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cadernos metrópole 20 pp. 13-35 2 0 sem. 2008 Regime de acumulação e configuração do território no Brasil Lúcia Cony Faria Cidade Glória Maria Vargas Sérgio Ulisses Silva Jatobá Resumo No quadro cíclico de crise e recuperação da economia capitalista ao longo do século XX, a criação de um mercado mundial pressupunha uma relativa autonomia territorial dos Estados nacionais. Durante a acumulação intensiva, os espaços nacionais tendiam a apresentar siste- mas urbanos hierárquicos, áreas polarizadas e, freqüentemente, desenvolvimento desigual. Com a reestruturação da economia mundial em direção à acumulação flexível, algumas das regularidades começaram a se modificar. Houve conseqüências sobre o desenvolvimento econômico e sobre a dinâmica espacial de dife- rentes países, como a intensificação do papel das redes. O texto busca compreender em que medida diferentes regimes de acumulação con- dicionam diferentes formas de configuração territorial. A análise toma o cenário internacio- nal como contexto geral para processos histó- ricos do desenvolvimento espacial brasileiro. Palavras-chave: regime de acumulação; território; região; desenvolvimento territorial; desenvolvimento regional; desenvolvimento espacial brasileiro. Abstract In the cyclical background of crisis and recovery of the capitalist economy throughout the 20th century, the creation of a world market presupposed some territorial autonomy of the national States. During intensive accumulation, national spaces tended to present hierarchical urban systems, polarized areas and, frequently, unequal development. With the restructuring of the world economy towards flexible accumulation, some of the regularities started to change. There were consequences concerning economic development and the spatial dynamics of different countries, such as the growing role of networks. The text aims to understand to what extent different accumulation regimes condition different forms of territorial configuration. The analysis adopts the international scenario as background for historical processes in Brazilian spatial development. Keywords: accumulation regime; territory; region; territorial development; regional development; Brazilian spatial development.

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Regime de acumulação e configuraçãodo território no Brasil

Lúcia Cony Faria CidadeGlória Maria Vargas

Sérgio Ulisses Silva Jatobá

Resumo No quadro cíclico de crise e recuperação da economia capitalista ao longo do século XX, a criação de um mercado mundial pressupunha uma relativa autonomia territorial dos Estados nacionais. Durante a acumulação intensiva, os espaços nacionais tendiam a apresentar siste-mas urbanos hierárquicos, áreas polarizadas e, freqüentemente, desenvolvimento desigual. Com a reestruturação da economia mundial em direção à acumulação flexível, algumas das regularidades começaram a se modificar. Houve conseqüências sobre o desenvolvimento econômico e sobre a dinâmica espacial de dife-rentes países, como a intensificação do papel das redes. O texto busca compreender em que medida diferentes regimes de acumulação con-dicionam diferentes formas de configuração territorial. A análise toma o cenário internacio-nal como contexto geral para processos histó-ricos do desenvolvimento espacial brasileiro.

Palavras-chave: regime de acumulação; território; região; desenvolvimento territorial; desenvolvimento regional; desenvolvimento espacial brasileiro.

AbstractIn the cyclical background of crisis and recovery of the capitalist economy throughout the 20th century, the creation of a world market presupposed some territorial autonomy of the national States. During intensive accumulation, national spaces tended to present hierarchical urban systems, polarized areas and, frequently, unequal development. With the restructuring of the world economy towards flexible accumulation, some of the regularities started to change. There were consequences concerning economic development and the spatial dynamics of different countries, such as the growing role of networks. The text aims to understand to what extent different accumulation regimes condition different forms of territorial configuration. The analysis adopts the international scenario as background for historical processes in Brazilian spatial development.

Keywords: accumulation regime; territory; region; territorial development; regional development; Brazilian spatial development.

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Introdução1

A fase contemporânea do desenvolvimento econômico internacional que seguiu o for-dismo ou regime de acumulação intensiva caracteriza-se pela emergência do capital financeiro e pela acirrada competitividade, apoiadas por acelerados avanços tecnoló-gicos e flexibilidade nos métodos de pro-dução e de gestão. É também conhecida como regime de acumulação flexível. En-tre as tendências das últimas décadas está a constituição, consolidação e expansão de blocos econômicos que limitam a autono-mia dos Estados sobre decisões relativas a seus territórios e estabelecem uma escala supra-regional e a mescla de redes mate-riais e imateriais de apoio à acumulação sobre os territórios nacionais. Outra ten-dência é o aumento das conexões diretas entre empresas transnacionais localizadas em centros metropolitanos mundiais e em-presas subordinadas em centros regionais e locais de outros países, cujas atividades se regem, dessa forma, de acordo com in-teresses externos. No Brasil, esse desen-rolar tem adquirido contornos expres-sivos, ilustrando a necessidade de uma reinterpretação, não apenas de processos concretos como também de concepções encarregadas de dar sentido a esses mo-vimentos. O objetivo deste trabalho é compreender, no quadro de diferentes regimes de acumu lação comandados pela escala mundial e seu centro hegemônico, como a dinâmica do desenvolvimento bra-sileiro recente se relaciona com a configu-ração territorial do país.

Um dos aspectos marcantes do de-senvolvimento brasileiro são os contrastes

entre riqueza e pobreza produzidos e re-produzidos ao longo de sua história. As desigualdades sociais são visíveis quando se comparam os níveis de renda, de qualidade de vida e de vulnerabilidade dos distintos grupos da população. Embora em um mes-mo país, ricos e pobres parecem viver em dois mundos extremamente diferentes. As desigualdades entre os ramos da econo-mia se expressam nos grandes diferenciais de produtividade, qualificação e remune-ração que refletem diferentes níveis de investimentos, complexidade tecnológica, formalidade e informalidade das diferen-tes atividades. As desigualdades espaciais manifestam-se nos centros metropolitanos e urbanos, por meio da segregação, e, ain-da, nas áreas rurais, articuladas de forma diferenciada aos processos de acumulação vigentes. Acompanham as desigualdades sociais, econômicas e espaciais processos intensos e continuados de degradação do meio ambiente.

No quadro do Estado reformado, com grandes restrições de recursos para inves-timentos públicos, políticas de apoio ao de-senvolvimento social e de proteção ao meio ambiente apresentam alcance limitado. A lógica que se impõe, apoiada por fortes pressões na arena política, facilitada pela disseminação de uma ideologia consumista e temperada por um mercado de trabalho altamente excludente, é a dos requisitos da acumulação. Dadas as diferentes dimen-sões desses apoios, uma das mais relevan-tes e menos comentadas é a organização territorial. Na fase de industrialização, por trás de um discurso desenvolvimentista, a malha territorial implantada pelo Esta-do foi estratégica para expandir a atuação de grupos regionalizados para a escala

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nacional. A captura do Estado por frações do Centro- Sul, sob o discurso das desigual-dades regionais e da integração, foi muito bem documentada por Chico de Oliveira (1977, pp. 75-78).

Em anos recentes, as redes territoriais têm servido de base para interesses nacio-nais e também internacionais voltados para a consolidação de áreas produtivas em ativi-dade e para a incorporação de novas áreas ao modelo dominante. Um exemplo obser-vado por Silva são as agroindústrias, cres-centemente articuladas a redes de apoio ur-bano, redes técnicas e redes de escoamento da produção (2008). Configura-se um cená-rio no qual forças internas e externas atuam sobre o Estado para garantir a implantação e manutenção de uma malha territorial em sintonia com os requisitos da acumulação. Assim, entre as questões de reflexão estão: Quais as relações entre mudanças no regime de acumulação e dinâmica territorial? Qual o papel do Estado e das políticas públicas de desenvolvimento na configuração do territó-rio brasileiro?

Um dos pressupostos deste trabalho é que o contexto socioeconômico e ambien-tal concidiona ações públicas e privadas de gestão do território. Os resultados dessas ações tendem a se projetar sobre diferen-tes dimensões, entre as quais a organiza-ção espacial. Outro pressuposto considera que processos dominantes com gênese na escala mundial, embora sem um rebati-mento mecânico ou absoluto, tendem a se refletir na escala nacional; essa, por sua vez, apresentaria efeitos sobre a escala regional e a local. Uma perspectiva com-plementar é a análise da dinâmica tem-poral, que pode ser compreendida com o auxílio da periodização. Na medida em que

se trabalha com escalas, uma periodização no âmbito mundial, mais amplo, pode ser desdobrada ou ajustada ao se tratar da escala nacional e assim sucessivamente. Períodos mais recentes podem ser tra-tados em mais detalhe do que perío dos anteriores.

Considerando a necessidade de um tratamento específico para os sistemas explicativos de referência, o próximo item trata de formulações teóricas que servem de apoio para a discussão dos processos em análise. Em seguida, apresentam-se aspec-tos essenciais para a compreensão do con-texto mundial e suas transformações em décadas recentes, em dois períodos: a fase de acumulação intensiva e a fase de acumu-lação flexível. Após, trata-se dos rebati-mentos dessas mudanças na escala Brasil e sua combinação com processos nacionais, por meio de uma periodização articulada à escala mundial. As notas teóricas a se-guir abordam, na primeira parte, os temas espaço, território e região e, na segunda, desenvolvimento, regime de acumulação e produção do espaço capitalista.

Notas teóricas: dinâmica do espaço, desenvolvimento e configuração territorial

Espaço, território e região

A temática relativa ao território e à região pode ser inicialmente referida a uma conceituação do espaço mais abstrata e abrangente. Para Santos, o espaço inclui

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uma combinação de materialidade e da vida que a anima. Para o autor, pode-se conside-rar o espaço como

[...] formado por um conjunto indisso-

ciável, solidário e também contraditório

de sistemas de objetos e sistemas de

ações não considerados isoladamente,

mas como o quadro único no qual a his-

tória se dá. (Santos, 1996, p. 51)

A natureza do espaço seria, então, fruto do fato de que ele é formado tanto pelo resul-tado material das ações da sociedade na his-tória como pelas ações contemporâneas que lhe concedem um dinamismo e uma funcio-nalidade (ibid, pp. 85-86)

A visão dinâmica do espaço é compar-tilhada por Doreen Massey, que enfatiza também os aspectos relacionais e a plurali-dade. Massey aborda o espaço por meio de proposições. Primeiro, reconhece o espaço como o produto de interrelações, consti-tuído de interações, desde o imensamente global até intimamente pequeno. Segundo, apresenta o espaço como a esfera na qual é possível a existência da multiplicidade, uma pluralidade na qual coexistem distin-tas trajetórias. Terceiro, vê o espaço como em permanente construção, produto de relações embutidas nas práticas materiais, sempre em processo de fazer-se, jamais acabado, nunca fechado. A autora acres-centa que não apenas o espacial é político, mas que algumas perspectivas específicas podem afetar questões políticas (Massey, 2008, pp. 29-30).

Uma visão complementar é a pers-pectiva do território, que enfatiza os as-pectos materiais e inclui um viés político. Território, para Paul Claval, diz respeito

ao espaço de uma nação sendo estruturado por um Estado. Território combina-se, para o autor, aos processos de soberania, poder e controle. Expressa, ainda, uma dimensão simbólica, um sentido de enraizamento, uma construção compartilhada e um papel na construção das identidades sociais (Cla-val, 1999, pp. 8-11 e 16).

Para Santos, não é o território pro-priamente dito e sim sua utilização que o torna objeto da análise social, uma noção em constante revisão que tem de perma-nente o fato de ser nosso quadro de vida (Santos, 1998, p. 15). Para Raffestin, ter-ritório é um espaço no qual “se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüên cia, revela relações marcadas pelo poder” (1993, pp. 143-144).

Variável ao longo do tempo, a região era vista pela geografia clássica como uma unidade espacial caracterizada por relativa autonomia funcional. O espaço geral era, assim, constituído como um mosaico des-sas unidades funcionais, por sua vez clara-mente diferenciadas. A abordagem sistêmi-ca retomou o conceito, adaptando-o à sua perspectiva. Assim, passou a uma explicação da lógica interna regional que enfatizava a articulação funcional da hierarquia urbana e a caracterização dos fluxos atuantes. A articula ção regional era vista, nessa pers-pectiva, como um sistema regional (Gómes Mendoza et alii, 1982, pp. 64 e 70).

Na visão contemporânea de Santos, a partir da perspectiva do planeta e da his-tória como totalidades em transformação, energizada pela divisão internacional do tra-balho, a região e o lugar expressariam as-pectos funcionais e permitiriam a percepção empírica do mundo. A partir da divisão dos recursos totais do mundo, de sua distribuição

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diferencial e de sua combinação local, cada região ou lugar adquire sua especificidade. Assim, sua significação decorre da totalidade de recursos e responde à dinâmica histórica (Santos, 1996, p. 131).

Ann Markusen, tendo em vista a difi-culda de de conceituar região de forma dis-sociada do marxismo e de uma teoria do desenvolvimento, parte de um conceito ope-racional, aplicado aos Estados Unidos. Con-sidera região como um território delimita-do, maior do que uma região metropolitana padrão (SMSA). Naquele país, as desigual-dades regionais, em larga medida, foram absorvidas pela generalização de um padrão de acumu lação. Assim, para a autora, muito mais útil é o conceito de regionalismo. Este pode ser considerado inicialmente como a adoção de uma demanda territorial por al-gum grupo social (Markusen, 1980b, p. 3). A autora acrescenta:

Nos últimos cem anos, muito mais do

que demandas econômicas ou cultu-

rais, a estrutura política e o poder po-

lítico têm crescentemente se tornado

as causas e objetivos do regionalismo.

(Ibid., p. 38)

Avançando na argumentação, a autora enuncia:

O Estado é aquele conjunto identificá-

vel de instituições que organizam e

intervêm sobre todos os outros aspec-

tos da vida social, codificado na lei e

apoiado pela ameaça de poder de polí-

cia. (Ibid., p. 9)

Considerando o Estado e suas relações po-líticas como a chave para uma caracteri-zação abstrata do regionalismo, a autora

conceitua: “Regionalismo é uma demanda política de um grupo social identificado ter-ritorialmente contra um ou vários mecanis-mos do Estado.” Markusen acrescenta que se as relações sociais são o sujeito do regio-nalismo, as demandas políticas sobre o Esta-do são o seu objeto. A partir daí, a pesquisa-dora busca uma possível definição de região como “uma unidade territorial com alguma forma de status político, real ou pretendido” (ibid., pp. 13, 15 e 16).

Alain Lipietz, ao abordar o caso fran-cês, também privilegia as relações sociais, mas reflete uma situação de desigualdades regionais mais significativas do que nos Es-tados Unidos. Afirma que os espaços devem ser definidos a partir de análises concretas e suas diferenças apreendidas a partir de diferentes tipos de dominação e de articula-ção dos modos de produção (1979, p. 36). O autor observa também as relações entre as instituições e centros de poder político e a distribuição do espaço socioeconômi-co. Acrescenta que, na dimensão espacial, temos a intervenção da instância política: a) na reprodução da espacialidade do mo-do de produção, ligada à administração do território; e b) na articulação espacial dos modos de produção, ou na evolução das ar-mações regionais, que seria ligada à ação regional (ibid., pp. 175-176).

A abordagem pode ser complementa-da com uma breve visão sobre redes. Para Raffestin,

Uma rede é um sistema de linhas que

desenham tramas. Uma rede pode ser

abstrata ou concreta, invisível ou visí-

vel. A idéia básica é considerar a rede

como algo que assegura a comunicação.

(1993, p. 156)

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No entender de Santos, as redes podem ser interpretadas do ponto de vista da realidade material e da dimensão social. Pelo ângulo da realidade material, N. Curien conceitua rede como

[...] toda infra-estrutura permitindo o

transporte de matéria, de energia ou

de informação e que se inscreve sobre

um território onde se caracteriza pela

topologia dos seus pontos de acesso ou

pontos terminais, seus arcos de trans-

missão, seus nós de bifurcação ou co-

municação. (Cf. Santos, 1996, p. 209)

Considerando a dimensão social, a “rede é uma imagem do poder ou, mais exatamente, do poder do ou dos atores dominantes” (Raffestin, 1993, p. 157). A ênfase nos as-pectos hierárquicos apresenta-se não somen-te nas redes de comunicação construídas ao longo da história para controlar territórios, mas também nas redes da atualidade.

O contexto do avanço do capitalismo é de barreiras e incertezas. Para Harvey, não somente a racionalidade intrínseca à geo-grafia histórica do capitalismo, mas também suas contradições são essenciais ao entendi-mento do processo. Algumas necessidades contribuem para conformar o espaço, como a aceleração do tempo de turnover e a eli-minação de barreiras espaciais. A acelera-ção do tempo de turnover implica diminuir o tempo de circulação do capital e acelerar o ritmo do desenvolvimento. Investimentos de longo prazo, no ambiente construído, como a infra-estrutura de apoio à produ-ção, ao consumo, às trocas e à comunicação e, ainda, projetos governamentais de largo horizonte são precondições para esses ga-nhos (Harvey, 1997, p. 411).

A abordagem acima apresentou, à luz do desenvolvimento capitalista, breves co-mentários com vistas a um encadeamento entre os conceitos de espaço, território, re-gião e redes, buscando uma interpretação com base na geografia histórica do capita-lismo. Para subsidiar a análise de proces-sos históricos na escala mundo e na escala Brasil, que seguem mais abaixo, apresenta-se a seguir breve abordagem sobre aspec-tos espaciais do desenvolvimento.

Desenvolvimento, regime de acumulação e produção do espaço capitalista

Tendo em vista as aceleradas mudanças do mundo contemporâneo diante da globaliza-ção, um tema que suscita amplos debates é do desenvolvimento. Ainda assim, por um longo tempo, a questão das causas e condi-ções do desenvolvimento tem ocupado não apenas análises, mas também proposições de políticas cujos resultados têm se mostrado no mínimo incertos. Um dos aspectos particula-res é a questão do desenvolvimento desigual, que não se restringe a setores e ramos da economia, mas ocorre também no tempo e entre regiões. Na visão da economia política, o desenvolvimento espacial desigual se refere ao progresso diferencial das relações sociais capitalistas e setores ao longo de territórios (Markusen, 1980a, p. 32). Uma perspecti-va de análise seria a da divisão regional do trabalho ou do processo de acumulação de capital e de homogeneização do espaço eco-nômico (Oliveira, 1977, p. 25).

Segundo Smith, duas tendências con-traditórias atuam na produção do espaço capitalista: a diferenciação e a equalização.

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O resultado dessa contradição na paisagem aparece como o padrão existente de desen-vol vimento desigual. A tendência à diferen-ciação espacial de níveis e condições de de-senvolvimento teria como base histórica a divisão do trabalho na sociedade, que traria implícita a divisão territorial do trabalho. Ainda que as condições naturais tenham sido uma fundação original da divisão do trabalho, em sociedades mais desenvolvidas, essa reflete uma dinâmica social relaciona-da ao consumo produtivo e ao desenvolvi-mento das forças produtivas (Smith, 1988, pp. 149 e 152-153).

Ao lado da tendência para a diferencia-ção, Smith observa que existe uma tendên-cia do capital para uma equalização. Assim, ainda que o espaço geográfico se diferencie internamente em espaços absolutos distin-tos, em diferentes escalas, o espaço global é produzido como um espaço relativo. Dessa forma, a necessidade de expansão de merca-dos pelo espaço global e, ainda, a tendência à uniformização das condições de produção e do desenvolvimento das forças produti-vas seriam fatores de uma equalização. A contradição entre a tendência à diferencia-ção e a tendência para a equalização seria determinante do desenvolvimento desigual. Assim, a acumulação de capital cresce, por um lado, por meio do desenvolvimento da divisão do trabalho e, por outro lado, pelo nivelamento de modos de produção tradi-cionais às condições de produção dominan-tes (ibid., pp. 169-170).

Em visão que revisita e reconceitualiza abordagens anteriores, Brandão propõe al-guns processos-chave para a compreensão do movimento desigual da acumulação de capital no espaço. Para o autor, a análi se crí-tica necessita de uma verificação articulada,

nos recortes territoriais, dos seguintes pro-cessos: 1) homogeneização; 2) integração; 3) polarização; e 4) hegemonia. O autor acrescenta que todas as linhas de análise so-cial que trataram do desenvolvimento desi-gual dos espaços regionais trataram desses processos por meio de proposições teóricas (Brandão, 2007, p. 70).

O primeiro processo é o de homogenei-zação. A homogeneização seria uma forma de estabelecer requisitos básicos universais para a valorização do capital, dessa forma tornada progressivamente mais ampla. O segundo processo é o de integração. Na vi-são de Brandão, a integração trata da dinâ-mica coercitiva da concorrência, que passa a atuar nos espaços abertos pela homoge-neização de forma seletiva e impositiva. O terceiro processo é a polarização. O avanço das forças produtivas incorre em polari-dades, “campos de forças” distribuídas no espaço de forma desigual; e centralidades, que expressam estruturas de dominação ca-racterizadas pela assimetria e pela irreversi-bilidade. O quarto processo é o de hegemo-nia. O autor esclarece que a configuração política e a correlação de forças de um país expressam cortes regionais e locais bastan-te nítidos (ibid., pp. 71-83).

Os processos que se estabelecem no espaço em decorrência da dinâmica da acumu lação contribuem para estabelecer uma configuração territorial em contínua mutação. Além disso, para compreender processos espaciais é essencial incorpo-rar uma perspectiva histórica. No caso de processos que se originam na escala mundial e se expandem pelos espaços na-cionais, embora caiba evitar rebatimen-tos mecanicistas, é útil referir-se a ten-dências relativas à acumu lação intensiva

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e à acumulação flexível e sua expressão espacial.

Para Santos, a configuração territorial se compõe do conjunto de sistemas naturais e dos acréscimos superpostos pela socie-dade em uma área ou país (Santos, 1996, p. 51). Assim, as combinações associadas ao fordismo podem ser consideradas como decorrentes da necessidade de utilização ampla de recursos e produção em larga es-cala, com vistas a atender a um consumo de massa. Ao mesmo tempo, segundo Cidade, em sintonia com os fatores clássicos de lo-calização, as grandes unidades de produção buscavam localizar-se em áreas próximas a fontes de matérias-primas ou a mercados, como forma de diminuir os custos de trans-portes. A formação de complexos indus-triais e a expansão metropolitana, propícias às economias de escala e de aglomeração, representaram a configuração territorial típica do fordismo. Outras tendências do sistema, como a concentração e a centrali-zação de capitais e a proliferação de empre-sas multinacionais, atuaram no sentido de acentuar ainda mais essas formas (Cidade, 1999, p. 229).

No quadro das relações entre processos econômicos e sua expressão espacial, Benko identifica uma disjunção que ocorre devido à reestruturação produtiva; o resultado seria um “mosaico de territórios diferenciados”. Entre as estruturas articuladas à acumula-ção flexível estariam os pólos tecnológicos, integrados a redes mundiais de tecnologia e produção e com o potencial de atuar na liga-ção entre os quadros produtivos nacionais e internacionais (Benko, 1996, pp. 24-25).

Além das empresas de produção flexí-vel e dos pólos tecnológicos, o pós-fordismo

incorpora empresas específicas, caracte-rísticas da etapa anterior. A configuração territorial resultante, que combina formas diferenciadas, reflete essa convivência ao mesmo tempo em que lhe dá suporte. As-sim, complexos produtivos que ultrapas-saram a crise do modelo de acumulação intensiva e se integraram ao novo sistema convivem com novas áreas de articulação aos circuitos produtivos. Ao se adaptarem às novas tendências, algumas áreas passa-ram a se organizar sob a forma de sistemas produtivos espaciais de diferentes níveis e com distintas formas. Algumas dessas áreas apresentam potencialidades para processos de desenvolvimento a partir de uma base tecnológica e gerencial que favorece a ino-vação. Além disso, o desenvolvimento local baseado na competitividade, na inovação e em modelos de gestão depende de qualifi-cações nem sempre disponíveis. Assim, a constituição diferencial dessas novas áreas de acumulação pode acabar contribuindo indiretamente para o aumento das desigual-dades regionais.

Para compreender as relações entre mudanças no regime de acumulação e di-nâmica territorial e, também, o papel do Estado e das políticas públicas de desen-volvimento na configuração do território brasileiro, é necessário ir além das refle-xões conceituais. Em sintonia com o pres-suposto da influência de processos globais em diferentes escalas, apresenta-se a se-guir um breve resgate do contexto social, econômico e político mundial em seu de-senvolvimento histórico a partir do século XX. Mais adiante, discute-se a dinâmica brasileira articulada a esses processos e seus efeitos territoriais.

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Processo de acumulação e configuração do território em escala mundial

O avanço da racionalidade e da ciência oci-dental têm servido de base para um proces-so de desenvolvimento que se caracteriza por uma crescente produção de mercadorias e por um insaciável uso dos recursos da na-tureza. Na outra ponta do circuito produtivo está a esfera do consumo que, com base em necessidades criadas, realimentadas e per-petuadas, é levada a atuar em sintonia com as exigências de uma produção voltada pa-ra a garantia e a multiplicação do lucro. No Brasil, ao lado de uma oferta transbordante de bens e serviços mais e mais associados a interesses internacionais, encontra-se cada vez menos autonomia nas atividades econô-micas nacionais, o que se particulariza nas escalas regional e local. Mesmo os ramos mais tradicionais, como alimentos e vestuá-rio, e mesmo as áreas mais remotas acabam se modificando para abraçar conveniências tecnológicas, muitas vezes, no interesse de capitais de origem longínqua. Essas trans-formações, que também influenciam as formas de consumir, refletem tendências de longo prazo no quadro produtivo brasi-leiro. Essa dinâmica, por sua vez, encontra condicionantes históricos em processos de transformação que, ditados pelos centros hegemônicos, se estabeleceram ao longo do último século.

Fordismo e configuração de território mundial até o final dos anos 1960

Cenário socioeconômico do fordismo mundial até o final dos anos 1960

Os grandes construtores da atual integra-ção de mercados foram os Estados Unidos que, acompanhados de outros países cen-trais, estabeleceram as bases de uma nova etapa da acumulação capitalista ao longo do século XX. Esse processo pode ser dividido em duas fases: enquanto a primeira começa no início do século e se prolonga até o final da década de 1960, a segunda se inicia na década de 1970 e alcança o final dos anos noventa, avançando sobre os primeiros anos do século XI.

Na primeira fase, a sociedade deu gran-des saltos no conhecimento científico, esta-beleceu avanços significativos na capacidade de produzir mercadorias e deu continuidade à disseminação da ideologia do progresso. Em suas manifestações culturais, o período pode ser considerado como um prolonga-mento da modernidade; em sua expressão socioeconômica, identifica-se com o fordis-mo ou regime de acumulação intensiva. Na segunda fase, mantendo uma continuidade nas grandes tendências do sistema, o capi-talismo mundial estabeleceu mudanças que serviram de escudo no enfrentamento de crises. Do ponto de vista cultural, esse pe-ríodo identifica-se com a pós-modernidade, enquanto, nos aspectos socioeconômicos,

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equaciona-se com o pós-fordismo ou regime de acumulação flexível.

A periodização adotada não pretende enquadrar diferentes países em modelos es-tanques; pretende identificar tendências que podem predominar em algumas áreas e se manifestar de forma incompleta ou modifi-cada em outras. Dessa forma, a breve abor-dagem sobre esses processos gerais procura delinear seus principais condicionantes como referência para a interpretação de suas ma-nifestações em países periféricos. No Brasil, a dinâmica econômica internacional, ao se projetar sobre o território do país, contri-buiu para estabelecer os parâmetros de de-senvolvimento. Por sua vez, a incorporação nacional no padrão de acumulação dominan-te foi instrumental para relativizar os efeitos de crises internacionais.

Para fazer frente aos altos e baixos da economia capitalista e à longa recessão dos anos trinta, o governo norte-americano foi forçado a abrir mão de preceitos até então prevalecentes de soberania do mercado. Passou a pautar-se por ações de cunho key-nesiano voltadas para elevar a capacidade de compra da população. Um dos autores que abordam o tema com uma perspectiva territorial é David Harvey. Para o estudio-so, dois pontos de apoio sustentaram o rá-pido crescimento da demanda efetiva. Um importante sustentáculo foi a disponibilida-de de uma força de trabalho qualificada nas regiões de acumulação mais avançadas dos Estados Unidos, Europa Central e Japão. Outro apoio substancial foi a reconstrução de países arrasados pela Segunda Guer-ra Mundial, com papel ativo do Estado, acompanhado pela renovação urbana, pela expansão espacial de redes de transpor-tes e comunicações e pela oferta de infra-

estrutura em países centrais e também nos periféricos. O poder de controlar um mercado mundial que se massificava foi um dos desdobramentos de uma racionalidade ditada por redes financeiras hierarquizadas (Harvey, 1991, p. 132).

Cenário produtivo do fordismo mundial até o final dos anos 1960

As grandes mudanças que marcaram o perío do em análise resultaram, em larga medida, da organização produtiva que se tornou característica do fordismo e que serviu de base para o rápido crescimento e a larga expansão desse modelo a partir dos Estados Unidos. Uma das principais bases do sistema foi o taylorismo e sua proposta de administração científica, que se desdobrou na linha de montagem, essencial para a pro-dução em larga escala e para o consumo de massas. Em conjunto, essas características se tornaram as grandes responsáveis pela expansão econômica dos países da Europa Ocidental e do Japão que, a partir dos anos cinqüenta, também passaram a adotar a produção em moldes fordistas.

Para alguns autores, como Aglietta, entre as principais transformações pro-movidas pelo sistema fordista estão mu-danças substanciais no processo de tra-balho e nas condições de vida do opera-riado, entre as quais o aumento do nível de consumo e uma maior atuação dos sindicatos em torno de interesses coleti-vos. Para Aglietta, o fordismo pressupõe que o processo de produção se articula ao modo de consumo no que foi chamado de regime de acumulação intensiva. Enquan-to o trabalho assalariado se universaliza,

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seu conteúdo particular é a produção em massa (Aglietta, 1979, p. 117).

Outro autor que trata do fordismo é Lipietz, para quem o modo de distribuição continuada do produto, encarregado de di-rigir a congruência entre as mudanças nas condições de produção e nas de consumo em um dado período, é o que se chama de regime de acumulação. Seria, então, preciso que se cumprissem alguns requisitos, encar-regados de garantir a reprodução continua-da do regime de acumulação; isso seria feito pelo modo de regulação, um sistema de for-ças institucionais, normas e comportamen-tos que, por meio de práticas coercitivas ou incitativas, levam os diferentes grupos so-ciais a se adequarem a essas forças (Lipietz, 1982, pp. 5-6). As mudanças provocadas na esfera da produção e do consumo, ao se ge-neralizarem nas economias avançadas, alte-raram de forma intensa as relações sociais, enquanto afetaram profundamente o modo de interagir com o território.

Efeitos do fordismo sobre a organização espacial mundial até o final dos anos 1960

No período em questão, ao lado da expan-são da industrialização nos países avança-dos, verificou-se grande crescimento agrí-cola e um aumento substancial da população vivendo em cidades e áreas metropolitanas. Palco de um processo de desenvolvimen-to continuado, esses países já dispunham ou tinham condições de construir suporte territorial e infra-estrutura em nível su-ficiente para dar continuidade à acumula-ção, em parte concentrada em complexos industriais. Ao mesmo tempo, países que

recém-adotavam processos de substituição de importações como um caminho para o desenvolvimento tinham menos condições de absorver o modelo fordista. Assim, a desigualdade foi uma das características, tanto dos processos de acumulação que aí se estabeleceram como da configuração ter-ritorial resultante. Na medida da ampliação do padrão de acumulação para novas áreas, pode-se identificar também uma tendência à equalização.

A expansão do fordismo pelo espaço mundial sob influência norte-americana, pro-gressivamente, levou sua racionalidade não apenas para a esfera da produção, mas tam-bém para a do consumo, com repercussões sobre as dinâmicas sociais, culturais e ter-ritoriais. Após uma fase de expressivo crescimento, o modelo atingiu seu limite e iniciou uma trajetória de declínio e crise, que levou à necessidade de uma reestrutu-ração. Com vistas a garantir a sobrevivência do modelo capitalista, a partir dos anos se-tenta e até os dias de hoje, estabelecem-se mudanças significativas no sistema que vêm alterando em larga medida as relações entre países e sua dinâmica social e econômica.

Pós-fordismo e configuração do território mundial a partir dos anos 1970

Cenário socioeconômico do pós-fordismo mundial a partir dos anos 1970

Ao lado do crescimento e fortalecimento da hegemonia norte-americana, começou a aparecer uma nova configuração geopolítica a partir da emergência da União Européia e

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do bloco asiático, que passaram a demandar maior participação na economia mundial. Após um período de crescimento durante os anos cinqüenta e sessenta, a primeira crise do petróleo, de 1973, ocorreu a partir de um cenário de abundância de dólares, au-mento de preços e insegurança financeira na esfera internacional. A reestruturação eco-nômica, bem como modificações no quadro social e político internacional, foi essencial para assegurar o retorno a uma trajetória de crescimento.

O papel central da dominação dos Es-tados Unidos, segundo Arrighi, manteve-se por meio de aspectos estratégicos essen-ciais. Entre eles está o papel do Federal Reserve System e bancos centrais de países associados no controle da moeda no mundo; a capacidade de definir o ritmo e os rumos da liberalização comercial; e o aumento da participação de grandes companhias trans-nacionais nos negócios mundiais, em par-ticular diminuindo o peso das transações comerciais com relação aos investimentos diretos (Arrighi, 1996, pp. 72-73).

Uma das características das companhias multinacionais do século XX, para Arrighi, era seu cunho comercial e sua especialização funcional, em concorrência ou cooperação com outras empresas do mesmo tipo, em processos produtivos localizados em dis-tintos territórios. Para o autor, o aumento de quantidade desses estabelecimentos tem relações não apenas com sua especialização funcional, mas também com sua capacida-de de atuar em diferentes territórios. Ao se iniciar a crise da hegemonia dos Estados Unidos, com a continuidade das disputas com a antiga União Soviética, nos primeiros anos da década de setenta, as multinacionais mantinham elevado nível de autonomia. Seu

sistema produtivo, comercial e de reinvesti-mento, que alcançava a escala mundial, além de contornar o poder do Estado, era capaz de promover seus interesses à revelia dos interesses, não apenas dos Estados Unidos, mas também de outros países. Para Arrighi, o resultado mais significativo da hegemonia dos Estados Unidos foi o aumento do poder das multinacionais, que foi capaz de liberar o crescimento do capital no mundo das li-mitações estabelecidas pelos Estados terri-toriais (ibid., p. 74).

Cenário produtivo do pós-fordismo mundial a partir dos anos 1970

Para Lipietz, o apogeu do fordismo verifi-cou-se na década de sessenta, quando já se estabeleciam as condições da crise que viria a seguir (Lipietz, 1982, p. 21). Na verdade, o crescimento da economia mundial, com o fordismo estabelecido nos Estados Unidos, Europa Central e Japão, durou até o início da década de 1970. Para fazer frente ao es-gotamento do modelo, que a essas alturas já se manifestava com maior nitidez, as gran-des empresas intensificaram os investimen-tos diretos em novas áreas. Estabeleceram-se em países como a Coréia do Sul, o México e o Brasil, considerados em condições de alavancar o processo de desenvolvimento e constituir-se em novos mercados.

Lipietz ressalta que, nos anos setenta, as ações para expandir o regime de acumula-ção intensiva para países que se lançavam no projeto de desenvolvimento tiveram alcance limitado. Segundo o autor, a tentativa de abrir novos mercados foi uma forma de es-capar da redução da taxa de lucro e da crise. O panorama de desigualdade dos países

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receptores favoreceu o estabelecimento de um fordismo periférico que, para o autor, seria um regime de acumulação com traços híbridos (ibid., p. 21; s.d., p. 23).

A ampliação do modelo fordista pa-ra os países periféricos precisava aliar as vantagens locais já existentes (abundância de mão-de-obra, matéria-prima e recursos naturais) com a necessária modernização da logística, de forma que permitisse a insta-lação de filiais das empresas multinacionais nesses países. Suas economias de base pri-mário-exportadora deveriam se transformar em economias industrializadas, sem perder, contudo, sua vocação exportadora. Passou-se a produzir, na periferia, a custos redu-zidos, com mão-de-obra barata, matéria prima local e infra-estrutura alocada pelos Estados nacionais, exportando-se a preços altamente competitivos para o centro (Jato-bá e Cidade, 2006).

Produto da aliança entre capitais priva-dos nacionais e o capital internacional, tendo à frente os Estados nacionais, o fordismo periférico foi uma das bases do processo de substituição de importações de países que buscavam o desenvolvimento. A partir de di-ferentes configurações políticas, que incluí-ram regimes ditatoriais em diversos países e o enfraquecimento de grupos tradicionais, o sistema foi um dos agentes da reprodução de desigualdades sociais e regionais.

Diante de dificuldades continuadas no âmbito internacional, os anos setenta e oi-tenta, segundo Harvey, caracterizaram-se pela reestruturação econômica acompanha-da de reajustes na esfera social e política. Ao mesmo tempo, surgiram inovações no âmbito da organização industrial e, ainda, na sociedade e em sua organização políti-ca. O autor conjetura que essas tentativas

sinalizam mudanças em direção a um novo regime de acumulação, articulado com um também novo sistema de regulação social e política, o regime de acumulação flexível (Harvey, 1991, pp. 145-146).

As principais características do regime de acumulação flexível seriam, para Harvey, mudanças nos processos de trabalho, nas práticas de consumo, nas formas de gestão, nos estilos de vida, nas manifestações cultu-rais, nos papéis do Estado e nos aspectos espaço-temporais. Entre outras mudanças, estão novos ramos produtivos, diferentes serviços financeiros e novos mercados, num quadro em que se destaca a importância das inovações em uma variedade de áreas, como a comercial, a tecnológica e a administrativa (ibid., p. 147).

Alvo de diferentes pressões, os países periféricos tentam se adaptar à acumulação flexível, também chamada de pós-fordismo, que se acompanha de um receituário neoli-beral voltado para a desregulamentação da economia e para a limitação do papel social do Estado. Caracterizadas pelas desigual-dades e pela existência de grande número de empresas tradicionais ao lado de ramos avançados, muitas dessas economias enfren-tam dificuldades para promover as atualiza-ções preconizadas. Nesse quadro, tendem a se reproduzir as desigualdades econômicas, sociais e espaciais.

Efeitos do pós-fordismo sobre a organização espacial mundial a partir dos anos 1970

O espaço mundial caracterizou-se, para Harvey, por mudanças aceleradas na pro-dução do desenvolvimento desigual, não

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apenas entre setores, mas particularmen-te entre regiões geográficas. Entre essas mudanças estaria o aumento do número de postos de trabalho em atividades de serviços e a implantação de plantas indus-triais em regiões não desenvolvidas. Essas tendências aparecem sob a forma de novos arranjos produtivos em áreas sem tradi-ção de desenvolvimento, como a Terceira Itália, Flandres, os inúmeros aglomerados voltados para a produção de tecnologia da informática e, nos países de industrializa-ção recente, uma variedade de localidades (ibid., p. 147).

A análise sugere que o regime de acumu lação flexível está deixando sua mar-ca na dinâmica territorial do capitalismo mundial. Diante das mudanças das últimas décadas, a capacidade de operar com eleva-dos níveis de competitividade e com ganhos continuados de produtividade dependem em larga medida de atividades econômi-cas de alto conteúdo tecnológico e de ele-vada dependência das comunicações e da informação. Enquanto algumas regiões se enquadram nesses requisitos e ocupam a frente dinâmica do capitalismo internacio-nal, outras se articulam de forma incom-pleta ao modelo e podem constituir-se em áreas decadentes, estagnadas ou de cresci-mento lento. Em sintonia com as tendências do capitalismo, as diferenças, por um lado, aumentam a equalização, por outro, reali-mentam as desigualdades socioespaciais. Embora com características específicas, es-se processo se reproduz em larga medida no Brasil e também pode ser interpretado a partir de sua evolução histórica.

Processo de acumulação e configuração do território na escala nacional

Fordismo periférico e configuração do território brasileiro até o final dos anos 1960

Cenário socioeconômico do fordismo periférico brasileiro até o final dos anos 1960

Baseado em uma economia agroexportado-ra até as primeiras décadas do século XX, o Brasil caracterizava-se como uma sociedade tradicional, em larga medida subsidiária dos principais centros consumidores mundiais, notadamente a Europa. Contava com um largo contingente de população rural, um conjunto de regiões relativamente isoladas entre si e vastas áreas do território ainda por incorporar de maneira efetiva ao quadro social, econômico e político do país. Tendo à frente o Estado e frações hegemônicas regionais com iniciativas de modernização, a grande mudança na sociedade brasileira estabeleceu-se a partir dos anos cinqüenta. A nova proposta baseava-se na industriali-zação, com a expansão de atividades produ-tivas para o interior, o crescimento e con-solidação das áreas urbanas e a construção de um arcabouço territorial de apoio. Com essas credenciais, esperava-se que o Brasil pudesse finalmente se integrar às tendências

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das sociedades avançadas e aos mercados emergentes que estavam sendo aos poucos incorporados ao sistema fordista de produ-ção e consumo de massa.

Em paralelo a fortes investimentos es-tatais, a poderosa intervenção do Estado na economia criava condições para a emergên-cia de uma classe média com maior poder aquisitivo, concentrando a renda em uma parcela restrita da população, localizada geo-graficamente na Região Sudeste. Não coinci-dentemente, aí também estavam localizadas as principias indústrias que necessitavam de uma mão-de-obra melhor qualificada e, con-seqüentemente, melhor remunerada, que, por outro lado, também formava o mercado consumidor para os sofisticados produtos por elas produzidos (Jatobá, 2006).

Cenário produtivo do fordismo periférico brasileiro até o final dos anos 1960

Os esforços de industrialização em curso desde os anos trinta caracterizavam-se pela substituição horizontal de importações, tam-bém conhecida como industrialização res-tringida. A partir do Plano de Metas (1956-1960) do governo Kubitscheck, foi iniciado o aprofundamento do modelo por meio da substituição vertical de importações, basea-da na industrialização pesada. Adotando ca-racterísticas de um Estado desenvolvimen-tista, as políticas públicas atuaram de forma a promover os investimentos necessários nos setores de bens de capital, bens inter-mediários e bens de consumo durável.

O governo buscou atrair capitais inter-nacionais inseridos no sistema fordista, em particular os da indústria automobilística. O

setor industrial, dinamizado por investimen-tos crescentes, ultrapassou a agricultura e tornou-se o novo motor da economia brasi-leira. Diante da opção pela concentração de renda com vistas à continuidade da acumu-lação, o grande crescimento econômico que se seguiu, no entanto, contribuiu para ali-mentar as desigualdades.

Ações de desenvolvimento regional brasileiro até o final dos anos 1960

Nessa fase, além do Plano de Metas (1956/1961), destacaram-se as políticas de expansão do modelo de acumulação es-tabelecido no Centro-Sul, assinaladas por Oliveira como uma forma de destruição das economias regionais. Seria um movimento que destrói para concentrar, enquanto se apropria do excedente das outras regiões para centralizar o capital. Assim, as políti-cas de redução das disparidades regionais iriam além da esfera econômica; envolve-riam movimentos na estrutura de poder e a cooptação do Estado. Essa dinâmica estaria particularmente representada no estabeleci-mento de órgãos como a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene (criada em 1959) (Oliveira, 1977, p. 76).

Becker e Egler lembram que entre as estratégias de desenvolvimento regional adotadas pela Sudene estava o incentivo ao estabelecimento, no Nordeste, de unidades produtivas originárias do Sudeste volta-das para a substituição de importações. Para os autores, essas ações contribuíram para acentuar o rápido aumento popula-cional de regiões metropolitanas do Nor-deste, que acompanhou um processo tam-bém verifica do em metrópoles localizadas

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em outras áreas do país (Becker e Egler, 1993, p. 87).

A incorporação do país ao modelo de acumulação intensiva transformou o perfil da produção manufatureira nacional, pro-movendo a criação de um parque industrial até então inexistente. Para isso, foi determi-nante a implantação, pelo Estado brasileiro, de uma infra-estrutura de apoio à base pro-dutiva, permitindo também a expansão dos mercados de consumo. A estratégia consistiu na expansão da malha rodoviária a regiões, até então isoladas, criando condições para a circulação de mercadorias e na realização de investimentos estatais em setores-chave para a produção, como os de energia, mine-ração e siderurgia (Jatobá, 2006).

As ações de cunho vertical estão en-tre os traços principais das políticas de de-senvolvimento regional da época. O Estado brasileiro, por vezes com a participação de instituições financeiras internacionais, bus-cava promover investimentos privados, em um contexto no qual se via o crescimento econômico enquanto uma resposta a ações estabelecidas de fora para dentro, o desen-volvimento exógeno. Em um contexto no qual predominavam capitais originários de outras regiões para as quais os lucros tam-bém eram canalizados, processos produtivos locais tendiam a gerar benefícios limitados para as populações das áreas nas quais se instalavam.

Efeitos do fordismo periférico sobre a organização espacial brasileira até o final dos anos 1960

Estabelecida na fase colonial, a estrutura es-pacial brasileira caracterizava-se, até os anos

trinta, por uma rede dendrítica, na qual di-ferentes núcleos de uma área se conectam em um centro urbano de convergência co-mum. Assim, fluxos de mercadorias vindas do interior, como produtos agrícolas ou mi-nerais destinados à exportação, eram enca-minhados para cidades litorâneas estabeleci-das como portos, que faziam a ligação com os mercados internacionais. Até o início da década de cinqüenta, as regiões ainda eram relativamente isoladas, enquanto os bens aí produzidos tendiam a ficar circunscritos a mercados regionais, que eram protegidos de uma concorrência externa por esse mesmo isolamento. De fato, apesar de a indústria paulista ser, já nessa época, mais desenvol-vida e potencialmente mais competitiva do que as das outras regiões, as dificuldades de interação eram muito grandes devido à precariedade da malha rodoviária. Essa or-ganização espacial ainda relativamente equi-librada começou a se modificar nos anos cinqüenta, com o aprofundamento da subs-tituição de importações.

Um dos requisitos essenciais da mudan-ça no padrão de acumulação, que buscava se articular ao fordismo, e da integração do mercado nacional sob o domínio do Sudeste foi a construção de infra-estrutura produti-va e a expansão das redes de circulação e distribuição de mercadorias pelo território nacional. Assim, a avançada indústria manu-fatureira de São Paulo foi capaz de atingir e conquistar os mercados das outras regiões, que não tinham condições de competição. Nesse cenário, o Estado, por meio das polí-ticas de desenvolvimento regional e de equi-pamento do território, teve um papel duplo. Contribuiu, por um lado, para a diferen-ciação, ao apoiar a acumulação de capitais pelas indústrias do Sudeste, por outro lado,

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para a equalização, por meio da expansão do padrão produtivo dominante para o in-terior do país.

Pós-fordismo e configuração do território brasileiro a partir dos anos 1970

Cenário socioeconômico do pós-fordismo brasileiro a partir dos anos 1970

Em sintonia com as transformações que buscavam enfrentar a crise capitalista na esfera internacional, mudanças estruturais marcaram essa fase do desenvolvimento brasileiro. Setor dinâmico da economia, a indústria ultrapassou a agricultura, que até então era a responsável pela maior parte da criação de riquezas do país e das trocas co-merciais no mercado internacional. Ao lado do desenvolvimento da indústria, também a agricultura se modernizou, pela via da me-canização, deixando estagnadas as atividades nos moldes tradicionais. Embora a produção industrial tenha crescido significativamente, ao lado de sua participação no mercado ex-terno, o país manteve-se como grande ex-portador de produtos primários. Nos anos recentes, a expansão da área cultivada, ao lado de substanciais ganhos de produtivi-dade, em particular na monocultura, tem acentuado o papel dos produtos agrícolas na pauta de exportações brasileiras.

Em um contexto de adequações à no-va regulação internacional, a reorganização das atividades financeiras foi uma das po-líticas governamentais de apoio às mudan-ças estruturais, o que também contribuiu para aumentar o peso dos investimentos

estrangeiros na economia. Também nessa fase, embora o mercado interno tenha se ampliado para incorporar a classe média, as grandes massas populares foram deixadas à margem. A grande contração salarial, que atingiu de maneira especialmente forte os trabalhadores não qualificados, contribuiu significativamente para a intensificação das desigualdades sociais. Mais recentemente, essa situação começou apresentar uma melhora, com sinais de uma diminuição da pobreza.

Esse período começou com o cres-cimento acelerado da economia e depois assistiu a uma sucessão de crises. Nos pri-meiros anos da década de setenta, houve uma desaceleração, continuada ao longo das décadas seguintes, em decorrência da crise do petróleo. No início da década de oiten-ta, para Fiori, com a crise da dívida externa encerrava-se a era do desenvolvimentismo. A partir daí, em sintonia com os países cen-trais que retomavam a linha liberal-conser-vadora, ia se consolidando a nova estratégia neoliberal que os Estados Unidos adotavam para a América Latina e seu correspondente ideário (Fiori, 2001, p. 181).

O prolongamento de uma fase de bai-xo crescimento econômico, agravado por proces sos inflacionários intensos, que sub-sistiram até a década de noventa, acompa-nhou-se de elevado endividamento público. A integração aos requisitos da economia globalizada sem o aumento da capacidade de absorção de grandes contingentes de mão-de-obra tem se refletido em um grande au-mento da exclusão social. O atual gover no, embora faça parte de uma tradição de críti-ca às propostas neoliberais, tem promovido ajustes em sintonia com essa visão. Assim, as propostas de desenvolver políticas sociais

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abrangentes e efetivas acabam tendo alcan-ce limitado.

Cenário produtivo do pós-fordismo brasileiro a partir dos anos 1970

Articulado ao modelo de acumulação inten-

siva dos países centrais, o sistema adotado

nessa fase no Brasil adaptou-se às condições

vigentes na forma de sua variante, o fordis-

mo periférico. Uma das condições do mo-

delo, que era a existência de uma força de

trabalho com elevados níveis de qualificação,

só pôde ser atendida em algumas regiões

do país, como o Sudeste e o Sul. Apesar de

propiciar, nos primeiros anos, um substan-

cial crescimento econômico, o modelo de

desenvolvimento adotado resultou em ele-

vados índices de desemprego e subemprego,

acompanhados de grande concentração de

renda.

Com as mudanças em direção a uma

acumulação flexível, as necessidades do

mercado levaram à elevação da intensidade

do trabalho; além disso, por um lado, à ne-

cessidade de níveis mais complexos de qua-

lificação e, por outro lado, à substituição de

postos de trabalho mais qualificados por ou-

tros menos qualificados, e, ainda, à tercei-

rização e a uma diminuição da estabilidade.

Na agricultura, a expansão da agroindústria

contribui para a acentuação da seletividade,

enquanto a ampliação da monocultura de

exportação aponta para a precariedade das

condições de trabalho. Nesse quadro, a po-

pulação excluída e os habitantes de áreas de

economia tradicional dificilmente encontram

perspectivas de articulação estável ao siste-

ma produtivo.

Ações de desenvolvimento regional brasileiro a partir dos anos 1970

Durante a fase de modernização conserva-dora, iniciada na fase anterior com prolon-gamento nos anos iniciais da fase em pauta, o planejamento governamental adotou polí-ticas de desenvolvimento com rebatimentos sobre o território nacional. Entre essas estão o I Plano Nacional de Desenvolvimento – I PND (1972/74) e o II Plano Nacional de De-senvolvimento – II PND (1975/79). Parte do equipamento do território por meio de infra-es trutura e de redes diferenciadas se estabe-leceu a partir desses planos.

Ao longo de um extenso período de modesto crescimento econômico, o Estado tem encontrado limitações para manter as extensas redes implantadas e para financiar investimentos produtivos. Busca potenciali-zar os recursos disponíveis, de forma a pro-piciar apoio a setores articulados ao modelo de acumulação hegemônico. Assim, o Plano Plurianual – PPA 1996/1999 (Programa “Brasil em Ação”), do Governo Fernando Henrique, selecionava “eixos de desenvolvi-mento” que incluíam projetos estratégicos. Um de seus propósitos era remover obs-táculos para o escoamento da produção de grandes empresas articuladas ao capitalismo internacional, como agroindústrias e mine-radoras. Após inúmeras críticas ao seu ca-ráter marcadamente econômico, a proposta foi ampliada em seguida ao PPA 2000/2003 (“Avança Brasil”). Observe-se que o general Meira Mattos, analista e teórico da geopolí-tica brasileira, assinala que a estratégia geo-política brasileira está contida, em parte, no programa “Avança Brasil” (Meira Mattos, 2007, p, 52).

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Durante os dois governos Lula, seguem vigentes as limitações para o financiamento do desenvolvimento e manutenção de infra-estrutura. Além disso, diante de pressões po-líticas que envolvem o próprio federalismo, tem havido movimentos em direção a ações voltadas para o território. Assim, no PPA 2004/2007 (“Brasil de Todos”), incluem-se programas voltados para o desenvolvimento territorial. Programas sociais, como o Bolsa Família, também buscam diminuir as desi-gualdades sociais e regionais e seus efeitos.

Considerado por Filgueiras e Gonçal-ves como o marco estratégico para orientar ações estruturantes e a gestão macroeconô-mica do segundo governo Lula, o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC foi lançado em janeiro de 2007. Abrangendo o período 2007-2010, o PAC contém medi-das voltadas para a expansão da economia e real ça a elevação dos investimentos em in-fra-estrutura (Filgueiras e Gonçalves, 2007, pp. 197-198).

No que toca ao desenvolvimento regio-nal e local, os resultados contraditórios de políticas de ênfase exógena predominantes na etapa anterior, bem como o sucesso de experiências em variadas localidades no cená rio nacional e internacional, contribuí-ram para um redirecionamento. Passou a haver uma maior atenção para recursos e iniciativas locais e para o envolvimento de outros atores, além dos governamentais em ações de desenvolvimento. Entre as propostas adotadas em anos recentes está a de apoio e promoção a arranjos produ-tivos locais (APLs). Autores como Lemos, Albagli e Szapiro mencionam a criação, em 2003, do Grupo de Trabalho Permanente para APLs – GTP (Lemos, Albagli e Szapiro, 2006, pp. 252-252).

Ao longo do período, as ações gover-namentais voltadas para o desenvolvimento regional refletiram as mudanças que têm afetado o caráter do Estado. Na fase desen-volvimentista, as políticas se caracterizaram pela verticalização, por seu caráter exógeno e por uma perspectiva nacional ou regional. Na fase neoliberal, as ações enfatizaram as potencialidades locais, o desenvolvimento endógeno e uma perspectiva sub-regional.

Em busca de efeitos do pós-fordismo sobre a organização espacial brasileira a partir dos anos 1970

Os efeitos das atividades articuladas à acumu-lação flexível nas últimas décadas incluíram um período de agravamento das desigual-dades regionais, durante o qual aumentou também a concentração de atividades eco-nômicas e população nas regiões metropo-litanas, em particular no Sudeste. Seguiu-se uma desconcentração relativa, embora não tenha sido homogênea. Assim, como indica Azzoni em análise do setor terciário, nas atividades do segmento mais dinâmico, o de serviços, principalmente os mais modernos, o desempenho do Sudeste é destacadamen-te favorável. Segundo o autor, isso indicaria que o contexto da reestruturação produtiva dos últimos anos tem contribuído para be-neficiar áreas que já concentram boa parte da atividade econômica nacional (Azzoni, 2005, p. 570). Mais recentemente, novos territórios de acumulação, como os tecno-polos, parecem representar uma tendência de acentuação da concentração regional no Sudeste e em suas cercanias.

Para Araújo, nos anos recentes, há forças concentradoras e forças de

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desconcentração. Assim, entre as forças de desconcentração estão a abertura comercial, mudanças tecnológicas, considerações logís-ticas, a proximidade do cliente final e incen-tivos oferecidos por governos locais. Além disso, entre as forças de concentração es-tão os requisitos locacionais da acumulação flexível; e a necessidade de proximidade de recursos humanos qualificados, de conheci-mento e tecnologia, de infra-estrutura eco-nômica e de mercados consumidores de alta renda (Araújo, 2000, p. 118).

Além dos processos da economia indus-trial, comercial e de serviços que tendem a afetar diretamente as cidades, também ati-vidades tradicionalmente circunscritas ao campo expandem sua influência sobre o ter-ritório e o sistema urbano. Assim, verifica-se uma acelerada expansão da agricultura capitalizada e tecnificada pelo interior do país, partindo do Sul e Sudeste e seguindo em marcha acelerada pelo Centro-Oeste em direção à Amazônia. Grupos de interesse voltados para essas atividades pressionam o Estado para atender suas necessidades de redes de infra-estrutura e logística e de núcleos de apoio urbano dotados de equipa-mentos e articulados a redes técnicas.

Também no caso brasileiro, o desenro-lar do modelo de acumulação flexível, ma-tizado pelo quadro nacional, parece estar atuando sobre a dinâmica territorial do país. Tanto em áreas urbanas como em rurais, a busca da competitividade e da produtividade por grupos integrados ao modelo dominan-te é apoiada em larga medida pela ação do Estado. Essa ação, por meio de políticas de infra-estrutura e da ação regional, tende a atuar de forma decisiva sobre a configuração do território. Também aqui, enquanto algu-mas regiões se articulam a esse movimento,

outras permanecem como espaços divididos, em um sistema capitalista que tende a pro-duzir movimentos de equalização e também a reproduzir a desigualdade.

Conclusões

É importante analisar as forças dinâmicas da sociedade na promoção do desenvolvimento como forma de melhor compreender suas implicações espaciais. Assim, este estudo buscou compreender as relações entre mu-danças no regime de acumulação e dinâmica territorial; e, também, o papel do Estado e das políticas públicas de desenvolvimento na configuração do território brasileiro

O texto apresentou aspectos gerais do regime de acumulação intensiva, ou fordis-mo, buscando compreender suas tendências espaciais, tomando caminho semelhante quanto ao regime de acumulação flexível, ou pós-fordismo. Convém notar que ambos os sistemas são entendidos como referências interpretativas de uma realidade complexa. Em ambos os casos, apresentam-se ten-dências duais: enquanto os movimentos da acumulação atuam na direção de uma dife-renciação espacial que reforça áreas já con-solidadas, há também movimentos de equa-lização que estendem o padrão dominante e tendem a incorporar novas áreas.

No caso brasileiro, o Estado tem si-do bastante ativo no apoio aos centros de acumu lação e sua expansão, com rebatimen-tos sobre a configuração do território. Parte desses processos pode encontrar legibilidade em dinâmicas originadas no espaço mundial e outra parte tem sido estabelecida ao longo do desenvolvimento histórico do país. O modelo

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de acumulação que condiciona processos ur-banos, metropolitanos e rurais se estabelece segundo uma lógica que perpassa diferentes

escalas e se manifesta de maneira bastante concreta em movimentos de gestão do terri-tório e na configuração territorial resultante.

Lúcia Cony Faria CidadeArquiteta, Mestre em Arquitetura, Mestre em Planejamento Urbano e Regional e PhD em Planejamento Urbano e Regional. Professora Associada da Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Geografia, Centro de Desenvolvimento Sustentável e Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (Distrito Federal, Brasil)[email protected]

Glória Maria VargasGeógrafa, Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora da Universi-dade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável (Distrito Federal, Brasil)[email protected]

Sérgio Ulisses Silva Jatobá Arquiteto, Doutor e Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Pesquisador e servidor público da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Distrito Federal e Universidade de Brasília do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (Distrito Federal, Brasil)[email protected]

Nota

(1) Os autores agradecem ao parecerista anônimo por comentários que permitiram o aprimora-mento do texto.

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Diferenciação espaciale análise regional sob a condição

capitalista na contemporaneidade* Ulysses da Cunha Baggio

ResumoEste artigo se propõe a uma abordagem crí­tica da diferenciação espacial no âmbito da dinâmica social, especialmente sob a condi­ção capitalista na contemporaneidade, quan­do a dimensão contraditória e desigual de realização territorial do capitalismo, sob os impactos da globalização acelerada, se re­vela mais recrudescida e, desse modo, rea­vivando os estudos em torno da região e da regionalização.

Palavras-chave: globalização; diferen­ciação espacial; região; regionalização; terri­tório.

AbstractThis article provides a critical approach to space differentiation in the scope of social dynamics, especially under today’s capitalist condition, when the contradictory and unequal dimension of capitalism’s territorial accomplishment, under the impacts of accelerated globalization, is more exacerbated. In this way, the article stimulates studies about regions and regionalization.

K e y w o r d s : g l ob a l i z a t i o n ; s p a c e differentiation; region; regionalization; territory.

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Introdução

Ontologicamente, o espaço geográfico compõe­se de “n” variáveis socioculturais e fisiográficas que se manifestam tanto empí­rica como abstratamente. As materialidades produzidas pelo trabalho social, bem como aquelas engendradas pelas dinâmicas da na­tureza, constituem formas empiricamente identificáveis no território, o que nos dá a paisagem geográfica. Os componentes abstratos (não auto­evidentes) podem ser exemplificados, entre outros, pelas ideolo­gias, fluxos de informação e circulação do capital financeiro. Postula­se, assim, que o espaço geográfico não se definiria nem co­mo um objeto empírico nem como um obje­to teórico­abstrato, mas mais propriamente como uma situação relacional multidimen­sional de variadas escalas, proporcionando­nos uma pluralidade de leituras geográficas do real e do mundo ou ainda de imagina­ções geográficas múltiplas. Nesse universo, o sujeito de conhecimento e de ação é con­cebido ontologicamente como um ente es­pacial, ao mesmo tempo em que é produtor de espacializações que se dão no plano de sua existência como ser social.

As variadas formas de intercâmbio e de integração entre variáveis (concretas e abstratas) conformam e explicam proces­sos e dinâmicas de formação e organização do território que se realizam progressiva­mente a partir de interconexões globais e reajustes relacionais constantes, em que pesem a força do dinheiro (e das finanças), a moderna tecnologia e a informação. Da­do que a combinação/recombinação entre elas admite a diversidade, a exemplo de interações e formas híbridas, produzem­se

variados arranjos territoriais, em diferentes escalas geográficas, que expressam novas territorializações e novas territorialidades de variados matizes que, na espacialidade contemporânea, se mostram cada vez mais mutantes, móveis e até mesmo sobrepostas. Esse cenário, a se afirmar como um verda­deiro caleidoscópio geográfico, nos conduz, inequivocamente, a reafirmar e valorizar a idéia de espaço diferenciado ou ainda de novas dinâmicas de diferenciação espacial, remetendo­nos à idéia de região ou de es­paço regionalizado.

Diante da afirmação de tendências glo­balizantes nas sociedades e nos lugares, o conhecimento regional assume grande mag­nitude e pertinência analítica quanto ao des­vendamento e à aferição de práticas sociais diversas, especialmente no que importa às suas implicações regionais e regionalizantes. Não se pretende aqui recair em abordagens demasiadamente abstratas; é preciso, pois, que os atores sejam valorizados devida e adequadamente no processo de análise. Deliberadamente, tais atores (instituições, empresas, Estado, movimentos sociais, etc.) e suas práticas adquirem um poder que se amplia em níveis globais, precipitando a constituição de um cenário marcado por múltiplas regionalizações da vida cotidiana, submetido a transformações sociais perma­nentes, conquanto perpassado pela profusão de intercâmbios globais.

Desse modo, a condição socioespacial da contemporaneidade implica a produção de formas e expressões territoriais progres­sivamente desencaixadas, mutantes e instá­veis, de modo a impactar e a reduzir sen­sivelmente as manifestações espaciais tradi­cionais, mais estáveis e encaixadas (Giddens, 1991). Os mecanismos de desencaixe

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propiciados pela força do capital, pelo ar­cabouço científico­tecnológico e pela infor­mação (e os discursos a ela relacionados) entabulam condições que ampliam subs­tancialmente as possibilidades operacionais dos sujeitos, bem como ações de caráter decisório, conquanto também produzam in­seguranças ao plano da vida pessoal. Daí se compreender certa busca por identidades de caráter mais estabilizador, arena em que o regionalismo pode ser encarado como uma condição a operar compensações diante dos constrangimentos provocados pela globali­zação, sugerindo uma vinculação quase que orgânica entre regionalismo e identidade.

Sob o intenso desenvolvimento das forças produtivas, alcançado principalmente nas últimas décadas, a formação desse efeti­vo caleidoscópio territorial engendra, entre outras expressões, a conformação de perife­rias pobres no âmbito de países avançados, assim como manifestações espaciais moder­nas e desenvolvidas na chamada periferia do sistema. Essa situação se revela como uma explícita manifestação da redefinição da questão social sob o capitalismo contem­porâneo e de seus mecanismos de coesão e fragmentação, que são engendrados no e para além dos processos de produção, por­tanto não se reduzindo a eles. E aqui não seria recomendável e nem prudente forçar interpretações que pretendam certa organi­zação esquemática desse cenário, e menos ainda mediante a utilização de categorias tradicionais num universo social em que a extensão de poder de seus atores hegemôni­cos torna­se de difícil aferição, mal admitin­do uma avaliação arrazoada por meios esta­tísticos. Nessa arena do capitalismo global, os mecanismos de controle se mostram cada vez mais limitados e impotentes, em que

nada ou quase nada parece ser efetivamen­te controlável. Essa complexidade, melhor dizer totalidade fragmentária e contradito­riamente autodestrutiva, impõe dificuldades e limites quanto à identificação, demarcação e qualificação de suas expressões constituti­vas, representando grandes desafios às di­versas áreas do conhecimento, à ação do Es­tado e às práticas dos movimentos sociais. Por isso, urge o desenvolvimento de um conhecimento relacional capaz de apreen­der criticamente a complexidade geográfica contemporânea. Considerando­se que esta se apresenta como um mosaico de situações em movimento, esse conhecimento requer, assim, a operacionalização concomitante da sucessão e da simultaneidade dos eventos, pari passu a valorização do sujeito de conhe­cimento e suas práticas espacializadoras no mundo sensível.

A geografia como um conhecimento genuinamente relacional

Estando a Geografia devotada funda men­tal mente ao estudo das relações entre a sociedade, na sua diversidade, e a nature­za – pro gressivamente convertida em natu­reza humanizada pelo trabalho socialmente realizado –, vislumbra­se a efetiva unicida­de da Geografia, isto é, a inseparabilidade homem/natureza. Inseparabilidade que, no entanto, expõe uma condição humana cons­trangida e reduzida pela degradação do tra­balho (e da natureza) sob os fundamentos e a lógica de uma economia de exploração ou ainda de uma capitalização ampliada e

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extenuante, com decorrências devastadoras e intoleráveis, conquanto acirre diferenças e racismos de toda ordem, cujas especifici­dades locais e regionais não podem ser elu­didas pela análise. Trata­se de uma condi­ção que só ideologicamente implica alguma positividade, mas que logo se dissolve ante as pulsações do mundo sensível, a revelar uma estrutura social na qual o humano está profundamente subordinado à lógica da va­lorização do capital, relegando a vida a uma condição inferior e secundária.

A inseparabilidade aludida – permeada por contradições – sugere a concepção de uma Geografia que articule e integre os ter­mos dessa relação, sem, contudo, homoge­neizá­la e tão pouco fetichizá­la, pois cons­tituída essencialmente como relação social e não como relação entre coisas. Desse modo, a idéia de natureza não é aqui reduzida a um recurso estritamente, como pressupunha a ciência moderna (o que, de certo modo, sancionou ao capitalismo a sua apropriação e exploração generalizada), ou mesmo na­tureza enquanto campo de possibilidades às intervenções antrópicas. Trata­se essencial­mente de uma concepção de natureza que comporta o sentido do trabalho alienado conquanto se revele como condição e limite à realização da vida.

Com o advento da modernidade, as re­lações entre os homens e destes com a na­tureza conformam­se progressivamente sob o capitalismo e sua dinâmica evolutiva. Daí a importância de nos debruçarmos sobre a na­tureza, as especificidades e o sentido da(s) geografia(s) do capitalismo e suas implica­ções na sociedade e na existência, portanto do espaço e de suas múltipas expressões. Vale dizer que o espaço não se apresen­ta apenas como um produto da sociedade,

mas também como o seu reflexo e condição. Nesse sentido,

[...] o espaço deve ser considerado co­

mo um conjunto indissociável de que

participam, de um lado, certo arranjo

de objetos geográficos, objetos natu­

rais e objetos sociais, e, de outro, a vida

que os preenche e os anima, ou seja, a

sociedade em movi mento. O conteúdo

(da sociedade) não é independente da

forma (os objetos geográficos), e cada

forma encerra uma fração do conteúdo.

O espaço, por conseguinte, é isto: um

conjunto de formas contendo cada qual

frações da sociedade em movimento. As

formas, pois, têm um papel na realiza­

ção social. (Santos, 1988, pp. 26­27)

As relações sociais, que também se re­velam como relações com a natureza, com­portam mediações, podendo­se destacar a do trabalho, pela qual historicamente o ho­mem viabiliza a sua reprodução social no e pelo espaço. À medida que o trabalho social­mente realizado se objetiva espacialmente, isso equivaleria a dizer que o homem reali­za a sua existência e reprodução social como um processo permanente e diversificado de produção do espaço, no qual as sociedades inscrevem as suas marcas, desigualdades e diferenças. Dito de outra forma, é a realiza­ção do tempo no e pelo espaço, movimento permanente que responde por sua formação e organização. Dado que as possibilidades de articulação e integração entre suas va­riáveis são múltiplas, haja vista as possibi­lidades proporcionadas pelo arcabouço téc­nico­científico atual, tal movimento significa o redimensionamento do espaço geográfi­co diferenciado e, portanto, dos próprios

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processos de diferenciação espacial, reavi­vando e fortalecendo a idéia de região e de regionalização na compreensão das dinâmi­cas e processos sociais do mundo atual.

A dinâmica espacial do capitalismo na globalização contemporânea

A dinâmica espaço­temporal do modo de produção capitalista potencializou­se como um amplo desenvolvimento das forças pro­dutivas, a ponto de produzir uma assincronia entre o econômico e o político, com a pree­minência do primeiro,1 com maior destaque ao período subseqüente à Segunda Guerra Mundial, que será marcado por um amplo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, bem como pela introdução de um novo pa­drão de acumulação e regulamentação social e política a partir dos anos 70.2 Esse dina­mismo representará um forte impulso à di­fusão do “mundo da mercadoria”,3 trazendo em sua esteira um espetacular avanço dos processos de internacionalização de mer­cados e da produção. Trata­se, em síntese, de uma dinâmica evolutiva do capitalismo que consolidou a globalização, entabulando novas formas de organização transnacional da produção, que conduz à redefinição das relações entre as economias nacionais em­basadas na centralidade do Estado­nação. Vale lembrar, acerca disso, a importância al­cançada pelo mercado financeiro e a rapidez com que se dão os fluxos de “dinheiro vir­tual”, conquanto não haja ainda instituições capazes de regulá­los. Isso, seguramente,

aumenta o grau de vulnerabilidade das eco­nomias “nacionais” diante de impactos subs­tanciais na chamada “economia real”. Pela hipermobilidade e preeminência do capital financeiro na economia global, proporcio­nadas pela desregulamentação financeira, desenvolve­se a mundialização do dólar e a emergência e o desenvolvimento dos fundos de pensão (de empresas, grupos, corpora­ções e indivíduos), o que conduziu à dispo­nibilidade de um enorme volume de dinheiro no mercado financeiro para fins de valoriza­ção. É nesse sentido que a globalização eco­nômica em andamento torna­se essencial­mente de égide financeira (Chesnais, 1996), não se tratando aqui apenas do lucro das empresas e do capital bancário, mas de um capital financeiro que é abstrato, que não é propriamente para geração de riqueza, mas para especulação. Surge daí uma forma de dinheiro que não é capital, mas tão­somente dinheiro, um dinheiro virtual originado de um vultoso processo de poupança nos países mais ricos. Sua evolução alcança maturidade a partir, sobretudo, dos anos 90, levando à revolução da telemática – fato que vai per­mitir a fluidez do dinheiro (investimentos financeiros) em tempo real – e à aceleração do desenvolvimento da ciência e da tecno­logia – fatores essenciais à consolidação do capitalismo científico­técnico informacional. Considerando que a inovação se dá no âm­bito da pesquisa tecnológica (biotecnologia, software, química fina, engenharia de novos materiais, etc.), sendo realizada pelos me­lhores pesquisadores do mundo, situados principalmente nos países ricos, essa inova­ção fica, em grande medida, circunscrita a um grupo seleto de empresas no mundo. À medida que operam na inovação tecnológica de ponta, elas se situam no ápice da mega­

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acumulação do capital no mundo. Isso se traduz na conformação de uma hierarquiza­ção explícita, com os países ricos no topo, fato revelador da brutal centralização do capital. Indubitavelmente, essa condição im­põe grandes desafios e dificuldades aos paí­ses mais pobres, o que vem a revelar certa centralidade da variável tecnológica como, se não o principal, um dos principais fatores na construção de uma inserção na economia­mundo em patamares mais favoráveis.

Esse cenário, contudo, dificilmente le­vará à supressão do Estado­nação, mas mais propriamente a ajustes no sentido de orien­tar suas operações no sentido de tratamen­to de aspectos estruturais e de intercâmbio com outros estados. Ademais,

[...] numa economia mundial de rápida

integração, o Estado­nação é ainda mais

importante do que foi antes em seu

papel legislador, negociador, árbitro e

construtor de novas instituições regula­

tórias globais, tais como a Organização

do Comércio. (Markusen, 2005, p. 69)

Lembremos que a arena da política in­ternacional ainda é dominada pelos Estados ratzelianos (estados territoriais nacionais, invenção genuinamente européia a se tor­nar um instrumento importante no controle das sociedades, aliás, em franco crescimen­to após o fim da Segunda Guerra Mundial, especialmente na África e na Ásia), os quais requerem capacidade estratégico­militar, variável ainda importante nas relações de poder de âmbito internacional.

É preciso não se perder de vista que a realização da globalização se dá, antes de tudo, nos lugares, a partir deles, daí a con­formação que o lugar assume como instân­cia geográfica privilegiada para a percepção

e interpretação do mundo. Ontologicamen­te, o lugar se revela como o lócus da vida e, desse modo, como o cenário de realização do cotidiano, pelo qual o mundial passou a se expressar. E, embora o mundial redefi­na o lugar, isso não representa necessaria­mente a supressão das suas particularida­des (Carlos, 1996, p.15). Vale dizer que, com maior ou menor intensidade, todos os lugares do planeta são atingidos, em graus variados, pelos vetores da dinâmica global, mas, ao menos por enquanto, não propria­mente todos os segmentos sociais. Nesse sentido, Milton Santos e Maria L. Silveira (2001, p. 257) oferecem­nos uma contri­buição luminosa, quando nos dizem que:

Dentro do território, podemos admitir

a existência de áreas em que se pode

falar de uma globalização “absoluta” e

de outras em que essa globalização é

apenas “relativizada”. As primeiras são

áreas de presença mais plena da glo­

balização. Nelas há concentração, com

pequena contrapartida, de vetores da

modernidade atual, o que leva à pos­

sibilidade de ação conjunta de atores

“globais” ou “globalizados”. Nessas

áreas, a tendência é que a produção,

a circulação, a distribuição e a infor­

mação sejam corporativas, isto é, que

a respectiva demanda principal seja de

tais empresas. Nessas áreas de presen­

ça mais plena da globalização, há uma

espécie de rendilhado mais denso de

vetores ótimos da globalização, isto é,

conduzidos por atores predispostos a

uma lógica e a um movimento que dão

primazia aos processos técnicos e polí­

ticos derivados. São, em última análise,

vetores do dinheiro puro, subservientes

aos seus desígnios: cadeias produtivas

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modernas, produtos exportáveis, ativi­

dades especulativas etc. Nas áreas de

menor presença da globalização, essas

características desaparecem ou se redu­

zem segundo toda uma gama de exten­

são e intensidade.

