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Cadernos de sociologia e política

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Cadernos de sociologia e política IURJ

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Cadernos de Sociologiae Política

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IUPERJInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

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ISSN 1809-1814

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Cadernos de Sociologiae Política

IUPERJInstituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

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Novembro de 2005

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CADERNOS DECADERNOS DECADERNOS DECADERNOS DECADERNOS DESOCIOLOGIA E POLÍTICASOCIOLOGIA E POLÍTICASOCIOLOGIA E POLÍTICASOCIOLOGIA E POLÍTICASOCIOLOGIA E POLÍTICA

Fórum dos Alunos do IUPERJ

Editora de texto: Márcia Rinaldi de Mattos Mônica Farias

Editoração eletrônica: Claudia Boccia

Projeto gráfico: Dataforma

IUPERJRua da Matriz, 82 - BotafogoCEP 22.260-100 - Rio de Janeiro - RJTel.: (21) 2537-8020Fax: (21) 2286-7146E-mail: [email protected]

Os conceitos emitidos são de absoluta e exclusivaresponsabilidade de seus autores.

ISSN 1809-1814

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Sumário

APRESENTAÇÃO

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CASSIO CUNHA SOARES

Uma Pequeno-Burguesia Folk? Ou do Papel daCultura Popular no Imaginário Urbano Juvenil deClasse Média Carioca7

FLAVIO GAITÁN

Gramsci y las Lecciones de la Historia.Reflexiones sobre el Volumen 5 de losCuadernos de la Cárcel27

FREDERICO CARLOS DE SÁ COSTA

Oliveira Vianna e o Problema InstitucionalBrasileiro37

HENRI CARRIÈRES

Uma Apresentação Concisa da HistóriaConceitual55

MARCIAL A. GARCIA SUAREZ

A Crueldade, a Técnica Moderna e as Faces doTerrorismo71

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MAURÍCIO SANTORO

Crise na Aliança Atlântica: EUA e Europa diantedas Novas Ameaças à Segurança Internacional91

PAULO HENRIQUE SETTE FERREIRA PIRES GRANAFEI

Max Weber e Karl Mannheim: Duas Perspecti-vas Sociológicas do Problema do Conhecimento105

TATIANA GOMES ROTONDARO

Reflexões acerca do Conceito de Dominação daNautreza na Escola de Frankfurt127

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Apresentação

O oitavo volume da revista Cadernos de Sociologia e Política doFórum dos Alunos do IUPERJ prossegue no avanço de mais umnúmero. Todos os artigos publicados foram recomendados porpareceristas de instituições de ensino superior do país. Neste volume,trazemos ainda a novidade da indexação, o que consolida uma novafase da revista.

O objetivo é trazer para os leitores discussões teóricas, resenhas eanálises empíricas em Sociologia, Ciência Política e outras áreasconexas, mantendo sempre a diversidade da produção intelectual.

Agradecemos aos alunos que contribuíram com artigos, ao BrunoCarvalho pela participação no início dos nossos trabalhos, aospareceristas, à Diretoria de Divulgação Científica do IUPERJ e à equipede publicações.

Comissão EditorialCristina Buarque de Hollanda

Luzia CostaTatiana Bukowitz

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Uma Pequeno-Burguesia Folk?Ou do Papel da Cultura Popular no

Imaginário Urbano Juvenilde Classe Média Carioca

CASSIO CUNHA SOARES*

Resumo

O presente trabalho pretende realizar uma modesta reflexão sociológicaa partir do impulso de uma inferência empírica, mediado porconstructos teóricos elaborados por Pierre Bourdieu. O fenômenourbano de apropriação cultural de elementos constitutivos do universoda assim chamada cultura popular, por parte de um determinadosegmento juvenil da classe média carioca, é o recorte de objeto destapequena investigação. Busca-se explicar a formação desse circuitocultural juvenil alternativo como um processo de constituição de umcampo produtor de sentido e identidade, desdobrado em uma certaestilização de modos de vida.

Palavras-chave: ressignificação cultural; juventude urbana; PierreBourdieu

* Bacharel em antropologia, aluno do mestrado em sociologia do IUPERJ e bolsistado CNPq. E-mail: [email protected].

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“Ser é ser percebido”.Georg Berkeley

I. Preâmbulo

A sociologia exercitada por Pierre Bourdieu, quer a consideremosesporte de combate ou não, a negativa a contragosto do autor, além deoferecer instrumentos teóricos suficientemente fundamentados paracompreender a organização do mundo social, vai além: estimula atomar contato com a realidade concreta para fazê-lo. Desde Marx, afilosofia da práxis parecia não ter encontrado tão sólido baluarte emum pensador de prestígio acadêmico.

Motivado e mobilizado pela herança sociológica de Bourdieu, críticomordaz dos “audazes sem rigor” e dos “rigorosos sem imaginação” –ensaístas e empiristas autocentrados –, deixei-me guiar pelo desafiode unir teoria e prática neste trabalho, sem pretensão alguma de atingirqualquer ponto ideal desse provável continuum, desafiando os conselhosaristotélicos, mas preservando com isso as boas regras da modéstia.

Este artigo, portanto, procura realizar uma breve reflexão sociológicaa partir do impulso de uma inferência empírica, balizando-se em umaperspectiva bourdieusiana. O fenômeno urbano de apropriação culturalde elementos constitutivos do universo da assim chamada culturapopular, por parte de um determinado segmento juvenil da classe médiacarioca, é o recorte do objeto desta pequena investigação. Munida dosreferenciais conceituais próprios a Bourdieu, a pesquisa perscrutouduas veredas, fazendo uma opção metodológica qualitativa: partiu deuma fase de incursões ao meio de encontro e reunião desses jovens,com visitas participantes aos eventos e festividades por eles organizados;e culminou com a realização de entrevistas entre alguns membrosselecionados posteriormente, através de contatos firmados de início.

