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Cadernos de estudo nº 2

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Nesta segunda edição, o fanzine Cadernos de Estudo, propõe uma reflexão sobre o afeto, a relação mestre e discípulo e a integração entre fazer e pensar arte, traz ainda a segunda parte da tradução do Capítulo 5, “Ensinar e Aprender como Formas de Arte”, do livro Fluxus Experience e em seguida um filme-entrevista com o Artista Professor Tuneu.

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o aprender o ensinara arte e o imponderável nesses processos

Quando pela primeira vez li o Capítulo 5, Ensinar e Aprender como Formas de Arte, do livro Fluxus Experience, de Hannah Higgins, e surgiu o desejo de traduzir e compar-tilhar, logo pensei na divisão em três partes. A primeira seria marcada entre outras questões pela importância da prática, do fazer e pela ideia de transdisciplinaridade, um desenho de pensamento que ultrapassa as disciplinas correntes. Nes-te segundo fragmento, esboçando uma reflexão sobre a im-portância das relações humanas nos processos de ensino e aprendizagem, destaco o afeto como tema.

No âmbito do ensino de Artes Visuais a questão do afeto nos leva a pensar sobre o vínculo estabelecido entre mestre e discípulo. Isso nos remonta não apenas ao exemplo medieval de ensino de arte como também às relações de en-sino e aprendizagem que acontecem nos ateliês de artistas, uma espécie de adaptação do modelo medieval, com ênfase nas relações diretas e pessoais numa convivência estruturada pelo fazer.

É no terreno imponderável das relações humanas que acontecem as trocas entre mestre e discípulo e refutar esse lugar de troca talvez evidencie uma tentativa de fuga do que nele encontramos de emaranhado. Quando, por exemplo, um discípulo se torna um mero reprodutor de seu mestre, num irrefletido repetir a maneira de outro ou se instaura a mitificação do mestre, ou ainda, quando dentro dessa rela-ção emergem noções de gênio, com o artista visto como um favorecido pela natureza.

O vínculo, a relação, o convívio entre mestre e discípu-lo, apesar de ser informal e de muitas vezes não se estabe-lecer através de um acordo explícito, assume o campo do afeto como matéria de trabalho, num processo de pesquisa conjunto e de transformação, muitas vezes em mais de uma esfera da vida. Não se forma um especialista, trata-se da for-mação de um ser humano.

Mesmo que se fale pouco sobre a relação e convívio en-tre alunos e professores, mesmo que seja difícil de avaliar e de mensurar, principalmente em parâmetros institucionais, o afeto é inevitável e determinante na formação.

No livro O Mestre Ignorante, Jacques Rancière nos apresenta a prática e o pensamento do professor francês Joseph Jacotot, e menciona que o ensino que propicia a

emancipação acontece na escala do sujeito e não na escala da instituição. Em grande parte, não é isso o que acontece nas instituições de ensino? Uma relação similar à de mestre e discípulo pode se instaurar independentemente das escalas institucionais, das obrigações de currículo e da escassez de estímulos para que ela aconteça.

Julio Plaza em seu texto “Arte/Ciência: Uma Consciên-cia” faz um exercício de pensamento sobre as convergências e divergências entre arte e ciência e afirma que “os antigos papéis reservados ao ‘mestre’ e ao ‘discípulo’ reconfiguram--se, por sua vez, como metáfora, nas figuras do professor e do aluno” dentro da Universidade. Ele aponta ainda que a Universidade “é o espaço de elucidação das relações entre o ‘fazer’ e o ‘saber’ artísticos” . Destacando que este novo paradigma é mais crítico em relação aos anteriores, pois os pensa e analisa.

O modelo da academia, ao surgir na Itália no século XVI, distribui os saberes em disciplinas com o intuito de complementar teórica e intelectualmente o trabalho artesa-nal das guildas medievais de artistas. Nesse período há uma elevação do status do artista aproximando-o dos intelectuais. E podemos supor que o fazer possa ser classificado como meramente artesanal? Quais são os prejuízos que amarga-mos por separar em pares opostos o fazer e o pensar? O que venho buscando é uma abertura para a reflexão acerca dessa cisão e hierarquização entre prática e trabalho intelectual, numa perspectiva de convergências, intersecções e retroa-limentação.

Um exemplo recente de abordagem que resgata muitos aspectos dessa relação mestre e discípulo é a mentoria, que vem sendo reconhecida em percursos de doutorado infor-mal, fazendo emergir questões como admiração, compar-tilhamento, generosidade. Ocorre uma ênfase nas relações (afeto, amor, formação) e no diálogo. Não se estabelece uma hierarquia e sim uma aprendizagem mútua mais do que ensino. No campo do ensino de Artes Visuais esse ponto nos remete a Mário de Andrade que dizia que Arte não se ensina mas se aprende, ou seja, se compartilha a busca e se aprende junto, há uma pesquisa de repertório, de vocabulário, mas há muita experimentação, improviso, risco e fracasso, todos como partes constituintes de um processo compartilhado.

Cabe a nós, professores e estudantes de Artes Visuais, refletirmos sobre como as instituições de ensino, que pro-põem um percurso de formação artística, dialogam com este aspecto tão importante para a formação humana: o conví-vio. Não se trata de desmerecer a formação acadêmica, mas sim de propor a reflexão: o que o ensino informal, o que o convívio entre artistas num ateliê, em que a tradicional re-lação mestre e discípulo tem a contribuir com a estrutura e configuração dos cursos de nível superior na área de Artes Visuais.

Como valorizar o afeto dentro das instituições de ensi-no formal que possuem estruturas pouco dinâmicas e que se baseiam em avaliações que tencionam à impessoalidade? Às vezes me pergunto se o que denominamos objetividade, na verdade, não constitui uma busca por um lugar inalcançável, uma espécie de ficção de caráter ordenador? A resposta, é claro, deve ser construída através da prática, mas algumas possibilidades para a formação em Artes Visuais na Univer-sidade vêm à mente: ateliês onde o professor desenvolva o próprio trabalho, com espaço e tempo compartilhados; es-trutura curricular flexível, que permita matérias fundamen-

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tadas nas pesquisas individuais dos professores, não apenas como tópicos eventuais mas como matérias constituintes do curso; ateliês livres e coletivos; currículos individualizados. Espaço, tempo e recursos para a prática, o convívio, o com-partilhamento e o desejo no campo das subjetividades. Estas reflexões podem ainda se expandir para a relação entre pro-fessores e alunos nas mais diversas áreas e nos mais diversos níveis de formação. Como são pensados os currículos e os espaços para o convívio, o trabalho compartilhado e as re-lações humanas?

No desenvolvimento de nossa prática didática, é preci-so refletirmos sobre como aprendemos e se ensinamos do mesmo modo que aprendemos. Considero importante que nós professores verbalizemos os processos de nossa apren-dizagem, pois nesse exercício de nomear reconhecemos e damos lugar no mundo para o que consideramos essencial. Propiciar aprendizagem não se trata de apenas reproduzir procedimentos e resultados, mas sim de desenvolver mé-todos de criação com o conhecimento, que considerem a estrutura de pensamento de cada aluno, que considerem o conhecimento anterior de cada um. Proporcionando, através da generosidade e do contato direto entre pessoas, diálogos com a tradição e autonomia para a criação.

Retomando Rancière, O mestre ignorante, nesse lugar da construção de conhecimento junto ao outro não há lugar para o professor explicador. O professor explicador é aquele que afasta o aluno da prática, da experiência direta, traz o pensamento pronto. Ao afastar da prática, embrutece o alu-no que pouco fala, que pouco vivencia, pouco sente. Para o autor, o professor deve ser um emancipador, que põe a inte-ligência do aluno em movimento: a imaginação, o improviso e a verbalização dos processos são alguns caminhos aponta-dos. O professor não ensina o que sabe sobre determinados assuntos, mais do que isso, ele ensina métodos para que o aluno por si só se aproprie do conhecimento.

Se as instituições de ensino e a prática docente são ele-mentos fundamentais para repensarmos a formação, não podemos esquecer que a atuação dos alunos também é. Considero que aos alunos compete uma vontade, uma ne-cessidade, um protagonismo, uma atitude crítica fundamen-tada por muito trabalho.

E como num exercício de desenho, seja na prática ar-tística, seja na prática diática, as partes que busco integrar são: o corpo em ação e pensamento e as diversas maneiras de apreender e de interagir com o mundo através de com-partilhamentos. Preconizando o papel do professor como um propositor de ações que se desdobram em experiências estéticas. Vislumbrando um todo que aponte possibilidades de uma formação (nos mais variados níveis) do indivíduo de forma mais integral.

Apresento na sequência a segunda parte da tradução do Capítulo 5, “Ensinar e Aprender como Formas de Arte”, do livro Fluxus Experience e em seguida um filme-entrevista com o Artista Professor Tuneu.

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Ensinar e aprender como formas de arte

Cage observou em sua entrevista no livro de Filliou, de 1970, que “cinco anos após receber o seu diploma em qual-quer universidade americana, em uma área particular, todas as coisas que você aprendeu durante a sua educação não tem mais nenhuma utilidade pra você”. Fatos nunca param de se acumular. Ele continua: “Podemos nos tornar céticos sobre qual é a função da educação e afinal o que temos que fazer é dar para cada indivíduo, desde a infância, uma varie-dade de experiências em que sua mente seja colocada em uso, não como um memorizador de um corpo de informa-ções transmitidas, mas como uma pessoa que está em diálo-go, primeiramente consigo mesmo, e depois com os outros, como se eles fossem aquela pessoa também.” A respeito de “colocar em choque uma informação contra outra”, Cage declara que “com frequência uma terceira coisa ou mesmo uma grande quantidade de coisas acontecem em sua mente. Sua mente inventa, ou cria, digamos, a partir deste contato e é assim que deve ser se queremos aprender algo que ainda não sabíamos” .

Filliou, por sua vez, imagina dentro de todas as institui-ções educacionais um instituto interdisciplinar que ele em outro lugar chama de Instituto de Criação Permanente . Este não é apenas um programa de mídias mistas que multiplica as categorias existentes e eventualmente leva a uma posterior estagnação. Em vez disso, Filliou propõe um “mundo pionei-ro que deve estar nas mãos dos artistas” em que as hierar-quias entre professores e estudantes assim como entre as mí-dias são apagadas e “qualquer um pode dar sugestões sobre que tipo de coisas devem ser observadas ou investigadas”. Este novo espaço não pode e não deve ser nomeado por uma prática específica, mesmo uma que seja popularmente entendida como interdisciplinar – a arte da performance, por exemplo, que pode parecer combinar artes visuais e teatro, ou a arte digital que combina tecnologia e artes visuais – pois o uso de uma convenção ao nomear esse espaço poderia alterar o seu significado (como aconteceu com o monólogo da performance autorreveladora).

Dentro de uma estrutura universitária já existente, uma ampla linha de estudo interdisciplinar (uma principal) pode-ria se chamar Estudos Investigativos e incluiria essas práticas criativas apropriadas aos métodos e questões do professor/aprendiz. O currículo seria por definição não especializado, em vez de focar em habilidades de trabalho isoladas ele en-fatizaria a exploração e a expressão de habilidades individu-ais e a adaptabilidade ao mercado de trabalho em constante mudança (apesar de que alguns estudantes podem se tornar mais especializados se eles forem afortunados o bastante para possuírem uma certa forma de inteligência em abun-dância, se puderem identificá-la e se descobrirem que ela é valorizada pelo mercado de trabalho). Os professores facili-tariam não apenas transmitindo informação, mas oferecendo oportunidades abertas à problematização, identificando na experiência dos estudantes padrões recorrentes e significati-vamente orientando-os através de seus interesses e questões pessoais. A figura do professor-facilitador, que já se encontra na educação básica construtivista, não é nem impraticável, nem utópica, basta pensar nos professores facilitadores e ob-servadores, de Maria Montessori, assim como nas aulas em ateliês de artistas. Essa abordagem envolve um pouco mais do que aplicabilidade de informações ao cotidiano e como tal é hora de levá-la a níveis superiores de educação.