Portanto, não é propriamente o espaço que se globaliza, mas sim o lugar. Ademais, a expressão concreta do espaço é dada pe­lo conjunto dos lugares. O mundo, então, não estaria configurado como um espaço global, mas mais propriamente formado por lugares da globalização, suas instâncias mediadoras.

A lei do desenvolvimento desigual e suas implicações espaciais

Desde o início, a lógica espacial do capita­lismo objetiva­se territorialmente de forma seletiva e pluralística, conferindo diferen­ciações entre os (e nos) lugares que parti­cipam da globalização, entabulando bases locais e regionais de valorização diferencial do capital, produzindo, desse modo, parti­cularidades espaciais quanto às suas formas de produção e reprodução. Sob essa mesma lógica, produzem­se igualmente verdadeiros territórios da desolação econômica e social, conquanto também o sejam de degradação ambiental, aí incluídas as situações críticas de “terra arrasada”. Desses territórios opa­cos precipitam­se levas de migrantes (so­bretudo de jovens do sexo masculino) que afluem aos lugares de maior atração quanto a possibilidades de vida, numa busca não ra­ro desesperada de condições que dificilmen­

te ultrapassam os limites da sobrevivência forçada. Esse cenário expõe a conformação de uma nova dinâmica migratória no mundo deflagrada por causas essencialmente so­ciais, mais especificamente engendradas pelo crescimento econômico cego sob a lógica de uma economia de exploração. Suas contradi­ções inerentes e instabilidades se ampliam na esteira da crise da terceira revolução indus­trial, que vem a fortalecer os negócios e os interesses hegemônicos em detrimento do trabalho e do trabalhador. Sob essa lógica, os trabalhadores estão cada vez mais sujei­tos a perdas e constrangimentos, progressi­vamente metamorfoseados em verdadeiras peças reificadas da engrenagem autodestru­tiva do moderno sistema mundial produtor de mercadorias. Acrescente­se ainda que es­sa condição de migração forçada sinaliza pa­ra a formação de um estado de descontrole da dinâmica social do capitalismo, pondo às claras sua incapacidade de realizar um efeti­vo desenvolvimento social. Engendram­se aí comunidades e lugares matizados por uma condição de reprodução social nas bases de uma economia de aparência, conduzindo a uma espécie de falseamento socioexistencial ampliado.

Pois bem, esse traço marcante da di­nâmica espacial capitalista remete à “lei do desenvolvimento desigual e combinado”, proposto por Trotsky, que é uma das leis da dialética, isto é, a da interpenetração dos contrários. Vale dizer que a contradição que daí resulta é uma característica imanente à realidade, contradição que opera como elemento motor de sua própria transfor­mação. Essa lei encerra uma dimensão es­pacial que se consubstancia no processo de regionalização, ou seja, de diferenciação de áreas. Embora a diferenciação de áreas

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acompanhe a história das civilizações desde os seus primórdios, com o desenvolvimento das forças produtivas e a dinâmica da socie­dade de classes sob o capitalismo, o que se verá é que o processo de regionalização ad­quire maior complexidade e diversidade, que se expressa por um maior retalhamento do espaço humanizado em inúmeras porções regionais. Essas inúmeras porções com­põem mosaicos socioespaciais cada vez mais integrados por redes, sugerindo que não há como se considerar a região como entidade autônoma, principalmente nas condições da globalização atual. Portanto, é com o modo de produção capitalista que o processo de regionalização se torna mais contundente, dimensionando­se pela simultaneidade dos processos de diferenciação e integração na esteira da crescente mundialização da eco­nomia a partir do século XV. O movimento de unificação que historicamente ela engen­dra consubstancia­se, também, como um “movimento de diversificação, que consagra o princípio da unidade e diversidade na His­tória” (Santos, 1986, pp. 16­17).

Se o espaço se torna uno para atender

às necessidades de uma produção glo­

balizada, as regiões aparecem como as

distintas versões da mundialização. Esta

não garante a homogeneidade, mas, ao

contrário, instiga diferenças, reforça­

as e até mesmo depende delas. Quanto

mais os lugares se mundializam, mais

se tornam singulares e específicos, isto

é, únicos. (Ibid., pp. 46­47)

Assim, sob a lógica do capital, os meca­nismos de diferenciação de áreas tornam­se mais evidentes e perceptíveis, precipitando a formação de regiões desigualmente de­

senvolvidas, porém articuladas entre si. Eis o aspecto da combinação da lei do desenvol­vimento desigual e combinado, combinação que não se refere apenas à coexistência num mesmo território de modos de vida diferen­tes, mas também à conectividade espacial entre os territórios (Correa, 1986, p. 45). Assim, a lógica contraditória do desenvol­vimento do modo de produção capitalista projeta­se espacialmente pela construção/destruição de formações territoriais em di­ferentes partes do mundo, levando também frações de uma mesma formação territorial a conhecerem processos desiguais de valori­zação, produção e reprodução do capital, po­dendo daí resultar a conformação de regiões (Oliveira, 1999, p. 75).

Em contrapartida ao plano da globali­zação econômica desenvolve­se uma ampla e efetiva segmentação espacial da cadeia produtiva, deflagrando a especialização fun­cional dos lugares, o que implica o desen­volvimento das redes a fim de assegurar o funcionamento do sistema. Esse movimento entabula um novo localismo “globalizado”, qual seja:

[...] um localismo sistematizado e ra­

cionalizado que visa absorver as merca­

dorias ao produzir e reproduzir consu­

midores. [...] É preciso agora acelerar

a rotatividade e não a implantação, e o

capital está, portanto, produzindo he­

terogeneidade, transformando lugares

em mercadorias. (Ibid., p. 240)

Vale dizer que a interdependência eco­nômica não se dá, verdadeiramente, de for­ma homogênea, mas por etapas ou níveis di­ferenciados, o que suscita uma abordagem de caráter multidimensional a fim de apreen der

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as diferenciadas formas de interdependência e suas expressões geoeconômicas. Veja­se, por exemplo, o caso dos mercados regionais integrados, que

[...] são na realidade a forma pela qual

a globalização avança e não uma nova

divisão do mundo ou um fechamento

dos continentes em “blocos” alternati­

vos. (Vesentini, 2000, p. 37)

Contudo, é necessário acautelar­se quanto a interpretações que supervalorizam os blocos em detrimento do Estado­nacional, que, ao menos por enquanto, se apresenta como o principal agente político na organização ter­ritorial do mundo.

Outro fator a reforçar o traço da dife­renciação espacial está no próprio mercado, uma vez que ele demanda a diversidade co­mo variável à sua sustentação e promoção. Sob a lógica do capital, a diferença opera como uma condição necessária à sua repro­dução, produzindo assim configurações ter­ritoriais diferenciadas. Embora o mercado seja portador de vetores de padroni zação, como é o consumo, isso não necessariamen­te corresponde a um processo de homoge­neização socioespacial. A crença nessa idéia tem levado à equivocada interpretação quan­to ao fim da região, isto é, de sua supressão pelos vetores do capital mundializado, quan­do um olhar mais atento à condição espa­cial do mundo atual nos oferece evidências diversas do processo inverso, como bem o demonstram, por exemplo, os movimentos regionalistas,4 que se acentuam. A idéia de uma suposta homogeneização se expressa­ria mais propriamente como um movimento de fragmentação e segmentação espacial, dando­nos um cenário de recomposição e

reestruturação da diferenciação regional, objetivada tanto pelas novas e velhas de­sigualdades como pela própria recriação da diferença nos espaços. Esse panorama sugere a idéia de uma renovada geografia da diferenciação espacial que desvela o re­crudescimento dos localismos, dos regiona­lismos e das desigualdades socioespaciais. O crescimento das disparidades territoriais sob a globalização demarca e particulariza a lógica evolutiva contraditória do capital e de sua reprodução. Elas são, portanto, produto e condição da globalização.

De acordo com Oliveira, sob o capita­lismo, o território se expressa como “sín­tese contraditória” ou ainda como totali­dade concreta que catalisa as instâncias do processo de produção e suas articulações e mediações supraestruturais (políticas, ideo­lógicas, simbólicas etc.), que são aspectos importantes à sua apreensão (1999, p.74). Como já observado, a diferenciação opera como um componente fundamental à oxige­nação da economia de mercado, conquanto ela requeira a diversificação e a inovação permanentes para a sua existência e repro­dução. A competição (e a competitividade) implica diferenciação. A criação de novos nichos de mercado estimulados pela valori­zação de hábitos locais e regionais evidencia essa condição. O próprio consumo encerra grande dose de ambigüidade, dada tanto por sua capacidade de corromper como pe­lo fato de precipitar, no plano da existência, o desvendamento da impossibilidade de sua fruição completa pelas sociedades desiguais. Isso ocorre uma vez que o sistema busca ininterruptamente a produção de novos ob­jetos e o artificialismo de novas fontes de desejo, nesta que é, efetivamente, uma so­ciedade de consumo dirigido.

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Diante disso, pode­se afirmar que, sob o capitalismo e a lógica do capital, proces sos de formação de regiões em escalas variadas – ainda que instáveis e mutantes – continuarão a ter o seu curso, de modo a impulsionar o ressurgimento e a reconstrução de regiões e áreas diferenciadas – envolvendo diversas formas de aglomeração –, dado que a espa­cialização diferencial lhe é inerente.

Região e regionalização

A relação entre região e regionalização tem sido fonte de debates acalorados, de polê­micas e controvérsias, tanto na geo grafia como em áreas afins. A começar pelo fato de que não há consenso quanto ao significa­do de região, categoria que expõe sentidos variados, conquanto a região seja corren­temente utilizada com variadas conotações. Não raro, a região se reveste de forte cará­ter ideológico, no sentido de produzir misti­ficações geográficas, podendo operar como um instrumento de manipulação política.

Malgrado a noção de região exista des­de a Antiguidade, comparecendo em diver­sos domínios do conhecimento humano para além da Geografia e da própria ciência – co­mo bem atesta o seu uso no âmbito do sen­so comum como referência de localização e extensão –, evidencia­se, entretanto, que a forma de abordagem e apreensão da região, bem como dos processos que lhe dão ori­gem, estão condicionados pelas correntes ou escolas de pensamento geográfico historica­mente constituídas. Assim, o que caracteriza cada “escola” são seus fundamentos teóricos e metodológicos, “escolas” que representam modos de apreender as realidades espaciais,

portanto, de suas variadas expressões. Entre os geógrafos, o conceito de região comporta uma pluralidade de significados e acepções que derivam dessas matrizes de pensamen­to, trazendo certas dificuldades e variações de ordem conceitual e operacional. Essa polissemia em torno do conceito de região confere à análise espacial um horizonte de possibilidades, daí a sua riqueza para a pes­quisa e para a reflexão acadêmica. Lembran­do que a reflexão sobre o conceito de região passa, necessariamente, pela discussão das noções de espaço e de tempo, do método e da escala; escala aqui compreendida como relação complexa de variáveis que embasam os recortes territoriais.

Essa reflexão implica o reconhecimento, já bastante difundido, de que as novas con­dições do mundo atual desnuda insuficiên­cias e limites de abordagem da região e da regionalização em matrizes tradicionais, ao mesmo passo que revoga a idéia simplista e equivocada de fim da região, concebida co­mo decorrência de uma suposta homogenei­zação deflagrada pela globalização. Acerca disso, nos diz Santos:

[...] na mesma vertente pós­moderna,

que fala de fim do território, e de não

lugar, inclui­se, também, a negação da

idéia de região, quando, exatamente,

nenhum subespaço do Planeta pode es­

capar ao processo conjunto de globaliza­

ção e fragmentação, isto é, individuali­

zação e regionalização. (1996, p. 196)

Portanto, ao contrário de uma supos­ta homogeneização e suplantação do espaço pelo tempo, idéia central do conceito de des­territorialização, o que se constata é o cres­cimento de expressões locais e regionais.

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A aceleração do ritmo dos acontecimentos, proporcionada pelos espetaculares avan­ços científico­tecnológicos, à medida que acentua a diferenciação dos eventos ante os imperativos do mercado e da competi­tividade crescentes, suscita o aumento da diferenciação dos lugares e, portanto, da ex­tensão pelo mundo do fenômeno de região e de regionalização. À medida que o padrão de acumulação flexível atual se objetiva por movimentos de desconcentração da cadeia produtiva e de segmentação geográfica dos processos produtivos pelo mundo, propaga­se a fragmentação do espaço, redefinin­do, portanto, as conformações regionais e a regionalização. A irradiação geográfica dos processos de produção, cada vez mais segmentados, tende a entabular especiali­zações regionais de variados níveis, reavi­vando, dessa forma, o interesse pelo estudo do específico, do particular e do diferente em diversos campos do conhecimento. Va­le dizer que a particularidade, assim como a singularidade adquirem maior projeção sob os imperativos de um mesmo proces­so contraditório. Tal processo se objetiva, simultaneamente, por vetores de homoge­neização e de fragmentação, não havendo oposição entre eles, mas sim uma relação de complementaridade, uma vez que a globa­lização avança produzindo fragmentação e desigualdade, evoluindo, portanto, com a regionalização. A renovação dos interesses pelo particular vem acompanhada de uma revalorização da corologia e do estudo das situações geográficas,5 pondo o acento nos processos de apropriação social do espaço6 e na formação correlacionada de territoria­lidades.7 Os lugares tornam­se, assim, entes a revelar o mundo e as suas contradições, à sua maneira.

O ressurgimento dos localismos, regio­nalismos ou nacionalismos tem levado ao aumento da diferenciação e da fragmenta­ção espaciais (movimento de fragmentação), paralelamente ao desenvolvimento de pro­cessos de integração (movimento de coe­são), a exemplo dos blocos econômicos e do regionalismo econômico­comercial. Frag­mentação e coesão são, portanto, as faces contraditórias e mutuamente complementa­res da dinâmica territorial contemporânea, o que responde pela formação de uma reali­dade multidimensional e multiescalar.

A compreensão atual da regionalização requer o seu dimensionamento como um processo dinâmico e flexível, haja vista o fa­to de ela ter se tornado bastante vulnerável aos vetores de reestruturação espacial con­temporânea (Soja, 1993). A regionalização abarcaria, assim, diversas territorialidades e articulações variadas, bem como a interação de múltiplas expressões sociais e econômi­cas. Ela também comporta uma dimensão política e pragmática, no sentido de sua ins­trumentalização pelo planejamento estatal, tendo em vista a consecução de políticas go­vernamentais tais como aquelas voltadas à redução das desigualdades regionais. O que nos leva a encará­la não apenas como méto­do ou instrumento analítico (e, neste caso, também político, pois instituído pelo sujei­to), mas também como processo efetivo no âmbito da própria ação dos sujeitos. Desse modo, ela se traduz como uma ação nego­ciada entre os sujeitos para a consecução de recortes regionais, o que se dá tanto no plano da esfera objetiva da vivência quanto da dimensão abstrata do pesquisador e do planejador.

Levando­se em conta os diversos inte­resses e especificidades culturais dos agentes

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envolvidos, as regionalizações promovem o redesenho permanente dos espaços de atua­ção desses atores. Mais especificamente, a regionalização empreendida pelo planejador denota claramente um sentido funcionalista de abordagem do espaço e da região, o que não raro despreza o vivido e certas quali­dades do existencial. Aqui, o lugar é toma­do como algo exterior ao sujeito, arrostado como um construto manipulável para fins específicos, tratando­se mais propriamente da demarcação de um espaço de controle e dominação pelo Estado por meio do uso do planejamento, a partir do qual esse espaço de dominação é submetido à sua lógica. O Estado, no entanto, ora se coloca em con­tradição e conflito com o espaço dos inte­resses específicos da reprodução do capital, ora se alia a ele, estabelecendo dessa forma uma relação ambígua que faz acentuar a formação de diferenças territoriais em di­ferentes escalas (local, regional, etc.). Nesse sentido, a escala de análise regional adquire grande relevância como instância particular entre o local e o global. Acerca disso, Santos assinala que

A região torna­se uma importante ca­

tegoria de análise, importante para que

se possa captar a maneira como uma

mesma forma de produzir se realiza em

partes específicas do planeta ou dentro

de um país, associando a nova dinâmica

às condições preexistentes.

Não basta compreender teoricamente o

que se passa no mundo, temos que ter

nossa atenção também voltada para as

diferentes geografizações das variáveis

inerentes à nova maneira de produzir.

Não podemos desprezar esta impor­

tante via de compreensão da realidade.

Hoje, a região, o regional, a regiona­

lização têm de ser assim entendidos.

(1988, p. 47)

Haesbaert, por sua vez, nos alerta para o fato de que

[...] a região não deve ser definida no

sentido genérico de divisão ou recorte

espacial, sem importar a escala, como

indicam os processos de regionalização;

[...] ela deve ser vista como produ­

to de um processo social determinado

que, expresso de modo complexo no/

do espaço, define­se também pela es­

cala geo gráfica em que ocorre, poden­

do ser, assim, um tipo de território.

(2002, pp. 135­136)

Esse movimento dinâmico e geografi­camente expandido engendra, igualmente, transformações constantes nas regiões. As regiões tornam­se tanto desorganiza­das quanto deslocadas, conformando­se cada vez mais como espaços ou áreas descontínuas de difícil demarcação (Trift, 1996, p. 239).

Considerações finais

É preciso reforçar a idéia de se buscar per­manentemente a aferição crítica das rela­ções socioespaciais, almejando a apreensão de sua natureza e do seu sentido na existên­cia humana. Há que se levar em conta, no processo de análise, as condições ampliadas de degradação da vida social e da economia sob os imperativos de uma mercantilização expandida e de sua acolitada financeirização,

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que instauram o absolutismo do dinheiro e desencadeiam uma dinâmica perversa de empobrecimento, conduzindo a vida a um estado progressivo de sobrevivência mercan­tilizada. O avanço maciço do capital financei­ro, dado quase que de forma instantânea, representa seguramente uma condição de incerteza e de perturbação no âmbito do sis­tema mundial capitalista, reverberando em todas as suas instâncias.

Isso porque, longe de ficar fixa em es­

truturas produtivas de relativa perma­

nência, uma exagerada proporção do

capital – seja das grandes fortunas, seja

dos fundos de pensão – encontra mais

rendimento na especulação e manipula­

ção dos mercados e nas expectativas de

ganho em contínua movimentação entre

moedas, títulos e ações.

[...] Sem dúvida, ainda que o observa­

dor e analista científico possam explicar

retrospectivamente e até predizer seu

movimento tendencial, a economia con­

tinua sendo determinada “pelas costas”

da grande maioria dos atores socioe­

conômicos e dos mesmos Estados. Nas

condições resultantes do desapareci­

mento do bloco soviético e da acomoda­

ção da social­democracia ante o embate

conservador, a economia capitalista se

liberta da reprodução da sociedade e,

por muito tempo, se transforma, como

na teoria, numa esfera auto­explicativa.

E, ao fazê­lo, desencadeia sua capaci­

dade destrutiva da vida. [...] Os gurus

da economia e suas variações financei­

ras de curto prazo, administradores

de uma realidade percebida com olhos

míopes ou interessados, em meio à in­

certeza, nos ameaçam com a certeza

do caos, se tentamos voltar a dominar

“o mercado”. Ao fazê­lo, esvaziam de

sentido a política. Aqui, mostram sua

ignorância ou sua insensibilidade diante

dos atuais processos de fragmentação e

dissolução de sociedades, instituições e

sistemas de valores e normas, que são,

para a vida da maioria, o verdadeiro

CAOS. (Coraggio, 2005, p.106)

Ao olhar de uma geografia crítica re­novada, profícua e socialmente conseqüen­te, compreender os impactos desse proces­so nos modos de vida, logo, de suas trans­formações e suas correspondentes expres­sões territoriais, apresenta­se hoje como um esforço necessário ao desvendamento de práticas e relações crescentemente ins­trumentalizadas e fetichizadas pelo capital e sua enorme capilaridade na sociedade e no território. Nesse sentido, urge avançar a análise e as ações práticas8 no mundo sen­sível para além da lógica estatista, perspec­tiva que vem ganhando corpo na geografia atual e em outros segmentos do saber, movimento que, seguramente, representa um ganho político e social auspicioso, que reforça a crítica necessária ao Estado e à economia (com a qual, sabidamente, ele mantém estreitas relações), iluminando as suas contradições, seu sentido e o universo de relação de forças sociais que os perpassa e lhes dão substância. Não se quer com isso sugerir que o Estado seja politicamente ne­gligenciado, o que representaria um enor­me reducionismo da questão, uma vez que ele representa o âmbito do conjunto social onde se entrelaçam e se consubstanciam relações políticas e econômicas cujos resul­tados reverberam sobre a sociedade e os respectivos territórios que ela circunscreve. Nesse sentido, pode­se considerar que seja

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igualmente relevante e socialmente dese­jável empenhar esforços para uma efetiva democratização do Estado, o que pressu­põe níveis mais avançados de mobilização e organização política da sociedade, com a crescente incorporação da sociedade, na sua diversidade, nas políticas de desenvolvimen­to urbano, como o demonstram, por exem­plo, as políticas de orçamento participativo a serem aperfeiçoadas. Mas as mudanças requerem, no seu conjunto, a atuação de uma pluralidade de agentes, para além do Estado e da lógica estatista.

Sob as condições marcadamente cons­trangedoras da reprodução social sob o capitalismo atual, o desenvolvimento de práticas independentes do aparelho estatal assume grande importância quanto à cons­tituição de alternativas e percursos social­mente mais desejáveis. Trata­se de ações de caráter mais propriamente autogestionário, portadoras do sentido da democracia dire­ta,9 sintonizadas com o desejo, tanto quanto ele seja possível, de mudanças libertadoras de fundo. Ainda que se admita que as con­dições socioespaciais da contemporaneidade encerrem dificuldades e mesmo certos limi­tes à sua realização (urbanização expandida e conformação preeminente do território sob os imperativos do capital financeiro­rentista), ainda assim elas colocam no ho­rizonte a possibilidade efetiva de um maior envolvimento e participação renovada das pessoas naquilo que afeta mais diretamente as suas vidas, constituindo no seu conjunto formas de atuação e operacionalização mais críticas e refratárias a dirigismos e coopta­ções do Estado.

Vislumbra­se, assim, a possibilidade de um projeto social de caráter mais autôno­mo, que compreenda o sentido da diferença

e, dessa forma, ilumine a interação social de modo a imprimir mais vida aos lugares, e não a sua negação, isto é, a mortificação do espaço. Nesse sentido, há que se forjar pelos poros da vida cotidiana a construção progressiva de situações capazes de resti­tuírem o desejo lúcido pela vida, revogando a lógica de definhamento da mercadoria e seus mecanismos de reificação das pessoas em objetos mercantis. A brutal mercantiliza­ção do espaço, sob o patrocínio explícito do Estado, circunscreve os termos da mortifica­ção aludida, que impõe uma condição crítica à reprodução social, com a degradação do trabalho e do trabalhador, tornado “coisa” descartável pelo sistema produtor de mer­cadorias. Essa condição­limite tem precipi­tado insurgências e resistências de variados matizes, parte delas ainda insuficientemente conhecidas e compreendidas, quando não negligenciadas. São forças emergentes que se dão paralelamente à profusão de ações diversas portadoras do sentido da barbá­rie, revelando­se como vertentes díspares de um mesmo processo histórico, sob uma mesma lógica. Isso pressupõe uma tomada de consciência quanto às causas reais des­ta condição de degradação e aviltamento do humano, isto é, o fato de que elas são pro­duzidas nas contradições e nos limites (cada vez mais evidentes) do sistema produtor de mercadorias, em franca e perversa expansão na contemporaneidade.

Em parte considerável, os movimentos autonomistas10 são portadores desse senti­do, questionando as ações do Estado e a ló­gica que as fundamenta, ações essas que se voltam à criação de espaços de dominação e controle para e pelo capital, no que impor­ta, sobretudo, às suas frações hegemônicas. O desenvolvimento e a difusão de práticas

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autonomistas delineiam não apenas novos arranjos político­territoriais, como também conferem à escala do lugar a condição de lócus privilegiado de uma geopolítica não institucional estatal.

A dinâmica espacial desigual e contra­ditória do capitalismo global reafirma, as­sim, as diferenças pela ação diversificada de movimentos sociais de variados mati­zes, dentre os quais se podem sublinhar os de caráter identitário, portadores de uma pluralidade de identidades. À medida que a globalização avança – fragilizando as iden­tidades culturais locais, não raro tornando­as difusas –, faz precipitar, como já obser­vado, uma diversidade de práticas e ações reativas pelo mundo, ou ainda, de variadas formas de insurgências voltadas, em grande medida, à inserção socioespacial de coletivi­dades em patamares dignos, assim como ao reconhecimento e à aceitação da alterida­de, da diferença e, até mesmo, do direito à indiferença. No entanto, nem toda dife­rença é socialmente aceitável ou desejável, podendo mesmo representar sérias amea­ças e constrangimentos ao convívio social, como bem o demonstra, por exemplo, os movimentos de inspiração neonazista e suas práticas discriminatórias e truculen­tas. Nada que deponha contra o humano é aceitável, salvo na órbita estreita e viciada desses movimentos e na mente doentia de seus adeptos e seguidores.

As ações de resistência e de insurgência vêm desencadeando, nos mais variados ter­ritórios, diferenciadas expressões socioespa­ciais, como guetos, movimentos de preser­vação de bairros, entre outros, que denotam a crescente articulação entre o global e o local. Vale lembrar que esse binômio global­local se traduz na contemporaneidade como

o campo relacional fundamental de forma­ção da dinâmica constitutiva de desigualda­des e diferenças. Ele é, concomitantemente, portador dos vetores do novo e do velho, o novo muitas vezes se inscrevendo sobre as heranças territoriais do passado, poden­do até suprimi­las, mas também se hibri­dizar com elas ou mesmo ser refutado por elas. Seria um exercício de pura presunção e miopia postular que a força do novo produz uma espécie de tábula rasa no conjunto dos territórios, desprezando­se, assim, as for­mas do passado remanescentes e os fatores de inércia.

As formas localizadas de ação política coletiva, dadas as novas possibilidades rela­cionais engendradas pela própria globaliza­ção, se fortalecem agora, até certo ponto, desafiando e redimensionando o poder do Estado. Um olhar mais atento pelos inters­tícios das grandes cidades nos revela uma gama de manifestações de resistência e de permanência, como são os casos de certos bairros e vilas que, até certo ponto, têm conseguido relativamente se resguardar e resistir às forças de fragmentação e rees­truturação da urbanização/metropolização. Nesses lugares, ainda perduram sinergias significativas entre moradores e destes para com o lugar de vivência, aspectos sujeitos à dissolução se não forem suficientemente valorizados e politicamente resguardados pelos interessados. Isso sugere a confor­mação de territórios diferenciais e diferen­ciados, cuja unidade expõe a convergência da extensão geográfica empírica, seus ha­bitantes e costumes, dotados de territoria­lidades insinuantes. Pode­se dizer que, até certo ponto, eles expõem uma cartografia comunitária relativamente bem demarcada, própria.

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É oportuno esclarecer que o sentido de território aqui empregado se coloca pa­ra além da acepção que o qualifica como um construto essencialmente material e econômico, mas que o compreende também como um valor simbólico, o que implica a valorização de práticas históricas empreen­didas pelos sujeitos sociais e de suas rela­ções com o espaço vivido. Bem entendido, isso não representa qualquer forma de cisão entre o econômico e o político, uma vez que a valorização do espaço não é dada apenas pelo modo econômico stricto sensu, mas es­sencialmente pelo político. É mais propria­mente o modo político de valorização que circunscreve o universo relacional privile­giado no qual se produzem formas de apro­priação voltadas ao uso do espaço, aí incluí­das as ainda possíveis relações topofílicas e de pertencimento ao lugar.

Tendo em vista uma melhor aferição das potencialidades e do alcance dessas ações coletivas, é necessário que elas se­jam avaliadas de forma sistêmica quanto às suas possibilidades (e limites) de transfor­mação e de melhoria das condições de vida, no que importa tanto às condições objeti­vas como subjetivas da existência. Nunca, como agora, as relações sociais estiveram tão submetidas e condicionadas à lógica do capital e do mercado, que ao instaurar o reino da concorrência e da competitivida­de, instaura, igualmente, o ódio, o conflito, a discriminação, induzindo à formação de

subjetividades obscuras que engendram – quase como um automatismo – a figura do inimigo, o que seguramente representa um ingrediente de perturbação às relações so­ciais, ao convívio e à solidariedade em nos­sos tempos. Porém, compreendemos que, para uma leitura crítica da dinâmica social, sob aquela mesma lógica, haveria que se levar em conta o necessário discernimento entre as situações em que a mercadoria é mediação relacional e aquela em que ela é só um recurso ou ainda um instrumento na realização da relação social. Lembremos que, sob o capitalismo acelerado dos tem­pos atuais, essa mediação pela mercado­ria recrudesceu, generalizando­se mundo afora, sobretudo por meio da publicidade ostensiva, do consumo dirigido, que criam valores e estabelecem uma cultura, portan­to, um modo de vida por ela demarcada. E com a ampliação da crise e a simultaneidade espaço­temporal de sua ocorrência, coloca­se no horizonte de nossas preocupações o exercício de se pensar e forjar (por atos práticos) as bases de uma nova forma de socialização e humanização, para além da forma social preeminente do valor. Indu­bitavelmente, trata­se de uma seara difícil, desafiadora e, por isso mesmo, estimulan­te, caminho para o qual a humanidade, de modo geral, parece estar ainda desprepara­da, mas que, no entanto, tudo leva a crer que este se lhe apresenta como única alter­nativa a extrair luz da escuridão.

Ulysses da Cunha BaggioDoutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo; professor do curso de Geo­grafia do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa (Minas Gerais, Brasil)[email protected]

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Notas

* Esta produção se vincula ao projeto autônomo de pesquisa Território e sociedade no ho-rizonte de uma geografia libertária: percursos de uma epistemologia do desejo, que ora desenvolvo junto ao Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa.

(1) O filósofo Henri Lefebvre é categórico ao assinalar que “no capitalismo, a base econômica comanda. O econômico domina. As estruturas e superestruturas organizam as relações de produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades). Os pró-prios conflitos se devem às relações de produção. Apesar de haver nessa sociedade uma coerência (sem a qual ela cairia em pedaços, ou melhor, sem a qual ela não poderia ter-se formado), apesar da coesão interna, sem chegar a suprimir as contradições, conseguir atenuá-las, protelar os efeitos, há ‘modo de produção’ e mesmo ‘sistema’. A riqueza das sociedades ‘nas quais reina o modo de produção capitalista’ se anuncia como uma imensa acumulação de mercadorias” (1999, p. 112, grifo nosso; os trechos e as expressões entre aspas simples são citações de Marx, extraídos por Lefebvre d’O capital). Anthony Giddens, por sua vez, relaciona a proeminência do econômico mais especificamente ao processo de inovação tecnológica. Argumenta acerca disso que, em virtude de o empreendimento capitalista apresentar uma “natureza fortemente competitiva e expansionista, [...] a inova-ção tecnológica tende a ser constante e difusa” e que, dessa forma, “dadas as altas taxas de inovação na esfera econômica, os relacionamentos econômicos têm considerável influên-cia sobre outras instituições” (1991, p. 62, grifo nosso).

(2) Sobre essa questão em específico, Harvey (1992) refere-se ao esgotamento do fordismo-keynesianismo e ao advento de um novo paradigma do capitalismo, que ele desig-na de “acumu lação flexível”, movimento que compreende como uma “transição” de paradigmas.

(3) De acordo com Lefebvre (1999, pp. 135-136, grifo do autor), “esse ‘mundo da mercadoria’ tem sua lógica, sua linguagem, que o discurso teórico encontra e ‘compreende’ (dissipan-do conseqüentemente suas ilusões). Tendo sua coerência interna, esse mundo quer espon-taneamente (automaticamente) se desenvolver sem limites; e pode fazê-lo. Ele se estende ao mundo inteiro; é o mercado mundial. Tudo se vende e se compra, se avalia em dinhei-ro. Todas as funções e estruturas por ele engendradas entram nesse mundo e sustentam-no. No entanto, esse mundo não chega a se fechar. Sua coerência tem limites; suas pretensões decepcionarão aqueles que apostam na troca e no valor de troca como absoluto. Com efeito, uma mercadoria escapa ao mundo da mercadoria: o trabalho, ou antes, o tempo de trabalho do trabalhador (proletário). Ele vende seu tempo de trabalho e continua, em princípio, livre; mesmo se crê ter vendido seu trabalho e sua pessoa, ele dispõe de direitos, de capacidades, de poderes que minam a dominação absoluta do mundo da mercadoria sobre o mundo inteiro. Por essa brecha podem entrar os ‘valores’ repelidos, o valor de uso, as relações de livre associação etc. Não é uma brecha ocasional; é mais e melhor; a con-tradição se instala no coração da coesão do capitalismo”.

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(4) Segundo Sandra Lencioni, os movimentos regionalistas “[...] emergem como força política no momento em que o processo de globalização procura açambarcar e homogeneizar todo o espaço. O movimento regionalista nega o nacional, podendo se fechar em sua par-ticularidade, e se coloca com um sentido totalmente inverso de outrora, quando afirmar a identidade regional era afirmar a identidade nacional, pois a construção do sentido de pertencer a uma região integrada num todo harmônico, sob a direção do Estado, afirmava o sentimento nacionalista. Sinais de outros tempos: o regionalismo nega o nacional e a identidade nacional num contexto em que o nacional, que se dilui no bojo do processo de globalização, nega o regional” (1999, pp. 199-200).

(5) Por situação, Pierre George compreende como “[...] uma soma de dados adquiridos, de re-lações organizadas em ordem sucessiva. Algumas dessas relações continuam a ser funcio-nais, integradas na evolução atual, enquanto que outras pertencem a uma herança que se degrada progressivamente e deixam, ao contrário, de ser funcionais”. Esclarece, ainda, que “[...] a situação se define necessariamente em primeiro lugar por limites espaciais, mesmo quando a influência do espaço local ou regional se combina com efeitos de uma plura-lidade espacial. Mas a evolução da situação pode comportar deslocamentos dos limites regionais ou locais, expansão ou retração do referido espaço. As heranças de situações an-teriores não correspondem necessariamente aos mesmos dados espaciais da situação atual e, desembocando em outra situação a curto prazo, pode-se ser conduzido a reconsiderar a posição espacial” (1968, p. 22).

(6) A idéia de apropriação está referenciada aos diversos modos pelos quais o espaço é ocupa-do, tanto por formas materiais (objetos) como por atividades inscritas territorialmente (que configuram os usos da terra), e ainda por indivíduos e segmentos sociais variados. Quando a apropriação do espaço se realiza de forma “sistematizada e institucionalizada” ela “po-de envolver a produção de formas territorialmente determinadas de solidariedade social (Harvey, 1992, p. 202).

(7) Compreendendo a territorialidade uma categoria relacional espaço-sociedade, mais especi-ficamente ela “[...] corresponde ao conjunto das relações que permitem aos diversos gru-pos fazer valer seus interesses no espaço, tornado lugar de vida”. (Bailly e Beguin, 1998, p. 16). Nesse sentido, ela se traduz e se inscreve como um fenômeno existencial, uma experiência possível manifesta no tempo e no espaço. É por meio da territorialidade que um dado grupo social ou indivíduo adquire consciência do seu espaço de vida. Assim, “[...] a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalida-de do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral” (Raffestin, 1993, p. 158).

(8) Pensa-se aqui principalmente em ações de caráter coletivo e que envolvam na sua origem e trajetória uma reflexão pública.

(9) Por democracia direta compreende-se uma situação (ou regime político) em que as de-mandas e os problemas sociais não apresentam como mediação única o Estado e seus representantes, mas, para além deles, outros agentes da sociedade civil, a exemplo de movimentos sociais diversos que atuam numa perspectiva mais independente e de caráter autogestionário, de modo que os indivíduos atuem mais diretamente nos processos decisó-rios, o que modernamente implicaria o emprego do recurso da delegação e da descentra-lização político-territorial.

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diferenciação espacial e análise regional sob a condição capitalista na contemporaneidade

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(10) Obviamente, não estamos considerando como parte integrante desses movimentos ONGs que atuam pautadas pela lógica do mercado, muitas delas, aliás, representando interesses de empresas transnacionais.

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Territórios e escalas de cooperaçãoe gestão consorciada: o caso francês

e seus aportes à experiência brasileiraSuely Maria Ribeiro Leal

ResumoAs mudanças na reconfiguração política e ter-ritorial das cidades, associadas à crise fiscal do Estado, tiveram impactos negativos sobre a organização Federativa brasileira. No início da presente década, a questão da reforma do Estado abre um amplo debate político cen-trado no aprofundamento do projeto de des-centralização e na necessidade de cooperação entre os entes locais, estaduais e nacionais. Esse processo resulta na institucionalização pelo Governo Federal da Lei de Consórcios Públicos (Lei n. 11.107/05).1 Este artigo re-flete sobre modelos e escalas territoriais de gestão e governança consorciada, a partir dos aportes da experiência de Coopération Inter-communale, (Cooperação Intermunicipal) na França.2 Discute os avanços e limites do mo-delo francês avaliando sua contribuição para o futuro da cooperação territorial consorciada no Brasil.

Palavras-chave: consórcios; gestão; terri-tório; intercomunal; comunidades de aglome-ração; comunidades urbanas; comunidades de comunas.

AbstractChanges in the political and territorial reconfiguration of the cities, associated with the fiscal crisis of the State, have had negative impacts on the Brazilian Federative organization. At the beginning of the present decade, the matter of State reform opens a wide political debate focusing on the expansion of the decentralization project and on the need of cooperation among local states and the national sphere. This process results in the institutionalization by the Federal Government of the Law of Public Consortiums (Law n. 11.107/05).1 This article aims at a reflection on territorial scales and models of shared management and governance, based on the contribution of the French experience of Coopération Intercommunale (intercity cooperation).2 It also discusses the progress and limitations of the French model, evaluating its contribution to the future of shared territorial cooperation in Brazil.

Keywords: consortiums; management; territories; intercommunal; communities of agglomeration; urban communities; communities of communes.

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Introdução

As experiências de cooperação entre municí-pios ainda se constituem, no caso brasileiro, em práticas bastante embrionárias e pou-co difundidas no espaço nacional. As mais conhecidas são os Consórcios na área de Saúde, na Gestão Metropolitana de Bacias Hidrográficas, ou Convênios estabelecidos no gerenciamento de projetos de natureza institucional. Essas formas de cooperação municipal, só recentemente foram regu-lamentadas por mecanismos normativos, através da Lei dos Consórcios Municipais, Lei 11.107, de 6 de abril de 2005.3 Em-bora possam ser identificadas algumas ex-periências consorciadas no caso brasileiro, a exemplo dos consórcios no setor da saúde, essas práticas ainda são pouco difundidas no cotidiano da administração pública.

Na França, a Cooperação Intermunici-pal conhece um crescimento depois da Lei de 12 de julho de 1999,4 relativa ao reforça-mento e a simplificação das formas coope-ração entre communes5 (municípios). A ma-lha territorial francesa passa a se organizar para implantar Établissements Publics de Coopération Intercommunale – EPCI à Fis-calité Propre (Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria - EPCI).6

No caso francês, a Cooperação Inter-municipal vem se constituindo em prática corriqueira na vida política local para fazer face às dificuldades de gestão e governan-ça de grande número de municípios. Essas formas de cooperação foram intensificadas a partir de 1982, com o projeto de reforma do Estado no sentido da descentralização. Os efeitos da descentralização marcaram

uma mutação. De uma concepção geográfi-ca abstrata, o território tornou-se um lugar da ação viva das políticas públicas. A lógica ascendente de levar em conta as questões locais substituiu uma política de organização do território centralizada. O aparecimento da noção de território pertinente modifi-cou a distribuição dos contratos econômicos e sociais. O desenvolvimento das políticas contratuais e da Intercommunalité (Inter-municipalidade) contribuem para uma nova forma de relacionamento entre as esferas governamentais, não governamentais e com os setores privados. Na atualidade, o espa-ço territorial francês encontra uma grande multiplicidade de mecanismos de Coopera-ção Intermunicipal criados pelo poder públi-co e orientados segundo princípios políticos, econômicos, sociais, legais e fiscais.

Percursos da cooperação consorciada no Brasil

No Brasil, a Cooperação Intermunicipal vem se afirmando como um importante instru-mento para o fortalecimento dos municípios e se impõe, a cada dia, em termos de coe-rência do desenvolvimento do território e de eficácia na gestão pública e melhoria da solidariedade financeira e, ainda, como meio para o fortalecimento da democracia e do desenvolvimento das estruturas locais.

A adoção de estruturas de consorcia-mento tem correspondido aos momentos de maior autonomia e descentralização federa-tiva, caracterizando-se como instrumento de cooperação, coordenação e pactuação fe-derativa entre as esferas da União, estados e municípios.

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No período que se inaugura com a democratização do país, a partir da Cons-tituição de 1988, o debate sobre a gestão consorciada passou a assumir papel central nas questões relativas aos processos de go-vernança municipal. No entanto, a ausência de regulação jurídica no disciplinamento de acordos cooperativos de consórcios públi-cos e ou convênios de cooperação sempre se constituiu em entrave à implementação e funcionamento de estruturas consorciadas. A falta de regulação jurídica vem associada, além disso, à competição federativa induzi-da pela crise financeira do Estado brasilei-ro, que tem incitado à guerra fiscal entre os municípios e dificultado o atendimento das demandas das políticas públicas locais.

Ações mais consolidadas no sentido da promoção de articulação consorciada entre municípios podem ser identificadas a partir da década de 2000 no segmento da Saúde, tendo como mecanismo indutor a adesão dos municípios ao Sistema Único de Saúde (SUS).7 A natureza integradora do SUS nas soluções na área da Saúde Pública favoreceu a criação de consórcios na área da saúde, que em 2000 envolviam 1.969 municípios, em comparação com 64 na habitação e 85 na limpeza urbana e 161 na área dos ser-viços de esgotamento sanitário (Ribeiro, 2005a, p. 11).

Em que pese o seu crescimento em algumas áreas das políticas urbanas, os consórcios continuaram submetidos à pre-cariedade legal e sem direito à personalida-de jurídica, tendo limitada a sua utilização. Em 1998, no bojo da aprovação da Emen-da Constitucional n. 19, a Constituição, no seu artigo 241, voltou a recepcionar ex-plicitamente o instituto dos consórcios pú-blicos, conceituando-o como mecanismos

destinados à gestão associada de serviços públicos a serem utilizados pelos três entes federativos. Determinava, ainda, que a ma-téria deveria ser objeto de disciplinamento por meio de lei específica (Vital, 2005).

Em 2002, a eleição do Presidente Luis Inácio Lula da Silva veio criar condições po-líticas favoráveis ao projeto dos consórcios públicos. A criação do Ministério das Cidades (2003) e a realização da 1ª Conferência Na-cional das Cidades constituem-se em passo inicial à construção da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU. Dentre as proposições para fazer face à crise urbana brasileira, foi evidenciada a necessidade do envolvimento e da estreita articulação entre os três níveis de governo, da sociedade civil e do setor privado na adoção de uma políti-ca nacional orientadora e coordenadora de planos, projetos e atividades (ibid.).

A consecução dessa política vem reque-rer, portanto, a adoção de um novo pacto federativo de caráter cooperativo, no qual se possa estabelecer um equilíbrio entre a autonomia e a interdependência, entre o lo-cal e o nacional, entre a unidade e a diver-sidade, de modo que passem a ganhar rele-vância os aspectos relativos à coordenação e cooperação intergovernamentais (Brasil, 2004a, pp. 7-13).

O processo para efetivação da Lei dos Consórcios Públicos (Lei n. 11.107) passou por diversas etapas, iniciando-se pela regu-lamentação do art. 241 da Constituição Fe-deral e a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI,8 que esboçou uma proposta a partir da ausculta a diferentes especialistas. O esboço inicial foi também submetido aos governadores dos estados, aos prefeitos das capitais, à Frente Nacional dos Prefeitos, à Confederação Nacional dos

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Prefeitos e a gestores de consórcios em fun-cionamento (Vital, 2005).

O texto apresentava como sugestões a criação de dispositivos que ampliassem a co-operação federativa entre todos os seus en-tes; que aumentassem a capacidade instru-mental do governo federal para coordenar a implementação de políticas públicas em con-junto com os estados, o Distrito Federal e os municípios; e que fornecessem segurança jurídica ao uso dos instrumentos de consor-ciamento. Também foram incorporadas ao texto, entre outros aspectos, as questões relativas ao reforço à função do planejamen-to no setor público, especialmente quanto ao desenvolvimento regional e à prestação de serviços públicos, o respeito às exigências do direito público, a observância das regras orçamentárias e da responsabilidade solidá-ria. Essas propostas transformaram-se no Projeto de Lei n. 3.884, protocolado em re-gime de urgência na Câmara dos Deputados em 25 de junho de 2004 (Brasil, 2005).

Em 6 de abril de 2005, a exigência de estabelecer as normas gerais de contratação dos consórcios públicos seria sanada, por in-termédio da Lei n. 11.107 (ibid.).

Os municípios foram os mais direta-mente beneficiados por esse diploma legal, podendo promover consórcios públicos para a realização de serviços comuns entre si ou de forma conjunta com a União e estados. Nos moldes postos pela Lei, o consórcio trata-se de um instrumento que pretende trazer ganhos de eficiência na gestão e na execução das despesas públicas e possibilitar a criação de parcerias as mais diversas.

Nessa direção, a partir da efetivação do consorciamento, o Poder Público pode fir-mar convênios, contratos, acordos de qual-quer natureza, receber auxílio, contribuições

e subvenções sociais ou econômicas de ou-tras entidades e órgãos do governo; pode, ainda, nos termos do contrato constitutivo, promover desapropriações e instituir servi-dões nos termos da declaração de utilidade, necessidade pública ou interesse social rea-lizada pelo Poder Público, podendo ainda ser contratado pela administração direta ou indireta dispensada a licitação (ibid.).9

O consórcio público como está previsto é o mecanismo que faltava para a execução das funções públicas de interesse comum das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas instituídas pelos estados, dando aos municípios a oportunidade de se associarem na gestão dos serviços e na execução de suas obras, contando inclusive com a participação do Estado e da União.

Modelo francês de cooperação intermunicipal

A organização que estrutura o território francês remonta à Revolução Francesa. O debate sobre a organização territorial é um dos primeiros na matéria, contido na Cons-tituição de 1789 que cria o Département (Departamento) a partir de uma construção intelectual que respeita, todavia, a geogra-fia. A sua criação é precedida pela anulação dos diferentes níveis de circunscrição que predominavam sobre as estrutura medieval procurando romper, o mais possível, com vínculos feudais do passado.10

Ao inverso desse processo , as communes (municípios) foram organizadas constitucionalmente em 1792, levando-se

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em conta a realidade que estruturava o ter-ritório. Elas não foram, propriamente falan-do, uma criação legal, mas nomes dados pela lei e dotadas de uma organização e de um estatuto jurídico uniforme. A commune (mu-nicípio) é a estrutura de base da organização administrativa francesa – “união de habitan-tes ligados a interesses comuns”. Atualmen-te, existem sobre o território francês 36.584 communes (municípios), as quais podem ser consideradas uma tradição francesa de orga-nização territorial onde vivem 75% da po-pulação urbana do país.11 O debate político sobre a cooperação municipal surge após a II Guerra Mundial. A urbanização acelerada, o êxodo rural, a reestruturação industrial, o desenvolvimento dos meios de transportes e a organização espacial das cidades passaram a evidenciar, ainda mais, as dificuldades da maioria dos municípios franceses para assu-mir o desenvolvimento dos serviços locais e levar a termo as missões de desenvolvimen-to econômico e de ordenamento dos territó-rios. Cerca de 80% dentre eles têm menos de 1.000 habitantes, o que vem conduzindo os poderes públicos a incitar o reagrupamen-to municipal. Essa reaproximação se limita, seguidamente, a realizar em comum alguns serviços e fusões, restando a commune co-mo um quadro de referência forte para seus habitantes e seus eleitos, podendo a mesma ser considerada uma tradição na organiza-ção territorial francesa.

Numerosas reformas foram adota-das para tentar responder às exigências do momento. Em 1959, foram criados: o Syn-dicat Intercommunal à Vocation Multiple – SIVOM (Sindicato Intermunicipal de Vocação Múltipla – SIVOM)12 para o espaço rural, e o District (Distrito), inicialmente previsto para os municípios urbanos. Em 1966, as

aglomerações de Lille, Bordeaux, Lyon e Strasbourg se reagruparam sob a forma de communauté urbaine (comunidade urbana). A Lei de 16 de julho de 1971, relativa às fusões de municípios, prevê a integração de numerosas e pequenas comunidades.

L‘Intercommunalité (A Intermunicipa-lidade) surge como fato posterior, respon-dendo, depois de longo tempo, a um desejo de suprir a fragilidade política, demográfica e fiscal dos municípios. De fato, cerca de 32.000 deles contam menos de 2.500 ha-bitantes, cerca de 3.280 contam com me-nos de 700 habitantes; 1.200 com 200 mil, sendo que somente 103 municípios pos-suem mais de 50.000 habitantes (Le Saout, 1998, p. 8). Essas cifras colocam em evi-dência a necessidade que se impõe aos mu-nicípios franceses de reagrupamento para fazer face às ações de gestão dos serviços públicos (lixo, saneamento básico, água, de-senvolvimento econômico e organização do território).

A Cooperação Intermunicipal se afirma, portanto, como ponto forte na permanência da commune e se impõe mais e mais, em termos de coerência do desenvolvimento do território e da eficácia na gestão e melhoria da solidariedade financeira.

Dez anos depois da lei relativa às fu-sões, a política de descentralização coloca novamente a gestão municipal como ques-tão importante. Por intermédio do ato fundador da Lei de 2 de março de 1982, é votada posteriormente, em 6 de fevereiro de 1992, a Loi d’Administration Territo-riale da Répúblique – ATR (Lei de Adminis-tração Territorial da República -ATR), que instaurou dois novos tipos de estabeleci-mentos intermunicipais: a communauté de communes (comunidade de municípios)13

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e a communauté de villes (comunidade de cidades).14

Depois da adoção da Lei retroativa à administração territorial da República, de 1992, a França vê sua malha territorial se organizar para implantar Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria. Esse movimento de co-operação intermunicipal conhece um novo crescimento depois da adoção da Lei de 12 de julho de 1999, relativa ao reforço e à simplificação da Cooperação Intermunicipal. Este texto constitui uma nova fase no desen-volvimento do projeto da Intercommunalité (Intermunicipalidade).15

A Lei de 1992 é considerada particular-mente benéfica ao mundo rural, pelo viés no-tadamente do desenvolvimento das comu ni-dades de municípios, o mesmo não pode ser dito com respeito à estruturação do espaço urbano. Com efeito, a limitação da fórmula da comunidade urbana, para as médias aglome-rações, não permitiu resolver os problemas para cada comunidade de cidade (ville). É as-sim que a Lei de 12 de julho de 1999 propõe uma nova arquitetura institucional para a co-operação intermunicipal no meio urbano, pre-vendo a revisão da fórmula da communauté urbaine (comunidade urbana) para as grandes (maiores) aglomerações, aquelas contando com mais de 500.000 habitantes, e de criar para as aglomerações médias uma nova ca-tegoria jurídica de coo peração: communauté d’agglomération (comunidade de aglome-ração).16 Os limites territoriais de uma Co-munidade de Aglomeração se restringem às áreas urbanas. Para que uma Comunidade de Aglomeração seja criada, a população total das Comunas (municípios) que a compõem deve ser de, no mínimo, 50 mil habitantes, e a Comuna sede da Aglomeração deve pos-

suir 15 mil habitantes. Essa condição não é um requisito quando se trata da commune chef du département (município sede do de-partamento). Essa dupla exigência reserva à criação das comunidades de aglomeração às zonas urbanas representando espaços onde o tamanho aparece como suficiente para de-finir políticas da aglomeração, notadamente nos domínios dos setores estruturantes co-mo transportes, urbanismo e habitação. Por isso as communauté d’agglomération (co-munidades de aglomeração) devem exercer competências, obrigatórias ou opcionais, cujo conteúdo preciso é definido pela lei, a menos que ela não dependa de uma decisão sobre seu interesse comunitário. Nesse quadro, as communauté de communes (comunidades de municípios) tendem a reencontrar sua voca-ção inicial de estrutura mais voltada para o meio rural e adaptada à sua Intercommunalité (Intermunicipalidade) de pequeno tamanho. Assim, seu regime jurídico não se encontra modificado pelo voto recente do texto. Além do mais, é possível mencionar a obrigação de continuidade territorial, exigida quando da criação e mesmo para extensões futuras, as-sim como o encorajamento dado a escolha da Taxe Professionnel Unique (Taxa Profissional Única).17

Constatando a complexidade das insti-tuições da Intercommunalité (Intermunicipa-lidade) a Lei de 199918 buscou racionalizar os tipos de estruturas pondo fim aos distri-tos e à comunidade de cidade e retendo ape-nas três categorias de estabelecimentos pú-blicos de cooperação intermunicipal com tri-butação própria: a communauté urbaine (co-munidade urbana) que serve de quadro para cooperação intermunicipal nas grandes aglo-merações; a communauté d’agglomération (comunidade de aglomeração), mais voltada

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às cidades e ao meio ambiente urbano; a communauté de communes (comunidade de municípios) não subordinada a um limite de-mográfico, destinada às pequenas aglomera-ções e ao meio rural. Foram ainda mantidos os Syndicats de Communes – SIVU e SIVOM (Sindicatos de Municípios) – SIVU e SIVOM e os Syndicats Mixtes (Sindicatos Mistos).

O texto prevê que as comunidades de aglomeração, as futuras comunidades urba-nas e as futuras comunidades de municípios se apóiem sobre um perímetro contínuo e sem divisão, do mesmo modo que todo o grupamento se transformando em uma ou-tra categoria de estabelecimentos públicos de cooperação intermunicipal, permitindo, desse modo, aos grupamentos se assentarem sobre um território homogêneo e coe rente.

A racionalização das estruturas inter-municipais passa, igualmente, pela previsão das superposições de estruturas e de cruza-mentos de competências. A fim de se ante-cipar aos cruzamentos de competências, o texto prevê que um município não poderá pertencer senão a um só Estabelecimento Público de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria: e facilita, por outro lado, as retiradas dos Sindicatos de Muni-cípios. O projeto de lei reforma também, sensivelmente, o mecanismo de representa-ção, substituindo para municípios aderentes a uma comunidade ou a uma comunidade urbana. O segundo ponto da simplificação consiste na harmonização do direito de co-operação intermunicipal. Esse esforço de harmonização incide principalmente sobre a designação dos delegados, a representação dos municípios, as regras de funcionamento e da maioria qualificada ou ainda, sobre as condições de criação. É assim criado um verdadeiro corpo de regras comuns para o

conjunto dos Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal – EPCI.

Embora tenha sido alvo de intensos de-bates no meio parlamentar, a Lei não veio a introduzir a eleição direta pelo sufrágio universal dos delegados comunitários. Des-se modo, somente os conseillers municipaux (conselheiros municipais)19 poderão ser de-signados delegados comunitários dos Esta-belecimentos Públicos de Cooperação Inter-municipal: a informação e a participação dos habitantes serão possibilitadas desde que o órgão deliberativo do grupamento poderá criar comitês consultivos sobre todos os ser-viços de interesse intermunicipal relevante e de competência dos estabelecimentos.

A representação dos cidadãos é assegu-rada através dos órgãos eleitos pelo sufrágio universal para as coletividades locais, sendo um Estabelecimento Público de Cooperação Intermunicipal administrado, conforme o caso, por um comité ou conseil (comitê ou conselho) composto por délégués élus (de-legados eleitos) pelo conseil municipal (con-selho municipal) de cada commune membre (município membro). O município conserva, portanto, o controle como órgão deliberan-te procedendo à designação de delegados, via conselho. Possuem, além dos comitês ou conselhos, um gabinete composto pelo pre-sidente e membros (vice-presidente, tesou-reiro e secretários) eleitos pelo conselho.

A questão da legitimidade da represen-tação indireta tem sido motivo de questiona-mento por parte dos setores políticos. Hoje, cerca de 80% da presidência dos Estabeleci-mentos Públicos de Cooperação Intermuni-cipal são ocupados por maires (prefeitos) e 18% dos presidentes possuem mandatos – 6,3% de conseillers (conselheiros) e 11,7% adjoints (assessores do prefeito).

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A situação da Cooperação Intermunici-pal na França passa por novas mudanças a partir de 2000. Sob a orientação normativa da Lei 1999, que põe fim aos distritos e à comunidade de cidades, os Estabelecimen-tos Públicos de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria irão se restringir a três categorias: a communauté urbaine (comunidade urbana), a communauté d’agglomeration (comunidade de aglomera-ção), communauté de communes (comuni-dade de municípios) (ver Figuras).

Em 1999, o número de Estabeleci-mentos de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria equivalia a 1.680 gru-pamentos, divididos entre Sindicatos de Vocação Única (SIVU), Sindicatos de Voca-ção Múltipla (SIVOM), Sindicatos Mistos, distritos, comunidades urbanas, Sindica-tos de Aglomeração Urbana, comunidades de municípios ou comunidades de cidades. Esses grupamentos abrangiam pouco mais de 19.000 municípios e uma população de 34.030.789 habitantes (DGCL – Ministère de l’ Intérieur – France, 2001).

As comunidades urbanas somavam no ano de 2000 12 grupamentos abrangendo 311 municípios, reagrupando uma popula-ção de 4.638.748 habitantes. Em 2001, o número de grupamentos é acrescido para 14, incorporando 348 municípios e uma população acima de 6 milhões de habitan-tes. Em 2001, os efeitos da lei de 1999 já podem ser melhor observados, tendo havido um acréscimo significativo no nú-mero de grupamentos de comunidades de aglomeração que passam de 50 em 2000 para 90 em 2001; o número de municípios reagrupados se amplia de 756 para 1.435; a população reagrupada passa de 5.992.885 para 11.456.020. Observa-se também um

declínio no número de distritos e o desa-parecimento das comunidades de cidade (DGCL – Ministère de l‘Intérieur – France, 2001).

O desenvolvimento de grupamentos com tributação própria segue uma evolução considerável. Embora, até 1993, os Estabe-lecimentos Públicos de Cooperação Intermu-nicipal com Tributação Própria não concerne senão cerca de 16 milhões de habitantes repartidos sobre 466 grupamentos; a partir da adoção da Lei ATR se verá nascer uma dinâmica real para os estabelecimentos pú-blicos com fiscalidade própria.

A cooperação intermunicipal na França obteve um enorme impulso a partir da Lei de julho de 1999. De fato, em 2000, 1.846 Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal com Tributação Própria rea-grupavam 21.339 municípios representando 37,1 milhões de habitantes. O número de Estabelecimentos com Taxa Profissional Úni-ca triplicou entre julho de 1999 (109 estru-turas) a janeiro de 2000 (303), como tam-bém a população concernente (4,2 milhões para 13,1 milhões). Em 2001, o número de grupamentos com tributação própria se ele-va a 2.000, sendo o número de municípios reagrupados equivalente a 23.458 e a popu-lação a 40, 3 milhões de habitantes (DGCL – Ministère de l‘Intérieur – France, 2001).

A área urbana foi particularmente marcada pelo crescimento da cooperação intermunicipal: em 2000 foram criadas cerca de 50 comunidades de aglomeração, sendo também significativo o aumento dos grupamentos com tributação própria particularmente ilustrado pela evolução

das comunidades de municípios. Embora

a adoção da lei de 12 de julho de 1999,

relativa ao reforço e à simplificação da

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cooperação intermunicipal tenha multiplica-

do as estruturas intermunicipais sobre por-

ções do território que permaneciam pobres

em grupamentos, a tipologia da prática in-

termunicipal demora a se revelar em anti-

gas tradições de cooperação.

Os dados acima demonstram que pare-

ce ser irreversível o cenário da cooperação

intermunicipal francesa, o que, a longo pra-

zo, vai transformar profundamente a orga-

nização territorial do país. Como estima a

DGCL – Ministère de l‘Intérieur – France, a

persistência desse movimento daqui a dez

ou quinze anos levará a França a possuir em

torno de 3.500 comunidades de municípios,

130 comunidades de aglomeração e 20 co-

munidades urbanas.

A distribuição da população, segundo

tipo de grupamentos, também evidencia a

importância adquirida pelos Estabelecimen-

tos Públicos de Cooperação Intermunicipal –

EPCI. Cerca de 50% dos grupamentos con-

tavam entre 2.000 e 20.000 habitantes. Os

grupamentos de sindicatos são mais nume-

rosos nas faixas de população entre 1.000

a 50.000 habitantes; os distritos, entre

2.000 e 50.000; as comunidades de muni-

cípios, entre 1.000 e 50.000, as comunida-

des urbanas e as comunidades de aglome-

ração, entre 50.000 e 300.000 habitantes.

Essas informações são compatíveis com as

regras de criação dos estabelecimentos que

determinam que as comunidades urbanas

devem compor uma população acima de 20

mil e as comunidades de aglomeração têm

que possuir no mínimo 50 mil habitantes.

Aportes da cooperação intermunicipal na França à cooperação consorciada no Brasil

Os rumos da cooperação intermunicipal na França podem ser delineados no documento Refonder l’Action Publique Locale (Refundar a Ação Pública Local), relatório elaborado pela Comission pour l’Avenir de la Decentralisation (Comissão para o Futuro da Descentralização) sob a coordenação de M. Pierre Mauroy.20

O relatório contempla o projeto de lei da descentralização a vigorar a partir de 2007, que traça os novos horizontes da ação intermunicipal francesa. As novas pers-pectivas abertas no quadro desse relatório podem ser sintetizadas nas doze orientações prioritárias objeto de análise do Legislativo:

[...] 1. Uma Cooperação Intermunicipal

Democratizada; 2. Uma Coletividade

Departamental Renovada; 3. Um Poder

Regional Forte; 4. Uma Desconcentra-

ção Acrescida; 5. Competências Melhor

Distribuídas; 6. Os Princípios Reafirma-

dos; 7. Uma Democracia de Proximida-

de; 8. O Acesso mais Democrático às

Funções Eletivas; 9. Uma Melhor Segu-

rança Jurídica; 10. Uma Adaptação da

Função Pública Territorial às Exigências

da Descentralização; 11. A Moderni-

zação dos Financiamentos Locais; 12.

Um Debate Nacional e uma Conferência

Anual. (Commission pour l’Avenir de la

Centralisation, 2000)

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O modelo francês de descentralização passou, nos últimos vinte anos, por inúmeros avanços. A ruptura com a longa tradição ja-cobina – centralizadora – propiciada depois dos anos oitenta pela introdução das Leis de 1982 e 1983, redefiniu a arquitetura insti-tucional em nível local provocando um movi-mento irreversível de mudança no modo de decisão, de gestão e do exercício do poder nacional e local.

No entanto, o arcabouço institucional constituído nos anos oitenta e sedimentado nos anos noventa não se encontrava apto suficientemente para fazer face às novas transformações provocadas nas configura-ções territoriais, políticas e sociais, de mo-do a atender aos anseios de uma sociedade predominantemente urbana e integrada aos movimentos de globalização e mundialização da economia.

As aspirações por um projeto global e as críticas à própria forma de democracia – sobre a qual se constata certa “anorexia de-mocrática” – estão a requerer hoje reformas de natureza profunda no modelo de descen-tralização francês.

É nessa direção que as reflexões e pro-posições contempladas no “Relatório Mau-roy” se fundam na perspectiva de uma reno-vação democrática das instituições dentro de uma visão global de evolução da organiza-ção territorial visando, sobretudo, atender às novas exigências dos cidadãos em matéria da eficácia da ação pública. O olhar sobre o futuro da descentralização volta-se na dire-ção de superar as limitações deixadas pelas reformas nascidas nos anos oitenta. O de-safio desse novo projeto se prende, assim, à necessidade em adequar a organização territorial e política francesa às condições de uma nova época na qual se constata uma

geografia humana, social e política prepon-derantemente diferente.

A questão urbana se constitui, sem dú-vida, em um fator de impacto sobre a des-centralização. Segundo as prospectivas esta-belecidas pela Délegation à l’Aménagement du Territoire et à l’Action Régionale – Datar, com base nos resultados do recenseamento de 1999, quando se observa a evolução de-mográfica do país, se constata uma repar-tição da população completamente distinta daquela existente nos últimos vinte anos (Delegation Interministerielle, 1999).

Em linhas gerais, dois grandes traços podem ser observados: em primeiro lugar, a separação cidade-campo se atenua em proveito de um terceiro tipo de organização territorial, aquele das grandes áreas urba-nas. Cada uma delas centrada sobre um pólo urbano, cidade – centro e periferia. As áreas urbanas na França metropolitana possuem cerca de 42.763.000 pessoas, ou seja, três quartos da população habitam em uma das 361 áreas urbanas que, em conjunto, re-presentam 20% do território. O conceito do urbano modificou-se desse modo, pro-fundamente, não sendo mais possível, como no passado, fazer oposição entre cidade e campo.

Em segundo lugar, os grandes territó-rios se desenham. Com efeito, para além das áreas urbanas, existe um grande dinamismo das municipalidades próximas e as ligações entre estas com as grandes áreas urbanas estão se sedimentando, o que tende a acen-tuar, ainda mais, a repartição da população.

É nesse contexto que o processo de ur-banização traz conseqüências consideráveis sobre a evolução das estruturas urbanas das coletividades territoriais e sobre sua organi-zação política.

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Um outro fator destacado pelo relatório e também constatado nos estudos da Datar, trata-se do agravamento das desigualdades regionais que configuram a organização es-pacial e econômica do país. Nos anos noven-ta, as grandes tendências do desenvolvimen-to desigual persistiram: as regiões do sudes-te restaram como principais beneficiárias do crescimento econômico, enquanto aquelas integrantes do norte e do nordeste – mais populosas – foram submetidas ao êxodo in-dustrial, e o centro da França tem continua-do a perder população. As regiões do oeste e sudoeste têm se beneficiado de uma nova dinâmica, fazendo parte das regiões onde o crescimento tem sido mais forte, juntamen-te com a do leste.

Um breve balanço do processo de des-centralização, de seu peso na redistribuição do poder e na aproximação das decisões do lugar de sua aplicação, as realizações e as transformações que ela trouxe à vida dos cidadãos permite avaliar alguns de seus re-sultados.

A descentralização se traduziu, em par-ticular, pelo desenvolvimento considerável dos equipamentos locais. Segundo dados do relatório,

[...] no ano de 1998 o esforço de in-

vestimento das coletividades territoriais

representou, fora o reembolso da dí-

vida, mais de 180 bilhões de francos,

correspondendo a cerca de três quartos

do investimento público nacional. As

despesas de investimento das Regiões

conheceram um aumento médio anual

de 11,3% (9,1% francos constantes)

entre 1986 e 1997 passando de 11 bi-

lhões em 1987 a 37 bilhões de francos

em 1997. A mesma evolução é consta-

tada para o Departamento com um au-

mento médio de 6,1% por ano (3,6%

em francos constantes) portando este

tipo de despesas a 53 bilhões de fran-

cos em 1997 contra 26 bilhões em

1985.21

Ainda é importante salientar que essa progressão foi feita em uma conjuntura de equilíbrio financeiro em um contexto de boa gestão que permitiu às coletividades locais realizar uma política apreciável de redução de encargos (Mauroy, 2000, p. 17).

Não resta dúvida que essa revolução intermunicipal trará ao país melhores con-dições de competir com o desenvolvimen-to no espaço europeu que se organiza em torno das grandes metrópoles, centros e regiões dinâmicas. Do mesmo modo, esse movimento permitirá o estabelecimento de novas relações entre municípios e as inter-communalité (intermunicipalidades), pro-piciando um novo papel na paisagem ins-titucional aos municípios, departamentos e regiões.

Portanto, longe de ser uma simples resposta aos problemas da gestão pública local, a cooperação intermunicipal se ins-creve em um debate mais amplo, que revisa mais largamente a organização territorial e a vida política francesa.

Nessa direção, devem ser questionados alguns estrangulamentos que se evidenciam, na atual conjuntura, com respeito ao futuro cenário da organização territorial e política francesa e que podem servir de reflexão na adoção de futuras práticas de consorciamen-to público no Brasil.

Aspectos a destacar são as questões da competência institucional e da legitimidade democrática.

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O problema das competências de cada ente territorial constituiu objeto de longa análise por parte da comissão que referencia o modo de convivência entre as esferas de decisão:

[...] se passou, em vinte anos, de um

princípio de descentralização por blo-

cos de competências, a um sistema de

parceria no qual todo mundo faz tudo,

notadamente no domínio social. (Ibid.)

As razões atribuídas são de três ordens:

[...] A clareza da escolha de 1983 não

era sem dúvida que aparente. Daí a ori-

gem de muitas das imbricações existen-

tes. Um segundo elemento de dificulda-

de reside na generalização de uma pro-

ximidade contratual, em especial entre

o Estado e as coletividades. Enfim, um

terceiro fator de complexidade resulta

das extensões de competências da parte

dos serviços do Estado. (Ibid.)

A situação é igualmente contrastante no que concerne às competências desiguais. De um lado, os distritos ou as comunidades fortemente integradas do ponto de vista das missões e da tributação e, de outro, grupa-mentos que se caracterizam por um défi-cit de atribuições. Alguns eleitos são então obrigados a buscar financiamentos para as despesas de seu município. A cooperação é para eles um meio de captar dotações ou subvenções do Estado, da região ou da União Européia ou do departamento.

Outro elemento trata-se da multiplici-dade dos níveis e a ausência de coordenação. O modelo institucional de descentralização francês tem sido pautado por uma estrutura

cada vez mais complexa. Os três níveis tra-dicionais – a região, o departamento e o município – foram acrescidos de novas es-truturas locais, a exemplo dos sindicatos com vocação única ou múltipla e dos dife-rentes modos de cooperação intermunicipal, além do surgimento de diversos tipos de contratos – de villes e ou de pays, instâncias habilitadas a contratualizar com o Estado. Essa complexidade expressa a inadaptação do tamanho dos diferentes níveis e o custo econômico que é gerado ante o grande nú-mero de estruturas.

Por sua vez, as coletividades territo-riais não se constituem nos únicos atores da descentralização e da vida local. Organismos sociais, estabelecimentos públicos, associa-ções encarregadas de missões dos serviços públicos vêm ampliar a armadura institu-cional do serviço público local, que se torna cada vez mais difuso à compreensão do ci-dadão e usuário.

Um outro elemento que dificulta a arti-culação entre os diversos níveis são os prin-cípios de autonomia constitucional de cada um deles, que determina que uma coletivi-dade não pode se sobrepor hierarquicamen-te a outra.

Esses princípios, no entanto, não impe-dem que sejam buscadas formas de diálogo para o exercício de competências partilhadas entre as diversas coletividades de níveis e vocações diferentes. Nesses aspectos, o re-latório destaca:

[...] a ausência de uma estrutura de coo-

peração “vertical” que venha a permitir

a reunião de coletividades de diferentes

níveis. Isso se acompanha de um déficit

de diálogo entre as coletividades, da au-

sência de uma articulação das políticas

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que podem conduzir a dupla utilização

ou mesmo a incoerências e contradi-

ções. (Comission pour l’Avenir, 2000)

Ausência de uma visão estratégica clara por parte do Estado também é frisada pelo relatório:

[...] o Estado não tem senão que, me-

diocremente, tirado proveito da descen-

tralização. A ausência de estratégias e

as hesitações marcam o lado onde ele

exerce localmente competências. Raras

são as políticas públicas que têm sido

explicitamente redefinidas em função

da descentralização. Em particular a

política de aménagement du territoire

(ordenamento do território) não tem

sido redefinida na ótica de uma divisão

de competência entre o Estado e as re-

giões”. (Ibid.)

Esse fato conduz a uma falta de clareza quanto às responsabilidades induzindo ne-cessariamente a conflitos de competências e impedindo o bom andamento das ações, o que se traduz em uma organização comple-xa e opaca.

Os cidadãos e muitos eleitos se perdem nas multiplicações dos tipos de grupamentos (sindicatos, distritos, comunidades urbanas, de municípios ou de cidades, para falar nas principais, deixando-se de lado a cooperação informal que opera por vias as mais diver-sas). Eles compreendem mal o que as dife-rencia. As comunidades urbanas ou de mu-nicípios ou mesmo certos distritos dispõem de uma tributação própria de tipo adicional. As comunidades de cidades e certos distri-tos, comunidades urbanas ou de municípios beneficiam-se de uma tributação específica

como taxa profissional de zona ou de aglo-meração. Tarefas de gestão são confiadas a distritos ou a comunidades e certos sindica-tos se lançam à cooperação intermunicipal através de projetos de desenvolvimento.

A adesão de um município a diversos estabelecimentos de cooperação é a regra. Ela é o resultado de diversas preocupações e estratégias dos eleitos, visando evitar a formação de Estabelecimentos muito pos-santes. As superposições de competências, a delegação de uma mesma competência comunal a muitos EPCI, o exercício por um município de uma competência oficialmente delegada a um grupamento, o exercício de competências que não lhe foram delegadas, o caráter vago, complexo e confuso da re-partição de atribuições entre grupamen-tos e municípios-membros não são raros e excepcionais.

Para aumentar ainda mais a confusão, alguns EPCI aderem a outros Estabeleci-mentos Públicos de Cooperação Intermuni-cipal e, como os grupamentos existentes são seguidamente de tamanho insuficiente, se vê emergir novas formas de cooperação em Estabelecimentos Públicos de Cooperação Intermunicipal que relevam a cooperação in-formal, como no caso das associações.

Do lado jurídico, os estatutos legais existentes se prestam mal à constituição de intermunicipalidades (estabelecimentos in-termunicipais) fortes, sem mesmo invocar a possibilidade de instituições supracomunais. O quadro do estabelecimento público que foi tomado de maneira programática parece mal adaptado e será mais e mais inadaptado à medida do desenvolvimento de missões de cooperação intermunicipal e do aumento em pujança de uma intermunicipalidade de pro-jeto. A constituição de grupamentos dotados

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de competências diversas e dispersas é pou-co compatível com o princípio da especifici-dade que caracteriza a doutrina dos estabe-lecimentos públicos. A evolução institucional tem conduzido a que esses estabelecimentos públicos elevem o imposto como das coleti-vidades territoriais. Certos grupamentos de cooperação são, em realidade, coletividades territoriais em potencial (Le Saout, 1998).

