mas precisamente devido a isso, os divisionistas não aceitarão essas condições. Em outras palavras, ante a clara e precisa questão de se escolhem um bloco com a burguesia ou um bloco com o proletariado – nas condições concretas e específicas da luta de classes – se verão obrigados a declarar que preferem um bloco com a burguesia. Uma resposta como essa não passará em branco diante das reservas proletárias com as quais contam os reformistas.

V. TAREFAS INTERNAS DO PARTIDO COMUNISTA

32. A política esboçada acima pressupõe, naturalmente, uma completa independência organizativa, clareza ideológica e firmeza revolucionária por parte do Partido Comunista.

Por isso, exemplificando, é impossível levar adiante com êxito uma linha política que tente desacreditar diante das massas a idéia de um bloco de esquerda, se nas filas do nosso próprio Partido há partidários deste bloco em quantidade suficiente para defender abertamente essa linha da burguesia. A expulsão incondicional e sem piedade dos que estejam a favor da idéia de um bloco de esquerda é uma tarefa subentendida do Partido Comunista. Isso limpará nossa linha política de elementos que disseminem o erro e a falta de clareza; atrairá a atenção dos trabalhadores da vanguarda para a importância do problema do bloco de esquerdas, e demonstrará que o Partido Comunista não brinca com as questões que ameaçam a unidade revolucionária na ação do proletariado contra a burguesia.

33. Aqueles que buscam utilizar a idéia da Frente Única para agitar a favor da unificação com os reformistas e os dissidentes, devem ser expulsos sem piedade de nosso Partido, pois servem de agência dos divisionistas em nossas fileiras, e confundem os trabalhadores sobre os motivos da divisão e sobre quem são os responsáveis por ela. Em vez de pleitear corretamente a possibilidade de tal ou qual ação prática coordenada com os dissidentes, apesar

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de seu caráter pequeno-burguês e essencialmente contra-revolucionário, pedem que nosso Partido renuncie a seu programa comunista e a seus métodos revolucionários. A expulsão irrevogável destes elementos demonstrará de forma excelente que a tática da Frente Única proletária de modo algum representa uma capitulação ou reconciliação com os reformistas. A tática da Frente Única exige do Partido uma completa liberdade de manobra, flexibilidade e decisão. Para fazer isso possível, o Partido deve declarar de forma clara e específica, a todo momento, quais são seus desejos, que objetivo de luta se coloca, e deve defender com autoridade, diante das massas, seus passos e propostas.

34. Daqui surge a completa impossibilidade de admitir aos membros do Partido que publiquem individualmente, sob sua própria responsabilidade e risco, questões políticas nas quais opõem suas próprias consignas, métodos de ação e propostas às que representam o Partido.

Sob a cobertura do Partido Comunista e, em conseqüência, também no meio influenciado por uma cobertura comunista, ou seja, o meio operário, esses elementos disseminam dia a dia idéias hostis ao Partido, ou disseminam a confusão ou a desconfiança, o que resulta mais danoso do que as ideologias abertamente hostis.

Os órgãos desta classe, junto com seus editores, devem ser expulsos do Partido e a França proletária toda deve se inteirar desta ação, por

meio de artigos que exponham sem piedade aos contrabandistas pequeno-burguesas que atuam sob a bandeira comunista.

35. Do que foi dito até agora, surge também a completa inadmissibilidade de que nas publicações fundamentais do Partido apareçam, junto a artigos que defendem os conceitos básicos do comunismo, outros trabalhos que os combatam ou os neguem. É absolutamente inadmissível a continuação, na imprensa do Partido, de um regime sob o qual os leitores proletários achem, sob a coberta dos editoriais das principais publicações do Partido, artigos que tratem de retrocedê-los a posições de um pacifismo lacrimoso, e que propaguem entre os operários uma hostilidade que debilita a violência revolucionária diante da violência triunfante da burguesia. Sob a máscara de uma luta contra o militarismo, se conduz uma luta contra as idéias da revolução e do levantamento das massas.

Se depois da experiência da guerra e de todos os acontecimentos posteriores, especialmente na URSS e na Alemanha, os preconceitos do pacifismo humanitário ainda sobrevivem no Partido Comunista, e se o Partido considera necessário – no interesse da completa liquidação destes preconceitos – abrir uma discussão a respeito, os pacifistas e seus preconceitos em nenhum caso podem intervir na discussão com uma força igual, mas sim devem ser condenados severamente pela direção do Partido, em nome de seu Comitê Central. Logo que o Comitê Central haja decidido que a discussão está esgotada, toda tentativa de esparramar idéias do tolstoismo ou qualquer outra variante do pacifismo, deve

provocar irrevogavelmente a expulsão das fileiras do Partido.

36. Se poderia afirmar, entretanto, que enquanto não se complete a tarefa de limpar o Partido dos preconceitos do passado e de completar sua coesão interna, seria perigoso colocar o Partido em situações que se aproximasse estreitamente dos reformistas e nacionalistas. Mas este ponto de vista é falso, naturalmente, não se pode negar que a transição de uma ampla atividade propagandística à participação direta no movimento de massas agrega novas dificuldades e, portanto, perigos para o Partido Comunista. Mas seria totalmente errôneo supor que o Partido pode preparar-se para todas estas provas sem participar diretamente na luta, sem entrar diretamente em contato com inimigos e adversários. Pelo contrário, só assim se pode alcançar uma limpeza e coesão interna do Partido real, não fictícia. Pode ser que alguns elementos no Partido e na burocracia operária sintam-se mais inclinados aos reformistas, dos quais se separaram acidentalmente, do que a nós. Perder a essas aves de passagem não será um perigo, sim uma vantagem, e será compensado cem vezes pela injeção no Partido dos trabalhadores e trabalhadoras que hoje seguem ainda os reformistas. O Partido se tornará então mais homogêneo, mais decidido e mais proletário.

VI. AS TAREFAS DO PARTIDO NO MOVIMENTO SINDICAL

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37. Uma das tarefas mais fundamentais é a de adquirir uma absoluta clareza frente ao problema sindical, tarefa que ultrapassa em muito às outras que enfrenta o Partido Comunista na França.

Naturalmente, a lenda difundida pelos reformistas, de que se estão fazendo planos para subordinar os sindicatos organizativamente ao Partido, deve ser denunciada e exposta energicamente. Os sindicatos contam com trabalhadores de tendências políticas diferentes, assim como com homens sem Partido, ateus ou crentes; por outro lado, o Partido une em suas fileiras homens que pensam igual politicamente, sobre a base de um programa definido. O Partido não tem nem pode ter instrumentos nem métodos para atar aos sindicatos de fora deles.

O Partido pode ganhar influência na vida dos sindicatos se seus militantes trabalham nos sindicatos e levam para eles o ponto de vista do Partido. A influência dos membros do Partido nos sindicatos depende naturalmente de sua força numérica; e especialmente na medida em que sejam capazes de aplicar corretamente e de forma consistente e rápida os princípios do Partido às necessidades do movimento sindical.

O Partido tem o direito e o dever de se propor a conquistar, segundo a linha traçada acima, uma influência decisiva nas organizações sindicais. Só alcançará seu objetivo se o trabalho dos comunistas nos sindicatos se harmoniza completa e exclusivamente com os princípios do Partido, e se é conduzido invariavelmente sob seu controle.

38. As mentes de todos os comunistas devem, portanto, ser purificadas de todo preconceito reformista, que faça o Partido aparecer como uma organização política parlamentar do proletariado e nada mais. O Partido Comunista é a organização da vanguarda proletária para a frutificação ideológica do movimento operário, e para assumir sua direção em todas as esferas, principalmente nos sindicatos. Se os sindicatos não estão subordinados a um Partido, pois são organizações completamente autônomas, os comunistas dentro dos sindicatos nem por isso devem pretender realizar uma tarefa sindical autônoma, mas sim atuar como os transmissores do programa e da tática de seu Partido. Condenamos severamente a conduta daqueles comunistas que não só não lutam nos sindicatos pela influência das idéias do Partido, mas que também contra-atacam essa luta em nome de um princípio de “autonomia” aplicado por eles de forma absolutamente falsa. Na realidade, preparam o caminho para a influência decisiva no campo sindical de indivíduos, grupos e camarilhas que não tem nenhum programa definido nem se agrupam em torno de uma organização, e que utilizam o amorfo dos setores e relações ideológicas para manter o aparato organizativo em suas mãos, e assegurar a independência de sua camarilha de todo controle por parte da vanguarda proletária.

Se o Partido, em sua atividade nos sindicatos, deve mostrar a maior atenção e cuidados para com as massas sem Partido e para com seus representantes conscientes e honestos; se o Partido deve, sobre a base de sua tarefa conjunta, aproximar-se estreitamente aos melhores elementos do movimento sindical – inclusive os anarquistas revolucionários que sejam capazes aprender – o Partido, por outro lado, não deve tolerar os pseudo-comunistas

que utilizam dos Estatutos do Partido apenas para exercer uma influência anti-partidária nos sindicatos.

39. O Partido, através de sua imprensa, de seus propagandistas e seus membros nos sindicatos, deve submeter a uma crítica constante e sistemática os defeitos do sindicalismo revolucionário, com o intuito de resolver as tarefas básicas do proletariado. O Partido deve criticar, sem cansaço e com persistência, os aspectos teóricos e práticos débeis do sindicalismo, explicando ao mesmo tempo a seus melhores elementos que o único caminho correto para assegurar a influência revolucionária nos sindicatos e no movimento operário em seu conjunto é o ingresso no Partido Comunista, é sua participação na solução de todas as questões básicas do movimento, na busca de conclusões das experiências, na fixação de novas tarefas, na limpeza do próprio Partido e no fortalecimento de suas ligações com o proletariado.

40. É absolutamente indispensável fazer um censo de todos os membros do Partido Comunista francês, a fim de determinar seu estado social (operários, empregados públicos, camponeses, intelectuais, etc.), suas relações com o movimento sindical (pertencem aos sindicatos? Participam nos motins comunistas? Em motins dos sindicatos revolucionários? Aplicam nos sindicatos as resoluções do Partido?, etc.); sua atitude para com a imprensa do Partido (que publicações do partido lêem?), e assim sucessivamente.

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Este censo deve ser levado à cabo de forma que seus principais aspectos possam se considerar antes do advento do Quarto Congresso Mundial da Internacional Comunista.

Março de 1922.

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PARTE III

NOSSA CONCEPÇÃO DE SOCIALISMO

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PARTE III – NOSSA CONCEPÇÃO DE SOCIALISMO

Ecossocialismo e planejamento democrático

Michael Löwy

Michael Löwy, sociólogo marxista, é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em Paris.

[Tradução do francês por Rita Calvário e Jorge Costa para o português de Portugal.]

Fonte: Vírus [http://esquerda.net/virus/]

“Se o capitalismo não pode ser reformado para subordinar o lucro à sobrevivência humana, que alternativa existe senão caminhar para um tipo de economia nacional ou globalmente planificada? Problemas como as alterações climáticas requerem a 'mão visível' do planejamento direto. (…) Os nossos empresários capitalistas não se podem ajudar a si próprios. Sobre economia e ambiente, não têm escolha senão tomar sistematicamente decisões erradas, irracionais e, em última análise – dada a

tecnologia que comandam –suicidas. Então, que outra escolha temos além de considerar uma verdadeira alternativa ecossocialista?”

Robert Smith (1)

“Ecossocialismo” é a tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao que Marx chamou o "processo destrutivo" do capitalismo (2). Ela avança com uma política econômica fundada nos critérios não-monetários e extra-econômicos das necessidades sociais e do equilíbrio ecológico. Fundado nos argumentos básicos do movimento ecologista e da crítica marxista da economia política, esta síntese dialética – tentada por um vasto espectro de autores, de André Gorz (nos seus primeiros escritos) a Elmar Altvater, James O'Connor, Joel Kovel e John Bellamy Foster – é ao mesmo tempo uma crítica da "ecologia de mercado", que não desafia o sistema capitalista, e do "socialismo produtivista", que ignora a questão dos limites naturais.

Segundo O'Connor, o objetivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e no predomínio do valor de uso sobre o valor de troca (3). Eu acrescentaria que estes valores requerem: (a) propriedade coletiva dos meios de produção ('coletiva' significa aqui propriedade pública, cooperativa ou comunitária); (b) planejamento democrático, que torna possível à sociedade definir os seus objetivos de investimento e produção; e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Por

outras palavras, uma transformação revolucionária, econômica e social (4).

Para os ecossocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, representadas pela maioria dos partidos Verdes, é que eles não parecem tomar em conta a contradição intrínseca entre as dinâmicas de expansão ilimitada do capital e de acumulação de lucros, e a preservação do ambiente. Isto conduz a uma crítica do produtivismo, muitas vezes relevante, mas não vai além de uma economia de mercado ecologicamente reformada. O resultado é que muitos partidos Verdes se tornaram no álibi ecológico de governos social-liberais de centro-esquerda (5).

Por outro lado, o problema das correntes dominantes na esquerda ao longo do século XX – a social-democracia e o movimento comunista de inspiração soviética – é a sua aceitação do padrão de forças produtivas realmente existente. Enquanto a primeira se limitava a uma versão reformada do sistema capitalista, keyenesiana na melhor das hipóteses, a segunda desenvolveu uma forma autoritária de produtivismo coletivista – ou capitalista de Estado.

Os próprios Marx e Engels não ignoravam as consequências de devastação ambiental do modo de produção capitalista; há várias passagens de O Capital e de outros textos que indicam esta compreensão (6). Além disso, eles acreditavam que o objetivo do socialismo não é produzir mais e mais bens, mas proporcionar aos seres humanos tempo livre para desenvolverem plenamente as suas potencialidades. Nesta medida, têm pouco em comum com o 'produtivismo', i.e., com a ideia de

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que a expansão ilimitada da produção é um objetivo em si.

Porém, as passagens dos seus escritos sobre o efeito do socialismo no desenvolvimento das forças produtivas para além dos limites impostos pelo sistema capitalista, circunscrevem a transformação socialista às relações de produção capitalistas, que se tornaram um obstáculo ('amarras' é o termo frequente) ao livre desenvolvimento das forças produtivas existentes. Socialismo significaria, acima de tudo, “apropriação social” da capacidade produtiva, colocando-a a serviço dos trabalhadores. Citando uma passagem do Anti-Dühring, uma obra canônica para muitas gerações de marxistas, sob o socialismo "a sociedade toma posse, abertamente e sem rodeios, das forças produtivas, que se tornaram demasiado grandes" para o presente sistema (7).

A experiência da União Soviética ilustra os problemas que resultam da apropriação coletivista dos aparelhos de produção capitalistas. Desde o início, predominou a tese da socialização das forças produtivas existentes. É verdade que, nos primeiros anos após a Revolução de Outubro, desenvolveu-se uma corrente ecologista e foram tomadas pelas autoridades soviéticas algumas medidas limitadas de proteção ambiental. Mas com o processo stalinista de burocratização, os métodos produtivistas na indústria e na agricultura impuseram-se por meios totalitários, enquanto os ecologistas foram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl foi o exemplo acabado das consequências desastrosas desta imitação das tecnologias produtivas ocidentais. Uma mudança nas formas de propriedade a que não suceda uma gestão

democrática e a reorganização do sistema produtivo só pode levar a um beco sem saída.

Uma crítica da ideologia produtivista do “progresso” e da ideia de uma exploração “socialista” da natureza, aparecia já nos escritos de alguns dissidentes marxistas dos anos 30, tais como Walter Benjamin. Mas é sobretudo ao longo das últimas décadas que o “ecossocialismo” se desenvolve como um desafio à tese da neutralidade das forças produtivas, que continuam a predominar nas principais correntes da esquerda do século XX.

Os ecossocialistas deveriam inspirar-se nas observações de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho de Estado capitalista e colocá-lo ao seu serviço. Eles têm de “quebrá-lo” e substitui-lo por um poder político radicalmente diferente, democrático e não-estatista. O mesmo se aplica, “mutatis mutandis”, ao aparelho produtivo, que não é "neutro", antes transporta na sua estrutura a marca do seu desenvolvimento a serviço da acumulação de capital e da expansão ilimitada do mercado. Isto coloca-o em contradição com as necessidades de proteção ambiental e com a saúde da população. Ele deve portanto ser “revolucionadorizado”, num processo de transformação radical.

É claro que muitas conquistas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o conjunto do sistema produtivo deve ser mudado, e isto só pode ser feito por métodos ecossocialistas, i.e, através de um planejamento democrático da economia que tenha em conta a preservação do equilíbrio ecológico. Para alguns setores da produção, isto pode significar uma descontinuidade. Por exemplo: instalações nucleares, certos métodos de pesca industrial

em massa (responsáveis pelo quase-extermínio de numerosas espécies marinhas), o abate destrutivo de florestas tropicais, etc. – a lista é muito longa. No entanto, começa por exigir uma revolução no sistema energético, com a substituição das atuais fontes (sobretudo fósseis), responsáveis pelo envenenamento do ambiente, por fontes renováveis de energia: água, vento, sol. Este tema é decisivo porque as energias fósseis (petróleo, carvão) são responsáveis por muita da poluição no planeta, tal como pelas mudanças no clima. A energia nuclear é uma falsa alternativa, não só pelo perigo de novos Chernobyl, mas também porque ninguém sabe o que fazer com milhares de toneladas de resíduos nucleares – tóxicos – durante centenas, milhares e por vezes milhões de anos, e com gigantescas instalações obsoletas e contaminadas. A energia solar, que nunca levantou grande interesse nas sociedades capitalistas (não sendo “rentável” ou “competitiva”), deve tornar-se objeto de investigação e desenvolvimento intensivos e ter um papel-chave no desenvolvimento de um sistema energético alternativo.

Tudo isto deve ser realizado sob as condições necessárias do pleno emprego e do emprego justo. Estas condições são essenciais, não só para cumprir um desígnio de justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe trabalhadora ao processo de transformação estrutural das forças produtivas. Este processo é impossível sem o controle público dos meios de produção e sem planejamento, i.e. decisões públicas sobre investimento e mudança tecnológica que devem ser tomadas longe dos bancos e das empresas capitalistas, de modo a servirem o bem-comum da sociedade.

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Mas não basta colocar estas decisões nas mãos dos trabalhadores. No terceiro volume de O Capital, Marx definiu o socialismo como a sociedade onde “os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas ('Stoffwechsel') com a natureza”. Mas no primeiro volume da mesma obra é feita uma abordagem mais ampla: o socialismo é concebido como “uma associação de seres humanos livres ('Menshen') que trabalha com meios de produção comuns ('Gemeinschaftlichen')” (8). Esta concepção é muito mais apropriada: a organização racional da produção e do consumo tem que ser obra não são só dos "produtores", mas também dos consumidores; com efeito, de toda a sociedade, com a população produtiva e também "não-produtiva", a qual inclui estudantes, jovens, domésticas (e domésticos), pensionistas, etc.

Neste sentido, toda a sociedade poderá escolher, democraticamente, que linhas produtivas devem ser privilegiadas, e que recursos deverão ser investidos em educação, saúde ou cultura (9). Os próprios preços dos bens não serão deixados à leis da oferta e da procura, mas determinados, até onde for possível, por critérios sociais, políticos e ambientais. Inicialmente, isto envolveria apenas taxas sobre alguns produtos e preços subsidiados para outros. Mas, idealmente, com o avanço da transição para o socialismo, mais e mais produtos poderiam ser distribuídos sem custos e de acordo com a vontade dos cidadãos.

Longe de ser “despótico” em si, o planejamento democrático é o exercício, pelo conjunto da sociedade, da sua liberdade de decisão. É isto que é necessário para a libertação das “leis da economia”, reificadas e alienantes, caixa forte das estruturas capitalistas e

burocráticas. O planejamento democrático, combinado com a redução do tempo de trabalho, seria um passo decisivo da humanidade para o que Marx chamou "o reino da liberdade". Isto porque um aumento significativo do tempo livre é de fato uma condição para a participação da população trabalhadora na discussão democrática e na gestão da economia e da sociedade.

Os partidários do mercado livre apontam o falhanço do planejamento soviético como uma razão para rejeitar qualquer idéia de economia organizada. Sem entrar no debate sobre os feitos e misérias da experiência soviética, era obviamente uma forma de "ditadura sobre as necessidades" – para usar a expressão de György Markus e dos seus amigos da Escola de Budapeste: um sistema não-democrático e autoritário que deu o monopólio de todas as decisões a um punhado de tecno-burocratas. Não foi o planejamento que levou à ditadura, mas sim as crescentes limitações à democracia no Estado soviético e, após a morte de Lenin, o estabelecimento de um poder "burocrático" totalitário, que conduziu a um sistema de planejamento cada vez mais autoritário. Se o socialismo significa o controlo pelos trabalhadores e pela população em geral do processo produtivo, a URSS sob Stalin e seus sucessores era um longínquo eco disso.

O fracasso da URSS ilustra os limites e contradições do planejamento burocrático, que é inevitavelmente ineficiente e arbitrário, e não pode ser usado como argumento contra o planejamento "democrático" (10). A concepção socialista de planejamento não é senão a democratização radical da economia: se as decisões políticas não devem ser deixadas a uma elite de governantes, porque não deveria tal

princípio aplicar-se às da economia? O equilíbrio a atingir entre planejamento e mecanismos de mercado é uma questão assumidamente difícil: durante os primeiros estágios de uma nova sociedade, os mercados manterão certamente um lugar importante, mas à medida que avançar a transição para o socialismo, o planejamento será cada vez mais predominante, contra as leis do valor de troca (11).

Engels insistiu que uma sociedade socialista “terá que estabelecer um plano de produção levando em conta os meios de produção, especialmente incluindo a força de trabalho. Serão, em última instância, os efeitos úteis de vários objetos de uso, comparados entre si e em relação à quantidade de trabalho necessária à sua produção, que determinarão o plano” (12). No capitalismo, o valor de uso é apenas um meio – frequentemente, um truque – ao serviço do valor de troca e do lucro (que explica, aliás, porque tantos produtos na atual sociedade são essencialmente inúteis). Numa economia socialista planejada, o valor de uso é o único critério para a produção de bens e serviços, com consequências econômicas, sociais e ambientais de longo alcance. Como Joel Kovel observou: "a alta do valor de uso e a correspondente reestruturação das necessidades tornam-se o regulador social da tecnologia, em lugar da conversão do tempo em mais-valia e dinheiro, como sucede sob o capital" (13).

No tipo de sistema de planejamento democrático aqui enunciado, o plano abrange as principais opções econômicas, não a administração de restaurantes, mercearias e padarias, pequenas lojas, empresas artesãs e serviços. É importante enfatizar também que o plano não entra em contradição com a autogestão das unidades produtivas pelos seus

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trabalhadores. Enquanto a decisão, tomada através do sistema de planejamento, de converter, por exemplo, uma fábrica de automóveis ao fabrico de ônibus e bondes seria tomada pela sociedade como um todo, a organização interna e o funcionamento da fábrica deveriam ser democraticamente geridos pelos seus trabalhadores. Houve muita discussão sobre a natureza “centralizada” ou “descentralizada” do planejamento, mas pode argumentar-se que o pomo da questão é o controle do plano a todos os níveis – local, regional, nacional, continental e, desejavelmente, internacional, uma vez que as questões ecológicas tais como o aquecimento global são planetárias e devem ser abordadas à escala global. Deveríamos chamar-lhe “planejamento democrático global”. Mesmo a este nível, seria bastante oposto ao que usualmente se chama “planejamento central”, uma vez que as decisões econômicas e sociais não são tomadas por qualquer "centro", mas sim democraticamente decididas pelas populações envolvidas.

Claro que haverá inevitáveis tensões e contradições entre estabelecimentos auto-geridos, administrações locais democráticas, grupos sociais alargados. Mecanismos de negociação podem ajudar a resolver alguns desses conflitos. Mas, em última análise, os maiores grupos envolvidos, se forem majoritários, devem poder impor a sua visão. Para dar um exemplo: uma fábrica autogerida decide evacuar no rio os seus resíduos tóxicos. A população de toda a região está em risco de contaminação: pode, portanto, decidir que a produção nesta unidade deve ser interrompida até ser encontrada uma solução satisfatória para o controle dos resíduos. Desejavelmente, numa

sociedade ecossocialista, os trabalhadores fabris teriam a consciência ecológica necessária para evitar decisões como aquela. Mas instituir meios para assegurar que os interesses sociais mais amplos têm a palavra final, como no exemplo anterior, não significa que assuntos relativos à gestão interna deixem de ser encaminhados no nível da fábrica, escola, bairro, hospital ou cidade.

O planejamento socialista deve se assentar no debate democrático e pluralista, em todos os níveis em que as decisões são tomadas. Organizadas sob a forma de partidos, plataformas, ou quaisquer outros movimentos políticos, os delegados para o organismo de planejamento são eleitos, e as diferentes propostas são apresentadas às populações abrangidas por elas. A democracia representativa deve ser completada – e corrigida – pela democracia direta, em que as pessoas escolhem diretamente sobre as grandes opções. Deve o transporte público ser gratuito? Devem os possuidores de viatura privada pagar impostos especiais para subsidiar os transportes públicos? Deve a energia solar ser subsidiada para competir com as energias fósseis? Deve a semana de trabalho ser reduzida a 30 ou 25 horas, ou menos, mesmo que isso signifique uma redução na produção? A natureza democrática do planejamento não é incompatível com a existência de especialistas: o seu papel não é decidir, mas sim apresentar no processo democrático as suas perspectivas (muitas vezes diferentes, senão opostas). Como Ernest Mandel afirma, “governos, partidos, conselhos de planejamento, cientistas, tecnocratas, ou seja quem for, podem fazer sugestões, avançar propostas, tentar influenciar as pessoas. Mas sob um sistema multipartidário,

tais propostas nunca serão unânimes: as pessoas terão a escolha entre alternativas coerentes. E o direito e o poder para 'decidir' deve estar nas mãos da maioria dos produtores/consumidores/cidadãos e nas de mais ninguém. Que há nisto de despótico ou paternalista?” (14).

Há garantia de que as pessoas tomarão as decisões ambientais corretas, mesmo à custa dos seus hábitos de consumo? Não existe tal “garantia”, além da razoável expectativa que a racionalidade prevaleça nas decisões democráticas quando o poder do fetichismo da mercadoria estiver quebrado. Claro que serão cometidos erros por vontade popular, mas quem acredita que os especialistas não erram? De resto, ninguém pode imaginar o advento de uma nova sociedade sem que a maioria da população tenha atingido pela sua luta, pela auto-formação e experiência social, um alto nível de consciência ecológica e socialista (15). Seja como for, não são as alternativas muito mais perigosas – o mercado cego, uma ditadura ecológica de “especialistas” – do que o processo democrático, com todas as suas limitações?

É verdade que o planejamento requer a existência de organismos executivos/técnicos, encarregados de pôr em prática o decidido, mas estes não serão necessariamente autoritários desde que colocados sob controle permanente a partir de baixo e se incluírem autogestão dos trabalhadores num processo de administração democrática. É evidente que ninguém quer imaginar a maioria do povo a gastar todo o seu tempo livre em autogestão ou reuniões de participação. Como assinalou Mandel, "a auto-administração não implica o desaparecimento da delegação, combina a tomada de decisões

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pelos cidadãos com um controle mais estrito dos delegados pelo seu respectivo eleitorado" (16).

A "economia participativa" ("parecon") de Michael Albert foi objeto de algum debate no movimento da alterglobalização. Apesar de alguns atalhos na sua abordagem de conjunto, que parece ignorar a ecologia, e contrapõe a “parecon” ao socialismo de modelo soviético, ela tem elementos comuns com o tipo de planejamento ecossocialista aqui proposto: oposição ao mercado socialista e ao planejamento burocrático, compromisso com a auto-organização dos trabalhadores, anti-autoritarismo. O modelo de planejamento participativo de Albert baseia-se numa complexa construção institucional:

“Os participantes no planejamento participativo são os conselhos e federações de trabalhadores, os conselhos e federações de consumidores e vários Conselhos de Facilitação (CFI). Conceitualmente, o planejamento é bastante simples. Um CFI anuncia o que chamaremos "preços indicativos" para todos os bens, recursos, categorias de trabalho, e capital. Os conselhos e federações de consumidores respondem com propostas de consumo, tomando os preços indicativos dos bens e serviços como estimativas do custo social do seu fornecimento. Os conselhos e federações de trabalhadores respondem com propostas de produção, listando os outputs que poderão disponibilizar e os inputs de que precisarão para isso; tomando os preços indicativos como estimativas dos benefícios sociais trazidos pelos outputs e dos verdadeiros custos de oportunidade dos inputs. Um CFI calcula então o excesso de procura ou oferta para cada bem e ajusta o respectivo preço, de acordo com algoritmos socialmente aceitos. Usando os

novos preços indicativos, os conselhos e federações de consumidores e trabalhadores revêem e reformulam as suas propostas (…) Em vez do domínio dos capitalistas ou dos coordenadores sobre os trabalhadores, a parecon é uma economia na qual trabalhadores e consumidores, juntos, determinam cooperativamente as suas opções econômicas e se beneficiam delas de forma a promover a igualdade, a solidariedade, a diversidade e a autogestão.” (17)

O principal problema desta concepção – a qual não é simples, mas extremamente elaborada e por vezes mesmo obscura – é que parece reduzir o “planejamento” a uma espécie de negociação entre produtores e consumidores em relação aos preços, “inputs” e “outputs”, oferta e procura. Por exemplo, o conselho dos trabalhadores da indústria de automóvel poderia reunir-se com o conselho de consumidores para discutir os preços e adaptar a oferta à procura. O que isto deixa de fora é precisamente o que constitui a questão principal no planejamento ecossocialista: a reorganização do sistema de transportes, reduzindo radicalmente o lugar para o automóvel privado. Uma vez que o ecossocialismo requer que setores inteiros da indústria desapareçam – centrais nucleares, por exemplo – e investimentos massivos em setores pequenos e praticamente inexistentes (e.g. energia solar), como pode isto ser resolvido por “negociações cooperativas” entre as unidades de produção existentes e os conselhos de consumidores em relação a “inputs” e “preços indicativos”?

O modelo de Albert olha para a estrutura produtiva e tecnológica existente e é demasiado “economicista” para tomar em conta os

interesses gerais, socio-políticos e socio-ecológicos da população – os interesses dos indivíduos, como cidadã/os e seres humanos, os quais não podem ser reduzidos aos seus interesses econômicos como produtores e consumidores. Ele deixa de fora não apenas o Estado como instituição – uma opinião respeitável – mas também a “política” como o confronto entre as diferentes opções econômicas, sociais, políticas, ecológicas, culturais e civilizacionais, em nível local, nacional e global.

Isto é muito importante porque a transição do “progresso destrutivo” capitalista para o socialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária permanente da sociedade, cultura e mentalidades – e a “política” no sentido atrás definido não pode deixar de ser central. É importante enfatizar que tal processo não pode começar sem a transformação revolucionária das estruturas sociais e políticas, e o apoio ativo, pela grande maioria da população, de um programa ecossocialista. O desenvolvimento de consciência socialista e percepção ecológica é um processo no qual o fator decisivo é a própria experiência coletiva das pessoas em luta, partindo dos confrontos locais e parciais para a transformação radical da sociedade.

Esta transição pode levar não apenas a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um "modo de vida" alternativo, a uma nova “civilização” ecossocialista, para além do reino do dinheiro, dos hábitos artificiais de consumo produzidos pela publicidade e da produção ilimitada de bens que são inúteis e/ou danosos para o ambiente. Alguns ecologistas acreditam que a única alternativa ao produtivismo é

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“travar o crescimento”, ou substitui-lo por crescimento negativo – o que os franceses chamam de “décroissance” – e reduzir drasticamente o nível excessivamente elevado de consumo da população cortando pela metade a utilização de energia, através da renúncia às habitações individuais, aquecimento central, máquinas de lavar, etc. Uma vez que estas e outras medidas similares de autoridade draconiana se arriscam a ser bastante impopulares, alguns dos defensores do “décroissance” jogam com a ideia de uma espécie de “ditadura ecológica” (18). Contra estas perspectivas pessimistas, os socialistas otimistas acreditam que o progresso técnico e o uso de fontes de energia renovável vão permitir um crescimento ilimitado e abundância e que cada um/a receba “de acordo com as suas necessidades”.

Julgo que ambas as escolas partilham uma concepção meramente “quantitativa” de “crescimento” – positivo ou negativo – e do desenvolvimento das forças produtivas. Há, no entanto, uma terceira posição, a qual me parece mais apropriada: a “transformação qualitativa” do desenvolvimento. Isto significa colocar um fim ao monstruoso desperdício de recursos pelo capitalismo, baseado na produção, em larga escala, de produtos inúteis ou danosos: a indústria de armamento é um bom exemplo, mas uma boa parte dos bens produzidos no capitalismo – com a sua obsolescência própria – não têm outra utilidade que a de gerar lucro para as grandes empresas. A questão não é o “consumo excessivo” em abstrato, mas o “tipo” de consumo prevalecente, baseado na apropriação conspícua, desperdício massivo, alienação mercantil, acumulação obsessiva de bens e a aquisição compulsiva de pseudo-

novidades impostas pela “moda”. Uma nova sociedade iria orientar a produção para a satisfação das necessidades autênticas, começando por aquelas que podem ser descritas como “bíblicas” – água, alimentos, vestuário, habitação – mas incluindo também os serviços básicos: saúde, educação, transporte, cultura.

Obviamente, os países do Sul, onde estas necessidade estão muito longe de estarem satisfeitas, vão precisar de um nível muito mais elevado de “desenvolvimento” – construindo estradas, hospitais, sistemas de saneamento e outras infra-estruturas – do que os industrialmente avançados. Mas não há razão para isto não ser atingido com um sistema produtivo amigo do ambiente e baseado em energias renováveis. Estes países vão precisar de produzir grandes quantidades de alimentos para alimentar as suas populações esfomeadas, mas isto pode ser muito melhor conseguido – como os movimentos camponeses da “Via Campesina” têm vindo a argumentar – através da agricultura biológica baseada em unidades familiares, cooperativas ou explorações coletivizadas, do que pelos métodos destrutivos e anti-sociais do agronegócio industrializado, assente no uso de pesticidas, produtos químicos e transgênicos. Em vez do presente sistema monstruoso de dívida, e da exploração imperialista dos recursos do Sul pelos países capitalistas industrializados, haveria uma corrente de apoio técnico e econômico do Norte para o Sul, sem a necessidade – como alguns puritanos e ascéticos ecologistas parecem acreditar – da população da Europa ou América do Norte reduzir os seus padrões de vida em termos absolutos. Em vez disso, eles apenas se livrariam do consumo obsessivo e de mercadorias inúteis que não correspondem a

nenhuma necessidade real, enquanto se redefiniria o significado de padrão de vida no sentido de modo de vida.

Como distinguir as necessidades autênticas das artificiais, falsas e criadas? A indústria da publicidade – induzindo necessidades através da manipulação mental – invadiu todas as esferas da vida humana nas sociedades modernas capitalistas: não apenas alimentação e vestuário, mas também desporto, cultura, religião e política são moldadas de acordo com as suas regras. Invadiu as ruas, caixas de correio, ecrãs de televisão, jornais, paisagens, numa forma permanente, agressiva e insidiosa, e contribui decisivamente para os hábitos de consumo compulsivo e conspícuo. Além disso, gasta uma quantidade astronômica de petróleo, eletricidade, tempo de trabalho, papel, produtos químicos e outras matérias-primas – todas pagas pelos consumidores – para um tipo de "produção" que não só é inútil, de um ponto de vista humano, mas diretamente em contradição com as reais necessidades sociais. Enquanto a publicidade é uma dimensão indispensável no mercado da economia capitalista, não teria lugar numa sociedade em transição para o socialismo, onde seria substituída por informação sobre bens e serviços providenciados pelas associações de consumidores. O critério para distinguir uma necessidade autêntica de uma artificial, seria pela sua persistência após a supressão da publicidade. Claro que durante algum tempo os velhos hábitos de consumo iriam persistir e ninguém tem o direito de dizer às pessoas o que são as suas necessidades. Alterar os padrões de consumo é um processo histórico, bem como um desafio educacional.

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Algumas mercadorias, como o carro individual, levantam problemas mais complexos. Os carros privados são uma agressão pública, matando e mutilando centenas de milhares de pessoas todos os anos à escala mundial, poluindo o ar das cidades grandes – com consequências nefastas para a saúde de crianças e idosos – e contribuindo significativamente para as alterações do clima. No entanto, eles correspondem a necessidades reais nas presentes condições diárias do capitalismo. Experiências locais em cidades européias com administrações com preocupações ambientais mostram que é possível – e aceito pela maioria da população – limitar progressivamente o papel do automóvel individual a favor de ônibus e bondes. Num processo de transição para o ecossocialismo, onde o transporte público seria amplamente expandido e libertado de tarifas, e onde os peões e ciclistas teriam faixas de proteção, o carro privado irá ter um papel muito menor que na sociedade burguesa, onde se tornou um fetiche promovido pela publicidade insistente e agressiva, um símbolo de prestígio, um sinal de identidade (nos EUA a carta de condução é o cartão de identificação reconhecido) e um foco da vida pessoal, social e erótica (19). Na transição para uma nova sociedade, será muito mais fácil reduzir drasticamente o transporte de mercadorias por caminhões – responsáveis por terríveis acidentes e elevados níveis de poluição –, substituindo-o pelo transporte ferroviário ou pelo que os franceses chamam de ”ferroutage” (caminhões transportados nos comboios de uma cidade para outra). Só a lógica absurda da “competitividade” capitalista explica o perigoso crescimento do sistema de transporte rodoviário pesado.