O modelo de educação experiencial não abandona a análise e o acúmulo de informação. A diferença é que a informação é acessada de acordo com a necessidade. Não apenas os estudantes entram em um percurso de investiga-ção, acessando e combinando ideias e informações que eles nunca suspeitavam que existissem, mas também os professo-res, não importa o quão experts em uma disciplina particular, não podem conhecer tudo o que os estudantes necessitarão dominar para lidar com suas principais questões. O trabalho do professor, portanto, é garantir uma percepção flexível do mundo e de sua história e auxiliar na abertura de linhas de investigação, assim contribuindo para a formação do aluno. Reed, novamente: “A educação deve ser pensada como um processo de integração da experiência primária e secundária e deve portanto ser ressignificada como um processo contí-nuo que combina a resolução de problemas do mundo real com o tradicional ensino escolar.” Em nosso instituto imagi-nário, por exemplo, os estudantes de arte podem produzir na esfera pública e neste processo aprender a história da arte, o que é produzir uma obra de arte, como encontrar financia-mento, como negociar no mercado de arte e como abordar a reação pública à obra.

Nas palavras dos teóricos da educação Ian McGill e Su-san Warner Weil, o aprendizado experiencial “envolve pro-duzir sentido e transformar o significado pessoal dentro do contexto social... O diálogo pode substituir a ênfase que a educação tradicional coloca sobre o que é certo e errado, sobre certeza e possibilidade”. Contudo, tais transforma-ções são mais fáceis de nomear do que de realizar. Reed chamou de “medo da incerteza” a definitiva ansiedade do Iluminismo e as várias tradições e instituições filosóficas que ela produziu: “Existe uma relação entre as teorias, que tra-tam a experiência como se fosse um estado subjetivo puro, e todas as desagradáveis situações concretas, que muitos de nós enfrentamos porque somos incapazes de usar nossa ex-periência para tomar decisões importantes sobre como de-vemos viver.” Filliou amplia esta observação: “Cada um de nós se torna um conservador na medida em que deseja que

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as coisas funcionem sem imprevistos, sejam trens ou casa-mentos... Não pode haver verdadeira democracia sem uma certa ‘bagunça’.” Assim, um experimento educacional auto-dirigido, que incluiria as lições do aprendizado experiencial e a interdisciplinaridade, deve estar em um estado constante de reforma (a “criação permanente” de Filliou); este proces-so de fluxo, ao gerar infinitas oportunidades para solucionar problemas, seria uma extraordinária ferramenta educacional para todos os envolvidos (mesmo que seja, às vezes, exas-perante).

Como Gardner e outros apontam, os currículos indivi-dualizados não são ilhas informacionais. Eles apenas permi-tem que a informação seja organizada e apresentada de ma-neira adequada às necessidades dos estudantes e, no caso de estudantes de níveis avançados, auxiliam a identificar, comu-nicar e trabalhar com padrões e estruturas. Este modo “au-todirigido”, baseado na produção intelectual compartilhada por professores e estudantes, tende a ser comparativamente simbiótico, apesar da produção em questão ser diferente para cada pessoa envolvida.

Se aceitarmos a ideia de que a inteligência reflete as mu-danças sociais, podemos dizer então que as artes devem de-sempenhar um papel central na arena educacional (e civil), indo além das restrições de uma disciplina específica. Gard-ner descreve a especialização intelectual como um reflexo da especialização funcional da era industrial. Em uma era em que a máquina é um modelo de progresso faz sentido valori-zar a inteligência lógica. Contudo, conforme avançamos em uma fase pós-industrial, a flexibilidade da informação tem se tornado um recurso apreciado e aquilo que chamamos de in-teligência ganhou novas dimensões. Como Gardner afirma: “Podemos definir a inteligência primeiramente como a mani-

festação da interação entre dois componentes: (a) indivídu-os que são capazes de usar o seu conjunto de competências em vários domínios do conhecimento; e (b) as sociedades que incentivam o desenvolvimento individual por meio das oportunidades que oferece.”

Em uma sociedade pós-industrial, portanto, a compre-ensão é alcançada através de uma negociação entre o indi-víduo e sua cultura. A inteligência se torna compartilhada, criativa e comunicacional refletindo uma habilidade para trazer um conhecimento relevante em uma nova situação e um contexto em que “a compreensão pode ser apenas apre-endida e apreciada se ela for experienciada por um estudan-te”. Assim, quando Filliou descreve ensinar e aprender como formas de performance ele se refere não apenas à arte da performance mas também à troca produtiva entre professo-res e aprendizes que, em sua melhor forma, é tão interativa, surpreendente e desafiadora quanto as trocas entre os artis-tas da performance e suas audiências.

Portanto, é possível extrapolar a partir da arte da per-formance em geral e dos conceitos de intermídia e Fluxus Event em particular, para um modelo performativo em todos os níveis de educação, em que as escolas se tornam “socie-dade de aprendizado” que encorajam a interação emocional e social promovendo assim a aquisição de conhecimento e compreensão. Em contraste com a tradicional demonstração de habilidades nas escolas – “performances que de algum modo repetem apenas o que o professor deu como mode-lo” –, podemos imaginar uma situação em que os estudantes “usam os conceitos e as habilidades adquiridas na escola para iluminar novos e desconhecidos problemas... revelando nes-te processo o que eles compreenderam”. Esta compreensão leva tempo, contudo, e quanto mais é enfatizada a absorção

Montagem, Bruxelas, 1975.

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Filliou elabora, a partir de 1959, a noção fundamental da “criação permanente”, que não está limitada a um objeto único, ou a um autor original, com a criação de muitas peças em colaboração com outros artistas. Pensada como um jogo, sua obra se articula ao redor de três conceitos – criação permanente, pesquisa eterna e festa permanente, que encontram um desenvolvimento na fundação da República Genial, para a ampliação do gênio humano e no Poipoidrome. Para Filliou, o princípio lúdi-co e combinatório é essencial e encontra no Poipoidrome a sua forma mais radical, inalcançável: um processo ilimitado, determinado pelos que o realizam, há uma va-lorização das trocas e das transformações. Concebido em 1963 junto com seu amigo Joachim Pfeufer, arquiteto e urbanista estadunidense, o Poipoidrome foi chamado de Centro de Criação Permanente, e nos anos que se passaram continuou sendo desen-volvido na forma de projetos e maquetes, acompanhados de descrições do percurso e das propostas pensadas para cada sala. O Poipoidrome Centro de Criação Perma-nente, através de suas notas e maquetes, e o Princípio de Equivalência foram expostos em uma sala dedicada a Robert Filliou na Documenta 5 de Kassel em 1972. Uma versão se materializou, em 1975, no protótipo P00, o Poipoidrome no Espaço-Tempo Real (ETR), em Bruxelas. O protótipo P00 funciona como uma matriz – com gesta-ção permanente, cada versão é diferente, se modificando com a intervenção pública, não há uma forma final. Em 1978, uma outra versão do P00 foi apresentada em Paris, do lado de fora do Centro Georges Pompidou. Sucessivamente, Filliou e Pfeufer re-alizaram juntos as versões 1 (Budapeste, 1976), 2 (o projeto foi cedido para que fosse realizado pelos estudantes de Belas Artes em Nantes, 1976) e 3 (Reykjavik, realizado por artistas islandeses, 1978). Após a morte de Filliou, Pfeufer elabora as versões 4, 5 (em Nantes e depois em Lyon, 1993) e 6 (em Lyon, 2000/2001). Ao adquirir o Poipoidrome ETR, protótipo P00 em 1991, o Museu de Lyon detém os planos de realização dos próximos protótipos (foi até onde conseguimos mapear). (NE).

Protótipo P00, o Poipoidrome no Espaço-Tempo Real (ETR), 1975.

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de volumes de conhecimento (o que os meus colegas bem intencionados chamam de “pegando tudo” ) a verdadeira compreensão permanecerá fora de alcance.

Neste modo de educação performativo, existirá um di-recionamento para o que Gardner chama de “domínios es-pecíficos”, aquelas disciplinas que derivam dos valores sociais e dos motivos pelos quais uma pessoa interage com outras com interesses comuns. Na medida em que isso pode refletir certas formas de inteligência, as disciplinas tradicionais não desaparecerão. A estrutura institucional da educação pode, contudo, sofrer um impacto mais imediato. Quando vista em um sistema fundamentalmente aberto, muitas formas de es-trutura – a grade de horários, por exemplo, ou a disposição inflexível das carteiras na sala de aula – podem ser reconheci-das pelo que são: obstáculos para o pensamento. Os efeitos de tal estrutura na mente pré-púbere têm sido muito estu-dados, contudo, pouca atenção foi dada para tal assunto no nível universitário. De fato, poucos desafiam publicamente a cultura de testes e o padrão piramidal da dinâmica em sala de aula. Hannaford é uma exceção, como ela explica:

Muitas de nossas práticas educacionais derivam da afir-mação infundada de que as pessoas aprenderão melhor se receberem muita informação, seja pela aula expositiva ou pela forma escrita. Para aprender, eles devem permanecer quietos, manter seus olhos direcionados para a frente e to-mar notas. Nós temos apenas que observar os olhos vidrados e olhares vazios dos estudantes num auditório ou sala de aula para saber que esta é uma crença que precisa ser abando-nada.

Pense em situações, que livres da burocracia das grades e da formatação estrita, incentivam a livre troca de ideias: conversas em café, bate-papos tarde da noite nos degraus dos dormitórios, encontros casuais antes ou depois da aula. É em situações como essas, eu afirmo, que os aprendizados mais relevantes acontecem (provocados, idealmente, por um educador), onde a informação é internalizada, perspecti-vas se desenvolvem e campos de interesse são identificados.

Por que não introduzir tal tipo de interação livre no am-biente da sala de aula? O enriquecimento também pode acontecer se as metodologias de exposição de ideias fossem reestruturadas de modo a se tornar mais parecidas com con-versas e introduzissem uma abordagem com múltiplos mo-dos de aprendizagem. Essa multiplicidade de abordagens exige um ambiente enriquecido. Hannaford, citando o traba-lho de Marian Diamond com ratos, explica que “em ambien-tes enriquecidos [ratos] desenvolveram mudanças estruturais em seus cérebros e mostraram um comportamento que po-deria ser interpretado como uma demonstração de aumento de inteligência”. Um ambiente enriquecido, então, se refere ao espaço físico concreto que o corpo habita enquanto a (não tão separada) mente faz o seu trabalho intelectual. A sala de aula pode ser radicalmente reconfigurada para incluir arranjos estimulantes de lugares e mobiliário e instrumentos de escrita mais confortáveis e aconchegantes, esquemas de iluminação variados, e até mesmo áreas de “intervalos” pla-nejadas – lugares em que o grupo pode se reunir quando a discussão se esgota ou quando os debatedores parecem cansados.