A questão da legitimidade democrática, sobretudo, dos mecanismos de democra-cia representativa, ultrapassa, por si só, o debate da descentralização do Estado e da reorganização territorial. Em primeiro lu-gar, pode-se questionar em que medida a democracia representativa ainda se constitui na forma mais adequada de expressão dos anseios da sociedade em um contexto mun-dial onde se fazem presentes uma infinida-de de redes de atores sociais e econômicos? Em segundo, se, através dos mecanismos da democracia representativa, torna-se possível hoje fazer frente aos problemas da exclusão decorrentes da fragmentação social derivada do modelo de acumulação do capital, pós-fordista e flexível, sem que se leve em conta a participação direta da sociedade?

É evidente, no caso da França, a enor-me expressão que têm os representantes eleitos na definição da agenda pública e no controle sobre os mecanismos de regulação da sociedade, mesmo considerando a ainda forte presença dos sindicatos e das orga-nizações sociais. O Estado na França resta profundamente imbricado, tanto em nível legal quanto institucional, pela presença do controle dos partidos e de seus eleitos. Isso ainda é mais verdadeiro quando se observam as instâncias de controle político nas esferas do poder local (o município, a comunidade urbana, etc.), onde as funções de represen-

tação nos órgãos deliberativos são ocupadas de forma majoritária pelos eleitos. Tal é ca-so dos conselhos municipais, dos conselhos das comunidades urbanas, dos conselhos de quartiers (bairros), etc., e dos cargos de di-reção política da administração.

Um exemplo concreto é o da compo-sição dos conselhos de bairros, instâncias consideradas de maior proximidade com o cidadão nas quais estão previstas a partici-pação de “personalidades representativas” dos habitantes e das associações, onde os representantes são designados pelos maires, tendo os conselheiros municipais assento nos conselhos de quartiers, e sendo o mesmo presidido pelo eleito adjunto encarregado do bairro. Assim, a designação de personalida-des do bairro e de representantes associati-vos não significa que os demais setores da população sejam ou se sintam representados e mobilizados a participar.

Além disso, a presença dos conselhos de bairros, por si só, não representa um projeto de reforçamento da cidadania de base, mesmo considerando que estes criem melhores condições para gestão urbana do território da cidade e que possibilitem aos eleitos um maior domínio sobre os proble-mas e a compatibilização dos serviços com as necessidades do orçamento. A ausência da participação direta do cidadão no que concerne aos seus interesses mais diretos e os vínculos que se estabelecem entre eleitos, população ou entre estes e os representan-tes associativos tendem a favorecer a pre-sença de laços clientelistas.

Levando em conta que é através do con-trole decisório desses canais que se procede à definição do ideário de governo e das polí-ticas públicas voltadas para as áreas urbanas, a questão a colocar é como incitar grupos

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associativos e o cidadão a participarem mais efetivamente da vida democrática local.

As múltiplas análises sobre a abstenção nas eleições municipais têm se reportado ao percentual expressivo dos grupos jovens nessa abstenção, embora se observe uma tendência recente de mudança, se conside-radas as últimas eleições na França. A situa-ção atual de desinteresse pela democracia representativa por parte de uma parcela importante da população obriga a repensar os mecanismos de democracia direta como caminho para fortalecer a democracia de proximidade e a participação cidadã.

No que concerne à participação dire-ta do cidadão, as reformas propostas pelo Relatório Mauroy são ainda muito tímidas e pouco acrescentam ao estatuto anterior. No capítulo primeiro da segunda parte do relatório, intitulada “Assegurar a qualidade e a transparência da decisão local”, são des-tacadas algumas proposições que sugerem:

[...] o engajamento dos cidadãos e a

disponibilidade dos eleitos [...] O obje-

tivo da comissão consiste em procurar

uma maior visibilidade do processo de

decisão e fazer da comuna o lugar de

exercício privilegiado da democracia.

A participação dos cidadãos na vi-da local, tal qual descrita no relatório, pressupõe:

[...] uma melhor informação dos ha-

bitantes; uma grande aproximação no

debate de proximidade criando no seio

das municipalidades estruturas de pro-

ximidade de informação, de debate, de

trocas, de acompanhamento sobre os

projetos concernentes aos habitantes

(proposição 70).

Como segundo elemento, a criação dos conselhos de quartiers: “[...] Criar, nas ci-dades de mais de 20.000 mil habitantes, as Mairies (Prefeituras) ou Conselhos de Quartiers; nas outras cidades encorajar este dispositivo” (proposição 71a).

A proposta de eleições diretas pelo su-frágio universal para os conselheiros das es-truturas intermunicipais, embora signifique um avanço na forma atual de representação, não veicula, nem garante, a participação cidadã e a democratização dos processos de gestão pública. Como destacado na proposi-ção 73a, a instância de maior proximidade com os cidadãos continua a se moldar pelo sistema de designação.

[...] Os membros dos Conselhos de

Quartiers são designados pelo Conse-

lho Municipal sob as listas, associando

representantes das associações e dos

habitantes reconhecidos por seu engaja-

mento e voluntários (proposição 73).

O estímulo à participação cidadã, na forma prevista pelo relatório, não se con-substancia, assim, em um reforço à cidada-nia coletiva, guiando-se por premissas que reforçam o individualismo,

[...] para os cidadãos que desejam se

investir fortemente na vida local, em

particular, aqueles designados por suas

organizações profissionais, sindicais ou

associativas para ter assento no seio

das instâncias consultivas, o uso do

tempo dispensado deve ser revertido ao

tempo profissional. Como os eleitos, os

representantes dos sindicatos, devem

se beneficiar de créditos de horas de

representação sindical ou eletiva (pro-

posição 75a).

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No contexto atual, a associação da democracia representativa à democracia participativa aparece como elemento tênue nas reformas recentes contempladas no pro-jeto de descentralização na França, o que le-va a questionar até que ponto a democracia representativa e os canais vigentes servem como referencial para um cenário afirmativo de cooperação territorial e de uma organi-zação política de base aspirada pela socieda-de francesa.

Caminhos de uma gestão e governança consorciada sustentável

A experiência francesa de cooperação inter-municipal traz lições e aprendizados para a o futuro da gestão e governança consorcia-da no Brasil. Aspectos a realçar são algumas similaridades com respeito aos estrangula-mentos presentes nas estruturas de coope-ração intermunicipal na França. As questões da competência institucional e da legitimida-de democrática evidenciam-se como princi-pais limites à funcionalidade do consorcia-mento no caso brasileiro,

Em um contexto de crise financeira, de guerra fiscal entre os municípios e de dificul-dades no atendimento das demandas locais, a cooperação intermunicipal pode possibili-tar a ampliação da capacidade financeira dos municípios e induzir formas mais descentra-lizadas e democráticas de gestão e gover-nança local. No entanto, deve-se ficar alerta para os problemas críticos das desigualda-des regionais entre municípios, o que vai desaguar em competências desiguais e em um déficit de atribuições e de capacidade de

competição. Os limites à “boa governança” vão desde a ausência de quadros técnicos qualificados às dificuldades do atendimento às necessidades críticas da pobreza, até a débil estrutura de organização das comuni-dades locais. Outro risco a observar é o de surgimento de uma multiplicidade de níveis institucionais derivados de estruturas con-sorciadas e que podem provocar a ausência de coordenação política e ferir os princípios da autonomia federativa.

No campo da legitimidade democrá-tica, o Brasil apresenta particularidades em relação ao caso francês. A significativa presença de redes participativas em nível lo-cal tem possibilitado o aprimoramento e a maior transparência do processo decisório na formulação e implementação das políti-cas públicas. No entanto, os mecanismos de participação direta encontram barreiras de ordem institucional e na esfera da repre-sentação política dos atores. As administra-ções municipais, além de pouco aptas para dar funcionalidade aos mecanismos parti-cipativos são permeadas pelo clientelismo político, que envolve desde o Executivo e o Legislativo até lideranças populares que, na maior parte, não têm a qualificação exigida para o exercício de sua função, nem a re-presentatividade requerida para o aprimora-mento democrático desses instrumentos.22 As instâncias de participação tornam-se, quase sempre, figuras-fantasma no aparato institucional, acarretando a baixa legitimida-de política desses mecanismos. A ampliação indiscriminada de canais institucionais de participação, ao invés de cumprir o papel de democratização, pode arrefecer o campo de lutas dos movimentos sociais e favorecer a legitimação do Estado em detrimento da or-ganização da sociedade civil.

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Suely Maria Ribeiro Leal Arquiteta e Professora. Doutora em Economia Urbana pela Universidade Estadual de Cam-pinas. Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (Pernambuco, Brasil)[email protected]

Notas

(1) A Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de consórcios públicos.

(2) Coopération Intercommunale (Cooperação Intermunicipal) concerne a associação entre vá-rios municípios.

(3) Sancionada pelo presidente Lula a lei que norteia a associação de municípios, Estados e a União para a realização da gestão dos serviços públicos de interesse comum. A Lei n° 11.107, de 6 de abril de 2005, está a tratar das normas gerais de contratação de consórcios públicos, trazendo ainda profundas alterações na lei de licitações.

(4) Lei de julho de 1999, Lei Chevènement.

(5) Communes (municípios): menor divisão administrativa do território francês.

(6) Fiscalité Propre (Tributação Própria percebida pelos municípios). Association des Maires de France (2000).

(7) Segundo Arretche (2004, p. 22), “no ano de 2002, de um total de 5.560 municípios existen-tes, 5.537 haviam assumido a gestão parcial ou integral dos serviços de saúde”.

(8) O Grupo de Trabalho Interministerial – GTI foi instituído por meio da Portaria n. 1.391, de 28 de agosto de 2003. O grupo se fundamentou na opinião de especialistas de referência local e regional, internacionais sobre o tema.

(9) O parágrafo 1º, inciso II, do art. 6º da Lei define que o consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciada. Enquanto o parágrafo 2º define que, no caso de ser revestir de personalidade jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal.

Apesar dos limites mencionados, a gestão consorciada e a governança coope-rativa, por meio da associação intermuni-cipal e da criação de instâncias de proximi-dade junto e entre os cidadãos, a extensão

da ação pública às periferias das cidades, particularmente quanto a municípios de feição rural, podem se tornar instrumen-tos essenciais à promoção do desenvolvi-mento local sustentável.

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(10) Département (departamento): divisão administrativa do território francês – circunscrição administrativa de base, eles são subdivididos em districts, cantons e communes, gozando de uma ampla descentralização; as suas competências próprias são essencialmente: a ação sanitária e social, equipamento rural, vias departamentais e despesas de investimento e funcionamento das escolas públicas. Os Conseils Généraux são órgãos deliberantes dos departamentos, sendo a autoridade executiva o presidente deste conselho. A França conta com 100 departamentos (96 na metrópole e 4 no Outre-Mer). Moreau (1999).

(11) Commune (município). As competências próprias à commune concernem às ações de proximidade; são estendidas no domínio econômico e social, em particular os edifícios e equipamentos escolares do primeiro ciclo de ensino. Os órgãos deliberantes das commu-nes são os conseils municipaux, que são providos de uma autoridade executiva municipal, o maire (prefeito) eleito por este conselho. Le Saout (1998).

(12) Syndicat Intercommunal à Vocation Multiple (Sindicato Intermunicipal de Vocação Múl-tipla – SIVOM): são criados por ato do prefeito sobre base de deliberação dos conselhos municipais das municipalidades interessadas. Eles podem reagrupar municípios de todos os tamanhos de um mesmo departamento ou de departamentos limites.

(13) Communauté de communes (comunidade de municípios). Reagrupamento de municípios essencialmente rurais, tendendo futuramente a privilegiar agrupamentos tanto rurais como urbanos. É criada por ato do prefeito baixo à deliberação do Conselho. Le Saout (1998).

(14) Communauté de Villes (comunidade de cidade): reagrupa municípios pertencentes a um ou mais departamentos para formar uma aglomeração de 20.000 mil habitantes; ela é criada por ato do prefeito baixo à deliberação do conselho.

(15) Association des Maires de France, La Coopération Intercommunale (Paris, 2000).

(16) Communauté d’Agglomération (Comunidade de Aglomeração): associação entre municí-pios urbanos.

(17) Taxe Professionnel Unique (taxa profissional única): tributo municipal percebido sobre as empresas, profissionais liberais e assimilados; representa a metade da fiscalidade comunal direta e varia segundo regiões. Le Saout (1998).

(18) Lei n. 99-586 de 12 de julho de 1999, Lei Chevènement (deputado autor do projeto).

(19) Conseillers Municipaux (conselheiros municipais): as funções de representação nos órgãos deliberativos (conselhos municipais e departamentais) são ocupadas de forma majoritária pelos eleitos; o conselho municipal é presidido pelo maire (prefeito) eleito pelo conselho.

(20) M. Pierre Mauroy foi antigo primeiro-ministro, senador, ex-prefeito da cidade de Lille e presidente da Comunidade Urbana de Lille.

(21) 1 Euro = 6,55957 FRF.

(22) Além dos conselhos municipais e estaduais (de Saúde, de Educação, da Criança e do Ado-lescente, etc.), regidos constitucionalmente, se evidenciam os orçamentos participativos, as conferências, fóruns, comissões câmaras temáticas etc.

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Referências

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Figura 1 – As 14 comunidades urbanas francesas

Fonte: http://www.ign.fr

c A comunidade urbana serve de quadro para cooperação intermunicipal entre as grandes aglomerações.c É caracterizada pelas aglomerações com mais de 500.000 habitantes.c Inclui alguns dos principais centros urbanos da França metropolitana, à exceção de Paris.

Figura 2 – A comunidade urbana de Marseille

Fonte: http://www.marseille-provence.com/

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Figura 3 – Comunidade de aglomeração de La RochelleUma das 169 comunidades de aglomeração francesas

Fonte: http://www.agglo-larochelle.fr/

c As comunidades de aglomeração são categorias jurídicas voltadas às cidades médias, cuja criação é reser-vada às zonas urbanas. c Só pode ser criada sob condições de um mínimo de população de 50.000 habitantes, comportando a existência de um município centro que agrupe acima de 15.000 habitantes. Esta exigência não se aplica aos municípios-sede dos departamentos. c São espaços onde o tamanho permite definir políticas da aglomeração nos domínios dos setores estruturantes, como transportes, urbanismo e habitação. c As comunidades de aglomeração devem exercer competências, obrigatórias ou opcionais, cujo conteúdo preciso é definido pela lei, a menos que ela não dependa de uma decisão sobre seu interesse comunitário.

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Figuras 4 e 5 – Estabelecimentos públicos de cooperação intermunicipal em 2007

As 2.400 comunidades de comunas francesas

169 Comunidades de aglomeração – 14 comunidades urbanas francesas

Fonte: http://www.dgcl.interieur.gouv.fr/

Communauté de Communes à Fiscalité AdditionnelleCommunauté de Communes à TPU (Taxe Professionnelle UniqueCommunauté Urbaine

Syndicat d’Agglomération NouvelleCommunauté d’Agglomération

CA déjà existant au 1/1/2006CA créées ex-nihiloCA créées par transformationCommunautés urbaines

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A cidade e a região/a cidade-região: reconhecer processos, construir políticas

Tadeu Alencar Arrais

Resumo O artigo analisa as relações entre os espaços regionais e a cidade, tendo como ponto de par-tida a idéia de que os processos espaciais res-ponsáveis pela integração de cidades e regiões demandaram, nos últimos anos, a busca de no-vos conceitos, como o de “cidade-região”. No primeiro momento, analisamos a questão da es-cala de análise como problema-chave, mas que deve estar diretamente relacionado à noção de ação. No segundo momento, a reflexão voltou-se para o processo de integração entre cidades e regiões, culminando com uma curta reflexão sobre o papel das cidades-médias. Em seguida, elaboramos uma reflexão sobre o conceito de “cidade-região”, alertando para a matriz polí-tica do conceito, assim como para algumas de suas imprecisões conceituais. Com isso, termi-namos o artigo levantando preocupações sobre a adoção de conceitos que reforçam, em muitos casos, determinadas hierarquias espaciais.

Palavras-chave: cidade; região; cidade-região; política; escala.

Abstract The present paper analyzes the relations between regional spaces and the city, supported by the notion that spatial processes responsible for the integration of cities and regions have demanded the emergence of new concepts in recent years, such as the concept of “city-region”. Firstly, we focus on the question of scale analysis as a key problem which must be directly related to the notion of action. Secondly, we turn to the integration process between cities and regions and subsequently provide a brief discussion on the role played by medium-sized cities. This is followed by an analysis of the concept of “city-region”, highlighting its political matrix as well as some conceptual inaccuracies. We conclude this paper by stating our concerns about the adoption of concepts which often reinforce certain spatial hierarchies.

Keywords: city; region; city-region; political; scale.

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De resto, o que é uma “região ganhadora”? Uma região que se afirma (do pon-to de vista dos empregos, das riquezas, da arte de viver) pela sua própria ac-tividade ou uma região que vive à custa das que perderam até mesmo de uma parte de seus próprios habitantes? Será a hierarquia das regiões a constatação de um êxito desigual (porventura provisório) ou a causa das vantagens de que desfrutam as primeiras, que seriam então os centros de uma periferia?

Benko e Lipietz. O novo debate regional (1994, p. 5)

A questão da escala de análise: conhecimento e ação

Em um texto clássico da geografia regional, Kayser (1980, p. 283) escreveu o seguin-te: “O espaço polarizado que se organiza em torno de uma cidade é uma região”. No artigo, o geógrafo destacou a força centrí-peta exercida pela cidade, que ocorreu em função da progressiva concentração espacial de bens e serviços e dos meios de produção que interferem na dinâmica econômica re-gional. Essa linha de raciocínio não é nova e foi motivada, em grande parte, pelo re-conhecimento de processos socioeconômicos que romperam os limites jurídico-adminis-trativos do que convencionalmente chama-mos de cidade. Gedds (1994, p.48), obser-vando o espaço regional londrino no início do século XX, escreveu o seguinte:

Essas cidades-região, essas cidades-

agrupamento pedem um nome. Não

podemos chamá-las constelações; o

vocábulo conglomeração parece mais

próximo da realidade presente, mais

ainda é pertinente. E conurbações?

Essa talvez seja a palavra necessária, a

expressão dessa nova forma de agrupa-

mento demográfico, que já está, sub-

conscientemente, desenvolvendo novas

formas de agrupamento social, e, em

seguida, de governo e administração

bem definidos.

A constatação de Gedds (1994) remete à questão da correspondência entre a escala de análise e a escala de ocorrência dos pro-cessos socioespaciais. Tradicionalmente, as duas escalas mais comuns na análise urbana foram a intra-urbana e a urbano-regional, esta última também compreendida como metropolitana.1 Se admitirmos a escala co-mo “um ponto de vista do conhecimento”, como escreveu Revel (1998), então essa discussão não se reduz ao recorte espacial determinado a priori, seja pelo pesquisador, seja por aqueles que conduzem as políticas governamentais. Dessa forma, esse debate não pode passar a margem da resposta à duas questões:

• Existem processos socioeconômicos ur-banos que interferem na organização do es-paço regional?

• Existem processos socioeconômicos re-gionais que interferem na organização do espaço urbano?

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Se admitimos, em qualquer que seja a latitude, falar em espaço urbano-regional é porque a resposta às questões colocadas é positiva. Vejamos o exemplo do mercado de trabalho. A oferta de emprego em Goiâ nia, por exemplo, é determinada por um conjun-to de fatores, dentre os quais a concentra-ção de serviços, comércio, indústrias, fator estimulado pela sua condição de capital. É através da oferta de emprego, serviços e bens de consumo duráveis e não duráveis que Goiânia se relaciona com os demais mu-nicípios de sua região. Essa oferta atinge de diferentes maneiras o espaço urbano de Goiânia e o espaço urbano dos demais muni-cípios que compõem a Região Metropolitana de Goiânia. Em Goiânia, a oferta de empre-go interfere, entre outros pontos, na eco-nomia da cidade, gerando renda e tributos que podem ser revertidos para políticas de infra-estrutura urbana, moradia, programas sociais, custeio da máquina governamental e pagamento do funcionalismo. Já para os demais municípios, a oferta de emprego em Goiânia estimula o deslocamento diário de pessoas e a conseqüente drenagem de ren-da para a capital, já que os gastos diários dos trabalhadores, bem como parte dos im-postos dos empregadores são recolhidos na base territorial da capital.2 Nesse caso, o emprego da terminologia urbano-regional é plenamente justificável.

Não se trata, pois, de hierarquizar as escalas, mas de ter a clareza de que são um ponto de partida para o reconhecimento de processos sociais materializados no espaço urbano-regional. Na discussão sobre a esca-la, o que esta em questão é a ação. Essa ação não é casual. Ao contrário, por isso Raffes-tin (1993) fala da ação como programa. Es-sa ação influencia a distribuição das pessoas

e dos recursos, por isso é relacional. E es-sa ação poder ser traduzida no movimento pendular de milhares de pessoas, evidência incontestável da integração dos espaços urbano-regionais ou mesmo da ação das fir-mas e corporações. A ação também é colo-cada em relevo nas interpreta ções acadêmi-cas que procuram classificar e hierarquizar as diversas formas espaciais, a exemplo das inúmeras tipologias de cidades existentes. Essa ação também é produto dos interes-ses governamentais, que muitas vezes se encontram presos aos recortes territoriais administrativos. Assim, quando pensamos em escala, estamos no referindo à escala de ação, o que implica dizer que seu limite cor-responde ao limites das ações dos diversos atores sociais no espaço urbano-regional.3

A cidade e a região: reconhecer processos

Para compreender os laços entre as cidades e as regiões, é preciso considerar a relação entre a sociedade e o território, atentando, especialmente, para o processo de urbaniza-ção. Ao partir desse pressuposto, podem-se estabelecer diferenças entre o processo de constituição de um dado território e a im-portância das cidades, tal qual já fez Santos (1982, 1996). No Brasil, em 2000, exis-tiam 5.507 municípios e um número equi-valente de cidades. A diferenciação entre es-ses municípios vai muito além da toponímia. Em 2000, na região Norte, a média de área dos municípios foi de 8.582,02 km2, sendo que, no Amazonas, estado com maior área proporcional dos municípios, a média foi de 25.334,60 km2. Já na região Sudeste,

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a média de área dos municípios, no mesmo ano, foi de 554,92 km2 e, no Centro-Oeste, 3.601,72 km2 (IBGE, 2000b). Em relação à população, considerando o mesmo ano, as diferenças se invertem, já que as regiões Sudeste e Sul são igualmente as mais popu-losas e as mais fragmentadas. A simples cor-relação entre área, população e o número de municípios dá idéia da complexidade dos recortes municipais e regionais brasileiros e dos desafios políticos e interpretativos.

A análise dessas diferenças são deter-minantes para a compreensão das relações entre as cidades e as regiões. Imperatriz, no Maranhão, com população em 2007 de 229.671, é um exemplo típico. Sua área de abrangência é muito mais elástica do que os seus 1.368 km2 (IBGE, 2007). Essa cidade exerce influência na região do Bico do Pa-pagaio, assim como no Sul do Maranhão. A oferta de emprego, a pujança do setor ata-cadista, a concentração de serviços ligados à saúde e educação, além do suporte às ati-vidades agrícolas dos municípios da região, tornam essa cidade um típico pólo regional. Mas essa não é apenas uma realidade do Sul do Maranhão, uma vez que ocorrem proces-sos semelhantes em vários estados, a exem-plo de Goiás, Minas Gerais, Pará, Piauí, Ceará, entre tantos outros. Cidades como Imperatriz se enquadram, do ponto de vista demográfico, em um hiato existente entre os ambientes tipicamente metropolitanos e uma imensidão de cidades pequenas, cuja população é inferior a 20.000 habitantes. Assim, as denominadas cidades médias, que no primeiro momento foram definidas pe-lo critério demográfico, começam a exigir novas formas de interpretação que incluam, especialmente, o espaço regional. Amorin Filho e Rigotti (2002, p. 10) destacam:

Deve-se lembrar, ainda, que apenas um

critério arbitrário como o volume po-

pulacional pode implicar consideráveis

modificações durante um dado período

de tempo, haja vista a freqüência relati-

vamente alta com que as cidades podem

ascender ou descender na hierarquia do

tamanho demográfico. Este é o caso,

especialmente, das cidades médias, pois

muitas vezes elas possuem os requisitos

para a criação e desenvolvimento de pó-

los tecnológicos e também se mostram

como alternativa a excessiva concentra-

ção industrial das regiões metropolita-

nas, fatores que normalmente atraem a

população.

Ainda podemos destacar dois pontos. A questão da densidade do território, o que significa que uma determinada cidade, independentemente do número de habitan-tes, pode ter maior capilaridade regional que outras, de maior tamanho populacional. Outra questão é a associação, nos termos uma política territorial, da cidade média às políticas de intervenção regional ligadas aos tradicionais pólos de desenvolvimento, cuja origem remonta à política francesa de amé-nagement du territoire.4

A partir dos pontos levantados, aparece uma questão interessante. Tradicionalmen-te, tanto na compreensão acadêmica quanto nas políticas governamentais, foi destinada maior atenção aos arranjos metropolitanos, o que pode ser comprovado pela revisão do percurso histórico das regiões metropolita-nas brasileiras. Nesse caso, o destaque não se dava pela abrangência territorial, mas pela concentração demográfica, uma vez que essas regiões sempre abrigaram por-ção significativa da população brasileira,

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além de destacado peso na composição do PIB nacional. Já no caso das assim chama-das cidades médias ou mesmo das pequenas cidades dispersas no território em manchas descontínuas, a preocupação, tanto em re-lação às políticas quanto em relação à re-flexão acadêmica foi menor. É como se o processo de urbanização, cuja marca regis-trada data da década de 1970, não fosse a expressão da integração econômica desse imenso território pontilhado de cidades pe-quenas e médias. Foi assim que a chamada transição demográfica ofuscou a visão mais global do território.

E hoje, como podemos problematizar as relações entre as cidades e as regiões?

A primeira questão é tentar fugir da hierarquização. A representação carto-gráfica dos estudos da REGIC (Região de Influên cia de Cidades, IBGE, 2000), por exemplo, é ilustrativa da hierarquia urbana. Estudos como esse carregam uma tradição que remonta à teoria dos lugares centrais de Christaller, cujo núcleo está na idéia de centralidade que, por sua vez, deriva da função da cidade. Olhando atentamente, além da hierarquia, a riqueza desses es-tudos está no fato de revelarem arranjos territoriais distantes da narrativa metro-politana, especialmente em países com as dimensões territoriais do Brasil. Entretan-to, pela natureza metodológica-quantitati-va desses trabalhos, o impacto no espaço intra-urbano foi minimizado. A noção de “zoneamento morfológico funcional”, pro-posta por Amorin Filho (2005), procura associar os impactos da dinâmica regional no espaço urbano (morfologia), sem des-prestigiar a dinâmica regional (funcional).5

A segunda questão é que os desafios políticos na gestão dessas cidades são tão

complexos quanto aqueles presentes nos arranjos metropolitanos. E não se trata, apenas, de administrar o desafio demográ-fico, tal como foi colocado na agenda de intervenção metropolitana, que privilegiou historicamente as políticas para habitação e mobilidade. Muito embora as cidades mé-dias não apareçam com freqüên cia na mí-dia, problemas como mobilidade e acessibi-lidade urbana, violência urbana, déficit ha-bitacional, pouca oferta de serviços de edu-cação e saúde, saneamento básico, desem-prego, concentração de renda, também são freqüentes em cidades como Imperatriz, Anápolis, Catalão, Montes Claros, Mossoró etc., e tantas outras espalhadas pelo Norte, Nordeste e Centro-Oeste brasileiro.

A cidade-região: construir políticas

O interesse pela compressão das novas di-nâmicas territoriais, especialmente aquelas que derivam da estruturação do espaço urbano-regional, tem despertado interes-se de diversas áreas do conhecimento. Em linhas gerais, a análise da literatura apon-ta que os arranjos territoriais, que de al-guma forma são adjetivados de “cidades-regiões”, são resultados do período de acumulação flexível, das transformações do sistema fordista e das novas tecnologias que se transformaram em fator de produ-ção. Harvey (1996, p.140) escreve:

A acumulação flexível envolve rápidas

mudanças dos padrões de desenvol-

vimento desigual, tanto entre setores

quanto em regiões geográficas, criando,

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por exemplo, um vasto movimento no

emprego chamado “setor de serviços”,

bem como conjuntos industriais com-

pletamente novos em regiões até en-

tão subdesenvolvidas (tais como “Ter-

ceira Itália”, Flandes, os vários vales e

gargantas do silício, para não falar da

vasta profusão de atividades dos países

recém-industrializados).

O que Harvey (1996) e outros estu-diosos manifestam é a territorialização das transformações contemporâneas em espa-ços específicos que são, via de regra, adje-tivados de regiões. Esse ponto de partida pode ser averiguado de diferentes formas em Harvey (1996), Scott et al. (2001), Friedmann (1997), Benko e Lipietz (1994). Os processos descritos por Harvey (1996) ocorrem em diferentes formações regionais, como a européia e a norte-americana e tam-bém com diferentes conteúdos, sejam me-tropolitanos, foco do estudo de Scott et al. (2001) ou envolvendo núcleos urbanos me-nores, como na Terceira Itália.6 Mas a ques-tão que permeia a reflexão não passa por apenas reconhecer a existência de processos econômicos que integram cidades e regiões. Agnew (2000, p. 106) coloca a questão da seguinte forma:

A questão é que essas regiões raramen-

te coincidem com as regiões político-

institucionais. Portanto, há um déficit

político na capacidade das cidades-re-

giões administrarem seus negócios. O

Estado ainda controla a maior parte das

alavancas das políticas e planos de ação.

O foco do debate sobre as “cidades-regiões” passa a ser, desse modo, político

e isso serve para diferentes formações re-gionais, especialmente porque a integração econômica tornou os problemas (degrada-ção ambiental, falta de saneamento básico, desemprego, carência de infra-estrutura ur-bana, etc.) mais visíveis. É o fato político, a necessidade de reconhecer/estimular res-postas para além da escala municipal, que justificaria, teoricamente, falar em “cidade-região”. Seguindo esse raciocínio, Scott et al. (2001) enxergam um mundo pontilhado de “cidades-regiões-globais”, o que não pa-rece facilmente empiricizável, já que na lis-ta dessas felizes cidades (a maioria coincide com ambientes metropolitanos) não encon-tramos referências aos arranjos políticos e nem mesmo pistas sobre a coesão entre os atores regionais, o que torna muito abstra-ta a avaliação da capacidade de resposta aos desafios regionais e globais. Na verdade, há uma dificuldade em visualizar tanto os desa-fios quanto os atores. Nesse sentido, salvo o aspecto político-ideológico, a mesma crítica feita a Ohmae (1996), sobre a naturalização e protagonismo da “região-ator”, também cabe a Scott et al. (2001).7

Tanto na análise da literatura quanto no debate sobre as políticas governamen-tais, os argumentos sobre a existência das “cidades-regiões” parecem basear-se em dois pontos principais: 1) a abertura ao merca-do global tornou mais frágeis as estruturas locais e regionais, o que, em alguns casos, coincide com mudanças na base produtiva, com impacto direto na oferta de emprego; 2) de posse desse diagnóstico e baseado na idéia de reestruturação, caberá aos atores locais-regionais (o regional é uma forma de dizer que os problemas da reestruturação atingem mais que uma cidade) reunir for-ças para superar os problemas. Não se trata

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apenas de uma perspectiva de análise, mas também de uma estratégia de ação, o que pode ser verificada tanto no ABC Paulista (Klink, 2001) quanto no Porto Cidade Re-gião (Silva, 2005). Vejamos um exemplo do segundo caso:

Numa conjuntura em que a região

Norte tem sentido os efeitos de uma

inadequação de sua estrutura produ-

tiva – constituída predominantemente

por indústrias manufactureiras pouco

evoluídas em termos tecnológicos – aos

desafios da nova sociedade globalizada

da informação e do conhecimento, in-

serida num País de práticas extrema-

mente centralizadoras que agravam

esta situação quando são procuradas

estratégias de continuar a canalizar –

indevidamente, pois ao seu acesso não

tem direito – fundos comunitários para

a Região que mais proximamente alber-

ga os detentores do poder, será com

recurso aos seus próprios meios que o

espaço territorial Porto/Cidade/Região

terá de encontrar forma de se tornar

competitivo numa Europa Comunitária

cada vez mais exigente para, ela pró-

pria, se revelar competitivo na Europa

Comunitária. (Barbosa, 2005, p. 3)

O fato é que, em muitos casos, existe um distanciamento entre a análise acadêmi-ca e a efetiva existência de processos políti-cos (coesão dos atores regionais) nas esca-las regionais resultantes da reestruturação da base produtiva regional, o que provoca o esvaziamento do conceito. Não são pou-cos os trabalhos que trazem em seu títu-lo a denominação “cidade-região”, sem ao menos explicar teórica e empiricamente o sentido dessa utilização. “Cidade-região”,

“cidade-região-global”, “cidade-global” etc., transformaram-se, em muitos casos, em epítetos de um discurso acadêmico sedento por novidade.

Em resumo, a contribuição do conceito de “cidade-região” não está restrita ao reco-nhecimento dos processos socioeconômicos e espaciais que integram as cidades aos seus contextos regionais. Essa perspectiva não é nova, e o retorno a Gedds (1994) ou mesmo a Perroux (1975); é suficiente para colocar reticência na originalidade desse novo con-ceito. A questão colocada é eminentemente política, o que depende, fundamentalmente, de considerar a tradição das políticas territo-riais e até mesmo a questão federativa dos diversos países e não apenas o contexto de inserção na globalização. Na tradição políti-co administrativa brasileira, a região sempre foi mais uma escala de intervenção do que de administração. Assim, as regiões respon-deram muito mais à centralização do que à descentralização, contrário do que ocorreu, por exemplo, na França. Criamos um pro-blema interessante para o caso brasileiro. Há um déficit entre os processos sociais que insistem em mostrar a integração regional e o processo político, que insiste em fragmen-tar, devido a nossa geometria do poder, o espaço integrado. O resultado disso é que, exceção feita para raros casos, não somos capazes de estimular um pensar regional pa-ra além do reconhecimento da polarização.8

Um esforço de síntese

Quando observamos a origem o termo região (regere), percebemos que a refle-xão que o funda, como já anotou Gomes

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(1995), é essencialmente política. De mo-do resumido, podemos dizer que o concei-to de “cidade-região” apresenta como mé-rito a lembrança que devemos fomentar a discussão política em espaços integrados por uma rede urbana densa e marcados por desafios insti tucionais comuns. Trata-se de reconhecer que é possível ampliar o debate político na perspectiva da ação regional. O hifem, nesse caso, representa mais que um sinal gráfico ou mesmo a união de dois subs-tantivos. Os pontos abaixo resumem nossas argumentações:

• É necessário atenção com os paralelis-mos, o que significa admitir que a natureza e operacionalidade dos conceitos é diferen-te, seja para o Brasil, para Europa ou mes-mo para Ásia.

• É necessário considerar a estrutura ter-ritorial e administrativa de cada território. Na França, por exemplo, a área média das comunas, no ano de 1991, de acordo com Costa (2002), foi de 15,8 km2, e do Reino Unido, 505,4 km2, nada comparável à mé-dia brasileira, que foi, em 2000, 1.546,19 km2 (IBGE, 2000b). Além disso, existem sistemas político-administrativos diferentes, com modelos mais centralizados que outros, o que pode influenciar as possibilidades de coesão regional.

• É necessário reconhecer que o processo de reestruturação produtiva, adjetivado de flexível, não está generalizado em todos os cantos do planeta. Não podemos esquecer que o discurso sobre a flexibilidade e a deca-dência do Estado-Nação tem data e local de nascimento e que, abaixo do Equador, on-de nunca houve pecado, há muitos lugares-regiões-países que sequer desfrutaram das “benesses” do Estado do Bem-Estar-Social,

a exemplo de extensos espaços da África, Ásia e América Latina.

• É preciso ter cuidado para não fomen-tar novas hierarquias construídas sobre o solo fértil das velhas hierarquias. Se, antes, a hierarquia se dava pelo tamanho da po-pulação, pelo peso do setor industrial e de serviços, agora ela se justifica pela inserção global, tendo como atributos a criatividade, o conhecimento e a inovação, territorializa-dos, evidentemente, em poucas regiões do planeta.

• É preciso qualificar os atores, explici-tando seus interesses na “arena regional” (Arrais, 2007) de modo a desvendar o sig-nificado de sua ação, pois disso depende a percepção do que foi, do que é e do que será uma determinada região. Estimular o pensar regional, uma consciência sobre os problemas de uma região pode significar, também, forjar uma falsa consciência sobre seu destino.

Uma teoria pode ser avaliada a partir do seu potencial explicativo, o que significa que devemos considerar seu potencial de universalização. A adesão aos “novos” con-ceitos, a exemplo da “cidade-região”, não pode ser movida apenas pela intuição, sob o risco de esvair o debate acadêmico e com-prometer a análise das ações dos atores re-gionais. É por isso que insistimos na ação, pois acreditamos que, a partir de sua análi-se, poderemos desvendar o papel dos atores regionais. A história da integração regional, em diferentes formações regionais, desde a evolução dos transportes, das comunicações e da internacionalização da economia, de-monstra quanto certas cidades polarizaram seus espaços regionais, funcionando como pólos regionais. Hoje em dia, em função da

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exarcebada integração, o reconhecimento desse processo não é mais novidade. Assim é preciso avançar. Mas avançar certos de que não podemos fundar outras hierarquias; afinal, não é justo substituir, com tanta na-turalidade, a narrativa da polarização na

qual a cidade aparecia como protagonis-ta, pela narrativa da região-ator, produto da globalização, do empreendedorismo, da aprendizagem. Enfim, é preciso indagar até que ponto as idéias não continuam fora do lugar, para lembrar Schwarz (2001).

Tadeu Alencar ArraisDoutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (Goiás, Brasil)[email protected]

Notas

(1) Para uma discussão aprofundada sobre o espaço intra-urbano, consultar Villaça (1998).

(2) A oferta de emprego em uma determinada região também interfere na dinâmica do mercado imobiliário, seja por meio da valorização do mercado de locação, especialmente nas áreas onde existe concentração de serviços, seja por meio da oferta de novas áreas residenciais. A proximidade de certas regiões de Goiânia, por exemplo, pode determinar o valor de comercialização dos lotes, especialmente quando estes atendem à demanda solvável da capital.

(3) A definição de ator de Markusen (2005, p. 58) parece bem útil: “Defino atores como institui-ções que funcionam como agentes decisórios, empreendedores que decidem estabelecer ou criar firmas em determinados locais e trabalhadores que tomam a decisão de migrar. (...) Outros atores são, também, importantes – entidades de caráter não lucrativo, coopera-tivas, grupos comunitários, associações profissionais, organizações religiosas, indivíduos e, acima de tudo, o Estado”.

(4) A determinação de políticas para correção, na escala nacional, dos “desníveis regionais”, foi acompanhada do aprimoramento das teorias regionais. Sobre esse assunto, consultar Andrade (1987).

(5) O interesse pelo estudo das cidades médias, em diferentes perspectivas metodológicas, aumentou bastante nos últimos anos. Um bom exemplo do potencial desses estudos é en-contrado em Spósito, Spósito e Sobarzo (2006).

(6) A chamada Terceira Itália, localizada no nordeste e norte daquele país, é tida como uma das regiões mais prósperas da Itália. O que chama a atenção dos estudiosos é o fato de es-sa região, considerada deprimida até o segundo quartel do século XX, ter conseguido ala-vancar-se via modernização dos setores tradicionais como vestuário (confecções), móveis, calçados, curtumes, tecidos, entre outros, organizados por pequenas e médias empresas familiares, com estrutura flexível e cooperação setorial, via, por exemplo, consórcios para pesquisa e qualificação de mão-de-obra.

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(7) Na verdade, os referidos autores relacionam esse processo a um novo regionalismo, algo que, considerando as características do regionalismo, especialmente em relação ao Estado nacional, também não encontra evidências facilmente empiricizáveis. “A partir da década de 1970, no entanto, um novo regionalismo começou a emergir e se sobrepor firmemente a este regionalismo devolutivo mais antigo. O novo regionalismo não é tanto um efeito de iniciativas emanadas do governo central, mas uma resposta direta a tensões e pressões movidos pela emergência da cidade-região como ator importante na economia mundial”. Ver Scott et all (2001, p. 18).

(8) Algumas políticas regionais contemporâneas partem da idéia de que é necessário construir coesões para lidar com os mais variados problemas. Uma boa reflexão sobre essas políti-cas em diferentes regiões brasileiras é encontrada em Cruz (2005) e Araújo (2000).

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Parámetros de gobernabilidadterritorial metropolitana

Rui Florentino

ResumenEn el marco del objetivo de ordenación terri-torial, el concepto de gobernabilidad se viene destacando como el elemento de soporte y equilibrio institucional para lograr “políticas sostenibles”, que cumplan los requisitos de mejora medioambiental, social y económica, a largo plazo. Pero ¿en que consiste esta nueva “modalidad de gobierno”? ¿Qué parámetros pueden delimitar la gobernabilidad del terri-torio, en particular de las grandes aglomera-ciones metropolitanas, que mezclan distintos niveles de decisión? El presente texto es una contribución para discutir estos temas y propo-ne seis líneas de actuación – mejorar el gobier-no y la ordenación de regiones metropolitanas es trabajar sobre los retos de competencias y marco jurídico, de recursos humanos, económi-cos y tecnológicos, de democracia y liderazgo, de participación y capital social, de estrategia terri torial y de colaboración para la implanta-ción de proyectos.

Palabras clave: gobernabilidad territorial; gobernabilidad metropolitana; región metropo-litana; estrategia territorial; ordenación territo-rial; planeamiento metropolitano.

Abstract

Considering the main goals of spatial planning, the concept of governability has become a critical element for institutional balance and support, in order to promote “sustainable policies” that will result in environmental, social and economic improvements in the long term. However, what are the main concepts underlying this new form of government? What parameters can def ine spat ia l governability, particularly in large metropolitan agglomerations, which mix different levels of decision? This paper is a contribution to the discussion of these issues, and proposes six lines of action – improvement in the governability and management of metropolitan regions means working on the trends of the legal aspects, of technological, economic and human resources, leadership and democracy, social capital and public participation, spatial strategy and cooperation in the development of urban projects.

Keywords: spatial governability; metropolitan governability; metropolitan region; spatial strategy; spatial planning; metropolitan planning.

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Introducción

Para entender la posible gobernabilidad te-rritorial de una región metropolitana, es útil considerar primero una perspectiva general, con bases históricas y geográficas, que parecen indispensables para observar detalladamente la organización institucional de estos territorios. En concreto en Euro-pa, marcando el contexto de esta reflexión, de acuerdo con sus tradiciones históricas y culturales, se reconocen diferentes modelos de organización administrativa del Estado, que se caracterizan por familias de relativa proximidad. Desde una tradición más liberal y descentralizadora en el Reino Unido, has-ta la familia “Napoleónica” que se extiende por el Sur (Portugal, España, Francia, Italia y Grecia), que por el contrario se caracteriza por una mayor centralidad del poder estatal, presente en las ciudades capitales, muchas pequeñas diferencias se pueden encontrar entre todos los países.

En este sentido, podemos observar que las clásicas soluciones de un gobierno territorial metropolitano, que se manejan en la mayoría de los casos, resultan de dos posturas teóricamente antagónicas. Es cier-to que, por un lado, de manera a coordinar estrategias supra-municipales y planes lo-cales, se justifica la creación de una entidad administrativa con competencias generales sobre todo el territorio metropolitano, pe-ro por otro, la experiencia más reciente de-muestra que procesos de asociación volunta-ria entre municipios pueden ser capaces de producir mejores resultados. Mientras que la primera solución adapta el contexto ins-titucional a la metodología de planeamiento, la segunda camina en el sentido contrario,

porque condiciona estos procesos al marco de un gobierno municipal enraizado (Mar-tins, 1985). Apretadas entre la administra-ción central y los municipios, el problema de las entidades metropolitanas es que no llegan a conseguir una plena legitimidad en la definición de las prioridades estratégicas de las regiones. Mismo cuando no superadas por las decisiones ministeriales de inversión en grandes infra-estructuras de transporte (puentes, autopistas, aeropuertos), la ausen-cia de competencias exclusivas en el planea-miento hace inevitable los conflictos (incluso la oposición) con las autoridades locales y entonces se pierde la dimensión estratégica pretendida a escala metropolitana, a favor de compromisos negociados, tal vez con un mayor contenido político que técnico.

Si estudiamos los diferentes casos, ve-remos que hay bastante relación entre el contexto y la metodología de planeamiento de cada región,1 pero también por eso no tiene gran interés discutir en abstracto cual será el mejor sistema, porque es el contex-to institucional el que debe indicar los cri-terios de referencia para se evaluar el gra-do de validad o eficacia de esa metodología (Etzione, 1968). A confirmar la idea, que no hay soluciones óptimas si previamente determinadas, están los casos más singu-lares del Gran Londres y de la región de Oresund.

El estrecho de Oresund a lo largo del Báltico, en el sentido Norte – Sur, une los países de Dinamarca y Suecia y da el nom-bre a una “región urbana transnacional”, en torno a las ciudades de Copenhagen, Malmö y Lund, que tiene hoy cerca de 2 millones de habitantes. Por cierto durante siglos el estrecho ha contribuido para el incremen-to de las relaciones comerciales de ambos

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países, pero ya en 1991 los gobiernos se han decidido a construir un puente rodo-ferroviario entre sus territorios continen-tales, para fortalecer el desarrollo conjunto de las ciudades y su conexión internacional, ya que el puente permite la accesibilidad di-recta al nuevo aeropuerto de Copenhagen. A través de esta estrategia común en infra-estructuras de transportes, los dos países fomentan una política de cooperación am-pliada a la ordenación territorial de toda la región, que tantas veces resulta difícil dentro de un solo país.2 Del lado danés, las reformas de los ámbitos territoriales de la administración pública pueden ser también un ejemplo para otros casos. La extinción de 14 condados dará lugar a solamente 5 regiones, bien así como los actuales 273 municipios irán bajan a 99 – los de menos de 20 mil habitantes tendrán que unirse a vecinos, siendo esta también una opción para los de más de 20 mil. Las regiones perderán entonces competencias de plani-ficación, a favor del Estado central y de la nueva administración local.

El caso de Londres es también especial, dada la dimensión metropolitana de la en-tidad de gobierno de la ciudad, el Greater London Authority (GLA), cuyo Presidente es electo directamente para competencias generales como planeamiento, transportes, medioambiente, seguridad, cultura y salud. Al contrario de la mayoría de las ciudades europeas, en que la capital es administrati-vamente un solo municipio, Londres tiene 33 distritos, que se pueden considerar como entidades de gestión local. Si lo analizamos en comparación con París, vemos que la po-blación de los 13 distritos centrales (Inner London) está próxima del municipio capital (2,8 y 2,2 millones de habitantes), siendo

que por su lado al Greater London le podrá corresponder París junto a toda la primera corona de la Región Ile-de-France (7,2 y 6,3 millones de habitantes respectivamente) (Fi-gura 1). Lo específico de Londres es que su ámbito geográfico configura en simultáneo una región y un grande municipio, aunque su carácter es sobretodo metropolitano, ya que por cierto la atracción urbana de la capi-tal se extiende hacia las regiones vecinas de South East y East of England, en el sur del Reino Unido.

La cooperación para el desarrollo de Oresund y la autoridad del Gran Londres son casos muy particulares, pero represen-tan dos esfuerzos de buena gobernabilidad territorial. Volviendo a este tema, importa clarificar de qué hablamos entonces, cuan-do empleamos la idea de un nuevo modo de gobernar.

La literatura urbanística ha tomado el concepto de gobernabilidad del campo de las ciencias sociales (Kooiman, 1993) y lo ha definido como un punto de equilibrio para la implantación de los objetivos de equidad, competitividad y sostenibilidad (Fernández Güell, 2005).3 Un territorio metropolitano, que tiene una elevada complejidad en cuan-to a las necesidades, será pues gobernable cuando se mantengan las disfuncionalidades bajo control, mientras se producen acciones colectivas capaces de resolver problemas y abordar el desarrollo, en el sentido de las direcciones deseadas (Lefèvre, 2005). De hecho, es la demanda de mayor participa-ción de los agentes sociales y empresariales (organizaciones no gubernamentales, aso-ciaciones públicas-privadas) la que indica un claro cambio de paradigma en los procesos de toma de decisión, en consecuencia del au-mento del poder de la información.

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Figura 1 – Comparación entre los ámbitos territoriales del Greater Londony de la Region Ile-de-France. Interpretación libre del autor

(los dos planos no están obviamente a la misma escala)

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De forma escueta, se puede decir que esta nueva “modalidad de gobierno” no será otra que la de gobernar en colaboración con la sociedad civil. Según Fernández Güell (2005), los elementos de gobernabilidad en el ámbito territorial se agrupan a 3 niveles, desde una figura geométrica construida en pirámide: en la base los medios, como la tec-nología, los recursos y el capital social, so-portan funciones a desarrollar, los procesos operativos y las competencias organizativas, que a su vez potencian las condiciones para la ejecución de la estrategia de desarrollo, el objetivo a cumplir en los procesos de pla-neamiento y proyecto.

El cambio de paradigma tiene soporte en la evolución de las ciencias políticas y de las culturas de gestión urbanística y metro-politana. De acuerdo con muchos autores (véanse por ejemplo Hall, 1988 o Harvey, 1989), la nueva perspectiva de gobernar una ciudad como se tratara de una empresa supera la importancia de los servicios que los municipios deben proporcionar a los ciuda-danos. Mientras que la dotación de buenas infra-estructuras, de mantenimiento y de vi-vienda protegida fueron las preo cupacio nes después de la Guerra, hoy los gobiernos te-rritoriales están bastante más enfocados en la competitividad económica, en el marke-ting y en la promoción turística, para vender la ciudad como un producto.

Desde las ciencias políticas, se confirma la misma tendencia para el abandono de la visión racionalista de la Administración (de tradición cartesiana), hacia posturas más li-berales, que demandan “políticas imperfec-tas”, porque limitadas (Espada, 2007). De un gobierno limitado, no tenemos que es-perar la solución para todos los problemas territoriales, sino que estimule el pluralismo

de la sociedad y los agentes económicos. Entonces desde una idea de Administración rígida, con muchas competencias lógicas y teóricamente coordinadas entre sí (aunque posiblemente abstractas), pasando por el concepto de Gestión, cuyo sentido será más de respuesta a las iniciativas privadas (a tra-vés del planeamiento o la regulación), llega-mos hoy al campo de la Gobernabilidad, que se explica por la mayor o menor capacidad de un gobierno para llegar a acuerdos con los ciudadanos y las empresas.

Los “nuevos principios del urbanismo” son hoy pues completamente diferentes de los que los urbanistas han proclamado en gran parte del siglo XX. Según François As-cher (2001), el desarrollo social y urbano presenta un nuevo cuadro de prioridades: ordenar el territorio es ahora “gobernar proyectos en contextos de gran incertidum-bre, delimitar objetivos desde los medios que están disponibles, integrar nuevos mo-delos de evaluación, adaptar la ciudad a di-ferentes necesidades, concebir espacios para las nuevas funciones, potenciar la diversidad social, readaptar la misión de los poderes públicos, promover distintas cualidades ur-banas y ajustar la democracia a los nuevos fenómenos urbanos”.

Después de esta introducción, veamos entonces los parámetros indicados para deli-mitar la mayor o menor capacidad de gober-nar los territorios metropolitanos. Seis retos se relacionan entre sí, formando un círculo de carácter secuencial, que volverá al mismo punto, después de pasar por los demás (Fi-gura 2). Una línea oblicua separa los desafíos más relacionados con el contexto (competen-cias y marco jurídico, recursos y democracia y liderazgo) de los procesos más metodológi-cos (participación, estrategia y colaboración).

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Competencias y marco jurídico

El primer parámetro del cual depende la gobernabilidad territorial de una región metropolitana tiene que ver con las compe-tencias y el marco jurídico, que son la base institucional y normativa donde se mueven los procesos operativos de ordenación. Las competencias de planeamiento y de aproba-

ción de proyectos se fragmentan en estos casos en diferentes niveles (seguramente no menos de 3), desde luego en función de la organización política del Estado, como he-mos visto anteriormente.

Según el contexto, los poderes de or-denación de estos territorios se distribuyen por los municipios, las entidades de dimen-sión metropolitana, las provincias (estas dos cuando existen), la región y la administra-ción central. Pero además de esta jerarquía

Figura 2 – Parámetros de gobernabilidad territorial metropolitanay su relación encadenada

Recursos humanos económicos y tecnológicos

Democraciay

liderazgo

Participacióny

capital social

Estrategiaterritorial

Colaboración para la implantación de

proyectos

Competênciasy

marco jurídico

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vertical, las competencias se reparten aún horizontalmente en sectores concurrentes, como por ejemplo los de infra-estructuras, transportes, medioambiente, turismo, salud, vivienda y educación, que muchas veces pro-ponen objetivos contradictorios entre sí – lo que a uno favorece, a otro perjudica.

Los principales instrumentos para la ordenación metropolitana son sin duda los planes territoriales, que a escala urbana sue-len tener poder vinculante, de regulación sobre los usos y formas admisibles de ocu-pación del suelo, lo que es común en países europeos,4 bien así como la existencia de planes de escala superior, supra-municipal, metropolitana y regional, estos de carácter integrado o estratégico, que dan las pautas para el desarrollo de los recursos y activi-dades. Pero el mismo territorio puede ser aún parcialmente objeto de planes especiales de la administración central, necesarios para la protección de paisajes culturales y áreas vulnerables o ecológicas, o interesados por ejemplo únicamente en uno de los sectores arriba mencionados, lo que seguramente complica el acuerdo de prioridades.

En un marco jurídico particularmente complejo como el territorial, no solamente por la coordinación que exige, consideran-do los varios ámbitos de competencias, sino porque tampoco responde al desarrollo de procesos económicos de las empresas, las reformas legales tienden a corregir tardía-mente los problemas diagnosticados, cuando lo que deberían de hacer sería anticiparlos, ya que las situaciones que van a aparecer mañana no serán las mismas de hoy.

Algunas de las tendencias comunes en Europa para solucionar los conflictos de competencias en la ordenación del territo-rio, pasan por el repliegue del planeamiento

con valor jurídico, por la simplificación legal en códigos de urbanismo más integrados y objetivos, por una descentralización de com-petencias siempre que se justifique y por la mayor demanda de participación cívica en la toma de decisiones (Oliveira, 2004).

Recursos humanos, económicos y tecnológicos

Mismo considerando su importancia, mayor o menor según los casos, la verdad es que la definición de competencias y las eventuales reformas del marco jurídico no son más de que un parámetro a condicionar la gober-nabilidad territorial de las grandes regiones urbanas. Desde luego se coloca siempre la cuestión paralela de que recursos se pueden aplicar en los diferentes niveles e institucio-nes. En este contexto, hablar de recursos no es únicamente colocar el problema en el campo de las finanzas públicas, porque habrá que mirar igualmente a las dimensio-nes humanas y tecnológicas de los recursos, que se gestionan en el sentido de mejorar la gobernabilidad y la ordenación de estos territorios.

El capital humano está presente en el discurso político y oficial, pero la realidad es que la inversión en recursos humanos queda casi siempre muy por debajo del ni-vel necesario, mismo sabiendose de que es un elemento crítico para la evolución social y económica de los territorios. En particular en la administración pública, lo que dificulta también la mayor capacidad de gobernar es la tradicional inercia en pasar información de un departamento a otro. Al revés de un funcionamiento en vertical, los organismos

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estatales precisan sobretodo de apostar por el cambio de información en horizontal, es decir, desarrollar los procesos no solamen-te en el ámbito de cada área gubernamental pero sobretodo entre distintos sectores.

En cualquier caso, recursos técnicos de coordinación supra-municipal parecen indispensables, para asegurar la coherencia de la estrategia territorial. En ese sentido, el apoyo de instrumentos tecnológicos e informáticos es una herramienta en la cual la gobernabilidad debe seguir trabajando, porque también ahí se plantean serios retos: la seguridad de la información, el tiempo que es necesario para validarla, la equidad en su acceso, el cruce de datos estadísticos y mayor trabajo intergubernamental en red, por poner algunos ejemplos.

Sobre los recursos económicos se tra-ta un poco de lo mismo, porque para los ciudadanos lo que importa es reconocer los efectos, deseablemente positivos, que ha producido la inversión pública y no tanto el hecho de confirmar de que departamento o nivel administrativo salió la dotación finan-ciera. En realidad, para el balance de cos-tes y beneficios, si cuentan los resultados de los proyectos, como veremos más adelante. La experiencia muestra que los problemas urbanos y territoriales no se resuelven con mucho dinero en cima, al contrario, medidas de gran éxito han resultado de esfuerzos lo-cales sin grandes medios disponibles.

Democracia y liderazgo

Otro de los problemas más relevantes pa-ra la gobernabilidad metropolitana es que su escala de actuación carece de identidad

social y legitimidad política. Según nos con-firma Christian Lefèvre (2005), el “sentido de pertenencia ha permanecido en las mu-nicipalidades o en unidades de gobierno tra-dicional existentes, porque la identidad es un producto de la historia y el tiempo. En verdad, los ordenamientos metropolitanos, sean supra-municipales o inter-municipales, son recientes y como tal no pueden tener una densidad o consistencia histórica simi-lar, como las viejas instituciones políticas.” Además, los aparatos técnicos y administra-tivos descentralizados del Estado no están organizados territorialmente en ámbitos metropolitanos y en algunos casos tampoco el gobierno regional es elegido democrática-mente por los ciudadanos.

El voto popular es una condición im-portante para construir la legitimidad de un gobierno metropolitano. Esto se puede ha-cer de una forma directa para elección de un Presidente, o indirecta, a través del voto para una asamblea, que después designará y pasa a controlar las políticas del órgano ejecutivo, como suele ocurrir en la mayoría de los Estados y municipios europeos. Pero mismo la elección puede no ser suficiente en términos de legitimidad, si le falta la respon-sabilidad de dar cuentas de los resultados de la acción de gobierno, que se justifica por su lado con el aumento de competencias a ese nivel metropolitano, lo que obviamente no será también fácil de conseguir, por la re-sistencia conservadora de la Administración Central y de los alcaldes de los distintos mu-nicipios vecinos.

Con este vínculo a la construcción de la democracia metropolitana se completa la primera parte de los parámetros de go-bernabilidad territorial, más relacionada con el contexto institucional. La formación

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de competencias y reformas normativas, apoya das por nuevos recursos humanos, económicos y tecnológicos, ofrecen pues condiciones para dotar también de legiti-midad política a los arreglos de gobierno metropolitano, sea a través de una elección directa o indirecta. Esta escala de poder, que será necesaria para lograr la ordena-ción territorial, promueve entonces nuevos espacios de liderazgo personal e institucio-nal, que deseablemente han de trabajar en sintonía con la idea de gobernar en alian-za, con las organizaciones civiles y econó-micas de la región. Aún de acuerdo con Lefèvre (2005), “un líder, sea individual o colectivo, es alguien que puede demostrar que representa el interés general del área metropolitana y tiene los recursos necesa-rios, para actuar en ese sentido. Estos re-cursos provienen naturalmente de su po-sición, pero también de su capacidad para complementarlos mediante los recursos de otros actores, lo que significa tener capa-cidad para negociar, relacionarse con otros segmentos de la sociedad, crear vínculos, promover la búsqueda de consenso y, por último, proponer un proyecto aceptable pa-ra la mayoría de las partes interesadas más relevantes.”

El nombre de Ken Livingstone, Alcalde de la Greater London Authority, es con fre-cuencia comentado como un ejemplo de li-derazgo, por su independencia partidaria y la proximidad que ha conseguido mantener con los ciudadanos, dando cuenta de la efi-cacia de los poderes metropolitanos, delan-te de los ministerios centrales, a los que los habitantes no otorgan la misma confianza para la solución de problemas urbanos y territoriales.5 En algunos casos, puede ser también relevante la experiencia anterior en

el gobierno de los municipios de la región, dada la proximidad con los ciudadanos, en particular de la ciudad capital, porque tiene mayor visibilidad política y ofrece buenas condiciones para asumir el liderazgo igual-mente a escala metropolitana, como pasó en Bolonia con el Presidente Walter Vitali.

Participación y capital social

El capital social de una región o un territo-rio es un concepto relativamente difícil de determinar, formando una idea original de los campos disciplinares de la sociología y economía, que apenas se estuvo utilizando en la construcción de políticas urbanas y te-rritoriales. En uno de los textos más refe-renciados por la literatura académica en ese ámbito, Roberto Camagni (2003) define el capital social como “el conjunto de normas y valores que rigen la interacción entre las personas, las instituciones a las cuales están incorporadas, las redes de relaciones que se establecen entre los diferentes agentes so-ciales y la cohesión global de la sociedad. En resumen, el capital social constituye el ele-mento aglutinador de toda la sociedad.”

La posible aplicación de este amplio concepto a la gobernabilidad del territorio se relaciona con el grado de participación ciudadana e institucional en la definición de políticas, planes y proyectos de ordenación. Para eso, se reconoce que el instrumento que reúne mejores condiciones para fo-mentar la participación activa y conciente de los diferentes actores urbanos es segu-ramente la planificación estratégica de ciu-dades, tal y como lo demuestra su práctica

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y metodología (Fernández Güell, 1997). Mientras que en la planificación tradicional la participación de las comunidades y de algunos actores privilegiados se encuentra al margen de su esencia técnica y metodo-lógica, ya que el plan territorial se preocu-pa en primer lugar en dar respuesta a los problemas urbanos y medioambientales, aunque promueva foros de discusión pú-blica en momentos claves del proceso (en general al inicio y en la propuesta final), la planificación estratégica no puede existir sin la participación comprometida de los ciuda-danos y de las empresas. En el límite, son ellos que hacen el plan y sólo con su interés será posible lograr una buena implantación de los proyectos, que articulados según la visión de futuro para la región suelen inte-grar los objetivos de desarrollo físico, social y económico, de modo a construir la soste-nibilidad de la estrategia territorial.

La participación pública en la estrategia territorial o metropolitana tiene también su propia metodología, para que sea lo más eficaz posible, produciendo los resultados esperados. En ese sentido, la participación focalizada por grupos de interés temáticos, que permite una mayor profundidad en el debate, por la intervención de actores más o menos homogéneos (organizaciones no gubernamentales, desarrollo económico, etc.), no debe sin embargo dispensar la promoción simultánea de foros más alarga-dos, que posiblemente ofrecen mayor com-plejidad a los escenarios en análisis. Lo que importa considerar es que la participación es un proceso de doble sentido, en que los agentes se informan y aprenden en conjun-to, de manera a conseguir acuerdos más in-tegrados (Silva, 2003).

Estrategia territorial

El planeamiento territorial, entendido como un instrumento impulsor del capital social y de la participación ciudadana, es por eso un factor importante para mejorar la goberna-bilidad de la región metropolitana. Su obje-tivo es presentar espacialmente una estra-tegia de desarrollo, que sea aceptada por el conjunto de la sociedad y se pueda manejar con suficiente flexibilidad. El éxito de esa visión de futuro, que en determinado mo-mento será materializada en un documento intitulado de plan, depende de algunas ca-racterísticas, que podemos reunir en cuatro planos. La estrategia territorial debe ser vo-luntaria, inclusiva, continua e pro-activa.

En primer lugar, el planeamiento es deseablemente voluntario, sobretodo el de ámbito supra-municipal, porque con inde-pendencia de los requisitos normativos, debe partir de una conciencia colectiva, tanto del poder político como de las organizaciones privadas, de que efectivamente hace falta. En algunos casos, es mismo el sentimiento de incapacidad de los métodos tradicionales de planificación para situar el crecimiento económico y social que lleva a propuestas más innovadoras. Con base en una actitud claramente voluntaria, las líneas estratégi-cas son indicativas y se manejan igualmente desde la creatividad, para motivar la unión de las esferas públicas y privadas, logrando objetivos comunes y no excluyentes.

Precisamente el carácter inclusivo es el segundo aspecto de referencia, en una doble perspectiva, espacial y sectorial. Eso signi-fica que la estrategia territorial deberá su-perar límites administrativos e integrar di-ferentes visiones de desarrollo, los retos de

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equidad social, sostenibilidad medioambien-tal y competitividad económica (Fernández Güell, 2005). El proceso se configura enton-ces “como un eficaz nexo de unión entre la planificación económica, social y espacial.”6 En este sentido, el planeamiento responde mejor a la complejidad fenomenológica que condiciona la evolución de las metrópolis contemporáneas, siguiendo incluso el espíri-tu de los viejos urbanistas, que ya en aquel momento veían la ventaja de equilibrar co-nocimientos de áreas contrastadas, como la ecología, la sociología, la economía, etc.

En tercer lugar, la estrategia territo-rial debe ser también continua en el tiem-po, porque importa tanto el documento aprobado como el aprendizaje colectivo para llegar a una visión pactada para la región. Para tal, es necesario monitorizar la evo-lución del territorio, por ejemplo mediante observatorios o dispositivos de información integrados, que cubran variables habitual-mente separadas en varios departamentos estadísticos, como los usos del suelo, los transportes, la movilidad del empleo, las di-námicas socio-económicas y los indicadores medioambientales. Se procura así mantener la atención crítica sobre los objetivos fijados por el plan, facilitando también una poste-rior revisión de la estrategia territorial.

Por último, la estrategia metropolita-na o regional debe ser pro-activa, ya que a esta escala la ordenación territorial no se persigue a través de la simple regulación de las iniciativas privadas. Para aproximar la evolución real al escenario de futuro que es procurado, resulta por tanto fundamen-tal tener en cuenta y activar los recursos de que ese mismo escenario depende, lo que en muchos casos no se consigue por la falta de acuerdo entre los diferentes niveles de la

administración pública, en los momentos de inversión. Ya en la fase de implantación de los proyectos considerados prioritarios, se verifica pues que los retos de gobernabilidad son interrelacionados y no se resuelven de forma aislada, pero sí se pueden ir acotando a través de la continua intervención en to-dos estos parámetros.

Colaboración para la implantación de proyectos

En este último punto, se reúnen las tareas relevantes para la implantación de la es-trategia territorial: el establecimiento de acuerdos de colaboración pública-privada, la interiorización de costes, la evaluación de impactes y el liderazgo técnico de proyectos urbanos. En la lógica de gobernabilidad, los compromisos son pactados previamente, según los recursos destinados para la inver-sión, pero se deben de mantener abiertos a una posterior negociación, con otras institu-ciones o empresas, interesadas también en el desarrollo de los proyectos. Uno de los desafíos importantes es entonces conseguir comprometer los agentes privados en la in-versión a medio plazo, procurando asegurar la continuidad de los objetivos perseguidos, cuando termine el calendario de aplicación del dinero público.

La gestión de los procesos de implan-tación de estrategias territoriales necesita igualmente de la evaluación previa de las posibles externalidades de los proyectos, de modo a interiorizar costes y beneficios, se-gún respectivamente los impactes negativos o positivos esperados en el territorio. Una

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evaluación correcta de las estrategias exige pues que el balance ecológico pondere en simultáneo las cuentas medioambientales, sociales, económicas y fiscales (Fariña y otros, 2001): la cuenta medioambiental con el objetivo de se conocer la pegada urbana de la intervención, considerando-se los tipos de energía y materiales utilizados, el consu-mo y también la recuperación de los suelos necesarios para el equilibrio del sistema; la cuenta social para saber quién beneficiará con el proyecto y en que cuantía, revelando los verdaderos resultados de la operación; la cuenta económica para cerrar el progra-ma en la perspectiva monetaria, incluyendo efectos inducidos y no ocultando costes di-rectos o indirectos, a medio y largo plazo; y la cuenta fiscal con el sentido de percibir la repercusión del proyecto sobre la inversión y hacienda pública.

Finalmente, es oportuno mostrar de nuevo la importancia del liderazgo, también en la coordinación técnica para la implanta-ción de los proyectos estratégicos. Es obvio que los procesos de decisión se deben sos-tener en la evaluación ponderada de los cri-terios técnicos, pero nos gustaría reforzar que cuando las propuestas de ordenación son relegadas para un segundo escenario, no estamos a contribuir para la clarificación de las posibles opciones en análisis. Es ne-cesario por tanto que los planes y proyec-tos territoriales tengan efectivamente una visibilidad técnica bien asumida, represen-tada por profesionales con capacidad para gobernar en colaboración y liderar las di-ferentes sensibilidades en el ámbito metro-politano.

Aportaciones

Este texto presenta una reflexión teórica, que no pretende llegar a conclusiones inme-diatas. Sin embargo, sí nos gustaría termi-nar con dos aportaciones que creemos de valor en relación a nuestro tema. La gober-nabilidad es una evolución conceptual de los términos de administración y gestión, que refleja la actualidad socio-económica en que vivimos. Tener capacidad para gobernar es equilibrar desafíos, integrar visiones y lide-rar procesos en colaboración con la sociedad civil, cosa que parece simple pero en reali-dad sabemos que no lo es.

Lo que puede resultar innovador de es-ta exposición es que las referencias que te-nemos de gobernabilidad, en los diferentes campos disciplinares, se deben también de integrar, porque no basta reformar uno de estos parámetros para lograr una mejor go-bernabilidad. De acuerdo con los casos par-ticulares, de las regiones metropolitanas que puedan estar en análisis, obviamente habrá puntos más fuertes u otros más flojos, pero se deben atender en su conjunto. Cualquier de estos seis parámetros parece necesario al sistema, pero también ninguno es suficiente por si mismo para mejorar la gobernabilidad territorial de una región metropolitana.

Por otro lado, la secuencia propuesta parece tener igualmente alguna lógica. A pe-sar de que se “salten” indiferentemente es-tas variables, según el caso concreto, de un parámetro del contexto a otro más opera-tivo, la cadena sí puede ser útil, ya que por ejemplo buenas condiciones democráticas y

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de liderazgo favorecen de alguna manera la formación de más capital social y la parti-cipación es también condición fundamental para la estrategia territorial. En cualquier

caso, el sentido que procuramos ofrecer aquí es que el esfuerzo hecho en cada uno de estos parámetros contribuirá, segura-mente, para una mayor gobernabilidad.

Rui FlorentinoArquitecto. Professor de Urbanismo da Faculdade de Engenharia da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa, Portugal)[email protected]

Notas

(1) Investigación que el autor tiene en curso, para los casos de Madrid, Barcelona, Paris y Lisboa.

(2) Según Marc Jorgensen (2007), Consejero de Asuntos Internacionales de la ciudad de Copenhagen, “…se puede facturar el equipaje en Suecia y dejar el coche en el aparca-miento de la estación de tren del lado sueco.”

(3) Según la definición de Jan Kooiman, “una sociedad es gobernable cuando no hay mucha diferencia entre las necesidades (problemas) y las capacidades (soluciones).” Fernández Güell añade que “la buena gobernabilidad es el resultado de sumar la acción de gobierno, la involucración de agentes socioeconómicos y la participación ciudadana.”

(4) A excepción del Reino Unido, donde mismo los planes municipales tienen un carácter de referencia u orientación, más abierto a la posibilidad de negociación.

(5) Livingstone fue el último presidente de la Greater London Council, la anterior entidad me-tropolitana, que el gobierno Thatcher abolió en 1986. En 2000, en la primera elección para el GLA, Ken Livingstone ha vuelto a ganar, siendo entonces elegido como indepen-diente, ya que el Partido Laborista había apoyado otro candidato.

(6) Fernández Güell (2007) se está aquí refiriendo, en concreto, a la metodología de planificación estratégica de ciudades.

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Modelos de ordenamentoem confronto na área metropolitana

de Lisboa: cidade alargadaou recentragem metropolitana?

Margarida PereiraFernando Nunes da Silva

ResumoO artigo aborda os modelos de ordenamento territorial em confronto no processo de metro-polização da região de Lisboa. Um, a partir do planeamento municipal, formaliza a cidade alar-gada. Outro, concebido à escala regional, apos-ta na cidade compacta. A execução do modelo extensivo conduziu a uma estrutura de cidade distendida. Esta ocupação, objecto de críticas, permanece activa, bem como os factores que a induzem, o que justifica as reticências sobre a inversão de tendências com uma expressão que signifique mudança de paradigma. O mo-delo de contenção proposto pressupõe uma forte acção voluntarista da Administração e um envolvimento empenhado dos municípios nessa estratégia, (ainda) não salvaguardado. Por isso, identificam-se factores críticos na mudança que importa controlar para caminhar no sentido da convergência.

Palavras-chave: metropolização; cidade alar-gada; cidade compacta; planeamento regional; planeamento municipal; gestão do território.

Abstract

This article focuses on the disputing planning models in the metropolization process occurring in the Lisbon region. One of them, within the municipal planning structure, embodies the enlarged city. The other one, outlined on a regional scale, rather gambles on the compact city model. Implementing the extensive model has led to a stretched-out city. This occupation model remains a reference to local authorities as well as the factors that trigger it, justifying doubts on a claimed reversal trend, sizeable enough as to mean a change in paradigm. The proposed containment model is closely associated with unmistakable and engaged action by the Administration, as well as commitment to this strategy by the municipalities. Therefore, critical factors to master in the process change are identified in the article, in order to achieve convergence.

Keywords: metropolization; enlarged city; compact city; regional planning; municipal planning; territorial management.

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Introdução

Nas duas últimas décadas do século XX, as ci-dades europeias foram afectadas pela emer-gência de um novo ciclo urbano, associado à mundialização da economia e à afirmação da sociedade da informação e do conheci-mento. O modelo centro-periferia da cidade fordista, caracterizado por um processo de desconcentração de população e actividades menos qualificadas (indústria e terciário ba-nal ligado aos serviços locais), designado de suburbanização, muito dependente dos eixos de transporte colectivo, colapsa. O modelo emergente é marcado por uma “explosão” urbana, gerando uma periferia alargada, a partir de uma rede rodoviária densa que confere grande mobilidade ao automóvel. Os padrões de uso do solo daí resultantes, globalmente de baixas densidades, são agora mais complexos, onde convivem áreas habi-tacionais de diferentes tipologias, actividades diversificadas, muitas qualificadas, que sus-citam a emergência de centralidades perifé-ricas, gerando movimentos relacionais cada vez mais multidireccionais. Diversos autores têm abordado esta reconfiguração urbana, que associam ao processo de metapolização (Ascher, 1999, 2005) ou metropolização (Lacour e Puissant, 1999). Ascher usa o conceito para referenciar o processo de con-centração de homens, actividades e capital nas aglomerações que albergam várias cen-tenas de milhares de habitantes, fortemen-te integradas na economia mundial. Lacour e Puissant enfatizam não só o aumento do poder de comando da grande cidade sobre um território cada vez mais alargado, mas também múltiplas recomposições, no plano interno (dos conjuntos urbanos envolvidos)

e nas relações externas. De facto, agora in-teragem factores e protagonistas com ori-gem em diversas escalas, da transnacional à local, conferindo incerteza, instabilidade e imprevisibilidade às metamorfoses físicas e funcionais destes territórios. Na mudança sobrepõem-se processos contraditórios: re-forço da concentração (à escala macro) e da explosão urbana (à escala meso), induzindo a cidade distendida, descontínua, fragmen-tada, sem referências e ambientalmente predadora. Esta (re)organização urbana in-tensifica as disfunções típicas das aglomera-ções, confere-lhes outros contornos e coloca dificuldades acrescidas ao desenho das polí-ticas urbanas. O contexto de enquadramento também é afectado, devido à fragmentação do poder político e à visibilidade crescente dos grupos económicos transnacionais que, em permanência, impõem as suas lógicas próprias, fazendo e refazendo a cidade. Nes-te tumultuoso processo de “produção” urba-na, tem vindo a ganhar audição os princípios da sustentabilidade urbana, defendidos por documentos emblemáticos como o Relatório Rogers (1999), as várias orientações da UE sobre cidades sustentáveis – por exemplo Carta de Aalborg (1994), Compromissos de Aalborg (2004) e Carta de Leipzig (2007) – a Nova Carta de Atenas (2003) do Conselho Europeu de Urbanistas. Porém, a sua aplica-ção choca com dinâmicas difíceis de contra-riar no terreno.