Sim, responderão os pessimistas, mas os indivíduos são movidos por aspirações e desejos infinitos que têm de ser controlados, vigiados, contidos e se necessário reprimidos, e isto pode apelar a algumas limitações na democracia. Mas o ecossocialismo é baseado na expectativa razoável, já tratada por Marx: a predominância, numa sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do “ser” sobre o “ter”, i.e. do tempo livre para a realização pessoal através de atividades culturais, desportivas, científicas, eróticas, artísticas e políticas, em vez do desejo infinito de posse de produtos. A aquisição compulsiva é induzida pelo fetichismo das mercadorias inerente ao sistema capitalista, pela ideologia dominante e a publicidade: nada prova que é parte da “eterna natureza humana”. Como Ernest Mandel enfatizou, “a acumulação contínua de mais e mais bens (com uma 'utilidade marginal' em declínio) não significa de forma alguma uma condição universal ou sequer predominante do comportamento humano. O desenvolvimento de talentos e inclinações para benefício próprio; a proteção da vida e saúde; o cuidado pelas crianças; o desenvolvimento de relações sociais ricas (…) tudo isto se torna motivação maior assim que as necessidades materiais tenham sido satisfeitas” (20).

Como temos insistido, isto não significa que não vão surgir conflitos, particularmente durante o processo de transição, entre os requisitos de proteção do ambiente e as necessidades sociais, entre os imperativos ecológicos e a necessidade de desenvolver infra-estruturas básicas, particularmente nos países pobres, entre os hábitos populares de consumo e a escassez de recursos. Uma sociedade sem

classes não é uma sociedade sem contradições e conflitos. Estes são inevitáveis: resolvê-los será uma tarefa do planejamento democrático, numa perspectiva ecossocialista, liberto dos imperativos do capital e do lucro, através de discussões plurais e abertas, com decisões tomadas pela própria sociedade. Tal democracia de base e participativa é a única forma, não de evitar erros, mas de permitir a correção, pelo coletivo social, dos seus próprios erros.

É isto Utopia? No seu sentido etimológico – “algo que não existe em lado nenhum” – certamente. Mas não serão as utopias, i.e. visões de um futuro alternativo, de imagens desejosas de uma sociedade diferente, condição necessária de qualquer movimento que queira desafiar a ordem estabelecida? Como explicou Daniel Singer no seu testamento literário e político, Whose Millenium?, num poderoso capítulo intitulado "Utopia Realista":

“… Se a ordem estabelecida agora parece tão sólida, apesar das circunstâncias, e se o movimento dos trabalhadores ou a maioria da esquerda está tão deficiente, tão paralisada, é por causa da falha em oferecer alternativas radicais (…) O princípio básico do jogo é que não se questiona nem os fundamentos dos argumentos nem as fundações da sociedade. Apenas uma alternativa global, rompendo com essas regras de resignação e desistência, podem dar ao movimento de emancipação uma perspectiva genuína.” (21)

A utopia socialista e ecológica é apenas uma possibilidade objetiva, não o resultado inevitável das contradições do capitalismo, ou das “leis de ferro da história”. Não é possível predizer o futuro, exceto nos termos tradicionais:

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o que é predizível é que na ausência de uma transformação ecossocialista, de uma alteração radical do paradigma civilizacional, a lógica do capitalismo vai levar a desastres ecológicos dramáticos, ameaçando a saúde e a vida de milhões de seres humanos, e talvez até a sobrevivência da espécie.

Sonhar e lutar por um socialismo verde, ou, como alguns dizem, um “comunismo solar”, não significa que não se lute por reformas concretas e urgentes. Sem ilusões sobre um “capitalismo limpo”, deve tentar-se ganhar tempo e impor aos poderes algumas alterações elementares: banir os CFCs que estão a destruir a camada de ozônio, moratória geral aos organismos geneticamente modificados, redução drástica das emissões de gases de efeito estufa, regulações estritas na indústria pesqueira, taxação dos carros poluentes, maior desenvolvimento dos transportes públicos, progressiva substituição de caminhões por comboios. Estas, e outras similares, estão no coração da agenda do movimento de Justiça Global e dos Fóruns Sociais Mundiais. Este é um novo desenvolvimento político que permitiu, desde Seattle em 1999, a convergência de movimentos sociais e ambientais na luta comum contra o sistema.

Estas exigências urgentes ecossociais podem levar a um processo de radicalização, se essas exigências não forem adaptadas para encaixar nos requerimentos da “competitividade”. De acordo com a lógica do que os marxistas chamam “um programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial, conduz imediatamente a uma exigência maior, para uma vontade de maior radicalidade. Tais lutas em torno de questões concretas são importantes, não apenas porque as vitórias

parciais são elas próprias bem-vindas, mas também porque elas contribuem para aumentar a consciência ecologista e socialista, e porque promovem o ativismo e auto-organização a partir da base: ambos serão pré-condições necessárias e mesmo decisivas para uma transformação radical, i.e. revolucionária, do mundo.

Experiências locais como as áreas livre de carros em várias cidades européias, cooperativas de agricultura orgânica, cooperativas agrícolas lançadas pelo movimento camponês brasileiro do (MST), ou o orçamento participativo em Porto Alegre e, há poucos anos, no estado de Rio Grande do Sul (sob o Governador do PT Olívio Dutra), são exemplos limitados mas interessantes de alteração social/ecológica. Ao permitir que assembleias locais decidam as prioridades do orçamento, Porto Alegre foi – até a esquerda perder as eleições municipais em 2002 – talvez o exemplo mais atraente de “planejamento a partir de baixo”, apesar das suas limitações (22). Deve ser admitido, no entanto, que mesmo existindo algumas medidas progressivas tomadas por alguns governos nacionais, no todo a experiência da Centro-Esquerda ou coligações “Esquerda/Verdes” na Europa ou América Latina foi uma desilusão, ficando firmemente dentro dos limites da política social-liberal de adaptação à globalização capitalista.

Não haverá transformação radical sem que as forças comprometidas com um programa socialista e ecológico radical se tornem hegemônicas, no sentido de Gramsci. Neste sentido, o tempo está do nosso lado, à medida que trabalhamos para a mudança, porque a situação global do ambiente está progressivamente a ficar pior, e as ameaças estão

a aproximar-se cada vez mais. Por outro lado, o tempo está a esgotar-se, porque dentro de alguns anos – ninguém pode dizer quantos – o estrago pode ser irreversível. Não há qualquer razão para otimismo: as elites dominantes entrincheiradas no sistema são incrivelmente poderosas, e a força da oposição radical é ainda pequena. Mas ela é a única esperança de travar o "progresso destrutivo" do capitalismo. Walter Benjamin definiu revolução como sendo não a locomotiva da história, mas a capacidade humana de travar o comboio, antes que caia no abismo… (23)

Notas:

(1) Richard Smith, 'The Engine of Eco Collapse', Capitalism, Nature and Socialism, 16(4), 2005, p. 35.

(2) K. Marx, Das Kapital, Volume 1, Berlin: Dietz Verlag, 1960, pp. 529-30. Para uma extraordinária análise da lógica destrutiva do capital, ver Joel Kovel, The Enemy of Nature. The End of Capitalism or the End of the World?, New York: Zed Books, 2002.

(3) James O'Connor, Natural Causes. Essays in Ecological Marxism, New York: The Guilford Press, 1998, pp. 278, 331.

(4) John Bellamy Foster usa o conceito de "revolução ecológica", mas argumenta que a "revolução ecológica global merecedora do nome apenas pode ocorrer como parte de uma revolução – e insisto, socialista – de maioria social. Tal revolução (…) teria de exigir, como Marx insistiu, que as associações de produtores racionalmente regulassem a relação metabólica

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humana com a natureza (…) Deve tomar a sua inspiração em William Morris, um dos seguidores mais originais e ecologistas de Karl Marx, em Gandhi, e noutras figuras radicais, revolucionárias e materialistas, incluindo o próprio Marx, indo tão atrás como Epicuro". Foster, 'Organizing Ecological Revolution', Monthly Review, 57(5), 2005, pp. 9-10.

(5) Para uma crítica ecossocialista da "ecopolítica actualmente existente" – economia verde, ecologia profunda, bioregionalismo, etc – ver Kovel, Enemy of Nature, capítulo 7.

(6) Ver John Bellamy Foster, Marx's Ecology. Materialism and Nature, New

York: Monthly Review Press, 2000.

(7) F. Engels, Anti-Dühring, Paris: Ed. Sociales, 1950, p. 318.

(8) K. Marx, Das Kapital, Volume 3, Berlin: Dietz Verlag, 1968, p. 828 and Volume 1, p. 92. Pode-se encotrar problemas similares no marxismo contemporâneo; por exemplo, Ernest Mandel argumentou por um "planejamento democraticamente centralista sob um congresso nacional de conselhos de trabalhadores desde que a sua larga maioria seja de trabalhadores reais" (Mandel, 'Economics of Transition Period', in E. Mandel, ed., 50 Years of World Revolution, New York: Pathfinder Press, 1971, p. 286). Nos seus últimos escritos, ele referiu-se antes a "produtores/consumidores". Vamos frequentemente citar os escritos de Ernest Mandel, porque ele é o teórico socialista mais articulado sobre o planejamento democrático. Mas deve ser dito que até ao final dos anos de 1980, ele não incluiu a questão ecológica como

um aspecto central dos seus argumentos econômicos.

(9) Ernest Mandel definiu planejamento nos seguintes termos: "Uma economia governada por um plano implica (…) que os recursos relativamente raros da sociedade não são apropriados cegamente ("nas costas do produtor-consumidor") pelo jogo da lei do valor mas que eles são conscientemente alocados de acordo com prioridades previamente estabelecidas. Numa economia de transição onde a economia socialista prevalece, a massa dos trabalhadores determina democraticamente esta escolha de prioridades". Mandel, 'Economics of Transition Period', p. 282.

(10) "Do ponto de vista da massa dos trabalhadores, os sacrifícios impostos pelas arbitrariedades burocráticas não são mais nem menos "aceitáveis" que os sacrifícios impostos pelos mecanismos cegos do mercado. Representam apenas duas formas diferentes da mesma alienação". Ibid., p. 285.

(11) No seu impressionante recente livro sobre socialismo, o economista marxista Argentino Claudio Katz enfatizou que o planejamento democrático, supervisionado de baixo pela maioria da população, "não equivale à centralização absoluta, estatização total, comunismo de guerra ou economia de comando. A transição requer a primado do planejamento sobre o mercado, mas não a supressão das variáveis do mercado. A combinação entre ambas as instâncias deve ser adaptada a cada situação em cada país". No entanto, "a vontade do processo socialista não é manter um equilíbrio inalterável entre o plano e o mercado, mas promover uma perda progressiva das posições de mercado". C. Katz, El

porvenir del Socialismo, Buenos Aires: Herramienta/Imago Mundi, 2004, pp. 47-8.

(12) Anti-Dühring, p. 349.

(13) Kovel, Enemy of Nature, p. 215.

(14) Mandel, Power and Money, London: Verso, 1991, p. 209.

(15) Mandel observou: "Nós não acreditamos que a ? maioria tem sempre razão? (…) Todos cometem erros. Isto será certamente verdade para a maioria dos cidadãos, a maioria dos produtores e também a maioria dos consumidores. Mas haverá uma diferença básica entre eles e os seus predecessores. Em qualquer sistema de poder desigual (…) os que fazem as más decisões sobre alocação de recursos raramente são os que sofrem as consequências desses erros (…) Desde que exista uma democracia política real, escolha cultural real e informação, é difícil de acreditar que a maioria prefere ver os seus bosques morrer (…) ou os seus hospitais com falta de pessoal, do que corrigir rapidamente os seus erros de alocação". Mandel, 'In Defense of Socialist Planning', New Left Review, 1/159, 1986, p. 31.

(16) Mandel, Power and Money, p. 204.

(17) Michael Albert, Participatory Economics. Life After Capitalism, London, Verso, 2003, p. 154.

(18) Para uma selecção do "crescimento negativo" ver Majid Rahnema (com Victoria Bawtree), eds., The Post-Development Reader, Atlantic Highlands, N.J.: Zed Books, 1997, e Michel Bernard et al., eds., Objectif Décroissance: vers une société harmonieuse, Lyon: Éditions

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Parangon, 2004. O principal teórico francês do "décroissance" é Serge Latour, autor de La planète dês naufragés, essai sur l'après-dévéloppement, Paris: La Decouverte, 1991.

(19) Ernest Mandel era céptico em relação às rápidas alterações dos hábitos de consumo, como o carro privado: "Se, em vez de todos os argumentos ambientais e outros, os produtores e consumidores quiserem manter o domínio do automóvel privado e continuar a poluir as suas cidades, eles estariam no seu direito. Alterações nas orientações de longo prazo dos consumidores são geralmente lentas – poucos acreditam que os trabalhadores nos EUA abandonariam a sua ligação ao automóvel no dia seguinte à revolução". Mandel, "In Defense of Socialist Planning", p. 30. Mandel está certo em insistir que as alterações nos padrões de consumo não podem ser impostas, mas subestima seriamente o impacto que teria um sistema extensivo e livre de encargos de transportes públicos, bem como a aceitação da maioria dos cidadãos – já hoje, em várias grandes cidades europeias – de medidas restritivas à circulação automóvel.

(20) Mandel, Power and Money, London: Verso, 1991, p. 206.

(21) D. Singer, Whose Millenium? Theirs or Ours? New York: Monthly Review Press, 1999, pp. 259-60.

(22) See S. Baierle, 'The Porto Alegre Thermidor', in Socialist Register 2003.

(23) Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Volume I/3, Frankfurt: Suhrkamp, 1980, p. 1232.

Que é, afinal, a Revolução Permanente? (Teses)

Escrito por Leon Trotski e publicado no livro Revolução Permanente, em novembro de 1929.

Transcrição: Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado.

Fonte: Martxists? Internet Archive

Espero que o leitor não ache inconveniente em que, antes de terminar este trabalho, procure formular minhas conclusões essenciais de maneira concisa e sem receio de repetir.

1. A teoria da revolução permanente exige, na atualidade, a maior atenção da parte de todo marxista, uma vez que o desenvolvimento da luta ideológica e a da luta de classe fez o problema sair definitivamente do domínio das recordações de velhas divergências entre os marxistas russos, para apresenta-lo em ligação com o caráter, os laços internos e os métodos da revolução internacional em geral.

2. Para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional- libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que, assume a direção da nação

oprimida e, antes de tudo, de suas massas camponesas.

3. Tanto a questão agrária como a questão nacional conferem ao campesinato, como enorme maioria da população dos países atrasados, um papel primordial na revolução democrática. Sem a aliança entre o proletariado e o campesinato, as tarefas da revolução democrática não podem ser resolvidas, nem mesmo ser colocadas a sério. Essa aliança das duas classes, porém, só se realizará numa luta implacável contra a influência da burguesia nacional-liberal.

4. Quaisquer que sejam as primeiras etapas episódicas da revolução nos diferentes países, a aliança revolucionária do proletariado com os camponeses só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada como partido comunista. Isto significa, por outro lado, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado apoiada em sua aliança com os camponeses e destinada, em primeiro lugar, a resolver as tarefas da revolução democrática.

5. Do ponto de vista histórico, a velha palavra de ordem bolchevique de "ditadura democrática do proletariado e dos camponeses" exprimia exatamente as relações, acima caracterizadas, entre o proletariado, o campesinato e a burguesia liberal. Isso foi demonstrado pela experiência de Outubro. No entanto, a antiga fórmula de Lenin não previa quais seriam as relações políticas recíprocas entre o proletariado e o campesinato dentro do bloco revolucionário. Por outras palavras: a fórmula admitia, conscientemente, certo número de elementos algébricos que, no curso

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da experiência histórica, deviam dar lugar a elementos aritméticos mais precisos. E a experiência mostrou, em circunstâncias que excluem qualquer outra interpretação, que o papel do campesinato, por maior que seja a sua importância revolucionária, não pode ser independente nem, muito menos, dirigente. O camponês segue o operário ou o burguês. Isso significa que a "ditadura democrática do proletariado e dos camponeses" só e concebível como ditadura do proletariado arrastando atrás de si as massas camponesas.

6. Uma ditadura democrática do proletariado e dos camponeses, como regime diferente, quanto ao conteúdo de classe, da ditadura do proletariado, só seria realizável se pudesse existir um partido revolucionário independente que exprimisse os interesses da democracia camponesa e pequeno-burguesa em geral e, com o auxilio do proletariado, fosse capaz de conquistar o poder e determinar o seu programa revolucionário. A experiência de toda a história contemporânea e, sobretudo, da história da Rússia no transcurso dos vinte e cinco últimos anos, nos mostra qual é o obstáculo intransponível que se opõe à formação de um partido camponês. É a falta de independência econômica e política da pequena burguesia (campesinato) e a sua profunda diferenciação interna que permitem a aliança de suas camadas superiores com a grande burguesia por ocasião dos acontecimentos decisivos, sobretudo por ocasião das guerras e das revoluções, enquanto as camadas inferiores se aliam ao proletariado, obrigando as camadas médias a escolher entre as duas forças. Entre o regime de Kerensky e o poder bolchevique, entre o Cuomintang e a ditadura do proletariado, não há nem pode

haver nenhum regime intermediário, isto é, nenhuma ditadura democrática dos operários e dos camponeses.

7. Só pode ter um sentido reacionário a tendência da Internacional Comunista a impor, hoje, aos países do Oriente, a palavra de ordem de ditadura do proletariado e dos camponeses, há tanto tempo superada pela história. Oposta à de ditadura do proletariado, essa palavra de ordem contribui, politicamente, para a dissolução e a decomposição do proletariado nas massas pequeno-burguesas, criando, assim, condições favoráveis à hegemonia da burguesia nacional e, por conseguinte, à falência e ao desmoronamento da revolução democrática. Introduzir essa palavra de ordem no programa da Internacional Comunista só pode significar a traição ao marxismo e às tradições bolcheviques de Outubro.

8. A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois, uma revolução permanente.

9. Em lugar de pôr termo à revolução, a conquista do poder pelo proletariado apenas a inaugura. A construção socialista só é concebível quando baseada na luta de classe em escala nacional e internacional. Dada a dominação decisiva das relações capitalistas na arena mundial, essa luta não pode deixar de acarretar erupções violentas: no interior, sob a forma de guerra civil; no exterior, sob a forma de guerra revolucionária. É nisso que consiste o

caráter permanente da própria revolução socialista, quer se trate de um país atrasado que apenas acabou de realizar sua revolução democrática, quer se trate de um velho país capitalista que já passou por um longo período de democracia e de parlamentarismo.

10. A revolução socialista não pode realizar-se nos quadros nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as forças produtivas por ela engendradas tenderem a ultrapassar os limites do Estado nacional. Daí as guerras imperialistas, de um lado, e a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa, de outro lado. A revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: só ter-mina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso planeta.

11. O esquema, acima traçado, do desenvolvimento da revolução mundial elimina a questão dos países "maduros" ou "não maduros" para o socialismo, segundo a classificação pedante e rígida que estabelece o programa atual da Internacional Comunista.

Com a criação do mercado mundial, da divisão mundial do trabalho e das forças produtivas mundiais, o capitalismo preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista.

Os diferentes países chegarão ao socialismo com ritmos diferentes. Em determinadas circunstâncias, certos países atrasados podem chegar à ditadura do

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proletariado antes dos países avançados, ~mas só depois destes chegarão eles ao socialismo.

Um país atrasado, colonial ou semicolonial, cujo proletariado não esteja bastante preparado para conduzir o campesinato e conquistar o poder é, por isso mesmo, incapaz de levar a bom termo sua revolução democrática. Por outro lado, num país em que o proletariado chegue ao poder em virtude de uma revolução democrática, o. destino ulterior da ditadura e do socialismo dependerá, afinal, menos das forças produtivas nacionais do que do desenvolvimento da revolução socialista internacional.

12. A teoria do socialismo num só país, brotada no estrume da reação contra Outubro, é a única que se opõe, de maneira conseqüente e definitiva, à teoria da revolução permanente.

Ao tentarem os epígonos, compelidos pela crítica, limitar à Rússia a aplicação da teoria do socialismo num só país, por causa de suas peculiaridades (extensão territorial e riquezas naturais), as coisas só fazem piorar, em lugar de melhorar. A renúncia à atitude internacionalista conduz, inevitavelmente, ao messianismo nacional, isto é, ao reconhecimento de vantagens e qualidades peculiares ao país, capazes de lhe conferir um papel que os demais países não poderiam desempenhar.

A divisão mundial do trabalho, a subordinação da indústria soviética à técnica estrangeira, a dependência das forças produtivas dos países avançados em relação às matérias primas asiáticas etc., etc., tornam impossível a Çonstrução de uma sociedade

sociafis~ autônoma e isolada em qualquer região do mundo.

13. A teoria de Stalin—Bukhárin não só opõe, mecanicamente, e a despeito de toda a experiência das revoluções russas, a revolução democrática à revolução socialista, como separa a revolução nacional da revolução internacional.

Colocando diante das revoluções dos países atrasados a tarefa de instaurar o regime irrealizável da ditadura democrática, oposta à ditadura do proletariado, essa teoria cria ilusões e ficções políticas, paralisa a luta do proletariado do Oriente pelo poder e retarda a vitória das revoluções coloniais.

Do ponto de vista da teoria dos epígonos (01), a conquista do poder pelo proletariado constitui, por si só, a realização da revolução (em seus "nove décimos", segundo a fórmula de Stalin), e inaugura a época das reformas nacionais. A teoria da integração do kulak no socialismo (02) e a teoria da "neutralização" da burguesia mundial são, por conseguinte, inseparáveis da teoria do socialismo num só país, equilibrando-se e caindo juntas.

A teoria do nacional-socialismo degrada a Internacional Comunista, que fica reduzida ao papel de arma auxiliar na luta contra a intervenção armada. A política atual da Internacional Comunista, o seu regime e a escolha dos seus dirigentes correspondem perfeitamente à sua decad ncia e transformação num exército de emergência, que não se destina a resolver, de maneira autônoma, as tarefas que se lhe apresentam.

14. O programa da Internacional Comunista, obra de Bukhárin, é eclético do princípio ao fim. É uma tentativa desesperada de ligar a teoria do socialismo num só país ao internacionalismo marxista, que não pode, entretanto, ser separado do caráter permanente da revolução mundial. A luta da Oposição de Esquerda () por uma política justa e um regime são na Internacional Comunista está indissoluvelmente ligada à luta por um programa marxista. A questão do programa, por sua vez, é inseparável da questão das duas teorias opostas: a teoria da revolução permanente e a teoria do socialismo num só país. O problema da revolução permanente já ultrapassou, há muito tempo, o limite das divergências episódicas entre Lênin e Trotsky, inteiramente esgotadas pela história. Trata-se, agora, da luta entre as idéias fundamentais de Marx e de Lênin, de um lado, e o ecletismo centrista, de outro lado.

(1) Epígonos - Assim Trotsky classifica os burocratas stalinistas, que dominam o governo soviético, após a morte de Lênin. (N. do T). (02) Lançando a palavra de ordem de "Camponeses, enriquecei-vos!", achava Bukhárin que os kulaks, em lugar de se orientarem para o capitalismo, marchavam pacificamente para o socialismo. Essa política só foi abandonada pelo Partido Comunista da URSS em 1928, quando os kulaks, com a "greve do trigo", fizeram à cidade o cerco da fome. – (N. do T).

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Ponto de Vista Antiimperialista [1*]

Escrito por José Carlos Mariátegui e publicado em Junho 1929

Fonte: O Marxismo na América Latina - Uma antologia de 1909 aos dias atuais. Michael Löwy (org). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. Transcrito do sítio da Revista Marxismo Revolucionário Atual.

Transcrição e HTML de: Fernando A. S. Araújo, dezembro 2005.

1º – Até que ponto a situação das repúblicas latino-americanas pode ser assimilada à dos países semicoloniais? Sem dúvida, a condição econômica destas repúblicas é semicolonial, e, à medida que crescer seu capitalismo e, conseqüentemente, a penetração imperialista, este caráter de sua economia tende a se acentuar. Mas as burguesias nacionais, que vêem na cooperação com o imperialismo a melhor fonte de lucro, sentem-se suficientemente donas do poder político para não se preocuparem seriamente com a soberania nacional. Estas burguesias na América do Sul, que ainda não conhecem – com exceção do Panamá – a ocupação militar ianque, não estão predispostas de forma alguma a admitir a necessidade de lutar pela segunda independência, como supunha ingenuamente a propaganda aprista. O Estado, ou melhor, a classe dominante, não sente falta de um grau mas amplo e certo de autonomia nacional. A revolução da Independência está demasiado próxima, relativamente, seus mitos e símbolos

demasiado vivos, na consciência da burguesia e da pequena burguesia. A ilusão da soberania nacional conserva-se em seus principais efeitos. Pretender que nesta camada social surja um sentimento de nacionalismo revolucionário, parecido com o que, em condições diferentes, representa um fator da luta antiimperialista nos países semicoloniais avassalados pelo imperialismo nas últimas décadas na Ásia, seria um erro grave.

Em nossa discussão com os dirigentes do aprismo, reprovando sua tendência a propor um Kuomitang à América Latina, a fim de evitar a imitação européia e situar a ação revolucionária em uma apreciação exata de nossa própria realidade, sustentávamos há mais de um ano a seguinte tese:

A colaboração com a burguesia, assim como muitos elementos feudais na luta antiimperialista chinesa, explica-se por motivos de raça, de civilização nacional que não existem entre nós. O chinês nobre ou burguês sente-se profundamente chinês. Ao desprezo do branco por sua cultura estratificada e decrépita, responde com o desprezo e o orgulho de sua tradição milenar. A antiimperialismo na China pode, portanto, basear-se no sentimento e no fator nacionalista. Na Indo-América as circunstâncias não são as mesmas. A aristocracia e a burguesia nacional não se sentem solidarizadas com o povo pelo laço de uma história e de uma cultura comuns. No Peru, o aristocrata e o burguês brancos desprezam o popular, o nacional. Sentem-se, acima de tudo, brancos. O pequeno-burguês mestiço imita este exemplo. A burguesia de Lima confraterniza com os capitalistas ianques, e mesmo com seus meros funcionários, no Country Club, no Tennis e nas ruas. O ianque casa-se sem inconveniente

de raça nem de religião com a senhorita nativa, e esta não sente escrúpulo de nacionalidade nem de cultura em preferir o casamento com um indivíduo da raça invasora. A moça de classe média também não tem este escrúpulo. A huachafita que conquista um ianque empregado de Grace ou da Foundation sente com satisfação sua condição social melhorar. O fator nacionalista, por estas razões objetivas que todos vocês compreendem, não é decisivo nem fundamental na luta antiimperialista em nosso meio. Só em países como a Argentina, onde existe uma burguesia numerosa e rica, orgulhosa do grau de riqueza e poder em sua pátria, e onde a personalidade nacional tem por estas razões contornos mais claros e nítidos que nestes países atrasados, o antiimperialismo pode (talvez) penetrar facilmente nos elementos burgueses; mas por motivos de expansão e crescimento capitalistas, não por razões de justiça social e doutrina socialista, como é nosso caso.

A traição da burguesia chinesa, a falência do Kuomitang ainda não eram conhecidas em toda sua magnitude. Um conhecimento capitalista, e não por motivos de justiça social e doutrinária, demonstrou quão pouco se podia confiar, mesmo em países como a China, no sentimento nacionalista revolucionário da burguesia.

Enquanto a política imperialista conseguir manéger os sentimentos e formalidades da soberania nacional destes Estados, enquanto não for obrigada a recorrer à intervenção armada e à ocupação militar, contará com a colaboração das burguesias. Embora enfeudados à economia imperialista, estes países, ou suas burguesias, considerar-se-ão tão donos de seus destinos como a Romênia, a

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Bulgária, a Polônia e demais países "dependentes" da Europa.

Este fator da psicologia política não deve ser descuidado na estimativa precisa das possibilidades da ação antiimperialista na América Latina. Seu adiamento, seu esquecimento, tem sido uma das características da teorização aprista.

2º – A divergência fundamental entre os elementos que aceitaram em princípio o APRA no Peru – como um plano de frente única, nunca como partido e nem mesmo como organização efetiva – e os que, fora do Peru, definiram-no depois como um Kuomitang latino-americano consiste em que os primeiros permaneceram fiéis à concepção econômico-social revolucionária do antiimperialismo, enquanto os segundos explicam assim sua posição: "Somos de esquerda (ou socialistas) porque somos antiimperialistas". Assim, o antiimperialismo é elevado à categoria de um programa, de uma atitude política, de um movimento que basta a si mesmo e que conduz espontaneamente, não sabemos em virtude de que processo, ao socialismo, à revolução social. Este conceito leva a uma desorbitada superestimação do movimento antiimperialista, ao exagero do mito da luta pela "segunda independência", ao romantismo de que já estamos vivendo as jornadas de uma nova emancipação. Daí a tendência a substituir as ligas antiimperialistas por um organismo político. Do APRA, concebido inicialmente como frente única, como aliança popular, como bloco das classes oprimidas, passa-se para o APRA definido como o Kuomitang latino-americano.

Para nós, o antiimperialismo não constitui nem pode constituir, sozinho, um programa político, um movimento de massas apto para a conquista do poder. O antiimperialismo, admitindo que ele pudesse mobilizar a burguesia e a pequena burguesia nacionalistas, ao lado das massas operárias e camponesas (já negamos terminantemente esta possibilidade), não anula o antagonismo entre as classes, nem suprime sua diferença de interesses.

Nem a burguesia, nem a pequena burguesia no poder podem realizar uma política antiimperialista. Temos a experiência do México, onde a pequena burguesia acabou pactuando com o imperialismo ianque. Um governo "nacionalista" pode usar, em suas relações com os Estados Unidos, uma linguagem diferente que o governo de Leguía no Peru. Este governo é francamente, desaforadamente, pan-americanista, monroísta; mas qualquer outro governo burguês faria praticamente o mesmo que ele em matéria de empréstimos e concessões. Os investimentos do capital estrangeiro no Peru crescem em estreita e direta relação com o desenvolvimento econômico do país, com a exploração de suas riquezas naturais, com a população de seu território, com o aumento das vias de comunicação. Que pode contrapor a mais demagógica pequena burguesia à penetração capitalista? Nada, exceto uma embriaguez nacionalista temporária. O assalto ao poder pelo antiimperialismo, como movimento demagógico populista, se fosse possível, nunca representaria a conquista do poder pelas massas proletárias, pelo socialismo. A revolução socialista encontraria seu mais encarniçado e perigoso inimigo – perigoso por sua confusão,

sua demagogia – na pequena burguesia assentada no poder, conquistado mediante suas vozes de ordem.

Sem prescindir da utilização de nenhum elemento de agitação antiimperialista, nem de nenhum meio de mobilização dos setores sociais que eventualmente podem auxiliar esta luta, nossa missão é explicar e demonstrar às massas que só a revolução socialista contraporá um obstáculo definitivo e verdadeiro ao avanço do imperialismo.

3º – Estes fatos diferenciam a situação dos países sul-americanos da situação dos países centro-americanos, onde o imperialismo ianque, recorrendo à intervenção armada sem qualquer pudor, provoca uma reação patriótica que pode fazer facilmente com que uma parte da burguesia e da pequena burguesia abracem o antiimperialismo. A propaganda aprista, conduzida pessoalmente por Haya de la Torre, não parece ter obtido melhores resultados em nenhuma outra parte da América. Suas pregações confusas e messiânicas que, embora pretendam se situar no plano da luta econômica, na verdade apelam particularmente aos fatores raciais e sentimentais, reúnem as condições necessárias para impressionar a pequena burguesia intelectual. A formação de partidos de classe e poderosas organizações sindicais, com clara consciência classista, nesses países não parece destinada ao mesmo desenvolvimento imediato que na América do Sul. Em nossos países, o fator classista é mais decisivo, está mais desenvolvido. Não há motivo para recorrer a vagas fórmulas populistas, por trás das quais não podem deixar de prosperar tendências reacionárias.

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Atualmente o aprismo, como propaganda, está circunscrito à América Central; na América do Sul, devido ao desvio populista, caudilhista, pequeno-burguês, como o definia o Kuomitang latino-americano, está em fase de extinção. A resolução do próximo Congresso Antiimperialista de Paris, cujo voto tem de decidir a unificação dos organismos antiimperialistas e estabelecer a distinção entre as plataformas e agitações antiimperialistas e as tarefas que competem aos partidos de classe e às organizações sindicais, colocará um ponto final na questão.

4º – Em nossos países, os interessas do capitalismo imperialista coincidem necessária e fatalmente com os interesses feudais e semifeudais da classe dos latifundiários? A luta contra o feudalismo identifica-se forçosa e completamente com a luta antiimperialista? Certamente, o capitalismo imperialista utiliza o poder da classe feudal, já que a considera a classe politicamente dominante. Mas seus interesses estratégicos não são os mesmos. A pequena burguesia, sem excetuar a mais demagógica, se atenuar na prática seus impulsos mais nacionalistas, poderá chegar à mesma estreita aliança com o capitalismo imperialista. O capital financeiro sentir-se-á mais seguro se o poder estiver em mãos de uma classe social mais numerosa que, satisfazendo certas reivindicações mais prementes e atrapalhando a orientação classista das massas, estará em melhores condições de defender os interesses do capitalismo, de ser seu custódio e servo, que a velha e odiada classe feudal. A criação da pequena propriedade, a desapropriação dos latifúndios, o fim dos privilégios feudais não são contrários aos

interesses do imperialismo, de modo imediato. Pelo contrário, na medida em que os últimos resquícios de feudalismo travam o desenvolvimento de uma economia capitalista, esse movimento de extinção do feudalismo coincide com as exigências do crescimento capitalista, promovido pelos investimentos e pelos técnicos do imperialismo; que desapareçam os grandes latifúndios, que em seu lugar se constitua uma economia agrária baseada naquilo que a demagogia burguesa chama "democratização" da propriedade do solo, que as velhas aristocracias sejam deslocadas por uma burguesia e uma pequena burguesia mais poderosa e influente – e, por isso mesmo, mais apta para garantir a paz social -, nada disso está contra os interesses do imperialismo. No Peru, o regime de Leguía, embora tímido na prática diante dos interesses dos latifundiários e caciques, que em grande parte o apoiam, não tem qualquer inconveniente em recorrer à demagogia, em reclamar contra o feudalismo e seus privilégios, em bradar contra as antigas oligarquias, em promover uma distribuição do solo que transformará cada peão agrícola em um pequeno proprietário. Justamente desta demagogia, o regime de Leguía extrai suas maiores forças. O leguiísmo não se atreve a tocar na grande propriedade. Mas o movimento natural do desenvolvimento capitalista – obras de irrigação, exploração de novas minas etc. – vai contra os interesses e privilégios feudais. Os latifundiários, com o crescimento das áreas cultiváveis, com o surgimento de novos focos de trabalho, perdem sua principal força: a disposição absoluta e incondicional da mão-de-obra. Em Lambayeque, onde atualmente são efetuadas obras de irrigação, a atividade capitalista da comissão técnica que as dirige, presidida por um perito dos Estados Unidos, o

engenheiro Sutton, entrou rapidamente em conflito com as conveniências dos grandes proprietários feudais. Estes grandes latifundiários são, principalmente, produtores de açúcar. A ameaça de perder o monopólio da terra e da água, e com ele o meio de dispor livremente da população de trabalhadores, enlouquece essas pessoas, levando-as a uma atitude que o governo, ainda que vinculado a muitos de seus elementos, qualifica de subversiva ou antigovernista. Sutton tem as características do empresário capitalista norte-americano. Sua mentalidade, seu trabalho chocam o espírito feudal dos latifundiários. Por exemplo, Sutton estabeleceu um sistema de distribuição das águas, baseado no princípio de que seu domínio pertence ao Estado; os latifundiários achavam que o direito sobre as águas estava ligado ao seu direito sobre a terra. Segundo sua tese, as águas lhes pertenciam; eram e são propriedade absoluta de seus terrenos.

5º – E a pequena burguesia, cujo papel na luta contra o imperialismo é tão superestimado, necessariamente se opõe à penetração imperialista, como tanto se diz? Sem dúvida, a pequena burguesia é a classe social mais sensível ao prestígio dos mitos nacionalistas. Mas o fato econômico que acompanha a questão é o seguinte: em países de pauperismo espanhol, onde a pequena burguesia, pelos seus enraizados preconceitos, resiste à proletarização; onde a mesma, pela miséria dos salários, não tem força econômica para transforma-la, pelo menos em parte, em classe operária; onde imperam o empreguismo, o recurso ao pequeno cargo do Estado, a caça ao salário e ao posto "decente" o estabelecimento de grandes empresas que, embora explorem enormemente

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seus empregados nacionais, sempre representam para esta classe um trabalho mais bem remunerado, é recebido e considerado favorável pelas pessoas da classe média. A empresa ianque representa melhor salário, possibilidade de promoção, emancipação do empreguismo do Estado, no qual não há futuro, exceto para os especuladores. Este fato atua decisivamente na consciência do pequeno-burguês, que busca ou possui um posto de trabalho. Nestes países de pauperismo espanhol, repetimos, a situação das classes médias não é a mesma constatada nos países em que estas classes passaram por um período de livre concorrência, de crescimento capitalista propício à iniciativa e ao sucesso individuais, à opressão dos grandes monopólios.

Em suma, somos antiimperialistas porque somos marxistas, porque somos revolucionários, porque contrapomos ao capitalismo o socialismo como sistema antagônico, chamado a sucedê-lo, porque na luta contra os imperialismos estrangeiros cumprimos nossos deveres de solidariedade com as massas revolucionárias da Europa.