Estudos de casoNosso pedagogo Fluxus, Robert Filliou concebeu um

modelo utópico (não-realizado) de tal programa que ele

chamou de “Poipoidrome”. Este modelo apesar de ser in-terdisciplinar e espacial não é como tentativas de reforma similares criadas por figuras como Derrida e Beuys, pois ele não se metamorfoseia numa estrutura baseada em tex-to (Derrida) ou em modelos fixos (Beuys). Em vez disso, o Poipoidrome é arquitetônico, consistindo em quatro quar-tos conectados, ou situações de aprendizado, que permitem experiências físicas, emocionais e psicológicas de conheci-mento, associadas à consciência espacial e a vários tipos de abordagens didáticas.

O Poipoidrome, uma edificação de 24 metros quadra-dos, é aberto para qualquer um1. O termo poi se refere a poeisis, concebido geralmente como um ato criativo de qualquer espécie, e a “qualquer coisa que se aproxime”, dado o seu uso em música para significar “então, depois, ou próxi-mo”. Poipoi, então, significa não apenas criatividade subse-quente (o legado criativo de passar através do espaço) mas também subsequência criativa (a adjacência de toda ativida-de criativa: a experiência). É um Instituto de Criação Perma-nente concebido arquitetonicamente – com especialidades que simultaneamente parodiam universidades estabelecidas e as suas disciplinas separadas – e oferece uma alternativa experiencial.

A primeira sala contém a “roda Poipoidrome”, uma roda de cinco metros que afirma e depois nega uma crença par-ticular sobre arte (apesar do seu assunto poder ser qualquer coisa): [Fidel] Castro, por exemplo, representa a crença de uma pessoa de que a arte é política (então, Castro se torna um artista). A segunda sala, “Anti-Poipoi”, é cheia de pro-vérbios e inclui também duas câmaras ( chamadas de “atua-lizando” e “aspectos de coisas que virão”), que exemplificam o poder da linguagem para definir a experiência. A terceira é “Postpoipoi”, um lugar “onde o espírito poipoi é aplicado à individualização de várias disciplinas”, incluindo anatomia, psicologia aplicada, zoologia, paleontologia, psicanálise, ma-temática, gramática, geografia, religião comparada, cristia-nismo moderno e história. Finalmente, o visitante encontra o Poipoidrome, uma arena gigante contendo o poi-ovo, um aparelho indefinido que parece se referir a um espaço de meditação ou áreas de repouso sagradas: “Aqui o circuito termina, aqui o visitante medita, absorve, concebe.” A des-crição de Filliou, mesmo satirizando a estrutura hierárquica de universidades tradicionais, enfatiza a aplicabilidade de disciplinas para os encontros experienciais. Por exemplo, geografia é apresentada simplesmente como “ruas e estra-das que um homem pisou e que ficaram impressas em suas solas”.

A primeira sala, com a roda Poipoidrome, demonstra que muitos preconceitos e crenças comuns precisam se tor-nar explícitos e, desse modo, poder ser revertidos. A atitude assim concebida é fundamentalmente crítica, seja a respeito de cultura, fatos históricos, modos de análise e os assim cha-mados campos de estudo objetivos. A própria roda, com os seus ciclos e evoluções, que podem ser encontrados pratica-mente em qualquer mitologia do mundo, se volta contra a

1 Através de pesquisas, suspeitamos que Hannah Higgins descreve as principais salas do modelo virtual Poipoidrome, Centro de Criação Permanente, que seria uma edificação de 24 m x 24 m, e não de 24 m2. O custo estimado para a construção em 1963 era de 120 mil dólares. Não conseguimos encontrar as medidas do protótipo P00, o Poipoi-drome no Espaço-Tempo Real (ETR), que seria uma versão matricial, menor e ambulante (N.E.).

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Pré-poipoiO corredor da criação permanente.

PoipoiGostaríamos de conhecer seu modo de ganhar a vida e qual a forma de arte com que ele está conectado. Na próxima vez que vier, sinta-se livre para trazer uma foto sua, trabalhando.

Fonte dos textos e ilustrações a respeito do Poipoidrome: “1/2 + 1/2 = filliou/pfeufer - Le [ou la] Poipoidrome à Espace-Temps Réel Prototype 00” catálogo, Yellow Now, Liège, 1975. A descrição veio da exposição em Budapeste, em 1976. (Tradução para o inglês Bea Hock). http://www.artpool.hu/Fluxus/Filliou/Poipoi4e.html

As partes do Poipoidrome

Anti-PoipoiNós queremos saber o que você tem para acrescentar a esta sala: o Salão de Provérbios. A sabedoria de uma nação consiste em tais coisas. No Poipoishop (o quarto preto à sua frente) você vai encontrar todos os tipos de material de que precisa.

PostPoipoiGostaríamos de saber se você tem os mesmos sentimentos que nós temos: a estrada (verde) para tudo e todos, a própria criatividade para superar a contradição entre Poipoi (azul) e Anti-Poipoi (ocre). Se você sentir o mesmo, vá em frente e faça uma ilustração disso.

PoipoigabineteEste é o Poipoigabinete. Ele está aqui para fornecer documentos e informá-lo sobre a nossa abordagem histórica, sobre o que chamamos de criação permanente - que vai do Poipoi (azul), através do Anti-poipoi (ocre), até o caminho para o Post-Poipoi (verde). Neste ponto, de alguma forma, você também pode acrescentar algo, uma vez que este é o Poipoidrome Espaço-Tempo Real nº 1.

Poipoi StudioEste lugar não é nada mais do que o seu próprio estúdio. Seu tamanho reduzido pode surpreender, você é livre para considerar sua própria casa como uma extensão do Poipoi Studio. Na verdade, não há nada que você tenha que "aprender" para participar das ações e atividades conceituais do Poipoidrome. O que você sabe é o suficiente. No entanto, não significa que você deve ficar satisfeito com isso. Poipoidrome não se baseia em qualquer corpo de conhecimentos específicos, no entanto, não recusa tais coisas.O Poipoidrome em si mesmo

De frente para o Poipoiovo, assim como nós, você também pode absorver a informação proveniente de seu longo circuito fechado/ longo curto circuito, ou você pode meditar e conjurar todas as possibilidades de métodos e modos para substituir as nossas sugestões e objetos por suas próprias sugestões e objetos. Tenha em mente que sua própria casa pode ser considerada como a expansão do Poipoi Studio. Afinal, quem não seria capaz de obter, em qualquer vizinhança, pelo menos um ovo?

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ideologia, assim estabelecendo um fundamento para o pen-samento crítico.

A roda é um símbolo potente para o nosso modelo pe-dagógico baseado em Fluxus, pois ela demanda que pen-semos em reverso, coloca os tópicos em um outro ponto de vista diferente do nosso e conecta nossas fundamentais certezas sobre o mundo com uma mente inclinada à mudan-ça. Imagine, por exemplo, uma aula de História em que a Guerra Revolucionária Americana é discutida do ponto de vista dos vitoriosos (“a América venceu a guerra”) e dos ven-cidos (“os americanos nativos, os afroamericanos e o meio ambiente... perderam a guerra”, ou até mesmo “a América perdeu a guerra”). De um modo mais geral, a ideologia (ou seja, sistemas de crença) pode ser abordada. Por exemplo, ao formular a declaração “a família nuclear é um bem moral” em termos opostos – “a família nuclear não é um bem moral” –, uma variedade de questões sociais, econômicas e políticas são levantadas: quando surgiu a família nuclear? Para que serve este sistema? Existem outros sistemas igualmente vi-áveis?

Do mesmo modo, a sala Anti-Poipoi, em que “provér-bios e coloquialismos são traduzidos em termos visuais”, am-plia o chamado da roda para o pensamento crítico e para os próprios termos do discurso. Podemos tentar fazer um diagrama dos componentes de “escalas de justiça” ou “mais prováveis sucessos” e descobrir que ambos requerem o equi-líbrio específico de direitos ou materiais para realizar suas demandas. Em nossa hipotética sala de aula, o absurdo de algumas expressões associadas com a história americana ou com as virtudes da família, com o sistema judicial americano ou com nosso modelo de sucesso, poderia ser explorado por tais meios de visualização, tornando clara a qualidade oxi-morônica da “terra dos livres”, por exemplo, ou levantando questões sobre o provérbio “lar é onde o coração está” (com certeza, mas onde está o resto de mim?).

As Câmaras de Atualização e de Aspectos das Coisas, que virão dentro da sala Anti-poipoi, tratam igualmente do poder coercivo da linguagem para definir nosso passado e futuro. Para o primeiro, Filliou oferece Shakespeare em uma Vespa; para o segundo, ele oferece objetos apocalípticos, tais como “o bastão com o qual Jesus vai botar o Papa pra correr”. As câmaras, tomadas juntas, sugerem que nem os sis-temas sociais atuais nem as suas terminologias são absolutas: Shakespeare não precisa continuar como uma assombração representativa do teatro Elisabetano; de fato, ele continua a viver na experiência contemporânea de qualquer um que es-teja lendo Shakespeare. Do mesmo modo, a autoridade ab-soluta da Igreja Católica, como um exemplo da autoridade divina e não humana, é uma falácia, como demonstra Filliou.

A terceira sala, Postpoipoi, sugere a caracterização das disciplinas individuais a partir das múltiplas perspectivas ba-seadas na experiência. Através de mapas impressos na sola do sapato, por exemplo, ele parodia a especialização em uma área ao dar a ela uma forma concreta e lógica: “Psi-cologia aplicada: frascos de xampu para lavagem cerebral”; “Sociologia: pesos e medidas de visitantes com objetos es-tranhos (desse modo, uma pessoa pode descobrir sua altura em tomates e o seu peso em livros).” Da mesma forma, a base arbitrária de nossos padrões coletivos de cartografia, conhecimento, pesos e medidas é revelada, enquanto o fato experiencial da informação primária – os próprios peso e medida – é enfatizado. Com o conhecimento primário de

como, digamos, um volume de farinha se compara em rela-ção ao mesmo volume de milho, podemos, baseados em um fato físico, ter idéias que parecem abstratas sobre as quan-tidades desses produtos vendidos e transportados ao redor do mundo.

A quarta sala, a Poi-Ovo, onde o visitante “medita, ab-sorve, concebe”, ressalta a importância do autoconhecimen-to no desenvolvimento da identidade. Pra mim, esse ponto final representa um interlúdio, uma oportunidade para limpar a mente antes de prosseguir (Filliou, um budista, provavel-mente criticaria essa visão tão pragmática, tão funcionalista). Apesar de pessoas criativas sempre buscarem uma pausa entre os projetos, o sistema educacional permite poucas oportunidades para buscas contemplativas, erroneamente assumindo que elas são improdutivas.

O conceito de Poipoi é desenvolvido a partir da loja Cé-dille qui Sourit para idéias “sem utilidade” (idéias que ficam fora do tradicional modo de atividade produtivista), que, por seu lado, tem como base uma proposta de Brecht e Filliou, de 1966, para uma “não-escola de Villefranche” (Villefran-che é uma cidade mediterrânea onde ficava a loja). O pro-grama da não-escola, que funcionaria baseada nos simples princípios de “liberdade, igualdade, disponibilidade para to-dos e reflexão”, sintetiza o modelo educacional de Filliou: “TROCA DESCOMPROMISSADA DE INFORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA, SEM ALUNO, SEM PROFESSOR, LI-BERDADE PERFEITA, TEMPO PARA FALAR E TEM-PO PARA ESCUTAR.” Esta declaração antecipa uma troca multidirecional de experiência e informação; as fronteiras entre alunos e professores são dissolvidas ao mesmo tempo que o currículo expande para incluir informações e compor-tamentos inesperados. Esta expansão dos papéis didáticos é possível apenas por meio do respeito mútuo conseguido por meio de uma forma atenciosa de falar e de escutar, de ensinar e aprender.