Tomando como caso de estudo a Área Metropolitana de Lisboa (AML), o artigo coloca em evidência as reconfigurações re-centes que têm afectado este território e as duas concepções de ordenamento (munici-pais e metropolitana) em confronto, reflec-tindo sobre o seu potencial de convergência prática. Para tal a exposição está organizada

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em três pontos: o primeiro retrata os prin-cipais sinais de evolução e os factores que lhe estão associados; o segundo compara os modelos de ocupação pensados pelos muni-cípios e o modelo regional; o terceiro identi-fica alguns factores críticos para a mudança, pois se hoje a defesa da cidade compacta é politicamente correcta, os caminhos para a sua viabilização permanecem com excesso de obstáculos.

As reconfigurações territoriais na Área Metropolitana de Lisboa: marcos relevantes

A AML tem um papel hegemónico no sis-tema urbano nacional. Ocupando cerca de 3% da superfície do território nacional, em 2004 concentrava 2,8 milhões de habitan-tes (26,2% da população do país), desigual-mente repartidos por 18 municípios das margens direita e esquerda do Tejo, para além de aí se concentrarem 35% do PIB e 37% do VAB nacionais.

O modelo centro-periferia (1960-1980)

A cidade metrópole emerge nos anos 50 e a sua consolidação prolonga-se até à déca-da de 80 (Pereira, 2004). Neste período, a AML regista um acréscimo populacional de 64,7%, embora com diferenças acentuadas entre a margem direita (163,8%) e esquer-da (100,6%).

O crescimento urbano associado à in-dustrialização do pós-guerra processa-se segundo um modelo monocêntrico, radial, funcionalmente dependente de Lisboa. No final dos anos 60, a ocupação suburbana tem duas marcas distintas: aglomerados articulados com os principais eixos radiais de ligação à cidade-centro; urbanizações e terrenos expectantes (de produção legal e ilegal) dispersos pelo território. Na década seguinte, acontecimentos diversos (início da recessão industrial carreada pela crise ener-gética, reforço da expansão urbana ilegal na sequência da “liberdade” pós “25 de Abril”, regresso de milhares de antigos residentes nas ex-Colónias devido à descolonização, consolidação do poder local democrático com competências no ordenamento dos ter-ritórios municipais) introduzem dados novos na dinâmica territorial. Estas mudanças não interferem na estrutura do modelo de cres-cimento metropolitano, mas intensifica-se a ocupação da matriz territorial desenhada: as grandes urbanizações legais persistem e as urbanizações ilegais alargam em perímetro e densificam-se, estimuladas pela instabi-lidade política e descoordenação da Admi-nistração. Lisboa-cidade, que nos anos 60 regista uma ligeira perda populacional as-sociada à terciarização da sua área central, recupera agora ligeiramente (por razões conjunturais decorrentes da fixação de parte dos recém-chegados de África). Nos municí-pios da margem sul do Tejo, e em particular nos mais próximos ao mar, intensifica-se a 2ª residência.

O poder local democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP) (1976) recebe um território onde os problemas se avolumam. A cidade legal, dos núcleos suburbanos e das urbanizações

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isoladas no campo, densos e de tipologias

plurifamiliares, apresenta infra-estruturas

incipientes, equipamentos básicos escassos e

um espaço urbano pouco qualificado; a cida-

de "clandestina", alimentada pelo mercado

ilegal de solo, é maioritariamente construída

em baixa/média densidade, com tipologias

unifamiliares, e sem as infra-estruturas mí-

nimas intrínsecas ao estatuto de "urbano".

As quantidades de solo envolvidas na urba-

nização, e o ritmo da sua integração, di-

ficultam uma correcta infra-estruturação,

pelos custos inerentes e a incapacidade de

resposta da Administração em tempo útil.

A periferia permanece muito dependente de

Lisboa, onde se concentra o emprego terciá-

rio, os equipamentos de hierarquia superior,

o comércio e os serviços mais especializados

e qualificados.

Os anos 80 marcam a transição para o ciclo urbano que se afirmará na década seguinte (Pereira, 2004). A integração de Portugal na U.E. desencadeia a convergência de diversos factores, nomeadamente: exe-cução da rede de infra-estruturas rodoviá-rias prevista no Plano Director da Região de Lisboa (1964) viabilizada pelos fundos co-munitários, reforço do investimento estran-geiro induzido pela abertura das fronteiras, aumento do rendimento das famílias e das facilidades de crédito (privatização da ban-ca), com reflexos na expansão do consumo de bens duráveis (entre eles a habitação, de 1ª ou 2ª residência) e de serviços estimulado pelo crescimento da massa monetária dispo-

nível. A passagem do modelo rodoviário ra-

dial para um modelo radioconcêntrico mais

estruturado altera as condições de mobilida-

de, potencia alterações acentuadas no uso

do solo e multiplica e afasta as frentes de

urbanização.

O modelo de cidade alargada (com início nos anos 90/em curso)

De 1980 para 2001 o crescimento da popu-

lação na AML abranda (7,2%) face a igual

período anterior, mas as diferenciações in-

ternas acentuam-se: Lisboa-cidade reduz em

30% os seus residentes e o crescimento da

periferia norte (26,9%) supera ligeiramente

o da periferia sul (22,2%).

Nos anos 90, a discrepância de com-

portamentos entre a população residente e

os alojamentos ajuda a explicar a explosão

da mancha urbana: a variação da população

na AML foi de 5%, mas a dos alojamentos

atingiu os 22%, sendo o contributo maior

dado pela 2ª residência. Porém, o facto mais

relevante foi o acréscimo dos alojamentos

vagos, que ultrapassou os 47% na AML (e

os 60% em Lisboa). Apesar do crescimento

populacional pouco expressivo, a sua reor-

ganização interna é relevante: Lisboa perde

15% dos seus residentes, absorvidos pela

periferia. As mudanças no modelo funcional

e espacial também são marcantes: progres-

siva ascensão do terciário, queda da indús-

tria pesada, desenvolvimento de indústria

ligeira, aparecimento da logística. O sector

bancário privado sofre uma grande expan-

são e é em parte responsável pelo desenvol-

vimento do imobiliário (George, 2004).

Da reestruturação económica, com im-

pacte na (re)localização das actividades me-

rece referência

[...] por um lado, a quebra do empre-go industrial e a expansão dos serviços, e, por outro lado, a diminuição do em-prego na cidade e os ganhos na coroa

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suburbana, em relação com as trans-formações estruturais da economia e da organização do trabalho. (Salgueiro, 2001, 58)

Os movimentos de desconcentração e reloca-lização de actividades para a periferia deixam de ser exclusivos da indústria, registando-se expansões das actividades terciárias (comér-cio e serviços) designadamente pela cons-trução de grandes centros comerciais, cen-tros de escritórios e parques tecnológicos. O poder político e o poder económico per-manecem em Lisboa-cidade, mas o modelo monocêntrico vai-se esbatendo. A metrópo-le é marcada pelo alastramento da mancha urbana, pela fragmentação (física, funcional e social), e começa a emergir uma estrutura policêntrica mais equilibrada (ibid.).

Apesar de Lisboa-cidade continuar a perder população e actividades, a recen-tralização, associada à (re)valorização de áreas na cidade consolidada, ganha outra dimensão e diferentes formas (reabilita-ção de sítios antigos, reaproveitamento de áreas sub-u ti lizadas ou abandonadas por obsolescência física e funcional). O conges-tionamento do tráfego, o imobilismo do mercado de arrendamento, a hiper-inflação do imobiliário são tendências pesadas que inibem mudanças estruturais para a sua (re)qualificação e para a sua afirmação externa como centro da Região Metropolitana.

Nas novas periferias, sobressai uma “organização caótica” (Pereira, 2004), pela coexistência de realidades distintas: áreas habitacionais desqualificadas, com standards urbanísticos e de habitação muito abaixo do aceitável; produtos imobiliários de ele-vado standing e por vezes inovadores (con-domínios habitacionais privados, parques

tecnológicos e de escritórios, centros co-merciais nas suas diversas configurações, parques temáticos, campos de golfe).

Duas visões de ordenamento (inconciliáveis) para o território metropolitano

A perspectiva (egocentrada) dos municípios

O poder local democrático reforça o seu en-volvimento na gestão do território, embora continuando com tutela técnico-administrati-va central (através de órgãos regionais des-concentrados – as Comissões de Coordena-ção de Desenvolvimento Regional – CCDR).

Para apoiar a gestão municipal é criada, em 1982,1 a figura de plano director muni-cipal (PDM), mas o seu carácter facultativo e a fraca tradição de planeamento justificam a escassa adesão das autarquias à sua ela-boração. Algumas autarquias recorrem a planos de urbanização ainda do regime au-toritário ou entretanto lançados e a estudos de reconversão urbanística para as áreas de urbanização ilegal para apoiar a gestão ur-banística. Mas a maior parte da gestão do território, embora carecendo sempre do aval da entidade regional (CCR), decorre de decisões avulsas e casuística. Este modo de aprovação das urbanizações da iniciativa dos particulares favorece a dispersão das áreas urbanas, ainda muito dependentes da ofer-ta de transporte colectivo, dada a deficiente

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rede viária de grande capacidade e a reduzi-da taxa de motorização.

A integração de Portugal na UE obriga à definição em plano eficaz dos investimentos candidatáveis a financiamento comunitário. Este facto leva à revisão2 do enquadramento legal do PDM, aligeirando o seu conteúdo e processo de elaboração, mas tornando-o obrigatório. Em consequência, durante os anos 90, todo o território metropolitano fi-ca coberto com orientações de ordenamento a partir da escala municipal.

Nos modelos territoriais então propos-tos identificam-se um conjunto de tendên-cias comuns:

• áreas urbanizáveis de grandes dimen-sões, suportadas em perspectivas de cres-cimento que já não seriam expectáveis ocorrer;

• diminuta atenção dada à cidade existente;

• interesse colateral sobre o espaço rural e manifesta dificuldade em interpretar e or-denar as dinâmicas que afectam as franjas urbanas;

• admissibilidade de construção em espaço rural (áreas agrícolas, florestais, agro-flores-tais, ...), de vários usos (habitação, indústria, equipamentos, turismo, ...), referenciados a uma dimensão mínima da parcela;

• os planos posteriores a 1995 tendem ainda a integrar nos perímetros urbanos as áreas urbanas de génese ilegal (AUGIs);3

• definição relativamente coerente e deta-lhada das grandes redes de infra-estruturas e de equipamentos;

• as áreas agrícolas, florestais e agro-flo-restais tendem a decalcar os usos existentes, sem preocupações da sua valorização en-quanto espaços de produção.

Classes de uso do solo PMOT Área total (ha) Área total (%)Equipamentos metropolitanos e infraestruturas 11542,7 4,1Estrutura verde agrícola 75719,7 26,6Estrutura verde agro-florestal 24455,3 8,6Estrutura verde florestal 42507,8 14,9Estrutura verde indústria-extractiva 1046,3 0,4Estrutura verde zona única 64281,8 22,6Urbano consolidado 29578,3 10,4Urbano industrial 7892,4 2,8Urbano livre 3649,3 1,3Urbano não consolidado 21323,0 7,5Urbano recreio e lazer 1250,2 0,4Por classificar* 27307,5 9,6Total 310554,17 100

* Corresponde principalmente à rede viária principal Fonte: DGOTDU, vários anos.

Tabela 1 – Classes de uso do solo dos PDM da AML em área e percentagem

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A Figura 1 representa o modelo de ocupa ção territorial da AML, a partir da jus-taposição das propostas de ordenamento de todos os Planos Directores Municipais, cuja classificação do uso do solo foi compatibili-zada. A leitura da carta é bem elucidativa da fragmentação urbana, aqui marcada por de-feito, já que aí não estão assinalados os usos urbanos que poderão surgir em espaço rural.

Outro resultado deste exercício é a do-minância dos espaços não urbanos em to-do o espaço metropolitano, com destaque para os agrícolas (26,6%), agro-florestais (8,6%) e florestais (14,9%), que no con-junto representam mais de metade da área total. O urbano consolidado corresponde a 10,4% da área total, sendo que o urbano não consolidado representa 7,5%, o que não deixa de ser significativo no que esta dimensão (quase idêntica à dos espaços con-solidados, quando a população cresceu mui-to pouco) traduz de uma ocupação extensiva do território. Note-se ainda que uma boa parte do que é classificado como “estrutura verde agro-florestal” inclui áreas de foros com edificação dispersa, o que não é mais que uma morfologia urbanística característi-ca dos espaços peri-urbanos.

O sobredimensionamento das áreas de expansão é justificado pela incapacidade da Administração controlar a iniciativa da sua execução, dependente dos detentores da propriedade, assegurando uma oferta superior à procura, para evitar efeitos mo-nopolistas e a fuga de oportunidades não previstas. O processo de urbanização4 per-manece agarrado ao cadastro da proprie-dade e às iniciativas dos particulares (e dos seus objectivos, meios, timing, estratégias), dada a ausência do princípio de programa-ção. A escassez de objectivos e acções para

intervir na cidade consolidada conduzem à sua progressiva degradação física e conse-quente desqualificação, o que motiva a saída de muitos residentes (ou a não fixação de outros).

Nas áreas rurais (agrícolas, florestais, agro-florestais), a construção isolada (pa-ra usos diversos) é admitida quase sem-pre, apenas condicionada a uma dimensão mínima das parcelas e às restrições à cons-trução impostas pelas servidões de utilidade pública. Também podem ocorrer ocupações para fins turísticos, aproveitando as prerro-gativas dadas pela legislação específica (em-bora seja comum tratar-se de subterfúgios para concretizar urbanizações fora dos perí-metros urbanos, convertendo-se a posterio-ri em condomínios fechados para primeira ou segunda residência). Isto é, a par da dis-persão da urbanização nos perímetros urba-nos, a ocupação difusa também acontece no espaço rural.

Esta filosofia de organização territorial enquadra formas de gestão já praticadas. Cada município pretende concentrar no seu território as tendências da dinâmica metro-politana, sendo pouco frequente a concer-tação de soluções inter-municipais, mesmo nos territórios de fronteira. O investimento público central na rede rodoviária de gran-de capacidade, sem preocupações sobre os impactes territoriais induzidos, estimula o afastamento e pulverização das frentes de urbanização.

Os modelos de ordenamento en-fermam de vários vícios, mas a situação agrava-se na gestão do plano. De facto, a execução dos planos é ainda uma intenção sem consequên cias, a julgar pela sua pouca credibilização e pelo raro envolvimento dos promotores de forma aberta e transparente

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Figura 1 – Classes de uso do solo dos PDM compatibilizadas para a AML

urbano consolidadoequipamentos metrop. e infraestruturasurbano recreio e lazer

estrutura verde indústria-extractivaurbano não consolidadourbano industrial

urbano livre

estrutura verde agro-florestalestrutura verde florestalestrutura verde zona única

estrutura verde agrícolapor classificar

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(Antunes, F. Rocha, 2006). A gestão não tem sentido estratégico, estando reduzida a uma atitude burocrática de controlo de usos e ín-dices urbanísticos (densidades, cérceas, áreas de construção e de implantação, áreas de ce-dência para equipamentos colectivos, ...).

A atitude “nim”5 da entidade metropolitana

A visão egocêntrica dos municípios não é contrariada pela entidade metropolitana.

Em 19916 surgem as áreas metropo-litanas de Lisboa e do Porto, como asso-ciações de municípios de carácter especial (obrigatórias). Estas entidades revelaram total inoperância no seu funcionamento, como Pereira e Silva (2001) o demonstram para a AML. A Junta Metropolitana (órgão executiva, constituído pelos Presidentes de todas as Câmaras Municipais aí integradas), sempre aludiu falta de legitimidade políti-ca para justificar a não tomada de posição sobre os projectos estratégicos para a área metropolitana; o Conselho Metropolitano (órgão de coordenação entre as políticas sectoriais nacionais e as políticas munici-pais), nunca desempenhou as suas funções, porque subestimado pelos departamentos centrais. Nem a coordenação do nível mu-nicipal foi salvaguardada, aqui por falta de empenhamento dos municípios envolvidos, ciosos do seu protagonismo local.

A alteração introduzida à lei das áreas metropolitanas, em 2003,7 persistiu num modelo baseado na associação dos municí-pios (agora voluntária) e nem o reforço de competências trouxe alterações ao modo funcionamento, persistindo a ausência de posições sobre o território metropolitano.

A visão top down da entidade regional

O Plano Director da Região de Lisboa (PDRL), o primeiro plano regional, concluí-do em 1964, preconiza um modelo que aposta na concentração urbana, quer pelo reforço da aglomeração de Lisboa (consti-tuída pela cidade e cinco aglomerados con-tíguos), quer pela estruturação do cresci-mento suburbano (expansão contida dos núcleos existentes na periferia, ignorando grandes manchas dispersas de urbanização ilegal). A sua não aprovação inviabiliza a concretização das infra-estruturas estru-turantes do desenvolvimento previsível e a elaboração dos planos de urbanização, para particularizar à escala local as orientações regionais. Embora numa outra conjuntura, importa reter para futuras comparações duas ideias-chave: o conceito de concentra-ção urbana prevalecente na estruturação metropolitana; o “esquecimento” de impor-tantes dinâmicas no terreno, que não são enquadradas nem travadas.

De facto, a maior parte das infra-estru-turas viárias estruturantes só serão concre-tizadas com os fundos comunitários (mais de ¼ de século depois!). Todavia este plano tem constituído um “guião” para a Adminis-tração Central ir “controlando” a actuação dos municípios.

Nos anos 80, a CCRLVT promove a elaboração do plano regional de ordena-mento do território da área metropolitana (PROT-AML), cujo processo se arrastará por mais de uma década (Tomás, 2002). Só em 2002 a AML tem aprovado um plano,8 de natureza estratégica, para o território metropolitano. Enquadrado pelos princípios

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definidos na Lei de Bases do Ordenamento do Território e Urbanismo (LBOTU)9 e nos Instrumentos de Gestão Territorial (IGT),10 a proposta do PROT aposta em “Estruturar e qualificar a área metropolitana (...) em contraponto com o urbanismo expansivo e depredador de recursos que caracterizou a Região nos últimos 30 anos” (CCDRLVT, 2004, p. 9).

Face às múltiplas disfunções no terre-no, marcadas por um urbanismo expansivo e desorganizado e problemas ambientais graves, e à pressão sobre ecossistemas frá-geis (orla costeira, estuários, rede hidro-gráfica), o PROT adopta a sustentabilidade como o conceito de base para ancorar a filo-sofia do plano.

Assim, aponta como prioridades funda-mentais:

• a sustentabilidade ambiental, onde se destaca a (re)valorização e a revitalização do meio rural como elemento do equilíbrio metropolitano;

• o reordenamento metropolitano, através da contenção de expansão urbana e de um modelo de estrutura metropolitana;

• a coesão sócio-territorial;• a organização do sistema metropolitano

de transportes e da logística.

A estratégia territorial visa quatro ob-jectivos específicos:

• recentrar a área metropolitana no Estuá-rio do Tejo, salvaguardando os valores natu-rais e as áreas protegidas;

ACÇÕES URBANÍSTICAS CENTROS / PÓLOS

ÁREAS A ESTABILIZAR FLUXOS/LIGAÇÕES A REFORÇAR OU FOMENTAR

aeroporto internacional existente

porto

novo aeroporto internacional

limite da AML

SISTEMA ECOLÓGICO METROPOLITANO

ligações/corredores estruturantes primários

áreas estruturantes primárias

0 642 8 km

Figura 2 – Esquema do modelo territorial para a AML (PROT-AML)

área urbana central a revitalizar

área urbana a articular e/ou qualificar

área urbana a estabilizar

área urbana crítica a conter e qualificar

área urbana a estruturar e ordenar

área de dispersão urbana a controlar

área urbana periférica a estruturar

área turística a estruturar e qualificar

área logística a estruturar e ordenar

centro de 1º nível

centro de nível sub-regional

pólo industrial e logístico

pólo de investigação e desenvolvimento

pólo de internacionalização econômica e/ou cultural

pólo de valência turística e ambiental

pólo de equip. e serviços de nível sub-regional

pólo de equip. e serviços de nível sub-regional

centralidade em eixo ou multipolar

área agrícola

área agro-florestal

área florestal

área natural

principal externasecundária externaprincipal internasecundária internaprincipal do Centro da AML

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• desenvolver a “Grande Lisboa”, cidade das duas margens, ancorada na cidade de Lisboa;

• policentrar a região;• valorizar a diversidade territorial, corri-

gindo desequilíbrios existentes.

A estrutura do modelo territorial (Fi-gura 2) alicerça-se na filosofia de cidade compacta, recentragem no núcleo central (agora alargado à margem esquerda do Tejo, com a integração de Almada, Seixal e Barreiro), contenção das áreas urbanas pe-riféricas, restrições à dispersão e valoriza-ção e salvaguarda dos corredores ecológicos e das áreas agrícolas, florestais e naturais. São identificadas áreas homogéneas, para as quais são dadas orientações sempre no sen-tido da “contenção”, “requalificação”, “reva-lorização”, estando ausente o termo “expan-são”. As redes de transporte são orientadas para a consolidação de um sistema radiocon-cêntrico (Nunes da Silva, F.; Gaivoto, C.; Lo-pes, V., 2002). Ao nível ambiental, sobres-saem as propostas da estrutura metropoli-tana de protecção e valorização ambiental, incluindo a rede ecológica metropolitana, a rede ecológica secundária e as áreas vitais (Bettencourt, H. , 2002).

A operacionalização do PROT passa pela integração das suas orientações nos PDM, já que compete a estes o estabele-cimento de um regime de ocupação e de uso do solo. Daí a importância das normas específicas para enquadrar os IGT a elabo-rar ou a rever. Entre as orientações para os instrumentos de planeamento municipal sublinha-se:

• promover a urbanização programada;• definir limites coerentes e estáveis para

os espaços urbanos;

• qualificar urbanística e paisagisticamente as áreas urbanas centrais, assegurando-lhes um papel na prestação de bens e serviços;

• definir mecanismos de reforço da ima-gem própria dos aglomerados rurais;

• promover a contenção da edificação dis-persa e do parcelamento da propriedade em meio não urbano.

Ora, é inequívoco que estes princípios são efectivamente o contrário do que até agora tem sido praticado.

A aprovação do PROT não teve efeitos imediatos ao nível municipal. O preâmbulo do diploma que aprova o plano regional re-fere que

[...] são genericamente incompatíveis

com o PROT-AML as seguintes disposi-

ções constantes de plano municipal de

ordenamento do território: a) a classi-

ficação como solo urbanizável (destina-

do a fins urbanos, industriais ou equi-

pamento) de áreas inseridas na rede

ecológica metropolitana (...), ou seja,

nas áreas estruturantes primárias ou

secundárias, nos corredores e nas áreas

vitais; b) as que admitam ocupação, uso

e transformação do solo não consentâ-

nea com as indicações do PROT-AML

nas áreas integradas na estrutura me-

tropolitana de protecção e valorização

ambiental, incluindo a rede ecológica

metropolitana e as áreas a estabilizar

(agrícolas, agro-florestais, florestais e

naturais).

Tal incompatibilidade

[...] implica a necessidade de alterar

(...) as disposições manifestamente in-

compatíveis dos planos municipais de

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ordenamento do território quando estas

contrariem os objectivos visados com as

normas do PROT-AML que motivaram

a situação de incompatibilidade. Quando

a alteração referida no número anterior

não possa dispensar uma reavaliação

global das propostas de ocupação e uso

do solo no âmbito de uma acção de pla-

neamento ou quando não seja possível

determinar com segurança, por razões

de escala ou pela natureza das disposi-

ções em causa, o alcance ou a própria

existência da incompatibilidade, deve a

reavaliação necessária processar-se em

procedimento próprio de elaboração,

alteração ou revisão de plano municipal

de ordenamento do território.

Para dar cumprimentos ao determina-do na Lei,11 o PROT identifica as incompati-bilidades dos PMOT com a estrutura regio-nal do sistema urbano das redes, das infra-estruturas e dos equipamentos de interesse regional.

Detectaram-se mais de uma centena

de incompatibilidades, particularmente

com a Rede Ecológica Metropolitana

(...), embora só em 13 casos (...) es-

sas incompatibilidades obrigam a revi-

sões significativas dos PDM. (Ferreira,

2002, p. 40)

Assim

(...) as incompatibilidades de alcance

significativo obrigam a alterações dos

PDMs, através de fortes reduções de

edificabilidade, de permutas de direitos

de construção ou, quando juridicamente

consolidados, a indenizações. (Ibid.)

Mas os municípios não optam pela revi-são dos PDM em vigor, apesar de propostas aí contempladas contrariarem/inviabilizarem orientações consagradas no plano regional, nomeadamente no que se refere aos cor-redores ecológicos, espaços verdes vitais e áreas de maior sensibilidade ambiental. Aliás, é precisamente para esses espaços que se tem dirigido o apetite de grandes grupos financeiros e promotores imobiliários, ten-do conseguido a aprovação de verdadeiras “mini-cidades” sob a cobertura de empre-endimentos turísticos, algumas vezes exi-bindo mesmo a chancela ecológica dada por algumas organizações ambientalistas que, sob o pretexto da necessidade de assegurar sustentabilidade ao empreendimento, aca-bam por aceitar o trade off entre as restri-ções ambientais e os benefícios económicos que se possam obter. Assim, surgem algu-mas situações de difícil ultrapassagem for-mal, já que no actual quadro legal o PROT (de natureza estratégica) apenas vincula os municípios e não os particulares (por exem-plo: um particular desencadeia a urbanização da sua propriedade, em conformidade com as orientações do PDM, mas esta aprovação contraria as orientações regionais, a que a autarquia está vinculada).

A ambiguidade destas situações justifi-cou um despacho12 do Ministro do Ambiente Ordenamento do Território e Desenvolvi-mento Regional, determinando:

• a adopção das disposições contidas no PROT-AML como quadro orientador do exercício de todas as competências;

• a elaboração, alteração ou revisão de PMOT devem assegurar a conformidade do plano com o PROT-AML;

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• os procedimentos conducentes à alte-ração dos PMOT (embora ainda não inicia-da), para garantir que os mesmos passem a estar em conformidade com o disposto no PROT-AML.

A partir de então, a CCDR tem promo-vido processos de negociação tendo em vista a concertação de soluções que viabilizam as orientações do PROT (em particular as asso-ciadas à viabilização dos corredores ecológi-cos) (Carmo, 2006).

Mais recentemente (2007) o documen-to “Lisboa 2020 – Uma Estratégia de Lisboa para a Região de Lisboa”, integra nos pro-jectos estruturantes ou estratégicos (defini-dos como

[...] projectos susceptíveis de provoca-

rem rupturas com a situação existente

e as tendências de desenvolvimento

“instaladas”, conduzindo as mudanças

no sentido da construção do modelo

de território desejado, “plasmado” na

visão (...)

proposta no PROT (CCDRLVT, 2007, p. 109), a “Articulação dos Instrumentos Muni cipais de Gestão Territorial com o PROT-AML ” (ibid., p. 111).

Na visão para a próxima década – “Lis-boa Euro-Região Singular” – impõe-se inter-ferir de forma decisiva na dinâmica territo-rial, defendendo um novo modelo territorial baseado

[...] nos princípios da cidade compacta

(...) e da polinucleação, afirmando-se

como uma região metropolitana polinu-

cleada em substituição do actual mode-

lo radiocêntrico e fragmentado. (Ibid.,

p. 101)

Para atingir tal objectivo defende-se na in-tervenção territorial

[...] o princípio da integração dinâmi-

ca da região no contexto internacional,

ibérico e nacional (...), o princípio da

eficiência e sustentabilidade ambiental

(...) e o princípio da requalificação e

revitalização do território, do patrimó-

nio habitacional e patrimonial, assegu-

rando a coerência territorial, controlan-

do o uso extensivo do solo, apoiando

uma renovação de funções e formas de

apropriação da terra e, sobretudo, con-

jugando tradição e modernidade no uso

da cidade. (CCDRLVT, 2007, p. 102)

Factores críticos para a mudança

As situações descritas sobre as orientações de planeamento elaboradas ao nível da área metropolitana (PROTAML) ou a partir dos objectivos definidos em cada município (PDM) são inequívocas quanto ao seu an-tagonismo. No terreno temos implantado um modelo urbano em extensão (activo), enquanto os sinais de degradação das áreas consolidadas (com particular dimensão em Lisboa) persistem e acentuam-se diaria-mente, apesar de intervenções pontuais em sentido inverso (caso da operação de rege-neração urbana no Parque das Nações, na sequência da Expo 98, e de algumas acções de reabilitação urbana, sempre de dimensão exígua e com escasso efeito multiplicador).

Nos PDM em revisão parecem persis-tir as tendências expansionistas. As práticas

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de gestão reactiva, que colocam na iniciativa privada grande parte (senão mesmo o exclu-sivo) da expansão territorial, são marcadas for falta de objectivos relativos ao interesse colectivo a defender na organização do ter-ritório.

Assim sendo, como promover a conver-gência dos dois modelos? Para tal, defende-se como indispensável contrariar/neutralizar algumas das causas determinantes no cresci-mento da cidade fragmentada e na expansão urbana difusa:

• persistência na densificação da rede ro-doviária de grande capacidade, em prejuízo do investimento nas redes de transporte colectivo;

• ausência de controlo sobre as mais-valias fundiárias geradas pelos planos e ainda me-nos da sua apropriação (ao menos parcial) por parte dos poderes públicos;

• fraca agilidade e difícil operacionalização dos mecanismos para a regeneração da cida-de consolidada;

• valorização do espaço não urbano/rural sempre dependente de usos urbanos, sejam empreendimentos residenciais ou turísticos, seja apenas uma habitação.

Depois, a intervenção municipal deve privilegiar três frentes de actuação: esta-bilizar a mancha urbana; (re) estruturar a cidade alargada e revalorizar a cidade exis-tente, caminhando no sentido defendido pe-lo PROT.

1 - Estabilizar a mancha urbana. Esta é uma acção fundamental, que passa pela “libertação” da valorização dos espaços não urbanos/rurais do licenciamento da constru-ção e da urbanização.

2 - (Re)estruturar a cidade alargada. A matriz de dispersão da urbanização na AML é um dado incontornável (Soares, 2002),

que tem que ser enquadrado nas soluções de intervenção (Soares, 2005). Uma atitude voluntarista deve encarar tal circunstância como uma oportunidade, já que a cidade policêntrica está lançada e a periferia tem ganho autonomia (em emprego, em equi-pamentos, em serviços). Assim, é necessário apostar em operações de requalificação/col-matação dos espaços urbanos da periferia, ajustadas às especificidades dos diferentes tecidos urbanos, embora seja certo que a (re)estruturação da cidade alargada difere da gestão da cidade compacta (Portas, Do-mingues e Cabral, 2003).

3 - Revalorizar a cidade existente. Esta exige uma actuação diversificada, que envolve acções de grande dimensão e com-plexidade ou apenas de “acunpultura urba-na” (Lerner, 2005). Nas primeiras podem integrar-se operações de regeneração urba-na sobre áreas funcionalmente obsoletas e ou abandonadas (por exemplo importantes troços das frentes ribeirinhas do estuário do Tejo, antigas áreas industriais ou de ar-mazenamento, equipamentos abandonados ou com localizações desajustadas (quartéis, prisões, ...). São intervenções mais difíceis de “montar”, pela elevado envolvimento fi-nanceiro e escassez de recursos públicos. Mas muitos destes espaços são propriedade pública, o que permite a criação de parcerias de diferente natureza (público-privadas, pri-vadas-privadas), mas onde a Administração tem de garantir a salvaguarda dos interesses colectivos da cidade/área metropolitana. As segundas estão associadas à requalificação e animação das áreas residenciais, actuan-do sobre o espaço público, o favorecimento da reabilitação do edificado, a facilidade da mobilidade, a instalação dos equipamentos colectivos e do comércio de proximidade.

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Margarida Pereira Licenciatura em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutoramen-to no ramo de Geografia e Planeamento Regional, especialidade de Planeamento e Gestão do Território, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Professora Auxiliar com Nomeação Definitiva no Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Lisboa, Portugal).ma.pereira @fcsh.unl.pt

Fernando Nunes da Silva Licenciado em Engenharia Civil, ramo de Urbanização e Transportes, e Doutoramento no ra-mos da Engenharia Civil, pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. Professor Catedrático, no domínio da área científica de Urbanismo e Transportes, no Depar-tamento de Engenharia Civil e Arquitectura do Instituto Superior Técnico (Lisboa, Portugal).fnsilva @ist.utl.pt

Notas

(1) Decreto-Lei nº 208/82, de 26 de maio.

(2) Decreto-Lei nº 69/90, de 2 de março

(3) Ao abrigo da Lei nº 91/95, de 2 de setembro (estabelece o regime excepcional para a recon-versão urbanística das Áreas Urbanas de Génese Ilegal).

Como se pode constatar ao longo deste texto, o diagnóstico dos problemas da AML está feito, o enquadramento conceptual pa-ra o seu ordenamento territorial explicitado e as principais propostas de intervenção pa-ra resolver as suas insuficiências estruturais claramente formuladas e constam já de ins-trumentos de gestão territorial aprovados pelo governo central. A questão está por isso na ausência de mecanismos eficazes pa-ra as levar à prática, o que encontra fortes resistências, tanto ao nível da administração central do Estado, onde as estratégias e po-

líticas sectoriais se têm sempre sobreposto a uma visão de conjunto, como dos municípios, sempre ciosos de conservarem os seus pode-res territoriais e temendo qualquer raciona-lidade supra-municipal que lhes retire auto-nomia no licenciamento da urbanização. Só quando estes dois bloqueios políticos forem ultrapassados será possível passar dos pla-nos à sua concretização, criando desse modo as condições para que o processo de trans-formação do território da AML seja efecti-vamente conduzido pelos poderes públicos segundo objectivos de interesse colectivo.

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(4) No actual quadro legal português, compete à administração local a classificação e quali-ficação do solo (em rural e urbano), através dos planos municipais de ordenamento do território, de natureza regulamentar, com a definição de usos e parâmetros urbanísticos. O processo de urbanização está reservado aos particulares detentores da propriedade que, respeitando aquelas orientações, promovem o loteamento, a infra-estruturação e a cons-trução da respectiva propriedade.

(5) Isto é, esta entidade tem adoptado uma atitude de indefinição sobre as decisões estruturan-tes para a Área Metropolitana de Lisboa, não dizendo não nem sim, já que o seu processo de constituição compromete uma visão metropolitana e não permite mais do que visões municipais, poucas vezes convergentes.

(6) Lei nº 44/91, de 2 de agosto.

(7) Lei nº 10/2003, de 13 de maio.

(8) Resolução do Conselho de Ministros nº 68/2002, de 8 de abril.

(9) Lei nº48/98, de 11 de setembro.

(10) Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de setembro.

(11) Artº 59 -2º do Decreto-Lei nº 380/99, de 22 de setembro.

(12) Despacho nº 12772/2006 (2ª série) do MAOTDR, de 24 de maio.

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Operações urbanas – nova formade incorporação imobiliária: o caso

das Operações Urbanas ConsorciadasFaria Lima e Água Espraiada*

Laura Cristina Ribeiro PessoaLucia Maria Machado Bógus

ResumoO surgimento de localizações para novas ativi-dades econômicas, os empreendimentos imo-biliários daí decorrentes, as políticas públicas associadas aos novos empreendimentos ou a ausência delas têm levado ao aumento da den-sidade e da ocupação de determinadas áreas da cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que a evasão de algumas atividades econômicas e de população ocasionaram o abandono e a de-gradação de outras áreas. O presente artigo tem como objetivo analisar as transformações no espaço urbano e o processo de valorização imobiliária ocorridos na porção sudoeste da cidade de São Paulo, a partir dos anos 1990, como conseqüência da implementa-ção das Operações Urbanas Faria Lima e Água Espraiada, identificando os impactos físico-es-paciais e socioeconômicos dessas transforma-ções para outras áreas da cidade e, principal-mente, para as áreas do entorno.

Palavras-chave: valorização imobiliária; in-tervenção urbana; projetos urbanos; legislação; operação urbana consorciada; São Paulo.

Abstract The emergence of areas for the development of new economic activities, the real estate enterprises that derive from them, the public policies associated with the new enterprises or their absence, have caused the intensification of the density and occupation of certain areas in the city of São Paulo, while the evasion of some economic activities and population have led to the abandonment and degradation of other regions. The aim of this paper is to analyze the urban space transformations and the increase in value of real estate that have been occurring in the Southwestern part of the city of São Paulo since 1990, as consequences of the implementation of the Faria Lima and Água Espraiada Urban Operations, and to identify physical and socioeconomic impacts on the city.

Keywords: increased real estate value; urban intervention; urban projects; legislation; shared urban operation; São Paulo.

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As cidades contemporâneas têm passa-do por constantes mudanças em sua dinâmi-ca socioespacial, fato que tem promovido a valorização e ampliado o debate das ques-tões urbanas. Como forma de adaptação à essas mudanças, as discussões e as ações do urbanismo e do planejamento urbano vêm tomando um novo rumo, ganhando relevân-cia crescente e refletindo, como cita Vassalo Rosa (1999)

[...] uma cultura de fluxo constante e

global da informação, avessa à unifor-

mização e ao estilo; tornando as suas

criações muito mais livres e criativas,

abertas a novas formas.

A remodelação urbana tem sido de grande importância para os urbanistas, desafiando-os a fornecer subsídios para a criação de po-líticas públicas mais efetivas e estimulando o permanente processo de reconstrução e criação de novas bases espaciais de produção através da substituição, renovação e ruptu-ra das estruturas preexistentes. Além disso, observa-se a presença, cada vez maior, de grandes projetos urbanos e de parcerias pú-blico-privadas na promoção da recuperação urbanística e ambiental de áreas importan-tes da cidade.

Esses projetos têm como proposta a requalificação urbana por meio de um pro-cesso social e político de intervenção ter-ritorial, num conjunto de ações integradas seguindo a lógica de desenvolvimento urba-no e visando essencialmente a qualidade de vida da população, com a criação de novas centralidades.

Nesse contexto, coloca-se o foco princi-pal deste texto, que é a análise das mudan-ças urbanas e dos impactos socioespaciais

observados em uma área da cidade de São Paulo, em decorrência da implantação das Operações Urbanas Consorciadas Faria Lima e Água Espraiada. O poder público, em uma ação conjunta com a iniciativa privada, ins-tituiu, em 1995, a Lei 11.732 e, em 2001, a Lei 13.260, com o objetivo de reestrutu-rar um setor da região sudoeste da cidade e criar um espaço renovado com mais qualida-de de vida, através do ordenamento territo-rial e da regulamentação e controle da ação do mercado imobiliário.

Como indica a Cons tituição Federal (art. 182 e 183) e o Es tatuto da Cidade, a legislação urbanística – enquanto instrumen-to de política urbana – deve sempre buscar a cidadania através da garantia da função social da cidade e do bem-estar de seus ha-bitantes. Mas, ao contrário dessa orienta-ção, os projetos de renovação urbana estão, via de regra, se voltando, cada vez mais, aos interesses privados do mercado imobiliário, fundiário e financeiro, atuando, primordial-mente, em benefício das elites dominantes e do capital, levando à perda do valor de uso da terra, à expulsão da população de baixa renda para a periferia e à consolidação de enclaves sociais.

Como citado anteriormente, a visão de construção, transformação e renovação da cidade ou parte dela por meio de projetos urbanos tem sido bastante aceita e utilizada em todo o mundo. Dentro desse contexto, podemos identificar vários exemplos concre-tos já implantados que, baseados na realida-de, nas características, nas necessidades de cada local e no público a atingir, definiram objetivos, estratégias e feições diferentes, de forma a torná-los mais adequados e mais viáveis de serem executados. Alguns exem-plos podem ser citados: as Docklands de

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Londres e o bairro de Marais em Paris que tinham como objetivo a criação de novos distritos de negócios através da renovação urbana das áreas degradadas; as olimpía-das de Barcelona, a feira de Baltimore e a Expo’98 de Lisboa que, aproveitando a pro-moção de eventos internacionais ou espetá-culos, conseguiram promover a renovação de uma área da cidade.

No caso de São Paulo, cabe mencionar as operações urbanas consorciadas, que, de acordo com o Estatuto da Cidade (Lei Fede-ral n. 10.257, de 10 de julho de 2001, Art. 32, §1°), são

[...] um conjunto de intervenções e me-

didas coordenadas pelo Poder Público

Municipal, com a participação dos pro-

prietários, moradores, usuários per-

manentes e investidores privados, com

o objetivo de alcançar em uma área

transformações urbanísticas estrutu-

rais, melhorias sociais e a valorização

ambiental.

Constituem um instrumento legal de reno-vação de espaços predeterminados da cidade e/ou ampliação de infra-estruturas urbanas por meio de intervenções, tendo em vista a intensificação do uso e ocupação do solo ur-bano e, para tal, lança mão da parceria entre o poder público e a iniciativa privada. Por-tanto, para lograr êxito na consecução dos objetivos, é preciso definir uma estratégia capaz de despertar o interesse da iniciativa privada, para que esta venha, efetivamente, a custear a implantação de obras, melhorias ou equipamentos de interesse público.

Cada operação urbana deve ser regula-mentada por lei específica aprovada pelo po-der legislativo. Através da lei, serão definidos

o perímetro, os objetivos, o programa de in-tervenções e os limites de flexibilidade em relação aos parâmetros estabelecidos pela Lei de Zoneamento, ou seja, como será fei-ta a concessão de incentivos urbanísticos e a correspondente obtenção de contrapartidas. O valor arrecadado nessa outorga onerosa só pode ser usado em melhorias urbanas na própria região.

No cenário da cidade de São Paulo, existem cinco operações urbanas consor-ciadas aprovadas e em fase de implantação: Centro (1991), Água Branca (1995), Faria Lima (1995), Água Espraiada (2001) e Rio Verde-Jacu-Pêssego (2004).

O texto trata das Operações Urbanas Faria Lima e Água Espraiada, que foram as que se destacaram pela grande contribuição no processo de valorização imobiliária que ocorreu na porção sudoeste da cidade de São Paulo a partir dos anos 1990.

A Operação Urbana Consorciada Fa-ria Lima foi aprovada pela Lei n. 11.732, de 1995, visando, primordialmente, ao prolongamento da Avenida Faria Lima, com a implantação de infra-estrutura e desa-propriações necessárias. As intervenções previstas viriam para aliviar a saturação da rede viária da região sudoeste do municí-pio, identificada como uma área nobre da cidade, o que trouxe alterações profundas nessa porção da cidade de São Paulo, não somente na área em si como também em seu entorno imediato.

O perímetro dessa Operação Urbana abrange 450 hectares entre a Avenida Fa-ria Lima e a Marginal Pinheiros, que foi di-vidido em quatro subperímetros: Pinheiros, Faria Lima, Hélio Pelegrino e Olimpíadas. Em 2004, na revisão da lei 11.732/1995, foi regulamentado o Certificado de Potencial

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Adicional de Construção (Cepac). Foi então determinado o estoque de Cepac para ca-da perímetro da Operação Urbana, ou seja, qual o potencial que cada região tinha para o adicional de construção, estipulando-se, a partir daí, um valor mínimo por Cepac e uma equivalência em m2 de terreno e m2 adicional para determinados usos.

O Cepac é um título mobiliário rastrea-do pelo mercado imobiliário, atrelado a uma única operação urbana e também aos proje-tos previstos nela, podendo ser negociado livremente na Bolsa de Valores. De acordo com a lei da Operação Urbana Faria Lima (11.769/2004), a definição do valor míni-mo do Cepac e a sua gestão é competência da Empresa Municipal de Urbanização – Emurb. Esses títulos deverão ser alienados em leilão público, na forma determinada pela Emurb ou utilizados para o pagamento de projetos, desapropriações, gerenciamen-to e obras previstas no Programa de Inves-timentos da operação urbana. A emissão de Cepac’s é controlada pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Segundo João d’Ávila, sócio e diretor técnico da Empresa Amaral d’Ávila – Engenharia de Avaliações

[...] em relação ao modelo anterior

de financiamento das obras públicas e

às fórmulas anteriores de determina-

ção do potencial de valorização do so-

lo e das contrapartidas que deveriam

ser devolvidas à administração pública

(mais valias), a instituição do Cepac é

extremamente positiva, considerando

ainda que foi o que possibilitou a real

implantação da operação urbana e tem

sido responsável pelo sucesso dela.

Acrescentou, ainda, que

além da presença da Emurb e da CVM

na emissão e regulação dos Cepac’s,

também há a fiscalização do Banco do

Brasil e da Caixa Econômica Federal, o

que garante o rigor dos processos de

definição e arrecadação das contraparti-

das e a sua correta utilização por parte

da administração municipal.

Também na perspectiva de Paulo Sandroni,

[...] a criação dos Cepac’s foi um suces-

so e é exatamente o que proporciona

o êxito das operações urbanas – ga-

rantem a obtenção das contrapartidas

de forma justa e integral, permitindo

a arrecadação antecipada dos recursos

necessários para a execução das obras

públicas previstas na lei. Assegura,

principalmente, o controle eficiente da

utilização dos recursos obtidos pela ad-

ministração pública através das opera-

ções urbanas.

E acrescenta ainda que

as operações urbanas são importan-

tes instrumentos de financiamento de

obras públicas, devido à possibilidade

que oferecem ao poder público de apro-

priar parte das mais valias geradas pe-

los investimentos privados.

O “sucesso” da Operação Urbana Fa-ria Lima é mais uma vez evidenciado por Montandon e Souza (2007), quando afirma que ela

[...] contabilizou o maior fluxo de recur-

sos dentre todas as operações urbanas

instituídas em São Paulo – entre 1995

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e 2004 foram obtidos cerca de R$300

milhões provenientes de contrapartida

financeira, em função da concessão de

potencial adicional de construção. Em

relação ao investimento privado, houve

ampla adesão de novos empreendimen-

tos, notavelmente os de alto padrão e

não residenciais.

A Operação Urbana Consorciada Água Espraiada foi aprovada pela Lei 13.260 de 2001, com um programa de intervenções, segundo a própria lei, que visava

[...] a complementação do sistema

viá rio e de transportes, priorizando

o transporte coletivo, a drenagem, a

oferta de espaços livres de uso público

com tratamento paisagístico e o provi-mento de Habitações de Interesse Social para a população moradora em favelas. (grifo nosso)

Para tal, previa, fundamentalmente, a com-plementação da Avenida Jornalista Roberto Marinho (antiga Água Espraiada) até a Ro-dovia dos Imigrantes, passando pela Mar-ginal Pinheiros; implantação de viadutos de acesso e de um complexo viário, com pontes, interligando a Avenida Jornalista Roberto Marinho com as marginais do Rio Pinheiros e implantação das vias locais margeando a Avenida Água Espraiada.

As intervenções previstas, seguindo uma ordem de prioridades, serão executadas pa-ralelamente à venda de Cepac’s, ou seja, eles serão lançados e negociados de forma casada com a execução das obras previstas na lei. Os recursos auferidos com a venda do primei-ro lote de Cepac’s colocado no mercado fo-ram investidos na implantação do complexo

viário que possibilitou a ligação da Avenida Jornalista Roberto Marinho com a Margi-nal Pinheiros, incluindo nessa intervenção a construção de uma ponte estaiada, que, con-forme afirmação do governador José Serra, “trata-se de uma obra faustosa” que irá be-neficiar o transporte público individual.

A Operação Urbana Água Espraiada abrange um perímetro de 1.426 ha lindeira ao córrego de mesmo nome, na zona sul de São Paulo. Ela foi instituída, como citado em parágrafo anterior, com o principal objetivo de complementar a Avenida Jornalista Ro-berto Marinho, ou seja, objetivamente, es-sa operação urbana vem dar continuidade à obra de abertura da Avenida Água Espraiada iniciada no governo do prefeito Paulo Ma-luf em 1995. Nessa época, havia no local 68 núcleos de favelas lineares com uma popula-ção superior a 50 mil pessoas e também na região; entre a Marginal Pinheiros e a Aveni-da Luís Carlos Berrini, ficava a favela Jardim Edith, formada aproximadamente por três mil famílias, num terreno de 68 mil metros quadrados (Fix, 2001). Para a abertura da avenida, foi necessária a remoção das popu-lações das favelas existentes, o que ocorreu de acordo com os interesses do mercado imobiliário em nome de uma “revitalização do espaço urbano”. As decisões sobre essa obra foram impostas pelo governo:

[...] um projeto propondo o aumento

da faixa da avenida e o seu prolonga-

mento até a Rodovia dos Imigrantes,

com quatro pistas expressas e duas

locais. Como não se tratava de uma

operação urbana, não havia o com-

prometimento de manter a população

desapropriada no mesmo perímetro

e, nesse caso, o governo optou por

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Tabela 1 – Incremento populacional por anéis – distritos englobadospelas OUC Faria Lima e Água Espraiada

Denominação Anel 1991-1995 1996-2000Jardim Europa interior -78034 -24155Pinheiros interior -78034 -24155Brooklin intermediário -99074 -3956Campo Belo intermediário -99074 -3956Ibirapuera intermediário -99074 -3956Itaim intermediário -99074 -3956Moema intermediário -99074 -3956Vila Mascote intermediário -99074 -3956Vila Olímpia intermediário -99074 -3956Morumbi exterior -82395 109204Real Parque exterior -82395 109204Vila Santa Catarina exterior -82395 109204Chácara Santo Antonio exterior 504916 531446

Fonte: IBGE.

Figuras 1 e 2 – Incremento populacional por anéis – Município de São Paulo

Fonte: IBGE.

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construir conjuntos habitacionais na

Cidade Tiradentes, Zona Leste do mu-

nicípio. (Fix, 2001)

Entretanto, as discussões sobre a im-plantação da Operação Urbana Água Es-praiada já existiam, só foram “congeladas” por uns tempos, com o governo alegando que a construção da avenida iria funcionar como uma “alavanca” para a aprovação dessa operação urbana e que a abertura da avenida seria mais fácil de ser aprovada, por não implicar mudança de zoneamento e por facilitar a execução das desapropriações e a remoção, criando o famoso “fato consuma-do” (ibid., p. 96). Na verdade, o prefeito, atendendo a seus próprios interesses e aos interesses de uma classe dominante, decidiu pela construção da avenida a qualquer custo.

Como em muitas outras situações, es-sa ação revelou um processo perverso de ocupa ção do espaço, criando “centralidades de ou para elite”, expulsando parte da popu-lação de baixa renda para a periferia, onde o preço do solo e das moradias é menor e o custo de vida mais acessível, mas, em con-trapartida, onde há carência de infra-estru-tura, de equipamentos sociais e de emprego, contribuindo para intensificar a demanda por transporte público coletivo.

Analisando os índices populacionais re-lativos à década de 1990 (Figuras 1 e 2), é possível perceber que o anel periférico do município de São Paulo recebeu o maior in-cremento de população, ou seja, um aumen-to de mais de 1.000.000 habitantes, o que equivale a mais de 130% do total do cres-cimento da população do município. Entre os anos de 1991 e 1995, esse incremento chegou a representar mais de 260% do to-tal do município e, entre os anos de 1996

e 2000, só houve incremento positivo nos anéis exterior e periférico: 18,3% e 89,4%, respectivamente.

Dos 13 distritos englobados pelas Ope-rações Urbanas Consorciadas Faria Lima e Água Espraiada (Tabela 1), dois localizam-se no anel interior, sete no intermediário e três no exterior. Na década de 1990, o incremen-to populacional desses anéis foi negativo, sendo que o anel intermediário foi mais sig-nificativo nessa queda de população, sendo também o que detém o território com maior influência das operações urbanas. Essas duas regiões, apesar de, comprovadamente, esta-rem passando por um processo de verticali-zação, ou seja, de incremento na densidade construtiva, vêm apresentando redução na população residente, indicando, provavel-mente, que as operações urbanas contribu-íram para a mudança no perfil da população residente e para a mudanda de uso.

Sandroni e Biderman (2005), anali-sando a distribuição de renda na metrópole, citam que há um círculo de riqueza aproxi-madamente no centro da mancha urbana da RMSP (um pouco deslocado para Oeste) e que a Operação Urbana Consorciada Faria Lima fica no centro desse círculo de riqueza. Podemos acrescentar, ainda, que também a Operação Urbana Consorciada Água Espraia-da está inserida nesse círculo. Ou seja, nessas regiões concentram-se as classes mais altas e é justamente a área que detém a maior ofer-ta de infra-estrutura e de empregos.

No caso dos lançamentos imobiliários, o comportamento foi um pouco diferente para o mesmo período, ou seja, de 1991 a 2000. Entre os anos de 1991 e 1995, os lançamentos imobiliários ocorreram de forma mais acentuada nos anéis interme-diário e exterior (Figura 3), sendo que os

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Figuras 3 e 4 – Número de lançamentos imobiliários por anéisMunicípio de São Paulo

Fonte: Embraesp.

Figura 5 – Lançamentos imobiliários antes e depois de 1995

Fonte: Embraesp.

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dois são responsáveis por quase 70% dos lançamentos nesses cinco anos, enquanto no anel periférico se localizaram 14% desses lançamentos.

Entre os anos de 1996 e 2000 (Figura 4), o maior número de lançamentos aconte-ceu no anel intermediário seguido pelo anel exterior, mas houve um pequeno aumen-to de lançamentos no anel periférico. Isso mostra que grande parte população de alta renda, que é o foco de interesse do merca-do imobiliário, continuou se instalando na parte mais central do município, onde, de uma forma mais geral, ocorreram os im-pactos das Operações Urbanas Faria Lima e Água Espraiada. Os poucos lançamentos ve-rificados no anel periférico foram os condo-mínios horizontais e verticais em forma de empreendimentos fechados voltados para a classe média/alta, considerados por Caldeira (2000) “enclaves sociais”, que vêm contri-buindo de forma significativa para a segre-gação e para a exclusão, fomentando as de-sigualdades socioespaciais.

É possível, portanto, identificar uma continuidade no processo de periferização no município paulista. As taxas de cresci-mento e de incremento populacionais indi-cam os anéis mais externos como destino da população, em contrapartida, também há indicação de maior concentração da renda nos anéis interior, central e intermediário, ou seja, os moradores da periferia, que são a maioria, ainda apresentam níveis de ren-da mais baixos que os residentes nas áreas centrais. As favelas continuam se instalan-do, preferencialmente, na região periférica do município e os lançamentos imobiliários residenciais, que são direcionados à classe mais alta, têm como alvo as zonas mais va-lorizadas da cidade.

Observa-se, também, que antes mesmo de a lei da operação urbana ser aprovada pelo legislativo, ou seja, quando ainda es-tava em fase de discussão, a região já pas-sava a ser alvo de especulação imobiliária, processo que se acentuou com a aprovação. Ainda é possível verificar que o processo de valorização imobiliária decorrente das inter-venções urbanas extrapolou os limites pre-vistos na operação consorciada, o que indica a necessidade de um olhar atento também para o entorno imediato da região, sem per-der de vista que essa parcela da cidade é so-mente parte de um todo e que essas ações devem ser vistas como parte de uma estra-tégia maior de desenvolvimento da cidade. Segundo Sandroni e Biderman (2005),

[...] na região da Faria Lima houve

cerca de 15% de valorização no preço

médio do metro quadrado e antigas re-

sidências unifamiliares de classe média

deram lugar a edifícios de apartamento

de classe média alta e também de edifí-

cios comerciais de alto padrão, levando

à elitização.

Criou-se uma nova centralidade que con-centra dinheiro e poder e reforça a segre-gação socioespacial, exercendo, sem dúvida, um impacto na reestruturação espacial da cidade.

A compreensão da dinâmica com que se processam essas grandes intervenções urba-nas e das modificações estruturais geradas por elas é fundamental para a proposição de políticas públicas compatíveis com um de-senvolvimento sustentável da cidade. Além disso, o processo especulativo do mercado imobiliário, indiscutivelmente, é determinan-te na ocupação do espaço, respondendo de

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forma significativa pela expansão do tecido urbano. Isso indica que o estudo da atuação dos agentes imobiliários também é impor-tante para a compreensão dessas interven-ções e, principalmente, para a definição das ações do poder público.

Focalizando a área das duas operações urbanas e seu entorno imediato, o que de-

finiria uma área de abrangência (Figura 5), constata-se que, dos lançamentos imobi-liários ocorridos em todo o município en-tre 1985 e 2004, o Morumbi aparece em primeiro lugar, com 741 imóveis, seguido por Moema (355), Butantã (292), Jardins (208), Campo Belo (162), Pinheiros (151), Itaim (149) e Brooklin (137). No cenário

Tabela 2 – Lançamentos imobiliários

Áreas Antes % Depois % TotalChácara Flora 1 8.3 11 91.7 12Alto da Boa Vista 3 11.5 23 88.5 26Santo Amaro 9 15.8 48 84.2 57Planalto Paulista 1 20.0 4 80.0 5Ibirapuera 5 29.4 12 70.6 17Butantã 92 31.5 200 68.5 292Jardim Europa 7 33.3 14 66.7 21Aeroporto 3 33.3 6 66.7 9Alto de Pinheiros 19 38.0 31 62.0 50Chácara Santo Antonio 21 43.8 27 56.3 48Água Funda 4 44.4 5 55.6 9Pinheiros 69 45.7 82 54.3 151Vila Olímpia 46 46.0 54 54.0 100Morumbi 342 46.2 399 53.8 741Vila Nova Conceição 44 46.8 50 53.2 94Itaim 70 47.0 79 53.0 149Vila Madalena 51 47.2 57 52.8 108Brooklin 67 48.9 70 51.1 137Vila Santa Catarina 21 50.0 21 50.0 42Sumaré 12 52.2 11 47.8 23Jabaquara 77 53.1 68 46.9 145Real Parque 52 53.1 46 46.9 98Campo Belo 87 53.7 75 46.3 162Vila Mascote 51 54.3 43 45.7 94Jardins 116 55.8 92 44.2 208Moema 219 61.7 136 38.3 355Jardim Marajoara 72 63.7 41 36.3 113Total 1.561 47.8 1.705 52.2 3.266

Fonte: Embraesp.

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Zonas de valor TT unidadesMorumbi 32.062Butantã 19.560Moema 16.945Jardins 9.499Brooklin 8.647Pinheiros 8.134Jabaquara 7.775Jardim Marajoara 7.388Itaim 6.260Vila Olímpia 6.251

Tabela 3 – Áreas com maior número de lançamentos imobiliários entre 1985 e 2004,por total de imóveis e por total de unidades lançadas

Zonas de valor TT imóveisMorumbi 741Moema 355Butantã 292Jardins 208Campo Belo 162Pinheiros 151Itaim 149Jabaquara 145Brooklin 137Jardim Marajoara 113

Fonte: Embraesp.

geral da cidade, dos dez primeiros distri-tos no ranking de lançamentos, somente três estão fora da área de abrangência das operações urbanas: Tatuapé, Vila Mariana e Santana, apontando para a existência de es-peculação imobiliária na área.

Fazendo uma comparação entre todos os lançamentos ocorridos nos dez primeiros anos – 1985 a 1994, ou seja, antes da opera-ção urbana Faria Lima (1.562 lançamentos), com os ocorridos entre 1995 e 2004 (1.706 lançamentos), observa-se que esse número praticamente se manteve (Tabela 2). Quando são analisadas as áreas separadamente, a diferença é observada de forma acentuada em alguns pontos da região, como, Chácara Flora, Alto da Boa Vista, Santo Amaro, Ibi-rapuera e, principalmente, Butantã.

Do total de unidades lançadas na re-gião de estudo, mais uma vez, o Morumbi aparece em primeiro lugar, com mais de 32.000 unidades, seguido por Butantã, Moema, Jardins, Brooklin e Pinheiros (Ta-bela 3). Comparando o total de imóveis

com o total de unidades lançadas no perío-do estudado (Tabela 3), é possível perce-ber que o Morumbi, o Butantã, Moema e Jardins mantêm a mesma posição, ou seja, estão entre os quatro primeiros colocados. Já o Brooklin, o Jardim Marajoara e, mais acentuadamente a Vila Olímpia, mudam de posição, ou seja, em virtude do maior nú-mero médio de apartamentos por lança-mento, eles assumem um lugar à frente no ranking, evidenciando maior verticalização nessas áreas.

Deve ser destacado que os distritos do Morumbi e Butantã são, territorialmente, maiores que Moema, Jardins, Brooklin e Vi-la Olímpia, o que indica que, em relação os dois primeiros, esses quatro últimos tiveram maior densificação construtiva.

Uma análise separada das duas décadas, de 1985 a 1994 e de 1995 a 2004, tanto por empreendimento imobiliário como por unidades lançadas, mostra que o Morumbi, que esteve bastante à frente ao longo dos últimos 20 anos, perdeu posição, ou seja, na

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segunda década, proporcionalmente ao total da área, caíram os lançamentos, indicando uma mudança no interesse imobiliário, que se deslocou para o Jardim Europa, Jaba-quara, Jardim Marajoara, Moema e Jardins (Tabela 4).

Entre o total de unidades lançadas na região de estudo nos dez primeiros anos

(1985 a 1994) e as lançadas na década se-guinte (1995 e 2004), houve significativa queda (quase 20.000 unidades). Como o número de empreendimentos lançados foi maior, considera-se que de forma geral hou-ve uma redução na densidade habitacional na região. Diante da afirmação de que hou-ve aumento no preço da terra em função da

Tabela 4 – Lançamentos Imobiliários por total de unidades

Zonas de valor 1985 a 1994 % 1995 a

2004 % TT

Jardim Europa 167 34.6 316 65.4 483Jabaquara 2.876 37.0 4.899 63.0 7.775Vila Santa Catarina 741 37.0 1.261 63.0 2.002Água Funda 150 38.1 244 61.9 394Jardim Marajoara 2.840 38.4 4.548 61.6 7.388Aeroporto 356 42.2 488 57.8 844Sumaré 254 44.0 323 56.0 577Vila Madalena 1.080 45.2 1.307 54.8 2.387Moema 7.771 45.9 9.174 54.1 16.945Jardins 4.547 47.9 4.952 52.1 9.499Vila Nova Conceição 1.386 50.8 1.340 49.2 2.726Campo Belo 2.241 53.7 1.934 46.3 4.175Vila Mascote 2.203 54.8 1.820 45.2 4.023Alto de Pinheiros 822 57.7 603 42.3 1.425Pinheiros 4.733 58.2 3.401 41.8 8.134Itaim 3.682 58.8 2.578 41.2 6.260Real Parque 1.434 59.8 963 40.2 2.397Morumbi 19.211 59.9 12.851 40.1 32.062Santo Amaro 2.144 64.2 1.198 35.8 3.342Alto da Boa Vista 148 64.9 80 35.1 228Brooklin 5.672 65.6 2.975 34.4 8.647Butantã 12.938 66.1 6.622 33.9 19.560Ibirapuera 446 71.6 177 28.4 623Chácara Santo Antonio 1.933 71.9 755 28.1 2.688Chácara Flora 1.631 72.1 632 27.9 2.263Vila Olímpia 4.633 74.1 1.618 25.9 6.251Planalto Paulista 78 81.3 18 18.8 96Total 86.117 56.2 67.077 43.8 153.194

Fonte: Embraesp.

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renovação do espaço e, conseqüentemente, do maior interesse imobiliário, é possível concluir que houve aumento da renda da população que passou a residir nesse es-paço, o que também é indicativo de menor densidade. Outra indicação foi a mudança no uso, ou seja, houve um aumento do uso não-domiciliar, o que automaticamente leva a uma diminuição da densidade em função da redução da população residente.

Dessa forma conclui-se que o cresci-mento da verticalização (caso do Brooklin, Vila Olímpia, por exemplo) e da renda da população residente associado à queda na densidade habitacional é indicação de que houve um processo peculiar de "gentrifica-ção" na região:

[...] uma área em franca valorização e

residencial de classe média deu lugar a

uma ocupação de residências de classe

média alta; grosso modo, na região da

Operação Urbana Faria Lima houve um

aumento da renda média da faixa de

R$2,3 a 3,6 mil em 1991 para a faixa

acima de R$3,7 mil em 2000. (Sandro-

ni e Biderman, 2005).

Verifica-se também a intensificação de comércio e serviços em detrimento do uso residencial, que Sandroni chama de “gen-trificação dos negócios”, ou seja, uma troca de casas e sobrados por edifícios verticais luxuo sos, que foram ocupados, na sua maio-ria, por pequenos negócios, levando à mu-dança do uso e, conseqüentemente, à queda da densidade habitacional.

Cabe assinalar, ainda, que a verticali-zação em algumas áreas da região ocorreu ao longo das duas décadas e não somente após as intervenções urbanas, o que poderia

indicar que esse processo já vinha aconte-cendo em função de uma visão prévia do mercado imobiliário e dos estudos e indica-ções de mudanças na legislação local. Essa expectativa de valorização futura traz um aumento da demanda das áreas, o que faz com que o valor da terra e dos terrenos se eleve.

Concluindo, há evidências claras de valorização imobiliária de uma área já valorizada, onde houve a substituição da classe média pela classe média alta. As operações urbanas se propunham a “al-cançar, em uma área, transformações ur-banísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental", estando sempre esse interesse voltado para a coletivida-de, mas, ao contrário, o que se observa é a criação de centros que concentram ri-queza e expulsam parte da população re-sidente para uma condição de vida pior, é o favorecimento da concentração de inves-timentos públicos e privados nas áreas de interesse do mercado imobiliário, nas áre-as que já são bem infra-estruturadas. Mas essa infra-estrutura, com a ação da espe-culação (fomentada pela operação urbana) fica sobrecarregada e, conseqüentemente, a região passa a sofrer pressão por novos investimentos.

Efetivamente, as operações urbanas são instrumentos para obtenção de recursos fi-nanceiros para investimento público, através da promoção e do incentivo à verticalização. Esse instrumento oferece a possibilidade ao poder público de se apropriar de parte da mais-valia gerada pelos investimentos pri-vados, que se beneficiam dos adicionais de construção permitidos pela legislação e da valorização do solo nas regiões que são obje-tos de operação urbana. Essa, como observa

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Laura Cristina Ribeiro PessoaGraduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Taubaté. Licenciatura em Edu-cação Artística pelas Faculdades Integradas Tereza D’Ávila. Mestrado e doutorado em Estru-turas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil)[email protected]

Lucia Maria Machado BógusBacharel/Licenciada e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Arquitetura na área de Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo. Vice-Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil)[email protected]

Nota

* Esse texto é resultado da pesquisa de pós-doutorado intitulada “Reestruturação Urbana e Desi-gualdades Socioespaciais: município de São Paulo“, desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanas/Observatório das Metrópoles São Paulo do Programa de Estudos de Pós-Gra-duação em Ciências Sociais e do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a coordenação da Profa. Dra. Lucia Bógus.

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Claudino Ferreira, é uma visão bastante eco-nomicista, muito centrada numa concepção do solo urbano como mercadoria ilimitada-

mente “rentabilizável” numa ótica financeira da exploração da capacidade do solo para albergar construção, via verticalização.

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Recebido em maio/2008Aprovado em jul/2008

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Os “vários Paranás”e o planejamento do estado

Rosa MouraSandra Teresinha da Silva

Maria Isabel de Oliveira BarionNelson Ari Cardoso

Diócles Libardi

ResumoO trabalho sintetiza os resultados da análise da dinâmica social, econômica e institucional do Paraná, que mostram que a natureza da inser-ção desse estado na divisão social do trabalho vem se dando heterogeneamente, tornando di-ferentemente integradas as partes de seu terri-tório. Discute a absorção, pela estrutura de pla-nejamento do desenvolvimento do estado, dos resultados dessas análises e das linhas de ação propostas em função dessa heterogeneidade e da diversidade presente. Conclui que o conheci-mento não se transforma necessariamente em ações objetivas.

Palavras-chave: desenvolvimento regional; planejamento do desenvolvimento; divisão so-cial do trabalho; espacialidades do Paraná; es-pacialidades relevantes; espacialidades social-mente críticas.

AbstractTThis paper summarizes the results of the analysis of the social, economic and institutional dynamics of Paraná, which show that the the insertion of this State in the social division of labor has been occurring in a heterogeneous form, integrating parts of its territory in different levels. It discusses how the State’s development planning structure absorbs the outcomes of this analysis and the lines of action proposed based upon the present heterogeneity and diversity. It concludes that knowledge does not necessarily turns into objective actions.

Keywords: regional development; planning of development; social division of labor; Paraná’s spatialities; relevant spatialities; critical spatialities.

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Introdução

O presente trabalho sintetiza uma série de estudos que caracterizam a dinâmica social, econômica e institucional do Paraná, Região Sul do Brasil, nas últimas décadas (Ipardes, 2005; 2006a, 2006b)1 e discute a incor-poração de seus resultados nas políticas de âmbito regional formuladas pelo governo do estado. A pesquisa na qual se pauta foi desencadeada para subsidiar o processo de planejamento urbano e regional do Paraná, proposto pela Política Estadual de Desenvol-vimento Urbano e Regional – PDU (Paraná, 2003).

Essa política foi formulada imediata-mente após a posse do governador Roberto Requião (gestão 2003-2007), que sucedeu os oito anos findos da gestão do governador Jaime Lerner, gestão essa marcada por uma atuação fiel aos pressupostos do modelo neo-liberal, de estado mínimo, flexibilização das políticas públicas, particularmente as sociais. Em lugar de políticas urbanas e políticas de desenvolvimento regional, o estado vinha experimentando uma estratégia de atração de capitais e corporações com base em con-cessão de incentivos fiscais, alimentando a guerra fiscal entre estados brasileiros e o acirramento da competição entre municípios para lograrem novos investimentos.

Assim, o novo governo, cujo perfil ideo-lógico se opõe ao viés neoliberal, convocou a imediata criação de uma equipe compos-ta por servidores públicos da área técnica, complementada por profissionais de renome da academia, de escritórios de planejamento e por representantes das Associações de Mu-nicípios, para que fosse estruturado um pla-no estratégico voltado ao desenvolvimento

urbano e regional do estado. Em intenso trabalho conjunto e num curto período, esse grupo elaborou a referida política a tempo de orientar as práticas do governo que se instalava.

Cabe salientar que a preocupação com uma política regional e urbana também ocorreu no âmbito do governo federal, mas não somente. No início dos anos 2000, en-quanto a política nacional também assumia a retórica do estado mínimo, ampliava-se significativamente a dívida pública, as desi-gualdades sociais e regionais do país eram nítidas, a imprensa explicitava os conflitos da sociedade e do Estado, e os movimentos sociais se colocavam ativos. A esse contex-to soma-se a intensidade do crescimento e expansão das cidades. O reconhecimento das particularidades regionais do território motivou a busca da sociedade por institucio-nalizar mecanismos de gestão pública, incor-porando a participação em suas formulações e controle social da execução.

Conseqüentemente, é desse período a criação do Ministério da Integração Nacional e do Ministério das Cidades; da aprovação do Estatuto da Cidade, após 13 anos de tramitação no Congresso Nacional; da ins-tauração do processo das Conferências das Cidades; da formulação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (Brasil, 2004); da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (Brasil, 2005); e das discussões em torno de uma Política Nacional de Or-denamento do Território (Brasil, 2006), no âmbito Federal. No âmbito estadual houve o fortalecimento da Secretaria Estadual do Desenvolvimento Urbano, que coordenou a formulação da PDU e assumiu a condução do processo de Conferências das Cidades no Estado, dando maior transparência ao

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critério de inversão dos recursos públicos, que passou a ser pautado no Índice de De-senvolvimento Humano Municipal (PNUD, 2003), priorizando municípios com os índi-ces mais baixos.

Além dessas medidas governamentais, iniciativas da sociedade civil tornaram-se re-correntes. É o caso do Fórum Futuro 10, organizado pela Rede Paranaense de Comu-nicação, de uma série de eventos regionais organizados pela Federação das Indústrias do Estado do Paraná, além da emergência de outros planos de desenvolvimento regio-nais, muitos deles de iniciativa das associa-ções de municípios paranaenses. É o caso também da contínua proposição legislativa de criação de “regiões metropolitanas” nos mais variados centros urbanos do estado. Ou seja, o governo do estado oficializa es-sa discussão e aponta para uma perspecti-va mais abrangente e participativa de ação governamental, inserindo-se num processo construído pela sociedade, que se organiza em torno dessas idéias.

A Política de Desenvolvimento Urbano e Regional para o Estado do Paraná consubs-tanciou-se em três grandes linhas estratégi-cas: desenvolvimento regional, desenvolvi-mento urbano e desenvolvimento institucio-nal. A Política de Desenvolvimento Regional proposta, e sobre a qual se volta a pesquisa considerada neste trabalho, desdobra-se em três programas específicos: de estrutura-ção integrada das grandes aglomerações e suas respectivas regiões funcionais; de pro-moção acelerada de regiões deprimidas; e de atuação dirigida a regiões especiais. Foi para subsidiar seu detalhamento e orientar sua implementação que o Instituto Parana-ense de Desenvolvimento Econômico e So-cial (Ipardes) foi convocado a desenvolver

pesquisa que mostrasse as transformações recentes e a organização regional do territó-rio paranaense.

Desenvolvimento e resultados da pesquisa

Aspectos metodológico-operacionais e primeiros resultados

A pesquisa desenvolvida para subsidiar a Po-lítica de Desenvolvimento Regional do Esta-do do Paraná e que resultou na identificação dos “Vários Paranás”2 teve como objetivos: (i) identificar, a partir da análise de um amplo conjunto de indicadores, as distintas espacialidades existentes no Paraná; (ii) di-mensionar suas potencialidades e limitações ao desenvolvimento regional, como contri-buição à formulação de políticas de desen-volvimento; e (iii) compreender as trans-formações territoriais em curso no estado, ante o estreitamento da internacionalização da economia e de suas relações socioterrito-riais e institucionais. Para compreender as mudanças na organização territorial do Pa-raná e identificar as diversas espacialidades3 configuradas, a pesquisa tomou como fio condutor a divisão social do trabalho, cate-goria capaz de mediar o entendimento entre o processo de desenvolvimento em geral e o desenvolvimento específico de uma econo-mia e sociedade particulares.