Notas:

[1*] Este texto pertence a um documento redigido por Mariátegui apresentado pela delegação peruana na I Conferência Comunista Latino-Americana (Buenos Aires, junho de 1929). Ele tenta delimitar a questão chave da relação dialética entre a luta de classes e a luta contra o imperialismo, e esboça uma análise penetrante e insólita das relações e contradições entre a metrópole norte-americana, a burguesia local e os latifundiários. É um dos textos políticos

mais conhecidos de Mariátegui, e tem sido objeto de múltiplas reedições por grupos revolucionários latino-americanos depois da Revolução Cubana. (Michael Löwy)

Hegemonia e Revolução permanente.

Texto escrito por Daniela Mussi

Apresentação

Esse texto tem por objetivo contribuir para o processo de formação política e integração de militantes do Enlace (corrente interna do PSOL). Inicialmente composto para um curso sobre o pensamento político do dirigente comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), a presente versão foi adaptada, e trata especialmente a relação das ideias deste com as do revolucionário russo Leon Trotsky (1879-1940).

O principal objetivo deste texto é propor um diálogo indireto, mediado pelos problemas teóricos e políticos que tanto Gramsci como Trotsky enfrentaram: a) o problema da relação entre força e consenso, ou de hegemonia na conquista do poder pelo pelos trabalhadores, pensado especialmente por Gramsci nos Cadernos do Cárcere; b) e sua relação com a teoria da revolução permanente, de Trotsky.

As diferenças entre estratégia militar e luta política para pensar a revolução

Vamos partir da ideia central de que “a compreensão da justa relação entre força e consenso é o que dá força à teoria do Estado presente em Gramsci” (BIANCHI, 2008, p. 199).

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Essa “justa relação”, para Gramsci, dizia respeito à articulação orgânica e contraditória entre estrutura e superestrutura, entre sociedade civil e sociedade política, e nos permite compreender “as resistências do Estado às crises do capitalismo, as formas da crise e a superação desses momentos cruciais” (idem, ibidem). A teoria do Estado capitalista em Gramsci é forte justamente por que contém em si o desenvolvimento de uma relação útil para pensar uma teoria da formação do Estado, mas também de suas crises e da revolução.

Nesse sentido, é perceptível a preocupação de Gramsci nos escritos carcerários por estabelecer a relação adequada entre estratégia militar e luta política. Já no Caderno 1, escrito em meados de fevereiro/março de 1930, Gramsci estabeleceu que o que existe entre luta militar e luta política é uma relação de analogia, não de equivalência (Q.1, §§117 e 118 ). Isso significa que, embora comparáveis, luta política e luta militar não são a mesma coisa. Além disso, mesmo na luta militar, Gramsci sinalizava a importância do predomínio da direção política na organização do exército, importância esta que aumenta na medida em que o exército aumenta (Q.1, p. 110 e 111). Assim, existia para Gramsci uma relação de diferença e unidade entre as funções técnico-militar e política, compondo uma dimensão político-militar das relações de forças (BIANCHI, 2008, p. 200).

Para o prisioneiro do fascismo, porém, existia uma limitação para as comparações entre entre a arte e ciência militar e a arte e ciência política, que deveriam ser realizadas apenas “estímulos ao pensamento e como termos simplificadores”. Isso por que na luta política, “o elemento de hierarquia e disciplina não é sustentado por sanções penais, mas sim pelo

convencimento” (idem, ibidem). Gramsci afirmava, dessa maneira, o caráter mais complexo da luta política em relação à guerra militar, especialmente pelo caráter multivariado das formas de luta no âmbito político.

Se, por um lado, a metáfora militar era adequada para pensar o universo tático (instrumental) do conflito, sua limitação era clara quando se tratava de dimensionar um modelo para a política (Q.1, §133, p. 121). Na guerra militar, o fim é a destruição do exército inimigo, ocupação do seu território e a paz. “Para a guerra chegar a seu término, sequer seria necessário que o fim estratégico fosse atingido de fato” (BIANCHI, 2008, p. 201). A luta política, porém, e esse problema era central para Gramsci, não se encerra com a destruição do inimigo, mas exige do exército vitorioso a ocupação de modo estável do território (Q.1, §134, p. 122).

Nesse caso, os diferentes momentos da luta política exigem diferentes formas de luta, que podem se suceder no tempo ou coexistir. A análise das formas de luta política, dessa maneira, deve subordinar as táticas e técnicas militares. Assim, embora todo conflito possua um caráter militar fundamental, é necessário considerar seu caráter político preponderante nas formas de luta mistas (idem, ibidem). Nesse caso, emprego do “ataque frontal” requer um desenvolvimento tático original, “para cuja concepção a experiência da guerra oferece um estímulo e não um modelo” (idem, ibidem).

“Desenvolvimento tático original”

O desenvolvimento teórico no interior dos Cadernos é extremamente revelador da reflexão levada a cabo por Gramsci a respeito da relação entre guerra militar e luta política para pensar a revolução socialista. É interessante, para captar o desenvolvimento teórico realizado por Gramsci na prisão sobre esse tema apreender um parágrafo, escrito e reescrito em momentos diferentes nos Cadernos (Q.7, §10, p. 858-859 (A) e Q.13, §24, p. 1614-1615 (C)).

No parágrafo “A” do Caderno 7, escrito provavelmente em novembro de 1930, como parte dos “Apontamentos sobre filosofia, materialismo e idealismo. Segunda Série”, Gramsci polemiza com o opúsculo Greve de massas, partidos e sindicatos de Rosa Luxemburgo:

Recordar o opúsculo de Rosa (…) cuja teoria era baseada na experiência história de 1905 (por outro lado, ao que parece, sem estudá-la com exatidão, por que eram desprezados os elementos voluntários e organizativos muito mais difundidos do que pudesse crer Rosa (…); esse opúsculo me parece o mais significativo da teoria da guerra de movimento aplicada à ciência histórica e à arte da política. O elemento econômico imediato (crises, etc.) é considerado como a artilharia de campo de guerra, cuja finalidade é abrir a brecha na defesa inimiga, suficiente para que as tropas irrompessem e obtivessem um sucesso estratégico definitivo, ou pelo menos na linha necessária para o sucesso definitivo (Q. 7, §10, p. 858-859, ver BIANCHI, 2008, p. 203).

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Escrito por Rosa em 1906 na Finlândia, durante período exílio, como balanço dos acontecimentos de 1905 na Rússia , esse opúsculo tinha por finalidade apreender as “lições para luta de classes na Alemanha”, em especial a da greve de massas (PETIT, 1969, p. 10-11). Neste texto, Rosa buscava propor “não um modelo de revolução, mas o emprego tático de uma arma revolucionária que mostrou ser eficiente” (idem, p. 12). Além disso, pensava a educação do proletariado na “passagem a ação”. O proletariado, para Rosa, tinha necessidade de alto grau de educação política, consciência de classe e organização, porém “não pode aprender todas essas coisas em brochuras ou em pan? etos; tal educação ele a adquirirá na escola política viva, na luta e pela luta, no decorrer da revolução em marcha” (LUXEMBURG, 1969, p. 114). Ou ainda, ao falar dos acontecimentos de 1905 na Rússia:

Na realidade, a luta econômica não constituía uma fragmentação, uma dispersão da ação, mas uma mudança de frente; a primeira batalha contra o absolutismo transforma-se rápida e naturalmente num ajuste de contas geral com o capitalismo, que, de acordo com sua natureza, assume a forma de con? itos parciais em favor dos salários” (LUXEMBURG, 1969, p. 114).

Para Gramsci, a brochura de Rosa poderia ser recuperada para pensar no “confronto com a técnica da guerra assim como foi transformada na última guerra [I Guerra Mundial], com a passagem da guerra de manobra à guerra de posição” (Q. 7, §10, p. 858). Na verdade, Gramsci tinha em mente um programa de renovação do materialismo histórico, à luz de uma metáfora militar, mas

buscando ir além dela. Com ele, pretendia: 1) desenvolver a relação entre crise econômica e crise política, presente na ideia de “brecha na defesa inimiga” tal como colocada por Rosa, “como uma crise que se manifesta no âmbito da estrutura econômica da sociedade e outra que se apresenta na esfera das superestruturas políticas” (BIANCHI, 2008, p. 203). O “vetor” de Gramsci aqui era propriamente político, buscando investigar as formas da luta proletária:

A verdade é que não se pode escolher a forma de guerra que se quer, a menos que se tenha imediatamente uma superioridade esmagadora sobre o inimigo; sabe-se quantas perdas custou a obstinação dos Estados-maiores em não querer reconhecer que a guerra de posição era “imposta” pela relação geral de forças em presença. A guerra de posição não é de fato constituída apenas das trincheiras propriamente ditas, mas de todo sistema organizativo e industrial do território que está detrás do exército alinhado, sendo imposta pelo tiro rápido dos canhões, das metralhadoras, dos mosquetões e pela própria concentração de armas em um determinado ponto, bem como pela própria abundância do fornecimento que permite substituir rapidamente o material perdido depois de uma penetração e de um recuo. (Q.13, §24, p. 1614-1615. Grifos meus).

Por meio da política, Gramsci introduz o plano das relações de forças na análise da tática militar, como “um antídoto contra toda leitura reducionista das noções de guerra de movimento e guerra de posição” (BIANCHI, 2008, p. 205). A guerra de posição, nesse caso, emerge não como um “programa positivo de

ação”, mas como uma “exigência objetiva”, imposta pela relação de forças políticas, uma relação que “impõe a forma da luta”. Portanto, não era, para Gramsci, uma categoria abstrata e técnica, idealizada, mas uma constatação do próprio movimento da luta, que confere “uma forma de luta favorável às classes dominantes” no pós- I Guerra, apesar da Revolução de Outubro de 1917. A guerra de posição era, ao mesmo tempo, uma forma de luta imposta e uma “relação de forças”, que as classes dominantes precisam manter a todo custo.

A ação política das classes subalternas, por sua vez, deveria ter por objetivo central desarticular essa relação, ganhar posições favoráveis para imprimir nova forma de luta ao conflito. Tendo isso claro, ou seja, por perceber que as classes dominantes pós I Guerra passavam a impor a forma da luta, Gramsci se dedicou a pensar – no lugar da arte da guerra, que apenas pode informar os exércitos em sentido restrito às formas de luta impostas – a arte e ciência da política. Seu plano de investigação, que era ao mesmo tempo um programa político, consistia em: a) definir as modalidades de luta preponderantes; e b) pensar em um “desenvolvimento tático original”, orientado pelo “realismo revolucionário”, mas ao mesmo tempo com vistas à reversão da correlação das forças em luta.

Esse desenvolvimento tático original não é unívoco nos textos carcerários de Gramsci, o que mais uma vez permite perceber que se tratava de uma investigação e reflexão em curso. Em todo caso, é interessante recuperar um parágrafo de escritura única, no qual ele se desenhava:

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A guerra de posição demanda enormes sacrifícios das massas extraordinárias da população; por isso é necessária uma concentração inaudita da hegemonia e, portanto, uma forma de governo mais “intervencionista”, que mais abertamente tome a ofensiva contra os opositores e organize permanentemente a “impossibilidade” de desorganização interna: controles de todo tipo, políticos, administrativos, etc., reforço das “posições” hegemônicas do grupo dominante, etc. Tudo isso indica que se entrou em uma fase culminante da situação político-histórica, por que na política a “guerra de posição”, uma vez vencida, é definitivamente decisiva. Ou seja, na política subsiste a guerra de movimento enquanto se trata de conquistar posições não decisivas e quando não são mobilizáveis todos os recursos de hegemonia e do Estado, mas quando, por uma razão ou outra estas posições perderam seu próprio valor e só aquelas decisivas têm importância, então se passa à guerra de assédio, tensa, difícil, na qual se exigem qualidades excepcionais de paciência e de espírito inventivo (Q. 6, § 138, p. 802; ver BIANCHI, 2008, p. 208; COUTINHO, 2011, p. 296).

Esse parágrafo “permanece sem um desenvolvimento posterior que pudesse esclarecer melhor seu conteúdo”, nele “guerra de movimento” e “guerra de posição” não parecem se restringir à conquista do poder, mas diriam respeito tanto àquilo que antecede esse momento – a luta pelo poder político – como àquilo que lhe sucede – a construção de uma nova ordem. Tendo em vista o processo de construção do socialismo, a desarticulação do próprio Estado capitalista – concebido em seu

sentido estrito como o conjunto de aparelhos repressivos (sociedade política) – por meio do “ataque frontal” poderia ser concebida como uma posição “não decisiva”, muito embora imprescindível. A conquista do Estado seria, assim, o começo do fim, mas não o fim. (BIANCHI, 2008, p. 208).

Nesse caso, da conquista do poder político (pelos revolucionários russos em 1917, por exemplo), emergia a necessidade de mobilização dos “recursos de hegemonia e do Estado”, ganhando assim centralidade a guerra de posição (preponderante na sociedade civil), cuja vitória conferiria conteúdo decisivo à revolução.

Gramsci e a teoria da revolução permanente de Leon Trotsky

Em um parágrafo de escritura única do Caderno 7, Gramsci aproxima em contraste seu plano de investigação sobre os conceitos de guerra de posição e guerra de manobrada ou frontal da “famosa teoria de Bronstein sobre permanência do movimento”, lançando como hipótese de estudo verificar se esta não é o reflexo político da teoria da guerra manobrada (recordar observações feitas pelo general dos cossacos Krasnov), em última análise o reflexo das condições gerais-econômicas-culturais-sociais de um país em que os quadros da vida nacional são embrionários e fracos e não se podem tornar “trincheira ou “fortaleza”. Nesse caso, Bronstein, que aparece como “ocidentalista”, era, ao

contrário, um cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou europeu. Em contraposição, Ilitch era profundamente nacional e profundamente europeu. Bronstein nas suas memórias recorda que lhe foi dito que sua teoria se havia mostrado boa depois...de quinze anos e responde ao epigrama com outro epigrama. Na verdade, a sua teoria, como tal, não era boa nem quinze anos antes, nem quinze anos depois (…). Me parece que Ilitch havia compreendido que ocorria uma mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, à guerra de posição que era a única possível no Ocidente, onde, como observa Krasnov, em um curto espaço de tempo os exércitos podiam acumular determinada quantidade de munições, onde os quadros sociais eram por si sós ainda capazes de se tornarem trincheiras muito municiadas. Parece-me este o significado da fórmula da “frente única” (…). Só que Ilitch não teve tempo de aprofundar sua fórmula, mesmo considerando que ele só poderia aprofundá-la teoricamente, quando, ao contrário, a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um reconhecimento do terreno e uma fixação dos elementos de trincheira e de fortaleza representados pelos elementos da sociedade civil, etc. No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relação apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas a trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; em medida diversa de Estado para Estado, é claro, mas exatamente isto exigia um acurado reconhecimento de caráter nacional. A teoria de Bronstein pode ser

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comparada àquela de certos sindicalistas franceses sobre a greve geral e à teoria de Rosa no opúsculo traduzido por Alessandri [texto já citado, Greves de massas, partidos e sindicatos]. (Q. 7, §16, p.865-866; COUTINHO, 2011, p. 296-297).

Para Gramsci, a teoria da revolução de Trotsky “adivinhou o grosso”, ou seja, “teve razão na previsão prática mais geral”, atitude “comum aos obstinados” (idem, ibidem). Escrito em finais de 1930, como parte dos “Apontamentos de filosofia, materialismo e idealismo. Segunda Série”, esse parágrafo possui identidade em seu argumento aquele em que Gramsci menciona o texto de Rosa Luxemburgo, com o acréscimo de caracterizar negativamente o marxista russo como intelectual cosmopolita e “superficialmente nacional e europeu”.

Apesar da crítica áspera, é pouco provável que Gramsci conhecesse o longo artigo de 1906 em que Trotsky expôs, “mais ou menos sistematicamente”, suas opiniões sobre o desenvolvimento da revolução a partir da experiência de 1905. O texto, intitulado Balanços e Perspectivas, foi publicado em jornal polonês de Rosa Luxemburgo, em 1909; e em sua A Revolução Permanente, de 1929, Trotsky mencionou a possibilidade de que sequer Lenin o tivesse lido antes de 1919, quando o texto foi publicado na Rússia como brochura pelas Edições Soviéticas (TROTSKY, 1985, p. 43 e 45).

Além disso, para além dessa polêmica, é interessante recuperar o sentido profundamente crítico da posição de Gramsci em 1926, quando – já prisioneiro do fascismo – escreveu em nome do Birô do Partido Comunista da Itália (PCd'I)

aos camaradas do Comitê Central do Partido Comunista Russo (PCR) a respeito do tratamento dado pelos dirigentes sob a linha política de Stálin à Oposição de Esquerda, da qual fazia parte Trotsky. Nela, era traduzido para o universo político interno ao partido os argumentos mais gerais sobre a hegemonia:

Somente uma firme unidade e uma firme disciplina no partido que governa o Estado operário podem assegurar a hegemonia proletária (…). Mas a unidade e disciplina, neste caso, não podem ser mecânicas e coercitivas. Devem ser leais e obtidas pela convicção; não devem ser as de um destacamento inimigo aprisionado ou cercado, que pensa sempre em fugir ou atacar de surpresa (COUTINHO, 2011, p.109).

Refletindo sobre o tema da relação de Lenin com suas ideias, Trotsky suspeitava de que as objeções polêmicas de Lenin “contra a revolução permanente”, além de raras e isoladas, estivessem baseadas no Prefácio de Helphand Parvus (1867-1924), seu então colaborador, ao texto Antes do 09 de janeiro de 1905, bem como ao texto Sem o Czar, do mesmo. Mesmo quando citou o Balanços e Perspectivas, como em 1909 em polêmica contra outro dirigente, Julius Martov (1873-1923), seria possível crer que Lenin o fizera citando de segunda mão (idem, p. 44). Para Trotsky, poranto, até 1919 Lenin ignorava seu trabalho, mas seria possível, ao “acompanhar a evolução real” do seu pensamento, imaginar uma apreciação positiva da teoria da revolução permanente por parte deste. Para Trotsky,

o conteúdo concreto que Lenin dava cada vez mais à sua fórmula de “ditadura democrática” e que decorria, não tanto dessa própria fórmula hipotética, mas da análise das modificações reais na correlação existente entre as classes – esse conteúdo tático e organizacional entrou, para sempre, na história, como um exemplo clássico de realismo revolucionário (idem, p. 45).

No texto de 1929, Trotsky reconheceu a superioridade tática e organizacional de Lenin “em quase todos os casos (pelo menos nos mais importantes)”, e não via motivo para defesa “obstinada” de seu “velho prognóstico histórico”, de 1906. A teoria da Revolução Permanente, porém, deveria ser retomada por outro motivo: na medida em que a crítica desta se tornara, especialmente depois da morte de Lenin em 1924, “a fonte da reação teórica em toda a Internacional, como também uma arma para a sabotagem direta da revolução chinesa” (idem, ibidem).

Para Trotsky, era claro que a função política da luta “contra o trotskismo” assumida pela burocracia stalinista, era na verdade a de uma “campanha contra as tradições de Outubro, cada vez mais inoportunas e insuportáveis para nova burocracia” (idem, p. 38). Nesse sentido, a luta contra o “trotskismo” se tornava, aos poucos, expressão da reação teórica e política de largas camadas não-proletárias e, em parte, até proletárias, e refletiu essa reação nas fileiras do partido” (idem, ibidem).

Essa reação nascera em 1923, ao iniciar-se a reação política e social dentro do Partido russo, opondo de maneira distorcida a “revolução permanente” à orientação leninista

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para “união com o camponês” (idem, ibidem). Essa “oposição” expressava a “repulsa orgânica do burocrata e do proprietário pela revolução internacional com suas comoções 'permanentes', assim como o desejo de ordem de tranquilidade, comum aos funcionários e pequenos burgueses” (idem, ibidem). Nesse sentido, era uma reação que abria caminho para outra teoria, a do socialismo num só país. E por motivos políticos, e não propriamente teóricos, que Trotsky assumiu o desafio de enfrentá-la e aos seus representantes.

Trotsky não negava o conteúdo polêmico de muitos textos de Lenin a seu respeito, mas julgava inadequado que sua proximidade ou distanciamento do mesmo fosse estabelecido “de um ponto de vista formal”, ou seja, por meio de citações desconexas, que sem “seguir a evolução real do pensamento de Lenin”. Na verdade, buscou mostrar reiteradamente como a prática das “citações desconexas” se tornara comum aos “epígonos da teoria da revolução permanente”. E, sem ignorar divergências e polêmicas, buscou reconstruir a teoria da Revolução Permanente a partir do texto de 1905, o problema da fórmula da ditadura do proletariado apoiada pelos camponeses versus ditadura democrática do proletariado e dos camponeses. Além disso, buscou enfrentar frontalmente o problema da “ditadura democrática” que, na sua opinião, expressava o caráter aberto – e não antagônico – da formulação leninista da questão do papel do campesinato na Revolução em relação a ideia “hegemonia do proletariado”, contida na teoria da revolução permanente.

Ao contrário do que a passagem citada dos Cadernos supõe, Trotsky foi um acirrado opositor da absolutização da guerra de

movimento no campo da estratégia militar, aquilo que Gramsci chamou por “teoria do movimento em permanência” (BIANCHI, 2008, p. 209). Trotsky trabalhou com a distinção entre Ocidente e Oriente já em 1922, e possivelmente Gramsci sabia disso (Q.13, §24, p. 1616). Essa distinção ajudava a pensar a dificuldade da conquista do poder no Ocidente, mais especificamente na Europa Central, que se identificavam pela existência de sólidas instituições parlamentares e “preconceitos democrático-burgueses e parlamentares” nesta (BIANCHI, 2008, p. 210). Essas instituições e preconceitos, percebia Gramsci em sua carta de 1926, não eram pertinentes apenas às classes dominantes e à pequena burguesia ocidental, mas também estavam vivos no seio do próprio proletariados, na forma de corporativismo e reformismo (COUTINHO, 2011, p. 108). Nesse caso, o núcleo do problema estava em determinar as formas de lutas também dos trabalhadores, para que esses pudessem encontrar uma justa relação com seus aliados, se converterem em força dirigente, para além de dominante.

Por um lado, ao pensar sobre o corporativismo e o reformismo em 1929, Trotsky sabia que “nos países de capitalismo avançado a política está sempre em atraso, e em grande atraso, com relação a economia” (BIANCHI, 2008, p. 211). Sabia que o Estado no Ocidente, por isso, se tornava muito resistente, resistente inclusive às crises, o que nos países periféricos não se verificava com a mesma eficiência. Sua teoria da revolução permanente, nesse sentido, se construía com vistas a esses desafios, dos tempos cindidos da economia e da política. Nesse ponto, se considerava em íntima

sincronia com o pensamento de Lenin. Por isso, para ele

A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois uma revolução permanente (TROTSKY, 1985, p. 139).

Sua reflexão em 1906, à luz dos acontecimentos de 1905, porém, se dedicava a enfrentar esse mesmo problema de temporalidades cindidas a partir de um ângulo distinto, e muito caro a Gramsci: o da relação entre proletariado e campesinato. Trotsky percebia uma relação desigual e ao mesmo tempo combinada entre a revolução socialista e a construção do socialismo, frutos de um desenvolvimento igualmente desigual e combinado da própria universalização da economia e da política no capitalismo. Nesse sentido, sua teoria estava imediatamente vinculada “com o caráter, os laços internos, os métodos da revolução internacional em geral” (idem, p. 137). Essa reflexão, em 1929, ganhava o seguinte sentido:

É a falta de independência econômica e política da pequena burguesia (campesinato) e a sua profunda diferenciação interna que permitem a aliança de suas camadas superiores com a grande burguesia por ocasião dos acontecimentos decisivos, sobretudo por ocasião das guerras e das revoluções, enquanto as camadas inferiores se aliam ao proletariado,

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obrigando as camadas médias a escolher entre as duas forças (idem, p. 138).

O capitalismo fora responsável por consolidar, ao mesmo tempo, diferenças regionais, Ocidentes e Orientes, mas não de maneira inteiramente “harmoniosa”. O Ocidente continha em si um Oriente, o Oriente continha em si um Ocidente. O proletariado da Itália precisavam lidar com as grandes e complexas camadas camponesas; as massas camponesas russas não poderiam ser independentes sem serem empurradas por uma direção proletária.

Para os países de desenvolvimento burguês retardatário, (...) a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional-libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que assume a direção da nação e, antes de tudo, de suas massas camponesas (idem, p. 137).

A relação de hegemonia, uma relação necessariamente diacrônica, convertia a distinção Norte e Sul, Ocidente e Oriente, em uma tarefa política da revolução, que Gramsci chamaria por “construção de um novo bloco-histórico”, que Trotsky chamaria por “revolução permanente”. Trotsky continuava:

Tanto a questão agrária como a questão nacional conferem ao campesinato, como enorme maioria da população dos países atrasados, um papel primordial na revolução democrática. Sem a aliança entre o proletariado

e o campesinato, as tarefas da revolução democrática não podem ser resolvidas, nem mesmo ser colocadas a sério (idem, ibidem).

Em um “diálogo imaginado”, para Trotsky, assim como para Gramsci em relação à guerra de posição, “não há positividade inerente à noção de Ocidente” (BIANCHI, 2008). A noção de Ocidente não indica um modelo, um programa, ou um ideal, mas tem a finalidade de expressar um dos termos da situação político-histórica, termo que predomina em uma situação na qual o tempo das formas sociais não coincide com o tempo da luta de classes.

Referências Bibliográficas

BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008.

COUTINHO, Carlos Nelson (org.) O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011;

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Torino: Giulio Einaudi, 1975. 4v.

LUXEMBURG, Rosa. Oeuvres I. Paris: François Maspero, 1969.

MANDEL, Ernest. Trotsky: um estudo da dinâmica de seu pensamento. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

TROTSKY, Leon. A revolução permanente. São Paulo: Kairós, 1985.

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O Movimento Estudantil Revolucionário

Pronunciamento de Ernest Mandel em 21 de Setembro de 1968

Transcrição autorizada

Fonte: MANDEL, Ernest. Os estudantes, os intelectuais e a luta de classes. Lisboa: Edições Antídoto, 1979. pp 19-39.

Transcrição: Daniel Monteiro

HTML: Fernando A. S. Araújo

Direitos de Reprodução: © Edições Antídoto. Gentilmente cedidos pela Associação Política Socialista Revolucionária.

Introdução

Em Setembro e Outubro de 1968, Ernest Mandel efetuou diversas conferências em trinta e três colégios e universidades nos Estados Unidos e no Canadá, de Harvard a Berkley e de Montreal a Vancouver.

A sua exposição na Assembléia Internacional dos Movimentos Revolucionários Estudantis, sob a égide dos Estudantes para uma Sociedade Democrática (SDS), da Universidade de Columbia, foi considerada como o acontecimento maior do evento e um dos pontos quentes da sua digressão. Esta reunião realizou-se na noite de sábado, 21 de Setembro, no auditório da Faculdade de Educação da Universidade de Nova lorque. Mais de 600 pessoas estiveram presentes e o debate prolongou-se durante várias horas. Reproduzimos a seguir o discurso principal dessa noite e os extractos essenciais das intervenções de Erneest Mandel ao longo da discussão.

1. Teoria e prática

Rudi Dutschke, o dirigente dos estudantes berlinenses, e muitas outras personalidades estudantis representativas, avançaram como ideia central da sua atividade o conceito da unidade da teoria e da prática, da teoria revolucionária e da prática revolucionária. Não se trata de uma escolha arbitrária. A unidade da teoria e da prática pode ser considerada como a mais importante das lições da experiência histórica extraídas das revoluções que tiveram lugar na Europa, na América ou noutros países do Mundo. A tradição histórica que engloba esta ideia parte de Babeuf e, através de Hegel, chega a Marx. Esta conquista ideológica implica que o grande movimento de libertação da Humanidade deve ser guiado por um esforço consciente para reconstruir a sociedade, para ultrapassar uma situação na qual o homem está dominado pelas forças cegas da economia de mercado e começa

a tomar nas mãos o seu próprio destino. Este ato consciente de emancipação não pode ser conduzido com eficácia, e muito menos até ao fim, sem que o homem tome consciência do ambiente social em que vive, das forças sociais com que deve enfrentar-se e das condições econômicas e sociais gerais desse movimento para a libertação. Tal como a unidade da teoria e da prática é hoje um guia fundamental para qualquer movimento de emancipação, o marxismo ensina também que a revolução, a revolução consciente, não pode ser um êxito sem que o homem compreenda a natureza da sociedade em que vive e sem que compreenda as forças motoras que são subjacentes ao desenvolvimento econômico e social dessa sociedade. Noutras palavras: sem que compreenda as forças que comandam a evolução social, o homem não poderá transformar essa evolução por uma revolução. Eis a concepção principal que a teoria marxista introduz no atual movimento revolucionário estudantil na Europa.

Tentaremos demonstrar que estas duas ideias — a unidade da teoria e da prática e uma compreensão marxista das contradições objetivas da sociedade — que existiam muito antes que o movimento estudantil na Europa se tivesse revelado, foram reencontradas e reintegradas na luta prática pelo movimento estudantil europeu como um resultado das suas próprias experiências.

O movimento estudantil começa por todo o lado — e não é diferente nos Estados Unidos — como uma revolta contra as condições imediatas de que os estudantes fazem a experiência nas suas instituições acadêmicas específicas, nas faculdades e escolas secundárias. Este aspecto é evidente no Ocidente, onde

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vivemos, embora a situação seja totalmente diversa nos países subdesenvolvidos. Ali, muitas outras forças e circunstâncias apelam a que a juventude estudantil ou não-estudantil se subleve. Mas, no decorrer dos dois últimos decênios, o tipo de juventude que frequenta a Universidade no Ocidente não tinha encontrado, na globalidade, nem no seu local de estudo, nem nas condições familiares, nem na própria cidade, razões iminentes de revolta social.

Existem, evidentemente, exceções. A comunidade negra dos Estados Unidos é uma delas; os trabalhadores imigrados mal pagos da Europa Ocidental são outra exceção. No entanto, na maioria dos países ocidentais, os estudantes que vêm desse meio proletário mais pobre são sempre uma ínfima minoria. A larga maioria dos estudantes vem de meios pequeno-burgueses ou da média burguesia ou de das camadas trabalhadoras mais favorecidas. Quando chegam à Universidade, não estão em regra preparados, devido à vida que levaram até então, para compreender claramente ou plenamente as razões da revolta social. Tomam pela primeira vez consciência disso no quadro da Universidade. Não faço referência às excepcionais pequenas minorias de elementos politicamente conscientes, mas à grande massa de estudantes que se encontram confrontados com um certo número de condições que os conduzem para o caminho da revolta.

Em poucas palavras, tais condições abrangem a organização, a estrutura e o programa dos cursos inadequados da Universidade, bem como toda uma série de fatos materiais, sociais e políticos de uma experiência no quadro da universidade burguesa, que se tornam insuportáveis para

uma fração cada vez maior de estudantes. É interessante observar que certos teóricos e pedagogos burgueses, que desejem compreender as razões da revolta estudantil, tiveram que reintroduzir na sua análise do meio estudantil certas noções que há muito tempo tinham eliminado da sua análise geral da sociedade.

Há poucos dias, quando me encontrava em Toronto, um dos principais pedagogos canadenses deu um curso sobre as causas da revolta estudantil. As suas razões, afirmou ele, “são essencialmente materiais. Não porque as suas condições de vida sejam insuficientes; não por serem maltratados como eram os operários do século XIX. Mas, socialmente, criamos uma espécie de proletariado das universidades, que não tem nenhum direito de participar na elaboração dos seus programas, nenhum direito para, pelo menos, co-determinar a sua própria existência durante os quatro, cinco ou seis anos que passa pela Universidade”.

Embora não possa aceitar esta definição não marxista do proletariado, penso mesmo assim que este pedagogo burguês revelou parcialmente uma das raízes da revolta estudantil generalizada. A estrutura das universidades burguesas não é mais que um reflexo da estrutura hierárquica geral da sociedade burguesa. Ambas se tornam insuportáveis para os estudantes, mesmo com o seu atual nível elementar de consciência social. Isso nos levaria mais longe do que a sondagem das raízes psicológicas e morais mais profundas dessa tomada de consciência. Mas em certos países da Europa Ocidental, e certamente também nos Estados Unidos, a sociedade burguesa, tal como funcionou durante a última geração, provocou nos derradeiros anos uma

decomposição muito avançada da família burguesa clássica. Enquanto jovens, os estudantes contestadores foram educados através da experiência prática a pôr em questão toda a autoridade, começando pela autoridade dos próprios pais. Isso é extremamente notório num país como a Alemanha de hoje.

Se conhecerem um pouco da vida cotidiana alemã ou se estudarem os seus reflexos na literatura alemã, saberão que, até à Segunda Guerra Mundial, a autoridade paternal neste país era a que menos se punha em questão em todo o Mundo. A obediência dos filhos aos seus pais estava profundamente enraizada no tecido da sociedade. Mas a atual juventude alemã atravessou uma série de experiências amargas, antes de tudo como filhos de uma geração de pais alemães que, em elevado número, aceitaram o nazismo, depois adotaram a guerra fria e, finalmente, viveram com todo o conforto na crença de que o pretenso “capitalismo popular” (designado por “economia social de mercado”), não seria abalado por nenhuma recessão, por nenhuma crise nem problemas sociais. As falências ideológicas e morais sucessivas dessas duas ou três gerações de pais deram origem hoje, no seio da juventude, a um profundo sentimento de desprezo pela autoridade dos seus pais e prepararam-nos para não aceitar, sem repto ou sem sérias reservas qualquer forma de autoridade quando chegam à Universidade.

Encontram-se então confrontados em primeiro lugar, com a autoridade dos professores e das instituições universitárias que, pelo menos no domínio das ciências sociais, estão incontestavelmente longe de toda a realidade. As lições que recebem não permitem nenhuma análise científica objetiva do que se

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passa no mundo ou nos diferentes países ocidentais. Este desafio lançado à autoridade acadêmica enquanto instituição torna-se rapidamente num desafio ao conteúdo do ensino.

Além disso, na Europa, muito mais sem dúvida do que nos Estados Unidos, possuímos condições materiais muito pouco satisfatórias nas universidades. Elas encontram-se super-povoadas. Milhares de estudantes são obrigados a ouvir os seus professores através de sistemas de escuta. Não podem falar com o professor ou ter com ele quaisquer contatos, trocas normais de opiniões ou diálogos. As condições de alojamento e de alimentação são também más. Fatores suplementares alimentam a energia da revolta estudantil. No entanto, devo insistir no fato de que tua principal razão da revolta persistiria mesmo se tais condições materiais fossem melhoradas. A estrutura autoritária da Universidade e o conteúdo inadequado do ensino recebido, pelo menos no domínio das ciências sociais, são muito mais causas do descontentamento do que o são as condições materiais.

Eis porque as tentativas de reformas universitárias que foram feitas pelas alas liberais dos diferentes establishments da sociedade neo-capitalista (1) ocidental muito provavelmente fracassarão. Tais reformas não atingirão os seus objetivos porque não atacam as verdadeiras origens da revolta estudantil. Não só não tentam suprimir as causas da alienação dos estudantes, mas, se forem aplicadas, antes as acentuarão.

Qual é o objetivo da reforma universitária tal como é proposta pelos reformadores liberais do mundo ocidental? É

uma tentativa para arrumar a organização da Universidade a fim de que esta satisfaça as necessidades da economia e da sociedade neo-capitalista. Esses senhores dizem:

“Claro, não é nada bom ter um proletariado acadêmico; não é nada bom ter muita gente que deixe a Universidade sem poder encontrar emprego. Isto é para muitos a razão da tensão e da explosão social. Mas como resolver o problema? Fá-lo-emos reorganizando a Universidade e distribuindo o número de lugares acessíveis segundo as necessidades da economia neo-capitalista. Num país que tem necessidade de 100 mil engenheiros, asseguraremos 100 mil engenheiros em vez de dispormos de 50 mil sociólogos ou 20 mil filósofos, que não podem encontrar emprego compatível. Isto desembaraçar-nos-à das principais causas da revolta estudantil”.

Eis uma tentativa para subordinar a função da Universidade, muito mais que no passado, às necessidades imediatas da economia e da sociedade neo-capitalista. Ela produzirá um grau ainda mais elevado de alienação estudantil. Se tais reformas são aplicadas, os estudantes nunca encontrarão uma estrutura e um ensino universitário que correspondam aos seus desejos. Não poderão escolher uma carreira, um domínio do saber, as disciplinas que gostam e correspondem às suas aspirações, às necessidades da sua própria realização em função das suas próprias personalidades. Serão obrigados a aceitar os cursos, disciplinas e domínios do saber que correspondem aos interesses dos poderes da sociedade capitalista e não às suas necessidades enquanto seres humanos. Assim, um nível mais elevado de

alienação será imposto através de uma reforma da Universidade.

Não digo que se deva ser indiferente ao problema de qualquer reforma universitária. É necessário formular certas reivindicações transitórias para os problemas universitários, tal como os marxistas tentaram formular reivindicações transitórias para outros movimentos sociais em qualquer sector. Por exemplo, não vejo porque é que a reivindicação do “poder estudantil” não poderia ser avançada no quadro da Universidade. Tal reivindicação não se pode aplicar a toda a sociedade, pois significaria que uma pequena minoria se arrogaria o direito de reinar sobre a imensa maioria da sociedade. Mas, na Universidade, a reivindicação do “poder estudantil”, ou não importa qual a outra reivindicação no sentido da auto-gestão pela massa dos estudantes, tem um valor evidente.