Como vimos, dois dos colaboradores do livro de Filliou, Kaprow e Beuys trabalharam no tradicional sistema univer-sitário e foram fortemente comprometidos com a educa-ção. O Partido Estudantil Alemão, de Beuys (originalmente chamado de partido educacional), era baseado na ideia da performance artística como ação política dentro do tecido social (que ele chamou de “escultura”). Ativamente engaja-do num diálogo interdisciplinar com os estudantes a respei-to da experiência social e das perspectivas dos estudantes sobre religião, ciência, história, e assim por diante, Beuys via suas “performances, ou seja, seu programa comparável a um programa padrão [disciplinas especializadas] de uma universidade. O programa de uma universidade sendo, ao mesmo tempo, comparável ao de um partido estudantil”. O fluxo livre da expressão numa performance é, assim, análo-go ao fluxo livre de informação num contexto educacional e também análogo da expressão individual num contexto po-lítico. Para Beuys, assim como para Filliou, esses elementos são fundamentalmente parecidos em sua capacidade para expressar as singulares necessidades, desejos e habilidades dos seres humanos. Beuys continua a adaptar esses termos de expressão e informação para um contexto artístico e vice--versa: “todos esses termos que aparecem nas performances como imagens, aparecem nas discussões de um partido es-tudantil como os termos que são relacionados, por exemplo, ao conceito de sociedade”.

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Filme-entrevista com TuneuTuneu é artista e professor de pintura no Instituto de Artes da Unicamp, em Campinas, SP.

Então é uma necessidade de mestre. Ao escrever alguma coisa pro-curo um amigo... Pode ser até mais jovem, mas que tenha uma expe-riência de escrita maior que eu, por exemplo... Eu aceito ou recuso palpites... mas preciso deles. O que importa é a busca do mestre, é a busca da experiência... mais sedimentada que a minha.

Ana Mae Barbosa

Num plano sequência, pés sobem as escadarias de um antigo prédio até o quinto andar. Close. Uma fechadura antiga de um desenho ímpar. Zoom-out da lente. Uma mão empurra uma porta, de madeira azul, de um ateliê. Tomada em plongée. Chão, a câmera desliza até encontrar um piano de cauda, onde uma mulher, com um vestido lindíssimo, toca Minueto em Sol Menor, de Mozart. Close-up em suas mãos.

De fora do enquadramento uma voz pergunta:

Tarsila, como era sua relação com as imagens na infância?Plano médio. Ela tranquilamente interrompe a música e dedilhando o piano diz:

Eu era pequena na fazenda e via minha mãe com muitos santinhos de igreja, já gostava de pintura, tanto que eu fazia as primeiras cópias mal feitas dos santos. São Francisco Xavier eu fiz quando eu tinha uns quatro anos. Adorava desenhar e viver rodeada de galinhas, de pintos e fazia um desenhozinho, de tudo que era animal que eu via. Aí me fizeram presente de uma gatinha branca, eu adorava gatos, chamava-se Falena, e ela arranjou muitos maridos e eu fiquei com quarenta gatos que me rodeavam miando, lá na fazenda de Capivari.Mas eu passava tempos também na fazenda de São Bernardo, que papai já tinha com-prado naquela época, era uma casa muito grande e bonita. Foi vendo as letras da entra-da da fazenda que eu fui aprendendo a ler. Sabe, eram letras quase do tamanho deste armário aqui. Minha mãe me ensinava: Olhe, isto aqui é um B, chama-se B esta letra, aqui é um A e eu me lembrava logo da forma das letras. Eu nem senti que estava sendo alfabetizada antes de entrar para a escola. E fazia também bonecas de mato: um mato que crescia com uns caules quadradinhos e dava flor, eu pegava e fazia com aqueles matos uma espécie de escultura, eu fazia braços e pernas e brincava com aquilo.

A voz do interlocutor:

A sua pintura, tão poética, é então uma evocação dessa infância?Acho que o senhor não está longe de ter acertado.

Interlocutor:

E você Tuneu, qual sua lembrança mais antiga ligada à atividade artística?Travelling, a câmera, tranquilamente, e um pouco sem rumo, parece buscar pela voz de Tuneu que responde:

Minha lembrança mais antiga relacionada à minha atividade artística é uma coisa de infância. Foi quando eu consegui desenhar umas fileiras de bandeirinhas cruzadas no ar,

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como se fossem uma perspectiva. Conseguir passar esta noção visual com cinco anos me deixou muito espantado. Foi uma descoberta! Eu acho que nós aprendemos coisas, mas quando experimentamos é diferente. É descoberta!Na arte, a descoberta é fazer. E não teorizar. Não é falar sobre perspectiva, é represen-tar, fazer uma perspectiva. E eu acho mesmo que a criança — aliás, principalmente a criança — precisa experimentar.Eu penso que, para o artista, o importante são as descobertas. Vai-se descobrindo o universo da arte, os seus fascínios e tudo o mais...O velho fica ranzinza porque sabe muito. A descoberta para ele já não tem aquela explosão da juventude. Mesmo quando descobre coisas, ele já tem uma consciência do percurso. Por isso, as descobertas da maturidade não são tão explosivas. É uma coisa mais natural. Vai-se descobrindo como uma sequência de descobertas naturais. Então, existe a ideia de que os velhos não se emocionam... É mentira! É que eles têm uma com-preensão do percurso das coisas, o que diminui a expectativa da descoberta.Não estou dizendo que as descobertas das crianças sejam mais válidas. Não tenho mais aqueles desenhos das bandeirinhas da infância, para saber o que eu tinha visto. Se eu ti-vesse, talvez, descobriria que não estava descobrindo nada tão sensacional... eu não sei!É a mesma coisa quando a criança colore. Colore para fora, mas está tudo perfeito para ela. Tem um domínio absoluto do discurso, uma total convicção. Na minha memória de certas borboletas que eu enchia de cores, eu me lembro de que eram de uma perfeição absoluta, uma coisa genial. Vai saber se eram?!

Travelling, close da câmera nas pinturas de Tuneu que estão dispostas na parede ao fundo. Adorava colorir. Engraçado: o que vem mais forte na lembrança é uma borboleta, que é uma coisa comum. O que eu procurava — me lembro claramente — era fazer as asas iguais. E repetir, tentar fazer a coisa simétrica.Lembro que, desde criança, já era muito preocupado em prestar atenção na semelhança das duas asas. Engraçado... Porque até podia ser uma diferente da outra, mas eu queria que fossem iguais.

Tarsila complementa:Conheci o Tuneu ainda menino e não me enganei ao predizer sua qualidades inatas: senso do equilíbrio nas suas composições infantis e um grande amor ao trabalho.

Tuneu continua.A minha preocupação de fazer bem feito vem também de você, Tarsila.Mas acontece que além disso eu vinha de um contexto específico. As expectativas de uma época são diferentes das de outra. E disto eu estou convencido.

Travelling, close, seguido de plano detalhe num arranjo de flores sobre a mesa de trabalho.A minha formação era uma coisa muito rígida. Nada estava suficientemente perfeito. Lembro de um traço muito forte do meu percurso de formação, uma das coisas que mais gravaram, foi que houve muita cobrança, em vez de haver possibilidades.

Conte-nos um pouco mais como era sua relação com o desenho.O interessante é que a criança tem um impulso de desenhar ininterruptamente, enquan-to ela não se manifesta de outra maneira, por exemplo, enquanto não escreve. Eu acho que isto é uma coisa comum. Mas depois que aprendi a escrever, não fiquei contente de só escrever. Preservei as duas coisas. Incorporei a escrita naturalmente, mas, para mim o desenho não deixou de ser um veículo também. Mas o que acho curioso no meu percurso de adolescente, que vejo hoje, é que o meu interesse pelo desenho era diferente dos outros adolescentes. O que me vem à memória é que os meus amigos estavam interessados pelos quadrinhos, pela ilustração, que para mim não eram tão interessantes. Quando eu via um quadro, por exemplo, eu entendia aquilo. Aquilo ressoava de alguma maneira. E a ilustração não ressoava. São questões muito diferentes. Hoje sou capaz de ver isto. Mas naquele momento eu não tinha esta clareza. Só não me interessava pelo que os outros se interessavam. Uma pintura ressoa-va de uma maneira muito mais poderosa que uma ilustração ou um quadrinho.Eu desenhava muito. E desenhava bem mesmo. Eu tinha uma facilidade tremenda para fazer ilustrações, trabalhos de escola para os colegas: fazia o retrato do Leonardo Da Vinci... Ficava copiando tudo, fazia bichos para as aulas, e fazia tudo com o pé nas cos-tas, em três minutos. Eu já conseguia uma soltura, fluía bem.

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As pessoas percebiam que eu sentava, e aquilo vinha, e tudo isso era muito valorizado. Não para eu ser artista. Eles viam um show e gostavam. Mas quando se decide ser artista, a sociedade não gosta; porque não se pode ser artista — artista é coisa para fim--de-semana! Eu ouvi isso.Quando, um belo dia, eles perceberam que eu estava levando o desenho muito a sério, falaram: Não, você tem que estudar, e pintar nos fins de semana!Eles queriam reduzir tudo a amenidades, ao virtuosismo, coisas que para mim não ti-nham o menor sentido. Não me interessava minimamente em fazer aqueles shows de adolescente que eu fazia. Principalmente quando eu via aqueles quadros seus, Tarsila, e outras coisas... Eu pensava: aí tem uma coisa mais poderosa que um show de habilida-des! Porque tudo era tomado como circo mesmo, como habilidade; mas depois, quando aquilo é visto tomando conta da sua vida, você não pode realizar! Há uma reação muito forte. As pessoas reagem porque subvertemos uma ordem burguesa de percurso de vida. E subvertemos mais quando optamos por sexualidade e por nossos sonhos. Aí vamos subvertendo, subvertendo e viramos uma coisa. No contexto social que tem uma expectativa de sucesso, a opção de ser artista é difícil. Mas prefiro isso do que ter sido qualquer outra coisa. Eu estou aqui e não em qualquer outro lugar. E tenho a impressão que para um adolescente da minha geração, quando não existia uma faculdade de artes plásticas, era muito mais difícil estudar arte. Hoje percebo que não houve um momento em que eu resolvi ser artista. Foi uma coisa que veio fluindo, tomando conta. Quem estava preocupada com isso era minha família. Mas não teve jeito e eu estou correndo os riscos. Eles acharam uma pena, uma desgraça total. Então resolvi me sustentar. Consegui um empreguinho e logo em seguida (em 1970) eu fui trabalhar na TV Cultura. Tinha dinheiro para sobreviver e para comprar papéis e o que fosse possível. Em vez de fazer coisas de 1 metro por 1 metro, eu fazia de 10cm por 10cm — mas fazia. Fazia em papel — se não pudesse comprar tela. Não im-porta: o Klee também fez trabalhos pequenos e resolveu a vida e mudou a vida de todo mundo. O Klee é o Klee hoje. Hoje é fácil saber quem é Picasso, quem é Klee, quem é Volpi. Não importa, não é este o problema. O Volpi também trabalhou a vida inteira no fundo do quintal lá no Cambuci, e fez o que fez. Ele tinha uma mesa, três pincéis, e fazia as próprias telas. O importante é querer fazer. Precisa querer. Existe algo que move o artista numa direção e, mesmo sem saber qual, ele vai. Mesmo sem entender o que o move — mas move — ele vai e faz, e faz daquilo uma continuidade; faz daquilo um pro-jeto; faz daquilo uma vida. Arrisca, porque não importa se vai ser alguma coisa. O Volpi nunca pensou se ia ser Volpi. As pessoas não premeditam se vão ser quem elas são...