A pesquisa partiu da hipótese de que a natureza da inserção do Paraná na divi-são social do trabalho vem se dando hete-rogeneamente, tornando diferentemente

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integradas as partes de seu território. Para confirmar tal hipótese, foram organizadas duas matrizes básicas de análise. A primei-ra, contemplando, sempre que possível, um período entre os anos 1970 e 2005 (em séries atingindo a informação mais recen-te disponível), relacionou informações so-bre valor adicionado fiscal (VAF), emprego formal, ocupação e produção agropecuária, infra-estrutura científico-tecnológica, infra-estrutura viária e principais centralidades urbanas. Uma superposição das informações temáticas espacializadas, demarcando a con-junção dos indicadores de melhor participa-ção e melhor desempenho econômico-social no conjunto, concentração de ativos institu-cionais e a evolução na posição central na rede de cidades evidenciou os municípios e “espaços relevantes”.4

Tendo como corte a participação do município no total do Estado igual e/ou su-perior a 0,25%,5 essa matriz mostrou o grau de concentração presente na geração da riqueza do VAF estadual (Figura 1). O VAF dos Serviços, em 2003, apresentou maior concentração, com apenas 24 muni-

cípios com participação superior a 0,25%; entre eles, somente Curitiba e Paranaguá respondem por 63,17% do total do esta-do (desconsiderando os serviços públicos, que acentuam ainda mais esse perfil). Vem seguido do VAF da Indústria, para o mes-mo ano, no qual Araucária, Curitiba e São José dos Pinhais somam 50% do total. As empresas entre as 300 maiores do estado estão presentes num conjunto comparativa-mente menos concentrado: 68 municípios (Tabela 1). No entanto, enquanto em 36 deles há apenas uma empresa, em Curitiba encontram-se 69. A distribuição no terri-tório dos municípios com as maiores par-ticipações ressalta as aglomerações, acom-panhando e sedimentando a economia do estado.

Entre os indicadores contemplados para análise dos ativos institucionais, fo-ram selecionados os referentes à presença da infra-estrutura técnico-científica (Tabela 2). Os mesmos confirmaram a concentração espacial, dando ainda maior conteúdo à re-levância de determinadas espacialidades (ver Figura 1).

Tabela 1 – Indicadores e classes de relevância econômica – Municípios do Paraná

IndicadorMun. que somam 50% e mais do

total do indicador

Mun. com participação

>=0,25 a <1,00%

Mun. com participação >=1,00%

Total mun. relevantes

(Part. >+0,25%)Faturamento empresas 2002 7 31 15 46Número de empresas 2002 4 56 12 68Emprego formal 2003 6 37 15 52VAF total 2003 5 33 15 48VAF indústria 2003 3 29 14 43VAF serviços 2003 2 16 8 24

Fontes: SEFA, RAIS.Nota: Informações trabalhadas pelo Ipardes

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Em cada espacialidade, foram identifi-cados um ou mais municípios, considerados centrais à rede de cidades do estado, inter-conectados entre si com apoio do sistema viário principal. Tal sistema apresenta as melhores condições do Paraná em termos de trafegabilidade e garante os fluxos da ativi-dade econômica, servindo de estrutura física para sustentação da dinâmica desse conjunto privilegiado de municípios e espacialidades.

A conjunção da relevância econômica, da densidade técnico-científica e do papel de lugar central na rede de cidades, apoia-do na presença do sistema rodoviário como suporte físico para as interconexões, define o espaço de concentração e densificação, apropriando-se aqui do conceito de Santos e Silveira (2001). Esse espaço de concen-tração e densificação reúne as espacialidades polarizadas pelas principais centralidades do Paraná, assumindo diferentes graus de rele-vância (ver Figura 1).

Em situação extrema, 282 municípios não registraram indicadores classificados en-tre os mais expressivos, sendo considerados como de baixíssima relevância. Contudo, é importante ressaltar que, mesmo nessa con-dição, eles ou parte deles estão interligados de alguma forma à dinâmica econômica das

espacialidades delimitadas a partir dos mu-nicípios que obtiveram melhor desempenho nos indicadores econômicos e institucionais trabalhados neste estudo.

A segunda matriz, contemplando um conjunto de indicadores sociais disponibiliza-dos para o ano 2000, relacionou dados so-bre componentes demográficos, saúde, edu-cação e renda, saneamento e moradia, cuja sobreposição evidenciou os municípios “so-cialmente críticos”. Os valores relativos de cada indicador (taxas, índices e proporções ao total do município) foram ordenados e salientadas as 39 piores posições, ou seja, os 39 municípios (correspondendo a 10% do total de municípios do Paraná, em 2004) com as proporções mais elevadas de pessoas em condições críticas quanto à educação e renda, menores índices de envelhecimento, coeficientes de mortalidade infantil mais ele-vados, maior proporção de déficit de mora-dias ou domicílios em situação de carência ou deficiência quanto a serviços fundamentais, como saneamento. Foi somado o número de vezes que o município se posicionou entre esses 10% com os piores indicadores em relação ao estado e o somatório resultan-te apontou a escala daqueles em condições mais críticas no aspecto social.

Tabela 2 – Indicadores da distribuição da infra-estrutura técnico-científica – municípios do Paraná – 2005

Infra-estruturaMun. com

mais de uma infra-estrutura

Mun. com apenas uma infra-estrutura

Mun. seminfra-estrutura

Total mun.com alguma infra-estrutura

Parque tecnológico 0 5 394 5Incubadora 3 10 386 13Instituições e fundações de pesquisa 5 31 363 36Instituição de ensino superior 31 47 321 78

Fonte: SETI.Nota: Informações trabalhadas pelo Ipardes.

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Mapeados os indicadores proporcionais, formaram-se duas porções contínuas, uma na parte central do estado e outra no Vale do Ribeira, avizinhando-se a espacialidades economicamente relevantes (ver Figura 1). A faixa alongada na porção central do estado se avizinha aos municípios que formam duas principais espacialidades economicamen-te relevantes, do Norte Central e do Oeste paranaense; a porção do Vale do Ribeira faz parte do território institucional da Região Metropolitana de Curitiba, enfatizando a convivência dos extremos em proximidade.

Essas áreas, relegadas inicialmente pe-las restrições do solo à produção agrícola, funcionam como reservas para a expansão física das atividades das espacialidades re-levantes, sendo incorporadas aos poucos, com apoio de tecnologia e infra-estrutura. Somada à limitação física, a falta de repre-sentação política também se coloca como obstáculo à inserção dessas áreas na divisão social do trabalho.

Enquanto os indicadores de proporções de carências sociais revelaram áreas nas quais as situações críticas se dão abrangen-temente nos municípios e em porções contí-nuas do território, informações de volumes de pobres e de domicílios carentes e defi-cientes, embora com baixa proporção, mos-traram grande concentração desses volumes em poucos municípios. Correspondem àque-les economicamente relevantes ou centrais, e àqueles que mais crescem e se urbanizam no Paraná, como confirmam informações dos Censos de 1991 e 2000. Tais consta-tações reforçam a compreensão de que, nas espacialidades econômicas relevantes, a produção da riqueza se faz gerando de-sigualdades, excluindo municípios, bairros e segmentos da população.

Pode-se concluir que as espacialidades economicamente relevantes são, concomi-tantemente, detentoras do poder, do co-nhecimento e geradoras da riqueza, porém, concentradoras de carências, avizinhadas por extensões desprovidas e dependentes, representativas do fato estrutural próprio da dinâmica seletiva da expansão do capital. Por conseguinte, os primeiros resultados da pesquisa apontam para um território diver-so, concentrado e desigual, compondo espa-cialidades com certo grau de similaridade, complementaridade e relativa integração em seu interior, cuja integração na divisão social do trabalho resulta da história e sustenta a dinâmica do território como um todo.

As distintas espacialidades respondem por diferentes papéis na divisão social do trabalho, tanto externa quanto internamente ao estado. São notórios os espaços de man-do e os espaços de obediência, conforme no-ção de Milton Santos (1999), assim como as relações sinérgicas a partir dos principais centros urbanos e das porções fronteiriças. Essa configuração espacial heterogênea não é específica do Paraná, mas decorrente da natureza do modo de produção vigente: concentrador, seletivo e excludente. Para seu enfrentamento, a ação pública torna-se indispensável no sentido de, ao menos, mi-nimizar os efeitos sociais e territoriais das chamadas forças do mercado.

Certamente, os processos que remete-ram a essa configuração diversa também se ajustam, salvo especificidades, a configura-ções similares em outros estados brasileiros ou países, como também se colocaram pre-sentes entre os que deram origem aos “agru-pamentos territoriais de alta performance”6

identificados no estado de São Paulo (Silva Neto, 2006). A dinâmica engendrada por

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esse modelo insere o Paraná na divisão so-cial do trabalho especialmente a partir de seu potencial em recursos naturais. Ao lon-go do tempo, o estado consolidou seu papel centrado na exploração desses recursos e na agroindustrialização e, mais recentemente, na incorporação de segmentos modernos e internacionalizados da indústria.

Os “vários Paranás”

Espacialmente, as situações de maior ho-mogeneidade percorrem um amplo espec-tro, abarcando desde grandes conjuntos de municípios, conjuntos mais dispersos e indi-víduos (referindo-se a municípios), configu-rando distintas espacialidades no estado (ver Figura 1).

Entre os “espaços relevantes”, destaca-se uma espacialidade de máxima relevância, concentração e densidade, formada pela aglomeração metropolitana de Curitiba, pelo entorno de Ponta Grossa e por Paranaguá, denominada 1º espaço relevante. Essa espa-cialidade participa de forma mais integrada, nacional e internacionalmente, na divisão social do trabalho, a partir do desempenho de um conjunto de atividades econômicas diversificadas, concentrando os principais constitutivos da sociedade paranaense, no que se refere ao poder econômico, político e ideológico.

Duas espacialidades com elevada rele-vância são identificadas no Norte Central e Oeste do Estado. No Norte Central, as aglo-merações de Londrina e Maringá polarizam o 2º espaço relevante que, historicamente, sustenta uma matriz produtiva diversificada, que se assemelha à do 1º espaço, mantendo, contudo, uma grande distância nos volumes

de geração de riquezas, ativos institucionais e na diversidade de opções produtivas, de comércio e de serviços. Outra distinção com relação àquele espaço é que as atividades agropecuárias ainda mantêm participação significativa no total da sua produção. Nes-sa espacialidade, ao mesmo tempo em que se constata uma unidade no desempenho de sua função na divisão social do trabalho, distinguem-se relações que irradiam de uma condição de bipolaridade, impondo sub-re-cortes espaciais a partir de Londrina, num vetor para o Norte Pioneiro, e de Maringá, num vetor para o Noroeste.

A porção Oeste é considerada como o 3º espaço relevante, tendo Cascavel como principal pólo, desenvolvendo um vetor de dinamismo em direção a Toledo e Marechal Cândido Rondon. Em grau de importância, essa espacialidade guarda menor distancia-mento com o 2º espaço do que este para com o 1º espaço relevante, diferenciando-se nitidamente de ambos. Sua articulação à divisão social do trabalho se dá a partir de um número menor de atividades, ligadas, fundamentalmente, à produção agroindus-trial, assim como aos serviços. Sua posição fronteiriça, cuja centralidade se manifesta em Foz do Iguaçu, assegura-lhe o desem-penho de funções importantes nas relações internacionais e no comércio, elevando seu peso na geração de riquezas e estreitando vínculos do Paraná com os países do Merco-sul. Agrega-se o turismo, pela presença do Parque Nacional do Iguaçu, onde se encon-tram as Cataratas do Iguaçu, dos municípios lindeiros ao Lago de Itaipu e pelo comércio de fronteira.

Quatro recortes foram apontados co-mo espacialidades de média relevância. Um deles é a espacialidade especializada do

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Centro-Oriental, com nítidos vínculos nacio-nais e internacionais em função da ativida-de papeleira, composto por poucos municí-pios, porém em número crescente, dada a necessidade de expansão do uso da terra, mantendo presente a função do Paraná no desempenho de atividades que requerem a utilização de recursos naturais. A forte es-pecialização e a natureza da atividade, com baixa capacidade de geração de emprego, renda e consumo, portanto, de indução de atividades de comércio e serviços, torna essa espacialidade economicamente relevante cir-cundada e até infiltrada por extensas áreas socialmente críticas. Seus vínculos externos resultam, assim, em relações verticalizadas, sem engendrar sinergias regionais.

Na porção Noroeste do estado, Umua-rama, Paranavaí, Cianorte e outros muni-cípios do entorno desses se destacam com média relevância, porém exercendo papel central no desempenho de funções mais complexas e modernas em uma região que mantém base agropecuária. Nessas centrali-dades, começam a se consolidar atividades possivelmente irradiadas do 2º espaço, se-ja pelos vínculos históricos do caminho da ocupação, seja pela própria expansão das atividades, num movimento do capital a partir do Norte Central, todavia num está-gio relativamente mais atrasado. Apontam para a possibilidade de estarem constituin-do articulações na própria região, sem per-derem, ainda, a condição de expulsores de população, dando indícios de que as ativida-des desenvolvidas não conseguem absorver a força de trabalho existente, muito embo-ra tenha apresentado taxas de crescimento anual do emprego formal, particularmente do emprego industrial, bem acima da média estadual.

Outra espacialidade de média relevân-cia é a porção Sudoeste, articulando municí-pios que historicamente funcionaram como portas de entrada dos vetores de atividades oriundas dos estados do Sul. Insere-se na di-visão social do trabalho pela entrada da for-ça colonizadora do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, mantendo a predominância da produção e transformação agropecuária. Esses municípios tentam ampliar sua inte-gração nacional e internacional pela inova-ção e diferenciação de produtos e atividades do Setor Primário (vinhos, embutidos etc.), em função de seus reduzidos capitais. Pou-cas novas indústrias surgem em busca de alternativas para inserção econômica nessa espacialidade, colocando-se como tentativas locais de diversificação, porém sem manifes-tar, ainda, condições de aglutinar e otimizar excedentes mais expressivos, sofrendo as barreiras impostas pela própria estrutura produtiva.

Guarapuava (estendendo-se a Irati) e Campo Mourão constituem pontos economi-camente de média relevância, centrados em porções do território que não manifestam condições similares. Funcionam como re-ceptáculos da produção do entorno, o que, pela natureza, não permite impulsionar uma estrutura econômica e social horizontaliza-da. Em Guarapuava e imediações, a estru-tura da terra em grandes propriedades, a presença de atividades com baixo potencial gerador de emprego – basicamente a soja e, mais ao sul, o extrativismo – e incapazes de desencadear outras atividades, além do bai-xo potencial para o uso agrícola, contribuem para reduzir o dinamismo regional. Os pou-cos excedentes que permanecem na região centram-se em Guarapuava, que se consolida como base de apoio e prestação de serviços,

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favorecida, também, pela localização privi-legiada num dos mais importantes corre-dores viários do estado, a BR 277. Campo Mourão tem como explicação da verticalida-de das relações o fato de sediar a Coamo Agroindustrial Cooperativa – considerada a maior cooperativa agroindustrial da América Latina –, colocando-se sob comando dessa importante unidade empresarial. Extrai sig-nificativo excedente de seu entorno, o que lhe assegura expressão econômica e política e lhe permite instrumentalizar sua estrutura de comércio e de serviços, estreitando seus vínculos externos, porém sem grandes des-dobramentos regionais.

Espacialidades com mínima relevância são identificadas nos municípios de fronteira com o estado de Santa Catarina, que usu-fruem da sinergia das relações fronteiriças que se manifestam nas pequenas aglomera-ções ou ocupações contínuas entre centros urbanos dos dois estados. Reproduzem, em parte, a história de ocupação do Centro-Sul paranaense, pautada no extrativismo; repre-sentam um vetor de entrada das atividades econômicas catarinenses; e recebem os efei-tos da dinâmica econômica metropolitana, nesse caso facilitados pela infra-estrutura viária. Espacialidades de mínima relevância são identificadas também no Norte Pioneiro, que conta uma história de apogeu e deca-dência ligados à economia cafeeira, que le-gou a possibilidade de consolidação de pou-cos, mas importantes ativos institucionais. Essa porção do Paraná ainda estabelece for-tes vínculos com o estado de São Paulo.

O outro conjunto de municípios rela-tivamente homogêneos corresponde aos “espaços socialmente críticos”. Pequena parte desses municípios encontra-se na fai-xa demarcada como Vale do Ribeira, em sua

porção paranaense, que se estende em di-reção ao aglomerado metropolitano, histó-rica no que concerne a isolamento, pobreza e dependência. Os demais municípios, com elevada incidência entre os mais críticos, fazem parte da mancha contínua na porção central do estado, que se alonga no sentido Norte Pioneiro/Centro-Sul, aproximando-se e contornando a porção sul de Cascavel, reunindo ainda um grande número de muni-cípios com no mínimo uma ocorrência entre os 10% mais críticos do conjunto de indica-dores analisados. Outras manchas contínuas menores margeiam as fronteiras com Santa Catarina e com São Paulo, porém, não tão problemáticas quanto as anteriores.

A porção central do estado apresenta fatores socioculturais importantes, como a presença de reservas indígenas, comuni-dades quilombolas, assentamentos rurais, além de uma estrutura fundiária predomi-nantemente de grandes estabelecimentos rurais, entre outros que, certamente, pos-suem papel contributivo na realidade atual. As restrições no uso do solo, bem como o modelo econômico extrativista (madeira/erva mate) que remonta aos primórdios da exploração capitalista nessa região, são fato-res determinantes. Acresce-se a isso o fato de a maioria desses municípios encontrar-se ilhada – ou seja, contornada – pelo princi-pal sistema viá rio do estado, sendo pouco recortada internamente por outras vias de transporte.

Observa-se que os municípios com as maiores incidências entre os mais críticos apresentam elevadas proporções de ocupa-ção formal na agropecuária e no setor públi-co. Em sua grande maioria, são municípios rurais, localizados em áreas com menor po-tencial para uso agrícola da terra e de baixo

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crescimento populacional. Alerta-se para o fato de que a leitura das proporções de pri-vação e carência é insuficiente para mapear a situação de precariedade no estado, já que a localização dos maiores volumes de pessoas pobres, desatendidas e dos domicílios caren-tes ocorre em municípios dinâmicos, porém sem capacidade de oferecer ocupação em ní-veis compatíveis à população residente.

Ao se considerarem as relações eco-nômicas, sociais e políticas, verifica-se que o Paraná se insere na dinâmica nacional e internacional, fundamentalmente, por meio das três principais espacialidades, 1º, o 2º e o 3º espaços, articulados pelo sistema rodo-viário principal. Ressalta-se o elevado desní-vel entre o 1º espaço e os dois últimos, com nítida concentração no primeiro. As demais espacialidades com algum grau de relevân-cia se inserem desempenhando papéis mais especializados, enquanto as espacialidades socialmente críticas permanecem relativa-mente à margem da dinâmica econômica e política do estado. Nestas, há profundas dificuldades na geração de emprego e ren-da, além de sérias restrições na oferta de ocupações e na atenção às necessidades so-ciais da população. Dessa forma, é o grau de inserção ou exclusão na divisão social do trabalho que desenha os Vários Paranás.

Como síntese geral, a análise ressal-tou um Paraná complexo e heterogêneo, com áreas economicamente relevantes e so-cialmente críticas, concentrado e desigual. Não poderia ser diferente. Essa é a mesma situa ção encontrada em nível nacional e in-ternacional, muito embora possa apresentar graus diferenciados, segundo a história do país e de cada uma de suas regiões, e a ca-pacidade de estruturar e implementar res-postas regionais às determinações exógenas

e situações impostas pela realidade. Decor-re da lógica do mercado – e sua busca de rentabilidade – que, no caso em estudo, se-lecionou porções do território paranaense; privilegiou a exploração das condições físi-co-ambientais; em alguns casos, apropriou-se de atividades existentes e, em outros, introduziu atividades ainda inexistentes; viabilizou diferentes níveis de incorporação da população; acumulou, concentrou, aden-sou e criou uma desigualdade espacialmente visível em termos regionais, mas também interna a qualquer escala. Sob tal lógica, o Paraná se incorporou à divisão nacional e internacional do trabalho de modo grada-tivo e diverso, envolvendo desigualmente a totalidade de seu território e de sua popu-lação. Como contraponto à mera lógica da rentabilidade econômica e ao enfrentamen-to das desigualdades, o trabalho salientou, com grande ênfase, a importância da ação pública.

Subsídios à política de desenvolvimento regional

Essa etapa da pesquisa apontou a necessida-de de realização de uma seqüência de estu-dos, buscando aprofundar, detalhar e expli-citar nexos e lógicas nos processos identifica-dos em sua expressão espacial.7 Além disso, os resultados divulgados permitiram apontar alguns elementos fundamentais, consubstan-ciados em um conjunto de linhas de ação, pa-ra constituir uma agenda de desenvolvimen-to regional para o Paraná (Ipardes, 2006b). Tais linhas serão inócuas, caso o estado não assuma a centralidade necessária à condução de um processo de planejamento para o de-senvolvimento regional.

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Pensar uma política de desenvolvi-mento que contemple toda a diversidade e heterogeneidade do Paraná não é tarefa fácil e exige ações de contratendência, de resis-tência aos desequilíbrios e injustiças, assim como de construção de experiências coleti-vas integradoras e includentes. Em primeiro lugar, a diversidade não deve ser tida como problema, mas como maior possibilidade de alavancar o desenvolvimento do estado, portanto, é fundamental investir no enorme potencial de variedade (intra-regional, seto-rial, urbana, cultural, ocupacional, etc.) que o Paraná possui. Isso exige que se contrapo-nha à tendência dominante de organização da dinâmica econômica e populacional pelo mercado, para que não se acentuem as desi-gualdades em todos os aspectos.

Nesse contexto, o estado se apresenta como agente fundamental de desenvolvi-mento e com autoridade para influir nessa trajetória, compensar as desigualdades e equilibrar diferentes pesos econômicos, fi-nanceiros e políticos. Com isso, arrefecer a concentração, criar novas possibilidades, estimular potencialidades, corrigir rumos, dinamizar espaços e setores econômicos, enfim, incluir territórios e população, por meio de uma política de desenvolvimento in-tegradora e socialmente justa.

Tendo em vista a multiplicidade de fa-tores interrelacionados, que afetam a so-ciedade na sua totalidade, é fundamental que uma política de desenvolvimento seja uma iniciativa do estado, em qualquer ní-vel, sem se restringir às ações cotidianas da atuação pública, mais pertinentes a um plano operacional. Nela se explicita a idéia de transformação da realidade vigente, que pressupõe que o estado, como instância de poder político, organize sua ação na busca

da mudança desejada para que assuma a sua coordenação. Assim, é primordial que se institua, na esfera governamental, uma instância articuladora da política, com as demais instâncias setoriais das diferentes esferas governamentais e instituições públi-cas e privadas que atuam em cada espaciali-dade paranaense, e com os diversos planos de desenvolvimento regional já existentes e em execução.

Destaca-se também a importância do estado para estreitar vínculos inter-regio-nais, aprofundar estudos das relações fron-teiriças, além do fortalecimento da relação do Paraná, e das suas regiões em particular, com a matriz produtiva nacional e dos paí-ses do Mercosul. Nesse sentido, a articula-ção dos diferentes planos regionais e das políticas setoriais sobressai como condição de fortalecimento de uma Política Estadual de Desenvolvimento Regional e da estrutura socioeconômica paranaense.

A articulação e o acompanhamento de-vem acontecer diante da premissa de que uma política de desenvolvimento não é so-mente uma coletânea de problemas levanta-dos ou um rol de metas e ações registradas em documento específico, mas uma constru-ção permanente. Construção essa que exige um processo de elaboração contínuo da Polí-tica de Desenvolvimento Regional, particular-mente em sua dimensão territorial, de modo que ela possa não somente contribuir com essa construção, mas, principalmente, cons-tituir-se como seu elemento fundamental.

Planejar e intervir na busca do de-senvolvimento regional implica, substan-cialmente, entender a história das regiões, suas relações, seus arranjos particulares; compreender as formas como o capitalismo as organiza e desorganiza; e considerar as

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dinâmicas socioeconômicas, o que torna

complexo seu entendimento e a definição

de seus limites. Por isso, as espacialidades

identificadas são apenas uma manifestação

no território; um meio de compreender o

todo, não um produto. Por conseguinte,

é fundamental analisar cada uma delas, na

busca de compreender processos que distin-

gam as que requerem políticas diferenciadas

para o seu desenvolvimento e o desenvol-

vimento do estado, e trazer para o diálogo

sobre o presente e o futuro da região toda

a diversidade de organizações da socieda-

de, que possam pactuar uma participação

contínua e legítima nesse processo. Enfim,

é imprescindível adentrar os Vários Para-

nás, para obter os elementos que instruam

a construção de uma agenda de desenvolvi-

mento regional que faça emergir um Paraná

diverso, porém sem privar parcelas do seu

território e de sua população dos frutos do

desenvolvimento e do acesso aos direitos de

cidadania.Considerando essas premissas, foi su-

marizado o conjunto de linhas de ação para as dimensões econômica, social e institucio-nal, com vistas a combater as desigualdades regionais e explorar o potencial da diversi-dade paranaense. Essas linhas estão agrupa-das nas seguintes estratégias:

(a) Desconcentração, competitividade e mobilidade: desconcentração econômica e populacional, pelo reforço às atividades pre-sentes nas espacialidades de mínima, média e elevada relevância econômica; moderni-zação do sistema de circulação de pessoas, mercadorias e informações, com vistas à equiparação das condições de competiti-vidade do estado com outros mercados e

à consolidação do direito à mobilidade e à informação; e fortalecimento de uma rede ampliada de centros e de municípios perifé-ricos nas aglomerações urbanas.

(b) Inclusão social e econômica: fortaleci-mento das economias locais nas espacialida-des socialmente críticas; e distribuição dos frutos do desenvolvimento por meio de po-líticas sociais abrangentes e territorialmente diferenciadas, com vistas à inclusão social e à eqüidade.

(c) Implementação e diversificação dos ativos técnico-científicos: ênfase em investi-mentos em atividades de pesquisa avançada em biotecnologia e tecnologias produtivas alternativas, apropriando-se das possibilida-des oferecidas pelo potencial agrícola, tec-nológico e científico do estado.

(d) Desenvolvimento e gestão ambiental: conservação ambiental com vistas à prote-ção da biodiversidade e ao uso sustentável dos recursos naturais para a produção de energia.

(e) Gestão do desenvolvimento: considera premissa fundamental da Política Estadual de Desenvolvimento Regional que a mesma seja assumida pela sociedade paranaense, entendida como o conjunto de segmentos produtivos, políticos e sociais, com seus di-versos interesses, conflitos, reivindicações, prioridades e recursos. Cabe ao estado a coordenação geral dessa política, instituin-do, na esfera governamental, uma instância de acompanhamento da implementação que articule as políticas setoriais das diferentes esferas de governo e demais instituições públicas e privadas que atuam no território estadual.

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A estruturação do planejamento urbano e regional no Paraná

A pesquisa “Os Vários Paranás” (Ipardes, 2005; 2006a) e suas proposições progra-máticas em linhas de ação (Ipardes, 2006b), pelo nível de sistematização que atingiram, ofereceram ao governo do estado os funda-mentos para a definição da pretendida Polí-tica Estadual de Desenvolvimento Regional. Tendo como origem a PDU, tais estudos se constituíram em subsídios para a definição dos Planos Regionais de Desenvolvimento Estratégico (Paraná, 2006).

Apoiado no eixo central do Plano de Governo 2003-2006, “desenvolvimento sustentável e inclusão social”, e consideran-do as principais conclusões obtidas pelo Os Vários Paranás, o PRDE definiu como

[...] principal alinhamento estratégico

a INCLUSÃO social, seja a inclusão ci-

dadã dos paranaenses excluídos social,

econômica e culturalmente do desen-

volvimento estadual, seja a inclusão

territorial de integração ao espaço

paranaense de suas partes marginais,

buscando-se forte COESÃO INTERNA

no ordenamento do território. (Paraná,

2006, p. 52 – grifos no original)

Sobre as espacialidades identificadas em Os Vários Paranás, o PRDE definiu dois níveis de atuação: o macrorregional, com quatro recortes, e o regional, com a defi-nição de dez regiões específicas. A partir dessas definições, foram idealizadas linhas estratégicas, programas e subprogramas para as áreas econômica, social, territorial-

ambiental e institucional para as quatro ma-crorregiões. Internamente a estas, foram consideradas as diferenças regionais, pela proposição diferenciada de programas e subprogramas às dez regiões.

A análise da proposta de regionalização do PRDE e das espacialidades identificadas em Os Vários Paranás revela, contudo, al-gumas diferenças, muito embora o primeiro tenha usado como base o segundo. A dife-rença principal está na definição do PRDE da região denominada Centro Expandido, na qual foram agrupadas as espacialidades socialmente críticas (região central do esta-do) e as porções Noroeste e Norte Pioneiro (Figura 2). Há que se lembrar que essas úl-timas foram classificadas, respectivamente, como espacialidades de média e mínima re-levância em Os Vários Paranás.

Destaca-se que, no conjunto, o PRDE não atingiu o nível de definição dos instru-mentos de intervenção e das ações para a sua implementação. Entretanto, tendo sido concluída a primeira etapa dos trabalhos no final de 2006, último ano da gestão gover-namental iniciada em 2003, e tendo passado o processo eleitoral com o governador do estado sendo reeleito, a Sedu desencadeou uma reestruturação interna, redefinindo sua ação no âmbito do governo, preparando-se institucionalmente para a implementação das definições contidas naqueles Planos (De-creto nº 350, de 21/3/2007).

Com a reestruturação, foram criadas quatro coordenadorias técnicas – de Progra-ma de Desenvolvimento Urbano; de Relações Institucionais e Qualificação; dos Planos de Desenvolvimento Regionais; e das Regiões Metropolitanas, Microrregiões e Conselhos das Cidades. Paralelamente, ocorreu tam-bém a institucionalização das coordenações

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das Regiões Metropolitanas de Maringá e de Londrina8 e das microrregiões de Cascavel, Foz do Iguaçu e Litoral, todas elas vinculadas à Sedu. Em síntese, a Sedu reorganizou-se institucionalmente no nível estadual e regio-nal, neste último, estando presente nas prin-cipais espacialidades relevantes, e deu início aos trabalhos para a gestão governamental 2007-2010.

Nesse ínterim, a Secretaria de Estado do Planejamento, sob a gestão de um grupo político diferente da primeira gestão gover-namental, resgatou sua função de coordena-dora e de articuladora das ações do governo do estado e lançou a Política de Desenvolvi-mento do Estado (PDE) em 24 de agosto de 2007. Essa política também tomou por base os resultados de Os Vários Paranás, apre-sentando como meta

[...] estimular o desenvolvimento eco-

nômico e social do Estado, priorizando

as regiões com menores índices de de-

senvolvimento humano, respeitando os

limites fiscais das contas públicas. (Pa-

raná, s/d, p. 3)

Para implementação da PDE, o estado foi dividido em seis regiões de planejamen-to, que resultaram de uma combinação dos recortes definidos em Os Vários Paranás e PRDE (ver Figura 2). Essa combinação fica evidente ao se observar a extensão da re-gião denominada Centro Expandido, que não englobou a porção Noroeste, como em Os Vários Paranás, mas incorporou a porção Norte Pioneiro, como no PRDE. No que se refere às demais espacialidades, não há di-ferenças entre a PDE e o PRDE. Há que se mencionar que participaram da definição da regionalização da PDE, o Ipardes e a Sedu.

Com o objetivo de reduzir as disparida-des regionais, priorizando o atendimento à população mais pobre e excluída, foram de-finidas ações diferenciadas, priorizando os investimentos nas regiões menos dinâmicas do estado. Assim sendo, a PDE prevê que a região Centro Expandido, considerada uma espacialidade socialmente crítica onde se en-contram os menores índices de desenvolvi-mento, irá receber maior atenção do estado. A região terá o maior volume de recursos per capita e será beneficiada com o maior volume de ações de vários órgãos do estado. Para as outras regiões, foram definidos in-vestimentos que potencializam o dinamismo já existente e que incentivam o crescimento das regiões menos dinâmicas, a partir das relações interregionais. Além dessas, foram propostas ações transversais, comuns a to-das as regiões, principalmente nas áreas de infra-estrutura urbana, energia e logística de transporte, produção industrial e produ-ção agrícola.

O investimento total previsto é de R$18.154,10 milhões, envolvendo apor-tes de empresas estatais (R$11.055,29 milhões), recursos de vinculações constitu-cionais (R$2.368,33 milhões) e investimen-tos de secretarias de estado e vinculadas (R$4.730,48 milhões). Do investimento to-tal, mais da metade (55,3%) será destinado à infra-estrutura urbana, energia e logística de transporte; 18,9% para ciência e tec-nologia, educação, saúde e meio ambiente; 10,8% à produção agrícola; 10,4% à pro-dução industrial; e 4,6% para justiça, segu-rança e modernização do estado.

A distribuição regional dos recursos de-finidos para infra-estrutura urbana, energia e logística prevê que 32% sejam destinados à região Leste (1º espaço), 21% ao Centro

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Expandido, 8,6% para a região Norte (2º espaço), 6,1% para a Noroeste e 5% para a região Oeste (3º espaço). No Centro Expan-dido e na região Leste esses investimentos são responsáveis por mais de 70% do total dos investimentos regionais programados, enquanto que nas demais regiões esse per-centual varia entre 51% e 64%. Em todas elas, os maiores investimentos serão feitos em geração, transmissão e distribuição de energia e telecomunicação,9 com exceção da região Leste, em que a prioridade de inves-timento é na infra-estrutura portuária (por-tos de Paranaguá e Antonina).

Em relação aos demais investimentos, a escala de prioridades varia em cada re-gião, de acordo com suas características ou deficiências: no Centro Expandido apare-cem em seguida, embora com participação muito baixa, os investimentos em habita-ção para atendimento a famílias de baixa renda, em produção agrícola, em obras de abastecimento de água e tratamento de esgoto, investimentos na construção, am-pliação e adaptação de estabelecimentos de ensino; na região Leste, com percentuais bem mais equilibrados, vêm logo a seguir os investimentos em geração, transmissão e distribuição de energia, abastecimento e tratamento de esgoto, integração do trans-porte metropolitano, consórcios metro-politanos para resíduos sólidos; na região Noroeste, destacam-se investimentos na construção, ampliação e adaptação de es-tabelecimentos de ensino e habitação para famílias de baixa renda; na região Norte, vêm a seguir investimentos em obras de abastecimento de água e tratamento de esgoto e habitação para famílias de baixa renda; na região Oeste os investimentos na construção, ampliação e adaptação de

estabelecimentos de ensino, no turismo na região de Foz do Iguaçu, e em centros de detenção e penitenciá rias são os prioritaria-mente elencados; no Sudoeste, a escala de investimentos contempla a construção, am-pliação e adaptação de estabelecimentos de ensino, investimentos em produção agríco-la, abastecimento e tratamento de esgoto, construção de hospital e centro de saúde e aquisição de equipamentos.10

Indiscutivelmente, a PDE deu uma im-portante contribuição: assumiu a espacialida-de socialmente crítica Centro Expandido co-mo área prioritária de governo, para a qual propôs um conjunto de ações e definição or-çamentária envolvendo todos os órgãos do governo estadual. O objetivo principal foi a inclusão social e ampliação da presença do poder público, por meio da oferta de servi-ços sociais e de aporte técnico e financeiro para viabilizá-las economicamente.

Contudo, por mais que a PDE tenha proposto ações regionalizadas, verifica-se que ela se limitou a constituir um plano de definição orçamentária e distribuição re-gional dos investimentos estaduais, e de orientação ao Plano Plurianual (PPA) – que instrumentaliza a competência de planeja-mento disposta às três instâncias de gover-no pela Constituição Federal, com objetivos, diretrizes e metas definidas, introduzindo a regionalização orçamentária –, no caso do Paraná, também coordenado e acompanha-do pela SEPL. Nesse sentido, não pode ser considerado uma política desenvolvimento regional, não articula uma estratégia de de-senvolvimento regional para o Paraná, tam-pouco instaura o planejamento e a gestão do desenvolvimento do Estado.

Assim, a proposta de Os Vários Para-nás (Ipardes, 2006b) de construção e de

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fortalecimento de uma Política Estadual de Desenvolvimento Regional, apesar dos avanços obtidos até o momento, ainda não se concretizou. Talvez o PRDE tenha sido o programa estadual que mais se aproximou dessa proposição, ainda que se observem diferenças conceituais e epistemológicas en-tre o que se entende por Política de Desen-volvimento Regional em Os Vários Paranás e no PRDE. O simples e quase imperceptível uso dos termos Política de Desenvolvimento Regional, pelo primeiro, e Planos Regionais de Desenvolvimento, pelo segundo, é reve-lador dessas diferenças. Sutileza que advém da própria compreensão de desenvolvimento adotada nos trabalhos. Enquanto o primei-ro admite o desenvolvimento como processo multifacetado de intensa transformação es-trutural, resultando de variadas e comple-xas interações sociais, e que ativa recursos materiais, simbólicos e mobiliza sujeitos so-ciais e políticos buscando ampliar o campo de ação da coletividade, o segundo admite que o plano físico territorial é estruturador do desenvolvimento e que um rol de proje-tos regionais pode ser suficiente para sua materialização. Dessa forma, muito embora um trabalho tenha se constituído em subsí-dio para a elaboração do outro, as duas equi-pes técnicas partiram de arcabouços teóricos distintos e de proposições também distintas quanto ao processo de implementação da política.

Além disso, não se podem desprezar os inúmeros Planos de Desenvolvimento Re-gionais elaborados para praticamente todas as regiões do estado. O surgimento desses planos pode estar apontando que, na ausên-cia de uma efetiva Política Estadual de De-senvolvimento Regional, os municípios estão se organizando para propor estratégias pró-

prias de desenvolvimento, a partir das quais definem os caminhos para sua região, ela-boram pautas de reivindicação e conquistam maior capacidade de pressão política junto aos governos estadual e federal. Muitos pro-gramas federais, com recursos volumosos, estão voltados a estratégias regionais ou territoriais de desenvolvimento. Assim, as regiões que estão organizadas e articuladas por um plano de desenvolvimento têm con-dições de se credenciar e se inserir nesses programas.

A emergência desses planos não está desvinculada da ação do governo do estado, que prestou, para a elaboração de alguns, apoio técnico e financeiro. Tal iniciativa tem sido incentivada fortemente pela SEPL e pela Sedu. Nesse aspecto, destaca-se o Programa de Formação de Líderes Públicos que, desde 2003, vem promovendo encontros estaduais e regionais, envolvendo um número expres-sivo de prefeitos, vice-prefeitos e secretários municipais, dos quais o desenvolvimento re-gional é um de seus eixos estratégicos.11

No entanto, reiterando, não há uma política que oriente estrategicamente tais planos ou que articulem suas proposições no âmbito de uma construção voltada para o desenvolvimento regional do estado.

A própria proposição desmedida de criação de unidades regionais, ou “regiões metropolitanas”, algumas oriundas do pró-prio executivo estadual, também se volta a preencher a lacuna aberta pela ausência des-sa política. Decorrentes da disposição cons-titucional que faculta aos estados federados institucionalizar “regiões metropolitanas”, “aglomerações urbanas” e “microrregiões” para planejamento e gestão das funções públicas de interesse comum, que antes era uma prerrogativa da União, tais proposições

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vêm desprovidas de estratégias de desen-

volvimento que articulem as unidades entre

si e no conjunto do estado, apontando pa-

ra a ausência e urgência do planejamento e

de políticas de desenvolvimento urbano/re-

gional/territorial (Moura, Libardi e Barion,

2007).12

Encontros e desencontros entre resultados técnicos e práticas de governo

Para compreender o processo de formula-ção de uma Política de Desenvolvimento Re-gional no Paraná é necessária uma reflexão sobre o papel do Estado na contemporanei-dade. Como foi dito anteriormente, a idéia de construção de uma política de desenvol-vimento regional foi iniciada com um gover-no que se opunha direta e explicitamente às práticas neoliberais, particularmente às im-plementadas pelo governo do estado nas duas gestões governamentais precedentes.

Nessas duas gestões, de 1995 a 2002, acompanhando o mesmo movimento em ní-vel nacional e obedecendo às regras estabe-lecidas nesse nível, o governo do estado do Paraná aplicou as medidas de flexibilização, abertura ao capital internacional, privatiza-ção de serviços e órgãos públicos, criação de entes privados para a oferta de serviços públicos e outras preconizadas pelo Consen-so de Washington. Destaca-se que muitos políticos com esse perfil contaram com fi-nanciamentos do Banco Mundial e do Ban-co Interamericano de Desenvolvimento. Em decorrência, a função de planejamento foi fragilizada, restringindo-se a medidas que

privilegiaram a atração do capital pelo Esta-do, e o investimento público foi em grande parte aplicado em uma porção do território estadual (o 1º espaço), resultando no apro-fundamento da concentração econômica, populacional e institucional de um lado, e na concentração da pobreza e quase ausência do Estado, da função pública, de outro. Na verdade, a face pública do Estado foi subsu-mida pela face privada.

Na sociedade capitalista, o Estado é capitalista. As contradições inerentes à re-lação capital e trabalho estão refletidas no Estado, organizando-o, estruturando-o. Os conflitos sociais, a luta de classes, a busca pela hegemonia econômica e política estão presentes em cada ação do Estado (Figuei-redo, 2003). No âmbito da sociedade, é no processo eleitoral que a explicitação das contradições torna-se mais evidente. Pro-jetos de sociedade são defendidos nesse momento. Organizar o estado para implan-tar o projeto eleito não é tarefa fácil. Es-pecialmente quando se assume um estado fragilizado, que mesmo assim deve condu-zir os rumos do desenvolvimento, e se faz opção pela inclusão social e redução das desigualdades. Tem-se, com isso, mais que um problema de ordem operacional, o da capacidade do poder público na formulação e implementação de políticas de desenvolvi-mento. Capacidade que esbarra no fato de que esses não são pressupostos, premissas ou objetivos que dizem respeito à natureza do Estado capitalista, bem como da socieda-de capitalista ou do Estado capitalista. Não é por outro motivo que inexiste nação ca-pitalista em que a desigualdade, em algum nível, não esteja presente. A concentração, a heterogeneidade e a desigualdade são da natureza desse modo de produção.

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Se para a sociedade é no processo elei-toral que as contradições do conflito capi-tal e trabalho podem aparecer mais explici-tamente, no âmbito da gestão pública elas estão presentes cotidianamente. Os diversos segmentos sociais, interesses econômicos, representações políticas etc. estão repre-sentados no estado, seja na condução dos trabalhos, seja na forma como o aparelho do estado está estruturado, jurídica e ins-titucionalmente. Por isso, ressalta-se a im-portância da participação da sociedade na formulação, aprovação e implementação de políticas públicas.

Há que se mencionar, também, que os governos acompanham as composições e apoios políticos que participam do processo eleitoral. Nem sempre o conjunto dos parti-dos que compõem o mesmo processo eleito-ral, tendo à frente um único candidato, co-munga das mesmas idéias ou instrumentos (meios) para se atingir o mesmo objetivo.

Todo esse conjunto de situações este-ve presente no governo do estado do Pa-raná ao longo do período em que se ela-boraram os estudos, proposições e políticas anteriormente citadas. Elas são facilmente percebidas nas diferenças de proposições contidas em Os Vários Paranás e o PRDE e entre esses dois e a PDE. O mesmo pode ser dito em relação à condução da política de desenvolvimento do estado pela Sedu e pela SEPL.

Mas esse não é fato único do Paraná. Movimento semelhante vem acontecendo também no governo federal. O perfil con-testador às políticas neoliberais, também presente no governo Luiz Inácio Lula da Sil-va, no Brasil, reativou os ânimos da socieda-de quanto às possibilidades de planejamen-to e gestão do desenvolvimento, de forma a

incluir e dinamizar a inserção ampla de seg-mentos populacionais e territórios excluídos no mapa da produção e capacidade de con-sumo. Na esfera federal, a formulação de uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional foi um avanço em relação à prática regional precedente, dado que reconhece e prioriza em sua pauta de objetivos a atua-ção sobre regiões conforme desempenho da renda. As intenções da PNDR são elo-giáveis: orientar políticas e programas que promovam o desenvolvimento territorial, articulando políticas setoriais para regiões e sub-regiões prioritárias, sobretudo as de baixa renda, estagnadas e com dinamismo recente, segundo tipologia proposta. Seu fundamento reside na oportunidade de ar-ticulação de iniciativas de cunho territorial, com vistas a ampliar os níveis de coesão e integração das estruturas socioeconômicas espacialmente localizadas (Brasil, 2005).

Galvão (2007) avalia que os esforços governamentais na construção dessa políti-ca foram positivos, tendo conseguido insti-tucionalizar alguns marcos que se tornaram referência a ações do governo, inclusive os Programas Mesorregionais, que levaram seu apelo a outras pastas ministeriais e aos estados. Mas a mesma não foi dotada de recursos e instrumentos compatíveis com a dimensão efetiva de sua tarefa.

Alguns desafios propostos não foram sequer tangenciados. A boa recepção dos princípios gerais da PNDR não logrou ul-trapassar os limites que se antepõem a sua adoção prática como uma política de gover-no, como originalmente proposto. Alguns diálogos essenciais para isso não puderam acontecer diante da fragilidade dos instru-mentos de ação mobilizados pela PNDR (ibid., p. 346).

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Ou seja, por mais que se produza uma base técnica com argumentos capazes de viabilizar a organização de uma agenda para o desenvolvimento, fatores de ordem polí-tica, exigências de financiadores e reduzida margem de pressão de municípios e seg-mentos interessados se fragilizam perante a ausência de um Estado forte.

Seguindo trajetória similar, a Políti-ca Nacional de Ordenamento do Território (PNOT), pensada como instrumento de cres-cimento econômico, justiça social e desen-volvimento sustentável (Brasil, 2006), vem tendo os mesmos destinos da PNDR, eviden-ciando que no Brasil, o maior desafio talvez seja o de tirar do papel, do plano teórico, da simples formulação as políticas nacionais consideradas e, efetivamente, assumir sua implementação, numa sistemática de gestão articulada e controle social.

Planejamento regional é um processo que coloca ao Estado o papel de propor e articular ações de base territorial, antecipar situações e projetar o futuro. Talvez, no Paraná e no Brasil, se esteja na fase de re-estruturar o Estado para implementar uma política com esse perfil. Reestruturar é a palavra adequada considerando o desmonte sofrido pelo Estado brasileiro e o parana-ense em particular. Ou seja, criar condições para que políticas formuladas se efetivem. Mas é ao longo da implementação que o Es-tado se organiza.

Entretanto, há outros dois aspectos fundamentais nessa trajetória. O primeiro é o entendimento da sociedade de que esse é o caminho, o que se efetiva pelos canais já existentes de participação popular e que de-vem ser ampliados. O segundo diz respeito à perspectiva pela qual o Estado é gerido.

Uma política de desenvolvimento regional e toda ordem de problemas e soluções que ela envolve não se esgota em uma ou duas ges-tões governamentais. Reiterando, para que se efetive, essa política tem de ser assumida como um projeto de sociedade.

Assim, é preciso superar a visão limita-da de ações imediatas, de crédito rápido, co-locando em seu lugar a verdadeira noção de Estado, que se constrói com e na história, pela ação contínua e coletiva. Ou seja, rom-per com a conduta do abandono ou destrui-ção de projetos e ações desencadeadas por governantes sucessivos, sem uma séria ava-liação do que vinha se realizando e os impac-tos sociais decorrentes, propondo caminhos opostos, sem fundamentos sólidos, somente com o propósito de se colocar em evidên-cia. Em síntese, superar a visão estreita de que cada gestão governamental inicia uma nova história. Os governantes que ficam na história são justamente aqueles que, ao pro-jetarem o futuro, desencadeiam políticas e ações que vão além do seu tempo.

Não se quer dizer com isso que o pla-nejamento regional seja estático, inviolável, uma certeza que se perpetua, independen-temente das mudanças que acontecem em qualquer nível. Enfatiza-se: é um processo. Mudanças de natureza global e macro, em sua dimensão territorial, refletem no pla-nejamento realizado, demandam revisão de procedimentos, criação de novas soluções, reforço a propostas já existentes, enfim, correção de rumo, sem abandonar ou des-considerar a trajetória realizada. Mas os fundamentos da política, consubstanciados num projeto que é, antes de tudo, da socie-dade, implementado sob a condução do Es-tado, devem ser firmemente sustentados.

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Rosa MouraGeógrafa pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Geografia pela Universidade Fede-ral do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes. Pesquisadora da Rede Obser-vatório das Metrópoles, Projeto Instituto do Milênio-CNPq (Paraná, Brasil)[email protected]

Sandra Teresinha da SilvaEnfermeira e obstetra pela Universidade Estadual de Maringá. Mestrado em Educação e Dou-torado em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimen-to Econômico e Social – Ipardes. Coordenadora dos Planos Regionais de Desenvolvimento da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano – Sedu (Paraná, Brasil)[email protected]

Maria Isabel de Oliveira BarionAdministradora e Especialista em Administração de Recursos Humanos pela Universidade Fe-deral do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil)[email protected]

Nelson Ari CardosoSociólogo pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do Núcleo de Estudos do De-senvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil). [email protected]

Diócles LibardiVeterinário e Especialização em Economia Rural pela Universidade Federal do Paraná. Pesqui-sador do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Regional e Urbano do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes (Paraná, Brasil)[email protected]

Notas

(1) Disponíveis em www.ipardes.gov.br.

(2) Os autores referenciam a importante contribuição, no desenvolvimento da pesquisa, de Car-los Antonio Brandão, consultor e propositor da idéia de “Vários Paranás”.

(3) Espacialidade é a expressão usada para designar um recorte espacial de porção do território que se peculiariza por algum traço determinante na interação de dinâmicas sociais, cultu-rais, econômicas, ambientais, institucionais e territoriais, no fenômeno de produção do es-paço, configurando uma morfologia particularizada por padrões de continuidade, relações intensas ou articulações. Desconsidera divisões territoriais ou político-administrativas, ex-pressando um fato (urbano-regional, regional) em si.

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(4) Embora reconhecidos como espacialidades, a adoção da expressão “espaço relevante”, e não “espacialidade relevante” assume o seu uso recorrente admitido a partir de Ipardes (2005). A idéia de “relevante” foi tomada de Diniz e Crocco (1996), que a usaram na iden-tificação das aglomerações industriais relevantes.

(5) A escolha do limite inferior em 0,25%, quando em participações no total do estado, deve-se ao pressuposto de que, numa situação igualitária, considerando os 399 municípios para-naenses, essa participação hipotética seria de aproximadamente 0,25%. No caso de séries históricas, esse marco de corte foi mantido, mesmo reconhecendo que o número de muni-cípios do estado era menor entre os anos de 1970 e 1991.

(6) Municípios agrupados em classes que representam performance econômica e social acima da média estadual (Silva Neto, 2006).

(7) Estudos que vêm sendo realizados pela mesma equipe de pesquisadores do Ipardes, tendo sido concluída a análise pormenorizada do 3º espaço – porção oeste paranaense – (Ipar-des, 2008), e iniciada a organização das informações para análise de dois outros conjun-tos: a porção Sudoeste e o 1º espaço relevante.

(8) As Regiões Metropolitanas de Londrina e de Maringá já estavam institucionalizadas respec-tivamente desde 1998 e 1999, mas ainda não havia, no âmbito do governo estadual, uma instância de coordenação. As três microrregiões foram formalizadas a partir da constituição das coordenações, embora não tenham sido institucionalizadas por lei, conforme exige a Constituição Federal, no Artigo 25, § 3º. Há que se mencionar que, em 2006, a Coorde-nação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec), em funcionamento desde 1975, que atende à principal espacialidade socioeconômica do Estado, passou a se vincular à Sedu.

(9) Há previsão de construção, na região Centro Expandido, de uma usina hidrelétrica, de duas pequenas centrais termelétricas, fábrica de biodiesel e de metanol.

(10) As definições para as transferências federais no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foram desvinculadas da PDE. Os investimentos previstos pelo Progra-ma, para habitação e saneamento no Paraná, totalizam R$1.251,6 bilhão, incluindo inves-timentos federais, financiamentos e contrapartidas do estado e municípios. A previsão é atender a 18 municípios na Região Metropolitana de Curitiba e a outros 17 no interior do estado, poucos deles pertencentes ao Centro Expandido. No Norte e Oeste serão contem-plados os grandes centros, assim como Guarapuava e Irati na porção central do estado. Os critérios gerais de priorização dos investimentos contemplam obras de grande porte, com impacto na articulação e integração do território; obras de recuperação ambiental e de bacias hidrográficas críticas; combate à mortalidade infantil elevada; atendimento à popu-lação de baixa renda e complementação de obras já iniciadas.

(11) São quatro os eixos estratégicos deste Programa: planejamento estratégico, desenvolvi-mento local e regional, liderança e micro e pequena empresa.

(12) Inúmeros processos e indicações legislativas encontram-se em tramitação no legislativo estadual, correspondentes a Ponta Grossa, Cascavel, Apucarana, Foz do Iguaçu, Toledo, Campo Mourão, Umuarama, Paranavaí, Guarapuava, Cornélio Procópio, Pato Branco.

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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A dimensão política de Brasília

Vera ChaiaMiguel Chaia

ResumoO texto apresenta uma abordagem política do significado histórico de uma cidade, com o fo-co voltado para Brasília. A nova capital federal é analisada em função das diferentes políticas implementadas pelos governos brasileiros, a partir de Juscelino Kubitschek, passando pe-lo regime militar e alcançando o processo de transição democrática. Algumas idéias servem de parâmetro analítico para abordar a dimen-são política de Brasília, como, por exemplo, de-senvolvimento econômico, unidade territorial e nacional, isolamento urbano e autoritarismo, utopia realizada, espaço urbano como cenário político.

Palavras chaves: urbanismo e política; pla-nejamento urbano; Brasília; cidade e governo; capital federal

AbstractThis article presents a political approach to the historical meaning of a city, having Brasília in the spotlight. The new federal capital is examined due to the role it played in the implementation of different policies by diverse Brazilian governments, from Juscelino Kubitschek’s period up to the democratic transition process. Some ideas are used as an analytical parameter to approach the political dimension of Brasília, as for example, economic development, national and territorial unit, urban isolation and authoritarianism, realized utopia, and urban space as political scenario.

Keywords: urbanism and politics; urban planning; Brasília; city and government; federal capital.

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Muitos são os tipos de cidades. Existem desde aquelas que florescem espontanea-mente no lento fluxo da história até as que são levantadas imediatamente pela vontade construtora do homem. Brasília é uma cidade cuja origem encontra-se na artificialidade da política, nasceu de um projeto visionário do governante Juscelino Kubitschek de Oliveira e se materializou pelo plano arquitetônico e urbanístico de Oscar Niemeyer e Lucio Cos-ta. Assim como a política foi uma invenção iniciada pelos gregos, Brasília é um projeto inventado por alguns homens que agem no interior de instáveis relações de forças. Não é à toa que, entre as diferentes noções de política, destaca-se aquela que a vincula com o termo grego polis (politikós), “que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüen-te men te, o que é urbano, civil, público e até mesmo sociável e social” (Bobbio, 1986, p. 954). Nesse sentido a retomada do proje-to de uma nova capital brasileira constituiu-se num significativo trunfo político para o governo Kubitschek que, na retórica popu-lista de “crescer cinqüenta anos em cinco”, incorporou o entusiasmo coletivo nacional. E, desde sua inauguração, em 1960, a cidade vem enfrentando diferentes conjunturas polí-ticas, refletindo a história do país.

A cidade, a unidade territorial e a centralização do poder

Nicolo Maquiavel, em “Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, chama a atenção para o fato de que as cidades e, portanto, Estados e Impérios são marcados

pela sua “origem”, isto é, a maneira como se dá a fundação de uma cidade imprime-lhe sua natureza histórica. Assim, ao analisar os motivos das grandezas e da decadência de Roma, Maquiavel trata das cidades que “os habitantes, espontaneamente ou movidos pela tribo de maior autoridade, decidem ha-bitar em conjunto“ (Maquiavel, 1979, p. 20) e das cidades “construídas por um príncipe, não com o propósito de ali fixar residência, mas exclusivamente para a sua glória, como dá exemplo a cidade de Alexandria, estabele-cida por Alexandre” (ibid., p. 20). No caso de Brasília, temos o envolvimento de um sujeito construtor respaldado pela idéia de uma nova capital que vem atravessando a história brasi-leira desde a Independência. Se o projeto de Juscelino concretiza-se no início da década de 60, os antecedentes do ideário de uma nova capital vem de longe: Visconde de Porto Se-guro, Francisco Adolfo de Vernhagen, já co-gitara uma cidade no planalto central do país; José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da Independência, em 1823, indica a necessida-de da cidade; a Constituição de 1891 registra a fundação de uma nova capital; e, inclusive, sob o governo de Getúlio Vargas foi indicado um local indeterminado no planalto central para alocar a nova capital do país.1

Brasília emerge, assim, de um longo processo de afirmação do ideal de integra-ção territorial e político do país, que se inicia no período colonial, com a fuga da família imperial de Portugal e a instalação da Corte de D. João VI no Brasil, atravessa o Império, cuja política está calcada na proposta da cen-tralização política pelo Poder Moderador e expresso na primeira Constituição Brasileira (outorgada) e alcança a República, principal-mente com o Estado Novo (1937-1945), quando Getúlio Vargas impõe a centralização

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política como estratégia de controle governa-mental. Brasília, nesse sentido, realiza não só a utopia da nova cidade e do novo país, mas também encarna o andamento efetivo do pro-jeto de integridade territorial e de integração nacional do país, ante o esfacelamento da uni-dade experimentada pela América espanhola. Brasília ganha reatualização histórica ao ser incorporada como um elemento fundamental no modelo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.

Dessa forma, interessa abordar neste artigo os componentes políticos que moti-varam a criação de Brasília e marcaram al-gumas fases do seu crescimento urbano. Se num primeiro momento a cidade é pensada como conseqüência de uma determinada polí-tica de crescimento econômico, em outra eta-pa histórica a cidade torna-se um território fértil para viabilizar os governos militares. Assim, no final dos anos 50 e início dos anos 60, Brasília emerge como expressão de um novo olhar político sobre a unidade nacional, já no final da década de 1960 e na década de 1970, a nova capital federal constitui-se em espaço facilitador de utilização de técni-cas governamentais autoritárias dos regimes militares.

O nacional-desenvolvimentismo é uma política que se instaura solidamente no Brasil, sob o governo de JK, enfatizando a criação de um parque industrial, formação do mer-cado interno e o vínculo com o capital inter-nacional: os ingredientes considerados neces-sários para realizar o crescimento econômico do país. Juscelino Kubitschek implanta uma “experiência (que) resultou num governo politicamente estável, apesar de marcado por crises militares no começo e no fim do período” (Benevides, 2002, p. 23). Buscan-do neutralizar resquícios de crises políticas e

militares anteriores, bem como aquelas que brotavam na sua gestão, a política desenvolvi-mentista de Juscelino incentivou não só a mo-bilização de recursos humanos e financeiros, mas também o apoio popular. Nesse sentido, Juscelino afirma enfaticamente a instauração do “novo” e a aceleração do tempo político ao propor o desenvolvimento de cinco décadas durante o seu governo. Brasília será a síntese perfeita desses objetivos. Uma nova capital como símbolo de um novo governo, de um novo começo e de uma nova nação.

Brasília é o projeto político composto por múltiplas facetas: incorpora o entusias-mo coletivo nacional; dinamiza o fluxo dos imigrantes trabalhadores agora atraídos pe-la construção da cidade; direciona a vontade construtora de intelectuais e artistas; e inclui na vida brasileira a sinalização de um futuro país mais justo e mais rico. Juscelino emer-ge como o governante que propõe romper com os modelos do passado e potencializar o país para ingressar numa etapa moderna. Kubitschek arma um grande lance político ao colocar a ação governamental em torno de um “novo começo”, identificando seu gover-no com o esforço para construir de manei-ra particular o espaço público, traduzindo a construção de uma nacionalidade cosmopolita e equiparável a parâmetros internacionais. No interior desse dinâmico movimento político pensado por Juscelino, Brasília é pedra fun-damental, idéia nacionalista que convive com as agitações culturais e ideológicas do período personificadas pelo Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), CPC (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes) e pelo ritmo da Bossa Nova.

A estratégia política de JK, portadora de um otimismo inovador, reflete-se no âmbito das áreas da arte e da política, à medida que

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[...] sem ignorar a relação ambivalente

e, por vezes precária, existente entre

estética, técnica e política, torna-se ne-

cessário refletir sobre o convívio da in-

dustrialização com a vanguarda artística

promovida pelo discurso modernizador

de Kubischek. A arquitetura, em escala

bem maior do que outras manifestações

culturais representaram para o gover-

no, uma maneira visível e popular de

novamente redefinir os conceitos de

território e de apropriação na era mo-

derna. (Souza, 2002, p. 109)

Assim, o governo de JK irá surgir como sensível às manifestações populares e como articulador das expressões e desejos cultu-rais engendrados por diferentes intelectuais, assumindo então a tarefa modernista de pro-jetar uma nova capital. Deve ser ressaltada a maneira eficiente que levou JK a se apropriar da arquitetura tendo em vista armar uma es-tratégia geopolítica para o país.

Tal eficiência deve-se muito ao gover-nante, mas também à sua agremiação po-lítica. O PSD (Partido Social Democrata) foi o partido de Juscelino Kubitschek e que se caracterizou como um partido de centro, sempre buscando a “conciliação e moderação” (Hippolito, 1985) e o equilíbrio e era marca-do por membros e lideranças com experiência e, segundo analistas, com competência admi-nistrativa. Durante o governo de Juscelino, o PSD teve uma posição de centro e ajudou a promover e preservar uma estabilidade políti-ca, estabelecendo alianças com a UDN (União Democrática Nacional), com o PSP (Partido Social Progressista) e com o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).

Entretanto, o PSD, diferentemente de outros momentos de crise na história política,

não conseguiu administrar a crise de 1964, pois a conjuntura política era outra, com um sistema partidário polarizado, estando o pró-prio partido fragmentado, sem possibilidade de gerenciar os conflitos que marcaram aque-le período pré-golpe.

Após nove meses da inauguração de Brasília, Jânio Quadros assumiu a Presidência da República, no dia 31 de janeiro de 1961. Na Praça dos Três Poderes, Juscelino Kubits-chek passou oficialmente o cargo para Jânio Quadros. Na festa de posse do novo governo compareceram 1.500 pessoas vindas de vá-rias partes do Brasil, mas eram oriundas, na sua maioria, de São Paulo, local político do novo governante. Nesse momento da posse, Brasília tornou-se um radiante pólo político, repetindo a festa de sua inauguração. A cida-de atrai, então, a atenção do país.

Interregno: entre o isolamento local e outros palcos nacionais

A cerimônia de transmissão do cargo não foi tranqüila, pois Juscelino havia sido informado que Jânio Quadros faria um pronunciamento extremamente crítico ao seu governo. En-tretanto, as críticas ao governo de Juscelino somente aconteceram quando Jânio Quadros fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio, no programa Hora do Brasil. O no-vo presidente acusou Kubitschek de privile-giar certos grupos econômicos e políticos e de ter aumentado a dívida externa do país, dentre outros aspectos. E a cidade de Brasília era considerada um dos fatores importante desse endividamento do país.

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A primeira reação de Jânio Quadros ao se estabelecer em Brasília foi a de reclamar de seu isolamento na cidade; afinal, essa liderança surgiu em São Paulo, e toda car-reira política (prefeito, deputado estadual e governador) foi construída na movimen-tada São Paulo. Jânio não conhecia as lide-ranças mais importantes em outros estados da federação brasileira, seus interlocutores eram políticos de São Paulo e ele tinha pou-ca familiaridade com o Congresso Nacional, que havia sido composto em outro período eleitoral. Tais fatores fizeram com que Jânio Quadros se sentisse estranho e deslocado em Brasília. Tanto que escreveu ao diretor geral do Departamento de Correios e Telégrafos o seguinte ofício:

“Senhor diretor-geral:

Tenho notícias de que carta ou cartas

dirigidas a mim foram restituídas à ori-

gem por não conhecerem, os agentes do

Correio, o meu endereço. Fico sabendo

agora, que o mesmo sucedeu com o Sr.

Oscar Niemeyer.

Admito que os servidores ignorem quem

somos e onde moramos, mas sugiro

que V. Excelência recomendar, nesses

casos e em casos semelhantes, interesse

maior dos servidores na identificação e

localização dos destinatários.

J. Quadros”.

(O Estado de S. Paulo, de 6/7/1961).

Essa carta, com forte sentido irônico, reforça a indignação e apreensão com relação ao seu isolamento em Brasília.

Quando foi prefeito da cidade de São Paulo, Jânio Quadros adotou um estilo de lide rança política que o aproximava de setores da população; ele percorria os bairros

da cidade para conhecer seus problemas e, quando governador, costumava percorrer as diferentes regiões e cidades do estado de São Paulo. Agora, como presidente, resolveu adotar uma prática semelhante: invento o “governo itinerante”, que consistia em passar oito dias em cada estado brasileiro. Assim, ao invés de permanecer em Brasília, criou uma nova maneira de conhecer os problemas dos diferentes estados da federação e com essa medida promoveu uma maior centrali-zação do poder em suas mãos (Chaia, 1991, pp. 204-208). Pode-se dizer que, com o governo itinerante, Jânio Quadros retirou, parcialmente, as funções de capital federal de Brasília.

Ao renunciar, em 24 de agosto de 1961, depois de permanecer no poder somente por seis meses, afirmou, ao sair de Brasília: “Maldita cidade! Ajude-me Deus a nunca mais precisar voltar a este inferno!” (A Tribuna, de 27/8/1961).

Por ocasião da renúncia de Jânio Qua-dros, seu vice, João Goulart encontrava-se em missão diplomática na China e, de ime-diato, os militares colocaram obstáculos à sua posse na Presidência da República e, dessa forma, armaram uma séria crise política. Para defender a posse de Goulart, foi orga-nizado um amplo movimento, liderado por Leonel Brizola, então governador do estado do Rio Grande do Sul. A frente Legalista con-seguiu apoio de amplos setores da população e de alguns setores expressivos das Forças Armadas. Nessa crise de sucessão, o palco dos acontecimentos não se deu em Brasília, mas sim em outras regiões do país.

Para assumir a Presidência, foi negocia-da no Congresso Nacional uma emenda ins-tituindo um sistema parlamentarista e o Pri-meiro Ministro, que faz parte do governo de

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Goulart, foi Tancredo Neves, político mineiro do PSD. Esse sistema vigorou até janeiro de 1963, quando se realizou um plebiscito para que os eleitores brasileiros se manifestassem contra ou a favor da preservação do Parla-mentarismo, vencendo a volta ao regime Presidencialista.

O governo Goulart formulou e tentou colocar em prática uma política econômica planificada, sintetizada no Plano Trienal. Os pontos mais importantes desse plano eram a manutenção da taxa de crescimento do produto, a redução da inflação e das desi-gualdades regionais e a melhor distribuição de renda. Para sensibilizar a opinião pública, o governo fez uma campanha a favor das reformas de base (agrária, bancária, fiscal, administrativa) e da política externa inde-pendente. A reforma agrária adquiriu uma preeminência sobre as outras reformas e en-controu fortes resistências em vários setores da sociedade brasileira.

Goulart enfrentou oposição ao seu go-verno no Congresso Nacional, principalmente através das ações da UDN (União Democrá-tica Nacional), que emperrou o andamento de vários projetos enviados pelo Executivo, além de encontrar resistências no interior das Forças Armadas. Por adotar uma política na-cionalista, sofreu represálias por parte dos Estados Unidos e de outros países que desa-provavam tal política. Vários segmentos que se opunham ao seu governo se organizaram para depô-lo e assumir o poder do Estado. No dia 31 de março de 1964 João Goulart foi deposto por um golpe militar.

As grandes manifestações contra o go-verno de Jango ocorreram em cidades no eixo Rio/São Paulo. A primeira manifestação, “Marcha da Família, com Deus, Liberdade”, foi convocada por setores conservadores e

anticomunistas da sociedade brasileira, como a União Cívica Feminina, Sociedade Rural Bra-sileira, dentre outros, e foi realizada em São Paulo, sob a liderança de D. Leonor de Bar-ros, mulher do então governador Adhemar de Barros, liderança política do PSP. O Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democráti-ca), criados pelos setores mais conservadores e com apoio dos Estados Unidos, também fizeram uma oposição ferrenha ao governo de João Goulart.

João Goulart, por sua vez, realizou, no dia 13 de março de 1964, um grande Comí-cio na Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, convocando o povo a apoiar as refor-mas de base, propagadas pelo seu governo. A anterior capital federal demonstrava ainda sua vitalidade política. Nessa mesma cidade teve lugar um motim dos marinheiros, que se rebelaram contra as condições de trabalho a que eram submetidos por seus superiores. Os marinheiros rebeldes são presos e logo a se-guir Jango manda soltá-los, provocando uma reação crítica das Forças Armadas e, principal-mente, dos almirantes da Marinha Brasileira.

A destituição de João Goulart estava sendo articulada pelas Forças Armadas, com apoio dos governadores de São Paulo, Adhe-mar de Barros, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, com a presença da CIA americana e outros políticos como Carlos Lacerda, ex-governador do estado do Rio de Janeiro.

Na madrugada de 31 de março de 1964 tanques do Exército ocupam o estado da Gua-nabara e, no dia 1º de abril, a zona sul da cidade do Rio de Janeiro também é tomada. João Goulart, ao saber das manobras milita-res que estavam ocorrendo nos estados de Minas Gerais e São Paulo, viaja para Brasília, que não oferecia segurança ao presidente, por

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ser vulnerável às manobras militares. Goulart partiu então para Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Logo após a sua saída de Brasília, o presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, do PTN (Partido Trabalhista Nacional), opositor de Jango, declara vaga a Presidência da República e o acusa de deixar a nação acéfala, homologando com essa decisão o golpe militar. Ocorreram reações a favor do presidente, mas a então oposição conseguiu seu feito: destituir João Goulart da presidência do Brasil.

Durante essa crise de sucessão, Brasília não foi palco de grandes manifestações, como as que ocorreram no eixo RJ-SP. Ainda é uma cidade incipiente, formada “compulsoriamen-te” por funcionários públicos e políticos e, naquele período, ainda sem vida e sem ra-mificações na sociedade de grupos políticos. Assim, seu espaço urbano não servia, ainda, para as explosões cívicas ou manifestações pontuais, mas o seu asséptico espaço urbano facilitava manifestações militares. Aliás, esse isolamento de Brasília que, paradoxalmente, fora criada para integrar o país, atravessa a sua história desde JK, passando por Jânio Quadros, e torna-se um relevante fator para a implantação dos regimes militares pós-64.

Brasília será portadora não apenas da monumentalidade que se verifica no movi-mento moderno desde os anos 30 e na cons-trução das grandes obras estatais do Estado Novo, mas, paradoxalmente, também será solução para a difícil governabilidade do pe-ríodo que emperrava o dia-a-dia da política. Para Ronaldo Costa Couto, JK

[...] queria seu governo bem longe

do Rio o mais depressa possível. Sen-

sibilidade, argúcia e instinto político.

Trauma e lições do drama de Vargas,

consciência de vulnerabilidade, cenário

de ingovernabilidade. Precisava fugir

daquela atmosfera de agitação e gol-

pismo. E desgrudar o Brasil do litoral:

“Não é possível que cinqüenta cidadãos

na capital da República estejam a in-

quietar e a ameaçar cinqüenta milhões

de brasileiros”. (Couto, 2001, p. 20)

Essa última frase citada e dita por Juscelino indica como o seu governo estava exposto, no Rio de Janeiro, às crises políticas provo-cadas por militares, partidos políticos oposi-cionistas e grupos organizados. A mudança da capital para o interior inabitado tornou-se também uma estratégia de defesa contra oposições aguerridas e tentativas interven-cionistas ou golpistas.

Brasília: uma utopia autoritária realizada

Pode-se dizer que a dimensão política de Bra-sília exacerba-se ao se constatar que a nova capital não apenas faz parte de um modelo de desenvolvimento, mas também foi pensada como um instrumento de isolamento políti-co, um espaço protegido para o desempenho governamental. A localização da cidade, sua concepção arquitetônica e o plano urbanís-tico são pistas que indicam vários tipos de isolamento, principalmente o geopolítico. Brasília é uma parte à parte do restante do país. Aliás, tais características antecipam sua funcionalidade para servir aos regimes autoritários como os que seguem ao golpe de 1964. Paradoxalmente, a estratégia de transferir a capital da agitada Rio de Janeiro para o isolado Planalto Central não surtiu o

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efeito de anteparo de golpes, como imagi-nava Juscelino. Quatro anos depois da sua inauguração, um golpe militar rompe com a legalidade institucional.

Brasília aparece, então, como a utopia antecipadora dos governos militares, pois permitiu ampliar a centralização política, o isolacionismo e a separação da sociedade civil e a sociedade política no país. A nova capital se metamorfoseou, tornando-se um elemento facilitador para a ditadura militar. Como cidade incipiente que era, não engen-drou um espaço público vitalizado, carac-terizando-se por ser habitada por políticos profissionais, tecnocratas e funcionários pú-blicos que eram incentivados de diferentes maneiras para se transferirem para a recém-construída capital.

Brasília é fruto da racionalidade, orga-nização e cálculo que atravessavam a política implantada no período. Seu projeto arquitetô-nico rompe com a tradição barroca brasileira, instaurando a ruptura da modernidade. Essa cidade não segue a tendência da colonização portuguesa, de fundar cidades desorganizadas originadas pelos “semeadores”, em oposição às cidades organizadas dos “ladrilhadores” da colonização espanhola (Holanda, 1981).

Os governos militares ocupam gradati-vamente a nova capital. Ronaldo Costa Couto (2001, pp. 289-291) relata que o general Médici (1970-1974) foi o primeiro a gover-nar exclusivamente de Brasília, consolidando assim a capital federal. Se os anteriores go-vernos militares, de Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, não se estabeleceram na to-talidade do tempo na cidade, os governantes militares posteriores a Emilio Garrastazu Mé-dici (Ernesto Geisel e João Batista Figueiredo) assumem definitivamente a capital como sede do governo.

As características do autoritarismo im-plantado no Brasil pós-1964 iriam ao encon-tro das peculiaridades encontradas na então incipiente cidade de Brasília: controle da mo-bilização; pluralismo limitado e estabelecido pelos governos militares; e poder exercido por um líder ou um grupo político, expresso pelos militares no poder. No caso específico da mobilização política, pode-se afirmar que essa mobilização é baixa, limitada, ocorrendo uma “despolitização da massa de cidadãos” (Linz, 1973), que são chamados à partici-pação somente em momentos cruciais do regime político. Esse regime não possui um elemento utópico, tende a reduzir a política à administração dos interesses públicos.