Sobre esta questão, serei contudo prudente, porque existem muitos problemas que tornam uma universidade diferente de uma fábrica ou de uma comunidade produtiva. É falso dizer-se, como fazem certos teóricos do SDS norte-americano, que os estudantes são já trabalhadores. A maioria dos estudantes são futuros produtores ou produtores em tempo parcial. Podem, quando muito, ser comparados com os aprendizes de uma fábrica, dado que a sua função é idêntica do ponto de vista do trabalho intelectual à dos aprendizes do ponto de vista do trabalho manual. Mas eles têm um papel social e um lugar transitório específico na sociedade. Devemos, pois, ser prudentes quanto à maneira como se formulam reivindicações transitórias a seu respeito.

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No entanto, não é necessário levar aqui esta argumentação mais longe. Aceitemos de momento a ideia de “poder estudantil” como uma palavra de ordem transitória aceitável no quadro da universidade burguesa. Mas é perfeitamente claro que a concretização de uma tal reivindicação, que em si mesma não é impossível por um certo espaço de tempo, quando das grandes explosões de contestação universitária, não alteraria as raízes da alienação dos estudantes porque elas não crescem da Universidade em si, mas da sociedade no seu conjunto. E não podem mudar um pequeno setor da sociedade burguesa - no caso presente o sector da Universidade burguesa —, e pensar que os problemas sociais vão ser resolvidos neste pequeno segmento enquanto o problema da mudança global da sociedade não tiver sido resolvido. Enquanto existir o capitalismo, o trabalho será alienado, o trabalho manual sê-lo-à, e também inevitavelmente o trabalho intelectual. Os estudantes permanecerão, pois, alienados, quaisquer que sejam as mudanças que a ação direta possa produzir no quadro da Universidade.

Também neste caso não é uma observação teórica que nos cai do céu. É uma lição da experiência prática. O movimento estudantil europeu, pelo menos a sua ala revolucionária, atravessou muitas experiências em praticamente todos os países da Europa Ocidental. Esquematicamente, o movimento estudantil começou por enfrentar problemas respeitantes à Universidade e muito depressa ultrapassou os limites da Universidade. Desenvolveu-se colocando uma série de questões sociais e políticas gerais que não estavam diretamente ligadas ao que se passava na Universidade. O que se passou em Columbia,

em que a questão da opressão da comunidade negra foi posta pelos “estudantes rebeldes”, assemelha-se ao que ocorreu no movimento estudantil europeu, pelo menos entre os elementos mais avançados que se mostravam muito sensíveis aos problemas dos sectores mais explorados do sistema capitalista mundial.

Empreenderam ações de solidariedade com as lutas revolucionárias de emancipação dos povos dos países subdesenvolvidos; com Cuba, Vietnan e outras partes oprimidas do Terceiro Mundo. A identificação das frações mais conscientes do movimento estudantil francês com a revolução argelina, com a luta de emancipação dos argelinos contra o imperialismo francês, representou um enorme papel. Foi este, sem dúvida, o primeiro quadro em que uma verdadeira diferenciação política teve lugar sobre a esquerda do movimento estudantil. Os próprios estudantes representaram mais tarde o papel de vanguarda na luta pela defesa da revolução vietnamita contra a guerra de agressão do imperialismo americano.

Na Alemanha, esta simpatia pelos povos coloniais teve um ponto de partida bastante excepcional. A grande revolta estudantil surgiu aquando de uma ação de solidariedade com os trabalhadores, camponeses e estudantes de um outro país do pretenso Terceiro Mundo, o Irão, durante a visita do xá do Irão a Berlim. A vanguarda estudantil não se identifica simplesmente com as lutas específicas da Argélia, de Cuba, do Vietnan: ela mostra simpatia pela emancipação revolucionária do chamado Terceiro Mundo em geral. O desenvolvimento partiu daí mesmo. Na França, na Alemanha, na Itália — e o mesmo processo desenvolve-se neste momento na Grã-Bretanha

— não era possível iniciar uma ação revolucionária de solidariedade com os povos do Terceiro Mundo sem uma análise teórica da natureza do imperialismo, do colonialismo, das forças motoras responsáveis, por um lado da exploração do Terceiro Mundo pelo imperialismo e, por outro lado, do movimento de libertação das massas revolucionárias desses países contra o imperialismo.

Através de um desvio pela análise do colonialismo e do imperialismo, as forças mais conscientes e organizadas do movimento estudantil europeu foram levadas ao ponto de partida do marxismo, isto é, à análise da sociedade capitalista e do sistema capitalista internacional em que vivemos. Se não compreendermos estes sistemas, não poderemos compreender as razões das guerras coloniais ou dos movimentos de libertação coloniais. Não poderemos igualmente compreender porque nos devemos solidarizar com essas forças a uma escala mundial.

No caso da Alemanha esse processo levou menos de seis meses para se desenrolar. O movimento estudantil começou por colocar em questão a estrutura autoritária da Universidade, prosseguiu pondo em causa o imperialismo e a miséria no Terceiro Mundo, e em seguida, ao solidarizar-se com os movimentos de libertação, foi posto perante a necessidade de reanalisar o neo-capitalismo a uma escala mundial no próprio país em que os estudantes se mostravam ativos. Tiveram de regressar ao ponto de partida da análise marxista da sociedade em que vivemos para compreender as suas razões objetivas mais profundas da miséria social e da revolta social.

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2. A unidade da teoria e da prática

No processo de conquista e de reconstituição da unidade da teoria e da prática, tão depressa a teoria está em avanço sobre a ação como a ação precede a teoria. No entanto, a cada momento, as necessidades de uma luta obrigam os seus autores a restabelecer a unidade a um nível constantemente mais elevado.

Para compreender esse processo dinâmico, devemos reconhecer que opor a ação imediata ao estudo a longo prazo constitui um método falso. Fiquei admirado, durante a “Socialists schoolars conference” e durante diversas outras conferências, nos Estados Unidos, ao longo das duas últimas semanas, pela forma sistemática como essa divisão foi defendida num sentido ou no outro. Era como um diálogo de surdos em que uma parte da audiência dizia: “Apenas é necessário empreender a ação, a ação imediata, o resto é inútil”, enquanto a outra parte afirmava: “Não! Antes de agir é preciso saber o que fazer, portanto não atuem ainda. Assentem-se, estudem, escrevam livros!” (Palmas).

A resposta evidente adquirida na experiência histórica, não apenas do período marxista, mas mesmo do período pré-marxista do movimento revolucionário, é que não se pode fazer umas coisa sem a outra (Palmas). A prática sem a teoria não será eficaz, nem emancipadora em profundidade, porque, como já afirmei antes, não se pode emancipar a humanidade inconscientemente. Por outro lado, a teoria sem a prática não será autenticamente científica, porque não existe outro meio de pôr a teoria à prova a não ser pela prática.

Qualquer forma de teoria que não seja posta à prova através da prática não se revela uma teoria adequada, mostra-se insuficiente do ponto de vista da emancipação da Humanidade (Palmas). E através de um esforço constante para conseguir as duas ao mesmo tempo, simultaneamente, e sem divisão do trabalho, que a unidade da teoria e da prática pode ser restabelecida a um nível progressivamente mais elevado a fim de que todo o movimento revolucionário, quaisquer que sejam as suas origens e objetivos socialmente progressistas, possa verdadeiramente alcançar os seus fins. Neste mesmo sentido de uma divisão do trabalho, uma outra ideia foi expressa que me espantou por ser extremamente estranha num corpo de socialistas. Essa divisão prevalecente entre a teoria e a prática, que em si já é má, recebe uma nova dimensão no movimento socialista quando se afirma: uma categoria é a dos ativistas, as pessoas simples que fazem o trabalho ingrato. Uma outra categoria é a da elite que deve pensar. Se essa elite se mistura com os piquetes de greve, não terá tempo para pensar ou escrever livros e, nesse caso, um elemento precioso da luta pela emancipação será perdido.

Devo dizer que qualquer noção que procurasse reintroduzir no seio do movimento revolucionário a divisão elementar do trabalho entre trabalho intelectual e trabalho manual, entre a ralé que faz o trabalho ingrato e a elite que pensa, é profundamente não-socialista. Ela vai contra um dos objetivos principais do movimento socialista que é precisamente o de alcançar o desaparecimento da divisão entre trabalho manual e intelectual (Palmas), não apenas no seio das organizações mas, mais importante ainda, à escala de toda a sociedade.

Os socialistas revolucionários de há cinquenta ou cem anos não poderiam compreender tão claramente isso como nós, hoje, quando as possibilidades objetivas de atingir tal fim existem. Entramos já num processo objetivo de tecnologia e de educação que trabalha nesse sentido.

Uma das principais lições que deve ser tirada da degenerescência da Revolução Russa é que, se essa divisão entre trabalho manual e intelectual é mantida não importa em que sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, enquanto instituição permanente, ela só pode desenvolver a burocracia, novas desigualdades e novas formas de opressão humana, que são incompatíveis com uma comunidade socialista (Palmas). Por conseguinte, devemos começar por eliminar, nos limites do possível, qualquer ideia de uma tal divisão de trabalho no próprio movimento revolucionário. Devemos sustentar, regra geral, que não existem bons teóricos se não forem capazes de participar na atividade prática, e que não existem bons ativistas se se mostrarem incapazes de assimilar e desenvolver a teoria (Palmas).

O movimento estudantil europeu tentou chegar a isso num certo grau e com alguns sucessos na Alemanha Federal, em França e em Itália. Apareceu um tipo de dirigente estudantil que é um agitador e que pode mesmo, se isso for necessário, construir uma barricada e aí combater, mas que ao mesmo tempo é capaz de escrever um artigo teórico, e até um livro, e de discutir com os sociólogos, professores de ciências políticas e economistas mais em voga e derrotá-los no seu próprio terreno (Palmas). Isto tornou-nos confiantes não só no futuro do movimento estudantil, mas também para o

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tempo em que esses estudantes deixarão de o ser para desempenharem outras funções na sociedade.

3. A necessidade de uma organização revolucionária

Gostaria de discutir aqui um ou outro aspecto da unidade da teoria e da prática que esteve em debate nos movimentos estudantis europeus e norte-americanos. Estou pessoalmente convencido de que sem uma verdadeira organização revolucionária — e por isso entendo não uma formação conjuntural, mas uma organização séria e permanente — uma tal unidade da teoria e da prática não poderá ser adquirida de forma duradoura.

Apresentarei para isso duas razões. Uma reside no próprio estatuto do estudante. O estatuto do estudante, contrariamente ao do trabalhador é, pela sua própria natureza, de curta duração. Ele permanece na Universidade por quatro, cinco ou seis anos e ninguém pode vaticinar o que lhe acontecerá após a ter abandonado. Aqui, gostaria de responder de seguida a um dos argumentos mais demagógicos que foram utilizados pelos dirigentes dos partidos comunistas europeus contra os “estudantes rebeldes”. Disseram eles com desprezo:“Quem são estes estudantes? Hoje, eles revoltam-se. Amanhã, serão os nossos patrões que ar nos hão-de explorar. Não tomemos então a sério o que eles fazem”.

Este é um argumento ridículo, porque não toma em consideração a subversão do papel

dos diplomados da Universidade na sociedade atual. Se se tivessem referenciado às estatísticas, teriam aprendido que apenas uma pequena minoria dos estudantes formados hoje em dia se tornam patrões ou agentes diretos dos patrões, como gestores das fileiras superiores. Era talvez o que acontecia, sim, quando não havia mais de 10, 15 ou 20 mil diplomados por ano. Mas quando existe um milhão, ou quatro ou cinco milhões de estudantes, é impossível à maioria dentre eles tornarem-se capitalistas ou gestores de empresas, porque não existem assim tantos lugares disponíveis desse tipo.

O grão de verdade existente nesse argumento demagógico é que, abandonando o ambiente acadêmico, o estudante diplomado pode ver modificar-se o seu nível de consciência social e de atividade política. Quando abandona a Universidade, esta atmosfera não o volta a envolver, e ele está mais vulnerável às pressões da ideologia e dos interesses burgueses ou pequeno-burgueses. Existe um grande perigo de ele se integrar no seu novo meio social, qualquer que este seja. Resultará daí um processo de retorno às posições de intelectual reformista ou liberal de esquerda, que já não arrastam consigo atividades revolucionárias.

É instrutivo estudar deste ponto de vista a história do SDS alemão, de momento o mais velho dos movimentos revolucionários estudantis na Europa. Desde que foi expulsa da social-democracia alemã, há nove anos atrás, toda uma geração de militantes SDS deixou a Universidade. Decorridos vários anos, na ausência de uma organização revolucionária, a esmagadora maioria desses militantes, qualquer que tenha sido o seu desejo individual de serem socialistas convictos e devotados, deixaram de ser politicamente ativos de um ponto de vista

revolucionário. Assim, para preservar no tempo a continuidade da atividade revolucionária, é preciso uma organização mais ampla que uma organização revolucionária puramente estudantil, uma organização na qual estudantes e não-estudantes possam trabalhar em conjunto.

Existem ainda uma razão mais importante pela qual uma tal organização-partido é necessária. Porque sem ela, nenhuma unidade de ação permanente com a classe operária industrial, no sentido mais amplo do termo, pode ser adquirida. Enquanto marxista, continua convencido de que, sem a ação da classe operária, e impossível derrubar a sociedade burguesa e construir uma sociedade socialista (Palmas).

Ainda aqui, de uma forma notável, nós vemos como a experiência dos movimentos estudantis, primeiro na Alemanha, e depois na França e na Itália, chegaram na prática a esta conclusão teórica. Os mesmos tipos de discussões que têm agora lugar nos Estados Unidos sobre a importância ou não da classe operária industrial para a ação revolucionária foram travadas há um ano, ou mesmo há seis meses, em países como a Alemanha e a Itália.

O problema foi resolvido na prática, não apenas no decorrer dos acontecimentos revolucionários de Maio-Junho de 1968 em França, mas também pela ação comum dos estudantes de Turim com os trabalhadores da FIAT na Itália. Foi também clarificado pelas tentativas conscientes do SDS alemão para arrastar frações da classe operária pela sua agitação fora da Universidade contra a sociedade de edições Springer e na sua campanha de prevenção contra a aplicação das

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leis de emergência para reduzir as liberdades democráticas.

Tais experiências ensinaram ao movimento estudantil da Europa Ocidental que é absolutamente indispensável que encontre um ponto de ligação com a classe operária industrial. Esta questão tem diferentes aspectos em diferentes níveis. Tem um aspecto programático que não poderei agora abordar. Coloca-se a questão: como é que os estudantes podem aproximar-se da classe operária industrial, não como querendo dar-lhe lições, porque nesse caso os trabalhadores mandá-los-iam sempre passear, mesmo que tenham uma zona de interesse de objetivos sociais comuns.

É uma questão que acima de tudo respeita ao problema da organização do partido. De contrário, toda uma série de experiências autodestruidoras para chegar a uma tal colaboração a um elementar nível de ação imediata entre um reduzido número de estudantes e um reduzido número de trabalhadores desfiar-se-á ao fim de três a seis meses, sem ter conduzido a nada. Mesmo se se recomeça a partir do zero, logo que o balanço for feito ao fim na de um, dois ou três anos, pouco restará dessa ligação.

A função de uma organização revolucionária permanente é a de facilitar uma integração recíproca das lutas estudantis e das da classe operária pelas suas vanguardas de uma forma contínua. Não existe apenas continuidade no tempo, mas também, por assim dizer, continuidade no espaço, interação entre diferentes grupos sociais que têm a mesma razão de ser socialistas revolucionários.

Devemos interrogar-nos se uma tal interação é objetivamente possível. É mais fácil responder que sim depois das experiências da França, Itália e outros países da Europa Ocidental e de defender essa linha para a Europa Ocidental do que para os Estados Unidos. Por razões históricas que não posso agora abordar, existe uma situação particular nos Estados Unidos em que a maioria da classe operária branca não está ainda receptiva às ideias socialistas de ação revolucionária. É um fato incontestável. Evidentemente, isto pode alterar-se rapidamente. Alguns diziam que se passava a mesma coisa em relação à França algumas semanas apenas antes do 1º de Maio de 1968. No entanto, mesmo nos Estados Unidos, existe uma importante minoria da classe operária industrial, os trabalhadores negros, a propósito dos quais ninguém pode dizer, após a experiência destes últimos dois anos, que são inacessíveis às ideias socialistas ou incapazes de empreender a ação revolucionária. Aqui, pelo menos, existe uma possibilidade imediata de unidade entre a teoria e a prática com uma parte da classe operária.

Além disso, é essencial analisar as tendências sociais e econômicas que, a longo prazo, sacudirão a apatia e o conservantismo políticos predominantes da classe operária branca. O exemplo da Alemanha, em circunstâncias similares, mostra que isso pode acontecer. Há alguns anos, a classe operária alemã surgia tão mergulhada na mesma estabilidade, no mesmo conservadorismo, tão inquebrantavelmente integrada na sociedade capitalista como a classe operária norte-americana aparece hoje para muitas pessoas. Mas isto já começou a mudar. Este caso ilustra como uma ínfima mudança na relação de forças,

uma pequena deficiência da economia, um ataque dos patrões sobre a estrutura e os direitos sindicais tradicionais, podem criar tensões sociais que podem modificar muita coisa neste domínio.

De qualquer modo, não é minha tarefa informar dos problemas da vossa própria luta de classes como não é a tarefa de vocês irem pregar aos operários. Prefiro indicar um dos principais canais através do qual a consciência socialista e a atividade revolucionária pode transmitir-se entre estudantes e trabalhadores, como o demonstraram não só a Europa Ocidental mas também o Japão. Esta correia de transmissão específica é a juventude operária. Consequência das mudanças tecnológicas dos últimos anos sobre a estrutura da classe operária, o sistema educativo burguês revela-se inadequado para preparar os jovens trabalhadores, ou uma parte dos jovens operários, para desempenhar o novo papel exigido por essa mudança tecnológica, quando se trata de uma necessidade dos próprios capitalistas. Os Estados Unidos constituem um exemplo extremamente flagrante disso mesmo, com a falência total do ensino para os jovens trabalhadores negros que têm uma taxa de desemprego tão elevada to como a média da população norte-americana global durante a grande depressão. Este fato explica em grande parte o que se passa no seio da juventude negra neste país.

E isso é apenas uma das manifestações de uma tendência mais geral que nos impõe uma atenção para tudo o que se passa no seio da juventude. Não existe outro sinal mais evidente da decrepitude e da decomposição de um sistema social do que o fato de ele ter de condenar e rejeitar totalmente a sua juventude. O poder francês, durante os acontecimentos de

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Maio, não se de recusou apenas a fazer distinções entre jovens estudantes, jovens empregados e jovens operários, mas considerou a juventude em si mesma como uma inimiga.

Um exemplo concreto é o incidente de Flins, durante a greve geral. Depois de um jovem estudante secundarista ter sido abatido pela polícia, houve um tumulto tempestuoso. Então, sistematicamente, a polícia dissimulou-se na multidão e apartou os manifestantes, consultando os cartões de identidade. Todo aquele que tivesse menos de trinta anos era preso, porque considerado potencialmente insurrecional, disposto a lutar contra a polícia (palmas).

Se examinarem de perto a literatura contemporânea, a indústria cinematográfica e outras formas de reflexos da realidade social na superestrutura cultural no decurso dos últimos cinco ou dez anos, verificareis que, sob a desonestíssima cobertura de denúncia da delinquência juvenil, a burguesia traçou realmente um quadro desse tipo de juventude que o seu sistema produz bem como o espírito rebelde dessa juventude. Isto não se limita de modo nenhum aos estudantes ou às minorias como a juventude negra dos Estados Unidos. Isso aplica-se também aos jovens operários.

É imperioso estudar tudo o que se passa com os jovens trabalhadores em luta. Ganhar esses jovens operários para a consciência socialista, para as ideias da revolução socialista, será provavelmente decisivo para o destino da maioria dos países ocidentais nos dez ou quinze próximos anos. Se conseguirmos fazer dos melhores desse jovens, revolucionários sociais, como creio que foi feito em larga medida na Europa Ocidental, podemos ter confiança no

futuro do nosso movimento. Se falharmos esse propósito, e uma grande parte dessa juventude deslizar para a extrema direita, teremos perdido uma luta decisiva e encontrar-nos-emos na mesma grave situação a que o movimento socialista e revolucionário europeu teve de fazer face nos anos trinta.

A unidade da teoria e da prática significa também que toda uma série de ideias-chave do velho movimento socialista e da tradição revolucionária estão em vias de ser hoje redescobertas. Eu sei que uma parte do movimento estudantil nos Estados Unidos gostaria de criar qualquer coisa inteiramente nova. Aprovo sinceramente qualquer proposta e intenção de fazer as coisas melhor, porque o balanço do que as gerações anteriores conseguiram fazer do ponto de vista da construção de uma sociedade socialista não é muito convincente. Mas aqui, sim, é imperioso fazer uma advertência. Em noventa e nove por cento das vezes, quando pensais que estais a criar ou a descobrir qualquer coisa de novo, o que estais na realidade a fazer é a voltar a um passado que está ainda mais distante do que o passado do marxismo.

Quase todas as “novas ideias” que foram avançadas no movimento estudantil na Europa no decorrer dos últimos dois ou três anos, e que começam a ser correntes nos Estados Unidos, são muito, muito velhas. E isto por uma razão muito simples, que está enraizada na história das ideias. As diversas possibilidades de evolução social e as principais tendências de crítica social que lhes correspondem foram desenvolvidas nas suas grandes linhas pelos grandes pensadores dos séculos XVIII e XIX. Quer isto vos agrade ou não, a verdade é que continua a ser válido tanto para as ciências

sociais como para as ciências naturais, em que uma série de leis elementares foram estabelecidas no passado. Se pretenderem desenvolver tendências novas, devem baseá-las nos alicerces que foram fundados pelos melhores pensadores e lutadores das gerações precedentes. Esta procura desesperada de qualquer coisa inteiramente nova não é mais do que um aspeto episódico da fase inicial da radicalização estudantil. Desde que o movimento se alarga e mobiliza largas massas, então, paradoxalmente, dá-se o inverso, como os sociólogos franceses sublinharam com grande espanto a propósito dos acontecimentos de Maio. Nessa altura, as largas massas estudantis revolucionárias fizeram tudo para redescobrir a sua tradição e as suas raízes históricas. Os estudantes devem ter consciência de que são mais fortes se puderem dizer: nós lutamos no prolongamento de um combate pela liberdade que começou há cento e cinquenta anos, ou mesmo há dois mil anos, quando os primeiros escravos se sublevaram. Isso é muito mais convincente do que dizer: nós fazemos qualquer coisa inteiramente nova, que está separada da história e isolada de todo o passado, como se esse passado nada tivesse a ensinar-nos nem a dar-nos (palmas).

Esta procura conduzirá os “estudantes rebeldes” aos conceitos históricos fundamentais do socialismo e do marxismo. Temos visto como os movimentos estudantis francês, alemão, italiano e agora britânico chegaram às ideias de revolução socialista e de democracia operária. Para qualquer pessoa da minha escola de pensamento, foi uma enorme alegria ver com que elevado rigor o movimento revolucionário francês protegia o direito de cada tendência à liberdade de expressão, retomando as melhores

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tradições do socialismo. A vossa própria assembleia retoma a velha tradição socialista e marxista de internacionalismo quando dizeis que a revolta estudantil é mundial e que o movimento estudantil é internacional.

E é um internacionalismo do mesmo tipo, com as mesmas raízes e com os mesmos objetivos que o internacionalismo do socialismo, como o da classe operária! Os problemas internacionais imperativos a que estudantes fazem frente são problemas de solidariedade com os nossos camaradas no México, na Argentina, no Brasil, que estão à cabeça de lutas extraordinárias, conduzindo a revolução latino-americana para um estádio novo e mais elevado, após as derrotas que lhe foram impostas por uma má direção, pela reação interna e pela repressão imperialista no decurso dos últimos anos. Acima de tudo devemos saudar a coragem e a audácia dos estudantes mexicanos (palmas). Em poucos dias, mudaram fundamentalmente a situação política do seu país e arrancaram a máscara de falsa democracia que o governo mexicano tinha colocado para receber alguns milhões de visitantes durante os Jogos Olímpicos. Agora, qualquer pessoa que assista a esses jogos saberá que entra num país em que os dirigentes sindicais dos caminhos de ferro foram mantidos na prisão durante longos anos após terem cumprido a sua pena, onde inúmeros presos políticos de esquerda foram encarcerados durante anos sem processo, onde dirigentes estudantis e um milhar de militantes estudantes se encontram na prisão sem qualquer fundamento jurídico. Os seus protestos heroicos terão enormes consequências sobre o futuro da política mexicana e da luta de classes no México (palmas).

É preciso dizer também algumas palavras acerca dos estudantes perseguidos nos países semicoloniais, de que nunca ninguém fala, tais como os dirigentes estudantis congolenses que estão na prisão desde há um ano por terem organizado uma pequena manifestação contra a guerra do Vietnã quando o vice-presidente Humphrey esteve entre eles. Não devemos esquecer os dirigentes dos estudantes tunisinos que foram condenados a doze anos de cadeia pelas mesmas razões. Apenas por terem conduzido uma manifestação: doze anos de prisão! Devemos alertar a opinião pública para que tais crimes de repressão não sejam esquecidos.

Devemos também pensar nos nossos camaradas da Iugoslávia e da Checoslováquia (palmas) que travaram este ano grandes lutas. Eles mostraram que a sua luta para introduzir e consolidar a democracia socialista nos países da Europa de Leste é uma luta paralela à nossa contra o capitalismo e o imperialismo no Ocidente. Não consentiremos que quer a reação stalinista quer a reação imperialista deformem a natureza dessa luta como pró-imperialista ou pró-burguesa, o que ela não é de forma nenhuma (palmas).

Finalmente, não devemos esquecer, como alguns poderiam fazê-lo, porque isso não figura na “primeira página” dos jornais, a luta contra a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã, que continua a ser a luta principal no mundo de hoje. Não é por estarem abertas as negociações em Paris que deixamos de ter alguma coisa que fazer para ajudar a luta dos nossos camaradas vietnamitas. Assim, pois, apelo-vos para que participem na ação mundial que foi empreendida pelo movimento estudantil japonês, o Zengakuren, pela

Federação Britânica dos Estudantes Revolucionários com a campanha de “Solidariedade pelo Vietnam”, nesses países, e o Comité de Mobilização Estudantil, aqui. É a semana de solidariedade com a revolução vietnamita de 21 a 27 de Outubro. Nessa semana, centenas de milhares de estudantes, jovens trabalhadores e jovens revolucionários, descerão a rua ao mesmo tempo numa ação mundial comum pelo objectivo concreto que os próprios camaradas vietnamitas nos dizem ser o mais importante para eles! Mostrar ao mundo inteiro que nos Estados Unidos centenas de milhares de pessoas são a favor da retirada imediata das tropas americanas do Vietnã. Eis o que será uma grande conquista! (Palmas).

Notas de rodapé:

(1) O termo neo-capitalista é aqui utilizado no sentido da terceira idade do capitalismo. Ou seja, significando simplesmente uma etapa do capitalismo dos monopólios (do imperialismo) e não uma qualquer “ultrapassagem” das contradições internas do modo de produção capitalista.

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Classe trabalhadora no Brasil: onde está o sujeito revolucionário hoje?

Lucas de Mello Braga

Quando almejamos uma juventude que pense suas ações sob uma ótica de transformação radical da sociedade e seja agente de construção de uma sociedade livre da opressão, precisamos compreender quem é a classe trabalhadora hoje e reafirmar a centralidade do trabalho, a partir da reestruturação do mundo do trabalho.

É uma tendência a redução do proletariado industrial, tradicional, na fábrica, manual, estável e especializado. Nesse sentido, Ricardo Antunes trabalha com uma noção de classe-que-vive-do-trabalho, a fim de “dar contemporaneidade e amplitude ao ser social que trabalha, à classe trabalhadora hoje, apreender sua efetividade sua processualidade e sua concretude”. A definição de classe trabalhadora, portanto, incorpora o crescimento das terceirizações, dos serviços públicos, do “terceiro setor” e do trabalho doméstico.

“A classe-que-vive-do-trabalho, a classe trabalhadora, hoje inclui a totalidade daqueles que vendem sua força de trabalho, tendo como núcleo central os trabalhadores produtivos. Ela não se restringe, portanto, ao trabalho manual direto, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo assalariado. (? ) Mas a classe-que-vive-do-trabalho engloba também os trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas para uso publico ou para o capitalista, e que não se constituem como

elemento diretamente produtivo como elemento vivo do processo de valorização do capital e de criação de mais-valia. O trabalho é construído como valor de uso e não como trabalho que cria valor de troca. O trabalho improdutivo abrange um amplo leque de assalariados, desde aqueles inseridos no setor de serviços, bancos, comércio, turismo serviços públicos, ate aqueles que realizam atividades nas fabricas mas não criam diretamente valor. Todo trabalhador produtivo é assalariado e nem todo trabalhador assalariado é produtivo. Assim, uma noção contemporânea de classe trabalhadora, de modo ampliado, deve considerar a totalidade dos trabalhadores assalariados.” [2]

Trabalhar um conceito ampliado de classe trabalhadora é importante para entender que hoje as principais lutas da juventude, tanto as lutas econômicas, quanto as lutas dos movimentos negro, ecológico, LGBT, de mulheres ganham mais vitalidade e força emancipadora quando estão associadas a luta contra o capital.

A universidade reorganizada para atender a necessidade do capitalismo no Brasil

Já em fins da década de 60, Ernest Mandel, aponta um fenômeno nas universidades conhecido como a proletarização do trabalho intelectual. Não significa, no entanto, a diminuição nas condições de vida do estudante, mas o crescimento da alienação, a perda de acesso aos meios de trabalho e de controle das condições de trabalho, uma

subordinação crescente do trabalhado a exigências que não têm mais nenhuma ligação com as suas capacidades ou as suas necessidades próprias. As reformas universitárias, cumprem o papel de reorganizar o quadro da universidade para melhor atender a necessidade do desenvolvimento e reprodução social, cultural, econômica da sociedade capitalista.

No Brasil, as grandes obras, projetos e investimentos em infraestrutura e construção civil são característicos do modelo de desenvolvimento adotado pelo governo Dilma. Nesse projeto, incluem-se a busca pela redução do custo da mão de obra, a reforma urbana voltada para a especulação imobiliária, e uma agressão crescente ao meio ambiente, aposta nos mega-eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Na universidade, é sensível a expansão vivida nos últimos anos. O número de estudantes matriculados aumentou consideravelmente, novas universidades e campi foram criados. O REUNI, processo de reestruturação e expansão das universidades públicas federais, dá respostas a uma necessidade crescente de qualificação e formação dos trabalhadores, bem como o desenvolvimento dos grandes parques tecnológicos, financiados pelas empresas privadas, em parceria com o Estado. Da mesma forma, o governo Dilma lança o PRONATEC, PROUNI das Escolas Técnicas, provendo uma grande expansão do ensino técnico no país, qualificando já na ensino médio a juventude para o mercado de trabalho.

O capital investe na qualificação e capacitação dos trabalhadores, e isso tem um custo. Melhor quando esse custo é do Estado, isto é, pelos impostos pegos pelos trabalhadores, destinados

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a sua capacitação, reduzindo o gasto do capital com a mão-de-obra especializada, fazendo om que o trabalhador gaste mais. Ainda, o crescimento da mão-de-obra especializada promovido pelo REUNI, vai ser incorporado no setor de serviços ou em tarefas especializadas, na grande maioria das vezes em trabalhos com vínculo precário, sem proteção do Estado, trabalho temporário, substitutos ou mesmo terceirizados.

Na educação privada esse fenomeno é mais acentuado. Menos de 11% da juventude brasileira está no ensino superior, mas menos de 5% está em instituições públicas. Nos últimos anos, o setor privado da educação cresceu muito, especialmente a partir de politicas do Governo Lula de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, com o PROUNI, FIES e agora, pelo governo Dilma, o PRONATEC. No ensino privado o trabalhador já custeia a sua própria capacitação, além de pagar os impostos que subsidiam a universidade pública e a própria verba pública investida no lucro das instituições privadas.

Tarefas revolucionárias da juventude

Os estudantes universitários hoje são parte da “classe-que-vive-do-trabalho” e compreender como se estrutura a luta de classes hoje no Brasil é fundamental para entender como o movimento estudantil está inserido nesse processo. Mas os estudantes tem um papel social e um lugar transitório específico na sociedade.

Por isso, a formulação das bandeiras e reivindicações transitórias tem limites claros. A estrutura da universidade/escola burguesa é a mesma estrutura hierárquica da sociedade capitalista. A imposição de certas vitórias, em

especial em momento de acenso do movimento, tem limites claros na sua aplicação ao conjunto da sociedade, mas sua formulação tem seu valor evidente, que é apontar a limitação do Estado capitalista e superar o estado econômico corporativo das reivindicações estudantis e avançar ao compromisso ético politico.

A ocupação de reitoria da UFF ocorrida no segundo semestre de 2011 é clara nesse sentido. O sentimento de insatisfação que motivou os estudantes se deu com a diminuição de suas condições materiais na universidade: falta de assistência estudantil, estrutura precária, falta de professores, etc. O seu estopim se deu com a imposição da Prefeitura e da Reitoria da construção de uma via pública dentro do campus da universidade, removendo 100 famílias vizinhas. As vitórias conquistadas pelos estudantes dão respostas aos seus problemas materiais, mas também ao questionamento da estrutura da universidade, formulando propostas de democratização e maior representação estudantil nas decisões da vida acadêmica. Essas vitórias, no entanto, têm seus limites na universidade, e seus avanços são apenas possíveis com uma articulação maior com os trabalhadores de Niterói para dar seguimento às lutas.

Esse é o caminho das principais mobilizações que podem inaugurar um novo momento na luta anticapitalista no mundo. Os jovens na Grécia, na Espanha, no Chile não começaram o grande processo de mobilização e ocupações de praças com os trabalhadores, aposentados, desempregados, do nada. É importante entender a crise do Estado Social na Europa, acentuada pela crise econômica mundial, o alto índice de desemprego da juventude, da mercantilização da educação no Chile. O crescimento das

mobilizações se dá a partir de um acumulo constante das lutas e da organização de uma vanguarda que mantém esse acúmulo, mesmo nos momentos de descenso.

No primeiro momento a luta é sempre econômico-corporativa (demandas que não avançam para uma concepção ético-política de como os homens devem se relacionar entre si e na sociedade). Esse momento é o que garante a mobilização num movimento, especialmente do movimento transitório. É fundamental defender bandeiras amplas de transição e potencializar essas bandeiras como antisistêmicas (não realizáveis nessa sociedade), isto é, fazer de forma constante e pedagógica ligações com as bandeiras gerais.

Hoje vivemos o maior movimento de massas desde as mobilizações contra a globalização em Seattle. E os fatores desse processo são determinados, não culturalmente, como se afirma (por “democracia real já”, novas formas de organização da luta), mas sim economicamente, relacionados a reestruturação do mundo do trabalho, o crescimento dos empregos na juventude sem a proteção do Estado, a retirada de direitos pelos estados que jogam à população o pagamento da crise, que evidenciam um modelo de civilização que não responde aos anseios da juventude e dos trabalhadores.

Uma das principais características desse movimento é a critica às formas tradicionais de organização em partidos, sindicatos, entidades. Tal crítica tem relação com a trajetória dos partidos de esquerda na Europa, mas também com a falta de capacidade de organizar uma classe que já não mais e a mesma. Nesse sentido,

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reafirmar uma nova cultura política é fundamental.

Precisamos reatualizar nossa cultura de movimento e resgatar o melhor da tradição socialista. Construir um movimento de caráter global, anticapitalista. A nova cultura política que afirmamos no movimento não é simplesmente um novo jeito de fazer movimento estudantil, com novas formas, é, sobretudo, socializar experiências de lutas da classe trabalhadora, pensar a auto organização dos setores oprimidos e explorados, a articulação das lutas com outros movimentos que são parte da classe trabalhadora.

Para isso,a defesa instransigente da autonomia é fundamental. Defender a autonomia do movimento é entender que na verdade, o papel da organização revolucionária é ampliar o tamanho da organização, o sentimento de transformação social e a capacidade de influenciar a conjuntura no sentido da transformação societária radical. A autonomia reconhece que certa pluralidade de opiniões não são inimigas da construção de um bloco político coeso, mas potencializam a participação de mais pessoas no movimento.

Defender um movimento que seja de fato autônomo é organizar a partir das bandeiras econômico-corporativas, um conjunto de estudantes, que a principio não se identificam com um projeto alternativo de sociedade e construir de forma democrática e horizontal essas bandeiras, articuladas às bandeiras mais gerais. Esse processo, aliado à formação política e de amplos debates define hoje a construção de muitos quadros independentes do movimento, organizados em coletivos orientados sob esses princípios como quadros políticos mais bem

formados e preparados que a grande maioria dos quadros partidários, organizados em outros coletivos sob outra concepção.

A construção dessa organização no movimento estudantil ampla, autônoma, horizontal, plural e combativa é o que hoje tem maior capacidade de dar respostas à conjuntura.

O Coletivo Levante! e os rumos do movimento estudantil nacional

O Coletivo Levante! é o resultado em construção dessa política no movimento estudantil. Nos 3 anos desde a sua fundação, o coletivo vem expandindo sua atuação de forma considerável, seja nas universidades particulares no Rio de Janeiro e o fortalecimento nas universidades públicas que historicamente temos intervenção como a UFF, UFRJ, UERJ, seja com a abertura de novos trabalhos como no Mato Grosso do Sul e Brasília e o crescimento no ultimo período na UFPel e na UFES. No 52º Congresso da UNE o Levante contou com uma delegação de mais de 180 estudantes, reflexo da construção desse trabalho na base do movimento, fez uma intervenção fantástica. O coletivo debateu com propriedade os temas relacionados a educação, organizou a maior Marcha da Maconha em um CONUNE, participou da Marcha das Vadias, debateu direitos humanos, criminalização da pobreza e a questão ambiental.