Como foram seus primeiros contatos com a produção de outros artistas?Em casa havia uma biblioteca bem razoável, muito livro sobre pintura do século XVII e XVIII. E eu já tinha contato com a pintura modernista através de um irmão da Tarsila, que era vizinho da minha mãe. Ele tinha alguns quadros da Tarsila e, como eu era muito amigo do filho dele, desde os 10 ou 11 anos, eu estava vendo aquelas pinturas. Nós éramos muitas crianças brincando naquela casa e todos podiam ter se interessado pelos quadros. Mas só eu me interessei.Fui ao MASP sozinho, a primeira vez, com 12 anos. Tomei o bonde sem contar para ninguém. Se soubessem, me matavam. Naquela época um garoto de 12 anos não podia ir sozinho ao centro. Mas eu ia sem contar para ninguém, ninguém sabia.Entrei e andei sozinho. Não ia ninguém naquele museu. Tinha um “gato pingado” aqui, outro ali. Tomei prazer. Aquilo ficou meio uterino. Era na 7 de Abril, no segundo andar dos Diários Associados. Era um ambiente para dentro, todo fechado. O MASP hoje tem aquela coisa para fora, mas antes era diferente. Era um contato muito forte, mesmo que eu não entendesse certas coisas. Estar na frente de um Rembrandt com 12, 13, 14 anos é fundamental. Hoje sou capaz de entender como aquela pintura é feita, tenho uma leitura. Tenho outro repertório de informação, que abrange muito mais coisas. Sei que azul é aquele. Mas com 12 anos, é fundamental o contato. Não importa o azul, não importa a química. Isto vem depois. Mas era um ambiente transformador para mim. Às bienais também eu ia e via aqueles trabalhos...Eu ia sozinho mesmo. Na escola consegui um ou dois amigos que trocavam alguma coisa, que tinham interesses até parecidos, mas que se diluíram com o tempo. Um ou dois em anos... é muito pouco. Então, para ir ao museu eu escapava sozinho e ia do Sumaré até a 7 de Abril e voltava. Tudo durante o dia, é claro! Ninguém sabia que eu tomava o bonde e ia para a cidade. E foi muito importante, porque já havia exposições temporárias. De tempos em tempos encontrava coisas novas.

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Um primeiro corte abrupto nos leva ao que parece ser uma das turmas de alunos do Tuneu na univer-sidade.

Travelling, plano geral. Vê-se vários livros sobre uma grande mesa composta por um grupo de mesas menores , todos abertos, revelando imagens. Ao redor da mesa, os alunos.

Um dos jovens me relata que muitas vezes tem a sensação de que alguns livros são trazidos especifi-camente para ele, e que assim seu processo de criação com as imagens é colocado em diálogo com a produção de um artista que ele sequer conhecia. Ele ainda continua dizendo que muitas vezes Tuneu traz uma referência, um artista que ele, aluno, ainda não conseguiria por si só tecer aproximações com sua produção pessoal, mas que depois de feitas as relações elas são muito coerentes.

Um novo corte, todos, o grupo de jovens alunos e Tuneu, não estão mais dentro de uma sala, estão agora no MAM/SP, sentados no chão e conversando sobre a exposição acabaram de ver: Tarsila e Di Cavalcanti, Mito e Realidade no Modernismo Brasileiro.

De volta ao ateliê.

E você, como iniciou seus estudos artísticos?Close em Tarsila.

Eu comecei a trabalhar (em São Paulo) sob a direção de Pedro Alexandrino e não me fez nada de mal ver que era uma coisa antiga, acadêmica, tinha aquele método antigo de copiar à fusain para exercitar a mão, fiz até a cabeça de um negro, ele queria que eu tivesse a mão muito firme e me dava então aquele papel muito grande para trabalhar, não é? Ele ia me explicando tudo, fazer traços sem régua, sem nada. Comecei com o desenho, eu não era uma colorista no princípio, fazia cópias de gesso também, com sombreado, coisas de anatomia que tinha que copiar, conhecer bem.Sabe, o ideal é desenhar todo dia, e se você não conseguir desenhar todo dia, você escreva que também estará treinando.

Tuneu cita Paul Klee e Degas. “Nenhum dia sem uma linha” “O desenho não é forma, é maneira de ver forma”

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Tarsila, me recordo de numa das nossas tardes de sábado, quando levei novos trabalhos e, como sempre, não desenhara sistematicamente como precisava, e você disse: “Quando você não puder desenhar, escreva seu nome 20 vezes!”. O que me impressionou é como a disciplina mais uma vez aparecia como a palavra de ordem do pensamento e da organização dos processos criativos no seu procedimento.

Eu pensei: o desenho como um exercício constante de imaginação, que nos permite aflorar nossas pes-soalidades, nos revelando nossas características.

Num breve período de silêncio Tarsila se desloca até uma pilha de livros, os sons dos seus passos fazem a câmera persegui-la. Close. Em suas mãos ela segura O Livro das Imagens, de Rilke. Suavemente recita.

E quando agora levantar os olhos deste livro, nada será estranho, tudo grande. Aí fora existe o que vivo dentro de mim e aqui e mais além nada tem fronteiras; apenas me entreteço mais ainda com ele quando o meu olhar se adapta às coisas e à grave simplicidade das multidões, — então a terra cresce acima de si mesma. E parece que abarca todo o céu: a primeira estrela é como a última casa.

Plano geral, zoom in. Um dos gatos de Tuneu bebe água numa grande vasilha de vidro transparente sobre a mesa de trabalho. Tuneu diz:

Essa água está aí para evaporar o cloro, é melhor para as aquarelas...eles sempre bebem dela.

Do mesmo modo que os gatos deslocam-se pelo ambiente, a cada novo passeio da câmera alguns obje-tos parecem se deslocar e se rearranjar. Mostrando como é o passar do tempo nesse espaço.

Tarsila encontra sobre uma das mesas uma aquarela retratando uma bromélia e comenta que gosta muito de flores.

Estamos no ateliê conversando já há algum tempo. Conforme o dia escurece, a luz indireta do ambiente começa a ser elaborada por nosso anfitrião, que acende algumas luminárias e abajures.

Numa pausa das gravações, vemos juntos o livro do Albers, Interação da cor, com as pranchas originais em serigrafia. Conversamos sobre a relação de Albers com os seus alunos, sobre ser Artista Professor, sobre a Bauhaus. Não dá muito bem pra explicar como, mas isso tudo nos emociona.

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Plano geral, seguido de travelling.

Há janelas amplas em toda uma parede. O espaço está separado em três ambientes, um com o piano e um armário entreaberto, cheio de pastas com desenhos; nas paredes uma pintura de Delaunay, e uma de Léger, e a tela O Manacá. Um outro com sofá, poltronas, livros numa grande estante, pilhas de livros sobre bancos e armários de madeira com portas de vidro, repletos de coleções de pedras, conchas e pe-quenas obras de arte. Uma pequena pintura do Volpi se destaca em todo esse cenário. As texturas dos materiais que compõem os móveis e objetos criam uma composição no espaço. Uma grande variedade de coisas, mas cada coisa em seu lugar.

O terceiro ambiente é delimitado por mesas de trabalho, cavaletes, mapotecas. Há um gaveteiro de madeira. Close. Uma mão abre as gavetas e vê-se que para cada cor há uma gaveta repleta de tubos de tinta.

Travelling e closes.

As paredes estão cobertas de pinturas, áreas de cor de tons elaborados, linhas retas, sofisticadas rela-ções de figura e fundo, há movimento. Vê-se imagens feitas com recortes brancos e neles os tons são desenhados pela própria luz do ambiente. Close. Um pequeno estudo em papel para um Objeto Ativo, de Willys de Castro, detêm a câmera por alguns segundos. Vê-se cocares e pelo chão inúmeros bancos indígenas, inclusive embaixo do piano. Há um pensamento geométrico impressionante nos padrões desenhados em alguns dos bancos.

Há uma variedade de pincéis. Paletas. Rolo de papel absorvente. Um pote cheio de tinta acrílica com um tom elaborado, coberto com uma película de plástico.

Ao perceber o enquadramento da câmera, Tuneu atenciosamente explica que coloca uma porção maior de água para utilizar a tinta acrílica por um período mais longo. Pilhas de pequenos cadernos de dese-nho. Longas luminárias. Muitas ferramentas de desenho, que são dispostas como esculturas. A forma, a textura e a cor de cada objeto dialoga com o todo que compõe o espaço. Cada objeto explicita uma escolha, ao acompanhar o movimento da câmera o Tuneu diz:

A mesa de trabalho é também onde aparecem os objetos que durante algum tempo são estimulantes e mudam conforme ele passa. Achei uma pena de pombo muito branca na calçada, ela me estimulou tanto naquele momento, um pombo inteiro não faria.

Close. Um cavalete com um desenho de Tarsila para a tela “Composicão Figura Só”, de 1930. A con-versa é retomada:

Como foi seu encontro, seu convívio com a Tarsila?A memória mais antiga que tenho da Tarsila vem do tempo em que eu tinha três ou quatro anos. Mas quando começamos a falar de arte eu devia ter uns 12 anos de idade.

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No quarto do meu amigo, o sobrinho dela, havia um grande quadro-negro e nós sempre estávamos desenhando. Um dia ela viu um desenho meu neste quadro e perguntou de quem era. E foi aí que começou o assunto, aí mudou tudo. Ela começou a me ver de outra maneira e passamos a ter um contato contínuo. Ela me convidou para ir aos sábados ao seu ateliê, e mostrar os meus desenhos. E foi quando eu me senti realmente estimulado a desenhar.

Como se davam as trocas, ensinar e aprender arte?É difícil falar de aprendizado quando as coisas se dão espontaneamente. Não tem o que não seja aprendizado. É uma coisa total.Quando estamos na frente de alguém que é, assim, um mestre, é como um pai. Dá uma coisa total. O mestre também é mestre quando está jantando com você. Não tem muita fronteira. Não tem quando estamos aprendendo e quando não estamos. É uma coisa contínua. Assim, qualquer gesto é um aprendizado e fica muito difícil falar quando eu estava, e quando eu não estava aprendendo.Quando comecei a frequentar o ateliê da Tarsila, foi engraçado: toda a família começou a ficar preocupada com a minha intenção artística. Porque, é claro, que não podia ser ar-tista. Podia ser artista diletante, mas não um profissional. Hoje percebo que havia muitos discursos subliminares, onde se dizia que eu devia me preocupar com uma formação.Acho que nada disso foi por acaso, ela não estava por perto por acaso.Hoje percebo que é muito difícil assumir uma postura de artista. Eles sentiam que a arte tinha uma predominância, uma força muito grande para mim. E obviamente havia uma tentativa de me demover.Era uma avalanche de coisas sem serem faladas, emocionais, muito violentas. Porque, na realidade, é muito duro as pessoas deixarem as outras serem elas mesmas.Se fosse para escolher uma formação, a mais próximo do que eu queria, era arquitetura. Mas eles queriam um advogado, ou dentista talvez. Então, desisti.A arte já era uma coisa tão natural que, com 15 anos, percebi que não tinha volta. Uns percebem isto com 40 anos, eu percebi com 15 e não acho que era diferente do que é hoje para mim.O que permeia a minha postura é a mesma coisa. E esta coisa não tem retorno.