O primeiro presidente militar a assumir o cargo foi o marechal Umberto Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exérci-to e que recebeu apoio dos líderes civis e militares que atuaram no movimento para derrubar João Goulart do poder. Ele foi elei-to indiretamente pelo Congresso Nacional a 11 de abril de 1964, adotando as seguin-tes decisões: cassação dos direitos políticos de diferentes setores da oposição, inclusive de militares simpatizantes de João Goulart; política estrita de estabilização e desenvolvi-mento; determinação de manter uma imagem de “legitimidade democrática” no mandato presidencial, defendendo um mandato fixo e sem possibilidade de reeleição.

Castello Branco também adotou uma política externa anticomunista, estabelecen do fortes vínculos com os Estados Unidos, além de apoiar um sistema de empresa semi-livre, apoiado e orientado por um governo cen-tral fortalecido. Defendeu uma democracia tutelada e enfatizou a possibilidade da ado-ção de soluções “realistas e técnicas”. Nesse momento, justapõem-se o intenso sentido de

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ordenamento da metrópole modernista e a racionalidade técnica-administrativa do go-verno militar.

O Ato Institucional n. 2 aboliu o sistema pluripartidário, instituindo o bipartidarismo, com a criação do MDB (Movimento Demo-crático Brasileiro), formado por políticos que fizeram oposição ao golpe de 64, e a Arena (Aliança Renovadora Nacional), formada por políticos governistas. Havia, portanto, uma vida política consentida e implantada pelo governo militar.

Brasília era, naquele momento, palco de manobras militares, de desfiles comemora-tivos, mas não de manifestações populares, proibidas pelo regime militar. Um cenário urbano propício para as manifestações dos fechados costumes e rituais militares.

O marechal Arthur da Costa e Silva ele-ge-se presidente da República do Brasil em outubro de 1966, pelo Congresso Nacional, através da eleição indireta, pois fora suprimi-do o direito de voto do povo brasileiro. Logo após a sua eleição, ocorre uma reativação da discussão política, com grupos políticos oposicionistas se rearticulando e promovendo manifestações contra o regime militar. A UNE (União Nacional dos Estudantes) organiza grandes passeatas e, no dia 28 de março de 1968, seria realizada uma manifestação no Rio de Janeiro, e ela será reprimida por for-ças policiais; um estudante, Edson Luís Lima Souto, será morto no restaurante universitá-rio Calabouço e sua morte se transformará numa bandeira de luta contra o regime mi-litar brasileiro. Brasília parecia separada das dinâmicas e tumultuadas mobilizações que ocorriam na antiga capital federal, em São Paulo e em Minas Gerais.

O movimento operário se reorganiza e, em abril e julho de 1968, irão ocorrer as

primeiras greves operárias no meio sindical nas cidades de Contagem, em Minas Gerais, e em Osasco, em São Paulo. Uma parcela do movimento de esquerda se organiza e passa a confrontar as Forças Armadas e o movimento armado, destacando-se nessa luta as organi-zações ALN (Aliança de Libertação Nacional), liderada por Carlos Mariguella, VPR (Van-guarda Popular Revolucionária), AP (Ação Popular) e o PC do B (Partido Comunista do Brasil), entre outras.

Por sua vez, a Igreja Católica muda sua postura ante o golpe militar. Se antes deu apoio à derrubada de João Goulart, após o Concílio Vaticano II e a Conferência Geral rea-lizada pelo Episcopado da América Latina na ci-dade de Medellín, na Colômbia, adota a Teolo-gia da Libertação, que vê a história e a teologia pela ótica dos pobres e oprimidos, e assume uma resistência ao regime militar, apoiando e incentivando os movimentos populares.

O governo de Costa e Silva, após um confronto direto com as manifestações de vários segmentos da sociedade brasileira – e após o caso Márcio Moreira Alves, deputado federal do MDB que fez uma declaração con-siderada ofensiva aos militares e que por ter imunidade parlamentar não pode ser proces-sado –, edita, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, que fechou ainda mais o governo, ampliando o autoritarismo, a repressão e reduzindo radicalmente o uso do espaço público.

A democracia relativizada

De modo geral, o caso do militarismo brasi-leiro é caracterizado como caso único, sui ge-neris, pois, diferentemente de outros regimes

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autoritários instaurados na América Latina, não possuiu características estáveis e defini-tivas. Nesse sentido, Carlos Estevam Martins e Sebastião Velasco e Cruz indicaram que es-se regime autoritário possuía um alto poder de transmutação, ocorrendo um processo de constante reestruturação do regime, expresso através de sucessivas alterações em algumas de suas esferas (Martins e Cruz,1983), por-tando dois aspectos aparentemente contradi-tórios: a “durabilidade”, isto é, continuidade de 21 anos dos militares no poder, sem pro-mover alternância entre governo e oposição; a “mutabilidade”, isto é, constantes transfi-gurações promovendo ora a liberalização, ora vigorando a repressão. O regime autoritário brasileiro conseguiu manter-se durante todo esse período exatamente pela capacidade de jogar com esses dois aspectos, conseguindo assim viabilizar por maior tempo a conser-vação do poder político nas mãos do grupo militar.

Quanto à diversidade verificada na trama de relação entre diferentes tipos de poder, pode-se dizer que o autoritarismo brasileiro foi um sistema híbrido, pois atendeu aos inte-resses do capital oligopólio, representado pe-las empresas multinacionais, fortalecendo ao mesmo tempo a empresa pública e ampliando a área decisória do governo e sua capacidade de controle sobre a sociedade civil. O Estado brasileiro fortaleceu-se às custas da sociedade civil, expandindo suas atividades e exercendo seu papel disciplinador e repressor. A coe-são interna ao poder, baseou-se então num “pacto de dominação” com a participação de funcionários públicos, com “burguesia de Es-tado”, com o grande empresariado privado e com setores das “novas classes médias” (Cardoso, 1975). Esse pacto se alternou de acordo com as especificidades dos governos

militares e com as políticas econômicas ado-tadas pelos diferentes governantes.

Sustentando uma tradição política bra-sileira de difícil equilíbrio entre os três pode-res, no regime autoritário, o Poder Executivo manteve a preponderância sobre o Legislativo e o Judiciário. Intensificando tal tendência, os militares governaram fazendo uso constante dos decretos-leis, além de baixarem atos ins-titucionais e alterarem as regras do jogo elei-toral segundo as conveniências do poder cen-tral. Predominou, dessa forma, o casuísmo e o controle da participação política – então restrita a certos grupos e instituições, delimi-tados pelos próprios governantes. Portanto, o pluralismo foi limitado e a exclusão política foi uma constante, reduzindo ou eliminando os espaços políticos possíveis a oposições ou críticos do governo.

No caso específico do Brasil, a questão da transição começou a ser discutida nos meados dos anos 70, com o processo de li-beralização promovido pelo governo Geisel. A transição era entendida, de forma geral, como processo gradual rumo à democracia, com permanência de traços do regime an-terior e criando condições de confrontos e lutas entre atores políticos diversos. Dada a sua conceituação polêmica e a sua efetivação histórica, por vezes, contestada como tal, cabe perguntar: afinal, quais são as forças desencadeadoras desses processos de transi-ção e quando se pode afirmar que a transição foi concluída?

O denominado processo de abertura po-lítica coincide com a crise econômica gerada pelo endividamento do governo anterior – do general Emílio Garrastazu Médici – e pela crise internacional gerada pelo aumento do preço do barril do petróleo, associada à falên-cia do “milagre econômico brasileiro”. Tal ce-

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nário gera, conseqüentemente, desemprego e até mesmo um estremecimento de relações entre a burguesia nacional e a internacional, ante o processo crescente de estatização.

Conjugado a esses fatores, destaca-se a crise de legitimidade do próprio regime mili-tar, tanto que, como um significativo sinal de questionamento desse regime, compreende-se o processo eleitoral de 1974, que acabou por se constituir em um plebiscito, em que os governos militares foram julgados negativa-mente. Naquela conjuntura política, o grande vencedor foi o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que se transformou, legitimamen-te, no partido da oposição.

Também se destaca como condicionan-te da abertura política o posicionamento de determinados setores das Forças Armadas, ligados ao castellismo, que optaram por pro-mover esse processo de liberalização visando recuperar o controle sobre as forças militares (Stepan, 1986), uma vez que proliferavam serviços secretos e aparatos paramilitares, sem o consentimento do poder central. O então presidente general Ernesto Geisel, na verdade, preparava a saída dos militares do poder, de forma planejada, objetivando não prejudicar a imagem dos militares, evitando assim o que ocorrera em processos seme-lhantes em outros países da América Latina, onde a imagem dos militares sairia extrema-mente desgastada.

Associado a todos esses fatores, ainda devem ser relevadas a organização e a pres-são da sociedade civil brasileira sobre o regi-me militar, o que, significativamente, também possibilitou o aceleramento do processo de abertura política, viabilizada com graves pro-blemas que indicavam retrocessos e ganhos que levavam a avanços durante o governo do general João Batista Figueiredo, o último

representante dos militares no poder. E nesse processo de formação de uma nova onda de resistência e de crítica ao governo militar, Brasília irá se destacar gradativamente como espaço de manifestação popular.

Em síntese, durante a década de 1970 e começo da de 1980, caracterizou-se o regime autoritário brasileiro como um regime que fortaleceu o Estado, promoveu um projeto de desenvolvimento econômico visando favore-cer as empresas multinacionais e a burocracia estatal, excluiu amplos setores da sociedade, limitou a participação política, controlou as ações do Legislativo e Judiciário e – nesse quadro assim configurado – pode-se indagar ainda quais foram os traços autoritários que permaneceram nesse processo de transição – já que, como se assinalou anteriormente, o processo representou avanços, mas também manteve traços anteriores.

Deve-se avaliar as especificidades da transição brasileira tendo em vista melhor definir a transição política. Embora o país te-nha passado de um governo militar para um governo civil, com a eleição indireta da chapa Tancredo Neves/José Sarney, observou-se que a presença dos militares no governo Sarney foi uma constante. Esse grupo preservou suas prerrogativas (Stepan, 1988) e se manteve no novo contexto político da democratização. Isso se tornou possível porque os militares controlaram todo o processo de transição, negociando, regulando e alterando as regras do jogo político, uma constante preocupação de manter as rédeas desse processo tornado “lento, gradual e seguro”.

Um outro aspecto que ainda caracteri-zou essa transição diz respeito à presença de atores marcadamente autoritários que se transmutaram em democráticos. Ou seja, o processo de democratização teve à sua frente

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atores que vivenciaram todas as vantagens que o poder propiciou e, como camaleões, eles se adaptaram às novas circunstâncias e se incorporaram ao sistema político. Isso im-plicou a preservação e ampliação de práticas políticas perversas, como a clientelística, o nepotismo, a corrupção, a manipulação e a apropriação da “coisa pública”.

A cidade como espaço de novas tensões

Brasília torna-se cada vez mais um lócus significativo dos debates e ações políticas, à medida que o processo de transição avançava. A cidade ia se constituindo numa efetiva ca-pital federal, ao abrir seu espaço para novas forças institucionais e também por alargar-se, repercutindo em diferentes pontos das instituições e territórios do país. Se, anterior-mente, a nova capital ampliou e facilitou os fluxos políticos baseados nos interesses dos governantes, a partir do momento em que a democracia se consolida no país, a cidade passará a receber novos sujeitos históricos que passam a atuar no território urbano das ruas e praças de Brasília. Centro de chegada de caravanas, local de manifestações das mais diferentes ordens e até zona de expressão

de repúdios individuais, a cidade adequa-se aos novos tempos e, agora, facilita também a expressão política que se origina nos movi-mentos sociais. E, assim, ela continua guar-dando as tensões agônicas que se produzem e reproduzem ao se considerarem os jogos de forças e interesses que se originam no interior dos gabinetes e aqueles que se ma-nifestam nas ruas.

Em 1984, com a “Campanha pelas Di-retas Já”, Brasília alcança um novo patamar de uso do espaço público urbano, pelas mani-festações populares que acontecem em todas as grandes cidades e, de forma significativa, na capital federal. Essa dinâmica de ocupa-ção do espaço público amplia-se a partir da autonomia política formal que a cidade ob-tém pelo Artigo 18 da Constituição Federal de 1988, que dá o direito à população pa-ra a escolha direta de seus representantes. Brasília, a capital federal, iniciou então um movimento de aproximação com o restante do país. Com a transição política, nos anos 70 e a instauração plena da democracia, a partir dos anos 80, Brasília abre-se para a política nacional e torna-se uma referência para se medir a consciência cívica do país. Seu território torna-se um espaço aberto para as mais diferentes manifestações da sociedade brasileira, mobilizada por diferentes idéias, projetos e agentes políticos.

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Nota

(1) Tal medida no governo Getúlio Vargas permitiu que Juscelino acelerasse a mudança da ca-pital do Rio de Janeiro para Brasília

Vera ChaiaGraduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais e Coordenadora e Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do CNPq (São Paulo, Brasil)[email protected]

Miguel ChaiaGraduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e do Departamento de Política da Faculdade de Ciências Sociais e Coorde-nador e Pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política – Neamp, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, Brasil)[email protected]

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Recebido em mar/2008Aprovado em jun/2008

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Território e experiência imigratória:os refugiados em São Paulo

no pós-Segunda Guerra MundialMaria do Rosário Rolfsen Salles

ResumoO artigo resultou de pesquisa realizada junto ao Memorial do Imigrante, SP, cujo objetivo foi a construção de um banco de dados sobre a entrada de imigrantes refugiados em São Paulo, no pós-Segunda Guerra Mundial, entre 1947 e 1951. Trabalhou-se com uma amostra de pouco mais de 10%, de um total de mais de 5.000 fichas. Considerou-se a inserção dos imigrantes nas ocupações industriais e nas em-presas empregadoras do período, a localização no território dessas empresas e residências, com o objetivo de entender as formas de agru-pamento de cada uma das nacionalidades que compõem o grupo de imigrantes provenientes da Europa do Leste e que se encontravam em campos de refugiados. Os resultados revelam uma faceta da história urbana da imigração em São Paulo.

Palavras-chave: São Paulo; bairros; indús-tria; imigrantes; refugiados.

AbstractThis article is the result of a research study carried out at the Immigrant’s Memorial of São Paulo. It aimed at the construction of a database about the entrance of refugees in São Paulo after the Second World War, between 1947 and 1951. We worked with a sample of 10% of a total of more than 5,000 forms. We considered the immigrants’ insertion in industrial occupations and in employing companies, as well as the location in the territory of those companies and residences, with the objective of understanding the forms of agglutination of each nationality that composed those groups of immigrants, which originated from Eastern Europe and were in refugee camps. The results can help to understand the urban history and the development of working class districts in São Paulo.

Keywords: São Paulo; districts; industry; immigrants; refugees.

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Introdução

O objetivo do presente trabalho é apresen-tar alguns resultados decorrentes de pes-quisa realizada com documentação presente no Memorial do Imigrante, SP, que se ateve aos anos de 1947 a 1951, especialmente os anos de 1947, 48 e 49, que constituem aqueles em que se deram as maiores entra-das de imigrantes conhecidos como refugia-dos ou deslocados de guerra no Brasil. No presente trabalho, optou-se por focalizar uma amostra de 10% do total de entradas em São Paulo, que totaliza pouco mais que 5.000 imigrantes, considerando-se que as fichas de entrada eram preenchidas em no-me do imigrante, mas incluem dados sobre toda a família. Uma descrição do perfil desse grupo foi feita em trabalho anterior, publi-cado na revista Studi Emigrazione (Salles, 2004). No presente trabalho, procurou-se identificar a localização das diferentes nacio-nalidades que compõem o grupo, na cidade de São Paulo e as razões que determinaram as escolhas dos bairros.

A cidade de São Paulo e o seu desenvolvimento até a década de 1940

A cidade que os imigrantes encontrariam no final da década de 1940 era, evidentemen-te, bastante diferente da metrópole de ho-je. Como se sabe, São Paulo se desenvolveu muito rapidamente a partir do seu núcleo inicial, desde finais do século XIX. Embora, em 1890, já apareçam arruados os bairros da Bela Vista, Vila Buarque, Santa Cecília e

a área entre a Luz e o Brás e parte do Bom Retiro, o que caracteriza a evolução urba-na da cidade até 1900 é que ela se dá de maneira pouco compacta e já apresenta um “surto industrial” significativo. A cidade que, em 1890, conta com 64.939 habitantes, passa para 239.820 em 1900, quase qua-druplicando (Langenbuch, 1976). É uma fa-se em que esse aumento se deve, em grande parte, à imigração subsidiada, especialmente à imigração italiana.

Esse período caracteriza-se por arrua-mentos isolados, completamente separados da cidade propriamente dita. Caracteriza-se também pela absorção quase total do cintu-rão das chácaras. A parte arruada vai da Vár-zea do Tietê, Barra Funda, Belenzinho, até a Quarta Parada, Mooca, Vila Deodoro, Acli-mação, Paraíso, Santa Cecília, Vila América e Higienópolis. Além desses bairros, Vila Ma-riana, Vila Clementino e Perdizes aparecem, então, como apêndices desse bloco mais compacto. Pinheiros, antigo aldeamento in-dígena, e a antiga Freguesia do Ó aparecem como loteamentos com arruamentos bastan-te amplos, o que denota a expansão da cidade e a tendência do desdobramento do espaço urbano. O transporte urbano já estava relati-vamente desenvolvido desde finais do século, primeiro com os bondes “a tração animal” (cuja primeira linha se inaugura em 1872, ligando o Centro à Estação da Luz), depois com o bonde elétrico (depois de 1900), in-terligava o espaço urbano com o auxilio da malha ferroviária do estado, a qual, em par-te, penetrava na cidade interligando a ativi-dade cafeeira e o desenvolvimento urbano da cidade. O bonde elétrico facilita a expansão difusa do espaço urbano, estendendo suas li-nhas aos bairros mais afastados e a regiões ainda não urbanizadas (ibid.).

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Os bairros são relativamente isolados, mesmo no período posterior a 1900, o que se acentua com a implantação dos núcleos coloniais nos arredores da cidade. Os núcleos coloniais se caracterizam pela entrada de imigrantes estrangeiros, na época, italianos. Eles auxiliam na reorganização espacial, que se traduzia numa maior valorização do cha-mado cinturão caipira. As ferrovias, que já existiam desde o período anterior, demons-trando atrair as indústrias, continuam a desempenhar importante papel como pola-rizadoras da industrialização e de formação de bairros e conferem às faixas servidas por elas uma “vocação suburbana” que se man-teria posteriormente. Exemplos bastante significativos são a Ferrovia Santos-Jundiaí, notadamente o trecho da Mooca-Barra Fun-da e a Sorocabana, entre a Estação Central e a Barra Funda, onde as indústrias adensam. Depois de 1900, dá-se o crescimento das áreas afastadas das ferrovias, como é o caso de Itapecerica e Embu. Cotia e Guarulhos já eram municípios atingidos pela ferrovia du-rante o período.1

Segundo Langenbuch, de 1915 a 1940, verifica-se a expansão propriamen-te urbana de São Paulo, o início da metro-polização. Segundo o mesmo autor, se no período de 1900 a 1920 houve um cresci-mento de 141% na população, entre 1920 e 1940, há um crescimento de 124% que, embora seja relativamente menor, é maior em termos absolutos. Em 1920, a cida-de contava com 579.033 habitantes e, em 1940, com 1.294.223. Embora continue a tendência anterior de um certo isolamen-to dos bairros, já há um esboço de arrua-mento entre vários deles, como Pinheiros e Consolação; entre Perdizes e a Lapa, nasce a Vila Pompéia e a Vila Romana; o espaço

entre a Lapa e a Vila Leopoldina é ocupado por novos loteamentos e algumas áreas vizi-nhas ao bloco central são também arruadas: Pacaembu, Jardim América, Jardim Europa, J. Paulista, Alto da Mooca. Todos, segundo Langenbuch, são mais ou menos desprovidos de edificações, permanecendo uma tendên-cia do perío do anterior, que é a especula-ção imobiliária. Entretanto, esboçam-se novas tendências, entre as quais a ocupação de trechos de várzea com loteamentos re-sidenciais. A isso se chama “surgimento do cinturão de loteamentos residenciais subur-banos”. Surgem os “Bairros Jardins”, des-tinados às classes abastadas, há uma valo-rização do Setor Oeste da cidade, o ônibus surge como novo veículo de transporte co-letivo, com 35 linhas municipais em 1935; persiste, em 1940, a pequena densidade de ocupação urbana da porção mais externa da cidade, o que denota a especulação imobiliá-ria desenfreada em que os terrenos se vêem artificialmente valorizados. Há, segundo o autor citado, um grande impulso gerador de subúrbios residenciais que se originou da ampliação do parque industrial na faixa de várzeas e terrenos fluviais, onde se ve-rificará a maior concentração de imigrantes a partir de meados dos anos 40, conforme dados da pesquisa com os imigrantes entra-dos no pós-segunda guerra.

O Mapa Sara Brasil, de 1930, mostra o colar quase contínuo de indústrias que se estabelecem entre a Lapa e o Ipiranga. Como dissemos no início, essa implantação convidava os operários a se estabelecerem em torno das estações ferroviárias fora da cidade, onde os terrenos e os aluguéis eram mais baixos. Essa função residencial dos subúrbios, com bem mostra Langenbuch, também se caracterizou pela implantação de

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populações estrangeiras em terrenos cam-pestres da zona suburbana, como é o caso dos anglo-saxônicos e alemães que se insta-laram no Brooklyn e no Tremembé, atraindo posteriormente outros imigrantes nórdicos.

No conjunto, a maioria dos bairros foi comandada pela ferrovia e pela implantação industrial e operária que orientou a expan-são suburbana. Nesse processo aparecem: São Bernardo, Santo André, São Caetano, como “zona industrial paulistana”, que, na década de 1940, são bairros bastante signi-ficativos na concentração dos imigrantes do período estudado, sem considerar as eman-cipações posteriores de alguns dos bairros e sua transformação em municípios, como Santo André, São Caetano e São Bernardo.

De acordo com Langenbuch, há uma outra tendência do período, que é o desen-volvimento do meio rural circundante, e que de certa forma também tem a ver com os imigrantes, desenvolvendo-se com equipa-mento hidráulico e hidroelétrico da cidade; desenvolvimento de uma recreação campes-tre e de uma agricultura comercial visando a cidade, com a produção de frutas e hor-taliças num cinturão verde desenvolvido em grande parte pelos japoneses. Os japoneses formam o terceiro grupo estrangeiro a se fixar em São Paulo visando o meio rural, co-mo haviam feito os italianos e os alemães. Com a implantação de Cotia, em 1913, eles desenvolveram a agricultura de tipo subur-bano que abastecia a cidade, fenômeno que acompanhou a crescente industrialização e urbanização da metrópole paulista e o de-senvolvimento de suas cidades-satélite e o conseqüente aumento da demanda de abas-tecimento que a expansão exigia.

A década de 1940, dessa maneira, é um marco no processo da grande me tro-

polização recente que se desenvolveria a partir daí. A cidade de São Paulo que os imigrantes desembarcados na Hospedaria de Campo Limpo encontraram era já, ao mesmo tempo, bastante complexa, mas também cheia de oportunidades. Ela era uma cidade tradicionalmente receptora de imigrantes e esses, de maneiras diferentes, encontravam identidades e se mesclavam à vida da cidade na sua tendência há muito esboçada à industrialização.

A inserção dos imigrantes e a constituição dos bairros na década de 1940

Os imigrantes entrados na década de 1940 participaram da formação dos bairros, não no sentido da formação de quistos, mas evi-denciavam uma certa aglutinação, como se observará nos dados apresentados nas Ta-belas a seguir.

Inicialmente, a Tabela 1 apresenta da-dos sobre os imigrantes entrados nos anos de 1947, 48 e 49, segundo as principais na-cionalidades.

A participação dos imigrantes das di-versas nacionalidades, que são o nosso ob-jeto de estudo nesse contexto de evolução urbana, não é muito “visível”, nem numeri-camente muito expressiva, como se verifica pela Tabela 1. A maior parte das entradas se deu através da International Refuges Or-ganization (IRO), entre os anos de 1947, 48 e 49. Entretanto, são de fundamental importância num “nicho” bastante significa-tivo de ocupa ções e na própria constituição urbana da cidade de São Paulo, dadas as

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Embora seja um fato mais ou menos aceite, que não há formação de quistos ou bairros étnicos em São Paulo, como é o caso de Nova York, por exemplo, podemos dizer que há evidentes concentrações étnicas. Tal-vez a não visibilidade desse grupo de nacio-nalidades na cidade de São Paulo e no inte-rior se deva exatamente ao fato de que se tratam de grupos menos expressivos nume-ricamente. A localização desses imigrantes na cidade de São Paulo evidencia aglomera-ções que nos ajudam a entender as aproxi-mações a determinados grupos, como os de mesma nacionalidade ou religiosos. A locali-zação também é determinada pela oferta de oportunidade de trabalho.

A concentração/dispersão dos imigran-tes pelos bairros na cidade de São Paulo

aponta caminhos percorridos nas primeiras fases, em que a busca de empregos era de-terminante. Há diferenças entre a concen-tração das empresas e das residências, que talvez se deva ao processo descrito ante-riormente, em que à tendência de concen-tração industrial se soma a busca dos locais em que os aluguéis ou os terrenos eram mais baratos.

De uma maneira geral, também as pro-fissões declaradas no passaporte no momen-to da chegada a São Paulo determinaram as oportunidades de trabalho na chegada dos imigrantes, mas indicam algumas diferenças entre as efetivamente desempenhadas no primeiro emprego.

Ou seja, se havia 71% dos imigrantes classificados como operários qualificados, 21%, como técnicos e profissionais de ní-vel médio e superior e 9% como serviços e ocupações não qualificadas, os empregos

Tabela 1 – Deslocados de guerra (DPs) matriculados na Hospedaria de Campo Limpo durante o triênio 1947, 1948 e 1949, segundo a nacionalidade.

Fonte: Boletim do Departamento de Imigração e Colonização, n. 5, dezembro de 1950.

Nacionalidades1947 1948 1949 Total

nºs % nºs % nºs % nºs %Poloneses 923 35,78 1.024 26,82 1.282 26,21 3.229 28,60Ucranianos 439 17,02 517 13,54 430 8,79 1.386 12,27Húngaros 11 0,42 267 6,99 595 12,16 873 7,73Baltas 363 14,07 234 6,13 420 8,58 1.017 9,01Russos 141 5,46 391 10,24 323 6,60 855 7,57Iugoslavos 58 2,24 402 10,53 338 6,91 798 7,07Tchecos 13 0,50 84 2,20 176 3,59 273 2,41Outras 187 7,25 636 16,66 944 19,3 1.767 15,65Apátridas 444 17,21 236 6,18 187 3,82 867 7,68Sem informação – – 26 0,68 196 4,00 222 1,96Total 2.579 100,0 3.817 100,0 4.891 100,0 11.287 100,0

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Tabela 2 – Ocupações desempenhadas pelos imigrantes no 1º emprego,segundo as nacionalidades

Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante, São Paulo.

NacionalidadesOperários

qualificados

Téc. e profis. – nível médio e

superior

Serviços e ocupações não

qualificadasTotal

nºs % nºs % nºs % nºs %

Poloneses 111 33,3 9 18,4 8 22,2 128 30,62

Ucranianos 49 14,7 1 2,0 2 5,6 52 12,44

Húngaros 25 7,5 10 20,4 3 8,3 38 9,09

Baltas 26 7,8 9 18,4 4 11,1 39 9,33

Russos 31 9,3 5 10,2 3 8,3 39 9,33

Iugoslavos 29 8,7 2 4,1 3 8,3 34 8,13

Tchecos 14 4,2 3 6,1 5 13,9 22 5,26

Outras 11 3,3 4 8,2 2 5,6 17 4,07

Apátridas 24 7,2 5 10,2 2 5,6 31 7,42

Sem informação 13 3,9 1 2,0 4 11,1 18 4,31

Total 333 100 49 100 36 100 418 100

Tabela 3 – Profissão declarada e ocupação desempenhada no 1º emprego

Fonte: Listas de desembarque, Memorial do Imigrante, SP.

Operários qualificados

Téc. Prof. Nível médio e superior

Serviços e ocupações

não qualificadasTotal

Passaporte 71,0% 20,6% 9,1% 100%

1º emprego 79,6% 11,7% 8,6% 100%

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efetivamente conseguidos nos primeiros contratos em São Paulo indicam um aumen-to daqueles classificados como operários qualificados para quase 80%, ao passo que os classificados como técnicos de nível médio e superior caem para 11,5%, enquanto que os serviços se mantêm, praticamente. Esse dado é significativo, na medida em que in-dica um primeiro ajuste das qualificações ao mercado de trabalho e salários ao chegar, de acordo com as condições paulistas.

Uma análise das ocupações que com-põem cada uma dessas categorias profissio-nais ajuda também a compreender o leque de opções que eram oferecidas aos imigrantes. Um quadro demonstrativo das principais profissões, oferecido pelo Departamento de Imigração e Colonização à época, evidenciam semelhanças entre as profis sões encontradas na pesquisa (profissões de sempenhadas pe-los “Displaced persons” – Dps, RIC n. 1950). Os operários qualificados referiam-se a ocupa ções especializadas na indústria metal-mecânica como automecânicos, eletricistas, ferramenteiros, ajustadores, montadores, serralheiros, torneiros-mecânicos, etc., assim como soldadores, vidreiros, ferreiros, enca-nadores, carpinteiros, marceneiros, etc., que refletiam bem o estágio de desenvolvimento da indústria paulista na época, ou seja, uma indústria a caminho da industrialização pesa-da que caracterizaria o desenvolvimentismo da época JK com a implantação da indústria automobilística na década seguinte.

Na medida do possível, acompanhou-se os depoimentos orais colhidos pela Profa. Sonia M. de Freitas e disponíveis junto ao Arquivo da Biblioteca do Memorial do Imi-grante, bem como realizaram-se entrevis-tas com alguns membros significativos das nacionalidades imigrantes presentes no pe-

ríodo examinado. Assim, foi possível acom-panhar, através das mudanças de emprego, as trajetórias ascendentes desses primeiros técnicos qualificados que compunham o gru-po. Além disso, as ocupações de nível mé-dio e superior já envolviam, desde o início, cargos como engenheiros, assistentes de várias ordens, calculistas, administradores, químicos, especialistas em hidráulica, em laticínios, embutidos, papéis, gráfica, rádio, elevadores, professores, etc.

Uma análise da distribuição das ocupa-ções entre nacionais e estrangeiros poderia mostrar em que medida os estrangeiros realmente ocupavam os postos mais quali-ficados. No entanto, isso demandaria outro tipo de fontes. De qualquer maneira, é bom lembrar que estávamos sob a legislação dos chamados 2/3 (dezembro de 1930), que visava proteger o trabalhador nacional, o que provocou muitas nacionalizações, con-forme pudemos verificar nos depoimentos e nas anotações das fichas preenchidas no momento da chegada. A julgar, entretanto, pelas justificativas dos defensores da imigra-ção contidas nos artigos da revista Imigra-ção e Colonização analisados em trabalho de 2007 (Salles, 2007), os estrangeiros eram muito bem-vindos quando se tratava de de-sempenhar tarefas que exigiam qualificação.

Dessa maneira, as empresas empre-gadoras nesse momento, muitas das quais já colocavam as suas necessidades junto às autoridades e à Hospedaria, de modo que boa parte já chegava com um contrato de trabalho, eram empresas de médio e gran-de porte, como frigoríficos, construtoras, firmas de engenharia, mecânica, de auto-peças, de produtos alimentícios, de tecidos e estamparia, de motores, como a montado-ra da General Motors, indústria de couros,

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186 mineração, etc. Entre as empresas, estão relacionados nomes, muitos dos quais es-trangeiros, como a Swift, a Armour, a Ge-neral Motors, a Firestone, ou pertencentes a imigrantes como as Indústrias Reunidas F. Matarazzo, a Fichet Schwartz e Hautmont, a Fiação de tecidos e estamparia Ipiranga Jafet, etc.

A Tabela 4 fornece uma idéia da dis-tribuição dos imigrantes pelas empresas, se-gundo diferentes regiões da cidade de São Paulo.

Como se verificou pela análise efetuada por Langenbuch sobre a estruturação dos bairros naquele momento, há uma nítida concentração em bairros industriais que compõem o Centro, a Zona Sul, Leste e Oes-te, que são zonas de expansão industrial na década de 1940, sobretudo as regiões Oeste em expansão, a Água Branca, a Lapa, Vila Romana, Vila Anastácio, Osasco; Sul/ Leste,

sobretudo Mooca, Belenzinho, Ipiranga, Ta-tuapé, Vila Bela, Vila Zelina, Vila Prudente, São Caetano, Santo André, São Bernardo, etc. De uma maneira geral, os poloneses se encontram em maior número, na Zona Oes-te (39,6%), Sul (36%) e Centro (20%). Os ucranianos, mais concentrados em São Cae-tano, encontram-se em 22,6% na Zona Les-te, depois Oeste (12,5%), Norte (10,5%), Sul (8%), Centro (4,5%). Para os húngaros, há uma maior concentração em empresas da Zona Norte (21,1%), Leste (12,9%), Oeste (12,5) e menor no Centro (9,1%). Os baltas e os russos se concentram mais em empre-sas localizadas no Centro e Zona Norte.

Com relação aos locais de residência, há diferenças interessantes no que se refe-re à concentração e que nos auxiliam na compreen são dos caminhos seguidos pelos grupos em São Paulo. As escolhas, como dissemos, do local de moradia, dependiam,

Tabela 4 – Distribuição dos imigrantes pelas zonas da cidade de São Paulo,segundo as nacionalidades – Empresas

NacionalidadesCentro Norte Sul Leste Oeste Outras

regiões Total

nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

Poloneses 22 20,0 1 5,3 18 36,0 8 25,8 19 39,6 19 40,4 87 28,5

Ucranianos 5 4,5 2 10,5 4 8,0 7 22,6 6 12,5 12 25,5 36 11,8

Húngaros 10 9,1 4 21,1 2 4,0 4 12,9 6 12,5 3 6,4 29 9,51

Baltas 17 15,5 3 15,8 5 10,0 3 9,7 4 8,3 3 6,4 35 11,4

Russos 12 10,9 2 10,5 5 6,0 0 0 2 4,2 2 4,3 23 7,54

Iugoslavos 10 9,1 3 15,8 3 4,0 5 16,1 3 6,3 2 4,3 26 8,52

Tchecos 11 10,0 1 5,3 2 8,0 2 6,5 3 6,3 2 4,3 21 6,89

Outras 5 4,5 1 5,3 4 8,0 2 6,5 1 2,1 0 0 13 4,26

Apátridas 13 13,0 1 5,3 4 6,0 0 0 3 6,3 2 4,3 23 7,54

Sem informação 5 4,5 1 5,3 3 9,8 0 0 1 2,1 2 4,3 12 3,93

Total 110 100 19 100 50 100 31 100 48 100 47 100 305 100

Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante.

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187é claro, em grande medida, das oportunida-des de emprego e de salário e se deveram também, em grande parte, às oportunidades oferecidas pelo mercado imobiliário em São Paulo, à formação dos bairros residenciais, etc. No entanto, dada a residência anterior das mesmas nacionalidades em São Paulo, as opções são bastante reveladoras das re-lações que então se estabeleceram em São Paulo.

Os mecanismos de adaptação a São Paulo, tanto para os imigrantes que ha-viam chegado pela IRO, quanto para aque-les que vieram através de cartas de chama-da de parentes ou amigos, eram bastante semelhantes. Em ambos os casos, além do emprego, a primeira providência a tomar era a moradia. Nos primeiros tempos, fica-vam em casa de parentes ou amigos, até o primeiro salário permitir o aluguel de uma casa. Em alguns casos, a empresa que con-

tratava fornecia a moradia ou moravam no emprego, em casos de serviços domésticos. Quando se tratava, porém, de aluguel, a es-colha se dava pelos bairros mais próximos ao trabalho e aos parentes e conterrâneos. No entanto, essa aproximação também era bastante reveladora do processo de adap-tação dos imigrantes; havia aglutinação por nacionalidade, mas a filiação religiosa ou po-lítica também determinava a aglutinação.

Entre os poloneses, por exemplo, os católicos e os judeus formavam grupos distintos. O Sr. Zdzislaw (entrevistado por Freitas, 1994-), por exemplo, polonês, ca-tólico, mecânico de profissão e cuja primeira ocupação foi numa indústria automobilísti-ca, chegou bastante jovem, com a família, e escolheu a Vila Zelina, por razões de pa-rentesco e de vizinhança com outros conter-râneos já residentes no bairro. Era prove-niente de uma família de agricultores, cujo

Tabela 5 – Distribuição dos “deslocados de guerra” pelas zonas urbanasdo município de São Paulo, segundo as nacionalidades – Residência

Nacionalidades Centro Norte Sul Leste Oeste Outras regiões Total

nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

Poloneses 8 14,8 4 19,0 38 35,5 22 28,9 36 38,7 16 38,1 124 31,5

Ucranianos 0 0 1 4,8 11 10,3 12 15,8 12 12,9 7 16,7 43 10,9

Húngaros 8 14,8 2 9,5 7 6,5 5 6,6 13 14,0 5 11,9 40 10,1

Baltas 10 18,5 2 9,5 8 7,5 6 7,9 5 5,4 6 14,3 37 9,41

Russos 0 0 3 14,3 8 7,5 13 17,1 5 5,4 2 4,8 31 7,89

Iugoslavos 4 7,4 2 9,5 14 13,1 4 5,3 8 8,6 1 2,4 33 8,4

Tchecos 12 22,2 1 4,8 3 2,8 1 1,3 5 5,4 0 0 22 5,6

Outras 3 5,6 3 14,3 5 4,7 1 1,3 2 2,2 1 2,4 15 3,82

Apátridas 3 5,6 2 9,5 9 8,4 8 10,5 4 4,3 3 7,1 29 7,38

Sem informação 6 11,1 1 4,8 4 3,7 4 5,3 3 3,2 1 2,4 19 4,83

Total 54 100 21 100 107 100 76 100 93 100 42 100 393 100

Fonte: Listas de Desembarque – Hospedaria de Campo Limpo – Memorial do Imigrante.

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pai era proprietário de um moinho na região de Chelm, lugarejo a Leste da Polônia, a 40 km da fronteira russa, rica em grãos, trigo, centeio, batata e beterraba para produção de açúcar. Sua história é semelhante, em muitos pontos, à dos judeus poloneses, no entanto, há diferenças bastante marcantes, já na própria Europa. A família perde a pro-priedade quando a Polônia é invadida por russos e alemães durante a guerra. Nessa ocasião já existia a United Nations Refuges Rehabilitalion Association (UNRRA) e a fa-mília pôde se refugiar no campo de refu-giados na Alemanha, ainda em 1943. Ali o entrevistado teve oportunidade de estudar mecânica e tornou-se técnico em mecâni-ca. No final da guerra, a família trabalhava numa fábrica de blocos de concreto. Com a criação dos campos de refugiados por na-cionalidades, pela UNRRA, lá ficaram até 1949, período em que freqüentou a escola, o ginásio e a escola técnica. O pai, com o auxílio da UNRRA e da Cruz Vermelha, arru-mou trabalho, mas como não queriam voltar à Polônia, onde haviam sido expropriados, optaram pela emigração. Várias possibilida-des se apresentavam além do Brasil: Cana-dá, Austrália, EUA e Argentina. Dizia que os solteiros podiam ir para o Canadá, a família poderia ter ido para os EUA, mas ele tinha 20 anos e teria que fazer o serviço militar e havia a guerra da Coréia. Pretendiam então ir para a Argentina, onde tinham parentes. Subitamente, entretanto, a Argentina fe-chou a imigração. Como tinham parentes também em São Paulo, vieram para o Brasil. Chegaram na Ilha das Flores onde permane-ceram até surgir a oportunidade de trabalho em São Paulo, onde ficaram duas semanas na Hospedaria. O relato da viagem é de que havia muitas outras nacionalidades do Leste

europeu, pessoas de quem ficaram amigas depois. A primeira moradia em São Paulo foi na Vila Zelina, onde já se encontravam os poloneses residentes em São Paulo, além de outras nacionalidades do Leste europeu. Imediatamente se filiaram à Sociedade Po-lonesa Joseph Pilsudski, marechal libertador da Polônia em 1918. O pai conseguiu em-prego no Moinho Gambá, na Borges de Fi-gueiredo. Para o entrevistado, que era espe-cializado em mecânica, o primeiro emprego foi na Mecânica Nacional, fábrica de tornos mecânicos do Grupo Matarazzo, passando depois para a Usina de Aços Villares em São Caetano. No segundo emprego, o salário su-biu 50% em relação ao primeiro. Da Villares passou para a Vemag, indústria automobi-lística, e de lá para a Mercedes, sempre se aperfeiçoando na profissão (o que dá uma idéia das várias trajetórias semelhantes de técnicos especializados e com qualificação). Casou-se e foi morar no bairro do Paraíso com os sogros. A relação com a colônia se dá através da Sociedade Polonesa, que fica ao lado da Estação Armênia do Metrô, onde os poloneses se reúnem todos os sábados e domingos, e da Igreja, a Capela Polone-sa, Nossa Senhora Auxiliadora, com missa em polonês e localizada no bairro do Bom Retiro. Pratica o escotismo juntamente com amigos poloneses. A língua é falada em casa, ao lado do português – até os netos sabem polonês. Lêem jornais escritos em polonês, o Ziarna I Zlosy (Espiga), dirigido por padres e também o Stepien, dirigido por salesianos naturalizados brasileiros.

Além disso, a trajetória de um judeu polonês é um pouco diferente: o Sr Abraão (Freitas, 1994-), judeu polonês, cujo pai pertencia a um grupo de resistência na Po-lônia e conseguiu se refugiar na Itália, teve

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a mãe aprisionada num campo de concen-tração para mulheres, tendo sido resgatada apenas depois da guerra. Uma vez tendo se decidido pelo Brasil porque a mãe foi incen-tivada por um irmão, além de terem tido auxílio internacional e da Hebrew Interna-tional Association (HIAS) vieram para São Paulo onde foram acolhidos pela comunida-de judaica; primeiro foram morar no bair-ro de Santana e depois no Bom Retiro. A comunidade promovia eventos para ajudá-los e integrá-los. O pai, que era comerciante antes da guerra, começou como mascate de roupas, logo conseguiu comprar uma ca-sa própria no Bom Retiro. O entrevistado estudou no Colégio Renascença e estudou depois na PUC. Começou a trabalhar no Renascença como auxiliar de limpeza, ainda criança, depois passou a inspetor de alunos. Secretário, Vice-Diretor e Diretor da Esco-la. Conta que os demais alunos eram judeus poloneses, alemães, russos, lituanos, além de espanhóis e portugueses.

Dessa forma, parece que a colônia identificada com o idioma e a cultura po-lonesa, de maioria católica, em São Paulo, existia mais ou menos paralelamente e sem contactos diretos com a colônia dos judeus poloneses. Isso parece ser válido, também, para todas as outras das nacionalidades que estudamos, na medida em que, como os poloneses, os demais também apresentam nítidas divisões por diferentes vinculações religiosas.

Há diferenças no nível educacional de cada um dos grupos, também, o que deter-mina o destino profissional, de certa forma. Seria preciso uma análise detalhada, dentro de cada etnia, da qualificação profissional, do nível educacional e dos caminhos per-corridos na trajetória profissional em São

Paulo. Não possuímos dados, entretanto, tão minuciosos. Não há como, a não ser pelos depoimentos, dimensionar detalha-damente as diferenças de nível educacional, senão fornecer um perfil geral.

Assim, as Tabelas 2 e 3, sobre as ocupa ções, pode auxiliar na análise das qua li ficações. É nítida a diferença entre poloneses e ucranianos, por exemplo, e os húngaros, baltas e russos, no que se refe-re à concentração nas ocupações classifica-das como operários qualificados, técnicos e profissionais de nível médio e superior e os serviços e ocupações não qualificados. Po-loneses e ucranianos apresentam uma con-centração maior entre os operários quali-ficados e ocupações menos qualificadas do que entre os profissionais de nível médio e superior. Entre os húngaros, baltas e russos, a maior concentração está entre as ocupações mais qualificadas, como já in-dicavam os artigos da revista Imigração e Colonização (RIC) e os argumentos da Co-missão Brasileira encarregada de selecionar os imigrantes deslocados.

Na sua trajetória posterior em São Paulo, os húngaros serão empresários bem-sucedidos, intelectuais e profissionais libe-rais. Assim se apresentam nos depoimen-tos, como uma comunidade bem-sucedida em São Paulo.

Quanto aos russos, não se apresentam muitos empresários entre eles, são um gru-po com alto nível cultural e educacional no terreno das artes e da cultura européia, músi ca e idiomas. Em artigo sobre os rus-sos no Chile (Norabuena e Uliánova, 1996, pp. 2-3), as autoras afirmam que há um “bai-xo prestígio das atividades burguesas” entre os russos nobres e ilustrados, o que pode ter influenciado nas escolhas ocupa cionais

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para a sobrevivência da colônia. Na realida-de, assim como para o Chile, os imigrantes russos significaram mais para a sociedade paulista como profissionais e técni cos do que como empresários e comerciantes. Por isso se concentram mais nos centros urbanos. A geração que chega no final dos anos 40, produto da ajuda internacional (IRO), trouxe a maioria dos chamados russos brancos, que se opuseram à repatriação proposta pelos Aliados. São os que menos querem dar de-poimentos sobre suas experiências.

A distribuição das nacionalidades pe-los bairros de São Paulo, primeiro quanto às empresas empregadoras e depois quanto ao local de residência, auxilia na compre-ensão das aglutinações. De uma forma ou de outra, as regiões Centro, Oeste, Leste, Sul apresentam as maiores concentrações no que se refere às empresas, e, de cer-ta forma, a zona Norte da cidade. Nesse processo, merece destaque a tendência à industrialização que incorpora regiões su-burbanas. Nesse sentido, um dos fatos mais significativos é o grande desenvolvimento industrial de Osasco, “subúrbio-estação” da E.F. Sorocabana; e, na linha Santos-Jundiaí em direção a Santos, verifica-se uma inten-sificação do parque industrial de São Cae-tano e Santo André com a implantação de fábricas em trechos de ferrovia ainda não afetados pela industrialização suburbana. Na direção oposta, entre a Lapa e as imedia-ções de Jundiaí, a Ferrovia Santos-Jundiaí praticamente não atraiu novas indústrias, a não ser Jaraguá e Campo Limpo. Essa função industrial deu lugar a um desenvol-vimento de suburbanização residencial (Cf. Langenbuch, 1976), o que talvez explique a concentração dos imigrantes que estamos enfocando em torno desses bairros, tanto

no que se refere às empresas como no que se refere aos locais de residência. Em pou-co tempo, esse desenvolvimento foi acom-panhado pela circulação rodoviária e pelos ônibus urbanos.

Os poloneses se localizaram sobretudo nos bairros das zonas Oeste, Sul, Leste e em menor número também no Centro e na zona Norte, sendo também essa a distribuição dos locais de residência, com exceção do Centro, que aparece em último lugar. Já os ucrania-nos concentram-se em maior proporção nas Zonas Leste, Oeste, Sul, no caso das resi-dências e, depois, Norte e Centro, o mesmo se dando para a concentração nas empresas. Assim como os ucranianos, os russos apre-sentam uma alta concentração residencial nas Zonas Leste, depois Norte e Sul, Oeste e Central, sendo que para as empresas em que trabalhavam, a concentração é maior no Centro, na Zona Norte e depois na Sul, Oes-te e Leste. Os húngaros trabalham na Zona Norte, Leste, Oeste, Central e Sul e residem na Zona Central, Oeste, Norte, Leste e Sul, enquanto os baltas trabalham na Zona Nor-te, Central, Sul, Leste e Oeste e residem na Central, Norte, Leste, Sul, e depois Oeste.

Algumas recorrências existem, embora seja difícil afirmar os motivos que levaram os imigrantes de cada uma das etnias estu-dadas a escolher os locais de moradia. Como vimos, há toda uma conjuntura própria aos bairros industriais, os terrenos e aluguéis mais baratos, um sistema de transporte ra-zoável, tanto ao longo das ferrovias quanto das rodovias e quanto ao transporte urba-no, o bonde e depois o ônibus, etc. O que, entretanto, é mais significativo do ponto de vista das escolhas dos bairros é o fato de que anteriormente já havia imigrantes das mesmas etnias nesses bairros.

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O caso da Vila Prudente, por exemplo, é bastante significativo: localizada entre a Região Sul e Leste da cidade, foi fundada por imigrantes italianos, os Falchi, que ali fundaram uma fábrica de doces e bombons no final do século. Começaram comprando uma grande área para loteamento para re-sidência de seus empregados que moravam no Brás. O bairro deve seu nome ao Enge-nheiro Antonio Prudente de Moraes, primo-irmão de Prudente de Moraes, Presidente da República. Muitas casas foram construí-das em regime de mutirão e uma olaria foi construí da no bairro para suprimento de material. A área possuía 1.200.000 m2 e, em 1891, abrigava 400 pessoas (www.vi-laprudente.com). A demora da luz elétrica levou o proprietário a transferir a fábrica para o centro de São Paulo. No antigo pré-dio se estabeleceu uma fábrica de tecela-gem, que, mais tarde, se transformou nu-ma fábrica de chapéus, a “Manufactora de Chapéus Oriente”. A eletricidade só chegou ao bairro em 1908 e em 1910, a linha te-lefônica, que vinha do Cambuci e em 1912, o primeiro bonde chega ao bairro. Na déca-da de 1920, foi construído o Monumento do Ipiranga. A partir da década de 1930, o bairro começou a valorizar-se e empresas chegavam ao bairro, que assim atraía cada vez mais operários.

Na Vila Zelina, a construção da Igreja São José e de escolas lituanas passou a atrair a população lituana. Além deles, os russos se estabeleceram na região, onde mantêm um Centro cultural importante. Na Vila Al-pina, igualmente, concentram-se lituanos e russos. A leva que veio em 1906, chamada de “velhos crentes”, se estabeleceu na Vila Alpina, onde ainda funciona uma Igreja e um centro cultural. Depois da Segunda Guerra,

os recém-chegados também se concen-traram em parte nesses locais, embora as novas gerações tenham se dispersado. (cf. www.vilaprudente.com e informações obti-das com pessoas especialmente indicadas)

No Bairro da Mooca, podemos encon-trar lituanos também, e uma Aliança Cultu-ral Lituano-Brasileira. Há festas folclóricas atual mente, reuniões culturais e a preser-vação da língua e transmissão aos descen-dentes. Há um coral lituano junto à Igreja Lituana.

São Paulo: a inversão da dispersão. As identidades e as associações

Ao processo imigratório, que consiste na adaptação a uma nova cultura, uma nova língua, etc., se acrescentam, no caso das na-cionalidades analisadas, como vimos, ques-tões políticas muito próximas à experiência européia que os países envolvidos na guerra passaram durante e após o término do con-flito. Nesse caso, é preciso dizer que o papel desempenhado pelas comunidades étnicas nesse processo, particularmente as organi-zações religiosas, as Igrejas, as associações, adquiriram um peso político adicional para essas nacionalidades, que ainda não foi de-vidamente dimensionado. Ou seja, como no caso da Sociedade Ucrânia Livre, por exem-plo,

[...] no seu Estatuto, está inserido um

documen to intitulado: ‘Linhas ideológi-

cas básicas da Sociedade Ucrânia Livre’,

que demonstra, de forma inequívoca,

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que os dirigentes e associados não es-

tavam empenhados em reunir a comu-

nidade ucraniana residente no Brasil e,

em particular, em São Caetano: seus

interesses estavam voltados para o de-

senrolar dos acontecimentos político-

sociais na Ucrânia da época. (Jovanovic,

1992, p. 25)

Ou seja,

[...] os reais interesses do povo ucra-

niano se resumem no estabelecimento

de um país soberano, democrático e

republicano (clara alusão à Rússia Im-

perial e ao governo soviético instalado

no começo dos anos 20).

Esse fato tem uma indicação clara de que

[...] a primeira corrente imigratória

pre sente em São Caetano se compu-

nha de dois tipos básicos de pessoas:

um grupo de ex-oficiais do Exército

ucraniano e um grupo de trabalhado-

res que abandonaram suas terras em

decorrência das precárias condições de

vida. (Ibid.)

Essas observações valem também pa-ra os russos e para as outras comunidades presentes em São Paulo. Se, por um lado, interessava reconstruir as vidas pessoais e familiares num país de inúmeras possibili-dades, que poderia lhes permitir “esquecer, perder-se no mundo”, “não serem mais encontrados”, como disse uma depoente húngara, para uma boa parte das comuni-dades tratou-se de preparar a volta. Uma das dimensões interessantes, então, pre-sentes nos depoimentos, e inesperadas, do processo vivenciado pelos “deslocados”, é a

persistência da idéia da volta aos seus países de origem, volta que implicava mobilização política, pelo menos para parte significativa deles, mobilização importante e que perma-neceu por algum tempo, pelo menos para a primeira geração do pós-guerra, o que sig-nificou, ao nosso ver, um elo importante, um vínculo muito forte que sedimentou as identidades (e as diferenças) que se forma-ram então, e as intermediações das insti-tuições com a sociedade paulista da época e com os seus conterrâneos anteriormente aqui presentes.

As observações feitas acima para os ucranianos valem para uma parte signifi-cativa dos russos, mas nem tanto para os húngaros que, depois da tentativa de levan-te popular em 1956, de cunho nacionalista, sufocado pelo Exército soviético com enor-me derrame de sangue, não visualizam um retorno possível.

Além das divisões regionais apontadas acima, as diferenças entre as diferentes le-vas se davam em função das origens sociais e familiares. Havia a experiência bastante comum, dos campos de trabalhos força-dos. Entretanto, dada a situação vigente na Europa do Leste, misturavam-se pequenos camponeses e agricultores que tiveram suas terras invadidas, com proprietários rurais de grande porte e mesmo industriais, pes-soas pertencentes na origem à burguesia russa, por exemplo, intelectuais, professo-res, profissionais liberais. Essas diferenças determinavam as trajetórias na Europa e, posteriormente, no Brasil. Sendo assim, em São Paulo, as comunidades formaram subgrupos em torno de algumas institui-ções, associações, Igrejas e pessoas, assim como procuraram se aglutinar nos bairros em que já existiam conterrâneos que, por

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coincidência, eram bairros residenciais no-vos, como procuramos descrever no item sobre o desenvolvimento urbano de São Paulo na década de 1940.

A localização dos russos em São Pau-lo, conforme depoentes, obedeceu à che-gada das diferentes levas e determinou as vinculações posteriores. A primeira leva, dos chamados “velhos crentes”, chegada em 1906 em diante, se localizou na Vila Alpi-na; os chamados “russos chineses”, aqueles provenientes da leva que estava na China e que foi obrigada a sair depois da Revolução Chinesa depois de 1953, localizou-se na re-gião de Moema, mas também na Vila Alpina, Vila Zelina, Vila Formosa, Vila Bela e Vila Prudente. Da mesma maneira, os litua nos se encontram também na Vila Zelina, Vila Prudente.

Os húngaros se encontram na Vila Ze-lina, na Vila Prudente, mas se dividem tam-bém pela Vila Anastácio, onde há um Con-vento de irmãs católicas, a Igreja de Santo Estevão, a Lapa e Vila Romana, onde se lo-caliza (Lapa) a Igreja Reformada (de orien-tação protestante calvinista), a Igreja Lute-rana (Evangélica), assim como se encontram também na Mooca, Ipiranga, Vila Ipojuca e Zona Oeste, Pinheiros e Jardins, no caso dos empresários mais bem-sucedidos.

A construção da Igreja São José na Vila Zelina atraiu famílias lituanas para o bairro que se transformou num bairro cultural e religioso da comunidade, assim como as re-giões próximas, atraindo outras nacionali-dades também, como vimos. As associações congregam boa parte dos antigos imigran-tes e parte das novas gerações, como é o caso do Círculo Cultural Nadejda, mais re-cente, de 1982, que surgiu para revitalizar a cultura, a língua e o folclore russo.

Na Vila Alpina, há a Igreja Ortodoxa da Santíssima Trindade, onde o padre Petrenko exerce uma enorme liderança. Ele é bastan-te representativo de uma parte importante dos russos. Filho de um soldado russo na Ucrânia, foi feito prisioneiro e levado para a Alemanha, juntamente com a mãe, para trabalhos forçados. O pai, em São Paulo, foi trabalhar como torneiro mecânico na Volvo, na Avenida do Estado; logo conseguiram comprar um terreno no Parque São Lucas, num loteamento. Até 1953, moraram num cortiço em Vila Bela, até construírem um barracão no fundo do terreno comprado pelo pai. A escolha inicial de Vila Bela se deu por causa dos avós, que chegaram an-tes e contataram conhecidos em Vila Bela. O padre resolveu seguir carreira religiosa, apesar da família não ser religiosa. O pa-dre Petrenko, hoje, é uma das referências importantes na liderança religiosa ortodoxa entre os russos.

São inúmeras as associações étnicas mencionadas nos depoimentos. Uma bre-ve análise já demonstra as diferenças que mencionamos e as agregações. Entre os húngaros, há uma clara definição por um assistencialismo e filantropia recentes, como a Entidade Filantrópica “Recanto da Vovó”, assim como cultural, como a Casa Húngara, a Universidade Livre, etc., o próprio Colé-gio Santo Américo, que é uma referência cultural importante dentro da comunidade húngara e onde se organiza atualmente um importante Museu da Imigração Húngara, além de sediar uma das mais importantes bibliotecas sobre história húngara, religiosa e política (Depoimento padre Iroff, Colégio Santo Américo).

Os depoimentos apontam uma agrega-ção entre judeus de diferentes nacionalidades.

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Os judeus húngaros, por exemplo, freqüen-

tam a Sinagoga da Rua Augusta, a Sinagoga

alemã e a Congregação Israelita da City. Já

entre os húngaros não-judeus, a identifica-

ção se dá segundo as igrejas dos protes-

tantes reformados, dos evangélicos e dos

católicos, cuja maioria se aglutina em torno

da Igreja de Santo Estêvão.

Além disso, entre os poloneses, como

dissemos, há uma nítida divisão entre os

católicos, que são a maioria, e os judeus,

além, provavelmente, dos intelectuais não

religiosos. Assim, as associações que recom-

põem a identidade polonesa são: a sociedade

Polonesa Joseph Pilsudski, a Associação Po-

lonesa da Estação Armênia, a Capela Nossa

Senhora Auxiliadora do Bom Retiro, o Cír-

culo Israelita, a TAIB, associação cultural de

intelectuais, a Sociedade Brasileira de Cultu-

ra Polonesa, o Clube Macabi no Tremembé,

o Clube 44 e o Pil, todos mencionados nas

entrevistas.

Entre os russos, a Igreja Ortodoxa da

Vila Alpina, a Igreja da Rua Gaivota em Moe-

ma, a Catedral da Rua Tamandaré entre ou-

tras, recompõem o mosaico de identidades

em São Paulo.

Da mesma maneira, entre as nacionali-

dades que compõem os baltas, há a divisão

entre os católicos, os batistas, os luteranos

e há as associações culturais e assistenciais.

As associações desempenharam impor-

tante papel no acolhimento e recepção dos

imigrantes na cidade de São Paulo, ao lado

dos parentes e conhecidos. Entretanto, há

que se considerar o papel das organizações

internacionais de apoio e dos escritórios para

colocação de mão-de-obra que selecionavam

as empresas e direcionavam os imigrantes

nos seus primeiros empregos na cidade.

Considerações finais

Não é possível, nos limites deste trabalho, percorrer todas as nacionalidades e suas trajetórias com detalhes e a sua morfologia interna, tentando recompor as relações que então se estabeleceram entre os grupos, den-tro deles, e com a sociedade paulista da épo-ca. São possíveis, entretanto, algumas con-clusões que nos parecem importantes, dadas as premissas colocadas para os “deslocados de guerra” e contidas na política imigratória expressa nos artigos da revista de Imigração e Colonização antes analisados e os objetivos gerais que nortearam este projeto.

Parece que, de uma forma geral, os imigrantes examinados se reconhecem como deslocados ou refugiados e essa autopercep-ção, de certa forma, determina a sua traje-tória em São Paulo, pelo menos nos primei-ros tempos. Determina também o associa-cionismo, que é uma forma de identificação, de resistência e de sobrevivência.

Em todos os casos, verificam-se polari-zações em torno de alguns subgrupos signi-ficativos dentro das comunidades. A história anterior do pré-guerra, da vivência na guer-ra e do pós-guerra, é uma referência cons-tante. A composição dos grupos é diferente quanto a diversos fatores. Alguns são mais preparados profissional e intelectualmente que outros, em termos de qualificações.

De uma maneira geral, entretanto, a autopercepção como “deslocados” parece se diluir nas identificações que menciona-mos acima, de caráter político e/ou religio-so, as identidades se recompondo segun-do suas histórias e vinculações anteriores, ou seja, segundo suas nacionalidades, e, dentro delas, segundo os subgrupos que

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mencionamos, muitas vezes, ultrapassando as identidades nacionais, como é o caso dos judeus. Do ponto de vista da sociedade pau-lista da época, seria preciso outra pesquisa, no sentido de verificar quais os mecanismos de reconhecimento que se desenvolveram, como a sociedade paulista vê e recebe os deslocados, etc.

Procurou-se chamar a atenção para a importância da experiência imigratória des-se grupo imigrante entrado no pós-segunda guerra mundial em São Paulo para a com-preensão de uma faceta da industrialização e urbanização da cidade, chamando a atenção para a direção e implantação territorial dos imigrantes e a constituição de determinados bairros no final da década de 1940.

É importante ressaltar, também, as di-ferentes fontes possíveis de pesquisa sobre esse grupo imigrante. Em primeiro lugar, o Projeto Temático referido no início deste artigo, desenvolvido com o apoio da Fapesp

junto ao Memorial do Imigrante: “Novos imigrantes: fluxos migratórios e industria-lização em São Paulo: 1947-1980”, criou e disponibilizou, a partir de 2008, junto ao Memorial, um Banco de Dados que permi-te a realização de inúmeras pesquisas so-bre as entradas de imigrantes de diferentes nacionalidades no período compreendido entre o final da guerra, a partir de 1947 até 1980, utilizando-se da farta documen-tação presente no Memorial, como: fichas de registro de imigrantes, curriculum vitae, avisos de chegada, pedidos de mão-de-obra qualificada, e que se encontra à disposição dos pesquisadores. Além disso, são refe-rências o artigo de Paiva (2000), sobre os refugiados; Salles (2007), além dos artigos que podem ser encontrados nos boletins e revistas de imigração e colonização, pu-blicados pela Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo e Departamento de Imigração e Colonização.

Maria do Rosário Rolfsen SallesDoutora Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista. Docente e pesquisadora junto ao Programa de Pós-Graduação de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Mo-rumbi (São Paulo, Brasil)[email protected]

Nota

(1) Esse retrospecto se baseia em Langenbuch (1976).

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Referências

BOLETIM do Departamento de Imigração e Colonização (1950). Quadro demonstrativo das prin-cipais profissões dos imigrantes deslocados de guerra, colocados no estado de São Paulo nos anos de 1947 a 1949, n. 5, dez.

FREITAS, S. M. de (1994-). Série Depoimentos Orais – Projeto História Oral, Memorial do Imi-grante. Arquivo da Biblioteca.

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Ocupação e urbanização dos cerrados: desafios para a sustentabilidade

Aristides MoysésEduardo Rodrigues da Silva

ResumoOs Cerrados do Centro-Oeste continuam ameaça dos pela ocupação de seu solo com produtos exportáveis, determinantes, a par-tir de 1970, para o desenvolvimento da re-gião. A produção de commodities substituiu a vegetação natural por soja, milho, sorgo e pastagens e estas não alimentam os lençóis freáticos dos cerrados, afetando mais de 300 cursos d’água. São dois momentos distintos dessa ocupação: de 1970 a 1980, período em que as transformações econômicas impu-seram um processo de ocupação perversa ao bioma cerrado; na década de 1990, os efeitos dessa ocupação se manifestam de forma mais contundente, provocando um processo de concentração urbana de grandes proporções.

Palavras-chave: ocupação dos cerrados; commodities; Centro-Oeste; concentração ur-bana; desenvolvimento regional.

AbstractThe Cerrado (Woodland Savanna) of Brazil’s Central-West region continues threatened as a result of the occupation of its soil by exportable products, which have been fundamental, from 1970 onwards, to the development of the region. The production of commodities replaced the natural vegetation with soy beans, maize, sorghum and pastures, which do not feed the ground waters of the Cerrado, affecting more than 300 watercourses. Two distinct moments marked the occupation of the Central-West region: the 1970-1980 period, when the economic transformations imposed a process of perverse occupation on the biome, as a result of agriculture and farming modernization, and the decade of 1990, when the effects of this occupation, associated with the transformations provoked by globalization, manifested themselves more strongly, leading to an extensive process of urban concentration.

Keywords: occupation of the cerrado; commodities; Brazilian Central-West region; urban concentration; regional development.

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Introdução

A região Centro-Oeste, fortemente influen-ciada pelo investimento estruturante do Es-tado, tem sofrido modificações significativas nas últimas quatro décadas. Esse fenômeno intensificou-se com a modernização da agri-cultura, o que possibilitou condições com-petitivas para a produção de commodities. Esse processo, por um lado, modificou as relações de trabalho no campo, substituindo o modelo de produção voltado para a subsis-tência por um modelo que contemplava fun-damentalmente a produção de mercadorias destinadas para o mercado exportador; por outro lado, desmantelou a incipiente produ-ção agrícola calcada na agricultura familiar, liberando para as cidades uma leva signifi-cativa de migrantes. Tudo isso repercutiu de forma intensa nas principais cidades do Centro-Oeste, principalmente nos entornos de Goiânia e de Brasília, onde se concentra, em apenas 33 municípios, aproximadamente 40% da população de toda a região.

Goiânia e Brasília, vistas como territó-rios isolados, possuem indicadores globais que as qualificam como cidades com ótima qualidade de vida e com alto potencial de consumo. Entretanto, quando a análise se estende para o espaço metropolitano, intra-metropolitano e intra-urbano, percebe-se a existência de grandes contradições que re-velam outra faceta da realidade social, de-lineada pela fragmentação e pela segmen-tação social. Isso significa que os espaços desses territórios estão marcados por forte segregação socioespacial, conseqüência do processo de desigualdades sociais que tem se manifestado também em outras cidades, sobretudo aquelas que se beneficiaram dos

dividendos proporcionados pela produção de commodities. O foco central deste artigo é o processo de ocupação dos cerrados do Centro-Oeste e suas perversas conseqüên-cias tanto para o bioma cerrado quanto pa-ra as cidades, receptadoras imediatas dessa ocupação.

Características importantes do cerrado

Os cerrados são um tipo de vegetação que se caracteriza por uma variedade de árvores baixas e retorcidas, típicas do Centro-Oeste brasileiro, mas que podem também ser en-contradas na Amazônia, em parte do Nor-deste e Sudeste Brasileiro e até mesmo no Sul, embora em menor quantidade.1

Segundo Abramovay (1999, p. 2), o cerrado é o segundo maior bioma brasileiro (após a Amazônia) e concentra nada menos que um terço da biodiversidade nacional e 5% da flora e da fauna mundiais. No que se refere à flora, é considerada a mais ri-ca dentre as savanas existentes no mundo. Destaque-se que o cerrado ocupa posição estratégica, tanto do ponto de vista hidro-gráfico quanto da geografia econômica.

No que se refere à sua hidrografia, Altair Sales Barbosa, antropólogo e pesqui-sador do Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás, lembra que o cerrado desempenha papel importante co-mo alimentador das principais bacias hidro-gráficas brasileiras.

O cerrado é a cumeeira da América do

Sul, distribuindo águas para as grandes

bacias hidrográficas do continente. Isso

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ocorre porque na área de abrangên-

cia do Cerrado se situam três grandes

aquíferos, responsáveis pela formação e

alimentação dos grandes rios do conti-

nente: o aquífero Guarani, associado ao

arenito Botucatu e a outras formações

areníticas, mais antigas, responsáveis

pelas águas que alimentam a bacia do

Paraná. Os aqüíferos Bambuí e Urucuia.

[...] são responsáveis pela formação e

alimentação dos rios que integram as

bacias do São Francisco, Tocantins, Ara-

guaia e outras, situadas na abrangência

do Cerrado. Estes aquíferos, que se vêm

formando durante milhões de anos, de

pouco tempo para cá não estão sendo

recarregados como deveriam, para sus-

tentar os mananciais. Isso ocorre por-

que a recarga dos aquíferos se dá pelas

suas bordas nas áreas planas, onde a

água pluvial infiltra e é absorvida cerca

de 60% pelo sistema radicular da vege-

tação nativa, alimentando num primeiro

momento o lençol freático e lentamen-

te vai abastecendo e se arma zenando

nos lençóis mais subterrâneos. Com a

ocupa ção dos chapadões de forma in-

tensa, que trouxe como conseqüên cia

a retirada da cobertura vegetal, sua

substituição por vegetações temporá-

rias de raiz subsuperficial, a água da

chuva precipita, porém não infiltra o

suficiente para reabastecer os aqüífe-

ros. Conseqüência, com o passar dos

tempos, estes vão diminuindo de nível,

provocando, num primeiro momento, a

migração das nascentes, das partes mais

altas, para as mais baixas e a diminuição

do volume das águas, até chegar o pon-

to do desaparecimento total do curso

d'água. Convém ressaltar que este é um

processo irreversível. (Barbosa, s.d)

A esse respeito, Abramovay (1999, p. 3) afirma que

[...] a água acumulada nos lençóis freá-

ticos dos cerrados do Centro-Oeste vai

abastecer nascentes que dão origem a

seis das oito maiores bacias hidrográ-

ficas brasilei ras, exceção apenas para

as bacias do Rio Uruguai e do Atlântico

Sudeste.

Os cerrados ocupam 85% do grande platô do Brasil Central Brasileiro, o que re-presenta cerca de 20% da superfície do Bra-sil. Em suas entranhas está grande parte das nascentes que abastecem as principais bacias hidrográficas brasileiras, tais como a Amazô-nica, a do São Francisco e a Bacia do Prata, e sua abundância hídrica é muito importan-te na vegetação (Pires, 1996, p. 52, apud Abramovay, 1999). Essa ligação permite o intercâmbio de sementes, pólen e mesmo a dispersão da fauna através das matas de galeria que acompanham córregos e rios, possibilitando que indivíduos de espécies do cerrado se acasalem com representantes de espécies da Amazônia, da Mata Atlântica, da Caatinga, o que contribui para aumentar a variabilidade genética das espécies (Novaes, 1994, apud Abramovay, 1999).

Em suma, o cerrado é considerado uma das principais áreas de ecossistemas tropi-cais da Terra, sendo um dos centros priori-tários para a preservação da biodiversidade do planeta. Entretanto, vários fatores têm contribuído para alterar essa situação. Den-tre eles, ressaltam-se a pressão urbana e o rápido estabelecimento de atividades agrí-colas na região, o que tem provocado uma rá pida redução da biodiversidade desses ecossistemas.

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No que se refere à geografia econô-mica, a posição estratégica do cerrado vem atraindo investimentos a partir dos anos 1970, pelas seguintes razões: por estar no centro do país, portanto próximo dos gran-des centros consumidores; pela sua malha rodoviária que facilita o escoamento da pro-dução; pelo desenvolvimento de cultivares adaptados ao solo e clima; pela sua geogra-fia com grandes extensões de planícies, o que propicia o desenvolvimento da pecuária e da agricultura mecanizada, dentre outras. Por isso, grandes empresas agropecuárias instalaram-se no Centro-Oeste, sobretudo no Sul, Sudeste e Sudoeste do estado de Goiás, graças aos incentivos governamen-tais, transformando a região numa das prin-cipais produtoras de commodities oriundos das agroindústrias.

Cabe destacar que, na segunda metade dos anos 70, o governo federal criou o Pro-grama de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro) que previa grandes investimen-tos em infra-estrutura, recursos para pes-quisa agropecuária e assistência técnica na região Centro-Oeste do país. Esse progra-ma compreendia três programas especiais: Programa Especial de Desenvolvimento do Pantanal (Prodepan), Programa Especial da Região de Grande Dourados (Prodegan) e o Programa Especial da Região Geoeconômica de Brasília (Geoeconômica)

É visível a transformação que esses in-centivos fiscais provocaram na região como um todo. Segundo dados estatísticos do Mi-nistério da Agricultura, a evolução da ocupa-ção das terras dos cerrados brasileiros, que passou de 5 milhões de hectares cultivados com cereais, com uma produção de cerca de 5 milhões de toneladas de grãos em 1970, para cerca de 10 milhões de hectares e

produção média de 20 milhões de toneladas em 1990, duplicando a produtividade mé-dia. Atualmente, a região é responsável por cerca de um terço da produção brasileira de grãos.

Da mesma forma, grandes extensões de terras foram ocupadas com pastagens para a produção de carne e leite. A produtividade elevou-se significativamente com o uso de técnicas de melhoramento genético e de ma-nejo de rebanho, colocando a região numa posição de destaque no ranking nacional, com 40,5% do rebanho nacional, ou seja, aproximadamente 60 milhões de animais.

Ocupação desordenada do cerrado e desigualdades sociais nos centros urbanos

Destaquem-se dois aspectos relevantes. O primeiro é historicamente conhecido e re-fere-se ao desmantelamento das formas de produção rudimentares de cultivo da terra, voltadas para a subsistência das famílias en-volvidas. Esse processo foi hegemônico até o final dos anos 60 e foi sendo substituído por uma estrutura econômica e tecnológica moderna a partir dos anos 70. Tal fato via-bilizou uma produção de escala que visava, sobretudo, o mercado exportador. Sob esse aspecto, estudiosos vêm analisando o agra-vamento das condições socioeconômicas nos centros urbanos provocado pelo afluxo in-tenso de pessoas para as cidades, mas tam-bém as conseqüências psicossociais provo-cadas pelo que os antropólogos chamam de desenraizamento, ou seja, a falta de chão,

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de convivência mais profunda, enfim, sau-dades das raízes ligadas essencialmente ao cultivo da terra.

Outro aspecto tem a ver com a forma como se utiliza o solo e os problemas am-bientais derivados de seu uso. Sendo assim, cabe uma pergunta: existe uma correlação entre ocupação e desigualdades sociais nas cidades, frutos de um processo desordena-do e perverso de ocupação do cerrado no Centro-Oeste?

Primeiramente, por que perverso? O “perverso” pode ser explicado a partir de três variáveis que se complementam e são indispensáveis no processo de transforma-ção da região numa grande produtora de commodities (grãos, cana-de-açúcar, car-nes e algodão, entre outros): ver o cerrado como área de fronteira; utilizar largamen-te pivôs de irrigação e usar intensivamente fertilizantes, sobretudo agrotóxicos. Inú-meros estudos, principalmente do Centro de Pesquisas Agropecuárias dos Cerrados (CPAC) e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), têm apontado as fragilidades do cerrado no que se refere à sua forma de ocupação, ou seja, ocupar esse bioma como área de fronteira é exaurir dele toda a fertilidade que possui, fertilidade es-sa que tem como função garantir o futuro do próprio bioma.