Essa ferramenta nacional é uma necessidade das nossas intervenções na base, sem a qual é impossível dar respostas aos problemas concretos da realidade. A disputa da UNE –

União Nacional dos Estudantes – é fundamental para a disputa de um projeto de sociedade. Desde a sua refundação, após a ditadura militar, a UNE passou a ser um espaço, sobretudo onde se formulam políticas para a Educação e para o Brasil.

Uma defesa fácil da participação na UNE seria a partir da disputa de seus fóruns (CONUNE, CONEG, CONEB). No entanto, para os estudantes que se opõem à diretoria majoritária atual, na prática é muito difícil combater sua atuação apenas pontualmente. A executiva é a direção da UNE de fato, eleita de forma proporcional, contém chapas minoritárias eleitas em seu congresso bianual. Esses membros têm o direito adquirido pela eleição no congresso de reposição de gastos e cota de passagens.

Considerando tudo isso e que a maioria ampla dos cargos executivos é ocupado pela direção majoritária da entidade, é no mínimo inglório acreditar na expectativa de disputa dos estudantes nos espaços mais amplos da união estudantil sem a participação na diretoria da entidade. Melhor seria não participar de espaço nenhum, do que se dispor a uma disputa desigual ao ponto que chegou para alguns grupos estudantis de hoje.

Pela sua representatividade no movimento estudantil a UNE representa hoje a maioria dos estudantes de ensino superior que se encontram em universidades privadas onde a politização é tão reduzida quanto a da maior parte da nossa sociedade. A UNE representa mais o que é a realidade dos jovens brasileiros do que a ANEL. São as contradições dessa realidade que temos que lidar.

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Antes de apenas considerarmos as práticas da UNE antidemocráticas ou violentas, devemos nos perguntar qual a realidade que é vivenciada pela maioria dos jovens, mesmo a maioria dos universitários. Não se trata aqui de querer justificar as práticas da UNE no estado atual da nossa sociedade. Isso é o que o PC do B faz pra justificar suas práticas políticas. Mas sim de compreendermos o tamanho do desafio que está colocado, mesmo da disputa da UNE que é da menor parte da juventude brasileira.

Quando se faz a disputa mais geral da sociedade se a gente não disputa um projeto nacional no local em que está dada a disputa, a nossa organização corre o risco de se tornar uma organização endógena, que não dá respostas à realidade, e não se dispõe a ser uma organização mais ampla. A reprodução continuada de um modelo de organização endógeno também ajuda a construir uma concepção de disputa mais geral da sociedade deformada, pois os militantes dessa organização não se dispõem a participar de espaços mais amplos de disputa de projeto societário e passam a se relacionar apenas entre si e outros movimentos já organizados.

Em suma, na luta de classes não há disputa fácil ou confortável, mas aquelas necessárias ao momento histórico que vivemos. Nelas, nos inserimos primeiramente não por nossa vontade, mas por determinações anteriores a nós.

Teoria e Prática: a necessidade de uma organização revolucionária

“Se pretendeis desenvolver tendências novas, deveis baseá-las nos alicerces que foram fundados pelos melhores pensadores e lutadores das gerações precedentes. Esta procura desesperada de qualquer coisa inteiramente nova não é mais do que um aspecto episódico da fase inicial da radicalização estudantil.”[3]

Aqui é necessário discutir o papel da construção de uma organização revolucionária séria e permanente, sem a qual a unidade entre a teoria e a prática não poderá ser adquirida de forma duradoura.

Em “O papel do movimento estudantil revolucionário”, Ernest Mandel, aponta o aspecto da transitoriedade da condição do estudante na sociedade. Nesse sentido, uma organização apenas estudantil não consegue dar continuidade ao engajamento na atividade política, especialmente ao fim do seu tempo na universidade, em que a saída do espaço da universidade o envolve em uma constante pressão da ideologia burguesa ou pequeno-burguesa que o afastam de uma atuação revolucionária.

Um outro aspecto, mais importante, é que sem uma organização revolucionária é impossível uma ação unitária permanente entre os estudantes e a classe-que-vive-do-trabalho. A inexistência dessa organização leva os estudantes a se aproximarem da classe trabalhadora não de forma pedagógica, libertadora, mas como querendo lhes dar lições, mesmo que tenham interesses e objetivos sociais em comum.

A organização da juventude negra, favelada, oprimida constantemente pelo estado, das famílias removidas pelo Estado não pode se dar apenas enquanto movimento estudantil. O enfraquecimento da ferramenta partido na nossa sociedade, a falta de um programa estratégico para o PSOL e a nossa capacidade reduzida hoje de nos referenciar no partido impõe muitas vezes que atuemos na organização dessas diferentes lutas enquanto movimento estudantil, uma vez que não temos o partido como ferramenta dessa construção.

Qual a capacidade de o PSOL fazer isso hoje? Num quadro de construção do PSOL sem processos de ascensão na luta social e com o fortalecimento do PT com a manutenção da maioria dos movimentos sociais sob o controle do social-liberalismo, as dificuldades de o PSOL surgir como ferramenta da recomposição da esquerda são muito maiores. O fortalecimento do partido deve ser na ampliação da sua capacidade de realizar disputa social e intervir na realidade. Um partido que quer fazer disputa contra-hegemônica não pode pautar o seu crescimento em praticas e valores da lógica capitalista e neoliberal, ampliada ainda sob a pressão eleitoral.

A aposta num PSOL programático, a partir do seu II Congresso Nacional, impusionado pelo Enlace é um grande avanço nesse sentido. Maior avanço se dá ainda a partir da IV Conferência Nacional do Enlace que aponta para um avanço na construção de uma corrente revolucionária disposta a enfrentar os desafios da conjuntura, e elaborar um programa estratégico a partir da compreensão dos acontecimentos e das nossas tarefas.

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A ligação entre o movimento estudantil e o movimento dos trabalhadores é uma organização de juventude revolucionária. A tarefa da juventude é organizar uma corrente/partido revolucionários. O III Ativo de Juventude do Enlace é fundamental para reorganização do nosso setorial a fim de compreendermos e trabalharmos coletivamente para enfrentar os desafios que estão a frente e a luz dessa compreensão apontarmos as nossas ações. Sob essa orientação, é imprescindível que nesse ativo consigamos elaborar uma agenda para a juventude que passe pela construção do Acampamento Nacional de Juventude, o plebiscito dos 10% do PIB para educação, o fortalecimento de coletivos locais e nacionais no movimento estudantil orientados sob uma concepção comum.

________________________________________

[2] ANTUNES, Ricardo. O sentido do trabalho, Capitulo VI – A classe-que-vive-do-trabalho. 1996

[3] Mandel, Ernest. O movimento estudantil revolucionário. 1968

Quando as mulheres avançam, nenhum homem retrocede

Tese das Mulheres do Enlace ao II Encontro Nacional das Mulheres do PSOL (2011)

Superar o capitalismo a partir do feminismo

1 - O capitalismo tem, cada vez mais, se destacado numa relação particular com as mulheres trabalhadoras. Nos últimos anos, transformações operadas no plano produtivo ocorreram articuladas com o fortalecimento dos Estados neoliberais, o que intensificou a conversão do Estado em facilitador dos lucros capitalistas e o desmonte de direitos a partir da privatização das empresas estatais, ataques aos movimentos sociais, implementação de políticas fiscal e monetárias sintonizadas com organismos mundiais, redução do setor industrial e ampliação do setor de serviços, além de reformas fiscais, previdenciárias e outras.

Nesse cenário, as mulheres são o setor mais precarizado e mais pobre da classe trabalhadora. Elas recebem salários diferentes para a mesma função, compõem menos cargos de direção e controle e estão nas profissões mais desvalorizadas. No Brasil, cerca de 80% das mulheres que trabalham recebem até 2 salários mínimos, 15% permanecem desempregadas e 86% das ocupações das mulheres se dão nas áreas dos serviços, refletindo uma profunda divisão sexual do trabalho.

2 - As mulheres continuam a ser responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos. Em apenas 2% dos domicílios brasileiros em que residem mulheres e homens, é um homem o principal responsável pelos afazeres domésticos, o que contribui para uma média de 22 a 27h/semana gastos pelas mulheres com serviços em casa e com filhos. Por outro lado, temos 5 milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil, 50% tem até 25 anos (o que demonstra a entrada empobrecida e precarizada da juventude no mercado de trabalho) e 65% está na informalidade.

3 - A mercantilização direta de seus corpos a partir do tráfico de mulheres ao redor do mundo contabiliza a 3º maior rede, perdendo apenas para armas e drogas. Por outro lado, a exposição massiva de seus corpos (geralmente sexualizada) em propagandas tem contribuído para difundir um modelo padronizado de beleza, o que tem gerado doenças às mulheres e 31 bilhões em lucro esse ano para a indústria da beleza.

Perceber a relação específica entre o neoliberalismo e as mulheres é fundamental para uma adequada análise dessa fase capitalista e da própria classe trabalhadora. Um olhar a partir da perspectiva das mulheres sobre esse capitalismo globalizado é fundamental para sua superação. Precisamos resgatar o potencial revolucionário do feminismo, que deixa claro que para mudar a vida das mulheres é preciso mudar o mundo.

Mulheres, poder e participação política:

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4 - Os papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, e nos núcleos familiares em particular, são social e historicamente construídos a partir da visão de que os espaços públicos (política formal, meios de comunicação, direção dos partidos e movimentos sociais) devem ser ocupados por homens e que os espaços privados (tarefas domésticas, profissões associadas ao cuidado, ausência nos espaços de decisão) pelas mulheres. Em contraponto, as feministas, e os movimentos de mulheres dizem que “lugar de mulher é na política”, desconstruindo a lógica machista de que as mulheres são incapazes de atuar nesses espaços. A participação política das mulheres também suscita a discussão sobre qual democracia queremos na sociedade, nos movimentos sociais e na construção partidária.

5 - A proposta de Reforma Política que tramita no Congresso vem sendo pauta de diversos partidos e movimentos sociais, que se articularam para construir uma plataforma política que incorpora questionamentos quanto aos limites da democracia representativa e aponta para a criação e fortalecimento de mecanismos de democracia direta e participativa, através de decisões em plebiscitos, referendos, projetos de lei de iniciativa popular, entre outros. As feministas se somam a essa iniciativa unificada, pois, se efetivadas essas propostas, as mulheres poderão participar de forma mais horizontal para decidir sobre questões que têm a ver diretamente com sua realidade local.

6 - Do ponto de vista da democracia representativa, esse debate ganhou corpo principalmente a partir da eleição da atual presidenta do Brasil, o que nos obriga a rediscutir não somente o nosso lugar, mas

também o nosso papel na política, tendo em vista que não basta ser mulher para representar os interesses e defender os direitos das mulheres. Muitas mulheres atuam como representantes de seus grupos familiares e defendem interesses econômicos e políticos que se contrapõem à garantia de políticas públicas e direitos das e para as mulheres. Nossa luta política deve garantir que essas mulheres sejam comprometidas com as nossas reivindicações e bandeiras de lutas do feminismo. Para nós, portanto, não basta ser mulher para falar em nosso nome.

7 - A Comissão do Senado que trata da Reforma Política aprovou uma proposta de listas fechadas, com paridade e alternância de gêneros, para as candidaturas legislativas. Nada mais justo, já que as mulheres são mais da metade da população brasileira e da PEA (população economicamente ativa), além de ser maioria do eleitorado brasileiro (52% de eleitores aptos a votar) de acordo com os dados (TSE) das eleições de 2010. No entanto, sua sub-representatividade nos espaços de decisão política ou nos cargos na política formal demonstra que a divisão sexual do trabalho ainda determina quem irá ocupar os espaços públicos e quem irá permanecer nos espaços privados. As candidaturas de mulheres raramente são prioritárias nos partidos: recebem um financiamento muito inferior às candidaturas dos homens, o tempo destinado a elas nos programas de TV e rádio é menor, os materiais de campanha são limitados.

8 - Frente à proposta de Reforma Política, o PSOL aprovou, em reunião do DN-PSOL (30/04/11), uma resolução favorável à paridade entre homens e mulheres nas listas fechadas de candidaturas ao legislativo. Um dos argumentos

utilizados no debate foi de que o PSOL não poderia ter uma posição que estivesse localizada à direita do Senado. Esse foi um avanço muito importante, pois coloca o nosso partido como vanguarda das conquistas do feminismo no plano da política formal. Esse avanço, entretanto, traz consigo várias demandas ao conjunto do partido, pois não caberia pensar que um partido de esquerda lance candidaturas “laranjas” de mulheres somente para preencher uma obrigação eleitoral. Essa precisa ser uma construção cotidiana e deve estar refletida nas ações e nas instâncias partidárias. As iniciativas de priorizar a formação feminista em seu cotidiano, de fortalecer e visibilizar o funcionamento do setorial de mulheres e de garantir a criação e implementação das ações afirmativas voltadas para as mulheres são muito importantes nesse contexto.

9 - Nesse sentido, sendo coerente com a resolução aprovada por sua instância nacional e para que se crie uma correlação com a demanda externa ao partido, consideramos central que o congresso nacional do partido aprove a paridade entre homens e mulheres na composição de suas instâncias partidárias, assim como na Fundação Lauro Campos, pois são nesses espaços que as militantes se afirmam como dirigentes, se constroem como figuras públicas e se legitimam como nossas porta-vozes, seja nas eleições, nos movimentos ou nas lutas em geral. Dessa forma, estaríamos contribuindo substancialmente para desconstruir a sub-representação das mulheres nos espaços de decisão do partido, pois se o “lugar de mulher é na política”, então o lugar delas é e será no PSOL.

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Feminismo e Mulheres do PSOL

10 - A realidade atual do movimento de mulheres no Brasil é a de uma extrema fragmentação, dispersão e falta de visibilidade. Tal estado de coisas não é de hoje; o processo de refluxo e institucionalização do movimento feminista remonta à década de 1990. Nesse momento, presenciamos uma baixa nas mobilizações de rua combinada com a proliferação de ONGs e órgãos governamentais voltados para as pautas das chamadas opressões específicas. Tal processo representou uma fragmentação das pautas dos movimentos e, sobretudo, de combatividade. Hoje, após os governos Lula e Dilma, observamos a cooptação de grande parte das feministas representando uma nova crise para o movimento e um aprofundamento de sua institucionalização.

11 - Como feministas socialistas, sabemos da importância da pauta feminista no questionamento da lógica de funcionamento da sociedade capitalista. A análise feminista da sociedade e suas reivindicações constituem uma contribuição fundamental para a luta por uma sociedade justa e socialista. Daí a importância de termos um movimento feminista de caráter popular, de massas que tenha capacidade de desconstruir a cultura machista e de incidir na pauta da política nacional, articulado de maneira permanente com os demais movimentos sociais combativos.

12 - A partir disso, pensamos que as mulheres feministas do PSOL devem atuar no movimento de mulheres para:

• Contribuir na construção de espaços de movimento que sejam amplos: reconstrução do movimento combativo requer que recoloquemos a pauta feminista no debate nacional, identificando eixos de luta aglutinadores de diferentes setores dos movimentos sociais e populares, como é a questão do combate à violência sexista. Esses espaços permitem-nos buscar e atrair permanentemente novas parceiras e fortalecer e difundir a consciência feminista através de atividades de rua, campanhas, debates e materiais.

• Incorporar o feminismo nas nossas frentes de atuação: além de buscar parceiras, devemos contribuir para que as frentes de atuação em que estamos (sindicatos, estudantes, movimento popular, etc.) incorporem no dia-a-dia militante a prática e a pauta feminista, que devem ser transversais em todos os debates. Além disso, os espaços de auto-organização de mulheres no seio das entidades e movimentos são fundamentais são importantes.

As mulheres do PSOL têm diante de si o desafio de contribuir para a rearticulação do movimento feminista enquanto movimento social popular, de massas e combativo.Violência Sexista

13 - O conceito de violência contra a mulher foi definido pela Convenção da OEA de Belém do Pará, em 1994, como sendo “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause

morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Em um mundo onde o patriarcado ainda é arraigado, observamos o fenômeno da violência contra as mulheres como a forma escolhida pelo gênero masculino para impor sua vontade e controlar os corpos e vidas das mulheres.

14 - Dados do BM e do BID nos mostram que, na América Latina e Caribe, a violência de gênero atinge de 25 a 50% das mulheres. Os homicídios de mulheres por razões de gênero (feminicídio) é uma das mais graves formas de violência, estando invisível nas estatísticas e nas ações das políticas públicas. Na África do Sul é usual e impune o chamado “estupro corretivo” das lésbicas. Estima-se que cerca de 2% do PIB de cada país é gasto com a violência de gênero, enquanto que são escassos os investimentos com uma política que dê conta de reverter esse quadro.

15 - No Brasil e no mundo, as mulheres negras e indígenas sofrem secularmente com a violência de gênero. Os processos de colonização e de arregimentação de mão de obra barata colocaram estas mulheres em situação de extrema fragilidade. À discriminação racial se somam a de gênero e a de classe, uma vez que a imensa maioria das mulheres que estão submetidas à violência de gênero são as mulheres pobres.

16 - Em um país onde são as mulheres quem mais chefiam as famílias, o processo de despejo e de segregação nas áreas consideradas em valorização pela especulação imobiliária aflige diretamente as mulheres. As obras do PAC e dos megaeventos estão inseridas nessa realidade ao mesmo tempo em que ampliam a

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mercantilização de nossos corpos e forças de trabalho a partir da precarização da mão-de-obra, da exploração sexual na mídia e do aumento da prostituição e do turismo sexual.

17 - O movimento de mulheres, durante muitos anos lutou pela implementação de um mecanismo que assegurasse às mulheres vítima de violência no Brasil a criminalização do agressor e a adoção de medidas protetivas. Esse instrumento está em vigor há 5 anos através da lei Maria da Penha. Mas, para que essa lei seja plenamente utilizada pelas vítimas de violência, é necessário o funcionamento de toda a rede de atendimento e financiamento suficiente para garantir a sua plena aplicação.

Direitos sociais e reprodutivos das mulheres

18 - O Brasil é signatário de tratados internacionais que reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos. A defesa da descriminalização e da legalização do aborto é uma das principais reivindicações do movimento de mulheres e cabe ao Estado e ao sistema de saúde garantir esse direito.

19 - Longe de diminuir o número de abortamentos, a criminalização do aborto contribui para o aumento das mortes maternas. Estima-se que acontecem no Brasil cerca de 800 mil abortos por ano e cerca de 250 mil mulheres são internadas em hospitais públicos em decorrência de sequelas de procedimentos realizados em condições precárias e com práticas arriscadas. As mulheres pobres, e particularmente as negras, estão entre as principais prejudicadas pela ilegalidade do

aborto, afinal, quem tem poder econômico paga as clínicas clandestinas.

20 - A luta pelo direito ao aborto é uma luta pela liberdade da mulher. Refere-se a um direito primordial do qual as mulheres estão excluídas: o controle sobre o próprio corpo. São as mulheres que devem decidir se devem ou não praticar o aborto. Manter o aborto criminalizado somente colabora para a morte de milhares de mulheres, todos os anos. São essas mulheres que não podem pagar os altos preços cobrados pelas clínicas clandestinas e recorrem a outros métodos como agulhas de tricô, chás e espancamentos. É no silencio e no isolamento que muitas morrem. Legalizar o aborto é, portanto, necessário também por uma questão de classe!

Mulheres, meio ambiente e ecossocialismo

21 - Os impactos da crise ambiental recaem de forma mais dura nos países periféricos, nas populações mais pobres (sobretudo mulheres e crianças). A desertificação, a perda de recursos aquíferos, as catástrofes ambientais provocadas pelas mudanças climáticas têm um enorme impacto em suas vidas cotidianas: A maioria d@s refugiad@s e desabrigad@s são, novamente, mulheres e crianças. O aumento das doenças, com o reaparecimento de algumas que já estavam extintas ou controladas (como cólera, tuberculose, etc), também sobrecarrega as mulheres, pois os cuidados com os enfermos ainda recaem sobre elas. A resposta neomaltusiana à crise climática aponta a super-

população planetária como sendo a causa central da crise climática, e busca, portanto, limitar o direito das mulheres a dispor de seu corpo. Nós rechaçamos e denunciamos essa pseudo-solução, pois questiona a autodeterminação das mulheres e comete o equívoco de abstrair das causas estruturantes da crise, onde o capitalismo ocupa lugar central.

22 - Nos países do Sul, as mulheres também são responsáveis pela produção de 80 % dos alimentos, pela coleta e preservação das frutas e sementes nativas. O papel central na garantia da soberania alimentar e na preservação do patrimônio genético como patrimônio da humanidade faz com que as mulheres tenham um papel chave na agricultura e na garantia da alimentação. O crescente impacto dos grandes projetos desenvolvimentistas gestados pelo capitalismo no Brasil, que estão amparados pelo Estado através do PAC e do BNDES, tem levado à perda dos territórios e da autonomia dos e das pequen@s produtores, dos quais a maioria são mulheres, comunidades indígenas e quilombolas. As maiores expressões desses projetos são o agronegócio, a Transposição do Rio São Francisco e seus tentáculos dos perímetros irrigados, as grandes barragens para a construção de hidrelétricas, o IIRSA, a mineração, a utilização intensiva de agrotóxicos e a produção de agrocarburantes. As mulheres têm um papel central na defesa dos ecossistemas e dos biomas contra os governos (Federal, Estaduais e Municipais) que querem vendê-los às multinacionais. As ações das mulheres da Via Campesina, que destruíram as plantações de eucaliptos da Aracruz Celulose, assim como o papel das comunidades indígenas e quilombolas na defesa de suas terras

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ancestrais, são exemplos vitoriosos de defesa do meio ambiente a partir de suas realidades.

23 - As lutas ecossocialista e feminista se cruzam, pois estão circunscritas, mais do que nunca, nos marcos da luta contra o capitalismo. Nesse sentido, a Campanha Nacional contra os agrotóxicos, a luta contra o novo Código “Anti-Florestal”, a Usina de Belo Monte e a Campanha contra a instalação das usinas nucleares no Brasil se apresentam como iniciativas importantes dos movimentos sociais para o próximo período, nas quais as feministas também precisam estar presentes.

Mulheres Negras

24 - O mito da democracia racial brasileira, associada a uma cultura de subordinação ao paradigma branco e ocidental, invisibilizou um setor importante da população deixando-o à margem da sociedade, mas colocando-o no centro do econômico. Hoje são os negros, e as mulheres negras especificamente que acumulam as opressões de classe, raça e gênero, responsáveis pela produção de infinitas mazelas. No campo do trabalho seu salário é menor, são mais sub-empregadas e enfrentam com mais vigor o desemprego e o trabalho informal sem direitos trabalhistas.

25 - As negras também são mais pobres, vivem em habitações mais precárias e têm menos assistência a sua saúde, sendo criadas situações paradoxais: o acesso a centros cirúrgicos, para execução de laqueaduras tubárias, é mais “fácil” que os acessos a insumos

e tratamentos contraceptivos realizados em ambulatórios, situação denunciada pelo movimento das mulheres negras, devido à esterilização em massa que ocorria com a população negra. Os índices de violência entre as mulheres negras também são maiores, seja porque vivem em lugares mais insalubres e sem estrutura de saneamento e demais estruturas públicas, seja porque são o maior alvo da violência, devido à articulação da violência racial e sexual. É também entre as mulheres negras que a padronização da beleza tem uma consequência mais nefasta. No mercado de trabalho a exigência da “boa aparência” mostra o quanto o modelo estético é branco. E é importante lembrar que as mulheres negras têm menos anos de estudo e que sua história é permanentemente violada, folclorizada e marginalizada. Se as mulheres no geral são oprimidas pelo capital, as mulheres negras são massacradas pelo mesmo, que enxerga na cor da sua pele mais uma forma de exploração.

Abrindo os armários e ocupando as ruas

26 - A luta LGBT se associa com a luta das mulheres. A família burguesa cumpre um papel fundamental na reprodução de ideologias e na opressão dos diferentes gêneros para a definição de comportamentos machistas e heteronormativos. Entre as lésbicas, o sistema cumpre um papel perverso: de um lado a partir da violência simbólica através da feitichização relações sexuais lésbicas e, de outro, a partir da violência sexual com o objetivo de “curar” sua homossexualidade (estupro corretivo). Por estas razões, as lésbicas se organizam para visibilizar

suas questões nos movimentos LGBT e feminista.

27 - Na conjuntura, a questão LGBT tem estado em debate, sobretudo com o impacto da aprovação do casamento civil homossexual e a proposta do Kit anti-homofobia nas escolas. O governo Dilma, apesar disso, continua apresentando grandes limitações para a produção de políticas efetivas a partir de campanhas, assistência à saúde d@s LGBTs, uma legislação que amplie a proteção ao segmento e que seja ao mesmo tempo pedagógica, programas nacionais de combate ao preconceito, etc. Precisamos acumular enquanto PSOL e enquanto mulheres, lésbicas e bissexuais, sobre as políticas e a luta LGBT para nossa intervenção nos movimentos sociais e na nossa ação parlamentar, com atenção especial para o Mandato de Jean Willys. É o nosso desafio.

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Carta de São Paulo – Setorial de Negras e Negros do PSOL

Resumo: Com representantes de 13 estados (RS, PR, SP, RJ, ES, BA, SE, CE, MA, PA, AP, DF e GO), o I Encontro Nacional de Negros e Negras do PSOL consolidou a construção do setorial e elegeu um novo coletivo, em caráter provisório, que terá como desafio intensificar o trabalho de construção do setorial, contribuir para estreitar a relação entre o partido e o movimento social negro, prepará-lo, desde uma perspectiva antirracista e socialista, às próximas eleições (com especial atenção às candidaturas negras) e organizar o II Encontro Nacional.

1. O racismo desempenha um papel estruturante na sociedade de classes. Logo, não é possível pensar no modo de produção capitalista, na classe trabalhadora e no Estado dissociados da questão racial. Quando um jovem negro é assassinado na periferia, uma mulher negra faz um aborto em péssimas condições ou uma família negra é despejada, está explicito nessas ações a lógica e funcionamento do Estado.

2. No entanto, a esquerda brasileira tem dificuldades de compreender o papel estruturante do racismo no processo de exploração e dominação do capitalismo. Assim, a luta antirracista não é tomada como prioritária por parte da maioria de setores da esquerda. É necessário que o PSOL seja um pólo irradiador de uma política que articule a luta antiracial, anticapitalista e antiimperialista no Brasil, assim como, atue no fortalecimento do socialismo no âmbito do Movimento Negro.Internacionalmente, as cenas que vem do Egito, Grécia, Portugal, Espanha e, agora, da Inglaterra demonstram nitidamente que a crise

da economia capitalista de 2008 não acabou, ao contrário, talvez os piores resultados para a classe trabalhadora ainda estejam por vir. Algumas regiões do mundo, no entanto, já sofrem há séculos as consequências desse sistema, sob o olhar complacente do mundo capitalista a fome dizima milhares na África.

3. No Brasil, com a chegada do PT ao poder e a adesão ao projeto do capital internacional, observa-se uma política econômica ortodoxo-neoliberal, a continuação de contrarreformas, a adoção de políticas sociais focalizadas de combate à fome (tipicamente assistencialistas) destinadas em sua ampla maioria à população negra. Assim, o governo do PT governou com e para o bloco dominante, além de controlar politicamente os movimentos sociais e sindical, através da cooptação – material e ideológica – das suas direções, entre esses, também, setores do Movimento Negro.

4. Os dados sociais do Brasil são devastadores para a classe trabalhadora e ainda mais exacerbados quando refere-se à população negra. Enquanto a desocupação está em 6,8% entre as mulheres brancas, por exemplo, acima da média geral e da taxa registrada entre homens com essa mesma cor de pele (4,2%), ela salta para 9,5% entre as mulheres negras, segundo dados do IBGE. Os negros representam 75% dos jovens não alfabetizados. As condições no mercado de trabalho para os jovens negros são precárias, entre os desempregados, 23,8% são negros, 16,4% brancos.

5. Em suma, os dados do censo do IBGE de 2010 revelam que a maioria da população já se considera negra (preta ou parda). Logo, pensar a questão racial é central para a luta da classe trabalhadora. O fato de ser a maioria da classe

trabalhadora demonstra ainda que é necessário trabalhar tal questão de maneira combinada com os debates sobre o caráter de exploração do sistema capitalista e de sua forma atual no governo Dilma.

6. Ainda no que se refere à população negra os dados de violência juvenil são alarmantes, pode-se afirmar um déficit de jovens, em sua ampla maioria negros, na estrutura demográfica brasileira.

7. Cerca de 45 mil brasileiros são assassinados por ano. Contudo, essa violência se distribuiu de forma desigual: as vítimas são, sobretudo, os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos. O Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) evidencia que a probabilidade de ser vítima de homicídio é mais do dobro para os negros em comparação com os brancos.

8. Enquanto o número de homicídios entre os jovens brancos caiu no período de 2002 a 2008, passando de 6.592 para 4.582 (30% de redução), entre os jovens negros a taxa subiu de 11.308 para 12.749, um aumento de 13%. Para cada branco assassinado em 2008, mais de 2 negros morreram na mesmas circunstâncias. A “brecha” de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%.

9. As mulheres negras são as que mais morrem nos partos e nos abortos mal sucedidos, realizados de maneira precária e às vezes de forma criminosa. O risco de morte de uma grávida negra cuja gestação terminou em aborto é 2,5 vezes maior do que o de grávidas brancas. Assim, as mulheres pobres – e particularmente aquelas que são negras – estão entre as

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principais prejudicadas pela ilegalidade do aborto no país.

10. Entretanto, para o setor financeiro e o grande empresariado o Governo Lula foi o melhor da história, ou como preferia dizer nosso ex-presidente “como nunca antes na história desse país” tais setores foram tão beneficiados.

11. O Movimento Negro é um conjunto de organizações, grupos, coletivos, entidades e articulações nacionais que lutam contra o racismo e se reivindicam herdeiros da trajetória de lutas do povo negro em África e na Diáspora. Portanto, é um espaço de elaboração coletiva do povo negro e de seus aliados, aberto a diferentes matizes ideológicas e partidárias, constituindo-se em um exercício permanente de crítica e autocrítica, em torno das estratégias que permeiam a construção e efetivação de um projeto político do povo negro brasileiro. Obviamente, é um movimento em disputa entre projetos contraditórios e conformam grupos e blocos que se alinham a um amplo espectro ideológico, de conservadores, liberais e socialistas revolucionários.

12. Assim, o movimento negro, como construção coletiva, deve ser independente, democrático e socialista. Balizado por um novo olhar sobre as desigualdades raciais e pelo processo de resistência histórica do negro na diáspora. Este novo olhar, por sua vez, está condensado na utopia de uma sociedade socialista em que a contribuição dos afro-brasileiros como sujeitos do processo revolucionário é um elemento estruturante de nossa ação política. Cabe ao PSOL atuar de forma unitária no Movimento Negro e contribuir para o acúmulo de forças na construção de novos rumos para o Brasil.

13. O povo negro devido às suas condições materiais de vida, assim como a consciência do racismo e de suas manifestações concretas, construiu organizações em torno da defesa de seus interesses (que variam de organizações religiosas e recreativas – candomblé, umbanda, tambor de mina, escolas de samba, afoxés, blocos, hip hop, funk etc – a movimentos de luta por direitos básicos como moradia, transporte, educação e saúde). Desta maneira, construiu instrumentos de resistência adequados as suas condições culturais e materiais ao definir suas estratégias de luta, de enfrentamento às condições extremamente duras de penúria e exclusão social, definiu relações de aliança e mobilizou seus próprios intelectuais orgânicos. Em outros termos, viveu a classe e a condição racial a partir de mores sociais constituídos no processo histórico de enfrentamento da exclusão, do racismo e da negação de direitos. O maior erro dos partidos da esquerda socialista é imaginar que esses espaços em que os afrodescendentes são maioria, constituem-se em territórios amorfos, sem história e em que predominam sujeitos passivos a dominação de classe e de raça.

14. Além disso, a consciência antirracista abre uma frente de enfrentamentos à ordem dominante e, a partir de fundamentos culturais e sociais, põem freios à lógica predatória e desumanizadora do modo de produção capitalista. A associação de jovens negros em posses e grupos de hip hop; o funk como expressão cultural de juventude negra carioca; as escolas de samba, candomblés e umbanda; os movimentos de moradia, contra a carestia, por saúde e os cursinhos pré-vestibulares constituem parte do tecido de movimentos reativos aos ataques racistas das elites

dominantes. Esta corrente de movimentos reativos é um elemento extremamente importante na formação de uma consciência anti-racista e socialista entre o povo negro.

15. O Movimento Negro é, portanto, um espaço permanente de aglutinação de forças contra o racismo e deve ser disputado a partir de uma perspectiva crítica, contestatória, anticapitalista e antiimperialista. Para isso, é fundamental organizarmos a intervenção das negras e negros para que possamos ter uma atuação minimamente unificada em torno de nosso horizonte estratégico, articulando às lutas de nosso povo. Desta maneira, o PSOL deve ter uma intervenção unificada nos diversos níveis de sua atuação política e privilegiar pautas e reivindicações que contribuam para a elevação do nível de consciência de nosso povo em relação aos efeitos do racismo e do capitalismo.

16. Reconhecemos no Partido Socialismo e Liberdade a possibilidade de articularmos a plataforma de reivindicações dos direitos e políticas públicas para o povo negro com um programa de mudanças radicais para a sociedade como um todo, de caráter antineoliberal, antirracista, antimachista, democrático, popular e socialista.

17. Para o PSOL se transformar em um instrumento que defenda a população negra ele deve ter a cara do povo brasileiro. Deve ser expressão política e simbólica da resistência negra, indígena, feminista e popular. Para isso, o Setorial de Negras e Negros deve ter fóruns funcionando com regularidade e com pautas políticas. Para tal é essencial que o Setorial seja um instrumento do conjunto do partido e não, apenas, dos militantes de algumas correntes internas.

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ENCONTRO NACIONAL DE NEGRAS E NEGROS DO PSOL.

São Paulo, 03 de setembro de 2011.

Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única

Luciene Lacerda

“A gente tem que morrer tantas vezes durante uma vida

que eu já estou ficando craque em ressurreição...”

Elisa Lucinda (1997)

Em 1988 foi organizado o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, marco para a organização nacional de um setor dividido (e/ou multiplicado) entre a luta feminista e antirracista. Neste período se diluía a ditadura e os movimentos sociais estavam a pleno vapor, a partir das mobilizações acontecidas na década de 1970.

Simone Beauvoir (1949) já havia afirmado que “ninguém nasce mulher, torna-se”; e Neuza Santos Souza (1990) que “ser negro é tornar-se negro”. E como se juntam e se tornam mulheres negras?

Multiplicadas em histórias de dores e prazer, as mulheres negras se apropriam de discussões próprias de um vir a ser do feminismo negro. Lembradas sempre como as que mantiveram vivas as questões do sagrado e da cultura, foram sempre mantidas na penumbra dos movimentos negro e feminista, apenas como

exemplo dos casos mais graves de discriminação e preconceito.

Limitadas pelas histórias oficiais que contam e recontam os vultos de um gênero – o masculino e de uma raça – a branca. Também limitadas em seus corpos. Para as mulheres negras, ao contrário, são criadas situações paradoxais: o acesso a centros cirúrgicos, para execução de laqueaduras tubárias, é mais “fácil” que os acessos a insumos e tratamentos contraceptivos realizados em ambulatórios, situação denunciada pelo movimento das mulheres negras, devido à esterilização em massa que ocorria com a população negra.

Foi a partir da década de 1980 que a produção de material sobre mulheres negras se multiplicou, e as histórias destas mulheres tão invisibilizadas passaram a ser contadas. Foi possível expor as bases das ideologias e das políticas de um sistema de dominação sexista e racista perpetuada pelo capitalismo.

No capitalismo são os constantes e contínuos aperfeiçoamentos na produtividade do trabalho e nas relações de produção, que transformam coisas, recursos naturais e pessoas em mercadorias. Não à toa, já existiu no SESC o curso de “mulata”, a mais conhecida e explícita formalização de transformação de pessoa em objeto vendido ao turismo exterior da pós-escravidão, que chegou a ter consigo outro adjetivo: “tipo exportação”.

Segundo Callinicos (1993, p. 8-9):

o racismo é um fenômeno moderno. Diz-se frequentemente que o racismo é tão antigo

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quanto a natureza humana, e em conseqüência não poderia ser eliminado. Pelo contrário, o racismo tal como o conhecemos hoje desenvolveu-se nos séculos 17 e 18 para justificar o uso sistemático do trabalho escravo africano nas grandes plantações do 'Novo Mundo' que foram fundamentais para o estabelecimento do capitalismo enquanto sistema mundial. O racismo, portanto, formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante. As suas transformações posteriores estão ligadas às transformações do capitalismo [...] O racismo é uma novidade histórica, característica das sociedades capitalistas modernas. Esta afirmação é central à análise marxista do racismo.

O racismo é alimentado e retroalimentado pelo capital, em uma sociedade que se estrutura de forma hierárquica necessária para a manutenção do status quo.

O machismo - a expressão mais cotidiana do sexismo - é mais antigo, e torna hierárquica a relação entre os gêneros, subjugando as mulheres ao poder dos homens.