O que te move?Não sei o que me movimenta, não sei se existe uma coisa que me movimenta. Nunca me preocupei em saber... Penso que o que me move é pura paixão. É o imponderável na arte e na vida. Sou fascinado pelo pensamento artístico. Pelo que meus colegas me dizem sem palavras. O quanto sem mesmo nos conhecermos estamos falando a mesma coisa em qualquer lugar.A Tarsila é, para mim, uma pessoa de um poder muito grande, um rigor tão grande, uma honestidade tão grande... Uma pessoa com um desenvolvimento de desenho e um rigor... Eu faço pintura geométrica e tenho a certeza que não sou nem a metade rigoroso, nem a metade!Ela é uma pessoa com critérios e fundamentos de uma formação cubista. Tarsila foi estudar com Léger. Fez um percurso desde Pedro Alexandrino e foi para Paris, para a Academia Julian. O atrevimento da Academia Julian, naquela altura, era um certo im-pressionismozinho — na década de 20! — quando já havia Picasso e o cubismo já tinha produzido tanto! E ela foi descobrir o cubismo depois de 20. Mas era uma decorrência lógica, como o cubismo foi uma decorrência do próprio impressionismo.Os modernistas eram de uma qualidade ética, no nível da formação, como se vê muito raramente. Respeitavam muito o métier. Pelo menos, foi o que sempre me passou, via Tarsila. Eram éticos com as pessoas.

Corte. Tuneu diante de uma turma de jovens, diz:Uma questão é ter domínio, ter uma visão ampla do métier.

Corte. De volta ao ateliê nossa conversa continua.Eu precisaria ser Proust para narrar o ambiente ou o ar que se respirava em torno dela. Havia todo um contexto em volta, o visual, tudo muito denso, uma coisa que marca para sempre. Tudo isso daria horas de uma narrativa proustiana. É uma maneira de ser, de vi-ver, de ser educado... Eles tinham uma outra relação com o tempo, uma disponibilidade, um ritmo de gente que viveu em fazenda... Passam-se 20 ou 30 anos e você começa a

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perceber estes ritmos, e a mudança de tudo. Para mim, garoto, era bonito experimentar este fim de época, fim de século XIX, que era esta maneira de abordar a vida, de ter um ritmo específico, mais humano, uma medida mais lenta, mais disponível, mais sem pressa. Eu era garoto e ainda vi isto. Aqueles cafezinhos intermináveis depois do almo-ço, uma coisa que rendia... Ficava-se na mesa mais e mais, principalmente nos fins de semana. Era uma forma de vida que ainda existia no final dos anos 50. Principalmente eles, que eram maduros — a Tarsila devia estar com 70 anos — e viveram o fim de século ainda crianças, mas viveram... Imagine o que significava a década de 10, ou mesmo a de 20! Era gente que vinha de outra realidade. E era bonito conviver com gente que dava tempo às coisas, sem a urgência desesperada que se viveu depois dos anos 60. Vivemos uma ânsia muito grande em todos os âmbitos. Então, conviver com este outro ritmo — na infância e na adolescência — marca demais, é uma coisa muito poderosa.Para mim, que tinha a mente tão livre e limpa de informação, estas imagens estão arqui-vadas. Estas imagens da formação estão muito mais gravadas porque o filme era novo. Na minha memória, tudo isso tem uma impressão muito forte e muito, muito mais forte do que o que veio depois. Persiste com uma nitidez maior porque, quando criança, tam-bém estamos neste ritmo. A criança tem outro nível de preocupação. Naquela época eu não precisava de muitas coisas, tinha uma pureza, uma abertura, e tudo o que a retina grava fica na memória para sempre. É muito forte. É uma foto muito bem feita, não acaba rápido, não desbota rápido. O que vem depois já tem uma leitura mais rápida, porque tem que namorar, tem que pagar telefone, não tem tempo, então a retina fica menos preocupada em reter, muda o ritmo. Mas, com 10 anos, ver um quadro da Tar-sila, ir ao MASP... é muito forte!Na formação artística é muito importante a possibilidade de conviver, de estar instalado na aura de um artista. O Wesley conta que quando ele conheceu o Ezra Pound, ele ficou paralisado, não conseguia falar. E saiu satisfeito só de ter estado instalado na aura do Ezra Pound.Existe todo um mecanismo que não tem discurso que explique. É uma coisa acima. É uma coisa da alma humana. É estar instalado numa situação, numa energia específica que age sobre o mundo de uma certa maneira.O que eu tinha com a Tarsila era uma convivência muito grande, muito intensa. Havia uma compreensão mútua. Estas coisas não se explicam, eu não poderia explicar. Seria interessante poder ver nós dois juntos...

Aproveitando essa conversa sobre convívio, sobre aura, gostaríamos de agradecer a aber-tura para o diálogo, a possibilidade de estar aqui em sua casa, em seu espaço de trabalho. Percebemos na sua relação com o espaço o seu pensamento presente em cada detalhe. Aprendemos um pouco mais só de olhar.Sabe, você fala isso e eu me recordo de quando entrava no ateliê do Wesley e ele abria gavetas para me fazer partilhar, e me dava aqueles cadernos para ver: olha isso, olha aquilo. Isto é generosidade.Tem uma pessoa que eu respeito profundamente que é o Aldemir Martins. Porque é uma pessoa que teve uma riqueza e uma generosidade fantásticas. Cada vez que ia ver o Aldemir, ele me dava uma folha de papel, porque ele havia pensado em mim. Eu quero isso. Pode ser do Aldemir, de quem for. Quantos pinceizinhos dona Tarsila do

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Amaral me deu? Não sei! Tem pincéis aqui no ateliê que são dela. Não sei quais são e nem quero saber, porque senão vou fazer disso um totem. E não quero. Eu vivi isso. Eles fizeram isso comigo. E não é pela mistificação que a coisa funciona. Não sei! É algo mais espontâneo, mais vivo.Quando lembro do Aldemir Martins abrir a gaveta para me mostrar seus desenhos e o Wesley perder uma tarde conversando comigo, como ele perdeu n vezes, percebo o que é generosidade.

Um corte abrupto. Tuneu, novamente diante de uma turma de jovens, diz:Mágico é aquele que faz truques e magia é transformação.

Corte, de volta ao ateliê. Tuneu prossegue com nossa conversa.Os artistas são pessoas que têm uma magia. Uma ação que é mágica, alquímica, trans-formadora. Então, estar ao lado de uma pessoa assim e perceber sua intuição agindo é uma coisa que não se explica. Era isso que acontecia mais do que qualquer outra coisa. Tarsila sabia disso, e nós nos víamos, uma ou duas vezes por semana, durante mais de 10 anos. Foi como aquela coisa oriental que o discípulo fica junto com o mestre, até dando banho, indo junto aonde ele vai. Não é preciso aprender no sentido acadêmico. É ne-cessário estar instalado numa situação, onde o silêncio é tão importante quanto a ação.O mais importante é que ela não me limitava a isso. Saí, fui ver outras coisas, me inte-ressei por outros negócios e tudo era bem aceito. Isso é muito generoso, muito raro.Na época, ela vivia muito isolada, convivia muito pouco. O Di Cavalcanti e a Guiomar Novaes eram vivos — e houve até um encontro entre eles, que foi documentado no jor-nal. Havia encontros muito esporádicos. Ela era muito otimista, muito feminina, sensível, aberta, generosa...Aprendi isso, espelhei-me no exemplo, literalmente. E para isso não é preciso ir a uma aula de desenho.Ela pintava muito pouco naquela época. Nos últimos anos ela fazia um esforço, mas não tinha rendimento, estava muito limitada fisicamente. Mas estudava inglês. Dizia que precisava aperfeiçoar o inglês e estava sempre estudando alguma coisa. Era uma pessoa que estava sempre querendo saber mais. Falava seis línguas — inclusive o inglês — e achava que precisava aperfeiçoar. Imagine, com quase 90 anos, e querendo mais!!! Isso é uma pessoa que está viva. Estava com uma dificuldade imensa, limitadíssima, mas com uma vitalidade muito rara. Ela era uma pessoa muito rara, muito simples, muito comovente. Percebo que ela era uma pessoa que viveu sem estar preocupada, sem estar calculando passos na vida. Ela viveu e fez!

Nesse momento, todos os presentes, voltam seus olhares pra Tarsila, que docemente diz:Ainda hoje sinto uma agitação, uma fome de conhecimento... minha inquietação de juventude nem os anos, e nem nada, conseguiu serenar.Existir por existir nada significa, se a gente não empresta sentido ao fato puro e simples da existência.

Tuneu continua:A formação dos modernistas era muito abrangente: eles nunca pensavam limitadamen-te. Eram muito disponíveis. Hoje nós não temos isso, as coisas estão muito especializa-das. Eles tinham outra abordagem do mundo. E isto é muito lindo.

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Corte. Na sala com o grupo de estudantes, Tuneu afirma:A aula é uma oportunidade de trabalharmos juntos.

De volta ao ateliê. Travelling e close. A câmera que parece se distrair (ou talvez se encantar) com os bancos indígenas, retorna para enquadrar Tuneu. Plano médio.

No compartilhamento de processos artísticos, como era a prática? Como era a relação com a técnica?Pintei com a Tarsila poucas vezes. Quando comecei a me interessar pela aquarela, foi uma coisa que experimentamos mais ou menos juntos. Na realidade, coloríamos gravu-ras dela — que eram provas descartadas —, ela mexia e eu mexia naquelas gravuras... era uma coisa que não ia ser guardada. Ela estava aberta permitindo e oferecendo sua experiência.Nunca trabalhei muito com óleo, mas aprendi com ela a ver o mecanismo da tinta, a transparência. A tinta óleo tem uma riqueza muito grande embora, hoje, não me interes-so nem um pouco. Mas é um prazer! Os materiais são sempre fascinantes para o artista. Você precisa achar o seu material. A sua linguagem. Investimento significa sacrifício. Planejar também, onde você investe e imaginar onde irá investir. Geralmente, ela me deixava produzir e depois, então, elaborávamos intelectualmente em cima do que eu havia feito. Ela concordava ou não, mas eu sempre tive o meu es-paço. Era tratado de igual para igual. Ela me chamava de colega de trabalho. Imagine, eu era um moleque e era um colega de trabalho! Isso é muito raro. As pessoas, de um modo geral, sobem na cátedra e olham o resto do mundo. Eu nunca vivi isso. Sempre fui tratado como colega de trabalho, e a partir daí as possibilidades são infinitas.Mas a maior parte do tempo eu produzia autônomo, e toda semana discutíamos a mi-nha produção. Eu trabalhava em cima de sugestões que ouvia, que não eram leis. Ela me mostrava aspectos do que ela via, e como ela entendia. Ela mostrava experiências: diluir aqui... deixar mais denso aqui... aqui precisa soltar a mão... ou aqui precisa orga-nizar mais. E a partir disso eu começava a enxergar e partia de novo para o trabalho, levando em conta — às vezes não — e discutindo por que não, e voltava de novo e mais discussão... Só acredito em trabalho. O desenvolvimento artístico se dá com constância e trabalho, ou prática.É claro que isso teve um rendimento. Às vezes eu ia, às vezes não ia... mas isso durou muitos anos: 10, 15 anos... até ela morrer.

Fale um pouco desse exercício do olhar, da generosidade ao olhar para as imagens e para os processos dos alunos.Sem generosidade não há a tal revelação. Então o ensino não se dá.É preciso olhar no trabalho do aluno o que há de potencial. E sempre há.É preciso que o aluno desenvolva também sua auto-confiança.