Mais uma vez, vale registrar as obser-vações de Abramovay (1999, p. 5) quanto à abundância de água nos cerrados e sua fun-ção irrigadora do próprio solo:

Essa concentração do período das chu-

vas sucedida por uma prolongada seca

(4 a 7 meses) determina a estratégia

adaptativa das plantas de buscar água

a dez metros de profundidade, o que

faz com que a vegetação e a vida animal

nos cerrados sejam mais importantes

sob o solo do que acima de sua superfí-

cie (Floresta de cabeça para baixo), aju-

da a explicar a ausência de campanhas

públicas voltadas a sua preservação. (o

grifo é nosso).

Ao se fazer uso intensivo de pivôs,2 colocam-se em risco as fontes perenes de água, muitas delas provenientes de “águas profundas”. A esse respeito, Abramovay (1999, p. 9) estima que o consumo de água em pivôs, em certas épocas, chega a 3,45 bilhões de litros utilizados em irrigação dia-riamente, apenas no estado de Goiás – cer-ca de 20 vezes o consumo doméstico diário do milhão de pessoas que vive em uma ci-dade como Goiânia. “É um risco, uma vez que não se tem conhecimento confiável dos aqüíferos da região, suas áreas de recarga e descarga, seus ciclos internos e sua capaci-dade de suporte”.

Em 2003, essa situação de conflito entre irrigação e abastecimento urbano fez com que o Ministério Público de Goiás lacrasse pivôs centrais, para que não se comprometesse o abastecimento de cidades inteiras.

Outro problema está relacionado ao uso de fertilizantes e agrotóxicos, sobre os quais só recentemente o Congresso Nacional produziu legislação específica visando o con-trole de sua utilização. Ainda assim, um con-trole mais efetivo esbarra na morosidade e deficiência do aparato de fiscalização. Surge, portanto, a hipótese de que também é perti-nente relacionar as desigualdades sociais nas cidades às questões ambientais advindas de um processo produtivo não sustentável do ponto de vista ecológico, não as associando

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apenas às formas clássicas de explicação das desigualdades que, em parte, estão rela-cionadas ao forte processo migratório e ao êxodo rural.

Migrar, num primeiro momento, não é uma decisão que se faz de forma tranqüila, pois significa romper com laços familiares, com relações de vizinhança. Na verdade, é uma profunda ruptura com o modus viven-dus no qual se estava inserido por um longo período de tempo. Num segundo momento, quando o migrante já está novamente ins-talado, ainda que em situação precária, ele se engaja no propósito de promover trans-formações pessoais e familiares, buscando obter melhores condições de vida.

No caso do cerrado, o processo perver-so de preparo da terra, visando ampliar a produção de grãos e de carne, está exaurin-do as potencialidades naturais de seu solo e tornando o acesso à água cada vez mais di-fícil, na medida em que o lençol freático vai ficando mais profundo. Como conseqüência, várias nascentes secaram.3

Formação da rede urbana no Centro-Oeste

Apesar de o Centro-Oeste, no seu conjunto, se apresentar como um território de baixa densidade demográfica, pode-se dizer que, a partir dos anos 70, formou-se aí uma rede urbana que desempenha papel importante na estruturação do espaço regional-urbano. No processo histórico, identificam-se alguns vetores que dinamizaram a ocupação do Centro-Oeste. Assim, estímulos endógenos como as atividades mineradoras, a pecuá-ria extensiva, a implantação de ferrovias, a

melhoria das precárias estradas rodoviárias e a implantação de infra-estrutura, ao longo do tempo, foram importantes para a con-formação dos núcleos urbanos, porém insu-ficientes para dar a densidade demográfica necessária à ocupação do Centro-Oeste.

Reconhece-se, também, que o inves-timento maciço do setor público, principal-mente nas esferas federal e estadual, pro-duziu estímulos à formação de uma rede urbana que se configurou de forma dispersa na maior parte do território, porém densa em pontos específicos como Brasília, Goiâ-nia, Campo Grande e Cuiabá. A decisão do Estado de atuar como principal agente es-truturador da região se acentuou, sobretu-do a partir dos anos 30, com a política de-nominada “Marcha para o Oeste” e a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco) em 1967, que pas-sou a coordenar as ações e investimentos públicos destinados ao Centro-Oeste.

Como destaque de ações concretas, deve-se salientar a construção de Goiânia, cuja pedra fundamental foi lançada em 24 de outubro de1933. Já nos anos 50, antes mesmo da construção de Brasília, Goiânia já era um núcleo urbano expressivo, com uma população acima de 100 mil habitantes e um comércio dinâmico, sinalizando que ti-nha vocação e assumiria muito brevemente a condição de núcleo polarizador, o que de fato ocorreu.

A construção de Brasília, a partir da se-gunda metade dos anos 50, consolidada no início da década de 1960, intensificou ainda mais o processo de ocupação da região, na medida em que atraía um contingente signi-ficativo de imigrantes. A implantação dessas duas capitais planejadas no Planalto Central possibilitou a formação do “eixo” Goiânia-

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Anápolis-Brasília, que reúne atualmente 33 municípios, constituindo um espaço de grande concentração de população, repre-sentando mais de 1/3 da população total do Centro-Oeste.

Metamorfose urbana no Centro-Oeste e no Planalto Central brasileiro

A urbanização do Planalto Central fez parte integrante do mesmo processo que urba-nizou a região Centro-Oeste. As cidades de Goiânia e Brasília são o alfa e o ômega, e ambas têm o estado de Goiás como base lo-gística, já que nele emergiram. Vale ressaltar que a construção dessas duas cidades, em pleno cerrado, constituiu um dos fatos mais relevantes que ocorreram naquele período.

Assimetrias à parte, também o des-membramento do estado de Mato Grosso, em 1977, implicou a criação do estado do Mato Grosso do Sul e transformou Campo Grande em capital, o que constituiu também um fato relevante, na medida em que a re-sultante dessa decisão foi a consolidação do desenvolvimento econômico do lado sul do antigo estado e a consolidação de um gran-de centro urbano que já existia, mas que ga-nhou impulso quando foi alçado à condição de capital.

Quatro decisões tomadas exogena-mente, ou seja, a construção de Goiânia, a de Brasília, o desmembramento do estado de Mato Grosso e, por fim, a subdivisão de Goiás em 1989 – passando sua parte norte a receber o nome de Tocantins e a integrar

a região Norte do país – foram frutos de ingerências tomadas endogenamente e que resultaram na conformação de um espaço urbano dinâmico na região Centro-Oeste, embora tenham ocorrido em momentos diferentes,

A reflexão a seguir tem como referên-cia temporal os seguintes períodos: 1930-1969 e 1970-1989. Os anos 90 serão obje-tos de estudo à parte, por se tratar de uma década marcada por políticas públicas de caráter mais restritivo e que confrontaram as das décadas anteriores, assumindo, por-tanto, funções explícitas de desmonte dos instrumentos de estruturação da economia regional e sinalizando o advento das políti-cas de recorte neoliberal.

Características socioeconômicas da ocupação do espaço centroestino

Conforme Moysés et alii (1999, pp. 3-4), a conformação geoespacial da região Centro-Oeste vem sofrendo modificações significati-vas ao longo das últimas décadas, como po-de ser observado na seqüência apresentada na Figura 1. Em 1940, a Região era forma-da pelos estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso; contudo, na década seguinte, passou a ser composta apenas pelos dois úl-timos. No Governo JK, foi criado o Distrito Federal (DF), iniciando-se a construção de Brasília. Em 1977 e 1989, os estados de Mato Grosso e Goiás, respectivamente, fo-ram subdivididos. Dessa forma, atualmente a Região Centro-Oeste é constituída pelos

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estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Gros-so do Sul e pelo Distrito Federal.

O Centro-Oeste brasileiro ocupa 18,8% do território nacional e possui uma popula-ção de mais de 11,5 milhões de habitantes, representando 6,9% da população total brasileira. Desse contingente, 86,7% resi-dem nas cidades, conforme Tabela 1.

Percebe-se que todos os estados da região têm sua população vivendo majori-

tariamente nas cidades. Esse grau eleva-do de urbanização vem ocorrendo a partir dos anos 1970. Até então, a população do Centro-Oeste era predominantemente ru-ral. Isso significa que a dinâmica econômica das cidades existentes era determinada pelo setor rural, cuja base econômica era cons-tituída por uma economia de subsistência, o que, em termos de renda, empobrecia a economia de toda a região.

Figura 1 - Conformação geoespacial da Região Centro-Oeste

Fonte: IBGE – Anuário estatístico 1996.

1940 1950

19891977

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Com base nos censos de 1940 a 1960, observa-se que o Centro-Oeste era uma região quase despovoada, considera-da, por Milton Santos (1996, p. 61), uma região virgem, um imenso vazio, pré-me-cânica, conforme Tabela 2. Até o final dos anos 60, menos de 3 milhões de pessoas habitavam toda a região, que apresentava uma densidade demográfica de 1,8 hab/km2, enquanto a população do país era de aproximadamente 70 milhões de brasilei-ros, com uma densidade demográfica de 8,2 hab/km2.

A partir de 1970, esse quadro alte-rou-se, tanto do ponto de vista econômico

quanto da urbanização. O Centro-Oeste passou a ser, em termos relativos, a região que mais cresceu economicamente em todo o país. Também a que mais se urbanizou. Os números confirmam que houve uma mu-dança radical no perfil de sua ocupação a partir desse ano. A densidade demográfica no Centro-Oeste teve crescimento assusta-dor em relação ao conjunto das outras re-giões do país. Destarte, enquanto a média de crescimento da densidade do Brasil, no período de 1960 a 2000, foi de 142,9%, a do Centro-Oeste foi de 301,7%, eviden-ciando a força do movimento migratório em direção à região.

Tabela 1 – População residente, urbana e rural do Centro-Oeste – 1991-2000

Fonte: IBGE – Censos.Elaboração: Prefeitura de Goiânia - Seplam/DPSE/DVPE/DVSE.

BrasilCO

Urbana Rural Total Urbanização1991 2000 1991 2000 1991 2000 1991 2000

Brasil 110.990.990 137.953.959 35.834.485 31.845.211 146.825.475 169.799.170 75,6 81,2

CO 7.663.122 10.092.976 1.764.479 1.543.752 9.427.601 11.636.728 81,3 86,7

MS 1.414.447 1.747.106 365.926 330.895 1.780.373 2.078.001 79,4 84,1

MT 1.485.110 1.987.726 542.121 516.627 2.027.231 2.504.353 73,3 79,4

GO 3.247.676 4.396.645 771.227 606.583 4.018.903 5.003.228 80,8 87,9

DF 1.515.889 1.961.499 85.205 89.647 1.601.094 2.051.146 94,7 95,6

Brasil/COÁrea(km2)

Densidade populacional – Total1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000

Brasil 8.547.404 4,8 6,1 8,2 10,9 13,9 17,2 19,92Centro-Oeste 1.612.077 0,8 1,1 1,8 3,1 4,7 5,8 7,23Mato Grosso do Sul 358.159 0,0 0,0 0,0 0,0 3,8 5,0 5,81Mato Grosso 906.807 0,5 0,6 1,0 1,8 1,3 2,2 2,77Goiás 341.290 2,4 3,6 5,6 8,6 11,3 11,8 14,69Distrito Federal 5.822 0,0 0,0 24,1 92,3 202,1 275,0 352,16

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais, Censos Demográfico.

Tabela 2 – Densidade demográfica da Região Centro-Oeste – 1940-2000

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Esses dados, para Milton Santos (1996, p. 61), mostram a região Centro-Oeste co-mo um espaço muito receptivo aos fenô-menos de urbanização, dado, segundo ele, o seu caráter de despovoamento. Por isso, descobre que a região:

Pode, assim, receber uma infra-estru-

tura nova, totalmente a serviço de uma

economia moderna, já que em seu ter-

ritório eram praticamente ausentes as

marcas dos precedentes sistemas técni-

cos. Desse modo, aí o novo vai dar-se

com maior velocidade e rentabilidade. E

é por isso que o Centro-Oeste conhece

uma taxa extremamente alta de urbani-

zação, podendo nele se instalar, de uma

só vez, toda a materialidade contem-

porânea indispensável a uma economia

exigente de movimento.

Outra interpretação, mais recente, não reconhece a região como um vazio econô-mico ou demográfico, na medida em que o ciclo mineratório possibilitou a emergência de núcleos urbanos necessários às ativida-des econômicas da mineração. Segundo estudo do IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur (2002, p. 163),

[...] não se tratava de uma área até en-

tão desocupada, ou um grande vazio,

como é suposto freqüentemente. Em

função do legado histórico, a região

dispunha de núcleos e experiências de

vida urbanas importantes, ainda que

dispersas, tipificando uma ocupação

descontínua e sustentada por uma ba-

se econômica tradicional, subproduto

característico da atividade mineratória

originária.

Esse estudo reconhece, portanto, que a região tinha como característica uma popu-lação rarefeita, o que lhe conferia um aden-samento pouco significativo e uma economia assentada em formas arcaicas de relações sociais (pecuária extensiva, agricultura de subsistência, regime de posse da terra e de trabalhadores agregados), o que implicava “uma relação socioeconômica com grande capacidade de resistência aos estímulos do mercado”.

Observando-se os dados da população em termos absolutos (Tabela 3), pode-se verificar que, até a década de 1960, a popu-lação do Centro-Oeste representava menos de 5% da população brasileira. A partir da década de 1970, esse percentual se ampliou, passando de 5,4% para 6,9%, conforme o Censo 2000. Verifica-se que 60,6% da po-pulação do Centro-Oeste está concentrada no estado de Goiás e no Distrito Federal.

De 1940 até o final dos anos 60, as taxas de crescimento populacional, apresen-tadas na Tabela 4, foram superiores às das demais regiões do país. A partir dos anos 70, continuaram ascendentes, porém em ín-dices menores. Cabe destacar que as taxas de crescimento do Centro-Oeste só perdem para o Norte do país, o que evidencia o pa-pel desempenhado pela região como “porta de passagem” para o processo de interiori-zação do desenvolvimento.

A partir de 1970, portanto, com exce-ção da região Norte, as taxas de crescimento anual da população total do Centro-Oeste foram superiores à taxa nacional e às das de-mais regiões do país. Ressalte-se que todos os estados do Centro-Oeste também tive-ram incremento populacional acima do con-junto das demais regiões do país, sendo que o Mato Grosso, puxado por aglomerações

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como Sinop e Alta Floresta, registrou taxa de crescimento geométrico de 5,4% no pe-ríodo 1980-91, reduzindo para 2,4% no período 1991-2000. Nesse período, Goiás e o Distrito Federal obtiveram as maiores ta-xas, 2,5% e 2,8% respectivamente.

Ora, manter taxas expressivas de cres-cimento populacional e sustentá-las duran-te um longo período (de 1950-1980) jus-tifica-se tanto pela existência de fatores de

expulsão existentes na dinâmica econômica capitalista de outras regiões, com efeitos perversos em uma economia como a brasi-leira, quanto de atração, existentes no Cen-tro-Oeste. Sem a combinação desses dois fa-tores, atração de um lado e expulsão de ou-tro, o “fenômeno” não teria transformado a região num espaço econômico e urbanizado, integrado à economia nacional e internacio-nal e integrador da região Norte.

Tabela 3 – População total residente na Região Centro-Oeste – 1940-2000

Brasil/CO 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000Brasil 41.236.315 51.944.397 70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 169.799.170Centro Oeste 1.258.679 1.736.965 2.942.992 5.073.259 7.544.795 9.427.601 11.636.728CO/Brasil (%) 3,1 3,3 4,2 5,4 6,3 6,4 6,9Mato G. do Sul 0 0 0 0 1.369.567 1.780.373 2.078.001Mato Grosso 432.265 522.044 889.539 1.597.090 1.138.691 2.027.231 2.504.353Goiás 826.414 1.214.921 1.913.289 2.938.677 3.859.602 4.018.903 5.003.228Distrito Federal 0 0 140.164 537.492 1.176.935 1.601.094 2.051.146

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Depto. de População e Indicadores Sociais. Censo Demográfico.

Tabela 4 – Taxa Média Geométrica de Crescimento Anual da População, segundo as Grandes Regiões e Unidades Federativas do Centro-Oeste 1940 - 2000

Fonte dos Dados Básicos: IBGE, Censos Demográficos de 1940 a 1991. Tabela extraída do Relatório MPO/SEPRE “Revisão das Estratégias de Desenvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação (1998)”. 1991/2000 – IBGE – Download – Censo/Dados do Universo

Brasil e regiões 1940/50 1950/60 1960/70 1970/80 1980/91 1991/00Brasil 2,3 3,0 2,9 2,5 1,9 1,6Norte 2,3 3,3 3,5 5,0 3,9 2,9Nordeste 2,3 2,1 2,4 2,1 1,8 1,3Sudeste 2,1 3,1 2,7 2,6 1,8 1,6Sul 3,2 4,1 3,5 1,4 1,4 1,4Centro-Oeste 3,4 5,4 5,6 4,1 3,0 2,4Mato G. do Sul – – – – 2,4 1,8Mato Grosso 1,9 5,5 6,0 -3,3 5,4 2,4Goiás 3,9 4,6 4,4 2,8 0,4 2,5Distrito Federal – – 14,4 8,2 2,8 2,8

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Cabe ressaltar que a existência desses fatores mostra a ineficiência de uma polí-tica nacional de desenvolvimento regional. Na verdade, políticas de desenvolvimento regional existiam e expressavam-se através de inúmeros programas e projetos que, des-de a segunda metade da década de 1950, foram implantados em diversas regiões do país. Tais políticas, todavia, eram imple-mentadas de forma isolada, não integradas, muito embora o discurso da integração na-cional sempre estivesse presente na retórica dos políticos. A ausência de uma política na-cional de integração econômica acabou por fortalecer o desenvolvimento econômico dos estados da região Sudeste do país, sobretu-do São Paulo, e, conforme Estevam (1998, p. 189), isso reforçou o caráter complemen-tar das economias das demais regiões.

Quanto aos fatores de expulsão e de atração, vale dizer que estão associados a um processo que combina a mobilidade da população, enquanto força propulsora das atividades econômicas, com os investimen-tos na modernização do aparato produtivo, tanto no campo quanto na cidade. Entretan-to, cabe analisar tudo isso sob outro enfo-que, também plausível, que coloca a ques-tão da mobilidade populacional num quadro amenizador de tensões localizadas em ou-tras regiões do país. Nesse sentido, a região Centro-Oeste acabou servindo de acomoda-ção para seguidos fluxos migratórios.

O recorte amenizador de tensões assu-mido pela região teve também o seu lado positivo, na medida em que grande parte do capital humano que se dirigiu para o Centro-Oeste contribuiu para incorporá-lo à dinâmica da economia brasileira. Esse processo, conforme Moysés (1999),4 trans-formou a região num espaço com grandes

potencialidades de crescimento econômico, pois a natureza continental do país permi-tia “empurrar” a fronteira agrícola para regiões “vazias”.

O fato é que o Centro-Oeste deixou de ser majoritariamente rural e passou a ser majoritariamente urbano a partir da década de 1970, exatamente quando o governo fe-deral fez-se presente através da injeção de grandes somas de recursos na região. Vale destacar que as ações governamentais, tra-duzidas em importantes aportes de recur-sos, a grande maioria a fundo perdido, por um lado, estimularam o seu desenvolvimen-to, sobretudo nas atividades agropastoris e agroindustriais; por outro, provocaram grandes impactos nos seus espaços urbano e rural, alterando o seu perfil socioespacial.

Não resta dúvida de que os investimen-tos públicos e privados alocados por conta dos incentivos e programas governamentais foram de extrema importância para o cresci-mento da região, na medida em que propor-cionaram um grande dinamismo econômico local, ao mesmo tempo em que assegura-ram a sua integração à economia nacional.5 No entanto, cabem algumas ponderações quanto aos efeitos decorrentes desse apor-te maciço de investimento, pois, se de um lado, ele deu um novo perfil econômico à re-gião, de outro, proporcionou também uma nova feição social às suas cidades, sobretudo àquelas que mais se desenvolveram.

Os fluxos migratórios ganharam sig-nificância, pois estavam revestidos de um componente de natureza eminentemente social, dado o grau de mobilidade que assu-miam, e de natureza econômica, na medida em que deslocavam não só sonhos e espe-ranças, mas também mão-de-obra barata que alimentava um processo de acumulação

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extremamente perverso. Um outro compo-nente era de caráter cultural, pois o proces-so de “desenraizamento”, para aqueles que haviam deixado para trás a convivência de um mundo marcado pela solidariedade, em que a vida, apesar de rudimentar era har-mônica, gerava, também, frustrações pelo que haviam perdido e medo do que viria pe-la frente, pois o seu mundo anterior desmo-ronara-se diante da modernização.

Na leitura de Borges (1999, pp. 8-9), esse processo também provocou transfor-mações na ordem social, alterando o padrão de sociabilidade da população local, porque mantinha a predominância do sistema fun-diário, assentado em grandes propriedades rurais que se tornaram ainda maiores, de-salojando seus habitantes, que se desloca-ram para as periferias das cidades próximas, perdendo, conseqüentemente, o seu vínculo empregatício.

Não se pode ignorar que o conjunto de ações exógenas já citadas contribuiu também para acelerar o movimento migratório e, conseqüentemente, adensar o Centro-Oeste. Basta verificar os dados sobre a dinâmica populacional para se verificar que a popula-ção total e urbana alcançara, já a partir dos anos 50, taxas expressivas de crescimento médio superiores à média nacional e à das demais regiões vistas isoladamente. Isso significa que os propósitos da Marcha para o Oeste, na perspectiva de se interiorizar o desenvolvimento, pelo menos no Centro-Oeste, foram atingidos.

De fato, esse contexto tipicamente eco-nômico possibilitou a formação de uma re-de urbana que passou a desempenhar papel importante na conformação do urbano no Centro-Oeste, em que o setor terciário era responsável por um consumo moderno e

diversificado. Porém, essa conformação as-sumiu também um caráter excludente. Isso porque, a partir dos anos 70, a moderniza-ção da agricultura importou não só máqui-nas, equipamentos e commodities (sementes de soja e de milho) tecnologicamente mais modernos, mas também migrantes com um perfil diferente, constituídos por “paulistas, paranaenses e gaúchos, em geral portado-res de capital e com experiência na atividade agrícola” (IPEA, IBGE, Unicamp/IE/Nesur, 2002, p. 170).

Se, por um lado, as práticas moder-nas possibilitaram o rápido desenvolvimen-to de grandes áreas do Centro-Oeste, por outro, trouxeram problemas de nature-za social que foram desaguar nas médias e grandes cidades. Em outros termos, a combinação de fatores tecnológicos aliados à experiência em agricultura de exportação e os investimentos públicos produziram, de fato, um novo modelo que resultou num processo de esvaziamento do campo e con-centrou nas cidades o excedente rural que fora expulso.

Observe-se a perversidade desse novo modo de acumulação: a entrada de capital moderno na agricultura, voltado para a pro-dução de commodities, substituiu não só os despossuídos assentados na fase anterior (até os anos 60), mas também a produção tradicional como arroz, feijão, milho e man-dioca, necessária à economia de subsistên-cia, mas também importante para minimizar o custo da reprodução da força de trabalho nas cidades. Nesse caso, os despossuídos e os produtos tradicionais constituíam fatores de produção típicos da economia de subsis-tência, que antes assumiam um caráter soli-dário, mas perderam sentido no novo con-texto econômico. Nessa linha de raciocínio, é

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oportuna a argumentação de Borges (1999, p. 8) de que, com os incentivos e financia-mentos governamentais, a produção no campo passou a atuar sob a lógica capita-lista no complexo grãos e carne, com bus-ca crescentes de produtividade, voltando-se prioritariamente à exportação.

Conformação de uma rede urbana concentrada

O processo de desenvolvimento urbano do Centro-Oeste revestiu-se de uma dinâmica contraditória marcante. De um território pouco adensado e com uma base econômi-ca extremamente precária, evoluiu para um processo acelerado de urbanização sustenta-do por uma economia voltada para o abas-tecimento do mercado externo. A economia, até o final dos anos 60, atraía um tipo de mão-de-obra que demandava tecnologia de baixo custo e, portanto, não era poupadora de força de trabalho. Os migrantes que para cá se dirigiam estavam ligados às atividades de natureza tradicional e eram basicamente constituídos de trabalhadores despojados de meios de produção.

Com o advento da modernização da agricultura e a intensificação industrial das economias urbanas, num quadro de de-pendência, alterou-se o perfil do migrante. Entraram em cena os migrantes vindos do sul do país, detentores de capital, de novos conhecimentos e apoiados por incentivos governamentais. A combinação de capital, trabalho mais qualificado para lidar com equipamentos modernos e incentivos fiscais engendraram uma nova economia, voltada para o mercado externo.

Esse tipo de economia tem suas espe-cificidades assentadas numa dinâmica que exige, de um lado, cada vez mais capital (ca-pital inovado) e, de outro, cada vez menos mão-de-obra (especialmente qualificada) e, por conseqüência, novos produtos em que se incorporam cada vez mais trabalho mor-to em detrimento do trabalho vivo.

As mudanças que ocorreram no pro-cesso de reprodução do capital na região fo-ram radicais, pois evoluíram de um processo de acumulação simples para um processo de acumulação ampliada, ou seja, se antes pro-duziam valores de uso, passaram a produzir praticamente valores de troca. Isso não sig-nifica que sua economia tenha sido fechada, havendo comercialização apenas entre os seus próprios membros e nunca com o ex-terior, mas sim que o porte de sua produção e, conseqüentemente, de sua comercializa-ção (ou seja, as transações comerciais) foi insuficiente para assegurar a continuidade de um processo ininterrupto de produção e de consumo de escala.

Em outros termos, a produção ante-rior tinha como objetivo principal abaste-cer a própria região e, muito raramente, o mercado externo, já que produzia excedente apenas para os mercados locais, portanto, insuficientes para atender à demanda exter-na. Isso permite concluir que as disparidades regionais não seriam superadas enquanto os investimentos públicos se dirigissem predo-minantemente para o grande capital.

No que se refere ao desenvolvimento da produção para o mercado externo, os dados da Tabela 5 ajudam a entender essa dinâmica, na medida em que mostram o crescimento expressivo das exportações de excedentes do Centro-Oeste pós-1970, so-bretudo de produtos semimanufaturados e

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211manufaturados. Esses produtos são resul-tado dos novos processos produtivos im-plantados, advindos dos vários complexos agroindustriais de grãos-carnes, evidencian-do o amadurecimento econômico da região no sentido de cumprir o papel de que fora incumbida como região de fronteira, ou se-ja, produzir excedentes para exportação e, com isso, contribuir para o equilíbrio da ba-lança comercial brasileira.

A mudança do perfil econômico da re-gião, evidenciada pelo comportamento das exportações, trouxe elementos que altera-ram a dinâmica das cidades e seus respecti-vos funcionamentos. O processo de urbani-zação, visto sob o aspecto populacional, foi extremamente acelerado em todo o Centro-Oeste, principalmente nas cidades médias e grandes. Num primeiro momento, elas tiveram sua população aumentada em fun-ção dos vários fluxos migratórios internos e

externos e, num segundo momento, funcio-naram como “imãs”, atraindo para si e para seus respectivos entornos grandes contin-gentes populacionais, já como fruto de uma mobilidade mais interna do que externa.6

Essa dinâmica resultou num processo de “urbanização concentrada”, o que im-plicou a existência de poucas cidades com população elevada, ou seja, apenas 2,6 dos municípios possuem população superior a 100 mil habitantes. No entanto, estes, jun-tos, detêm metade do contingente popula-cional da região (49,9%), lembrando que nesse quantitativo existem duas capitais: Brasília, capital nacional, e Goiânia, capital regional, ambas com população acima de 1 milhão de habitantes. No outro extremo, encontram-se 32,1% dos municípios com população de até 3 mil habitantes, onde re-sidem apenas 4,2% da população. Se, por um lado, esses números revelam a força de

Tabela 5 – Taxa média anual de crescimento das exportações brasileirasno período 1985/95, por regiões (em %)

Brasil e regiões Básicos Semi-manufaturados Manufaturados Total

Brasil 3,45 9,58 3,86 4,62Região Norte 9,62 23,59 5,13 12,7Região Nordeste -1,05 8,28 2,4 3,01Região Sudeste 3,54 8,28 3,26 4,03Região Sul 2,43 9,02 6,22 5,01Região Centro-Oeste 16,48 20,85 11,99 16,82Mato Grosso 22,23 48,08 9,02 20,82Mato G. do Sul 19,61 39,29 15,21 20,88Goiás 8,76 10,96 21,57 10,39Distrito Federal -5,72 – 2,37 6,49

Fonte dos Dados Básicos: Ministério da Indústria e Comércio e do Turismo. Elaboração: Atlas Regional das Desigualdades. IPEA/DIPES, IBGE. Obs.: No campo onde não constam valores, não foi possível calcular a taxa de crescimento, pois, em alguns anos, não ocorreram exportações. Tabela extraída do Relatório MPO/SEPRE “Revisão das Estratégias de De-senvolvimento do Centro-Oeste: Relatório Final da Coordenação (1998)”.

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atração das médias e grandes cidades, de outro, fica evidente a incapacidade das po-líticas locais e regionais no sentido de reter nos municípios menores sua população. Em outros termos, a modernização agrícola dos anos 70 desencadeou um processo de de-sertificação populacional que afetou grande parte dos municípios do Centro-Oeste.

Ressalte-se que no Centro-Oeste, se-gundo o Censo 2000, existem 446 municí-pios, sendo: 242 no estado de Goiás, onde residem 43,0% da população da região; 77 no Mato Grosso do Sul, com 17,9% da população; 126 no estado de Mato Grosso, com 28,3% da população e o Distrito Fede-ral, com 17,6% da população centroestina.

Outro aspecto a ser considerado é que, nos municípios de porte médio, as possibili-dades de vida mais digna e com menos de-sigualdades sociais são maiores. Nesse sen-tido, políticas públicas voltadas para muni-cípios desse porte deveriam ocupar priorita-riamente a agenda dos governantes, com o objetivo de fortalecer sua economia e, com

isso, reduzir a pressão migratória sobre os municípios maiores.

Já as cidades pequenas, com menos de 20 mil habitantes, têm sistematicamente ce-dido sua população para as cidades médias, e estas, para as cidades grandes. Mesmo os municípios com menos de 100 mil habitan-tes possuem capacidade limitada de reten-ção de seus moradores, certamente por não possuírem uma rede de serviços e de comér-cio capaz de atender às suas expectativas.

Dentre as cidades mais receptoras, encontram-se as que estão na faixa de 100 a 500 mil habitantes. Essas cidades recebe-ram população da própria região e de ou-tras regiões do país. No entanto, o topo da “urbanização concentrada” está também nas cidades com população acima de 500 mil ha-bitantes e menos de 1 milhão. Nesse pata-mar, apenas duas cidades, Cuiabá (com me-nos de 483 mil) e Campo Grande (com 663 mil). A Região Metropolitana de Goiânia e a Região de Desenvolvimento Integrado do Entorno (RIDE-Brasília) possuem, juntas,

Tabela 6 – Distribuição dos municípios do Centro-Oestesegundo as classes da população por Estado (GO, MT, MS e DF – 2000)

(em 1.000 habitantes)

Classes de população

Distribuição por Estados População por Estado Nº demunicípios População total

MS MT GO DF MS MT GO DF Nº % Resi-dentes %

até 3 mil 0 9 40 – 0,0 20,5 96,9 – 49 11,0 117,4 1,0de 3 a 5 mil 8 22 64 – 33,5 89,2 246,1 – 94 21,1 368,9 3,2de 5 a 10mil 20 34 55 – 146,9 250,1 390,9 – 109 24,4 787,9 6,8de 10 a 20 mil 28 39 36 – 394,5 554,7 499,4 – 103 23,1 1.448,7 12,4de 20 a 50 mil 16 15 31 – 438,8 469,2 959,7 – 62 13,9 1.867,8 16,1de 50 a 100 mil 3 4 10 – 235,7 271,6 729,3 – 17 3,8 1.236,6 10,6de 100 a 500 mil 1 3 5 – 164,9 848,9 987,9 – 9 2,0 2.001,7 17,2de 500 a 1 milhão 1 0 0 – 663,6 0,0 0,0 – 1 0,2 663,6 5,7mais de 1 milhão 0 0 1 1 0,0 0,0 1.093,0 2.051,1 2 0,4 3.144,2 27,0Total 77 126 242 1 2.078,0 2.504,4 5.003,2 2.051,1 446 100 11.636,7 100

Fonte: IBGE – Censo demográfico de 2000.

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mais de 4,5 milhões, ou seja, mais de 1/3 da população (39,5%) de todo o Centro-Oeste. A concentração fica mais evidente quando se observa a população residente urbana, em que aproximadamente 65% moram em Goiás e no Distrito Federal.

Quanto à evolução da população urbana no Centro-Oeste, verifica-se que, com exce-ção de Mato Grosso, a taxa de crescimento é superior à média nacional. As maiores taxas de crescimento ocorreram em Goiás no pe-ríodo de 1950-70, devido à construção de Goiânia e de Brasília, e no Mato Grosso no período de 1980-91. A explicação tem a ver com a anexação de parte do estado do Ma-to Grosso ao recém-criado estado do Mato Grosso do Sul.

Todo esse processo resultou na eleva-ção da taxa de urbanização da região, que passou de 21,5% em 1940, 48% em 1970 para 86,7% em 2000, sendo que no Distrito Federal essa taxa atinge 95,6% (Tabela 1).

Obviamente, a população rural, em termos absolutos, vem decrescendo a taxas elevadas, refletindo um processo rápido de deslocamento da população rural para as periferias das cidades pequenas, médias e grandes.

Vale destacar que as ações governamen-tais, de um lado, estimularam o desenvol-vimento da região, sobretudo as atividades agropastoris e agroindustriais a partir dos anos 70; de outro lado, porém, provocaram grandes impactos nos espaços urbano e ru-ral, alterando sobremaneira o seu perfil.

O conjunto dos dados disponibilizado para a região dá a medida do quanto a rede urbana no Centro-Oeste está concentrada em poucas cidades, onde as relações se dão de forma verticalizada e hierarquizada. Até os anos 60, as cidades assumiam um perfil

mais disperso, apesar da existência de cen-tros polarizadores como as capitais e outras aglomerações urbanas de menor porte, que foram importantes enquanto espaço estra-tégico para alavancar a fase seguinte. A par-tir dos anos 70, o perfil da região alterou-se com o crescimento acelerado de algumas cidades e a dinamização de centros urbanos de pequeno porte existentes em seu entor-no, ensejando o surgimento de uma rede ur-bana sem a construção de mecanismos que assegurassem a articulação e a complemen-taridade entre as cidades (ver Michel Roche-fort, 1998, p. 19).

A idéia de “rede urbana” estimula pensar na possibilidade concreta de que é necessário que as cidades se articulem em função de objetivos comuns, criando verda-deiras “redes de cidades”, o que implica ne-cessariamente romper com as formas ver-ticalizadas e hierarquizadas ainda hoje pre-dominantes e evoluir para formas que pri-vilegiem o poder sinergético que há nessas “redes”, em maior escala, e nas cidades, em escala menor. Isso significa que as cidades, ao invés de competirem entre si, devem es-tabelecer relações de complementaridade, de modo que “o específico” de cada cidade da rede seja potencializado e não sufocado, neutralizado.7

A Tabela 7 mostra em quais centros urbanos está concentrada a grande maio-ria da população total do Centro-Oeste. Observa-se que 57,4% estão concentrados em apenas 40 municípios, o que correspon-de a 9,0% dos 446 municípios da região. Só as capitais dos estados abrigam mais de 4 milhões de habitantes, correspondendo a 36,9% da população total do Centro-Oeste. Outro espaço de grande concentração po-pulacional é o denominado eixo Goiânia-

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Anápolis-Brasília, com 33 municípios, consi-derando os entornos de Goiânia e Brasília. Nesse eixo, concentram-se 4,8 milhões de pessoas, correspondendo a 42% da popu-lação do Centro-Oeste, portanto, mais de 1/3. Se, por um lado, a concentração em cidades disponibiliza mão-de-obra abundan-te e barata, por outro, por ser abundante e mal remunerada, gera problemas urbanos de toda ordem.

Assim, Goiânia e Brasília produziram periferias internas nos seus respectivos ter-ritórios e no entorno de suas respectivas áreas de influência que funcionam como “tapete” para onde se varre a sujeira que incomoda e desvirtua a beleza das chama-das “áreas nobres” - as manchas de pobres

que emolduram a paisagem urbana e com-prometem o visual da cidade. Os espaços do “entorno”, ou seja, das Regiões Metropoli-tanas, são formados pela incapacidade de os núcleos centrais absorverem a pressão das correntes migratórias.

Nesse sentido, acabam funcionando co-mo “biombos” para reduzir as pressões so-bre as áreas centrais. Entretanto, o que se verifica é que, nas Regiões Metropolitanas, também estão se formando espaços ocupa-dos por enormes “manchas de pobrezas” ca-da vez mais inseridas num processo crescen-te de segregação social, em que imperam a insegurança, a criminalidade incontrolável, o alcoolismo, os desajustes familiares e o de-semprego crescente.

Tabela 7 – Principais aglomerações urbanas do Centro-Oeste brasileiro(acima de 100 mil habitantes)

Aglomerações urbanas Quantidadede municípios

População(2000)

% em relação à população total

1. Metropolitana Nacional de Brasília (Ride) 22 2.958.196 25,42. Metropolitana Regional de Goiânia 11 1.639.516 14,1 Sub-total (1+2) 33 4.597.712 39,53. Não Metropolitana de Cuiabá + Várzea Grande 2 698.644 6,04. Centro urbano isolado de Campo Grande (MS) 1 663.621 5,7 Sub-total (1+2+3+4) 36 5.959.977 51,25. Centro urbano isolado de Anápolis (GO) 1 288.085 2,56. Centro urbano isolado de Dourados (MS) 1 164.949 1,47. Centro urbano isolado de Rondonópolis (MT) 1 150.227 1,38. Centro urbano isolado de Rio Verde )GO) 1 116.552 1,0 Sub-total (5+6+7+8) 4 719.813 6,2Total geral (1 a 8) 40 6.679.790 57,4População do Centro-Oeste – 11.636.728 100,0População urbana total do C.O. – 10.092.976 86,7Total de municípios envolvidos 40 – –

Fonte: Relatório VI da pesquisa IPEA/Unicamp-IE-Nesur/IBGE (Tabela VIII) – Caracterização e Tendências da Rede Urbana no Brasil/1999 – (Dados organizados e atualizados pelo autor).

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Considerações finais

Ousamos enquadrar a ocupação dos cer-rados no Centro-Oeste como resultado da transferência de tecnologia podre dos cen-tros mais devolvidos para a periferia do sistema capitalista. Essa ousadia está na constatação de que, nos países de origem do grande capital, existe uma grande in-tolerância quanto ao uso de produtos que podem causar algum dano à saúde de quem os maneja, como também de quem os con-some. Essa intolerância vem tanto dos con-sumidores quanto das autoridades ligadas à saúde humana. Na medida em que o uso desses produtos é rigorosamente controla-do, até mesmo proibido em seus países de origem, a tendência do poder econômico é buscar novos espaços onde eles possam ser utilizados com o mínimo de controle, tanto dos governos como dos setores da socie-dade civil.

O processo de ocupação dos cerrados no Centro-Oeste brasileiro não é recente, remontando aos tempos em que a presen-ça humana se fazia presente por meio dos caçadores e coletores de frutos e de muitos outros alimentos próprios dos cerrados. Ca-be salientar que esse processo de ocupação primitivo não implicava ameaças ao bioma cerrado, pois havia sintonia entre o homem e a natureza. A extração dos produtos na-turais não tinha caráter econômico, desti-nando-se exclusivamente à sobrevivência de seus habitantes.

A dinâmica econômica do Centro-Oeste assume caráter perverso, sobretudo a par-tir dos anos 70, quando o Estado brasileiro (era dos governos militares) decide aprofun-dar a lógica da interiorização do desenvol-

vimento, iniciado em meados dos anos 30 com o governo Vargas. São vários os pro-cessos humanos de ocupação dos cerrados com fins econômicos: a exploração do ouro e de pedras preciosas (século XVIII); a cria-ção extensiva de gado (a partir do século XIX) e, mais recentemente, a produção de commodities, processos esses que conso-lidaram a presença humana nos espaços urbanos.

Por que o período pós 1970 é consi-derado o mais devastador do ponto de vista ambiental e social? Porque as atividades pro-dutivas, não só no Centro-Oeste, mas em to-do o país, a partir da década de 1970 passam a se orientar por uma dinâmica econômica que procura a maximização dos investimen-tos a todo custo. É o período da entroniza-ção real do capitalismo na sociedade brasilei-ra, quando este, já amadurecido, encontra-se pronto para sua inserção internacional. Para essa inserção, mais do que nunca, existe a necessidade de se abrirem novas fronteiras e modernizar a produção e sua forma de orga-nização política, social e ideológica.

As conseqüências ambientais que resul-tam da forma predatória de como o capital se apropria das terras dos cerrado no Cen-tro-Oeste são muitas. Nas décadas de 1970 e 1980, houve o deslocamento da fronteira agrícola para o Centro-Oeste, com base em desmatamentos, queimadas, uso de fertili-zantes químicos e agrotóxicos, cujos efeitos antrópicos modificam as áreas dos cerrado, tendo como conseqüência o aparecimento de grandes voçorocas, o assoreamento dos cursos d’água e o envenenamento de ecossis-temas. Essa decisão de expandir as ativida-des agrícolas exigiu o uso indiscriminado de agrotóxicos que, por sua vez, contaminam o solo e as águas e comprometem mais ainda

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as bacias hidrográficas já ameaçadas em decorrência de sua exploração exaustiva pa-ra uso da agricultura irrigada. Atualmente, cerca de 70% do cerrado é utilizado para a agropecuária, principalmente para o cultivo da soja.

Somente a partir da década de 1990 é que os cerrados passam a ocupar a agenda ambiental, primeiro nas academias e, poste-riormente, nas instituições governamentais. Nesse sentido, governos e setores organiza-dos da sociedade começam a debater sobre como conservar o que restou do cerrado,8 com a finalidade de buscar tecnologias em-basadas no uso adequado dos recursos hí-dricos, na extração de produtos vegetais na-tivos, nos criadouros de animais silvestres, no ecoturismo e em outras iniciativas que possibilitem um modelo de desenvolvimento sustentável e justo.9

Lamentavelmente, os cerrados con-tinuam sendo um bioma ainda esquecido pelos brasileiros, até mesmo pelas pessoas que habitam o Centro-Oeste e que vêem com bons olhos o processo de desenvolvi-mento pelo qual está passando. Ou seja, o próprio homem do Centro-Oeste não leva em consideração a biodiversidade presente nesse bioma e as ameaças que pairam sobre ele com a perspectiva do “progresso”. No dizer de Corrêa (2000), “durante a constru-ção de Brasília, não houve preocupação com a preservação do cerrado: afinal, ali estava a ‘vegetação lixo do Brasil’, que precisava ser eliminada para ceder espaço à urbaniza-ção”. Palavras duras, mas que expressam a concepção que os empreendedores tinham dos cerrados e que, abruptamente, a partir dos anos 70, foi se alterando, tendo como base os estudos da Embrapa que sinaliza-vam para o seu aproveitamento produtivo.

O fato é que, em pouco menos de qua-renta anos, a paisagem dos cerrados no Centro-Oeste mudou radicalmente em fun-ção dos interesses estruturais do desenvol-vimento econômico brasileiro. Para isso, o Estado brasileiro formulou políticas de in-vestimentos que implicaram a implantação de infra-estrutura e disponibilizaram fartas linhas de crédito, muitas, inclusive, a fundo perdido. Ressalte-se que tudo isso foi leva-do a efeito sem se levar em consideração as conseqüências ambientais. A esse respeito, Corrêa (ibid.), conclui que,

A efetivação de medidas legais como a

criação de reservas legais e promoção

de cuidados contra a erosão no ma-

nejo do solo pode servir de justificati-

vas para a concretização de atividades

que, apesar dessas medidas, continuam

sendo impactantes ambientalmente. O

Prodecer10 é um exemplo dessa rea-

lidade. Ao mesmo tempo em que os

seus planejadores admitem a ocorrência

dos danos ambientais provocados pela

agricultura moderna no Cerrado, este

Programa tem sido um indutor da ex-

pansão da fronteira agrícola, a fim de

contribuir com a ampliação da oferta

de grãos nos mercados mundiais. No

entanto, pouca atenção foi destinada ao

impacto ocasionado ao meio ambiente.

Em decorrência, houve a perda de parte

da biodiversidade, cujas potencialidades

econômica, científica e medicinal não

são nem sequer totalmente conhecidas.

Embora não exista uma avaliação global

sobre os danos provenientes dessa rápi-

da incorporação produtiva, que se ini-

ciou nos anos setenta é possível afirmar

que esta proporcionou desmatamentos

constantes, compactação e erosão dos

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solos, contaminação das águas por

agrotóxicos, destruição das matas de

galerias, invasão de plantas e faunas

exóticas alterando o equilíbrio dinâmico

do ecossistema.

Os efeitos ambientais desse processo de ocupação perversa, em decorrência das

atividades humanas, permanecem castigan-do o território centroestino até os dias de hoje, contraditoriamente, como constata Correa, quando observa que há “desequilí-brio, francamente favorável a alguns seto-res da sociedade e desfavorável para o meio ambiente”.

Aristides MoysésEconomista pela Universidade Católica de Goiás. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Ciências Econômi-cas e Coordenador do Mestrado em Desenvolvimento e Planejamento Territorial da Univer-sidade Católica de Goiás. Professor do Mestrado em Ecologia e Produção Sustentável. Coor-denador e Pesquisador do Observatório das Metrópoles: Núcleo Goiânia/Instituto do Milênio-CNPq. Técnico do Departamento de Ordenação Socioeconômico da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Goiânia (Goiás, Brasil)[email protected]

Eduardo Rodrigues da SilvaEconomista pela Universidade Católica de Goiás. Mestre e Doutorando em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Professor e Diretor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Católica de Goiás. Pesquisador do Observatório das Metrópoles: Núcleo Goiânia/Instituto do Milênio-CNPq (Goiás, Brasil). [email protected]

Notas

* Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional da Anpur – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ST 2 - Rede urbana e estrutura territorial em Belém, Pará – 21 a 25 de maio de 2007, com o título “Ocupação e urba-nização dos Cerrados do Centro-Oeste e a formação de uma Rede urbana concentrada e desigual”.

(1) Os cerrados, segundo Abramovay (1999), ocupam um quarto do território brasileiro, num total superior a 200 milhões de hectares. Desse total, 155 milhões de hectares estão no Planalto Central e 38,8 milhões de hectares no Nordeste (Freire, 1997, p. 201), dos quais a maior parte (30,3 milhões de hectares) na região Meio-Norte; 43,3% da superfície do Ma-ranhão é composta de cerrados e 64,7% da do Piauí (Rocha, 1997, p. 63). Existem áreas de cerrados ainda em Rondônia, Roraima, Amapá e Pará, bem como em São Paulo.

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(2) Dentre as técnicas de irrigações utilizadas na agricultura moderna, cujos objetivos princi-pais são o fornecimento controlado de água e a fertilização do solo com a deposição de elementos necessários para torná-lo mais produtivo, destaca-se o Pivô Central. Trata-se de um sistema de tubulação metálica com aspersores, montado sobre uma estrutura metálica com rodas, sendo uma das extremidades o ponto central (ponto do pivô) de onde é bom-beada água, fertilizantes, inseticidas e fungicidas. Esse sistema se move como hélice e é capaz de irrigar áreas ente 50 e 130 hectares

(3) O ITS estima que mais de 300 cursos d’água secaram no Centro-Oeste em conseqüência da forma de ocupação do cerrado.

(4) O estudo “Desenvolvimento urbano do Centro-Oeste” é fruto de esforço coletivo do qual participaram Aristides Moysés, Eduardo Rodrigues da Silva, Fernando César de Macedo Mota e Zoraide Amarante Itapura de Miranda.

(5) “Grande parte deste dinamismo está associado às características de fronteira aberta do Cen-tro-Oeste, à sua extensão territorial e às potencialidades naturais e sociais de sua região, tais como a vasta vegetação típica do cerrado, recursos hídricos em abundância, recur-sos minerais, taxas crescentes de população alavancadas por um fluxo migratório intenso” (Moysés et alii, 1999).

(6) Esse fenômeno foi chamado de “desconcentração urbana” por vários autores, dentre eles Luiz César de Queiroz Ribeiro (1994).

(7) Com a emergência das cidades globais, fala-se hoje em rede de cidades globais. Trata-se de um espaço em que um conjunto de atividades econômicas e de integração sociocultural ocorre em tempo real, graças ao avanço da tecnologia computacional e das telecomuni-cações. A esse respeito, existe vasta literatura. Nesse novo contexto, a cidade ocupa papel central. Autores como Sassen (1991; 1998; 1999), Borja (1998), Castells (1999), Ascher (1998), Ianni (1994), Hall (1998), de leitura obrigatória, focalizam a cidade como o novo ponto cardeal das questões urbanas.

(8) Não há consenso entre os estudiosos do bioma cerrado, para os quais as áreas de cerrados preservadas variam de 20 a 50%; na década de 1990 e nos anos 2000, a situação vem se agravando com o uso intensivo de tecnologias defensivas para os interesses econômicos, mas agressivas para o meio ambiente. Entretanto, há consenso quanto às possibilidades de seu desaparecimento no futuro, caso as reservas ainda existentes não sejam preservadas.

(9) No caso de regiões onde ocorreu desmatamento para permitir a expansão da agricultura, a recuperação exige a intervenção humana, ou seja, o replantio de espécies nativas do cerra-do. Para recuperar totalmente essas áreas a estimativa é de 50 a 100 anos.

(10) O Prodecer (Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para o Desenvolvimento dos Cer-rados) foi idealizado em 1974. Os anos de 1974 a 1977 foram de entendimentos, acordos e amadurecimento do projeto, para então, em 1978, dar início concreto às atividades no cerrado, local que até então era considerado impróprio para a agricultura. Os recursos ja-poneses (financiamento) vieram de fontes institucionais do governo e dos bancos privados, liderados pelo Long Term Credit Bank, que são os co-financiadores. Os projetos-piloto foram financiados pela Japan International Cooperation Agency (JICA) e o projeto de ex-pansão pelo Overseas Economic Cooperation Found (OECF). disponível em: http://www.asiayargentina.com/usp-05.htm - Acessado em 20.7.2008

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Recebido em maio/2008Aprovado em ago/2008

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Reflexões sobre o estudoda proliferação de condomíniosfechados: críticas e sugestões

Hélio Rodrigues de Oliveira Jr.

Resumo O objetivo do trabalho é pensar as relações en-tre a cidade e a proliferação de condomínios fechados. Para tanto, procura desenvolver ar-gumentos sobre o modo como a cidade é re-tratada por parcela significativa do pensamento social, bem como sugerir a pertinência de pen-sar de outro modo as relações entre cultura de consumo, estilos de vida, segregação, violência e espaço construído, com o intuito de compre-ender a cidade e a proliferação de condomínios fechados.

Palavras-chave: condomínios fechados; cultu-ra de consumo; violência; segregação; relações sociais; cidade.

AbstractThe purpose of this paper is to think about the relation between the city and the spread of gated communities throughout it. To achieve this, it develops arguments on the way the city is portrayed by a significant part of the social thought, and suggests the pertinence of reflecting, in a different perspective, on the relations between culture of consumption, lifestyles, segregation, violence and constructed space, with the aim of understanding the city and the spread of gated communities.

Keywords: gated communities; culture of consumption; violence; segregation; social relations; city.

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Introdução

De modo geral, explorar um pouco mais o quadro de análises sobre a proliferação de condomínios fechados vis-à-vis as formas de consumo conspícuo e a exacerbação da violência (real e imaginária), na sociedade contemporânea, é uma opção que se justifi-ca à medida que se tomam como evidentes as relações entre tais processos. Chama a atenção, entretanto, que, na literatura vol-tada à problemática urbana, o tratamento dispensado às relações existentes entre o consumo focado em bens codificados como algo a que se confere status social elevado – como os condomínios fechados – e a violên-cia, no contexto das grandes cidades, ignore aspectos fundamentais no tocante às positi-vidades que tais relações resguardam. Dito de outro modo, as análises que buscam sua compreensão se satisfazem parcamente com o apontamento de nexos causais entre variá-veis já bastante conhecidas, retratando a vio-lência como expressão máxima da desordem e do desequilíbrio de uma sociedade e os condomínios fechados como solução elitista e resposta perversa a uma perturbação engen-drada no contexto social, visto que, dentre outras coisas, retroalimentam ou autoforta-lecem os processos que os informam.1

Decerto, há que haver algum conforto em desmascarar a realidade dos fatos, em descobrir que, sob as inúmeras facetas pe-las quais se considera um mesmo processo, o problema fundamental da manutenção do status quo econômico e social subsiste. Nesse sentido, quando se observa a vio-lência, há também que se reconfortar uma consciência já cauterizada, porém, capaz de revelar algo – a miséria que ela encerra, a

exclusão que a alimenta – e, uma vez mais, se satisfazer com isso. Mas é preciso se in-quietar diante de conclusões já apaziguadas e realizar seu trabalho em negativo.

Se é verdade que os condomínios fe-chados conciliam habitação a um elevado pa-drão de conforto, de qualidade de vida e de segurança, bem como reiteram uma certa percepção da localização espacial da riqueza e da pobreza, logo, da segurança e do me-do, é preciso que se discuta em que medida os fatores que constituem o processo de sua proliferação são estimulados por posturas individuais que, a um só tempo, são exten-sivas aos grupos sociais e potencialmente reversíveis às pessoas que compartilham situações comuns, que freqüentam umas às outras, não sendo, para tanto, suficiente a imagem de sua reintegração social a partir de um caráter politicamente reconciliado e reconstituído. É preciso também que se dis-cuta aquilo que, em sua variante violenta, expressa, sobretudo, vida social e, por isso, se torna condição de movimento, proporcio-na mudança e gera transformações nos es-paços das cidades.

À luz das proposições clássicas voltadas para a cidade e das recentes contribuições que integram o debate sobre as possibilida-des por ela engendradas, o presente traba-lho aborda aspectos conceituais e analíticos considerados necessários à compreensão do fenômeno de proliferação de formas espa-ciais segregatórias – como os condomínios fechados –, tendo em vista as relações en-tre segregação, violência, estilos de vida, cultura de consumo e espaço construído, na contemporaneidade. Busca-se, desse modo, compreender a extensão e os senti-dos dessas configurações socioespaciais que invadem paulatinamente a cidade, a partir

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reflexões sobre o estudo da proliferação de condomínios fechados: críticas e sugestões

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de uma sensibilidade que se abre para o que diversamente a informa, mesmo que de um modo aparentemente avesso, agressivo ou, ainda, negativo.

Notas preliminares sobre referências analíticas e questões conceituais

É notório o fato de que, ao se voltarem pa-ra a proliferação de condomínios fechados, numerosas análises o integram ao debate sobre as cidades como uma das evidências empíricas mais recentes da difusão de um comportamento elitista e asséptico em rela-ção a tudo que o espaço público representa e acolhe.2 Nesse sentido, ao se projetarem co-mo opção de moradia para os estratos mais abastados, os condomínios fechados consoli-dam uma imagem bastante coesa de grupos sociais que, efetivamente, têm condições de adquirir e de morar nas áreas mais caras da cidade, sejam aquelas que originariamente concentram a alta renda, sejam aquelas que mais recentemente passam a ser ocupadas por empreendimentos desse tipo – muitas vezes, confirmando e demonstrando o des-locamento das elites dentro de um mesmo vetor espacial.3

Note-se, entretanto, que essa perspec-tiva analítica supõe uma sutil inversão do quadro de referências estabelecido pela lite-ratura especializada.

Não raro, as análises que têm como fo co os condomínios fechados partem da idéia de que a sociedade experimenta as con se qüên cias do chamado retraimento social. Com efeito, buscam demonstrar que o recrudescimento da intimidade implica o

esvaziamento de sentido de tudo aquilo que se entende como público e, por intermédio de recursos lógicos de coerência, procuram assimilar à cidade a vulgaridade das postu-ras restritivas e preventivas ao contato com estranhos, as manifestações reclusas de sen-timentos, de aspirações, de afetividades, etc. Desse modo, a cidade – outrora considerada o palco privilegiado para a exposição e o en-contro com a alteridade – passa a refletir em seus espaços mais diversos as imagens do isolamento físico e social que, por sua vez, denotam posturas e decisões intimis-tas, eventualmente consideradas tirânicas, compreendidas como próprias à privacidade dos sentimentos, às intenções e aos gestos individuais.

Observe-se, contudo, que, na crítica aos condomínios fechados, um corpo social moral e politicamente reconstituído ressur-ge (não mais esfacelado ou fragmentado, como se poderia esperar). Nela, são a ho-mogeneidade e a coesão social dos grupos mais abastados e, por oposição, do restante da sociedade enquanto massa excluída do e pelo mercado, que efetivamente orientam o debate.4

Para se ter uma idéia melhor do que aqui se alude, observe-se o comentário de Boaventura de Souza Santos (1999) a pro-pósito do que ele chama de “proliferação da lógica de exclusão”:

Analisemos antes de mais os riscos.

Julgo que todos eles se podem resu-

mir num só: a emergência do fascismo

societal. Não se trata do regresso ao

fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao

contrário deste último, não se trata de

um regime político, mas antes de um

regime social e civilizacional. Em vez de

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sacrificar a democracia às exigências do

capitalismo, promove a democracia até

ao ponto de não ser necessário, nem se-

quer conveniente, sacrificar a democra-

cia para promover o capitalismo. Trata-

se, pois, de um fascismo pluralista e,

por isso, de uma forma de fascismo que

nunca existiu.

A primeira forma é o fascismo do

apartheid social. Trata-se da segrega-

ção social dos excluídos através de uma

cartografia urbana dividida em zonas

selvagens e zonas civilizadas. As zonas

selvagens são as zonas do estado de na-

tureza hobbesiano. As zonas civilizadas

são as zonas do contrato social e vivem

sob a constante ameaça das zonas sel-

vagens. Para se defenderem, transfor-

mam-se em castelos neofeudais, os en-

claves fortificados que caracterizam as

novas formas de segregação urbana (ci-

dades privadas, condomínios fechados,

gated communities). A divisão entre

zonas selvagens e zonas civilizadas está

a transformar-se num critério geral de

sociabilidade, um novo espaço-tempo

hegemônico que atravessa todas as re-

lações sociais, econômicas, políticas e

culturais e que por isso é comum à ação

estatal e à ação não estatal. (p. 103)5

O que me parece um entrave à aceita-ção de argumentos como os propostos por Santos é que, embora reconheçam os pro-cessos crescentes de fracionamento da so-ciedade (para este autor, dividida em múl-tiplos apartheids) e de sua polarização ao longo dos eixos econômico, social, político e cultural, a lógica que os encerra reproduz, paradoxalmente, um discurso que literal-mente cola os fragmentos da vida social e a expõe como unidade recomposta.

Por intermédio de categorias economi-camente definidas, que trazem a reboque as-pectos sociais, políticos e culturais, tornou-se trivial estabelecer um antagonismo social mediado pela aquisição de bens de consumo (sobretudo os de custo elevado) e pela ex-clusão que os acompanha, visto que poucos se encontram em condições de adquiri-los. A esse antagonismo social soma-se, não raro, uma associação de teor etnocêntrico, que confere aos estabelecidos (incluídos) poder de decisão, participação, intervenção e cria-ção, enquanto que aos outsiders (excluídos) pouco ou quase nada resta senão se subme-ter, em um universo extremamente restrito de opções, às condições objetivas de vida.6

Além disso, a adoção de conceitos co-letivos e, mais especificamente, de sistemas de categorias socioprofissionais ou – para os que assim preferem – de classes sociais, pa-ra exprimir a existência concreta de grupos, é desencadeadora de equívocos sucessivos e também de um inaceitável efeito de disso-lução. Bem entendido, como tais categorias permitem alocar os indivíduos em grupos, e os grupos são, via de regra, o indício de um comportamento médio, raison d’être da análise, tem-se a impressão enganosa de se tratar de unidades sociais estáveis e coesas, nas quais os membros de um determinado grupo parecem sempre compartilhar, tal como ocorreria em uma comunidade fe-chada, objetivos comuns, que motivam sua ação conjunta, racional, com fins claramente definidos. Por conseguinte, aquelas circuns-tâncias excepcionais em que os indivíduos alinham-se às proposições do grupo, seja pela facilidade ou pela segurança que ele re-presenta, tornam-se, para a análise, regra comportamental, o que dissolve o indivíduo no grupo do qual é membro. Desse modo,

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não só se neutralizam as diferenças nas si-militudes como, o que me parece mais gra-ve, as faz silenciar.7

Complementarmente, parece-me que por “contaminação”, as noções de “grupo” e de “sociedade” se forjam, como de costume, no sentido extremo da domesticação das di-ferenças e das particularidades: o indivíduo considerado integrante de determinado gru-po passa a ser visto como uma metáfora do grupo e, a um só tempo, como há uma re-lação lógica de pertencimento entre grupos e sociedade (lembrando que cada sociedade constrói sua própria versão de ser humano e que as concepções sobre o ser humano são reveladoras da natureza cultural dessa socie-dade), o indivíduo passa, então, a ser visto como uma metáfora viva da própria socieda-de. Disso decorrem combinações já bastante conhecidas entre indivíduos inertes, grupos estagnados e sociedade totalizante, pala-táveis à análise e aos esquematismos, que muito pouco têm a dizer sobre uma gama de acontecimentos que caracterizam a socie-dade contemporânea.8

Por fim, o que se torna realmente pro-blemático é a percepção de uma estabilida-de basilar contínua, que nega toda e qual-quer agitação interna, gerando a crença de que o que motiva a existência do grupo e sua coesão é algo permanentemente pre-sente e invariável para o próprio indivíduo. No mais das vezes, esquece-se que a lógica que orienta a formação do grupo é fugaz e, por isso, ele não se sustenta ad infinitum.9 Mais ainda, esquece-se que essas uniões são instáveis: dão-se por motivos específicos que permitem a aglutinação de pessoas em torno da busca por soluções pontuais para demandas comuns e também pela satisfação que advém do encontro com o outro, que

nele se realiza. Logo, essas relações duram o período que devem durar, nem mais nem menos. São, porém, cristalizadas pelo corte analítico que as toma como referência.

Note-se que, não obstante o fato de que continue a funcionar, essa lógica de teor totalizante já não tem mais a mesma eficá-cia. Dentre outras coisas, isso se dá porque seu efeito planificador torna inaudita a pre-sença do outro. Não o elemento estranho e exterior ao grupo, para o qual se deve atentar e do qual se deve resguardar, mas o outro que, no cotidiano, está dentro do pró-prio grupo, e, mais especificamente, dentro do próprio condomínio fechado.

Qualquer tentativa de compreensão so-bre “o muro dentro do muro” – e, dentro de seus limites físicos, dos portões e das cercas, além de outros muros que definem as próprias residências – torna-se, por isso, inviável, visto que não se admite que tais elementos justificam-se, senão pelo “incô-modo”, pela “ameaça” que a alteridade, ain-da que familiar (leia-se, o próprio vizinho), representa. O vizinho é sempre um estranho que mora ao lado e, como tal, assim será potencialmente tratado.10

A fixação do indivíduo em um único grupo tornou-se, com efeito, delicada, bas-tante improvável, bem como tornaram-se inviáveis as análises e os conceitos que dessa imobilidade dependem, dada sua incapacida-de estrutural de atualização. Isso porque, dentre outras coisas, tais análises e concei-tos não dão conta das infinitas interseções entre grupos (o que desloca a ênfase nas relações internas ao grupo para as relações que se dão nas fronteiras existentes entre grupos) e, sobretudo, daquelas que o pró-prio indivíduo cria cotidianamente com ou-tros indivíduos, nos mais diversos contextos

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e pelas mais diversas razões. Logo, há que se considerar que o indivíduo não assume mais a condição una de portador de todas as virtualidades do grupo. Ele está em trân-sito. Movimenta-se freneticamente e dilui, desse modo, as essencialidades tangíveis (uma cultura, um território, uma forma de organização política etc.) tão caras ao pen-samento moderno, o que obriga a pensar indivíduos e grupos de um ponto de vista flexível e relacional.

Em suma, se a definição de um padrão comportamental narcisista e sua aceitação enquanto categoria explicativa denota a au-sência de sensibilidade analítica para com os mais variados processos manifestos em con-textos de grandes cidades, não seria o seu inverso tão desastroso quanto aquilo que nega, ao afirmar uma ordem social totali-zante, que tem agora a coletividade como premissa analítica? Em ambos os casos, é interessante notar, cria-se algo com caráter definitivo: explicações conclusivas sobre co-mo aquilo que se aloja sob o dístico de “so-cial” se produz na cidade e tem seus efeitos sobre ela: o que nega a imbricação criativa e contínua entre o indivíduo e a sociedade e, mais especificamente, entre esses e os espa-ços das cidades, muito embora, frise-se, se afirme o contrário.

No debate sobre as cidades e a proli-feração de condomínios fechados, privile-giar analiticamente o indivíduo ou a socie-dade e, ainda, a proeminência de um sobre o outro é, acima de tudo, sustentar um equívoco. O desafio que se impõe é perce-ber as sutilezas com que posturas e senti-mentos individuais – que podem, a um só tempo, ser extensivos aos grupos sociais, sem, contudo, neles se dissolverem – se refletem nos espaços da cidade, conferindo-

lhes forma e sentido. Trata -se de conhecer o outro (o indivíduo, suas sensações, suas opções, etc.) sem transformá-lo no mesmo (nos grupos com os quais dialoga). Trata-se, ao fim, de afastar-se das antinomias clássicas do pensamento social; de apontar suas limitações; e, de algum modo, seguir adiante, quiçá ao rés do chão, como pro-põe Michel de Certeau (1994), a fim de aproximar-se mais daquilo sobre o qual se pronuncia a análise.

Exposto isso, cumpre apreciar, ainda, uma ordem complementar de problemas re-lativos às opções de consumo e suas implica-ções no tocante ao processo de proliferação de condomínios fechados.

Relações entre a cultura de consumo e a proliferação de condomínios fechados: um pouco mais do mesmo?

À medida que os condomínios fechados são tomados como uma das expressões materiais daquilo que Pierre Bourdieu (1983) definiu como “gostos de classe e estilos de vida”, é normalmente aceito que a opção de morar em empreendimentos desse tipo coloque em relevo bens de consumo codificados como al-go a que se confere status social elevado.

De modo geral, sabe-se bem, o uso de expressões como “modos” ou “estilos de vida”, “alta cultura”, “cultura de massas” e “poder simbólico”, denota certamente a im-portância atribuída a alguns elementos com-partilhados por diversos grupos sociais, de onde se conclui que, em contextos definidos,

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as especificidades de um dado grupo social são delineadas, dentre outras coisas, pela adoção e pelo compartilhamento de deter-minados símbolos que, mediante sua decodi-ficação, permitiriam, por contraste, atribuir aos grupos um conjunto de características que os distingue uns dos outros.

Veja-se, a propósito, as considerações de Teresa Caldeira (1997) ao analisar os di-versos anúncios imobiliários veiculados pela imprensa acerca dos enclaves situados na ci-dade de São Paulo.

A construção de símbolos de status é

um processo que elabora distâncias so-

ciais e cria meios para a afirmação de

diferenças e desigualdades sociais. [...]

A publicidade de imóveis ao expressar/

criar os estilos de vida das classes média

e alta revela os elementos que consti-

tuem os padrões de diferenciação social

em vigência na sociedade. Os anúncios

não só revelam um novo código de dis-

tinção social, mas também tratam expli-

citamente a separação, o isolamento e a

segurança como questões de status. Em

outras palavras, eles repetidamente ex-

pressam a segregação social como um

valor. (p. 159)

As metas estabelecidas por Caldeira, ao analisar o material publicitário, visavam a identificar, dentre outras coisas, o que pos-sivelmente captava a imaginação e os dese-jos das classes média e alta de São Paulo, bem como a indicar as principais imagens que seus membros dispunham para cons-truir seu lugar na sociedade.

Imagens de segurança, isolamen-to, homogeneidade, além da existência de instalações e de serviços diversificados

contribuiriam para a criação e consolidação do que Caldeira denomina mito de “um novo conceito de moradia”.

Dentre essas imagens, a autora ressalta que a

[...] que confere maior status e, portan-

to, a mais sedutora, é a de uma comu-

nidade fechada e isolada, um ambiente

seguro no qual se pode usufruir dos

mais diversos equipamentos e serviços

e, sobretudo, viver apenas entre iguais.

[...] A imagem dos enclaves opõe-se à

da cidade, representada como um mun-

do deteriorado, permeado não apenas

por poluição e barulho, mas principal-

mente por confusão e mistura, ou seja,

heterogeneidade social e encontros in-

desejáveis. (Ibid., p. 160)

Ora, se as associações e as imagens que as mercadorias proporcionam podem ser utilizadas e renegociadas para enfatizar di-ferenças de estilos de vida, demarcando as relações sociais, é pertinente que se recorde que, no âmbito da cultura de consumo, que marca a cena contemporânea, a expressão “estilo de vida” conota individualidade, auto-expressão e uma consciência de si estilizada, tal como observa Mike Featherstone (1995). Nesse contexto, como salienta o autor,

O corpo, as roupas, o discurso, os en-

tretenimentos de lazer, as preferências

de comida e bebida, a casa, o carro, a

opção de férias etc. de uma pessoa são

vistos como indicadores da individuali-

dade do gosto e do senso de estilo do

proprietário/consumidor. (p. 119)

Dentre os diversos fatores que in-formam essa compreensão, pode-se,

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certamente, encontrar a instabilidade dos símbolos de consumo e a velocidade com que se multiplicam, bem como a enorme va-riabilidade de sentidos que se atribui a eles.

Parece ser no mesmo tom de ressalva que R. Boudon e F. Bourricaud (2001) rea-lizam comentário conclusivo sobre o concei-to de status. Para os autores,

À medida que os sistemas de estratifi-

cação vão se tornando mais complexos

e sujeitos a evoluções mais rápidas,

a atribuição dos status torna-se mais

incerta. Primeiramente, a lista dos cri-

térios que entram em sua definição é

mais longa. Além disso, esses traços

são freqüentemente incongruentes, ou

então redundantes, ou ainda, em certa

medida, contraditórios. Torna-se difícil

resumir o conjunto de atributos hete-

róclitos que está ligado a cada um de

nós por um símbolo único, como nas

sociedades tradicionais, onde era sufi-

ciente dizer “é o filho de fulano” para

se conhecer o nível da pessoa de que se

tratava, sua fortuna, o círculo de seus

amigos, parentes e aliados. Nas comu-

nidades rurais tradicionais, pessoa, per-

sonagem e status estavam estreitamen-

te associados. Hoje, a pessoa e o status tendem a se distinguir. A identidade

pessoal não é mais dada; constrói-se a

partir do esforço de uma vida inteira.

Assim recuperamos uma identidade que

tende a nos escapar devido à multiplici-

dade dos aspectos sob os quais aparece

nosso status. Ao mesmo tempo, a iden-

tidade pessoal põe-se à prova menos

por aderir a um status fixado definiti-

vamente do que pelo sentimento de sua

precariedade. (p. 547)

É pouco apropriado, portanto, que, na busca por compreensão de processos rela-tivamente recentes, como o de proliferação de condomínios fechados, múltiplos fatores associados à esfera do consumo e aos sen-tidos que as pessoas podem atribuir ao que consomem se percam em meio às opera-ções analíticas que têm o seu escopo com-prometido, primariamente, pela defasagem conceitual.

A produção do espaço urbano no con-texto da cultura de consumo enceta um universo ilimitado de possibilidades que di-ficilmente se permite reduzir à formulações harmoniosamente ajustadas ao mercado ou à convivência social.

Logo, residir em um mesmo condo-mínio não garante a proeminência de uma lógica racional voltada para o mercado – e para a distinção social que nele encontra seu principal intermediário. Não garante a expe-riência sociocultural concreta de uma comu-nidade de gosto, de um estilo de vida único que se compartilha, nem a união sociopolíti-ca dos moradores. A junção analítica entre aspectos ligados à cultura de consumo e à proliferação de condomínios fechados enseja tais possibilidades, mas não as garante, ca-bendo ao trabalho investigativo, cercado de precauções, estabelecer as potencialidades relacionais entre experiências reais e nisso se aprofundar.

Desse modo, nos dias atuais, descon-siderar a diversidade de razões que podem levar à opção por residir em um condomí-nio fechado, afirmando-se um sentido linear para tal escolha, acarreta também o emba-raçoso risco de tornar uma análise que se pretende atual, desde o começo, anacrônica e, por conseguinte, obsoleta.

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Qualquer tentativa de explicação sobre as decisões tomadas no âmbito pessoal que repercutem social e espacialmente requer atenção ao fato de que, dentre outras coi-sas, os referenciais a partir dos quais são geradas as informações sobre aquilo que se define enquanto estilo de vida podem facil-mente não ser mais os mesmos, nem para o indivíduo nem para os grupos.

Do mesmo modo, há que se considerar que qualidade de vida, conforto, elevado pa-drão cultural, sucesso profissional, riqueza material, segurança, etc. são, antes de tudo, referências primárias, pontos de partida pa-ra que se estabeleçam as mais diversas cone-xões de sentidos a propósito da proliferação de condomínios fechados, e não seu ponto de chegada, para onde tudo deve confluir.

Sociedade e condomínios fechados: segregação, violência e medo e a produção do espaço nas cidades

O cruzamento entre variáveis como rique-za material, segurança, pobreza, violência e medo para explicação do processo de proli-feração de condomínios fechados pode ser bastante proveitoso, desde que uma pers-pectiva analítica demasiado valorativa, cujo espectro está sempre rondando, seja evita-da. Embora bastante óbvia, reconheço, essa ressalva inicial requer breve justificativa.

Desde, pelo menos, as importantes contribuições de Robert Ezra Park, admi-te-se que motivos de crença, renda, inte-resses vocacionais e econômicos, gostos e

conveniências pessoais tendem infalivel me-nte a segregar e, conseqüentemente, a clas-sificar as populações das grandes cidades. Ocorre, porém, que, na perspectiva analíti-ca sob a qual se inscreve boa parte dos es-tudos produzidos sobre o urbano, há uma tendência evidente em criticar a segregação socioespacial enquanto construto social e dado de realidade, afirmando-se seu teor negativo, tendo em vista um ethos igualitá-rio e, por conseguinte, critérios de inclusão social como valores.