A articulação entre o capitalismo e o patriarcado é fundamental para a naturalização de uma suposta inferioridade da mulher. A condição de mulheres negras e indígenas, a partir desta articulação, é de subordinação ao paradigma branco e ocidental, de natureza inferior.

Para Hasembalg (1979) o racismo (bem como o sexismo) torna-se parte da estrutura objetiva das

relações políticas e ideológicas capitalistas. Então, a reprodução de uma divisão racial (e sexual) do trabalho pode ser explicada sem apelar para o preconceito e elementos subjetivos.

Lélia Gonzalez (1984) afirmava que a construção do feminismo negro se deu a partir das discussões sobre seu cotidiano marcado pela discriminação racial, e, também, que o feminismo negro possui sua diferença específica em face do ocidental: a da solidariedade, fundada numa experiência histórica comum.

Para Sueli Carneiro, o feminismo negro tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.

Paula Giddings (1984) também percebe a importância da experiência e a história para as mulheres negras, acrescentando:

“Para uma mulher negra, escrever sobre mulheres negras é primeiramente, um objetivo pessoal e obrigatório. É pessoal porque as mulheres cujo sangue corre em minhas veias respira por entre as estatísticas. [...] é também uma tarefa objetiva, porque alguém deve colocar essas experiências em um contexto histórico, encontrar neles um significado racional de forma que as forças que moldam suas próprias vidas possam ser entendidas. [...] Pois apesar da abrangência e significância da sua história, temos sido percebidas como símbolos de mulheres em ? textos negros' e, como símbolo de negros em ? textos feministas?”.

Todos(as) estes(as) teóricos(os) mostram a história única das mulheres negras, construída por dois fortes e emblemáticos pilares: sua raça/cor e seu gênero. Esta esquina mostra os vários horizontes das discussões emblemáticas do último período.

Nos dados sobre saúde, questões como o aborto, luta histórica do movimento feminista geral, priorizada por nós que somos as que mais morremos, tem sido muito discutida. Há um movimento reacionário, que busca retroagir ainda mais os tímidos e insuficientes direitos conquistados na lei de abortamento legal. Diante da proibição do direito ao próprio corpo, a ilegalidade do aborto contribui para uma das maiores causas de mortalidade materna entre as mulheres negras no país:

Gráfico 1 - Distribuição percentual de óbitos maternos das principais causas diretas de mulheres brancas, pretas e pardas (Dados de mulheres negras = pretas + pardas)

Fonte: Brasil (2005)

Fonte: SIM/SVS/MS

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No Rio de Janeiro (dados da SMSDC), no período de 2000 a 2006, a taxa de mortalidade materna total na cidade variou de 60,7 para 50,4 por 100.000 nascidos vivos. A taxa entre mulheres da cor preta/parda variou de 74,9 a 54,1. E a taxa entre as mulheres da cor branca, de 51,9 para 34,9.

Além disso, nesta última década e no governo Lula, houve diminuição dos recursos para implementação de garantias aos direitos sexuais e reprodutivos, e, também, para a política de saúde integral de mulheres. Como somos nós da população negra as que mais utilizamos o SUS, e os demais aparelhos públicos, este desmantelamento nos atinge, principalmente.

Os dados de rendimento médio, segundo raça e sexo do IBGE (2010), mostram as disparidades salariais entre gêneros e entre raças. As mulheres negras recebem menos pelo trabalho realizado, pois sua renda é:

Em relação a um homem branco, em média, 2,7 vezes menor;

Em relação às mulheres brancas, 1,8 vezes menor;

Em relação aos homens negros. 1,3 vezes menor.

Segundo os dados do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER)-IE/UFRJ, o rendimento médio dos trabalhadores brancos do sexo masculino no mês de dezembro de 2010 foi de R$ 2.216,59. Na comparação com o mês anterior, observou-se valorização real de 1,3% e, na comparação com o mesmo mês do ano de 2009, valorização de 5,8%. O rendimento médio

dos trabalhadores pretos e pardos do sexo masculino, no último mês de 2010, foi de R$ 1.185,66. Em termos reais, na comparação com o mês de novembro de 2010, o rendimento dos trabalhadores deste grupo de cor ou raça e sexo apresentou involução de 0,5%. Já na comparação com o mês de dezembro de 2009, ocorreu uma evolução positiva, mais uma vez, de 9,5%.

No contingente do sexo feminino, em dezembro de 2010, as trabalhadoras brancas tiveram um rendimento habitual médio de R$ 1.551,87. Já trabalhadoras pretas e pardas perceberam rendimento médio de R$ 865,03.

CONCLUSÃO

Temos uma história única de lutas e resistências que apesar dos dados e do pouco respeito de “Bolsonaros” (pai e filho), mostram a necessidade de políticas mais focalizadas, mas principalmente, de outra sociedade, sem hierarquias de gênero e de raça. Uma sociedade sem classes, que valorize as histórias das que fizeram história. Histórias de Dandara, Aquatune, Luíza Mahin, Mariana Crioula, Xica da Silva, Antonieta de Barros, Tia Ciata, Chiquinha Gonzaga, eu e você.

REFERÊNCIAS:

BEAUVOIR, Simone (1980 - reedição) - O segundo sexo, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro

SOUZA, Neusa Santos (1990) – “Tornar-se Negro ou As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social”- Ed. Graal, Rio de Janeiro

MINISTÉRIO DA SAÚDE (2005) - Saúde Brasil 2005, Uma análise da situação de saúde no Brasil, Brasília

GIDDINGS, Paula (1984) - When and Where I Enter. Bantam Books: New York

GONZALEZ, Lélia (1984). The black woman's place in the brazilian society. Acesso em 01 de fevereiro, 2006, em www.leliagonzalez.org.br.

HASENBALG, Carlos (1979) – Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil- Graal, Biblioteca de Ciências Sociais Vol. nº10, Rio de Janeiro

PAIXÃO, Marcelo; ROSSETO, Irene; MONTOVANELE, Fabiana e CARVANO, Luiz M. (2011) – Relatório Anual das Desigualdades

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Raciais no Brasil; 2009-2010 - LAESER/UFRJ, Ed. Garamond Universitária, Rio de Janeiro

CALLINICOS, A, 1993 - Capitalismo e Racismo; traduzido por Ruy Polly (2000) do livro Race and Class, Bookmarks, Londres, janeiro de 1993. In: http://socialista.tripod.com

“Mais amor e mais tesão”: a construção de um movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis

James N. Green

Resumo: O movimento de gays, lésbicas e travestis surgiu em 1978 no meio da abertura política e da oposição à ditadura militar. A publicação do jornal mensal Lampião da Esquina voltado aos homossexuais, e as influências de movimentos políticos e sociais nacionais e o movimento gay-lésbicas internacional inspiraram a formação em São Paulo do Grupo Somos: Grupo de Afirmação Homossexual – a primeira organização política dos gays e lésbicas duradoura e bem-sucedida no país. Em seguida, surgiram outros grupos, mas divergências políticas sobre os rumos do movimento desanimaram muitos participantes, levando a um declínio dramático de atividades no começo dos anos 80. A resposta à AIDS e à violência contra gays, lésbicas e travestis, em meados dos anos 80, reanimou o movimento que começou a se reorganizar nos anos 90, formando a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, que expandiu sua participação internacional e organizou a marcha de 110000 em São Paulo em junho de 20.

O ano de 1978 foi um ano mágico para o Brasil. Após mais de uma década do regime militar, a queda dos generais parecia iminente. Centenas de milhares de metalúrgicos, após anos de silêncio, cruzaram os braços para protestar contra a política salarial do governo. Estudantes encheram as ruas das maiores cidades brasileiras com gritos de “Abaixo a Ditadura!”. Estações de rádio começaram a tocar

músicas censuradas, e estas se tornaram as canções mais populares no país. Negros, mulheres e até mesmo homossexuais começaram a se organizar, exigindo ser ouvidos.

Durante o longo verão entre 1978 e 1979, uma dúzia de estudantes, escriturários, bancários e intelectuais reuniam-se semanalmente em São Paulo. Indo de apartamento em apartamento, sentando no chão por falta de móveis suficientes, eles planejaram o futuro da primeira organização pelos direitos dos homossexuais no Brasil. As reuniões se alternavam entre sessões de conscientização e discussões. Os participantes, na maioria homens gays, mas também algumas lésbicas que iam e vinham, debatiam as últimas matérias contra os homossexuais publicadas pelo jornal escandaloso Notícias Populares, e a resposta que deveria ser dada pelo novo grupo, Ação pelos Direitos Homossexuais. Eles também liam cuidadosamente cada número da recém-lançada publicação mensal Lampião da Esquina. Este novo jornal, de tamanho tabloide, era produzido por um grupo de escritores e intelectuais do Rio de Janeiro e São Paulo, e se declarava um veículo para discussão de sexualidade, discriminação racial, artes, ecologia, e machismo.

Conforme o verão se prolongava, o nome do grupo se tornou o centro das controvérsias. Será que o nome Ação pelos Direitos Homossexuais desencorajava novos membros de participarem porque declarava de forma muito audaciosa a agenda política do grupo? Talvez o caráter político do nome fosse a razão pela qual só dez ou doze pessoas vinham para as reuniões semi-secretas. Alguns queriam mudar o nome do grupo para Somos, em homenagem à publicação da Frente de Liberação Homossexual

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Argentina, o primeiro grupo pelos direitos gays na América do Sul, que surgiu em Buenos Aires em 1971, e desapareceu na longa noite da ditadura militar, em março de 1976. Outros propunham um nome que claramente expressasse o propósito da organização: Grupo de Afirmação Homossexual. Nomes que incluíssem o termo “gay” eram sumariamente rejeitados, com a justificativa de que imitavam o movimento norte-americano.

O nome final – Somos: Grupo de Afirmação Homossexual – foi o meio termo que o grupo adotou e estreou durante um debate em 6 de fevereiro de 1979, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. O debate foi parte de uma série de discussões sobre o tema de organização das “minorias” brasileiras– em referência às mulheres, os negros, os povos indígenas, e os homossexuais – e acabou sendo também o evento em que o movimento de gays e lésbicas do Brasil “se assumiu”. O painel sobre homossexualidade contou com a presença de editores do jornal Lampião e de membros do Somos. Mais de 300 pessoas lotaram o auditório. A discussão que se seguiu foi eletrizante, coma troca de farpas e acusações entre os estudantes de esquerda e os representantes homossexuais. Pela primeira vez, lésbicas falavam abertamente sobre a discriminação que encontravam. Estudantes gays reclamavam que a esquerda brasileira era homofóbica. Defensores de Fidel Castro e da revolução cubana argumentavam que a luta por direitos específicos, contra o sexismo, racismo e homofobia, iria dividir a esquerda. Eles argumentavam que o povo devia se unir na luta geral contra a ditadura. A primeira controvérsia dentro do movimento homossexual brasileiro começava a se delinear.

Os discursos já tinham sido apresentados. Dentro de um ano, questões táticas sobre alinhamento com outros movimentos sociais ou manutenção da autonomia política e organizacional iria rachar o Somos, então o maior grupo de direitos homossexuais no país, deixando outras organizações espalhadas pelo país desanimadas e sem direção.

Poucos dos que participaram do debate poderiam prever, entretanto, a rápida explosão do movimento homossexual na arena política brasileira. Em pouco mais de um ano, cerca de mil lésbicas e gays lotavam o teatro Ruth Escobar, no centro de São Paulo, para a cerimônia de encerramento do Primeiro Encontro Nacional de Grupos Homossexuais Organizados. Um mês depois, no 1º de maio de 1980, com a cidade cercada pelo 2º Exército e em estado de sítio, cerca de 50 ativistas homossexuais marcharam pelas ruas de São Bernardo do Campo, junto com milhares de outros participantes, unidos em comemoração ao Dia Internacional dos Trabalhadores, durante uma greve geral. Quando o grupo entrou no estádio de futebol da Vila Euclides, foi ovacionado por milhares de participantes. Seis semanas mais tarde, cerca de mil gays, lésbicas, travestis e prostitutas marcharam pelo centro de São Paulo em protesto à violência policial, cantando “Abaixo a repressão – mais amor e mais tesão”. Um movimento político tinha nascido.

Quinze anos depois, em junho de 1995, mais de 300 delegados representando grupos homossexuais da Ásia, Europa, das Américas e do Caribe, encontraram-se no Rio de Janeiro para participar da 17ª Conferência Anual da International Lesbian and Gay Association (ILGA). Na cerimônia de abertura, a deputada

federal Marta Suplicy (PT) lançou a campanha nacional pela parceria civil e por uma emenda constitucional proibindo a discriminação com base na orientação sexual. No fim da semana, os delegados, junto com milhares de participantes e simpatizantes, encerraram a convenção celebrando o 26º aniversário da revolta de Stonewall com uma caminhada pela Avenida Atlântica. Uma enorme faixa exigindo “Cidadania Plena para Gays, Lésbicas e Travestis” abriu a passeata. Um grupo de mulheres carregando uma faixa exigindo “Visibilidade Lésbica” se seguiu, arrancando aplausos dos observadores. Drag queens provocavam e paqueravam com a audiência, em cima de um ônibus escolar cor-de-rosa, a la Priscilla e dois caminhões emprestados pelos bancários. Muitos participantes vestiam máscaras e fantasias carnavalescas. Uma bandeira do arco-íris de 125 metros balançava ao vento. No final da passeata, participantes emocionaram-se ao cantar o hino nacional, e foram finalmente dispersados por uma chuva fina. O movimento chegou à maioridade.

Legal, mas nem tanto

Embora as leis coloniais brasileiras considerassem sodomia um pecado, que podia ser punido pelas chamas da fogueira, o Código Penal Imperial de 1830 eliminou todas as referências à sodomia. Entretanto, leis dos séculos XIX e XX restringiram o comportamento homossexual. Adultos engajados em atos sexuais com outros adultos num local público poderiam ser indiciados por

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ofender os bons costumes, com exibições impudicas, atos ou gestos obscenos, atentatórios do pudor, praticados em lugar público ou frequentado pelo público, e que, sem ofensa à honestidade individual de pessoa, ultrajam e escandalizam a sociedade.

Essa provisão, revisada de um código penal anterior, criou bases legais para controlar qualquer manifestação pública de comportamento homo-erótico ou homo-social. Com critérios abrangentes, a polícia e os juízes podiam punir ações “inapropriadas” ou “indecentes” que não se conformassem com construções heterocêntricas. Outra medida para regular manifestações públicas de homossexualidade era a de acusar pessoas de vadiagem. A polícia podia prender qualquer pessoa que não tivesse como provar sua subsistência ou domicílio certo, ou “prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes”.

Essas duas medidas legais deram à polícia o poder de encarcerar arbitrariamente os homossexuais que expressassem publicamente sua feminilidade, usassem roupas ou maquiagem feminina, ganhassem a vida através de prostituição, ou que usassem um cantinho escuro de uma praça pública para um encontro sexual noturno. Códigos criminais com noções de moral e decência pública vagamente definidas e provisões que controlavam estritamente a vadiagem forneceram uma rede jurídica pronta para capturar aqueles que transgredissem as normas

sexuais aprovadas socialmente. Embora a homossexualidade em si não fosse tecnicamente ilegal, a polícia brasileira e os tribunais dispunham de múltiplos mecanismos para conter e controlar este comportamento.

A vida gay e lésbica antes dos anos 70

O Brasil passou por mudanças dramáticas nos anos 50 e 60. Milhões de camponeses e trabalhadores migraram em massa para as grandes metrópoles, a produção industrial expandiu-se, oferecendo empregos e novos produtos para o mercado doméstico. Cidades como Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo eram ímãs atraindo homossexuais do interior que buscavam o anonimato das grandes cidades, longe do controle familiar. Eles se juntaram com os nativos das cidades grandes para formar sub-culturas homossexuais urbanas. Naquela época, a construção tradicional de gêneros relacionada à homossexualidade era (e em grande parte ainda é) hierárquica e baseada em papéis sexuais. Homens que mantinham atividades sexuais com outros homens se dividiam em duas categorias: o homem “verdadeiro” e a bicha. Essa oposição binária refletia as categorias heterossexuais tradicionais de homem e mulher, em que o homem era considerado “ativo” nos encontros sexuais e a mulher, sendo penetrada, era “passiva”. O antropólogo Richard Parker observou:

A realidade física do próprio corpo divide assim o universo sexual em dois. As diferenças anatômicas conhecidas são transformadas através da linguagem, nas categorias hierarquicamente relacionadas de gênero definido social e culturalmente: nas classes de masculino e feminino (? ) construídas com base na percepção da diferença anatômica, é essa distorção entre atividade e passividade que estrutura mais claramente as noções brasileiras de masculinidade e feminilidade, e que têm servido tradicionalmente como o princípio organizador para o mundo muito mais amplo de classificação sexual da vida brasileira atual.

Segundo este modelo, em atividades eróticas homossexuais tradicionais o homem, ou na gíria o bofe, assume o papel ativo no ato sexual, e pratica a penetração anal em seu parceiro. O efeminado (bicha) é o passivo, o que é penetrado. A “passividade” sexual desse último atribui-lhe a posição social inferior da “mulher”, enquanto o homem “passivo”, sexualmente penetrado é estigmatizado, aquele que assume o papel público (e supostamente privado) do homem, que penetra, não o é. Desde que ele mantenha o papel sexual atribuído ao homem “verdadeiro”, ele pode ter relações sexuais com outros homens sem perder seu status social de homem. Similarmente, mulheres que transgrediram as noções tradicionais de feminilidade, manifestando características masculinas, expressando a sua independência ou sentindo desejo sexual por outras mulheres, são marginalizadas. A rejeição de muitas lésbicas dos papeis femininos tradicionais, incluindo a “passividade”, colocaram-nas fora do paradigma dominante do gênero. A expressão pejorativa “sapatão” reflete este mal-

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estar social contra a mulher forte e masculinizada.

Até o fim dos anos 50, não existiam bares dirigidos exclusivamente ao público gay ou lésbico. Encontros públicos homossexuais centravam-se em parques, praças, cinemas, banheiros públicos ou à ocupação tênue de restaurantes, cafés, ou partes de praias. Já que muitas pessoas solteiras moravam com suas famílias até o casamento, encontros sexuais muitas vezes ocorriam em quartos alugados, ou em casas de amigos. Pequenas festas, shows de travestis realizados em casas particulares, e fins-de-semana no campo ou na praia ofereciam um espaço livre de controle social.

O carnaval era um momento durante o ano quando gays podiam expressar-se livremente. Lésbicas, embora muito mais limitadas por normas sociais, também apropriaram o carnaval para expressar de forma leve seus desejos em público. Durante quatro dias, os bailes dos travestis, homens vestidos de mulher em público e comportamento extravagante e audaz reinavam. Nos anos 50, o baile das bonecas no Rio atraía um público internacional. Gays vinham de toda a América do Sul para participar na folia e assistir homens com plumas e paetês competirem para ser coroados a deusa mais glamourosa e bela das celebrações carnavalescas. Carnaval era um momento único durante o ano quando tudo era permitido.

Homossexualidade durante a ditadura militar

A sub-cultura gay e lésbica das grandes cidades inicialmente foi pouco afetada pelo golpe militar. Alguns homossexuais que eram militantes de esquerda sofreram repressão não pela sua sexualidade, mas por seu posicionamento ideológico e seu engajamento político. Bares recentemente abertos que serviam a uma clientela gay e lésbica mantiveram um espaço para socialização. Shows de travestis, que se iniciaram nesses bares, atingiram um público mais amplo, com apresentações de teatro, e alguns destes transformistas tornaram-se personalidades públicas. Um dos grupos sociais que manteve festas particulares publicou, entre 63 e 69, 100 números de uma revista chamada O Snob. O sucesso deste boletim mimeografado, com colunas de fofocas e figuras de homens vestidos de mulher nas capas inspirou a publicação de outras 30revistas no Rio e no resto do país, e a formação da Associação Brasileira da Imprensa Gay, que durou de 67 a 68.

As notícias do surgimento do movimento de libertação gay em 69, após a rebelião de Stonewall em Nova York, chegaram à América Latina no começo dos anos 70, e incentivaram a formação de grupos na Argentina, México e Porto Rico. Contudo, a repressão militar no Brasil impossibilitou a formação de um movimento gay e lésbico no país. A publicação informal de O Snob e os seus imitadores pararam de circular porque seus editores temiam ser confundidos com grupos clandestinos de esquerda sendo brutalmente reprimidos naquele momento. A censura moralista do governo militar limitava referencias à homossexualidade na imprensa. Embora algumas publicações alternativas produzissem matérias ocasionais referentes ao

“gay power” nos Estados Unidos, a formação de um movimento político no Brasil parecia impossível. Enquanto os militares controlavam o governo, as transformações sociais e culturais que ocorriam no país iriam afetar as noções de gênero e homossexualidade. Cantores como Caetano Veloso, Maria Bethania e Ney Matogrosso apresentavam uma imagem andrógina que transgredia os papeis sexuais, e implicava um desejo bissexual. Valores boêmios e contraculturais que enfatizavam a liberdade sexual individual começaram a influenciar os intelectuais e estudantes. A cultura da juventude que desafiava valores tradicionais de sexualidade e gênero permeava a classe media urbana.

Já em 1974, a ditadura militar enfrentava problemas sérios, entre outros, a crise econômica e o crescimento da oposição nas eleições. Nessa época, novas formas de resistência surgiram. Estudantes reativaram os organismos de autogestão nas universidades e mobilizaram-se contra a ditadura. O movimento operário se reorganizou, mobilizando uma onda de greves. Muitas mulheres que tinham participado na oposição clandestina contra os militares começaram a criticar publicamente o sexismo da esquerda, levantando ideais feministas. O movimento negro unificado emergiu, desafiando a ideologia predominante de que o Brasil era uma democracia racial. Em 1978, enfrentando uma oposição mais unida, os militares resolveram acelerar o processo de abertura gradual.

A primeira onda do movimento gay e lésbico

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Dentro deste clima político e social, ativistas gays fundaram primeiro o jornal Lampião e logo depois o grupo Somos. Nos próximos dois anos, Somos inspirou a formação de pelo menos sete outros grupos, que se reuniram em São Paulo por ocasião do Primeiro Encontro de Grupos Homossexuais Organizados, em abril de 1980. Os grupos, na sua maioria, eram pequenos e dirigidos por estudantes, bancários, funcionários públicos e intelectuais da classe média baixa. Alguns tinham participado em grupos clandestinos da esquerda, que sobreviveram aos piores anos da ditadura. Eles trouxeram para o movimento tanto sua experiência como ativistas e organizadores, como suas preocupações da critica frequente da esquerda contra a homossexualidade como produto da decadência burguesa.

Em maio de 80, Somos se dividiu quanto à participação nas mobilizações operárias e no papel da esquerda no movimento gay. O entusiasmo de ativistas que tinham sucedido em organizar tanto um encontro nacional de sucesso quanto mobilizações contra a repressão policial, dissiparam-se. Aqueles que se opunham à construção de alianças com o movimento operário e a esquerda formaram um novo grupo em São Paulo, que se chamava Grupo Outra Coisa: Ação Homossexualista. As lésbicas do Somos, que já tinham organizado um coletivo autônomo dentro da organização, saíram do grupo para formar uma entidade independente, o Grupo Lésbico Feminista, onde elas podiam organizar suas atividades sem preocupar-se com sexismo em um grupo dominado por homens. Somos-Rio de Janeiro, que nasceu inspirado pelo Somos-São Paulo, também se dividiu por causa de disputas na

liderança. Os principais editores do Lampião atacavam as organizações de ativistas no momento em que a circulação do jornal caía dramaticamente. A publicação parou de sair em meados de 1981, e nos próximos três anos a maioria dos grupos desapareceram. No auge do movimento, em 1981, 20 grupos existiam no país. Em 1984, somente sete sobrevieram, e apenas cinco participaram do Segundo Encontro de Homossexuais Organizados, que se realizou em Salvador.

Vários fatores contribuíram para o declínio do movimento. Com algumas exceções, os grupos nunca passaram de várias dezenas de membros em um determinado momento. Faltavam recursos financeiros e infra-estrutura. Alguns dos dirigentes iniciais perderam o estímulo quando os grupos não demonstraram um crescimento significativo. Outros ativistas não tinham experiência previa para sustentar os grupos durante a “década perdida” dos anos 80, quando a crescente divida externa causou inflação galopante e desemprego maciço. O fim da ditadura em 85 criou a falsa ideia de que a democracia tinha sido restaurada, e os direitos dos homossexuais e outros setores da sociedade iam expandir-se sem dificuldades. A imprensa, o rádio e a televisão disseminavam uma imagem mais positiva da homossexualidade, e ofereciam um veículo para que as poucas figuras públicas do movimento articulassem seu ponto de vista. O crescente consumo gay, que incluía boates, saunas e bares, também sustentou uma ilusão de que a sociedade se tornava cada vez mais livre e que a organização política de gays e lésbicas não era mais necessária.

Durante este marasmo, o grupo Ação Lésbica Feminista, fundado em 1981, integrou-se ao movimento feminista. O grupo também

manteve um perfil publico através da publicação do boletim Chanacomchana e da participação em conferências lésbicas internacionais. Luiz Mott, professor de antropologia e fundador do Grupo Gay da Bahia (atualmente o grupo mais antigo do país), sucedeu a direção do movimento desnorteado através de campanhas importantes, permitindo a expansão do movimento no final dos anos 80. A primeira vitória do Grupo Gay da Bahia foi o reconhecimento jurídico do grupo. A segunda campanha convenceu o Conselho Nacional de Saúde a abolir a classificação que categorizava homossexualidade como uma forma tratável de desvio sexual. Liderada por Mott, a campanha conseguiu o apoio de organizações profissionais importantes e várias Assembléias Legislativas. Intelectuais e personalidades importantes assinaram um abaixo-assinado nacional exigindo a revogação da classificação. Em fevereiro de 1985, o conselho removeu a homossexualidade da categoria de doenças tratáveis. Durante a Assembléia Constituinte de 1987 e 1988, João Antônio de S. Mascarenhas, um editor de Lampião, e fundador do Grupo Triângulo Rosa no Rio, organizou uma campanha para incluir uma medida proibindo discriminação baseada na orientação sexual. A campanha recebeu o apoio do Grupo Lambda de São Paulo e do Grupo Gay da Bahia. Em 28 de janeiro de 1988, 461 dos 559 membros da Constituinte votaram, porem somente 130 apoiaram a provisão que proibia a discriminação. Vinte cinco dos 33 pastores evangélicos da Constituinte votaram contra a medida. A bancada da esquerda, incluindo o PT, apoiou a proibição da discriminação baseada na orientação sexual . Desde essa derrota, leis similares têm sido incluídas nas constituições de vários estado se em mais de 100 municípios

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PARTE IV – OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS

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brasileiros, mas até recentemente faltavam a estas medidas mecanismos para punir infratores.

Violência e AIDS

Embora a maioria dos gays e lésbicas achassem que não era necessária a organização política durante o processo de aparente liberalização que acompanhou a volta à democracia, o crescimento dramático da infecção de HIV e a onda de violência contra gays, travestis e lésbicas revelou que seus direitos eram precários dentro de um regime democrático. O primeiro caso de AIDS foi diagnosticado no Brasil em 1982, e a maioria dos brasileiros associou HIV e AIDS com gays ricos com recursos para viajar para os Estados Unidos e Europa. A realidade era bem diferente. Segundo Richard Parker, ex-diretor da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS,

A acelerada mudança da transmissão [de HIV] predominantemente homossexual e bissexual para uma transmissão heterossexual cresceu rapidamente depois da primeira década, e torna-se ainda mais marcante quando os casos de AIDS reportados são vistos durante um longo período de tempo. Enquanto os homens homossexuais representavam 46.7% e bissexuais 22.1%[dos casos], homens e mulheres heterossexuais representavam apenas 4.9% do total nacional entre 1980 e 1986. Em 1991, o

número de casos reportados entre homens homossexuais caiu para 22.9%, e os casos entre homens bissexuais diminuiu para 11.1%, enquanto casos reportados entre homens heterossexuais cresceu para 20.1%.

Nos primeiros anos da epidemia, a desinformação e homofobia causaram um pânico, e a imprensa sensacionalista reportou a chegada da “peste gay”. Uma das primeiras respostas organizadas foi iniciada pelo grupo Outra Coisa: Ação Homossexualista, que tinha rachado com o Somos por causa de suas ligações com a esquerda. Seus membros distribuíram um panfleto nos bares gays e áreas de paquera em São Paulo, informando a “coletividade homossexual” como eles poderiam obter informações sobre a doença. Ativistas também se reuniram em 1983 com representantes do Departamento de Saúde do Estado de São Paulo para assegurar que oficiais de saúde pública lutando contra a epidemia não iriam discriminar contra os homossexuais.

Alguns ativistas da primeira onda do movimento começaram a trabalhar em organizações voltadas a AIDS. Nos meados dos anos 80, quando a segunda geração de organizações gays emergiram, elas integraram a educação sobre AIDS em suas atividades políticas. Grupos como o Grupo Gay da Bahia, que sobreviveu o marasmo do movimento, conseguiu manter-se em parte porque iniciou a luta contra a AIDS.

Os meados dos anos 80 também presenciaram um aumento marcante na violência contra gays, travestis e lésbicas. Luiz Mott documentou o assassinato de mais de

1.200 homossexuais masculinos e femininos e de travestis no Brasil entre meados dos anos 80 e meados dos anos 90 . Alguns casos envolveram mulheres assassinadas por parentes que descobriram que elas estavam tendo casos com outras mulheres . Outros assassinos eram jovens prostitutos (michês) que saíram com gays, os roubaram e mataram. Em 1987, por exemplo, um jovem matou mais de uma dúzia de homens no Parque Trianon em São Paulo .

A maioria desses assassinatos eram cometidos por indivíduos ou grupos não identificados que nunca foram processados. Segundo o GGB, doze grupos diferentes estiveram envolvidos em violência e assassinatos contra homossexuais . Alguns esquadrões da morte que sobreviveram na época da ditadura militar participaram nestas ações. Como a Lei da Anistia de 1979 nunca puniu os grupos que torturaram e mataram a oposição aos militares, nunca houve um debate nacional sobre esta violência cometida por agentes do governo. Nos anos 80, esquadrões da morte e grupo similares ainda operavam com impunidade. Alguns, sem elementos “subversivos” como alvos de suas preocupações, resolveram “limpar” a sociedade brasileira da “imoralidade”. Um desses grupos, a Cruzada Homossexualista, mandou cartas ameaçadoras ao Grupo Somos já em 1981 .

Apenas 10% desses crimes denunciados resultam em prisões. Numa entrevista em 1995, Toni Reis, secretário geral e fundador da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis, observou que em sua cidade natal, Curitiba, ocorreram vinte assassinatos documentados de homossexuais nos dez anos anteriores, com apenas duas condenações. Adauto Belarmino Alves, ganhador do prêmio

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Reebok Human Rights, documentou o assassinato de 23 homens homossexuais no Rio de Janeiro em 1994. O relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre os direitos humanos no Brasil, em 1993, também apontou essa violência:

Continua a haver registros de assassinatos de homossexuais. Os jornais de São Paulo publicaram que três travestis foram assassinados em 14 de março; outros relatórios alegam que 17 travestis foram mortos nos primeiros três meses de 1993. Um policial foi acusado dos assassinatos de 14 de março e estava aguardando o julgamento para o final do ano. No entanto, os grupos gays organizados afirmam que a grande maioria dos praticantes de crimes contra homossexuais permanece impune.

O sistema judicial também apoia estas ações arbitrárias contra travestis. Em outubro de 1994, o Tribunal de Justiça Militar reduziu a sentença de Cirineu Carlos Letang da Silva, ex-soldado da Polícia Militar condenado por assassinar o travesti Vanessa. O juiz que reduziu a sentença de 12 para 6 anos explicou que os travestis são perigosos. Vanessa foi atingida por tiros no nariz e nas costas.

O caso que exemplifica de forma mais dramática a violência contra homossexuais no Brasil envolveu, em 1993, o assassinato de Renildo José dos Santos, vereador do município de Coqueiro Seco, no estado de Alagoas. Em 2 de fevereiro de 1993, a câmara municipal aplicou-lhe uma suspensão de suas atividades por trinta

dias porque ele havia declarado num programa de rádio que era bissexual. Ele foi acusado de “praticar atos incompatíveis com o decoro parlamentar”. Quando terminou o período de sua suspensão, ele não foi readmitido e teve de pleitear a ordem de um juiz para que pudesse reassumir o posto na câmara. No dia seguinte, ele foi sequestrado. Seu corpo foi encontrado em 16 de março. Seus braços e a cabeça haviam sido amputados e o cadáver queimado. Apesar de cinco homens terem sido presos nesse caso, incluindo o prefeito da cidade, eles foram inocentados de qualquer envolvimento no assassinato. Ninguém foi punido por este crime.

A segunda onda

Apenas seis organizações participaram no Terceiro Encontro Nacional de Homossexuais, realizado em janeiro de 1989 no Rio. De qualquer forma, novos grupos tomaram parte. Um desses grupos, Atobá, fundado em 1985, depois do assassinato de um jovem, juntou lésbicas e gays num subúrbio do Rio, longe dos bares e boates da classe média da Zona Sul. Nos próximos quatro anos, encontros anuais nacionais atraíram um número cada vez maior de grupos. Durante o sétimo Encontro Nacional de Gays e Lésbicas, realizado em janeiro de 1985, representantes de mais de 30 organizações fundaram a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis. Embora a maioria dos grupos ainda seja pequena, a formação de uma organização nacional com afiliados em todas as regiões do país reflete um crescimento dinâmico do movimento.

Alguns acontecimentos colaboraram para o ressurgimento do ativismo gay e lésbico

depois do estabelecimento de um regime democrático em 1985. Vários movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores começaram a questionar como democratizar a participação numa sociedade civil. Ativistas do movimento feminista, grupos de bairro e a esquerda argumentaram que uma verdadeira democracia implicava respeito para cidadãos comuns. Além disso, o movimento pelo impeachment do ex-presidente Collor reforçou a importância da mobilização para conseguir objetivos políticos.

Estas experiências politizaram muitos gays e lésbicas. Eles integraram-se a grupos existentes como uma forma de apoio, conscientização e debate. Eles também procuraram conseguir a plena cidadania para os gays, lésbicas e travestis na luta contra a homofobia, violência e discriminação. As lésbicas assumiram um papel de direção na liderança do movimento, levantando uma luta em 1993 para aumentar a visibilidade lésbica através da mudança do nome do encontro nacional anual para Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais. Em setembro de 1997, ativistas lésbicas reuniram-se em Salvador para uma conferencia de quatro dias, o Segundo Seminário Nacional de Lésbicas, que enfocou questões de saúde e cidadania. Este encontro inspirou a organização de eventos similares nos anos seguintes.

Ao mesmo tempo, a mídia aumentou a discussão sobre homossexualidade, e atividades do movimento internacional afetaram o debate dentro do país. Todos os grandes jornais, revistas e programas de televisão cobriram as paradas gays internacionais, debates sobre os gays e as lésbicas nos Estados Unidos e na Europa e sobre a AIDS. Programas de entrevistas promoveram

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os poucos ativistas dispostos a assumir publicamente para discutir a homossexualidade de uma maneira aberta e franca. Cantores famosos, como Renato Russo, anunciaram sua homossexualidade e apoiaram o movimento. Houve também uma mudança na auto-identidade das pessoas que mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo gênero. Embora muitos brasileiros ainda pensem em termos de papéis sexuais ativo e passivo, as identidades gays e lésbicas similares às dos Estados Unidos e Europa são cada vez mais comuns, especialmente entre a classe media dos grandes centros urbanos. Em 1980, Somos rejeitou a palavra “gay” por causa de sua associação estreita com o movimento americano. Hoje em dia, o termo inglês e usado amplamente entre os homossexuais e as lésbicas, e pela mídia. Porém, assumir na família ou no trabalho, especialmente entre homens não afeminados e mulheres não masculinizadas, não é tão comum quanto na Europa e nos Estados Unidos. Mesmo assim, cada vez mais ativistas aparecem nos jornais, nas revistas e na televisão, tentando romper o código cultural que diz “pode fazer o que você quiser, mas não diga nada a ninguém”.

Além de aumentar o número de pessoas que se envolveram no movimento buscando informação e apoio, o crescimento de ONGs voltadas a prevenção do HIV-AIDS aumentou os recursos e infra-estrutura do movimento. Grupos aprenderam a pedir verbas tanto para os governos estadual e federal, quanto para organizações internacionais. Esses recursos ofereceram a possibilidade de alugar locais que também servem de ponto de reunião dos ativistas gays e lésbicas.

O crescimento do PT como organização que unificou os movimentos sociais e grupos de

esquerda também politizou ativistas gays. O PT tornou-se o ponto de referência para a maioria destes ativistas, como um dos poucos partidos políticos que criticavam o status quo. Durante os anos 80, o PT foi o único partido que incluiu os direitos de gays e lésbicas em seu programa. Ativistas gays formaram um grupo dentro do PT para educar seus membros sobre as questões do movimento, porém, a aliança do PT com a base da igreja católica obrigou Lula a retirar seu apoio à união civil para homossexuais na campanha presidencial de 1994 A introdução da proposta de parceria civil por Marta Suplicy em 1995, em certa medida, recuperou o prestígio do PT como um partido que defende os direitos de gays e lésbicas.

O movimento tem se expandido em outras áreas importantes. Dirigentes de sindicatos começam a exigir benefícios para parceiros domésticos em planos de saúde. Em abril de 2000, aconteceu o Primeiro Encontro Nacional de Gays e Lésbicas da CUT, para reivindicar que o movimento sindical incorpore as questões levantadas pelo movimento.