Corte.

Agora estamos em uma das salas das Artes Plásticas, do Instituto de Artes, na Unicamp. Um dos alunos cumpre seu ritual semanal de levar os desenhos realizados nesse intervalo para o Tuneu ver. Trata-se de um ateliê de pintura, mas no momento tudo que ele tem são esses desenhos. Muito do que Tuneu diz é silêncio, são olhares, expressões discretas de um entusiasmo, menções a imagens anteriores apontando, arriscando conexões que precisam ser confirmadas por esse garoto ao longo do tempo, através da práti-ca e da reflexão. Olhando os trabalhos, Tuneu toma cuidado ao manuseá-los, organiza-os evidenciando grupos e relações entre pensamentos visuais. Conseguimos registrar algumas de suas falas para o grupo:

Não precisa fechar todas as ideias num único trabalho.Coloque-se como uma pessoa consciente do seu procedimento. Mostre que há consci-ência do que você produziu. O pensamento visual se constrói com o tempo. É a suces-são de imagens e textos que o seu aprendizado passa, mais a sua identidade com isto ou aquilo.É bom persistir no erro, abrir espaço para experimentação.

Corte. No ateliê, Tuneu segue com seu relato sobre Tarsila:Ela falava que a pintura é boa quando viramos de cabeça para baixo e ela não cai. Então começou a me falar de composição, e nós ficávamos virando quadro de cabeça para baixo para mostrar a abstração, a relação estrutural. Assim, começou a me mostrar toda a questão mental da pintura. Porque o cubismo é uma coisa mental também.

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Ela possuía uma visão mental da pintura, via cubismo. Um quadro dela, se tinha um azul aqui, o azul estava também ali e o amarelo... Quer dizer, tinha uma leitura. E leitura eu aprendi desde criança. Aprendi a ler um quadro, que é uma questão fechada em si mesma. Porque um quadro é um quadro. Não é a realidade. Mesmo quando retrata a realidade, mesmo se a pintura é acadêmica, a realidade é um pretexto.Tarsila sempre me mostrava isso através do que eu fazia. Nunca veio com um modelo, nem se impôs como modelo. Tive desse modo a liberdade da opção individual, o que me instigava. Ela nunca disse: Seja você. Ela me deixou ser. Não ficou falando, não ficou explicando. Depois de um tempo é que fui entender que tipo de pessoa ela era, que simplesmente me deixou ser... Mas isso levei um tempo para perceber...Ela sabia muito bem o que estava se passando comigo. Mais do que eu imaginava, porque eu consigo ver isso hoje; hoje percebo melhor do que naquela época... quando ela ia me mostrar qualquer coisa, ela me mostrava através de desenhos de outros... ela nunca me dizia: olha você não resolveu isto bem. Ela me mostrava, ela me dizia: olha como fulano de tal resolveu isso.

Corte. Tuneu diante dos alunos:Meu procedimento não deve servir pra vocês. Vocês não vão me repetir.

Corte. Espaço do ateliê. Tuneu prossegue:Tarsila era a grande referência, me fazia falta não estar com ela. Com ela, eu organizava minha impressão do mundo. Comecei a ver Klee e discutíamos tudo.Era a grande referência, a grande mãe e tudo o que você quiser. Tudo era levado para ela. Eu circulava, estava aberto, via tudo que era possível, livros, exposições. Todas as possíveis e imagináveis.Minha ação era toda visual. Como ia ver tudo, era uma avalanche de informações. E de repente comecei a ver o que era meu, e o que não era meu internamente.

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Tarsila era uma pessoa de personalidade muito forte. Ela dizia sem dizer. Esta é uma coisa que fui perceber mais tarde. É coisa de mestre. O Wesley fala disso lindamente. Ele diz que o mestre é aquele que mostra e esconde. Deixa o outro procurar. Não pre-cisa falar muito, revela. Importante é a revelação e o nosso deslumbramento. O mestre é o que vê algo que pode acrescentar à formação, dá informação e já sabe que resulta no trabalho. Discípulo é o que vê algo e entende o que o mestre disse. Há uma troca de lugares no momento que o discípulo revela algo ao mestre. Quando ela discordava, era discretamente, polidamente, muito elegante. Quando eu estava pintando só em preto e branco, ela falava muito discretamente que gostava de trabalhar com a cor. Ela não gostava muito de arte abstrata por uma questão de forma-ção, e eu sempre impus minha opção pela abstração. Nós também desafiamos o mestre. Podemos propor desafios para o mestre.Na realidade, nós tínhamos uma relação de mestre e discípulo. É uma coisa que não se fala, é uma coisa implícita. Depois de um tempo, um espera certas coisas do outro. Mas acima de tudo, eu me interessava pelo seu modo de vida. Pela sua maneira de ser, a pessoa que ela era, não só a artista. A pessoa que ela era também me deu elementos. Tarsila tinha 50 ou 60 anos mais do que eu, mas ela conseguia uma coisa que era muito interessante. É uma coisa dos artistas, da maioria dos artistas: não perder nunca a criança de vista. Convivi com ela quase 25 anos, e via nela sempre uma criança. Muito mais da criança do que a grande artista consagrada. Percebo que o artista nunca perde a criança de vista, a criança dele. Ou perde menos. Está mais aberto para a criança, porque o risco da arte é uma coisa infantil, essencialmente. Quer dizer: estar sempre experimen-tando. E o experimento é infantil. Quando as pessoas dizem que não sabem desenhar, é simplesmente porque não estão em contato com a sua criança interna. Senão elas não dizem isto: elas simplesmente desenham. Acho que o artista preserva isso. Porque este impulso é o que faz arriscar, jogar para frente, errar e tratar o erro. O que considerar erro numa situação.Então, me lembro que a Tarsila, com 70 anos, se divertia com as coisas. Nós olhávamos um quadro dela e víamos, por exemplo, aquele pezão. Ela passou a vida rindo do pezão do Abaporu. Ela dizia: Que coisa absurda aquele pezão e, em compensação, tem uma cabecinha minúscula! E havia um quadro (que o Gilberto Chateaubriand comprou) que era um garoto com umas frutas no meio do mar, num barquinho. E ela dizia que era um absurdo ele caber naquele barquinho com um tronco tão grande. E ria muito. Achava a coisa mais engraçada. Lembro disso ser sempre muito divertido. Ela me mostrou a foto, porque na época ela não tinha mais o quadro.Eu me via diante de uma pessoa que era mágica, porque fluía, fluía... e fazia parte da vida dela criar magia. Porque a arte pode tudo. Chagall fez pessoas voarem, outros fizeram pessoas de todas as cores possíveis, porque lidam com o imaginário e com a

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transformação... Jogam a gravidade no lixo. E nela eu via muito esta coisa de criança: o fascínio por tudo, pela roupa, pela qualidade das coisas... Tudo isso é criação, faz parte do mecanismo criativo. Somos criativos até quando penduramos a toalha no banheiro. É uma maneira de ver o mundo externo. E tudo vai se misturando sem esforço...

Conte-nos um pouco sobre como é ser professor.Sei que é difícil respeitar a individualidade das pessoas, é difícil libertar as pessoas por-que, obviamente, temos o sentimento de posse. Não só sobre as pessoas, mas tam-bém sobre as soluções para todas as coisas. Mas precisamos perceber que não temos o controle, nem o domínio sobre as ações das pessoas, e que, quanto mais libertários conseguirmos ser, mais retorno teremos: não é do uso do nosso conhecimento como verdade absoluta que nós crescemos. Mas dispondo do conhecimento, entregando-o realmente, é que vem o retorno. É claro, isto se pudermos observar e perceber o quanto nos alimentamos com as respostas que recebemos dos alunos. O retorno vem à medida que libertamos as pessoas.Acho o fim da picada alguém ter o direito de dizer não pode isso, ainda mais quando o outro está querendo experimentar. Eu não dou a ninguém o direito de dizer o que pode e o que não se pode fazer em arte!Num trabalho não podemos prever como estarão no final do ano... Estarão onde estive-rem! Provavelmente, cada um em um ponto — não importa. O importante é contar com o ritmo pessoal de cada um. O que eu mais aprendi, com a experiência da escola, foi dar espaço para o ritmo pessoal de cada um. Por isto, acredito que um curso não pode predeterminar o ponto ao qual os alunos devem chegar até o final do ano.Nessa troca de ver o que os alunos produzem, de fazer observações, de fazer comen-tários que servem para um ou mais alunos, o que mais importa é que eles desenvolvam um impulso de trabalhar com uma continuidade que eles não tinham antes, uma conti-nuidade de criação. Por isto penso que a universidade deveria liberar um espaço para a expressão, irrestrita, sem nota 10. Deveria haver um espaço paralelo que fosse a possibilidade da pessoa se expressar sem ter que cumprir: agora aula de plástica; agora de composição. Então o aluno vai experimentar cerâmica, depois vai fazer um voluminho de pedra sabão, fica cumprindo etapinhas. E, fora da etapa, se ninguém requisita, não age, não aprende a agir espontaneamente. Se ninguém der uma ideia, paralisa. Mas o que é isto? Onde está o artista?O aluno tem que ir percebendo que não tem mais que ficar cumprindo etapas, que pode agir no mundo e buscar o jeito dele, errando, acertando à sua maneira.Penso que a faculdade poderia cumprir este espaço das notas, mas deveria ter também um espaço grande para as pessoas colocarem a sua personalidade em ação, sem esperar que isto seja detonado pelo professor.. É evidente que ninguém pensa em transformar todos os alunos em artistas, nem é isso que se deve esperar de uma faculdade. Mas podemos ajudar, podemos possibilitar. Não acredito, mesmo, que se possa transformar uma pessoa em artista, mas tenho que ter a dignidade de incentivar, se eu avistar o artis-ta na pessoa. Nós enxergamos o artista, e possibilitamos ou reprimimos seu desenvolvi-mento. Tem muita gente que age ao contrário: porque sente ciúme mortal e demole o artista que a pessoa tem dentro de si. No fundo, o professor tem um certo poder, uma ascendência; está numa posição, num papel que é muito perigoso, onde tudo pode acontecer. Tem que tomar muito cuidado e ser generoso o suficiente para não fazer uma besteira. É fácil-fácil ser arbitrário e demolir uma pessoa, da mesma maneira que pode construir. Precisa ter coerência consigo mesmo, não importando se está coerente com os outros.

Você acredita que sua experiência com a Tarsila auxiliou na sua relação com os alunos?Não sei se a minha experiência com a Tarsila me ajudou com os alunos. Não sei julgar. A minha relação com ela foi muito particularizada. Ela só tinha a mim, não tinha uma classe, não tinha que discutir preferências — a não ser as minhas. Era uma coisa muito específica.É muito diferente entrar numa sala e, no primeiro dia de aula, encontrar 20 pessoas que nunca vi antes. São situações diferentes. Mas sei que a minha ação está permeada de um comportamento ético que vem de formação. Vem da Tarsila, vem do contexto ético, estético, moral e social que eu vivi. Mas o que eu acho que ela me ensinou foi não ter medo de dar liberdade, entre outras coisas. Não ter medo de liberar as pessoas, de trabalhar com um espírito libertário. E liberdade é uma coisa ética. Eu acho que temos

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que ter a dignidade de valorizar as qualidades dos outros que não são sempre iguais às nossas.Minha ação é uma ação livre, através de um percurso que é uma história com a qual eu convivi. Vejo nítidos os fios condutores: a Tarsila e o Wesley. Quando falo de Tarsila e Wesley, falo da mesma ambiguidade que ocorreu na história da arte do século XX, representada nos dois. E o que me atraiu foi exatamente estar em contato com um fio condutor. Eu não estava na frente do Duchamp, mas do Wesley; eu não estava na frente do Picasso, mas da Tarsila. Os dois são a continuidade de um percurso. Eu tenho que saber onde estou pisando, e lidar com os dois. Os dois são perfeitos, são válidos. Eu fico no meio. Não faço tarsilas, nem faço wesleys. Mas estar diante deles é estar diante de um percurso histórico, sem regionalismo: porque não estou falando de arte brasileira, ou arte francesa, mas de arte num sentido abrangente, universal.Hoje eu me sinto livre tanto de Tarsila quanto do Wesley. Porque, apesar de todas as minhas complicações, (não como artista, mas como pessoa), esta gente me ensinou a ser livre...