Ora, é paradoxal e em alguma medida redundante que autores preocupados com a construção do espaço residencial e com os mecanismos de exclusão/inclusão social no contexto de importantes cidades brasilei-ras – como Caldeira (1997), ao analisar o material publicitário de empreendimentos imobiliários voltados para as classes média e alta em São Paulo – condenem, a priori, qualquer manifestação aberta de segrega-ção social como um valor. Isso pela simples razão de que a segregação se constitui e se evidencia empiricamente, tanto espacial quanto moralmente, com base em valores, mesmo que eles não coincidam com as ex-pectativas mais elevadas sobre o social, se-jam elas a do próprio pesquisador e/ou do campo em que se estabelece o trabalho de reflexão.

É pertinente que se recorde, o próprio Park (1987, p. 29) reconhece que

[...] a cidade possui uma organização

moral bem como uma organização fí-

sica, e essas duas interagem mutua-

mente de modos característicos para se

moldarem e modificarem uma a outra.

É a estrutura da cidade que primei-

ro nos impressiona por sua vastidão

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e complexidade visíveis. Mas, não

obstante, essa estrutura tem suas ba-

ses na natureza humana, de que é uma

expressão. Por outro lado, essa enorme

organização que se erigiu em resposta

às necessidades de seus habitantes, uma

vez formada, impõe-se a eles como um

fato externo bruto, e por seu turno os

forma de acordo com o projeto e inte-

resses nela incorporados.11

Com efeito, dado que a cidade é uma “entidade viva”, enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam, como pensa esse autor, ela enseja, exatamente por esses mesmos motivos, as condições de possibilidade para ser assim reconhecida e pensada.

Logo, é incontornável o fato de que, da urgência das necessidades de defesa e de sobrevivência à escassez dos meios e dos recursos, passando à formação de técnicos especialistas e à produção cultural e artísti-ca, a cidade se constitui de modo a sempre “reservar” lugar para todos, mesmo que is-so implique a sua ocupação periférica e, em conseqüência disso, a marginalização social e também por isso valorativa. Se a segre-gação se dá por razões passíveis de crítica, inclusive ética e moral, ela supõe um quadro de referências valorativas contextualmente estabelecido, o que requer também discus-são e aprofundamento analítico.

Esse breve comentário coloca em fo-co o papel que se confere ao pesquisador diante do objeto de reflexão e, mais que is-so, o tipo de relação axiológica que a pró-pria análise exprime. Não se trata de obter contentamento com a descrição formal dos processos analisados, o que suporia o fala-cioso distanciamento subjetivo para que se

garanta um tratamento realista e objetivo. Trata-se, sim, de permitir que a própria investigação do modo pelo qual os proces-sos são produzidos traga à tona os valo-res que lhes são constitutivos, sem que se determine um dever ser ou, dito de outro modo, sem que se aponte um vetor, uma direção na qual os problemas em questão poderão repousar, por fim, apaziguados, superados.

Nesse sentido, a clássica análise webe-riana sobre a neutralidade de valores, vale lembrar, possui aspectos ainda bastante contundentes. A amplitude da significação cultural de um dado problema é, como con-sidera Weber (1992), com maior ou menor intensidade, influenciada pelas perspectivas pessoais pelas quais se orientam os ideais e os julgamentos concretos. As disputas entre interesses diferentes e a solução de pro-blemas práticos singulares muitas vezes se confundem, visto que a referência a juízos de valor que se introduzem de maneira acrí-tica, embora prejudicial à análise, é, inega-velmente, uma constante. Por isso, a busca pela chamada imparcialidade do trabalho científico se faz necessária não para sufocar a expressão legítima de valores mas, sim, para regular a formação de um “caráter”, visto que rejeita a parcialidade valorativa de-corrente de uma não-reflexão, seja ela sutil ou explícita – o que equivaleria a consolida-ção indesejável, do ponto de vista científico, de uma tendência.12

O que se pretende aqui reiterar é rela-tivamente simples: se a imparcialidade é im-praticável, que se assuma, então, suas con-seqüências. E, sobretudo, que não se afirme que ela norteia, desde o começo, a reflexão.

Tal consideração faz-se mister em virtu-de do fato de que a segregação socioespacial

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constitui uma das mais ricas expressões da potencialidade de conflito social engendra-das pela cidade e, em que pesem os julga-mentos de valor sobre suas causas e efeitos, sua apreciação em negativo constitui, para-doxalmente, e desde o começo, empecilho para a percepção mais ampla de um elemen-to fundamental às análises sobre a socieda-de e o espaço em construção: o modo in-trínseco e inevitavelmente conflituoso como se manifestam as mais diversas formas de relação social.

Visto que a metrópole agrega um gran-de número de pessoas com interesses bas-tante diferenciados e, parafraseando Simmel (1987, p. 14), “a maneira metropolitana de vida é certamente o solo mais fértil para a reciprocidade” – entendida, aqui, como re-lação social –, é bastante razoável que se compreenda que a vida na cidade é efetiva-mente marcada pela iminência do conflito. Isso porque

Onde as relações são puramente ex-

ternas e ao mesmo tempo de pouca

importância prática, esta função [a de

oposição entre partes constitutivas da

relação] pode ser satisfeita pelo con-

flito em sua forma latente, isto é, pela

aversão e por sentimentos de mútua es-

tranheza e repulsão que, num contato

mais íntimo, não importa quão ocasio-

nal, transforme-se imediatamente em

ódio e lutas reais.

Sem tal aversão, não poderíamos imagi-

nar que forma poderia ter a vida urba-

na moderna, que coloca cada pessoa em

contato com inumeráveis outras todos

os dias. Toda a organização interna da

interação urbana se baseia numa hierar-

quia extremamente complexa de simpa-

tias, indiferenças e aversões, do tipo

mais efêmero ao mais duradouro. E

nesse complexo, a esfera da indiferença

é relativamente limitada, pois nossa ati-

vidade psicológica responde por um de-

terminado sentimento a quase todas as

impressões que vêm de outra pessoa. A

natureza subconsciente, fugidia e mu-

tável desse sentimento apenas aparen-

ta reduzi-lo à indiferença. Na verdade,

tal indiferença seria para nós tão pou-

co natural quanto seria insuportável o

caráter vago de inumeráveis estímulos

contraditórios. A antipatia nos protege

desses dois perigos típicos da cidade;

a antipatia é a fase preliminar do anta-

gonismo concreto que engendra as dis-

tâncias e as aversões, sem as quais não

poderíamos, em absoluto, realizar a vi-

da urbana. A extensão e a combinação

da antipatia, o ritmo de sua aparição e

desaparição, as formas pelas quais é sa-

tisfeita, tudo isso, a par de elementos

mais literalmente unificadores, produ-

zem a forma de vida metropolitana em

sua totalidade insolúvel; e aquilo que

à primeira vista parece desassociação,

é na verdade uma de suas formas ele-

mentares de sociação. (pp. 127-128)

Sabe-se bem, no cotidiano, o contato com a alteridade e, em decorrência disso, os embates inerentes às relações sociais impli-cam a criação de dispositivos emocionais e físicos. No contexto da metrópole, esses dis-positivos se tornam vários e refletem, com maior ou menor intensidade, o grau de tole-rância para com as diferenças que a própria cidade comporta.13

Nesse sentido, os condomínios fechados representam somente uma das incontáveis formas pelas quais o espaço absorve e reflete a potencialidade de conflito que a

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cidade produz. Se os condomínios segre-gam, se conformam áreas relativamente homogêneas, sobretudo do ponto de vista econômico, e indicam seu fechamento e ina-cessibilidade para os demais indivíduos, eles o fazem de modo a confirmar uma lógica urbana que exprime, ela mesma, uma ten-são constitutiva, que a um só tempo separa e une, afasta e aproxima os indivíduos.

Se, por partilharem um ethos iguali-tário, as sociedades ocidentais e, para que se torne mais apropriado ao debate, o pen-samento social contemporâneo repelem as disparidades sociais e seus efeitos conside-rados perversos, por culpa e expiação, não é preciso muito mais do que se disse até aqui para que se compreenda que é sobre essa desigualdade fática de acesso, de condições e de bens apropriados que a civilização oci-dental se ergue – e isto se dá ainda que ela se pretenda igualitária e, desse modo, me-nos excludente. Vale lembrar, esse traço insuperável, dado que lhe é absolutamente constitutivo, compõe, talvez, a maior de suas contradições.14

De modo complementar, importa con-siderar que, sob determinado ângulo, a própria idéia de civilização supõe, em senti-do lato, o aplacar da animosidade para com a alteridade, uma pseudo-evolução da his-tória humana, que, a propósito, se difunde academicamente e torna insuportável tanto para o Ocidente quanto para a academia o peso da desigualdade de condições que a própria civilização engendra e perpetua, bem como da truculência com que sua his-tória se constrói. Por isso, como notavel-mente observa Norbert Elias (1997), de uma operação relativamente simples, onde se contrasta civilização com violência, com a espécie de violência que as pessoas se in-

fligem mutua mente em guerras, em lutas políticas, na vida privada ou seja onde for, resulta, desde o começo, um estreitamento da imagem que se tem de civilização. Com efeito, o próprio conceito de civilização tor-na-se de tal modo delimitado que, na reali-dade, apenas um de seus aspectos passa a ser considerado: a coexistência não-violenta de seres humanos.

Assim, não causa estranheza que o de-senvolvimento analítico em torno do conflito social ressalte e condene os aspectos trágicos da convivência humana: as chamadas mani-festações “patológicas” da vida social – asso-ciadas ao choque cultural, ao marginalismo, à delinqüência, etc. – são freqüentemente entendidas e designadas por seu caráter vio-lento, disfuncional, improdutivo e irracional, estabelecendo-se pouca ou nenhuma tolerân-cia para com o comportamento considerado desviante ou divergente. Na maioria das ve-zes, o caráter belicoso das relações humanas é tomado, unicamente, como traço negativo das relações sociais, relações essas que se encontrariam em estado “crítico”, “limítrofe” ou, ainda, “anômico”, sendo essa a perspec-tiva dominante com que o conflito figura no quadro das referências sociológicas que bus-cam, de algum modo, explicar as causas de sua existência. Como notam Norberto Bobbio et al. (2000, v. 1, p. 225), aqueles que vêem qualquer grupo social, qualquer sociedade e qualquer organização como algo harmônico e equilibrado tendem a conceber a harmonia e o equilíbrio como um estado normal, ao passo que todo o conflito é considerado uma perturbação, uma patologia social, um mal a ser reprimido e eliminado.

Essa parcialidade com que se expressa o dever ser de uma convivência social – em uma sociedade que, em consonância com o

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que deseja e exprime parte significativa do pensamento social, deveria caminhar aos passos largos, em marcha contínua, rumo a um mundo mais civilizado –, como reco-nhece o próprio Elias (1997), faz com que o exame do problema da violência física na vida social seja freqüentemente norteado pelo tipo errado de pergunta. Ajustar-se-ia melhor aos fatos e seria, assim, mais pro-veitoso, se as perguntas fossem formuladas com vistas ao que possibilita a convivência normal e pacífica entre tantas pessoas, e não como é possível que pessoas, vivendo em sociedade, possam agredir fisicamente e matar umas às outras.

Nessa mesma direção inclina-se Simmel (1983, p. 122), ao observar que,

[...] sob um ponto de vista comum,

pode parecer paradoxal se alguém per-

guntar, desconsiderando qualquer fenô-

meno que resulte do conflito ou que o

acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma

forma de sociação.

Ora, como bem argumenta esse autor,

Se toda a interação entre os homens é

uma sociação, o conflito – afinal, uma

das mais vívidas interações e que, além

disso, não pode ser exercida por um in-

divíduo apenas – deve certamente ser

considerado uma sociação. E de fato,

os fatores de dissociação – ódio, inve-

ja, necessidade, desejo – são as causas

do conflito; este irrompe devido a essas

causas. (Ibid., p. 122)

Para Simmel, o conflito estaria destina-do a resolver dualismos divergentes, a re-solver a tensão entre contrastes, visto que

sua natureza – a síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra o outro, quanto um para o outro – resguarda-lhe es-ta ambigüidade e, com efeito, suscita novas formas de sociação.

Essa natureza [a do conflito] aparece de

modo mais claro quando se compreen-

de que ambas as formas de relação – a

antitética e a convergente – são funda-

mentalmente diferentes da mera indife-

rença entre dois ou mais indivíduos ou

grupos. Caso implique a rejeição ou o

fim da sociação, a indiferença é pura-

mente negativa; em contraste com a

negatividade pura, o conflito contém

algo de positivo. Todavia, seus aspectos

positivos e negativos estão integrados;

podem ser separados conceitualmente,

mas não empiricamente.

Assim como o universo precisa de “amor

e ódio”, isto é, de forças de atração e

de forças de repulsão, para que tenha

uma forma qualquer, assim também a

sociedade, para alcançar uma determi-

nada configuração, precisa de quantida-

des proporcionais de harmonia e desar-

monia, de associação e competição, de

tendências favoráveis e desfavoráveis.

(Ibid., pp. 123-124)

Se, para Simmel e para Elias, o conflito se destaca como elemento potencialmen-te presente em todas as instâncias da vida social, isso ocorre porque ambos colocam em relevo o caráter constitutivo, estrutura-dor ou fundador de outras expressões do social, que nele potencialmente residem. Nesse sentido, as condições de vida criadas pela metrópole oferecem uma boa mostra da positividade com que o conflito se mani-festa, visto que, nela, inúmeros processos

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motivados por ele podem, ao longo de seu desenvolvimento, deflagrar um comporta-mento cooperativo entre os indivíduos.

Parece-me ser exatamente esse com-portamento cooperativo que, na contempo-raneidade, faz com que o cenário urbano, mas não só ele, se torne pano de fundo para o desenrolar e o recrudescimento de séries sucessivas de ações reativas e adaptativas à violência, respaldadas, frise-se, pelos e nos mais diversos níveis sociais.

Nesse contexto, a violência e o medo, além de se constituírem enquanto referên-cias para a mudança de hábitos, horários, trajetos, etc., também aglutinam pessoas em torno de idéias comuns sobre o uso dos espaços públicos e, mais especificamente, sobre a constituição física dos espaços pri-vados, o que, grosso modo, remete à difu-são do que se pode pertinentemente cha-mar de “arquitetura do medo”.15

Nos dias atuais, à medida que a sen-sação de desconforto gerada pela violência se encontra na base das motivações apon-tadas para o surgimento e a efetivação de empreendimentos como os condomínios fe-chados – concorrendo com uma vasta lista de razões que levam as pessoas a optar por neles residir –, seria razoável que a litera-tura especializada se aproximasse, sem os preconceitos de outrora, dos matizes rela-cionais entre a violência e o medo e a pro-dução do espaço residencial na cidade e que nisso aprofundasse. Mais que isso, a se con-siderar que a proliferação de condomínios fechados pode ocasionar mudanças sensí-veis na configuração espacial das cidades, é pertinente que se analise mais de perto quão estreita e fecunda é essa relação, o que efetivamente não convém que se perca pelas razões até aqui criticadas.

Fruto da imbricação de universos hu-manos coexistentes, de séries de arranjos estruturais que se fazem registrar ao longo do tempo, a cidade exercita sua capacidade de articular valores e teores nem sempre consoantes, aglutinando e acentuando di-ferenças, ensejando conflitos e permitindo conciliações muitas vezes inesperadas. Dis-so se desprendem sensações confusas, que dificilmente, dadas suas características ima-nentes, repousariam apaziguadas.

O “teatro das colisões hostis entre ho-mens” – para citar a feliz expressão cunha-da por Elias (1998, v. 1, p. 191) – tem como enredo a própria vida em sociedade. Nela, o conflito é uma das mais vívidas ex-pressões de sua concretude – o que torna extremamente importante a compreensão dos sentidos que ele resguarda. Para tan-to, é evidente a necessidade de ampliação do universo discursivo no qual se situam os problemas analíticos cunhados a partir da cena contemporânea, o que, por sua vez, constitui exercício instigante e prolífero.

Nesse ambiente de argumentações e debates, uma perspectiva sociologicamen-te positiva do conflito – como a que reside nos trabalhos de Elias e de Simmel – certa-mente possui lugar de destaque, visto que acarreta outras possibilidades e aponta para caminhos quiçá mais interessantes de serem percorridos na busca por adequação, atua-lização, aprimoramento e desenvolvimento do instrumental analítico à realidade vivida. Sabe-se, contudo, que essa busca e o reco-nhecimento das limitações que lhe são ine-rentes requerem, como aqui se tentou ar-gumentar, (re)avaliações sensíveis, inclusive de um ponto de vista formal.

Seguramente, a cidade é uma des-sas formações duradouras que, dada sua

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capacidade de incorporar elementos, de con-ceder ao que ela acolhe e produz uma mar-ca que lhe é própria, proporciona estímulos suficientes para que os especialistas, antes

de qualquer outro gesto, se questionem so-bre sua capacidade de explicá-la e, a partir disso, como propõe Simmel (1987), se dis-ponham a compreendê-la.

Notas

(1) Como observa Maria A. R. de Carvalho (2000, pp. 47-55, passim), embora a discussão sobre a violência no Brasil esteja apontando para questões mais amplas – a delinqüência, o des-regramento e a generalização social de práticas violentas –, derivadas de causas igualmen-te mais complexas, como a ausência de uma cultura cívica e a insociabilidade que tem presidido o processo de individuação nos grandes centros urbanos do país, é ainda maciça a recorrência à exclusão social como variável explicativa do crescimento das práticas vio-lentas, assim como é inegável que a denúncia do padrão de desigualdade existente segue sendo o ângulo hegemônico das análises sobre o alto grau de conflito presente nas cidades brasileiras. Por outras palavras, embora se esteja abandonando a preocupação estrita com os nexos de pobreza e o crime, estes ainda constituem o cerne da discussão sobre a vio-lência no Brasil.

(2) O interesse despertado pelo tema “condomínios fechados” se verifica ante o grande núme-ro de abordagens recentes voltadas para o fenômeno de sua proliferação, originárias de campos do conhecimento diversos (antropológico, sociológico, geográfico, político e eco-nômico), em níveis analíticos tanto macro como micro. Veja-se Andrade (2004). A autora realiza interessante levantamento sobre diversas contribuições à compreensão do tema, bem como uma discussão mais aprofundada sobre algumas conclusões já consagradas por pesquisas diversas e, mais precisamente, sobre a aplicabilidade do conceito de segregação para a compreensão deste fenômeno.

(3) Veja-se Villaça (1998).

(4) Além dos fatores que aqui se pretende explorar, é de uma total incongruência a operação a que se submete o chamado “objeto de reflexão”, seja por circunstâncias diacrônicas, se levadas a sério forem as evidências históricas apresentadas pela própria literatura, seja pelo disparate epistemológico que essa mudança de referencial produz. Por conseguinte, e com razão, pode-se perguntar: afinal, de que sociedade se está falando? De uma sociedade destruída pelo vigor do narcisismo? De uma sociedade bipartida, composta, de um lado, por proprietários, consumidores, cidadãos estabelecidos e, de outro, por não proprietários, alijados do consumo e excluídos pelo capital? E, ainda: qual é a referência analítica? O indivíduo ou grupo?

Hélio Rodrigues de Oliveira Jr.Graduado em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Funcesi – Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Minas Gerais, Brasil). [email protected]

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(5) Nesse estudo já bastante conhecido, o autor se estende até a sexta forma de fascismo socie-tal, não sendo preciso mais do que o já exposto para se perceber o tom demasiado áspero e as expressões bastante pesadas com que ele retrata as alterações, inclusive espaciais, de-correntes da perda relativa da capacidade reguladora do Estado ante os interesses privados e, sobretudo, os interesses de grupos com forte capital patrimonial.

(6) Ao chamar a atenção para os diversos fatores associados à produção do espaço residencial na cidade, Luciana Teixeira de Andrade (2004, p. 11) denomina “armadilha etnocêntrica” a atitude de “pensar os ricos como capazes de fazer escolhas e os pobres como totalmente condenados pelas condições objetivas” e realiza algumas considerações que têm o escopo de evitá-la.

(7) Uma excelente crítica ao efeito de grupo pode ser encontrada em Boudon e Bourricaud (2001, pp. 253-260).

(8) A propósito das implicações clássicas e problemáticas relativas ao uso do conceito de iden-tidade, sobretudo a perda ou diluição de sua dimensão contrastiva concreta, bem como as relações forçosas que se estabelecem entre o indivíduo, o grupo e a sociedade, veja-se Durham (1986). Cf. Montero (1997).

(9) A expressão latina ad libitum (“à escolha”, “à vontade”, “a seu bel-prazer”) surge como al-ternativa bastante interessante para expressão do desejo de estar-junto, comum às pessoas ao freqüentarem grupos distintos. Contraposição bastante razoável, visto que a lógica da qual se pretende afastar aprisiona o indivíduo em um único e permanente grupo social, ad infinitum (“até o infinito”).

(10) Veja-se, a propósito do conceito de alteridade, a interessante contribuição de Pelbart (2002).

(11) Embora Park reserve ao termo “estrutura” à designação dos elementos físicos visíveis da cidade (como prédios, casas, ruas etc.) e à expressão “ordem moral”, a designação dos fenômenos concernentes à natureza humana, a junção entre esses fatores resulta, para o autor, em um “complexo cultural comum”, que determina, em última instância, o que é característico e peculiar na cidade, em contraste com a vida em aldeia e a vida no campo.

(12) Não se negligenciam, aqui, outros desdobramentos para a questão da objetividade do conhecimento científico e para as implicações subjetivas na realização do trabalho intelectual.

(13) Vale lembrar, é também por esse motivo que Simmel, com a sofisticação e o refinamento que lhes são característicos, atribui ao dinamismo e à intensidade da vida na metrópole a originalidade do fenômeno psíquico denominado atitude blasé, que consiste no esgo-tamento nervoso, na incapacidade de reagir a novas sensações com energia apropriada e no embotamento do poder de discriminar, diante da rapidez, da violência e da contradi-toriedade de significados e de valores com que as pessoas são estimuladas. Disso resulta um comportamento de natureza social comum aos indivíduos submetidos às condições impostas pelo modo de vida metropolitano: uma reserva moral que, mais do que apenas indiferença, sugere “uma leve aversão, uma estranheza e repulsão mútuas, que redundarão em ódio e luta no momento de um contato mais próximo, ainda que este tenha sido provo-cado” (Simmel, 1987, pp. 16-17).

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(14) É no século XVIII, com Rousseau – para quem a reconstrução hipotética da história da humanidade culmina com a legitimação da desigualdade entre os homens –, que a crítica às condições de acumulação, apropriação e distribuição de bens materiais e culturais ad-quire os contornos primeiros de um discurso social e político. É, também, a partir de suas contribuições que o pensamento social constrói, com outros matizes, sua própria crítica à nascente sociedade capitalista. Cf. Rousseau (1983).

(15) Não se negligencia, aqui, o processo de superexposição midiática, que, como se sabe, responde, em alguma medida, pela amplificação exponencial da criminalidade e pela irra-diação de uma sensação crescente de insegurança e de medo, nem seus efeitos sobre o os contextos socioespaciais. Para um tratamento aprofundado da questão, consulte-se Pereira et al. (2000).

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Recebido em maio/2008Aprovado em jul/2008

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Metrópoles e sociabilidade: os impactosdas transformações socioterritoriaisdas grandes cidades na coesão social

dos países da América Latina* Ruben Kaztman

Luiz César de Queiroz Ribeiro

ResumoO texto propõe a reflexão sobre a relação en-tre sociabilidade nas grandes cidades latino-americanas que atravessam transformações socioespacial e os desafios da coesão social em democracia. Assumimos como ponto de parti-da que a qualidade das relações sociais é alta-mente dependente do grau das desigualdades na distribuição da riqueza, da renda, do poder e também dos recursos que fundamentam o prestígio, a honra e o reconhecimento sociais. Levamos em consideração a existência de im-portantes processos – crescimento urbano, expansão do nível educacional e das comunica-ções, a forte incorporação dos direitos sociais nos discursos políticos – que contribuem pa-ra elevar as aspirações e criar expectativas de igualdade e de participação material e imaterial da população urbana e aumentam a probabili-dade de tensões sociais. O texto procura explo-rar em que medida a sociabilidade nas grandes cidades depende do jogo das forças menciona-das anteriormente.

Palavras-chave: metrópoles; socialibilidade; segregação residencial; coesão social.

AbstractThe text proposes a reflection on the relation between sociability in the large Latin American cities that are undergoing socio-spatial transformations and the challenges of social cohesion in a democracy. We assume that the quality of social relations is highly dependent on the level of unequal distribution of wealth, income, power and also on the resources that support social prestige, honor and recognition. We take into account the existence of important processes – urban growth, the expansion of the education level and of telecommunications, the strong incorporation of social rights into political discourses – that contribute to elevate aspirations and to create expectations of equality and material and immaterial participation of the urban population, thus increasing the probability of social tensions. The text tries to explore to what extent sociability in large cities depends on the interplay of the forces mentioned above.

Keywords: metropolises; sociability; residential segregation; social cohesion.

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A compreensão da natureza e formas de sociabilidade nas grandes cidades latino-americanas está relacionada com o enten-dimento dos desafios da coesão social para a democracia. Ambas as noções se referem às condições em que ocorrem as interações entre grupos sociais e as relações com as instituições sociais que efetivam a demo-cracia. O propósito do artigo é discutir as transformações que vêm sofrendo a qua-lidade das relações sociais como resulta-do das mudanças na morfología social das grandes cidades latino-americanas.

Assumimos como ponto de partida que a qualidade das relações sociais é altamen-te dependente do grau das desigualdades na distribuição da riqueza, da renda, do poder e também dos recursos que funda-mentam o prestígio, a honra e o reconhe-cimento sociais. Esses últimos elementos relacionam-se diretamente com o maior ou menor isolamento social entre as classes e grupos sociais. Também reconhecemos que cada país desenvolveu matrizes socio-culturais que ativam mecanismos mais ou menos eficazes para resolver as tensões e os conflitos suscitados pelas desigualda-des. Finalmente, na análise, levaremos em consideração a existência de importantes processos – crescimento urbano, expansão do nível eduacional e das comunicações, a forte incorporação dos direitos sociais nos discursos políticos – que contribuem para elevar as aspirações e criar expectativas de igualdade e de participação cívica da popu-lação urbana e aumentam a probabilidade de tensões sociais.

O texto procura explorar em que me-dida a sociabilidade nas grandes cidades depende do jogo das forças mencionadas anteriormente. Para tanto, buscaremos

fundamentar as interpretações sobre os deter minantes, a natureza e as perpectivas da sociabilidade nas grandes cidades com dados secundários e resultados de pesquisa.

Cidade e cidadania: referências históricas e teóricas

Há boas razões históricas e teóricas para justificar a ligação etimológica entre as pa-lavras cidatino, cidadania e cidade. Em sua obra magistral Economia e Sociedade, Max Weber propôs a distinção entre a cidade como assentamento denso e a cidade como veículo de importantes transformações so-cioculturais decorrentes da emergência da visão de mundo racionalizada e de relações de dominação racional-legal. As cidades que cumpriram esse papel histórico foram aque-las que associaram a aglomeração de coisas e das pessoas à emergência simultânea do mercado como mecanismo fundamental das trocas econômicas, a autonomia política da comunidade na forma de autogoverno e de leis baseadas na igualdade jurídica entre os indivíduos. Essas cidades desconectaram-se do feudalismo, com efeito, pela introdução de um regime de propriedade privada co-mo objeto de relações de compra e venda e não mais como fundamento da dominação pessoal fundada nos valores da tradição, do carisma e da honra presentes na ordem es-tamental. Mas o fato verdadeiramente novo e revolucionário do fenômeno urbano foi a formação de associações livres de cidadãos que des-legitimaram o poder senhorial.

Ainda que alguns Estados patrimoniais tenham desenvolvido idéias concernentes

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ao bem público, a institucionalização dessa noção foi também a criação da cidade. Tal institucionalização foi amadurecendo em territórios relativamente pequenos de alta densidade demográfica, nos quais a total interdependência material e o uso dos es-paços e serviços coletivos criaram condições favoráveis à percepção pelo cidadino da de-pendência do seu bem-estar individual da cooperação com os outros integrantes da comunidade.

A percepção coletiva da necessidade da cooperação, seja no universo do mundo fabril, seja no universo da cidade, tornou imperiosa a incorporação da massa traba-lhadora à sociedade política e ao regime de solidariedade interclassista capaz de ga-rantir de forma coletiva padrões mínimos compartilhados de bem-estar social. Como contrapartida desse processo, as cidades industriais tornaram-se veículos e palcos da experimentação de reformas sociais e institucionais que simultaneamente reco-nheceram a existência de conflitos sociais e estabeleceram valores e mecanismos de in-tegração social e de negociação do conflito. Em outros termos, quando examinamos a história das reformas urbanas iniciadas na segunda metade do século XIX e expandi-das nos primeiros decênios do século XX, constatamos que a cidade foi o laboratório da experimentação de um novo regime de gestão da sociedade fundador dos pilares do Estado de Bem-Estar Social, cujos tra-ços fundamentais foram práticas sociais e institucionais orientadas por valores de pro-teção e coesão sociais.1 A essa transforma-ção corresponderam mudanças de “classes perigosas” para “classes laboriosas” na re-presentação social do povo da cidade. Sem tal mudança seria impensável a expansão e

afirmação de sociedades organizadas sob as bases do moderno regime democrático. Além disso, também teve grande relevância a ampliação das oportunidades de mobili-dade social nos anos posteriores à Segun-da Guerra Mundial, período batizado por Hirschman como os “trinta gloriosos”. A abertura e a complexificação da estrutura social pela criação de novas posições resul-tantes do capitalismo da grande indústria e da expansão do Estado de Bem-Estar social tornaram a condição urbana não apenas re-lacionada à integração à sociedade e à mo-dernidade cultu ral, mas também à ascensão social.

Esse conjunto de mudanças associou, na experiência social, no imaginário coletivo e nas instituições de regulação das relações sociais, a condição urbana à afirmação da cidadania como direitos cívicos, políticos e sociais, como regime de bem-estar homo-genizador de condições básica de vida e promotor da democracia de oportunidade e, finalmente, como novo padrão de socia-bilidade. Quais são os traços desse padrão? Destacamos três, que consideramos impor-tantes para o argumento sustentado neste trabalho: (a) o conflito de classes é social-mente reconhecido; (b) simultaneamente, é legitimada a hierarquia social do status ad-quirido em contraposição ao herdado pela a origem; e (c) são institucionalizadas regras de negociação dos conflitos interclassiatas. A cidadania constitui-se em campo das lutas e interlocução entre as classes, tornando o mundo social estabilizado. A grande cidade participou dessas mudanças como veículo e palco.

O final do século XX inaugura, no en-tanto, outra fase. Começa a tomar força a idéia segundo a qual a cidade continua

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operando como pedra fundamental da arquitetura das sociedades modernas, mas enfraqueceu a percepção coletiva do seu pa-pel no desenho e na promoção de sociedades coesionadas em torno de um ideal democrá-tico. Contribuem para essa mudança de sinal os processos de suburbanização, com a cria-ção de novos modelos de cidades dispersas e desintegradas, espalhadas por vastos terri-tórios, a desindustrialização e, sobretudo, o enfraquecimento dos vínculos com o merca-do de trabalho conseqüente à decomposição da “sociedade assalariada”. Não obstante as diferentes leituras interpretativas, há lar-go consenso na literatura sobre o papel de tais mudanças na transformação da relação entre a condição urbana e a cidadania, na medida em que a sociabilidade nas grandes cidades deixa de ter como substrato (objeti-vo e subjetivo) os mecanismos e os valores promotores da solidariedade, da integração e da igualdade sociais. Nesse sentido, acre-ditamos ser aceitável a hipótese de que a sociabilidade dominante nas grandes cidades tem relevante papel na explicação das ten-dências da perda de capacidade de coesão na escala societária. Os vínculos sociais, com efeito, são crescentemente organizados por mecanismos instrumentais desencarnados das prerrogativas e obrigações que, na fase anterior, fundaram o sentido coletivamente compartilhado de cidadania, ou por valores que reintroduzem formas tradicionais de dominação, nas quais o controle sobre as fontes do carisma, da honra e do prestígio legitima relação de subordinação pessoal de pessoas e grupos sociais.

Contribuem decisivamente nessa dire-ção as combinações que vêm ocorrendo nas sociedades entre a segmentação do merca-do de trabalho, a segmentação dos serviços

coletivos – especialmente na esfera educati-va – e a segmentação espacial.

São mudanças globais, atingindo em maior e menor grau as sociedades conforme a intensidade da inserção no novo modelo de organização do capitalismo e a formação histórica das cidades. Nas metrópoles latino-americanas, essas mudanças ocorrem em um marco histórico que se caracteriza por maior heterogeneidade social, menor conso-lidação das instituições democráticas, níveis mais elevados de desigualdades de riqueza e renda, como também nas arquiteturas de regimes de bem-estar – muito menos de-senvolvidos no sentido da existência de um sistema público de regulação e proteção sociais. Ademais, em todos os países latino-americanos, a modernização cultural ocor-reu de maneira apenas parcial, ou seletiva ou conservadoramente, de tal forma que a urbanização e, em alguns casos a industria-lização, não chegaram a fundar um padrão de sociabilidade baseado integralmente nos pressupostos do reconhecimento do conflito interclassista, da igualdade moral dos indi-víduos e, portanto, no pressuposto da ne-gociação como prática de interação social. Para entender as diferenças entre os países da região, é conveniente um breve resumo dos seus antecedentes históricos.

As cidades nas matrizes socioculturais latino-americanas

A globalização se desdobra em cenários na-cionais profundamente marcados pela inér-cia de matrizes socioculturais que se formam desde o período colonial. Essas matrizes

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imprimiram um selo particular a cada país. Nosso interesse na natureza e evolução das matrizes socioculturais nacionais justifica-se pelos pressuposto teórico de que seu conhe-cimento permite entender melhor os marcos da referência que utilizam as pessoas para atribuir significados às experiências de inte-rações sociais. Mahoney (2003) se pergun-ta sobre a possível gravitação das matrizes socioculturais de raíz colonial no desenvol-vimento dos países da América Latina. Sua pergunta nasce da seguinte constatação: tanto nos indicadores de desenvolvimento social quanto nos relativos ao desenvolvi-mento econômico, as posições relativas dos países da América Espanhola não variou ao menos nos últimos 100 anos. Tal fato decor-reria da persistência de alguns traços sociais e culturais do período colonial, de modo que quanto mais estreitas e próximas as relações que estabeleciam os países com os centros do poder metropolitano constituí dos na re-gião, mais atrasados seriam o seu desenvol-vimento posterior. Mahoney associa princi-palmente duas características dos países, decorrentes da proximidade geográfica aos centros de poder colonial. A primeira é que tais centros se localizaram em sociedades com alta densidade de população indígena. A segunda, que a proximidade com a coroa operou como barreira à emergência de ide-ais liberais. Ambas as características teriam favorecido a persistência de regimes de inte-ração social altamente hierarquizados.

Não é necessário insistir nessa argu-mentação para inferir que, para Mahoney, tanto o tipo de desenvolvimento como o nível de eqüidade dos atuais regimes de bem-estar dos países latino-americanos de língua espanhola estariam fortemente de-terminados pela gravitação desse legado

colonial. Resumindo, o argumento de Maho-ney chama a atenção para a possibilidade de a inércia das antigas matrizes socioculturais nacionais enraizadas na experiência colonial ter influenciado a rigidez e a resistência a mudanças de tecidos sociais e instituições desenhadas e sustentadas para preservar privilégios.

Ainda que não se possa atribuir as dife-renças entre as matrizes socioculturais dos países da região somente à experiência colo-nial, parece razoável esperar que as socie-dades que nasceram com padrões de convi-vência organizados em torno de hierarquias tiveram mais dificuldades do aquelas orga-nizadas em torno da igualdade para fazer despertar mais cedo em seus cidadãos capa-cidades de empatia, sentimentos de obriga-ção moral em relação aos outros e manter baixos níveis de tolerância à pobreza e às desigualdades. Todas essas virtudes que fa-vorecem uma maior eqüidade no desenvol-vimento emergem com maior dificuldade ali onde a hierarquia opera como critério geral que regula as relações entre as classes.

O anterior sugere que, quando se ana-lisa o grau de permiabilidade a propostas de ampliação dos direitos de cidadania dos grupos de poder e de interesses, torna-se conveniente explorar as características prin-cipias das matrizes socioculturais nacionais, ao menos nas dimensões relacionadas com a forma através das quais as classes sociais se perceberam historicamente umas em relação às outras. Em algumas sociedades da região de fortes bases estamentais, a aparente flui-dez das relações entre os “de cima” e os “de baixo”, na forma de personalismos, cliente-lismos, apadrinhamentos escameita relações e práticas sociais que misturam servilismo e ressentimento ou simplesmente.

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Desigualdades de renda e polarização social à luz das matrizes socioculturais nacionais

Dos apontamentos anteriores, podemos deduzir que os elevados graus de desigual-dades, pobreza, informalidade e desprote-ção social, assim como as segmentações e segregações residenciais que apresentam as metrópoles não representam nenhuma no-vidade em alguns países da região. Mas têm sido e seguem sendo em alguns casos traços distintivos dessas sociedades.

Supomos, porém, que as transforma-ções econômicas e seus impactos sociais es-tão produzindo dois fenômenos novos: de um lado, transformando essas matrizes so-cioculturais e diminuindo o seu papel amor-tecedor das desigualdades sociais sobre o tecido social dos países latino-americanos e engendrando padrões de sociabilidade ca-racterizados por distanciamentos e variadas formas de atitudes de intolerância social; de outro lado, em conexão com essas transfor-mações, estão em curso nas metrópoles da América Latina transformações da sua mor-fologia espacial e dos padrões de provisão dos serviços coletivos – gerando tendências de descoesão social com impactos sobre os mecanismos de integração societária. Tal hipótese sugere a necessidade de que os analistas nas sociedades latino-americanas desenvolvam esforços de pesquisa empíri-ca que permitam avançar na identificação e compreensão das rupturas e continuidades dos padrões de desenvolvimento nacional, assim como sobre seus efeitos sobre a vul-nerabilidade e as transformações na estrutu-ra social urbana. As informações disponíveis

não são suficientes para distinguir com cla-reza o peso relativo das distintas matrizes socioculturais como causas da persistência e do surgimento de problemas sociais. É im-portante advertir para o fato de que a iden-tificação das rupturas e continuidades, assim como a atribuição de causalidade entre as ordens institucionais (e suas transforma-ções) e os problemas sociais é uma tarefa difícil que requer esforços continuados de longo prazo. Em particular, não sabemos o quanto as vulnerabilidades emergentes se devem às novas modalidades de crescimen-to, combinadas à incapacidade dos Estados e de outras instituições sociais de facilitarem as interações e trocas sociais, e dessa forma criarem as condições requeridas para o de-senvolvimento de cidades desfrutáveis e sus-tentáveis em um mundo globalizado (Evans, 2002). Podemos, por enquanto, sugerir hi-póteses de reflexão e caminhos de pesquisa.

As brechas de emprego e renda entre os mais qualificados e os menos qualificados podem levar a situações de maior ou menor polarização social nas metrópoles. A polari-zação social implica ao menos três efeitos: crescente concentração de configurações de ativos com altos níveis de capital físico, hu-mano e social nos estratos superior e, simul-taneamente, crescente concentração de con-figurações de ativos com baixos níveis desses capitais nos segmentos inferiores da estru-tura social; crescente redução da interação e da sociabilidade entre pessoas que perten-cem a distintas classes (ou grupos étni cos ou raciais); e, por último, a exacerbação da po-larização social pela constituição de grupos de alto poder de coesão social, formado exa-tamente por aqueles que alcançam integra-ção nas novas formas de acesso ao mercado de trabalho, compartilhando estilos de vida e

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identidades convergentes e um vasto mundo social fragmentado por diversos princípios de estratificação: étnicos, raciais, culturais e mesmo territoriais, separados por barreias e mecanismos que dificultam a constituição de uma identidade comum.

A polarização será maior onde as desi-gualdades originadas no mercado de trabalho se transladam para outras esferas da intera-ção social, como, por exemplo, as escolas, os hospitais e os bairros. No nível extremo inferior, estariam os perdedores das novas modalidades de acumulação, configurando um espaço social das metrópoles marcadas pelas tendências abaixo sintetizadas.

1) Espaços periféricos de abandono, formados pelo deslocamento territorial das frações mais atingidas pelos processos de marginalização decorrente do novo modelo de crescimento, onde o solo urbano é ainda acessível a segmentos sociais que mantêm frágeis laços com o mercado de trabalho;

2) Espaços populares homogêneos que outrora continham certo grau de heteroge-neidade social, mas abandonados por aque-les que conseguem a infiltração em outros territórios, aproveitando as estreitas bre-chas de mobilidade social existentes nessa nova sociedade. Nesses bairros, perde-se a diversidade da composição social, pela forte presença de trabalhadores com empregos precários e trabalhos informais, desfrutan-do de escassa proteção social, exercendo atividades ligadas aos serviços pessoais e domésticos viabilizados por efeitos de loca-lização (acessibilidade ou proximidade) de zonas demandantes dessas ocupações.

3) Espaços centrais desvalorizados eco-nômica e socialmente, nos quais o parque imobiliário é reaproveitado para a exploração da escassez relativa de oportunidades

através do sistema do encortiçamento e seus congêneres. Trata-se de espaços carac-terizados por alta instabilidade da população moradora, o que traz como conseqüência forte instabilidade das relações sociais e da vida coletiva.

4) Espaços informais intersticiais com a produção de novas favelas e seus congê-neres, através da construção de moradias precárias em vias públicas ou em áreas com vazios urbanos.

5) Espaços de favela e congêneres for-temente adensados no plano territorial e do próprio domicílio.

Essas descrições não pretendem apre-sentar uma tipologia de bairros que abar-que o universo de diversidade da difusão do habitat informal e precário que expressa no plano da organização social do território das grandes cidades os efeitos da combinação da segmentação do mercado de trabalho e dos processos de segmentação e segrega-ção espacial. A diversidade dessas “soluções” obedece às diferenças com que em cada metrópole está se conectando às mudanças macrossociais em curso com as matrizes so-cioculturais de cada país e com o sistema de forças locais que conformam regimes urba-nos específicos.

De qualquer maneira, a constituição de espaços sociais homogêneos no sentido de agruparem segmentos vivendo os efei-tos des-socializadores decorrentes da insta-bilidade da sua relação com o mercado de trabalho tende a ter como contrapartida a segmentação da composição dos usuários dos serviços sociais e urbanos, em especial aqueles realizados por equipamento de pro-ximidade de vizinhança, como as escolas, os centros de saúde, os equipamento e lugares de lazer e os meios de transporte. No outro

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extremo oposto da estrutura urbana, cons-tituído por aqueles que se beneficiam das novas modalidades de acumulação, haverá uma proporção maior de pessoas que deser-tam do sistema público de bem-estar social, atraídos pelas oportunidades de adquirir no mercado serviços urbanos de melhor quali-dade. Também trataram de se afastar das vizinhanças onde a densidade das precarie-dades favorece a emergência dos elementos mais disruptivos da pobreza e, se seus meios assim lhes permitem, tratarão de se refugiar em bairros fechados/condomínios.

A descrição anterior das possíveis vin-cula ções entre o incremento das desigualda-des no mercado de trabalho e as polariza-ções sociais nas metrópoles é, sem dúvida, muito simplificada, mas no nosso entender, enuncia bem a essência do crescente isola-mento e das distâncias entre as classes so-ciais. Com efeito, quando observamos os países latino-americanos considerando suas diversidades históricas, a análise dos efeitos dos macroprocessos (e de seus mecanismos) deve levar em consideração as diferenças entre as metrópoles que se formaram desde a sua origem como espaços segmentados e segregados e assim permaneceram, e aque-las que, tendo sido submetidas a processos de segmentação e segregação em suas fases de explosão demográficas dos 1940 e 1950, posteriormente, foram transformadas pe-la a ação dos mecanismos integradores do mercado de trabalho e da intervenção pú-blica. São as metrópoles situadas em paí ses que buscaram realizar avanços importantes nos seus processos de modernização, demo-cratização e cobertura de direitos e prote-ções. No fundo dessas diferenças estão as matrizes socioculturais mencionadas no iní-cio deste trabalho.

Na reflexão do papel explicativo das matrizes socioculturais de tais diferenças parece-nos pertinente utilizar a tipologia proposta por Filgueira (1988). Ela com-preende as seguintes categorias: universa-lismo estratificado, sistemas duais e siste-mas excludentes.

O regime universalista-estratificado alu-de a uma combinação de ampla cobertura de prestações sociais, com fortes diferenciais quanto à variedade dos benefícios, aos limi-tes de acesso (como idade de aposentadoria ou requerimento para financiamentos de habitação) e à qualidade das prestações. A conformação de sistemas desse tipo segue as linhas de modelos dos regimes de bem-estar corporativos da Europa continental. Os paí-ses da região que apresentam essas caracte-rísticas são tipicamente Argentina, Costa Ri-ca, Chile e Uruguai, mesmo quando o perfil que está assumindo o regime de bem-estar chileno parece estar se inclinando para um modelo mais liberal tipo o anglo-saxão.2

O Brasil e o México são tomados co-mo exemplos por Filgueira como regime dual. Embora a população residente nas principais áreas urbanas desses países tenha acesso a um sistema de bem-estar próximo ao que tipificamos anteriormente como uni-versalismo estratificado, o resto da popula-ção tem muito pouca cobertura dos serviços sociais. Nesses casos, a diferença está em que, politicamente,

[...] o controle e a incorporação dos

setores populares tem descansado em

uma combinação de formas clientelísti-

cas e patrimonialistas nas zonas de me-

nor desenvolvimento econômico e social

e formas de corporativismo vertical nas

áreas mais desenvolvidas. 3

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A categoria de regime excludente, que, com exceção do Panamá, inclui para Filguei-ra o restante das sociedades latino-ameri-canas se caracterizara historicamente pela presença das elites que

[...] se apropriam do aparato estatal e

que, apoiadas na exportação de bens

primários em economias-chave, utili-

zam a capacidade fiscal desses esta-

dos para extrair rendas, sem prover a

contrapartida de bens coletivos, sejam

eles na forma de infra-estrutura, regu-

lação ou serviços sociais. Os sistemas

de proteção social e seguro desse tipo

consistem na sua maior parte de polí-

ticas elitistas que agregam privilégios

adicionais para a população em situação

já privilegiada. Profissionais, um nú-

mero muito reduzido de trabalhadores

formais e os funcionários públicos é que

são tipicamente favorecidos neste mo-

delo. A maior parte da população repre-

sentada no setor informal, a agricultura

e a mão-de-obra secundária se encontra

excluída... Consistente com esse pano-

rama, os indicadores sociais nesse tipo

de países apresentam sistematicamente

os piores igualitarismo assim como os

diferenciais mais altos em regiões com

distintos graus de desenvolvimento.4

É razoável esperar que as sociedades com matrizes socioculturais mais igualitárias (universalismo estratificado, na nossa clas-sificação) reajam de formas parecidas com as dos países mais desenvolvidos diante das tendências de perda da coesão social que suscitam as novas modalidades de acumu-lação. A maioria dos países que conseguiu

potencializar suas indústrias puderam mon-tar sistemas de bem-estar social que, ainda que incompletos, beneficiaram segmentos importantes da população urbana. Portan-to, supomos que esses segmentos incor-poraram essas conquistas como marco de referência de suas expectativas, além de tê-las como parâmetros a partir dos quais avaliam as vantagens e desvantagens das situações que passaram enfrentar com o funcionamento das novas modalidades de acumulação. Em revanche, no extremo que chamamos de regimes excludentes, os efei-tos segmentadores das novas modalidades de crescimento provavelmente encontrarão menores resistências, reforçando as pro-fundas fragmentações já existentes em suas metrópoles, pois, em muitos casos, as atuais tendências de transformação produzem im-pactos des-coesionadores por quebrar os padrões tradicionais de dominação, com suas relações complexas de reciprocidade hierárquicas e obrigações morais, sem erigir como substituto padrões de reciprocidade fundados no pleno e efetivo reconhecimen-to de direitos de cidadania.5 Mas, por serem países com longa experiência de exclusão social, o aumento do isolamento dos pobres urbanos inerentes às novas modalidades de crescimento é ofuscada, pouco visível social-mente, em razão da inexistência de ampla e enraizada consciência coletiva de direitos sociais universalizados. Por essa razão, es-sas sociedades mantêm em estado latente as tensões sociais básicas, que eclodem na for-ma de conflitos e violências de tempos em tempos, refletindo a existência de uma ne-gociação difícil entre projetos alternativos e conflitivos de construção da nacionalidade.

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Segmentação, segregação residencial e desigualdades sociais

Em todas as metrópoles, observamos a ten-dên cia de a organização social do território expressar diferenças étnicas, raciais e socio-econômicas, formando unidades de vizinhan-ça que agrupam domicílios com característi-cas particulares. A intensidade desse proces-so de diferenciação intra-urbana é distinta entre as metrópoles latino-americanas, em razão de suas trajetórias produtivas, polí-ticas e pelos conteúdos das matrizes socio-culturais. Em particular, o peso das classes médias na estrutura social das metrópoles tem grande importancia, uma vez que a sua presença tende a amortecer a tendência à associação entre o pertencimento a certas categorias sociais e a localização residencial.

As novas modalidades de acumulação as-sociadas à globalização trouxeram novidades nesse campo. A elevação dos níveis de quali-ficação necessária ao acesso às ocupações es-táveis e protegidas, a flexibilização das rela-ções de trabalho e a liberalização do mercado imobiliário têm gerado segmentos sociais vi-toriosos e perdedores nas sociedades latino-americanas em transformação. Graças a suas elevadas qualificações, os primeiros puderam aproveitar as oportunidades de mobilidade social ascendente criadas com a abertura e a acelerada incorporação das novas tecnolo-gias. Os mais exitosos se deslocaram para os bairros específicos de maior status social e, em algumas metrópo les, passaram a gozar de amenidades e proteções oferecidas por formas privadas de urbanização e produção da moradia, cujo condomínios fechados e seus congêneres (bairros cerrados, bairros

privados, countries, etc.) são expressões. Os segundos segmentos, com qualificação insu-ficiente e/ou com especializações tornadas obsoletas, passaram enfrentar problemas para pagar seus aluguéis e para conseguir as condições de garantias exigidas em contratos de locação ou em sistemas de financiamen-tos para aquisição da moradia. A retração da intervenção do Estado no mercado habi-tacional agravou essas situações. Sob essas situações, os processos de mobilidade so-cial descendente foram acompanhados pela migração intraurbana em direção àqueles bairros com urbanização precária – freqüen-temente periféricos – onde era mais barato ou nos quais, em caso extremo, existiam po-sibilidades de ocupar ilegalmente terrenos. Ganhadores e perdedores estão distanciados socialmente em termos de renda, qualifica-ção e estabilidade de empregos, segmenta-ção dos serviços sociais e urbanos e também pela segregação residencial.

Esses processos de conexão de desi-gualdades geradas por processos macro-sociais e a organização social dos territorios das metrópoles variaram de país a país. Aqueles que não passaram pela experiência da industrialização ou nos quais a industria-lização foi insuficiente para gerar empregos para os que migraram para as cidades sem-pre mostraram altos níveis de segregação residencial. Ademais, suas classes médias e médias baixas (microempresários, operá-rios industriais e empregados públicos, do comércio e escritórios) tinham um pequeno peso relativo na estrutura social desses paí-ses. Nesses casos, a magnitude de desloca-mentos de certas áreas das metrópoles para as novas áreas das cidades não chegou a al-terar as dimensões e o grau da segregação residencial preexistente.

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A topologia das metrópoles também contribuiu para dar forma à segregação residencial provocada pelas novas tendên-cias de desigualdades sociais, basicamente porque os agentes imobiliários reagiram de forma diferente ante os desafios colocados pela geografia urbana. Por exemplo, é difícil comprender as diferenças quanto às proxi-midades físicas entre áreas de estratos so-cioeconomicos opostos sem considerar os morros do Rio de Janeiro ou as planícies sem limites da província de Buenos Aires. Em Santiago do Chile, observamos claras di-ferenças nos custos de construção e comuni-cações nos vales e nas ladeiras das encostas das montanhas.

Sem dúvida, essas histórias da morfolo-gía social das cidades e o modo como foram afetadas por sua geografia, pelos padrões e graus de segregação residencial previamen-te existente e pelos processos de mobilidade social ascendentes e descendentes colocam dificuldades para interpretar as novas ten-dencias de organização do espaço social das metrópoles decorrentes das macrotrans-formações. Outras dificuldades são relacio-nadas com as possibilidades de medir esses processos: quais são as variáveis pertinentes para capturar essas conexões em cada país? Como medir de maneira comparativa as di-ferenças e semelhanças da composição so-cial das metrópoles e de seus bairros? Quais são os índices que refletem melhor as di-mensões da segregação que nos parecem importantes para superarmos descrições meramente impressionistas? Fundamental-mente, qual é a escala territorial agregação mais adequada para a observação das ten-dências – o setor censitário, um conjunto de quarteirões com carácterísticas semelhantes, o bairro, o distrito ou o município?

Jorge Rodríguez (2006) fez talvez a análise mais minuciosa das tendências de segregação residencial realizado na Amé-rica Latina. Seu estudo se aplica a 4 cida-des (Cidade de México, Rio de Janeiro, São Paulo e Santiago do Chile) e colocou à prova distintas variáveis e escalas de segregação. Suas conclusões relativas a essas três últi-mas cidades são, de um lado, a constatação de clara tendência ao aumento do índice de segregação residencial (não pôde elaborar esse índice para a Cidade do México), mas incertos resultados com a aplicação do ín-dice de dissimilaridade de Duncan para as quatro cidades. Para Montevidéu, uma série de trabalhos utilizando diferentes índices e níveis de agregação coincidem na constata-ção do crescimento do índice de segregação residencial (Kaztman, 1999; Cervini e Gallo, 2001; Macadar, Calvo, Pellegrino e Vigori-to, 2002; Kaztman e Retamoso, 2005).

O nosso interesse neste trabalho não está concentrado em constatar um tipo qual-quer de segregação residencial, mas aque-les tipos cuja dinâmica tem efeitos sobre a convivência social e pode colocar bloqueios à construção de projetos coletivos no plano das cidades e da sociedade. Nesse sentido, o que nos importa são os tipos de segregação que reflitam as novas características da po-breza relacionadas com o impacto da crise do mundo do trabalho sobre os segmentos com baixa qualificação.

Os bairros da nova pobreza

Esses bairros são produto de processos de segregação residencial que, na América La-tina, operam fundamentalmente a partir dos anos 1980. O contexto da metrópole

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mostra importantes diferenças com aqueles que caracterizaram a constituição dos dois tipos anteriormente mencionados. O que prevalece nesse contexto são experiências de desindustrialização e de encurtamento da importância do Estado – as duas fontes mais importantes de emprego urbano não precá-rio –, de acelerada diminuição das oportu-nidades de emprego não qualificado e com especialização tornada obsoleta pelo desen-volvimento tecnológico e a elevação dos re-querimentos de qualificação requerida para a incorporação ao mercado de trabalho. Em vez da atração da cidade, nesses casos, ope-ra a expulsão para a periferia. Em vez de domicílos estimulados por novas oportuni-dades de trabalho e progresso, crescem os segmentos da população desalentada e com poucas esperanças de inserção estável na es-trutura produtiva. À diferença dos migran-tes rurais que contrastavam favoravelmen-te sua situação presente com a que haviam desejado, muitos dos atuais pobres urbanos contrastam negativamente sua situação pre-sente com um passado melhor e enfrentam dificuldades para o exercício efetivo dos di-reitos sociais já conquistados e para satisfa-zer aspirações legítimas de participação em estilos de vida predominantes nas cidades. Ao invés de expectativas de mobilidade as-cendente, predomina a experiência da mobi-lidade descendente como fato inevitável. Os efeitos negativos de todos esses processos sobre o bem-estar dos pobres urbanos e suas posibilidades de integração social são agudizados pela combinação perversa de dois fenômenos: enquanto o eixo da forma-ção das identidades de desloca do mundo do trabalho ao mundo do consumo, amplia-se a distância entre a participação material e par-ticipação simbólica desses estratos.

A concentração espacial – historica-mente inédita – de pessoas com aspirações inerentes à vida urbana, com privações e escassas esperanças de alcançar metas signi-ficativas através do emprego, gera fortes sentimentos de privação relativa. Sob essas circunstâncias, os novos guetos urbanos fa-vorecem a germinação dos elementos mais disruptivos da pobreza. As famílias que con-tam com recursos abandonam esses bair-ros, deixando em seu lugar uma população empobrecida, crescentemente precarizada e isolada das pessoas que reúnem os elemen-tos mínimos para alacançar êxito na socieda-de contemporânea.

A concentração espacial das pessoas que compartilham essas características reforça a precariedade do grupo por várias vias. Em primeiro lugar, a interação com vizinhos es-tá limitada a pessoas cujas habilidades, há-bitos e estilos de vida não são favoráveis à valorização de resultados exitosos de acordo com os critérios predominantes na socieda-de. Segundo, as redes de vizinhança são ine-ficazes para a obtenção de informação sobre emprego ou oportunidades de capacitação. Terceiro, a mesma instabilidade trabalhista gera dificuldades para a manutenção das instituições locais, existentes na escala do bairro, e dos níveis adequados de organi-zação e controle social informal. Quarto, as crianças e jovens carecem de exposição e contatos a modelos, isto é, a pessoas que têm êxitos nos circuitos sociais e econômi-cos principais da cidade. Por último, um as-pecto explosivo dessa situação localiza-se no fato de que as fontes de produção e repro-dução da elevação das aspirações não deixa-ram de funcionar, ao mesmo tempo em que avançam os processos de enfraquecimento dos vínculos com o mercado de trabalho, a

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segmentação dos serviços coletivos e a se-gregação residencial. A universalização da educação, não obstante sua baixa qualidade, cria a expectativa de integração social pelo mérito e eleva as aspirações de sucesso. De um modo ou de outro, ao mesmo tempo, a globalização coloca as grandes maiorias em contato com discursos que sublinham a legi-timidade do acesso a uma série de direitos sociais cujo exercício efetivo é negado pe-la experiência cotidiana no contato com as instituições mais gerais a sociedade, seja a justiça, a policía ou a administração pública. Temos como conseqüência focos territoriais de anomia, cuja essência é a homogeneiza-ção de metas e expectativas culturais e, ao mesmo tempo, o aumento da desigualdade de recursos e oportunidades. Algumas das reações a essa situação são produtoras de efeitos disruptivos sobre o tecido social das cidades, com potencial para se alastrar para o conjunto da sociedade.

Mecanismos retroalimentadores da nova pobreza

Uma vez criados bairros com as caracaterís-ticas apontadas anteriormente, o isolamen-to e a densidade de experiência da privação relativa geram condições fertéis à emer-gência de subculturas locais, fundadas em valores e orientações diferentes e mesmo contraditórios com aqueles requeridos pe-la sociedade da competição que se implanta com as transformações operadas pela glo-balização. A honra fundada na bravura, na coragem para enfrentar situações de riscos e a misoginia são valores que permitem aos habitantes desses bairros pobres e isolados alcançarem a estima e o reconhecimento de

grupos de referências locais. As crianças e os jovens deixam de ser socializados para ado-tarem valores e orientações culturais favorá-veis ao comportamento social racionalmente orientado, capaz de levá-los à construção de projetos de futuro. A existência dessas subculturas encurtam os horizontes espaço-temporais dos habitantes dos guetos pobres, o que tem como consequência a reação da sociedade e a alimentação e o profundamen-to do isolamento social dos pobres.6

Os exemplos da operação desses me-canismos de reprodução ampliada do isola-mento são inúmeros.

1) Os habitantes dos bairros, especial-mente os jovens, são vítimas da chamada “discriminação estadística” pela qual somen-te a consideração do seu lugar de residência é suficiente para os empregadores recusa-rem empregos.

2) O abandono desses bairros pelas fa-mílias que têm ainda recursos desertificam esses espaços das pessoas que “têm voz” e que poderiam assumir o papel de transmisso-res dos padrões normativos da sociedade glo-bal e de contatos e informações para a obten-ção de empregos e/ou acesso aos serviços.

3) As pessoas evitam entrar nesses bairros, o que faz com que os seus habitan-tes experimentem a redução da frequência de contatos familiares e de amizades com quem vivem em outras áreas da cidade.7

As subculturas dos bairros da nova po-breza urbana se expressam por uma ampla gama de padrões atitudinais e normativos que se sedimentam em torno do reconheci-mento das adversidades compartilhadas pela população com graves carências materiais e precárias condições de vida, de barrei-ras à mobilidade social e da necessidade de encontrar bases comuns para construir ou

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reconstituir um sentimento de autoestima altamente atingida pela experiência da exclu-são não apenas do emprego e dos serviços, mas também das fontes legítimas de pres-tígio e reconhecimento sociais. Para muitos dos seus residentes, o trabalho deixou de ter o papel universalizador da sua condição social e de referente central para a organi-zação social da vida cotidiana, para a pro-visão de disciplinas, regularidades e para a articula ção de expectativas e escalonamento de metas de vida. Por sua vez, o progres-sivo isolamento tende tornar cada vez mais difusos os sinais (quando existem) oriundos da sociedade global que indicam caminhos acessíveis a pessoas de baixa qualificação para alcançar condições dignas de vida. Pa-ra outros, que alcançam maior escolaridade que seus pais, por outro lado, vivem essa experiência como deslocamento social, uma vez que aumentam crescentemente os re-querimentos da qualificação necessária ao acesso aos postos de trabalho estáveis, pro-tegidos e maior remuneração. A defasagem entre a oferta e a demanda de qualificações contatada no recente relatório da Cepal (2007) tende a ter impactos desvatadores da sociabilidade imperante nos bairros que apresentam os traços dos guetos urbanos descritos anteriormente.

Esse contexto sociocultural é altamen-te favorável ao aumento da permeabilidade da população pobre a caminhos paralelos de integração social via o atingimento de metas via o consumo. Enquanto isso, a vida social no bairro, a relação com as instituições da sociedade e o isolamento social tendem a inibir a eficácia de eventuais iniciativas que poderiam contrabalançar essas predisposi-ções invocando normas e valores modais da sociedade.

Possíveis efeitos da residência em bairros da nova pobreza sobre comportamentos e expectativas

Em revisão exaustiva da lieratura americana sobre os efeitos dos bairros pobres sobre uma série de comportamentos considera-dos de riscos no sentido da perpetuação da situa ção de pobreza, Christopher Jencks e Susan Mayer (1990) encontram abundante evidência sobre as conseqüências dos con-textos sociais conformados pelos efeitos da segregação residencial sobre o rendimento educativo, condutas aditivas e delituosas, as-sim como sobre a maternidade adolescente. Essa hipótese, embora contestada por parte da literatura sociológica americana, foi ob-jeto de outros balanços dos resultados das pesquisa americanas, como nos trabalhos de Dreier, Mollenkopf e Swanstron (2004).

Na América Latina, os estudos dos efei-tos da segregação residencial urbana sobre as expectativas e comportamentos das pes-soas que residem em bairros com composi-ção social homogênea são muito escasssos. Não obstante, algumas poucas investigações nos fornecem pistas nessa mesma direção.

Estudo feito por Ribeiro et al. (2005) sobre as 15 principais metrópoles brasilei-ras nos fornece indicações empíricas sobre a existência de fortes sinais da relação en-tre a concentração espacial de trabalha-dores com frágeis laços com o mercado de trabalho e a incidência nesses espaços de alta concentração de crianças e jovens com atraso escolar, jovens que não traba-lham, não estudam e também não procu-ram emprego e jovens adolescentes mães solteiras.8 Os estudos sobre a relação da

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segregação residencial e o desemprego no município de São Paulo (Gomez e Amitra-no, 2004) e sobre as limitações a ocupa-ções estáveis e sobre os rendimentos da ocupação na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Ribeiro, Rodrigues e Correa, 2008), embora também descritivos, ten-dem mostrar que os residentes em bairros que concentram adultos fragilizados na re-lação com o mercado de trabalho têm mais problemas acesso ao mercado de trabalho em razão de efeitos dos mecanismos de spatial mismatch entre lugares de traba-lho e residência, pela escassez de oportu-nidades de empregos nos próprios bairros e também por falta de informação e con-tatos que falicitem a busca e obtenção de trabalho e pelos efeitos da discriminação dos territórios. Outro estudo, realizado em Montevidéu, confirma a existência de asso-ciações positivas entre o nível de homoge-neidade da composição social dos bairros pobres e as taxas de desemprego, propor-ções da PEA dedicada a atividades informais e sem proteção trabalhista, e também com as proporções de jovens que não traba-lham, não estudam e tampouco procuram emprego. (Kaztman e Retamoso, 2005)

Uma série de trabalhos mostram asso-ciações significativas entre as características dos bairros e o comportamento de risco de crianças e adolescentes que alimentam os mecanismos de reprodução intergeneracio-nal da pobreza e das desigualdades nas me-trópoles. Tal é o estudo dos efeitos de vizi-nhança sobre os comportamentos reprodu-tivos de adolescentes (Rodríguez, 2006; Kaztman 1997, 1999; Sabattini, Caceres e Cerda, 2003). Outro conjunto de estudos analisa as consequências da residência em determinados bairros sobre distintos tipos

de variáveis relacionados com o rendimen-to escolar, tais como distorção série-idade, evasão escolar, etc.9 Outros trabalhos ana-lizam espeficamente a relação entre as ca-racterísticas sociais do bairro e as médias de jovens sem afiliação institucional por não trabalharem, não estudarem e nem procurarem emprego (Sabattini, Cáceres e Cerda, 2002 e Kaztman, 1999). O sentido de risco dos comportamentos mencionados funda-se em seu potencial para operar co-mo barreira à acumulação, através da esfe-ra do mercado, da sociedade e do Estado, dos ativos requisitados à integração virtuo-sa na sociedade.

E classes médias?

A qualidade das relações sociais relaciona-se não apenas com as particularidades da nova pobreza e seus efeitos na sociabilidade im-perante nas metrópoles, mas também pelo peso relativo das classes médias urbanas e suas orientações presentes na interação com as camadas populares e com as esferas cívi-cas da cidade. Trata-se de estruturas atitu-dinais ativadas diante dos incrementos dos indicadores de desigualdades que ultrapas-sam o nível do tolerado, incentivando ações solidárias diretas ou apoio a iniciativas que restabeleçam o equilíbrio. Elas podem incluir desde a constituição (ou associação à) de en-tidades não-governamentais de filantropia e promoção social, apoio eleitoral a iniciativas dirigidas a proteger os mais frágeis e man-ter a universalidade dos serviços urbanos, até a disposição a pagar mais impostos para apoiar medidas redistributivas.

A aversão à desigualdade10 fundamen-ta-se na capacidade de empatia dos mais

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favorecidos com os que têm menos e em seus sentimentos de desobrigação moral em relação ao destino dos pobres. Esses conteúdos mentais perdem vigência se não são renovados periodicamente através de contatos informais entre pessoas com dis-tintas condições econômicas. Mas não se trata apenas de maior ou menor frequência de contatos, mas do sentido atribuído por ambos os segmentos – os “ganhadores” e os “perdedores” da nova sociedade – a es-sas interações sociais. Trata-se de relações entre indivíduos que se representam como moralmente iguais ou, ao contrário, tais interações realizam âmbitos sociocultu rais nos quais “os de cima” vêm os “de baixo” como “inferiores” porque não são portado-res dos sinais hegemômicos de pertencimen-to à sociedade. Os “de baixo” representam os “de cima” apenas como canais de acesso a recursos tornados escassos por sua con-dição social, portando, através de atitudes orientadas apenas pela razão instrumental? Os sentimentos de obrigação moral serão mais fortes quando, simultanea mente, hou-ver intensidade e frequência das interações e compartilhamento de valores, atitudes e expectativas comuns. Tais sentimentos ocorrem nas interações realizadas em âmbi-tos signficados coletivamente como espaços públicos, ou seja, marcados pelos valores e exigências inerentes à noção da igualdade moral e legal – o transporte, as praças, os hospitais, as escolas, os campos de futebol,

os bares, as praias, os espetáculos massi-vos, as ruas, etc. Tanto a segregação resi-dencial como a segmentação dos serviços públicos, delimitando a base estrutural que sustenta a capacidade de empatia e de re-conhecimento sociais, enfraquecem os sen-timentos de obrigação moral, que, por sua vez, elevam os níveis de tolerância com a desigualdade.

O clima de insegurança e medo reinan-te em muitas metrópoles da América Lati-na participa do processo de desconexão das classes médias das funções que no passado exerceram, uma vez que incentiva a ado-ção de comportamentos autodefensivos e individualistas, em última instância, de des-solidarização com os destinos da cidade. Essas práticas estão presentes na busca de modelos segregados de moradia, como são os condomínios fechados, através dos quais as classes médias pretendem se proteger da “desordem urbana”.

Entretanto, em algumas metrópoles, a persistência de mecanismos de solidarie-dade preexistentes ao período da globali-zação gera contratendências ao isolamento das classes médias. São visíveis os sinais de rupturas do tecido social nas metrópoles em que as formas contemporâneas de ter-ritorialização da nova pobreza se combinam com a forte deserção da cidade pelas classes médias, materializada pelo seu afastamento e encerramento residencial e a privatização dos serviços coletivos.

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Ruben KaztmanMestre em Sociologia pela Universidade de Berkeley. Diretor do Instituto de Programa de Investigación sobre Integración, Pobreza y Exclusión Social da Universidade Católica do Uru-guay e Coordenador do Grupo de Estudo sobre Segregação Urbana (Montevideo, Uruguai)[email protected]

Luiz César de Queiroz RibeiroProfessor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador do Observatório das Metrópoles/Instituto do Milênio-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Pesquisador 1 A do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil)[email protected]

Notas

(*) Versão anterior deste artigo foi escrito como contribuição ao projeto Nova Agenda de Coe­são Social para a América Latina, realizado pelo iFHC­Instituto Fernando Henrique Cardo­so e pelo CIEPLAN­Corporación de Estudios para Latinoamérica. O projeto foi realizado em 2006, graças ao apoio da União Européia e do PNUD. As informações e opiniões apresentadas pelos autores são de sua responsabilidade pessoal e não representam neces­sariamente nem comprometem as instituições associadas ao projeto.

(1) Ver Topalov (1988; 1994; 1996) sobre a relação entre a reforma social e a reforma urbana e seu papel na constituição da percepção coletiva da necessidade de um sistema institucio­nal de regulação e de proteção social que fundamentou as bases do Estado do Bem­Estar Social.

(2) Sobre a definição e características predominantes em distintos regimes de bem­estar, ver Gösta Esping­Andersen (1999), Social Foundations of Post Industrial Economies. Oxford, Oxford University Press.

(3) Filgueira (1998).

(4) Ibid.

(5) Essa é a argumentação de alguns trabalhos sobre o Brasil que têm procurado encontrar os fundamentos da violência urbana na decomposição do sistema híbrido de reciprocidade formado historicamente em razão da modernização conservadora ou seletiva, sem que seja substituído por regras fundadas nos direitos de cidadania. Ver a esse respeito Soares (1997) e Velho (1996). Para uma interpretação em que se confronta a hipótese de crise do sistema híbrido de reciprocidade, ver Souza (2003).

(6) Sobre a dimensão da violência geradora dessa subcultura, ver Soares (2000). Segundo esse autor, a violência nas favelas do Rio de Janeiro e, de maneira mais geral, nos bairros po­bres, gera as seguintes tendências: desorganização da vida associativa e política das comu­nidades; imposição de um regime despótico nas favelas e bairros populares; recrutamento

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da força de trabalho infantil e adolescente; disseminação de valores bélicos, contrários ao universalismo democrático e cidadão, fazendo com que os princípios de orientação dos comportamentos sociais, especialmente dos jovens, sejam os ligados à lealdade, honra e coragem, próprios de uma sociedade feudalizada, havendo retração dos valores civiliza­tórios que habilitam seu portador com disposições subjetivas para o respeito às regras da sociabilidade e para a racionalidade estrategicamente orientada; como conseqüência, nos bairros populares, observa­se o predomínio agressivo dos valores da guerra feudalizada, fundados na crença da supremacia da coragem e da lealdade, o que leva, invariavelmen­te, a um quadro social de faccionalismo fratricida; destruição das estruturas familiares e da dinâmica da reprodução cultural ao inverterem­se as relações de autoridade intergeracio­nais, convertendo­as em laços de poder militarizado. Em decorrência da vigência desses valores, há, nos bairros populares, uma permanente disputa em torno da supremacia moral de duas estruturas de hierarquia: a familiar e a do tráfico; a conseqüência é a degradação da “lealdade comunitária tradicional, substituindo­a por relações exclusivistas com grupos paramilitares e por um narcisismo consumista extremo”; nos bairros em que o tráfico tem presença marcante “a identidade predominante passa a ser o grupo criminoso, que usa o vínculo simbólico de uma das grandes ‘famílias’ do tráfico para diferenciar­se dos rivais. Esse processo tende a ser mais traumático quando os traficantes são invasores, isto é, não originários da favela que dominam”; fortalecimento e disseminação do patriarcalismo, a homofobia e a misoginia; estimulação de reações que tendem a estigmatizar a pobreza e os pobres, promovendo imagens negativas das comunidades dos bairros populares, que passam a ser vistos como fontes do mal; essas imagens inspiram e reforçam práticas dis­criminatórias da sociedade como um todo em relação às favelas e aos bairros populares, sobre os quais passam a vigorar concepções e discursos estigmatizadores. Bem sabemos, a partir dos resultados das pesquisas de Wacquant (2001) sobre os guetos negros de Chicago e sobre as periferias pobres de Paris, que o estigma acaba sendo incorporado pelos estig­matizados, o que os leva a comportamentos orientados pela busca em se dissociar desses lugares.

(7) Ver a respeito Zaffaroni, em Kaztman (1999).

(8) Identificação e análise das áreas socialmente vulneráveis das metrópoles, Observatório das Metrópoles, www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br.

(9) Para Santiago de Chile, Flores (2008) e Sabattini, Cáceres e Cerda (2002); para Ciudad de Mexico, Solís (2006); para Rio de Janeiro, Ribeiro (2005) e Alves, Franco e Ribeiro (2008); para Belo Horizonte, Soares, Rigotti e Andrade (2008); para São Paulo, Torres, Ferreira e Gomes (2004); para Buenos Aires, Suarez e Groissman (2008); para Montevideo, Kaztman e Retamoso (2008).

(10) Certamente, a contribuição das classes médias e altas à manutenção dos espaços públicos que posibilitam interação interclasse não descansa somente em seu nível aversão à desi­gualdade. Também intervém o temor das externalidades que freqüentemente acompa­nham a deterioração da qualidade de vida das maiorias sociais e dos serviços públicos que utilizam a instabilidade política, o descenso da legitimidade das instituições, conseqüen­temente, as dificultades das elites em mobilizar a vontade coletiva em apoio a projetos de mudanças – e, sobretudo, cada vez mais, as conseqüências da insegurança pública sobre as suas condições de vida.

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