Travestis também se destacaram dentro do movimento nos últimos anos. Desde os anos 60, travestis, muitos trabalhando como prostitutas, tornaram-se mais visíveis nas ruas dos maiores centros urbanos. Hormônio e silicone aumentaram as possibilidades que homens que se identificam como mulheres transformem seus corpos. Embora os travestis sejam um alvo dos assassinos, durante muitos anos sua participação no movimento foi quase inexistente. Em maio de 1993, a Associação de Travestis e Liberados realizou seu primeiro encontro nacional no Rio, com a participação de mais de 100 pessoas do Rio, São Paulo e outros estados. Representantes de outros grupos recém-

organizados convergiram ao sétimo Encontro Brasileiro de Lésbicas e Gays em janeiro de 1995, reivindicando sua incorporação ao movimento. Como resultado, o nome da organização fundada neste encontro– Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis – refletiu essa participação ampliada.

Guias turísticos internacionais dirigidos a gays e lésbicas anunciam numerosos bares, boates, praias, bailes carnavalescos e diversas publicações. Porém, visibilidade e folia não necessariamente produzem ativistas. Apesar de todos os sucessos da organização conseguidos nos últimos anos, como a parada gay de São Paulo de 110 mil pessoas, em junho de 2000, o movimento ainda esta fraco, envolvendo apenas uma porção reduzida dos milhões de gays, lésbicas e travestis brasileiros. Atualmente, existem mais de 60 grupos de gays e lésbicas no país, e um número comparável de organizações dirigidas a assuntos da AIDS, mas a maioria destes grupos é pequena, composta de apenas 30 a 50 membros. Somente uma dúzia de organizações acumula recursos e membros suficientes para sustentar sedes, infra-estrutura e oferecer líderes para dirigir o movimento ao nível nacional.

Uma pesquisa realizada em maio de 1993, com amostragem de dois mil homens e mulheres brasileiros, revelou um persistente desconforto diante da homossexualidade. Embora 50% confirmassem ter contato diário com homossexuais no trabalho, em sua vizinhança ou nos bares e clubes que frequentava, 56% admitiu que mudaria seu comportamento em relação a um colega caso descobrisse que ele ou ela era homossexual. Um em cada cinco romperia de vez o contato com essa pessoa. Dos entrevistados, 36% não

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empregaria um homossexual, mesmo que ele ou ela fosse a pessoa mais qualificada para o cargo, e 79% não aceitaria que seu filho saísse com um amigo gay.

Dr. Arnaldo Dominguez realizou uma pesquisa reveladora em São Paulo em 1991, enviando 200 questionários a clínicas e psicólogos e 600 a homossexuais. Entre os médicos, 30% consideraram que a homossexualidade merecia condenação; 70% achavam a bissexualidade uma anomalia; 50% disseram não estarem preparados para conversar sobre o assunto se pacientes homossexuais viessem a seus consultórios.

Mudanças dramáticas no movimento ocorreram desde a sua fundação no final dos anos 70. O movimento agora e mais aberto à diversidade política e ideológica. Ativistas de organizações da esquerda como o PT e o PSTU são considerados integrantes legítimos do movimento. Embora as organizações não tenham endossado candidatos, a maioria dos ativistas apoiou o PT ou outro partido da esquerda nas eleições. Isto não quer dizer, contudo, que o movimento tenha dotado mecanicamente a retórica, analise, ou métodos de organização da esquerda. Faixas coloridas, milhares de balões e as bandeiras do arco-íris geralmente ressaltam a participação gay e lésbica em manifestações políticas. Grupos de conscientização – uma herança do movimento feminista e do pedagogo Paulo Freire – são um instrumento básico para a organização interna do movimento. Lésbicas, embora ainda numericamente minoritárias dentro do movimento, desempenharam um papel destacado em sua liderança. Um pequeno, mas significante número de travestis, politizados por

suas experiências com a polícia, conseguiu conquistar espaço dentro do movimento.

Se no passado as atividades políticas eram realizadas por indivíduos corajosos e grupos isolados, agora o movimento desenvolve campanhas nacionais coordenadas contra a violência e a favor da parceira civil e da legislação anti-discriminatória. A mídia tem dado mais cobertura aos assuntos relacionados à comunidade gay e lésbica; algumas novelas de televisão retratam de maneira positiva figuras homossexuais. O movimento internacional tem um impacto significante no Brasil, com alguns dirigentes viajando para os Estados Unidos, Europa e América Latina para participar em reuniões e conferências internacionais. A Associação Internacional de Gays e Lésbicas, através da realização de sua 17ª Conferência Internacional, no Rio em 1995, e da Conferência Latino-americana, em 2000, facilitou um intercâmbio proveitoso entre delegados brasileiros e participantes de outros países.

Em agosto de 1964, Gigi Bryant, um dos membros da rede social que editava O Snob, concluiu uma série em sete partes sobre a “arte de caçar”. Num de seus artigos, ele descreveu o maracanãzinho, que abrigava eventos como Holiday on Ice e os Concursos de Miss Brasil. Depois de ridicularizar os membros dos grupos que frequentavam esses shows, Gigi brincou dizendo que “como vêm a afluências do top-set bichal para o maracanãzinho tende a torná-lo futuramente o centro social da numerosa classe”. E ele ainda caçoou:

é bem possível que em dias melhores tenhamos o I Festival de Entendidos,

convergindo representantes de outras nações ao nosso país. O que seria uma grande publicidade. E uma grande utopia, também.

Em 1964, as previsões de Gigi eram motivo para risos. Contudo, trinta anos depois, seus comentários provaram-se incrivelmente premonitórios.

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PARTE IV – OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS

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O PSOL e a luta LGBT

Contribuição para o III Congresso Nacional do PSOL

O ideário socialista surgiu como expressão da luta pela emancipação da humanidade de toda forma de exploração, opressão e discriminação, para permitir que homens e mulheres desenvolvam suas potencialidades e possam ser o que almejam. Para possibilitar uma vida que "vale a pena ser vivida" os socialistas desenvolvem diversas lutas, entre elas pela realização plena da sexualidade, nas suas variadas possibilidades - a heterossexualidade, a homossexualidade, a transexualidade, a bissexualidade. A homossexualidade: em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio”. Práticas homossexuais foram documentadas por cientistas em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, além de outras tantas espécies de pássaros e répteis. Portanto, não há porque se classificar como antinatural, ou como perversão, esse comportamento, presente em tantas espécies, também encontrado nos seres humanos – seres culturais, em que a sexualidade é ainda mais complexa. Encontramos, ao longo de toda a História da humanidade, em diversas sociedades, diferentes práticas homossexuais. A “opção” homossexual: algumas pessoas acreditam erroneamente que a homossexualidade seria uma opção. Quem escolheria viver um desejo que lhe torna alvo de preconceitos? A homossexualidade é uma das possibilidades de expressão da complexa sexualidade humana, construída a partir de

uma diversidade de experiências. Não se escolhe o objeto de seu desejo: a única opção para os homossexuais (ou heterossexuais) é a de viver ou não o seu desejo. Os direitos dos LGBTs: Verificamos nos últimos anos no Brasil uma ampliação, mesmo que limitada, de diversos direitos LGBT. Em decisão, o Supremo Tribunal Federal equiparou recentemente as uniões estáveis entre homossexuais com as uniões estáveis entre pessoas de sexos diferentes. O relator do caso, Ministro Carlos Ayres Britto, defendeu que a diversidade sexual não pode ser utilizada como argumento para se aplicar leis e direitos diferentes aos cidadãos. Os juízes confirmaram a "liberdade sexual como cláusula pétrea em nossa Constituição".

Alargando o conceito de família: com a decisão do STF, pelo menos 60 mil relações estáveis homoafetivas terão seu reconhecimento pelo Estado, segundo dados do Censo do IBGE. O conceito de família já vinha vivendo transformações e atualizações no ordenamento jurídico brasileiro. Historicamente a família consagrada pela lei, tinha um modelo centrado na entidade matrimonial, patriarcal, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Algumas alterações foram sendo implementadas como o direito ao divórcio, o reconhecimento das famílias monoparentais, e a constituição de 1988 inseriu na definição de entidade familiar o que chamou de “união estável”. A recente decisão do STF reconhece que todas as relações baseadas em afeto passam a receber o status de família merecedora da proteção do Estado – independente da orientação sexual do casal. Isso não significa que as religiões passam a ser obrigadas a inserir em sua liturgia qualquer sacramento: as religiões seguirão reconhecendo ou não a união

homoafetiva a partir de suas doutrinas filosóficas e teológicas. O Estado Laico é o único que pode garantir não só a união homoafetiva, como também a liberdade religiosa.

A homofobia: apesar da decisão do STF, o acesso igualitário dos homossexuais aos seus direitos ainda não é uma realidade no Brasil. O direito mais básico da dignidade humana e da proteção à vida, por exemplo, é desrespeitado: estima-se em pelo menos 206 o número de homossexuais assassinados em 2010. Alguns casos de agressões ocorrem mesmo dentro do ambiente escolar e da própria família. A homofobia já deveria ter recebido um tratamento legal do Congresso, similar ao dado ao racismo. Com essa previsão legal, seria possível conhecer a real dimensão das agressões contra a população LGBT e aprimorar as políticas públicas destinadas à superação da homofobia. Mas a resistência da bancada fundamentalista impede, há mais de 10 anos, a aprovação de uma legislação específica que inclua na Lei 7.716, que trata da punição de crimes de discriminação de raça, as motivações de “gênero, orientação sexual eidentidade de gênero” (PLC 122/2006).

A homofobia, o patriarcado e o Capitalismo. O capitalismo e as estruturas patriarcais constituem dois sistemas de dominação que interagem e se alimentam mutuamente. A corrente feminista socialista tem demonstrado que a divisão sexual do trabalho, assim como a transmissão de propriedade e posição social do pai para o filho varão, são essenciais para a reprodução do capitalismo e mantêm a subordinação das mulheres. A lógica da genealogia masculina do poder, superada em alguns aspectos jurídicos e formais, tem uma dimensão cultural que dois séculos de lutas pela emancipação feminina – e

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PARTE IV – OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS

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hoje LGBT – ainda não conseguiram superar. As homossexualidades colocam em risco esse sistema de perpetuação das classes sociais, ao questionar os comportamentos heteronormativos e a própria família como forma exclusiva de reprodução da vida. Contra essa “subversão” da ordem, os valores religiosos, culturais, jurídicos e mesmo policiais se levantam e constroem a homofobia.

A mercantilização da sexualidade. O sistema hegemônico construiu ainda novas formas de exploração e opressão, que aprisionam os indivíduos, sobretudo os LGBTs, numa lógica de medo – do envelhecimento, da solidão, da violência – e consumo – de cosméticos, de anti-depressivos, de roupas... Os indivíduos compram, de forma indireta, o desejo do/a outro/a, através de roupas, acessórios, automóveis, cosméticos, anabolizantes. A homofobia cumpre ainda o papel de enclausurar pelo medo os Gays e Lésbicas nos guetos e mercados GLS. Essa pressão pelo consumo como meio de realização pessoal é ainda mais perversa para os gays das periferias que se submetem até mesmo a jornadas mais intensivas de trabalho para ter acesso a esses bens de consumo. Ainda assim são vistos e oprimidos pelos seguimentos mais ricos dos LGBTs por outras clivagens que sustentam o capitalismo: a étnico-racial, a geográfica, a de

classe...

As Políticas Públicas.Como o acesso aos direitos pelos homossexuais, na mesma medida que aos heterossexuais, ainda não é uma realidade, é necessário que o Estado desenvolva políticas públicas de formação de professores,

pesquisas, apoio às manifestações culturais, produção de materiais pedagógicos, de saúde da população LGBT, de ampliação dos Centros de Referência e Cidadania LGBT e outras ações que contribuam para a superação da homofobia, com gestões públicas municipal, estadual e federal. No caso do Governo Federal, as opções orçamentárias, em detrimento das políticas LGBT, demonstram que as prioridades dos Governos Lula e Dilma são outras. Esses governos se sustentam em alianças reacionárias no Congresso Nacional. Depois de quase uma década, pouco se avançou em políticas públicas ou na ampliação de direitos – apesar de sua maioria esmagadora no Congresso, o Governo não se empenha pela aprovação dos 2 principais projetos de lei para a luta LGBT: a criminalização da homofobia (os PL 122 e o PL Alexandre Ivo) e o direito à união civil (agora reconhecida pelo STF). Curvando-se ao conservadorismo, o governo impede a proteção da vida da população LGBT.

Das políticas educacionais. A escola também deve ser espaço de discussão e superação da homofobia.Se a escola não enfrentar as polêmicas e dilemas éticos, não só se colocará de costas para a sociedade, como renunciará à sua missão de formar cidadãos capazes de compreender a realidade, e operar para sua transformação. Os professores precisam receber formação específica para lidar com os conflitos homofóbicos no interior da escola. Por isso é correta a elaboração de materiais pedagógicos de combate à homofobia, o que não pode ser compreendido como apologia à homossexualidade. Alguns pais não desejam que seus filhos tenham acesso às informações sobre as homoafetividades na escola. Fecham os olhos para o fato de que esse debate já está na

sociedade – na Mídia Empresarial, nas redes sociais, nas conversas. Melhor que os/as adolescentes também debatam sobre esses assuntos no seu espaço de informação e formação. O incrível retrocesso do governo Dilma, na proibição do kit de combate à Homofobia, só reforça o preconceito e aumenta a ignorância de pais, professores e alunos, traduzida muitas vezes, na violência e no bullying. A liberdade de expressão: não podemos aceitar que qualquer pessoa deturpe o sentido valoroso da fundamental liberdade de expressão, para propagandear o ódio contra setores da sociedade. A liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ela mereceu em nossa Constituição a definição de vários limites e parâmetros para sua realização (vedação ao anonimato, proibição do racismo...). Diversos parlamentares e líderes religiosos têm se utilizado de sua posição para fomentar o ódio contra minorias.

As palavras têm força: a pregação de ódio legitima e estimula as agressões contra homossexuais. A liberdade de expressão não pode se tornar liberdade de agressão. Os Desafios para os LGBTs e para o PSOL. O Brasil tem dado passos importantes para a consolidação da cidadania LGBT. Mas essa liberalização limitada está sob ataque de setores fundamentalistas, o que pode se agravar com o recrudescimento da crise econômica que pode chegar, de forma mais violenta, ao Brasil. Esse cenário coloca ao PSOL a necessidade de fortalecer a luta LGBT, colocando-se de forma resoluta em favor da defesa de seus direitos, tendo como prioridade:

- A politização e organização da comunidade LGBT;

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PARTE IV – OUTROS MOVIMENTOS SOCIAIS

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- Atuar nas Paradas LGBTs para converte-las em espaço de contestação política, sem perder sua irreverência e capacidade de aglutinação,

- O empenho para constituir movimentos LGBT com perfil socialista, autônomo,

críticos e que sejam capazes de dialogar com a população LGBT e o conjunto da sociedade;

- Penalizar a homofobia e possibilitar que a vivência das diferentes afetividades se dêem nos espaços públicos;

- Defender a “implantação” de políticas públicas que consolidem os direitos, hoje só acessíveis para os heterossexuais, também para os/as sexo diversos;

- Defender a ampliação do conceito de família, o que possibilitará um debate mais favorável para a construção de formas coletivas de cuidado e formação das novas gerações;

- Impulsionar a solidariedade entre os setores atacados pela direita fundamentalista.

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PARTE V

NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

Por outra civilização: Uma sociedade ecossocialista, feminista e libertária, livre de qualquer forma de exploração, dominação e preconceito.

Tese apresentada pelo Enlace no III Congresso Nacional do PSOL

I – ELEMENTOS DE PROGRAMA E DA ESTRATÉGIA DE LUTA POR OUTRA CIVILIZAÇÃO

1. O PSOL estabeleceu, com a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio à presidência nas eleições de 2010, uma delimitação programática que lhe permitiu ocupar um lugar próprio no espectro político brasileiro. Dando uma forte ênfase à luta contra a desigualdade e à necessidade de mudanças estruturais da sociedade, o partido foi capaz de se diferenciar das candidaturas de Dilma, Serra e Marina. O PSOL pode agora, em uma conjuntura de agravamento das contradições estruturais do capitalismo global e de fragilidade relativa do governo Dilma, colocar de modo muito mais concreto seu propósito de impulsionar a reorganização e a recomposição da esquerda

socialista brasileira e conectá-la com as tendências mais avançadas da esquerda mundial. Mas tem, para isso, que definir para si um programa socialista, um projeto que seja o esboço de outra sociedade e simultaneamente um chamado às lutas e um caminho para superar as principais mazelas que atingem nosso país e para ajudar a construir um movimento socialista para as condições do século XXI.

2. O programa é, na definição consagrada de Trotsky, a “compreensão comum dos acontecimentos e das tarefas”. Isso significa que o programa é muito mais do que um rol de reivindicações recolhidas dos movimentos reais. É uma visão social de mundo, um conhecimento sobre a sociedade e como encadear iniciativas políticas para transformá-la. Seu fio condutor, no caso do programa socialista, é a disputa pela estruturação do poder na sociedade, na economia e no estado: trata-se para a burguesia de organizar e reproduzir sua dominação, e para um poder nascente de desconstruí-la, suplantá-la e implantar um novo poder contra-hegemônico. É uma síntese totalizante, do ponto de vista dos explorados e oprimidos, da caracterização estrutural de uma dada etapa na luta de classes, de uma projeção da sociedade que se quer construir (envolvendo um esboço dela, capaz de ser inspiração e horizonte das lutas imediatas) e da hipótese estratégica que permite estabelecer a disputa aberta de poder em uma dada formação social.

3. Superar o desenvolvimentismo. O horizonte de praticamente todas as forças políticas e sociais brasileiras é o desenvolvimentismo: de Getúlio e Geisel até Lula e Dilma,praticamente todos buscaram impulsionar o crescimento da economia

capitalista no país (assentado principalmente na expansão do parque industrial), vista como caminho para o “progresso” - mas sempre conciliando com o extrativismo e a agropecuária exportadoras, as camadas mais profundas da formação social brasileira. Este desenvolvimentismo pode ter um caráter mais nitidamente burguês, ou ainda cores sociais ou sustentáveis; mas permanece sempre como horizonte não só das correntes políticas hegemônicas, mas também de grande parte da esquerda.

4. Este quadro é um enorme retrocesso perante o que foi o debate da esquerda latino-americana e brasileira entre as décadas de 1960 e 1980. Então, sob o impacto da revolução cubana e em ruptura com o populismo e com a política reformista dos partidos comunistas, toda uma série de correntes avançou para a ideia de que a esquerda deveria trabalhar em nosso continente para a construção de uma alternativa socialista ao desenvolvimentismo, único caminho capaz de superar as desigualdades brutais que marcam a região. Que grande parte da esquerda tenha hoje abandonado esta visão pela perspectiva de um capitalismo nacional que promova algum melhoria social dá a medida da sua profunda regressão ideológica e política depois de décadas de neoliberalismo.

5. Este desenvolvimentismo, que hoje apresenta a China como seu exemplo mais bem sucedido, nunca foi capaz de responder ao problema das desigualdades sociais inseparáveis do capitalismo, mas a questão se agravou na época da globalização neoliberal, já que a financeirização da economia aprofunda por todas as partes a injustiça social, o fosso entre ricos e pobres e as crises cíclicas da

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economia. Com um elemento novo: o desenvolvimentismo evidenciou novas e dramáticas contradições com a irrupção da questão ambiental como grande desafio da civilização no século XXI; hoje não há como não se constatar a insustentabilidade do consumismo capitalista, apontado pelos apologistas do mercado como sinônimo de progresso. E mais: nos últimos anos, a questão ambiental mostrou-se inseparável da questão energética e alimentícia, evidenciando um impasse, uma profunda crise de civilização, apenas reforçada pela

entrada do capitalismo em uma etapa recessiva prolongada, em que o salvamento do sistema financeiro internacional tem como seu corolário a recessão, o desemprego e as políticas de redução dos gastos sociais. Nunca na história humana se produziu tanto alimento, mas nunca existiram tantas pessoas passando fome como hoje em dia – mais de um bilhão de seres humanos.

6. Não é possível ao PSOL se contrapor de forma coerente a governos como os de Lula e Dilma sem apresentar um horizonte de civilização alternativo ao capitalismo, cujos contornos têm ficado cada vez mais claros nos debates altermundialistas, na discussão ambiental e na elaboração dos movimentos sociais de nosso continente (e, em especial, dos movimentos indígenas, feministas e camponeses). Não é por acaso que o debate sobre temas como o Código Florestal ou Belo Monte esteja polarizando a opinião pública progressista do Brasil.

7. Superar o horizonte produtivista. O capitalismo conheceu, nas últimas décadas, a revolução das tecnologias da informação e da

comunicação; as políticas neoliberais alimentaram uma globalização sem paralelo do capital e o saque, igualmente sem paralelo, dos territórios, das populações e dos bens comuns por todo o mundo; e a experiência soviética, degenerada em ditadura burocrática sobre os trabalhadores, entrou em colapso e abriu espaço à restauração do capitalismo. O consumismo desenfreado, necessário desde o final da Segunda Guerra Mundial à manutenção da acumulação de capital, é difundido como ideal de felicidade de amplas parcelas da população. Neste início do século XXI, a economia e o poder político estão fundidos na coalizão entre as grandes corporações transnacionais cada vez mais financeirizadas e os estados; a relação entre trabalho e capital se deteriorou drasticamente; consolida-se uma ordem geopolítica dominada quase totalmente por poucas grandes estruturas de mega-estados e para-estados (EUA e Nafta, UE, China, Japão, Rússia e Índia) que asfixiam as pequenas nações – posição que a burguesia brasileira e seu partido dirigente, o PT, almejam alcançar, ainda que como sócios menores.

8. É um cenário que exacerba as contradições do produtivismo inerente ao capitalismo. Se o PIB cresce 3,5% ao ano, atinge-se um crescimento de 31 vezes em um século e 961 vezes em dois séculos. O modo de produção capitalista só não destruiu literalmente o planeta porque seu ponto de partida foi muito estreito (uma pequena parte da Europa e dos Estados Unidos durante todo o século XIX), e porque crises e guerras destruíam parcialmente, por várias vezes, o que tinha sido produzido antes. A economia capitalista só nas ultimas décadas sofreu uma grande aceleração e passou a afetar fisicamente a dinâmica planetária de conjunto, a reprodução dos fluxos fundamentais

à manutenção da vida no Sistema Terra – até recentemente indiferente à existência da humanidade.

9. Mas agora os limites estão sendo atingidos e rapidamente ultrapassados!

10. O Brasil tem hoje uma sociedade complexa, altamente urbanizada (85% da população) e que carrega um legado histórico de profunda exclusão e brutal violência. Temos hoje megacidades segregadas e insustentáveis, ambiental e socialmente, onde a maioria da população amarga condições de vida muito penosas e a pobreza continua sendo criminalizada; uma vasta industrialização do campo, base de poderosas corporações multinacionais; importantes interesses buscando transformar o Brasil no maior produtor mundial de minérios; e, ao mesmo tempo, um parque industrial diversificado e sofisticado, mas que recua frente à importação cada vez maior de manufaturas de origem principalmente asiática.

11. O movimento socialista confrontou, ao longo de sua história, a lógica capitalista (propriedade privada dos meios de produção, competição e anarquia mercantil destrutiva, formação de oligopólios e monopólios, desigualdades crescentes...) propondo como alternativa formas de propriedade estatal geridas pelos trabalhadores e planificação centralizada da atividade produtiva. Mas estas formas de propriedade e gestão econômica não questionavam, exceto em situações muito particulares, a lógica do crescimento composto, do alucinado crescimento em cima do crescimento, o horizonte de crescimento ilimitado da produção material e nem mesmo o despotismo da grande indústria.

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12. A lógica dos bens comuns, do bem viver e da auto-organização. Um projeto socialista credível apresentado à sociedade brasileira deve expor que sociedade queremos construir no lugar daquela hoje existente. Temos não só que rechaçar o “modelo chinês”, mas afirmar um paradigma de civilização capaz de viabilizar uma economia e uma sociedade sustentáveis, um mundo que recuse o consumismo como ideal de felicidade e propósito da vida e adote a justiça social, o bem viver, a qualidade de vida, a participação e a gestão comunitária dos bens comuns como seus princípios norteadores, estabelecendo um modo de vida capaz de efetivar uma alternativa de bem-estar qualitativo ao rumo suicida que o capitalismo impõe à humanidade.

13. Frente a um contexto onde o capital avança sobre todas as dimensões da existência humana, ganha força, como alternativa, a ideia de que uma nova lógica social tem que emergir, na esfera econômica, a partir da defesa dos bens comuns (da natureza, da vida e da biodiversidade, das estruturas de uso público, dos serviços que garantem direitos fundamentais, da cultura e do conhecimento) como contraponto à privatização e apropriação capitalista destes bens. Isso significa afirmar uma lógica de gestão coletiva, pública e/ou comunitária, destes bens e serviços, só possível se o poder político for liberado de seu controle pelo capital, reconhecendo uma pluralidade de formas possíveis de gestão, mas também a necessidade imperiosa de garantir a preservação e o livre acesso a estes bens (e, portanto, com uma definição clara das responsabilidades pelo seu cuidado); apoiar-se sobre as novas tecnologias de comunicação para estabelecer a garantia ao acesso a estes bens e auxiliar na sua

gestão democrática; eliminar a compulsão ao trabalho e estabelecer novas formas de cooperação social, a partir da garantia de renda e acesso aos serviços que viabilizam uma alta qualidade de vida para toda a população.

14. Além disso, o balanço da experiência soviética difundiu o reconhecimento de que apropriedade estatal sem controle social rapidamente se autonomiza e alimenta burocracias, que utilizam o controle de riquezas públicas como fonte de poder político e privilégios. Foi esta burocracia que não teve dificuldade, na antiga União Soviética e na Europa Orienta, em converter-se em uma nova classe capitalista. A afirmação de uma economia da gratuidade e do bem estar é, pois, inseparável do exercício participativo do poder político.

15. É esta lógica social nova, de democratização e socialização radical da economia e da política que temos que construir desde hoje, embora conscientes de que ela só pode florescer plenamente se não estiver sendo asfixiada pela lógica destrutiva da concorrência capitalista e da desigualdade social que lhe é inerente. É uma lógica de solidariedade, de valorização da qualidade de vida e de desestímulo do consumismo, apresentado pela máquina publicitária como ideal de felicidade; é uma lógica de afirmação do bem-viver. Ela é hoje objetivamente muito mais factível de ser estabelecida do que no passado e mais urgente do que nunca, apesar de a avalanche do espetáculo mercantil fazê-la parecer subjetivamente mais impossível do que nunca.

16. Alterar esta percepção é precisamente o desafio político dos socialistas. Superar o individualismo, construir a solidariedade e a autonomia dos indivíduos A globalização

neoliberal cristalizou a ideia de que o individuo se realiza a despeito do/a outro/a, por meio da concorrência no mercado e do consumo – que coloniza a individualidade em suas dimensões afetivas e mesmo sexuais. Essa desumanização do homem e da mulher tem servido de combustível para a xenofobia, a intolerância e a criminalização da pobreza, sobretudo negra – uma parcela da sociedade passa a ser vista como desnecessária para a reprodução do capital, contra a qual se ergue um pesado sistema penal e uma política de eliminação física, estatal e para-estatal. Ao individualismo de mercado, devemos contrapor a lógica da solidariedade e da autonomia: autonomia das mulheres disporem sobre seus próprios corpos; autonomia dos sexo diversos para viverem sua afetividade nos espaços públicos, longe do risco de qualquer agressão, e sem qualquer dependência do mercado GLS que aprisiona a sexualidade numa lógica de medo e consumo; autonomia no uso religioso, medicinal e recreativo de substâncias psicoativas, só possível de ser conquistada pela universalização da saúde e educação pública (e não por medidas coercitivas); construção de mecanismos coletivos de cuidado e formação das novas gerações que livrem as mulheres da imposição de serem as únicas responsáveis por essa tarefa que é de toda a sociedade.

17. Qual hipótese estratégica para o Brasil?

18. Duas hipóteses estratégicas ou caminhos para a disputa do poder com a burguesia mostraram-se efetivas no século XX: a greve geral insurrecional (o modelo de Outubro de 1917, na Rússia, e também tentado em várias sociedades industrializadas, em que a coordenação de comitês operários ou sovietes emerge como um contrapoder àquele

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centralizada pelo estado burguês) e a guerra popular prolongada (o modelo das lutas de libertação nacional conduzidas com o respaldo do campesinato, como no caso chinês, em que um exército popular cria um território liberado, governo por este exército ou o partido que o controla). Nenhum dos dois é hoje viável em boa parte do mundo.

19. Também foi esboçado um terceiro caminho – historicamente bem menos efetivo – a partir do governo da Unidade Popular chileno, sob Allende presidente. Forças socialistas ganharam as eleições para o governo de um estado capitalista e buscaram fortalecer iniciativas populares na esfera da sociedade civil. Esta experiência terminou tragicamente no caso chileno e sua aplicação pelo PT, no caso brasileiro, foi igualmente desastrosa, levando à cooptação de boa parte da esquerda pelas instituições do estado. Entretanto, alguns dos movimentos políticos mais importantes da esquerda latinoamericana vêm praticando estratégias deste tipo – funcionando como alas esquerdas de governos como os de Chavez, Morales e Correa. Com a expansão das atribuições das instituições estatais, inclusive por reivindicação dos movimentos sociais que lutam por novos direitos ou pela efetivação de direitos apenas formais, é cada vez mais difícil criar um contra-poder autônomo e separado das instituições vigentes no capitalismo. 20. Por outro lado, mesmo nas experiências mais bem sucedidas, como as sul-americanas, temos inúmeros casos de destruição de movimentos autônomos pelos governos

progressistas.

21. Estas considerações têm o sentido de marcar o vazio estratégico em que nos

encontramos hoje no PSOL, que a cada dois anos participa de disputas eleitorais sem que isso se vincule a uma visão estratégica debatida e compartilhada com o conjunto da militância partidária. Temos que desenvolver uma estratégia revolucionária para uma situação não-revolucionária.

22. Temos várias pistas ou processos em que podemos nos apoiar para isso: a enorme e multifacetada conflitividade social contemporânea – dos movimentos populares urbanos às lutas indígenas, feministas e anti-racistas, dos gays e lésbicas à juventude indignada – e a possibilidade de radicalizar a subjetividade da esquerda que carregam; a permanência da contradição capital-trabalho; a eclosão explosiva da contradição capital-natureza; a unificação cada vez maior do espaço econômico e das relações políticas e sociais no espaço sul-americano; o desenvolvimento de uma nova configuração geopolítica mundial, que pode gerar novas contradições interimperialistas; a centralidade da democracia participativa e da auto-organização nos processos de mudança social e política; a centralidade de um partido socialista e revolucionário como ferramenta política no processo de transformações.

II – CONJUNTURA INTERNACIONAL

23. A situação política internacional pode ser entendida a partir de três eixos. Em primeiro lugar, prossegue a crise aberta em 2007-2008. Em fins de 2009 e ao longo de 2010 houve uma recuperação parcial (e muito desigual) da economia internacional, mas posteriormente o o quadro voltou a se

deteriorar. Isto vem se expressando, em particular, no agravamento da crise da dívida pública de diversos Estados europeus; na estagnação da economia norte-americana, que também tem tido dificuldades com relação à dívida pública, o que se combina com uma crise política do governo Obama; nos sinais de turbulência na economia que tem sido o carro-chefe da economia mundial, a da China (inflação, desaceleração industrial, bolha imobiliária); com a persistência da inflação mundial, especialmente com a elevação do preço dos alimentos. Em 2011ainda é esperado um crescimento significativo do PIB dos países ditos emergentes, embora abaixo de 2010; entretanto, as perspectivas para os próximos anos são incertas.

24. O segundo elemento que tem caracterizado a situação mundial é o recrudescimento dos ataques das classes dominantes contra as condições de vida da população. Poucas vezes a política econômica posta em prática pelos diversos governos teve um caráter de classe tão evidente como agora; seu objetivo fundamental é fazer o povo pagar os custos da crise. Esta orientação se expressa na tendência geral de adoção de políticas monetárias conservadoras, na implementação de amplos cortes do gasto público (com a redução dos gastos de saúde e educação e a quebra de direitos sociais, como aposentadorias). Estas políticas neoliberais contribuíram para sustar a incipiente recuperação econômica e para elevar as taxas de desemprego nos países centrais, especialmente na Europa. Tudo isto afeta particularmente a juventude e as mulheres.

25. Por outro lado, a resistência social a estes ataques tem-se ampliado. Desenvolvem-se

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mobilizações populares de um novo tipo (recorrem a novas formas de organização, com utilização das redes sociais, e de mobilização, como ocupações de praças e acampamentos), e tiveram início processos revolucionários.

26. As mobilizações que começaram em fins de 2010 na Tunísia deram início, em diversos países árabes (além da Tunísia: Egito, Líbia, Bahrein, Yêmen, Síria, entre outros) aos primeiros processos de revolução que enfrentam os resultados da crise econômica mundial (além de terem como eixo a luta pela democracia). Depois da queda das ditaduras, que duravam décadas, da Tunísia e do Egito, os governos ameaçados nos outros países passaram a optar por uma repressão duríssima às mobilizações populares (isto aconteceu em todos os outros países citados e, em especial no período mais recente, na Síria). Na Líbia o processo degenerou numa guerra civil, com a utilização pelo governo Gadafi de armamento pesado contra a população rebelada e com o recurso a mercenários e, por outro lado, com bombardeios por forças da OTAN. Na Síria, a mobilização tem continuado, e crescido, mesmo com um número cada vez maior de vítimas da repressão governamental. As mobilizações nos países árabes têm inspirado e estimulado processos semelhantes por todo o mundo – da China ao continente americano. Destes, as mobilizações mais massivas até agora se realizaram no sul da Europa (Estado Espanhol, Grécia) e no Chile. Na Islândia, a mobilização popular mudou a resposta nacional à crise econômica, rejeitando que o Estado assumisse a responsabilidade pela dívida financeira privada. De outro lado, as convulsões sociais na Inglaterra, associadas ao desemprego juvenil e à exclusão social, são uma

demonstração impressionante da desagregação provocada pelas respostas neoliberais à crise.

27. Ainda que não tenha havido uma mudança decisiva na correlação de forças entre as classes em nível mundial – as burguesias continuam capazes de manter sua ofensiva antipopular – não há dúvida de que em 2011abriu-se um novo período na luta de classes mundial. As grandes lutas do século XXI começaram, e as novas formas de organização e de mobilização indicam um caminho que deverá ter continuidade. O grande peso da mobilização da juventude reforça a tendência de abertura de um novo período, com a entrada em cena de novas gerações. É fundamental destacar a força do sentimento democrático e libertário e, obviamente, antiditatorial.

28. As características destas mobilizações mostram a existência de grandes possibilidades e apontam alguns desafios claros para a luta popular. Está claro, por exemplo, o grande desgaste da “esquerda institucional e parlamentar tradicional” e a necessidade de a esquerda revolucionária diferenciar-se claramente desta velha esquerda. Contraditoriamente – mas de forma não surpreendente – o quadro em que as formações da esquerda anticapitalista disputam eleições tornou-se mais difícil (como foi verificado em Portugal). Há um ascenso preocupante de alguns partidos de extrema direita, bem como o crescimento da xenofobia. Ainda que a tendência de as mobilizações assumirem crescentemente uma identidade à esquerda e anticapitalista seja clara, sua identificação com as forças organizadas da esquerda anticapitalista não é imediata. Há entre os “indignados” traços de rejeição aos partidos em geral (por razões inteiramente compreensíveis).

Por outro lado, há protestos sociais crescentes na China, que podem vir a ter um peso decisivo no próximo período.

29. A crise de 2008 provocou um certo desacoplamento da dinâmica econômica da América Latina dos centros econômicos tradicionais e um avanço da China, o que permitiu à economia dos países do continente manterem desde 2010 taxas significativas de crescimento. Este é um dos fatores que contribuem para manter na região a correlação de forças estabelecida no inicio da década, articulada principalmente em torno de governos mais autônomos frente ao imperialismo norte-americano. Entretanto, autonomia frente aos Estados Unidos não significa, necessariamente, um avanço para a região. O subimperialismo brasileiro continua se expandindo – funcionando como um fator de integração dos mercados e expropriação das populações tradicionais. As obras do IIRSA, o PAC sul-americano em boa medida financiado pelo BNDES, continuam despertando resistências, principalmente das populações tradicionais, expropriadas por projetos de mineração e o avanço da agropecuária capitalista voltada para a exportação. Na região centro-americana, o México continua sofrendo o impacto da sua dependência profunda dos EUA – que se expressa inclusive no tema do narcotráfico, que traumatiza hoje a sociedade mexicana.

30. O protagonismo dos movimentos indígenas e povos tradicionais assume um papel fundamental na região. Temos assistido a enfrentamentos crescentes entre movimentos indígenas e ambientais que criticam os projetos desenvolvimentistas de Evo na Bolívia e de Correa no Equador. Uma dinâmica semelhante

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deve, a partir de agora, ser observada também no Peru, sob Humala. No Brasil, esse protagonismo se manifesta pela resistência de indígenas, quilombolas e camponeses às grandes obras do PAC.

31. A situação de Cuba – país cuja importância para a esquerda latino-americana tem sido fundamental desde os anos 50 – necessita uma análise cuidadosa. Estão em curso reformas mercantis que, certamente, abrem novas contradições.