Como você lida com as expectativas dos alunos?Quando as pessoas procuram um curso de arte, elas acham que nós temos a varinha de condão, a solução para elas saírem desenhando e pintando. E nós não temos as soluções, porque a solução está nelas, e não no professor. Em geral, perceber isto é muito decepcionante. Elas esperam que o professor tenha todas as soluções para todos os seus problemas. E não é isso. O que temos é um mecanismo para que esta pessoa desenvolva um processo, uma ação sobre os materiais. Estabelecemos um processo de ação, e a solução do trabalho é delas. Mas a maioria vem pensando que em uma semana está tudo resolvido. Não é assim, é óbvio que não é assim. Daí, também aprendi a lidar com as pessoas que vão persistir e as que vão cair fora. É uma coisa natural. É claro que, de 100 pessoas, são poucas— no fundo, no fundo —, que irão desenvolver um trabalho pessoal. Eu conversava com todos de igual para igual para finalmente restarem poucos. Porque na realidade não se trata de dar um curso, trata-se de desencadear a possibilida-de de se trabalhar junto: um curso é na realidade uma relação. É esta relação que per-mite estabelecermos um percurso onde se elaboram ou não certas coisas. Mais do que ensinar, é necessário fazer as pessoas acreditarem em seu potencial, pois o problema é que elas duvidam delas mesmas. Em primeiro lugar, querem a solução em uma semana

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e, em segundo, elas vêm com um ideal na cabeça e não contam com seus recursos e suas limitações. Elas não jogam com a intuição e com suas possibilidades reais. Partem do princípio de que, em uma semana, serão Rembrandt. E não é isso, é evidente. Quer dizer: eu estar lá sendo eu mesmo. Não tenho que pintar nenhuma historinha para satisfazer ninguém. Nos laboratórios nos anos finais ou nos cursos livres é que surgem as questões pessoais de cada um. Eu ouvi, por exemplo, de uma aluna que reencontrei mais tarde, que ela desapareceu do curso porque não conseguia lidar com a minha liber-dade. Quer dizer, era um problema específico dela, uma vez que nem me considero tão livre assim, e ela não conseguia trabalhar nesta dimensão de liberdade!Em geral, as pessoas não permitem a intuição fluir, não partem dos seus recursos e têm uma expectativa muito grande de desenhar bem, desenhar certo. Quando eu começava a questionar e mostrar suas qualidades, era difícil — para algumas — acreditarem.Uma frase que ouvi muito foi me dá uma ideia! Como é que eu posso dar uma ideia? Mas se me metia, apesar de tudo, a dar uma ideia, o mais engraçado é que — como a minha não ideia não ia de encontro às suas expectativas — elas diziam que estava errado. É muito engraçado. Minha ideia a respeito de um céu não era a delas e, mesmo assim, ficavam querendo saber a minha ideia a respeito de um céu ou uma montanha. Então eu sempre incentivava que os alunos perseguissem suas ideias, errassem e fossem buscar outra, pois eles sempre têm ideias, apesar de não acreditarem que possam expressá-las. A formação das pessoas é muito pouco expressiva, e a sensibilidade é logo descartada nos anos iniciais da escola.

Como você lida com as subjetividades? Como você lida com os diferentes tempos de tra-balho de cada um? Minha ação não foi igual com todos. Quantas pessoas passaram por mim que não sei até que ponto eu mexi com elas, enquanto outras já respondiam imediatamente. Cada um tem sua medida. Cada um tem um ritmo para mexer com suas próprias coisas. Para mim, o mais importante foi lidar com o ritmo pessoal. Uma aluna fazia um desenho em quatro aulas, enquanto outro fazia seis desenhos em uma aula. E um não é melhor que o outro. São diferentes.Não podemos transformar todo mundo em artista, é evidente! Mas podemos ajudar muito ou não. Mesmo que o meu discurso fosse igual com todos, cada um ia entender de um jeito.

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Alguns achavam que eu não ensinava nada, que não sabia nada, e outros me adoravam, achavam que eu sabia demais. Tive que lidar com milhares de opiniões diferentes. Não havia nada predeterminado, como por exemplo: hoje vamos trabalhar com cinza e ama-nhã com azul ou vamos aprender como se desenha uma montanha.As aulas consistiam em deixar verter a produção de cada um. O que me interessava era ter um parâmetro através da produção, e não da falação. Poderia ficar horas falando, mas isto não era a solução para um trabalho prático. Queria ver os alunos errando, para ter um parâmetro e poder perceber o que era erro para eles, pois o que é errado para um não é errado para outro. Eles precisavam perceber isto, porque vinham de uma experi-ência de escola muito hierarquizada, muito sistematizada, com notas e provas. Queria que eles vivenciassem outra forma de relação e pudessem perceber que cada um tem direito à sua própria maneira de ser. E tinha que parar, observar tudo e descobrir como poderia ajudar cada um. Eu não estava ali para aprovar ou reprovar ninguém.Em arte as pessoas se aprovam ou se reprovam. Se não contamos com um mecanismo interior, não contamos com arte. Desenhar muito bem, ter muita habilidade, pode não significar nada, se não houver um movimento contínuo por uma construção pessoal que vai levar a pessoa a ser artista. A arte, ninguém dá para ninguém. Podemos desencadear processos, romper barreiras. Mas a pessoa tem ou não a tensão interior que vai fazer o artista.

Estar com eles naquela tarde era como estar com a obra de uma vida. No final, uma grande turma de aprendizes, que estava fora do enquadramento da câmera, aplaude. Uma voz não identificada comenta:

Eles batem palma, olham para mim. Eu não sei o que dizer, as palmas não terminam mais.

Contra plongée, saímos por um longo corredor repleto de telas recostadas, algumas com trabalhos prontos e outras ainda em branco.

Sobre o exercício de escrita do Filme-EntrevistaO texto que serviu de referência para o formato “filme-entrevista” foi “Deslimite: um filme-entrevista estrelando Augusto de Campos”, de Carlos Adriano. Essa ideia do texto como montagem nos permite imaginar um diálogo entre Tuneu e Tarsila, integrando diferentes tempos, referências e memórias.A maior parte do filme-entrevista com Tuneu é constituída pelo texto de Ana Angélica Albano, do livro Tuneu, Tarsila e outros mestres... o aprendizado da arte como um rito da iniciação. O capítulo “Tu-neu: Autorretrato” serviu de base para o exercício de montagem/escrita. Os outros textos e memórias se somaram a essa base, buscando elaborar uma noção de tempo estendido, de experiência. A leitura desse capítulo e do livro na íntegra permitirá conhecer mais sobre o pensamento do Tuneu, sobre o compartilhamento de processos com outros artistas, assim como sobre as reflexões da autora acerca do aprendizado em arte, da iniciação artística e da relação mestre e discípulo.A entrevista que Tuneu concedeu à Ana Mae Barbosa e Paulo Pasta, publicada primeiro em Tuneu aprendendo com Tarsila na Revista Ar’te, nº 10, em São Paulo, 1984, e depois na versão em que tive acesso Tópicos utópicos, traz preciosas e pontuais contribuições sobre a prática compartilhada de Tuneu e Tarsila e sobre o tema do desenho.O texto da Revista Sina, “Entrevista com Tarsila do Amaral 50 anos depois da Semana de Arte Moder-na”, contribui com a maioria das respostas de Tarsila sobre sua infância e anos de formação.Angela Brandão em “A mulher, A Representação, A Arte e a Resistência, Os últimos anos de Tarsila do Amaral”, acrescenta duas sensíveis reflexões de Tarsila sobre o desejo de aprender e sobre o sen-tido da vida.Luiz Sugimoto, em sua matéria Cadernos de Desenhos para o Jornal da Unicamp, nos permite resgatar duas citações de Klee e Degas, muito utilizadas por Tuneu.A entrevista concedida por e-mail a Daniela Maura forneceu alguns poucos aforismos, que tratam dos mesmos assuntos trazidos por Ana Angélica Albano. Esses trechos estão amalgamados ao texto da autora e por vezes atualizam o pensamento de Tuneu.As notas de estágio de observação, realizadas por Daniela Maura nas Aulas de Pintura III e VII na Unicamp, em 2001, também trazem aforismos, assim como as situações de aula e os relatos sobre os alunos.

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Editora Daniela Maura Diagramação Amir Brito CadôrImagens Tuneu (imagens de trabalhos, estudos e de uma de suas mesas no ateliê), exceto nas páginas 4, 5 e 7Texto de apresentaçãoDaniela MauraTradução Daniela Maura e Amir Brito CadôrRevisão da traduçãoPaulo de ToledoInterlocutores Amir Brito Cadôr, Eugênio Paccelli Horta, Nana Albano, Jakeline Lins e TuneuAgradecimentos especiaisNana e Tuneunúmero 02maio de 2015Belo Horizonte/[email protected] obter o primeiro volume do Cadernos de Estudo, acesse: http://issuu.com/cadernos_de_estudo/docs/cadernos_de_estudo_1

Referências

IntroduçãoHannah Higgins. Fluxus Experience. University of California Press, 2002.Jacques Rancière. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autentica, 2004.Julio Plaza. Arte/ciência: uma consciência, Revista Ars, nº 01, 2003, disponível em http://www.mac.usp.br/mac/expos/2013/julio_plaza/pdfs/arte_ciencia_uma_consciencia.pdfMário de Andrade. O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, 1963.

Filme-entrevista Ana Angélica Albano. Tuneu, Tarsila e outros mestres... o aprendizado da arte como um rito da iniciação. São Paulo: Plexus, 1998. Ana Mae Barbosa. Tópicos utópicos. Entrevistas sobre Mulheres, Arte e Ensino, Tuneu aprendendo com Tarsila. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.Angela Brandão. A mulher, A Representação, A Arte e a Resistência, Os últimos anos de Tarsila do Amaral. ANAIS, IV Fórum de Pesquisa científica em Arte, Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Curitiba, 2006. Carlos Adriano. Deslimite: um filme-entrevista estrelando Augusto de Campos. Revista Trópico, Dossiê ARTE É RISCO. Luiz Sugimoto. Cadernos de Desenhos. Jornal da Unicamp, maio de 2009.Revista Sina. Entrevista com Tarsila do Amaral 50 anos depois da Semana de Arte Moderna, 04 de Setembro de 2011. Reportagem baseada em uma entrevista que foi concedida a revista Veja no dia 23 de Fevereiro de 1972, para o repórter Léo Gilson Ribeiro.Tuneu, entrevista concedida por e-mail a Daniela Maura, novembro de 2014.Notas de estágio de observação, realizadas por Daniela Maura, nas Aulas de Pintura III e VII, Insti-tuto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

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