32. A situação socioambiental do planeta não cessa de se agravar. Desde que o quarto relatório do IPCC revelou, em 2007, o grande consenso entre os cientistas sobre o aquecimento global, a questão socioclimática só vem piorando. O fim da vigência, em 2012, do protocolo de Kyoto motivou uma série de reuniões (Copenhague, Cancun) para negociar um novo tratado que venha a ser subscrito não só pelos EUA, mas, também, pela China e demais países emergentes – até agora sem sucesso. Tudo indica que a reunião de Durban, em dezembro deste ano, seguirá o mesmo caminho. De outro lado, a crise de 2008 levou a um arrefecimento da expansão econômica global, principalmente nos países centrais, e teve como efeito positivo uma redução na emissão de gases do efeito estufa nestes países. Apesar disso, todos os indicadores (redução da calota ártica, numero de eventos climáticos extremos, elevação do nível dos mares etc) estão se movendo nos limites extremos das previsões.

33. A questão ambiental continua se combinado com a energética e a alimentícia, com graves consequências sociais. A elevação dos preços do petróleo força para cima os preços dos alimentos transformados em commodities e

das terras agrícolas, cada vez mais cobiçadas. Mais de um bilhão de pessoas passam fome (70% dos mais pobres são mulheres) e milhões estão morrendo de inanição na região do Chifre da África – enquanto o mundo produz alimentos para alimentar doze bilhões de pessoas, cinco a mais que a humanidade. A economia capitalista produz a crise socioambiental e a irradia para todas as esferas. Apesar da existência de tecnologias alternativas, as potências continuam apostando no uso de combustíveis fósseis e perigosos. E o acidente de Fukushima mostrou novamente os perigos do uso dessa matriz, reavivando o movimento mundial pela abolição do nuclear.

34. Os acidentes em plataformas no Golfo do México e no Mar do Norte não afetaram a determinação do governo Dilma em iniciar a exploração do pré-sal. O debate em torno do Código Florestal mostra a determinação da burguesia agrária em avançar sobre florestas, terras indígenas e áreas de proteção. A construção de Jirau e Santo Antonio na Amazônia está sendo acompanhada de enormes impactos socioambientais. E avança a determinação do governo Dilma de iniciar a construção de Belo Monte – apesar de sua flagrante ilegalidade, já anotada pela Corte Interamericana de Justiça –, um projeto cuja destinação é a exportação de minérios para a China.

35. Os impactos da crise ambiental recaem de forma mais dura nos países periféricos, nas populações mais pobres e, sobretudo, nas mulheres e crianças, pois elas são a maioria d@s refugiad@s climáticos e desabrigad@s. No mesmo sentido, as mudanças trazidas pela ordem neoliberal atingem intensamente as mulheres, cada vez mais

inseridas no mercado de trabalho. Há um reforço da divisão sexual do trabalho, com implicações tanto no espaço produtivo como no espaço reprodutivo, e graves reflexos na classe trabalhadora enquanto um todo. Uma parte importante da classe trabalhadora, as mulheres, têm sido instrumentalizada pelo capital como uma “porta de entrada” de precarizações em toda sorte. O recrudescimento dos ataques das classes dominantes contra as condições de vida da população afeta em especial as mulheres, tradicionais responsáveis pela reprodução e cuidado da vida, mão de obra mais precarizada e maioria entre os pobres do mundo. Em uma conjuntura difícil e diante de uma classe fragmentada, é fundamental incorporar um “olhar de gênero” no enfrentamento dos novos desafios.

III – CONJUNTURA NACIONAL

36. Há uma nova conjuntura política no país após seis meses de governo Dilma. Em primeiro lugar, há elementos de crise política no governo e na sua relação com sua base de sustentação, a partir da queda de Palocci da Casa Civil e depois de outros ministros e autoridades de diversos ministérios. Mais uma vez, avolumam-se evidências de corrupção. Com isso, o governo enfrenta desgaste. Em segundo lugar, há dificuldades no quadro macroeconômico, com excessiva valorização do real, crescimento do desequilíbrio no balanço de pagamentos em conta corrente, ampliação do passivo externo. Há um ascenso de greves no setor público, especialmente nas esferas municipal e estadual, e também no setor privado, por reivindicações salariais e defesa de direitos.

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37. O cenário externo, com as possibilidades de aprofundamento da crise, tem feito o governo Dilma, os governos da sua base de sustentação nos âmbitos estadual e municipal, os governos da oposição de direita e o grande Capital implementarem com maior intensidade a política que agrada aos “mercados”: corte de gastos públicos (sociais), arrocho e contenção do consumo, bem como aumento das taxas de juros (o que inibe o crédito e contém a demanda agregada), com o objetivo de controlar tanto a dívida pública quanto a inflação, e principalmente de manter a “confiança” dos especuladores no país. O arrocho nos salários no setor público bate com mais intensidade nos âmbitos municipal e estadual.

38. As disputas internas à base de sustentação do governo Dilma evidenciam que a amplitude desta base não é garantia de tranquilidade. Esta base é ampla, mas também heterogênea e fisiológica. Muitas disputas entre interesses políticos e econômicos diferentes passa por dentro da base governista. Não foi com os votos da oposição de direita que a revisão do Código Florestal foi aprovada, mas com votos da própria base do governo. As disputas de setores burgueses e de partidos por cargos na máquina federal e nas empresas públicas são violentas; são elas que fazem explodir as denúncias de corrupção que atingem os primeiros escalões do governo.

39. O governo tem encaminhado uma política de grandes obras, projetos e investimentos em infraestrutura e construção civil, pela via do PAC e dos megaeventos de 2014 e 2016. Este projeto tem incluído a busca da redução do custo da mão de obra – com ampla precarização de direitos, como mostraram as greves e explosões na construção civil em

março, as demais greves em obras do PAC e até dos trabalhadores empregados nas obras de reforma dos estádios para a Copa de 2014. Outros efeitos perversos destas grandes obras têm sido as remoções de populações – vinculadas à especulação imobiliária; o aumento da exploração sexual de mulheres (incluindo prostituição infantil) junto às grandes obras; e o crescimento do turismo sexual. Tem havido também uma agressão mais forte contra o meio ambiente. Mais uma vez, como dizia Marx, a produção capitalista se desenvolve levando ao esgotamento das duas fontes de que jorram toda a riqueza, a terra (o meio ambiente, as condições naturais) e @ trabalhador@.

40. Para pôr em prática esse projeto antipopular e antifuturo tem havido intensificação da criminalização dos movimentos sociais e aumento da repressão sobre greves, lutas, passeatas do movimento estudantil, ocupação de terrenos. Também têm aumentado os assassinatos de dirigentes e ativistas camponeses, especialmente no norte do país. O Rio de Janeiro se tornou um grande laboratório de políticas urbanas e de segurança centradas no controle social e na criminalização da pobreza. Prisão de usuários de drogas e trabalhadores informais, utilização do caveirão, exército nas Favelas e mesmo UPPs, o que vemos são variações do braço armado do Estado. Há um processo de formação de um Estado de exceção penal no Brasil.

41. Por outro lado, cresce a resistência social. As greves são favorecidas pelo crescimento econômico dos últimos anos; a consequente recomposição do nível de emprego deu mais confiança à classe trabalhadora. Além disso, a política de arrocho e corte de gastos sociais contrasta com as grandes despesas

voltadas para os “megaeventos”. O crescimento da resistência tem sido particularmente notável no estado do Rio de Janeiro, com a luta dos bombeiros, que terminou em uma categórica vitória sobre o governo Cabral e a repressão estatal, e com a greve dos docentes. As maiores dificuldades do governo e o aumento de seu desgaste não significam que o governo esteja mais fraco. Mas abriu-se maior espaço para a oposição de esquerda.

IV - CONSTRUIR UM PSOL MILITANTE, DEMOCRÁTICO E PLURAL

42. A adesão do PT à ordem vigente colocou a necessidade da recomposição da esquerda brasileira, sendo o PSOL o seu polo mais importante. A existência do espaço aberto pela falência do PT enquanto partido anticapitalista não significa que o momento seja fácil para a esquerda socialista. O PSOL é um partido construído a frio, sem processos ascendentes das lutas de classe no Brasil. Quadro que tornou-se ainda mais adverso com a recuperação da força do governo Lula no fim do primeiro e durante o segundo mandato e, em consequência, com a manutenção da maioria dos movimentos sociais sob o controle do social-liberalismo.

43. Nesta conjuntura, o PSOL teria dificuldades para cumprir o papel que esperávamos dele na recomposição da esquerda brasileira, mesmo se tivesse sempre tido a melhor política. Por outro lado, os erros de orientação e a precariedade da democracia interna que o caracterizaram complicaram mais

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as coisas. Em todo o período anterior ao 2º Congresso, o PSOL esteve muito aquém do necessário.

44. O 2º Congresso do PSOL, apesar de todas as suas debilidades, significou o início de um novo momento no funcionamento partidário. A maior parte dos debates se deslocou para dentro das instâncias nacionais e a tentativa de consolidar o PSOL como alternativa programática para a esquerda socialista brasileira orientou as principais iniciativas partidárias. A candidatura de Plínio Sampaio à presidência da República é um exemplo deste perfil partidário que apresenta uma alternativa socialista para o Brasil, assim como a atuação da bancada federal no debate do código florestal, da pauta LGBTT e do ficha limpa. A agenda partidária se aproximou da agenda dos movimentos sociais, deixando de ter como foco prioritário as iniciativas de apelo midiático.

45. O momento positivo iniciado no 2º Congresso, entretanto, não foi suficiente para resolver os principais problemas partidários. A democracia interna continua insuficiente; tanto no Congresso do PSOL quanto na definição da candidatura presidencial, os setores derrotados tentaram deslegitimar as instâncias partidárias, chegando a construir espaços paralelos e sequestrar o sítio do PSOL na internet. Além disso, o próprio funcionamento das instâncias partidárias, embora tenha melhorado, ainda carece de maior regularidade e formalidade. O fortalecimento das instâncias do PSOL, com reuniões regulares e circulação transparente de informações é fundamental para consolidarmos a construção de uma prática democrática.

46. Ainda vivemos uma espécie de “democracia das elites”, em que a participação nas decisões está restrita aos quadros dirigentes das correntes nacionais. Para se consolidar como referência de esquerda socialista brasileira, o PSOL deve ter a capacidade de promover disputa contra-hegemônica na sociedade, de se enraizar nos movimentos sociais e de organizar todos e todas que venham a se identificar com ele. Deve ser um partido que reúna trabalhadores, ambientalistas, estudantes, intelectuais, enfim, todos aqueles que se mobilizam e entram em confronto com a dinâmica da reprodução capitalista que se desenvolve gerando desigualdade, exclusão, degradação e violência.

47. Defendemos o crescimento do PSOL e a ampliação de sua capacidade de realizar disputa social e de intervir na realidade. Para isso, o PSOL deve capilarizar sua presença na sociedade, formando núcleos por bairros, frentes de atuação ou temas capazes de aglutinar lutadores e lutadoras sociais. Discordamos veemente daqueles que acreditam que o crescimento do PSOL deve centrar-se na conquista de figuras públicas (muitas vezes com histórico de serviços prestados ao neoliberalismo e ao conservadorismo) ou que acham que é positivo trazer setores despolitizados, que venham arrastados por aparatos ou interesses pessoais. Filiações deste tipo não apenas descaracterizam o partido quanto significam fraudar qualquer possibilidade de democracia partidária real. O PSOL deve ter a maior amplitude possível de militantes identificados com as lutas do povo e com a defesa do socialismo. Ainda que não seja correto exigir de todos os filiados um conhecimento prévio completo do programa do

partido, a discussão deste tema não pode deixar de ser feita. Além disso, é um erro pensar que uma abertura não criteriosa do partido o ajudaria a ganhar influência de massas; pelo contrário: a adesão de indivíduos ou grupos políticos que descaracterizam o PSOL afasta a militância social combativa do partido. Se é verdade que o partido precisa crescer e estar aberto para a sociedade, não é menos verdade que o principal risco que enfrentamos é o da pressão da adaptação pragmática ao eleitoralismo, e da conversão da participação eleitoral no eixo de toda a vida do partido.

48. Um partido que queira fazer disputa contra-hegemônica não pode ter seu funcionamento pautado por práticas e valores próprios à lógica capitalista e neoliberal. Não há projeto socialista que se consolide se a lógica de convívio partidário se centra na competição, na burla aos acordos construídos, nos interesses mesquinhos, ou na divisão intelectual do trabalho. O fortalecimento das instâncias, a transparência de informações, a formação política e a constituição de espaços em que o conjunto da militância participe ativamente da formulação política são fundamentais não somente por constituírem métodos mais saudáveis, mas também para que tenhamos capacidade de constituirmos o PSOL como ferramenta socialista. Não existe dissociação entre política e método.

49. Medida organizativa importante para esta conquista de capilaridade e para a concepção de partido associada a ela é a da organização setorial do partido. O partido já conta com acúmulo em setoriais como de mulheres, de comunicação e ecossocialista. Outros estão se organizando como o de direitos humanos, de diversidade sexual e o de

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legalização das drogas. Algumas experiências regionais, como a do setorial de saúde do estado do Rio de Janeiro, mostram como este tipo de iniciativa colabora para uma construção partidária saudável e para uma formulação programática consistente. Por fim, a recente ativação da Secretaria Sindical do PSOL deve ser reforçada: no complexo quadro atual do sindicalismo brasileiro combativo, nosso ponto de partida para o enfrentamento das grandes dificuldades por que passamos deve ser a construção de uma visão comum e da unidade dos sindicalistas do PSOL.

50. As direções eleitas devem sempre definir um calendário de reuniões regulares e periódicas. As atas devem ser aprovadas no início da reunião seguinte e devem estar disponíveis para todos os militantes do Partido. A política de comunicação do PSOL deve ser coordenada pela direção partidária para todos os militantes terem acesso às informações, debates e orientações.

51. Outra questão fundamental para um salto na qualidade do partido diz respeito ao funcionamento dos mandatos parlamentares. Nosso ponto de partida deve ser a compreensão de que os mandatos são de todo o partido, e não apenas dos eleitos, de seus grupos de apoio ou de suas correntes internas. Os mandatos são parte da construção partidária e da estratégia de luta coletiva; devem estar em consonância com as instâncias partidárias, e afinados com a pauta política definida por todo o partido.

52. A Fundação Lauro Campos é um importante instrumento de construção partidária. É fundamental que ela represente o conjunto da realidade partidária e estimule a formação política e a formulação programática

do PSOL. A Fundação deve colaborar com a construção dos setoriais e servir de ponte entre o partido e a intelectualidade crítica das diferentes áreas.

53. As diferentes instâncias e esferas de direção do PSOL devem seguir um critério comum em sua composição, que deve se basear na proporcionalidade direta e qualificada. Deve estar claro que nenhum cargo pode ser eleito em separado, pois isto alteraria a proporcionalidade qualificada e distorceria a participação dos diferentes setores representados.

54. O DN-PSOL aprovou uma proposta sobre Reforma Política que inclui a paridade de gênero nas representações partidárias. O congresso nacional do partido deve ser coerente com esta resolução, e aprovar a paridade entre homens e mulheres na composição de suas instâncias partidárias, assim como na Fundação Lauro Campos.

V. O PSOL E AS ELEIÇÕES

55. A campanha eleitoral de 2010 com Plínio de Arruda Sampaio foi um momento decisivo para a afirmação política e programática do PSOL. O PSOL teve uma votação significativa para mandatos parlamentares – elegendo três deputados federais, quatro estaduais e dois senadores (Marinor Brito, no Pará, eleita graças à Lei da Ficha Limpa, e Randolfe Rodrigues, no Amapá, este em uma aliança com o PTB, coligação vetada pela direção nacional do partido). Considerando que a conjuntura eleitoral era

extremamente adversa para a esquerda socialista, os resultados confirmam a viabilidade eleitoral do PSOL.

56. As eleições municipais 2012 devem significar mais um passo na construção e capilarização do PSOL. O partido deve lançar candidato em todas as capitais e esforçar-se para fazer o mesmo ao menos em grandes cidades e polos regionais. O PSOL deve no início de 2012 realizar uma conferência eleitoral onde defina linhas gerais de atuação política e definição programática para consolidar uma referência nacional de um partido identificado com a defesa de políticas voltadas para os trabalhadores, do meio ambiente, das mulheres, dos direitos humanos e da socialização do conhecimento e da cultura. Assim como contrapor-se à lógica da desigualdade, dos interesses do capital e da criminalização da pobreza.

57. Nestas eleições, o campo governista tentará consolidar sua hegemonia política avançando ainda mais sobre o maior número possível de cidades e capitais. O bloco PSDB/DEM, embora enfraquecido no Congresso Nacional conta com importantes governos estaduais e deve utilizar isto para manter sua influência nos municípios. O fracasso da proposta de refundação do PV evidencia a falta de alternativas reais no quadro político brasileiro. Não há nenhum partido nacional relevante que não seja legenda de aluguel ou tenha sua construção pautada por interesses das diferentes frações dos setores dominantes.

58. O PSOL é o único partido capaz de defender uma pauta de defesa do meio ambiente, combinada com o enfrentamento à desigualdade social e às diferentes formas de

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opressão. Nestas eleições municipais o PSOL deve se apresentar como alternativa programática, consolidando-se como referência de oposição a esquerda aos Blocos PMDB/PT ou PSDB/DEM. As alianças do PSOL devem restringir-se ao PSTU e ao PCB, partidos que também fazem oposição de esquerda ao governo e compõe o campo socialista. A política de exceções nas alianças eleitorais tem se mostrado de pouca importância para colaborar com a construção do PSOL ou da recomposição da esquerda. Em geral, tem servido muito mais para alimentar crises internas e confundir a opinião da sociedade sobre o verdadeiro papel desempenhado por estes partidos.

59. Em cidades como Belém com Edmílson e no Rio de Janeiro com a provável candidatura de Marcelo Freixo, o PSOL poderá cumprir um papel de destaque realizando uma verdadeira disputa social. O diretório nacional do PSOL deve tratar estas cidades como prioritárias para sua construção, buscando também consolidar a intervenção em outras capitais importantes como São Paulo, Fortaleza e Porto Alegre

Proposta de normas constitutivas do Enlace

Documento aprovado na IV Conferência Nacional do Enlace

Estas normas constitutivas entram em vigor desde já e serão reavaliadas na próxima Conferência Nacional da Corrente, precedida de debate nos organismos de base, de forma análoga ao processo de Democracia Direta.

1. O Enlace é uma tendência formada por militantes do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que, reivindicando-se do marxismo revolucionário, tem como objetivo central a superação por via revolucionária do capitalismo e a construção da sociedade ecossocialista e libertária – entendida como a primeira fase da verdadeira emancipação humana, a sociedade comunista.

2. O Enlace aposta na construção do PSOL como partido anticapitalista e socialista amplo, capaz de contribuir, em conjunto com outros setores, com o processo de recomposição da esquerda brasileira e internacional e com a luta pela superação do capitalismo em escala mundial.

3. São militantes do Enlace todos/as aqueles/as que:

3.1. Compreendem, aceitam e defendem seu programa, seu método e estas Normas Constitutivas;

3.2. Defendem as deliberações de suas instâncias no interior do PSOL e nos movimentos sociais;

3.3. Participam regularmente de Organismo de Base;

3.4. Fazem contribuições financeiras regulares para a tendência, de acordo com a resolução sobre o tema aprovada em Conferência Nacional, e participam de suas campanhas de finanças;

3.5. Divulgam os materiais de propaganda e agitação da tendência e zelam por sua continuidade;

3.6. Estão filiados/as ao PSOL.

4. São direitos básicos dos/as militantes do Enlace:

4.1. Eleger, na forma destas Normas Constitutivas, os/as delegados/as para as Conferências e outras atividades internas;

4.2. Ser eleito/a delegado/a, na forma destas Normas Constitutivas, para Conferências e outras atividades internas, bem como para as instâncias de direção da tendência em seus diversos níveis;

4.3. Defender internamente ao Enlace sua visão sobre qualquer ato ou problema discutido ou em discussão;

4.4. Impetrar recursos – sem efeitos suspensivos – às instâncias superiores sobre qualquer decisão adotada pelas instâncias do Enlace.

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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5. Toda adesão de militantes ao Enlace deverá ser precedida de:

5.1. Um período de discussão. A definição dos textos a serem debatidos, do período mínimo de duração e dos critérios de tal discussão é de competência exclusiva da Direção Nacional;

5.2. Uma deliberação favorável, por parte da respectiva Direção Estadual.

6. O Enlace se organiza com base nos seguintes princípios de funcionamento democrático:

a) A ampla discussão interna, com direito das posições minoritárias se expressarem e o acesso das teses e textos por toda a militância;

b) A unidade na ação (e não de pensamento, de modo que as posições minoritárias poderão continuar a se expressar internamente);

c) O respeito às sensibilidades das eventuais minorias, de maneira que elas não serão obrigadas a assumir a linha de frente da defesa e do encaminhamento das posições majoritárias. Isso não significa, entretanto, que elas poderão deixar de praticar a mencionada unidade na ação;

d) Que os/as militantes da corrente não poderão defender publicamente posições que se contraponham às resoluções aprovadas nas instâncias da organização.

e) Que os militantes da corrente têm o direito e o dever de avaliar as políticas previamente encaminhadas, buscando fazer um balanço do que foi seu significado.

7. O funcionamento democrático do Enlace se dará a partir das seguintes instâncias (em ordem hierárquica):

7.1. Conferência Nacional;

7.2. Direção Nacional;

7.3. Conferências Estaduais;

7.4. Direções Estaduais;

7.5. Conferências Municipais;

7.6. Direções Municipais;

7.7. Organismos de Base.

8. O Ativo reúne militantes da corrente que se organizam nos setoriais ou frentes de intervenção do partido como espaço privilegiado de formulação de políticas.

8.1. As deliberações dos Ativos são posições dos setoriais organizados no mesmo.

8.2. As deliberações dos Ativos devem ser encaminhadas para amplo debate e referendo das instâncias da corrente.

9. A Conferência Nacional é a instância máxima de deliberação do Enlace e suas resoluções somente poderão ser alteradas por outra Conferência Nacional. Ela será composta por delegados/as eleitos/as, com base nos critérios

definidos pela Direção Nacional (dentro dos marcos estabelecidos por estas Normas Constitutivas), em Conferências Estaduais.

9.1. São atribuições da Conferência Nacional:

a) Definir a linha política do Enlace, seu programa e seus objetivos gerais;

b) Deliberar sobre fusões ou sobre a integração com outras tendências;

c) Modificar, a partir de uma maioria qualificada de 2/3 dos/as delegados/as credenciados/as, estas Normas Constitutivas;

d) Eleger, de forma proporcional à votação obtida pelas chapas inscritas (deverão ser aceitas chapas incompletas) a Direção Nacional (definição também válida, em seus respectivos âmbitos, para as Conferências Estaduais e Municipais).

9.2. A Conferência Nacional será realizada ordinariamente no intervalo de dois anos e poderá ser convocada extraordinariamente pela Direção Nacional ou por 30% dos/as militantes do Enlace. A data da Conferência nunca poderá ser anterior a três meses da distribuição da convocatória ao conjunto dos/as militantes (definições também válidas, em seus respectivos âmbitos, para as Conferências Estaduais e Municipais);

9.3. Os estados com um número de militantes inferior ao mínimo estipulado pela Direção Nacional para a eleição de um/a delegado/a terão o direito de eleger um/a delegado/a para a Conferência Nacional;

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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9.4. Os/as delegados/as eleitos/as para a Conferência Nacional não terão mandatos imperativos. Em outras palavras, os/as delegados/as serão livres para votar, independentemente das posições adotadas pelas instâncias em que eles/as forem eleitos/as, conforme suas consciências e convicções (definição também válida, em seus respectivos âmbitos, para as Conferências Estaduais e Municipais);

9.5. Os/as delegados/as serão eleitos/as de forma proporcional à votação obtida pelas chapas inscritas (deverão ser aceitas chapas incompletas) para tal fim nas Conferências Estaduais (definição também válida, em seu respectivo âmbito, para as Conferências Municipais);

9.6. O roteiro de debates e todas as contribuições por escrito para a Conferência Nacional deverão ser previamente divulgadas na Tribuna de Debates, no período pré-conferencial, para o conjunto dos/as militantes do Enlace (definição também válida, em seus respectivos âmbitos, para as Conferências Estaduais e Municipais);

9.7. A Conferência Nacional deliberará sobre aspectos políticos e organizativos – ressalvando as exceções definidas nestas Normas Constitutivas – por maioria absoluta (50% mais um dos/as delegados/as credenciados/as) e sobre questões de encaminhamento por maioria simples (50% mais um dos/as delegados/as presentes). (definições também válidas, em seus respectivos âmbitos, para as Conferências Estaduais e Municipais).

9.8 A abertura das Conferências deverá referendar a sua pauta, eleger uma comissão de sistematização e uma comissão política. A comissão política será responsável por pensar a composição da nova Direção Nacional bem como tentar construir mediações entre possíveis propostas conflitantes. A comissão de sistematização será responsável por sistematizar as novas propostas apresentadas na conferência em consonância com as já apresentadas anteriormente.

10. A Direção Nacional é a instância máxima de deliberação do Enlace no período entre duas Conferências Nacionais. A Direção Nacional é eleita na Conferência Nacional.

10.1. A Direção Nacional será composta de forma paritária entre homens e mulheres, e procurará expressar a pluralidade étnica, geracional, das frentes e de perfil militante da organização (sindicalistas, militantes dos movimentos sociais, intelectuais etc.).

10.2 Dentre os membros da Direção Nacional, a Conferência Nacional elegerá uma Executiva Nacional. À Executiva Nacional cabe organizar o funcionamento regular do Enlace com base nestas normas constitutivas. Em sendo necessário, a Executiva Nacional poderá ser alterada pela Direção Nacional.

10.3. Os/as membros/as da Direção Nacional (inclusive os da Comissão Executiva Nacional) assumirão somente uma das seguintes Secretarias, que terão como atribuições:

a) Secretaria Executiva – convocar e organizar as reuniões da Direção Nacional; consolidar a pauta das reuniões; divulgar a pauta das reuniões para os militantes, com antecedência; redigir os relatórios das reuniões; divulgar os relatórios para o conjunto da militância e monitorar a execução dos encaminhamentos aprovados; elaborar o balanço de final de gestão, que deverá ser aprovado pela Direção Nacional, antes da Conferência Nacional que dissolverá a direção até então vigente; elaborar o roteiro que irá orientar o debate conferencial, a ser aprovado pela Direção Nacional;

b) Secretaria de Organização Interna e Democracia Direta – mapear os contatos de todos/as os/as secretários/as dos Organismos de Base e coordenar o processo de Democracia Direta no interior da organização;

c) Secretaria de Atuação no PSOL, composta pelos/as representantes do Enlace na Direção Nacional do PSOL – repassar, para a Direção Nacional, as informações debatidas na lista nacional da Executiva do PSOL; informar a Direção Nacional quando da marcação das reuniões das instâncias de direção do PSOL e suas pautas; apresentar para a Direção Nacional relatório das discussões nas instâncias do PSOL (os/as membros dessa Secretaria poderão acumular funções em outra Secretaria);

d) Secretaria de Finanças – garantir a concretização das resoluções sobre a contribuição financeira dos/as militantes da corrente e sobre a gestão e destinação de tais recursos;

e) Formação Política – Elaborar material e método para ingresso de novos/as militantes na organização, a serem aprovados pela Direção

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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Nacional; viabilizar as resoluções sobre a formação política da corrente;

f) Relações Internacionais – estabelecer contato com as organizações políticas internacionais e os partidos anticapitalistas de outros países com os quais o Enlace mantém relações; elaborar, em contato com as direções estaduais, proposta com a relação de nomes indicados para participar de espaços internacionais de formação (tal proposta deverá ser aprovada pela Direção Nacional);

g) Secretaria de comunicação e cultura – manter o sítio na internet da organização atualizado; elaborar jornal impresso mensal da organização; elaborar materiais de vídeo da organização; moderar a lista de email da direção nacional; organizar a tribuna de debates dos processos conferenciais e de democracia direta; trabalhar com as múltiplas linguagens artísticas, visando dialogar com a juventude insurgente e as populações da periferia; organizar a memória da organização;

h) Secretaria de Frentes de Atuação e Movimentos Sociais – acompanhar a intervenção da corrente nas frentes e setoriais; ajudar na organização dos ativos nacionais destas frentes; garantir que as intervenções das frentes sejam debatidas na Direção da Organização, incluindo a política de profissionalizações.

10.4. São ainda atribuições da Direção Nacional:

a) Zelar pela aplicação da linha geral definida pela Conferência Nacional, seus desdobramentos e precisões;

b) Dirigir as publicações e organizar o material de propaganda e agitação do Enlace;

c) Aprovar o orçamento financeiro e as campanhas de finanças da tendência, dando total transparência à gestão dos recursos;

d) Regulamentar e encaminhar o processo de formação política interna, conforme resolução sobre o tema adotada em Conferência Nacional, bem como as definições necessárias para a aceitação de adesões ao Enlace (conforme o item 5.1.);

e) Aprovar a criação de Direções Estaduais, segundo as necessidades de intervenção do Enlace;

f) Intervir em ou encerrar o trabalho de Direções Estaduais, somente nos seguintes casos: indisciplina grave, desagregação orgânica e repressão;

g) Requerer, por iniciativa de 2/3 dos/as membros que posições adotadas por alguma Direção Estadual, que tenham desdobramentos nacionais, sejam discutidas e eventualmente revistas na instância nacional.

10.5. Somente poderão ser eleitos/as para a Direção Nacional os/as militantes com, no mínimo, um ano de militância no Enlace. Além disso, não poderão ser reeleitos/as para a Direção Nacional militantes que já exerceram três mandatos consecutivos em tal instância. Eventuais exceções deverão ser aprovadas por 2/3 dos/as delegados/as credenciados/as na respectiva Conferência Nacional (definições também válidas, em seus respectivos âmbitos, para as Direções Estaduais e Municipais);

10.6. A Direção Nacional buscará, permanentemente, adotar deliberações por consenso progressivo. Entretanto, esgotadas todas as tentativas em tal sentido, deliberará sobre aspectos políticos, organizativos e de procedimento– ressalvando as exceções definidas nestas Normas Constitutivas – por maioria simples (50% mais um de seus membros presentes, respeitando o quórum de 50% mais um de seus membros eleitos). (Definições também válidas, em seus respectivos âmbitos, para as Direções Estaduais e Municipais);

10.7. A Direção Nacional deverá se reunir, pelo menos, trimestralmente, enquanto que a Comissão Executiva Nacional deverá se reunir quinzenalmente – de forma presencial ou virtual.

11. Por iniciativa de 30% dos membros de qualquer instância nacional, 30% dos Organismos de Base nacionalmente mapeados ou de 30% dos/as militantes da corrente será aberto um processo de Democracia Direta em torno de qualquer tema em que existam posições divergentes no interior da tendência, quando não houver nenhuma conferência nacional marcada para este fim.

11.1. Depois da abertura do processo de Democracia Direta, a Direção Nacional definirá um prazo para que a militância se manifeste em textos e propostas para a Tribuna de Debates, organizada pela Secretaria de Comunicação;

11.2. A Secretaria de Organização Interna e Democracia Direta sistematizará as posições apresentadas na Tribuna de Debates e, após aprovação da Direção Nacional, enviará um

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roteiro de debates para os/as Secretários/as dos Organismos de Base e as posições consolidadas (claramente delimitadas);

11.3. A Direção Nacional definirá um prazo para a discussão e para a votação (presencial, realizada em reunião), nos Organismos de Base, das posições consolidadas. Após a votação, os Organismos deverão encaminhar os resultados (os votos em cada posição e as abstenções), dentro de um prazo também estipulado pela Direção Nacional, para a Secretaria de Organização Interna e Democracia Direta;

11.4 Somente poderão votar os/as militantes em dia com as suas contribuições financeiras.

11.5. A Secretaria de Organização Interna e Democracia Direta contabilizará os votos e apresentará o resultado (tanto geral, quanto detalhado) para a Direção Nacional.

11.6 O resultado mencionado será a posição da corrente e deverá ser divulgado, pela Direção Nacional, para o conjunto da militância;

11.7. Em caso das posições consolidas poderem ser agrupadas, a Secretaria de Organização e Democracia Direta apresentará um relatório de sistematização a ser votado na Direção, para que a posição da corrente seja definida.

11.8. O procedimento acima mencionado também vale, com as devidas mediações, para os planos estaduais e municipais.

12. As Conferências Estaduais são responsáveis por planejar, de acordo com as deliberações das instâncias superiores, a construção e a intervenção do Enlace em seus respectivos estados. Além disso, elas podem ter como tarefas – caso inseridas dentro de um processo Conferencial Nacional – debater a pauta e eleger os/as delegados/as para a Conferência Nacional. Elas serão compostas por delegados/as eleitos/as com base nos critérios definidos pela Direção Nacional (quando inseridas dentro de um processo Conferencial Nacional) ou a partir de critérios estabelecidos pelas Direções Estaduais.

12.1. As Conferências Estaduais deverão ser realizadas dentro dos parâmetros adotados para a Conferência Nacional.

13. As Direções Estaduais são responsáveis pela direção da construção e da intervenção do Enlace em seus respectivos estados. Suas funções são de zelar pelo cumprimento das decisões das instâncias superiores e dirigir os desdobramentos a seu nível da linha nacional.

13.1. A deliberação de constituição de uma Direção Estadual deverá ser aprovada pela Direção Nacional;

13.2. As Direções Estaduais poderão criar, dividir ou mesmo encerrar os trabalhos de quaisquer Organismos de Base (ouvindo o Organismo de Base nestes casos) em suas áreas de atuação geográficas;

13.3. As Direções Estaduais serão eleitas em Conferências Estaduais especialmente convocadas para tal fim, com um intervalo de 2 anos.

14. As Conferências Municipais são responsáveis por planejar, de acordo com as deliberações das instâncias superiores, a construção e a intervenção do Enlace em seus respectivos municípios. Elas serão compostas por delegados/as eleitos/as com base nos critérios definidos pelas Direções Municipais.

14.1. As Conferências Municipais deverão ser realizadas dentro dos parâmetros adotados para a Conferência Nacional.

15. As Direções Municipais são responsáveis pela direção da construção e da intervenção do Enlace em seus respectivos municípios. Suas funções são de zelar pelo cumprimento das decisões das instâncias superiores e dirigir os desdobramentos a seu nível das linhas nacional e estadual.

15.1. A deliberação de constituição de uma Direção Municipal deverá ser aprovada pela Direção Estadual;

15.2. As Direções Municipais serão eleitas em Conferências Municipais especialmente convocadas para tal fim, com um intervalo de 2 anos.

16. Os Organismos de Base são formados por militantes de uma mesma região, frente de intervenção, trabalho específico ou, ainda, necessidade interna do Enlace. Seu papel fundamental é o de aplicar e participar da elaboração da linha política, propostas de intervenção e da construção do Enlace.

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PARTE V – NOSSO PARTIDO E NOSSA CORRENTE

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16.1. O intervalo entre as reuniões dos Organismos será de, no máximo, 30 dias;

16.2. Os Organismos deverão eleger um/a Secretário/a, com mandato revogável em qualquer tempo, com as seguintes funções (no mínimo): manter o contato com as instâncias superiores; convocar as reuniões do Organismo e as demais atividades da tendência; organizar o recolhimento das contribuições financeiras; elaborar e divulgar as atas das reuniões do Organismo; e manter atualizado o cadastro dos/as militantes do Organismo.

17. Qualquer militante que não cumpra com as obrigações definidas nestas Normas Constitutivas, que se recuse a encaminhar posições definidas pelas instâncias do Enlace ou que tenha postura incompatível com o perfil programático e os valores da tendência poderá sofrer as seguintes sanções: advertência, suspensão e desligamento.

17.1. O/a militante deve ter garantido todos os meios necessários à sua defesa (conhecimento prévio e por escrito da acusação, presença na reunião que decide a sanção, acesso aos documentos necessários à sua defesa etc.);

17.2. A definição de desligamento só poderá ser tomada pela Direção Nacional.

18. As profissionalizações políticas de militantes da corrente em organizações do Movimento Social deverão ser debatidas pelo organismo de base e/ou setorial correspondente. Havendo discordância, o caso será levado para instâncias dirigentes da corrente, respeitada a autonomia dos movimentos sociais.

19. As profissionalizações em mandatos parlamentares serão debatidas e organizadas pelas instâncias coletivas do Enlace

20. O Enlace procurará a renovação de quadros e a rotatividade de profissionalizações políticas de seus militantes em assessorias parlamentares, governos e entidades do movimento social.

21. Parlamentares e Assessores do Enlace devem, além da contribuição partidária, contribuir qualificadamente para o Enlace.

21.1. A tabela de contribuição de parlamentares e assessores do Enlace será aprovada pela Direção nacional, com base:

a) Responsabilidade das funções desenvolvidas

b) Condições materiais de vida compatíveis com as demandas

22. Esforços serão empenhados para que nas reuniões do Enlace sejam garantidos espaços para auto-organização das frentes e creches para as crianças.

23. A IV Conferência do Enlace, retomando a resolução da II Conferência Nacional, decide dissolver as estruturas da seção brasileira da Quarta Internacional no interior do Enlace. A

seção brasileira da Quarta Internacional continuará existindo, constituída pelos militantes do Enlace que se identificam com a IV. As relações da militância quartista com a Internacional serão estabelecidas a partir das estruturas de direção do Enlace, que solicitará junto ao Comitê Internacional a condição de observador da IV. A circulação de informação que se dava a partir da lista “quarta internacional brasil” será, doravante, feita pelos instrumentos de comunicação rotineiros da corrente.

24. Os casos omissos serão resolvidos exclusivamente pela Direção Nacional.