O conjunto de entrevistas foi realizado entre quatro pessoas, cada qualbasicamente ligada a uma ou mais entidades1 de estudos e/ou divulgaçãode cultura popular, mas pertencentes em última instância ao que tomei

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como campo ou circuito juvenil cultural alternativo – o universo deindivíduos e associações majoritariamente juvenis urbanas queinteragem de algum modo com narrativas, artes performáticas2 eartefatos populares, folclóricos ou regionais. As entrevistas foramabertas e semi-estruturadas, e tiveram como meta central captar, atravésda análise e reconstrução da trajetória de vida dos pesquisados, ospontos de apoio e as características desse universo, considerando-oscomo matérias primas centrais para a identificação do habitus e daillusio próprios desse campo.

II. Sobre o Método e o Objeto

Este trabalho não cultiva nenhuma ilusão generalizante em relação aofenômeno focado. Pelo contrário, busca sobretudo recolher pistas parapossíveis incursões futuras, sendo mais um exercício interpretativo eexperimental, objetivando investigar um fenômeno social com o auxíliode “instrumentos conceituais bourdieusianos”, se assim se pode dizer.A reflexão, não obstante, intenta atingir algum grau de profundidadedentro do limite de suas fronteiras.

Tentei acessar o campo da cultura juvenil popular alternativainicialmente movido por uma curiosidade de transitar pelos espaçosculturais do Rio de Janeiro, dada minha condição de recém-chegado àcidade no ano de 2004. A princípio, fi-lo apenas como um curiosoqualquer. Meu primeiro contato se deu na condição de observador“desinteressado” da “Festa da Lua” de abril, organizada tradicional-mente em Santa Teresa pelo grupo “Céu na Terra”, e a encaro como ocomeço dessa história. Logo após algumas semanas, freqüentei duasfestas particulares de pessoas que participavam diretamente dessecampo, e também uma apresentação pública de Tambor de Crioularealizada em uma praça na região do Leme por um coletivo de amigosque transitam entre os grupos. Sobre esse campo, vale ressaltar, é naturala circulação de indivíduos entre os diferentes grupos, não rara aparticipação em outros simultaneamente. Nessas últimasoportunidades, enfim, já havia direcionado o “olhar” de pesquisador.

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Assim pude estabelecer os primeiros contatos com os participantes,bem como perceber um pouco das particularidades “litúrgicas” docampo, o modo como apropriavam e res-significavam as cantigas, dançase instrumentos musicais populares, além da forma de utilização deadereços e indumentárias correlatos. Pude observar como o corpo possuium papel fundamental nessas “brincadeiras” (como gostam de se referiraos jogos e apresentações), não só como depositário dos adornos eenfeites populares, mas porque é basicamente através da performancecorporal que se exerce a prática das danças e particularmente dapercussão. O treino em uma “ginga” característica e as habilidades eminstrumentos musicais me parecem elementos basilares para o ingressonesse campo.

Os trajes, de modo geral, são vestimentas de uso tradicional dos setorespopulares e regionais: camisões, sandálias de couro, saias compridas ecoloridas, brincos com imagens sagradas e colares rústicos, coexistindocom sofisticados relógios de pulso, correntes, tatuagens e piercings.Há uma combinação natural de adereços tidos como populares comoutros mais típicos da juventude underground urbana. Em suma, visualque comumente é considerado alternativo.

Os participantes deste universo eram, em sua grande maioria,constituídos por jovens brancos provavelmente entre seus 20 e 30 anos,universitários, oriundos das classes média e alta, moradores da zonasul do Rio de Janeiro, onde as mulheres parecem predominantes. Talinferência baseia-se exclusivamente na observação realizada em campoe na opinião emitida por algumas das pessoas entrevistadas.

Foram realizadas quatro entrevistas3, e por feliz coincidência em pelomenos três dos casos, ocorridas nas dependências das residências dasentrevistadas. Nessas condições me foi possível também somar àinvestigação a observação do habitat doméstico, cujo poder de inferênciaé muito relevante na opinião de Bourdieu. Todas as entrevistas meforam concedidas por mulheres, entre seus 26 e 27 anos. Três erambrancas e uma negra. Eram de um modo geral lideranças ou pessoasde referência entre seus grupos. Todas de classe média, as entrevistadastinham origem em famílias com pais de nível superior e possuíam

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graduação universitária (duas inclusive cursando mestrado em ciênciassociais). Residem sozinhas ou com seus maridos/companheiros/namorados em bairros nobres da cidade.

Em suas residências notei que boa parte da decoração interior foiorganizada a partir de objetos que mantinham alguma ligação com ouniverso da cultura popular, como quadros, painéis, estatuetas, imagensde santos e divindades populares, não raramente junto a entidadeshindus ou referência míticas de outras culturas, e principalmente, claro,instrumentos musicais rústicos de percussão. Pude observar também aexistência de muitos discos de canções populares/regionais.

Através da conversa travada com minhas entrevistadas, tentei obtermais informações sobre esse universo e acessar um pouco o tipo depercepção que tinham do campo do qual faziam parte, para entãobuscar uma compreensão da lógica de apropriação desses elementospopulares de certo modo “estranhos” ao seu meio social tradicional.Os argumentos presentes em seus discursos eram de um modo geralmarcados por um forte veio intelectualizado, demonstrativo de umelevado grau de instrução escolar, até mesmo pelo teor das críticasfeitas ao meio acadêmico (que só poderiam ser feitas pelos própriosacadêmicos), revelador de um capital cultural próprio às camadasmédias universitárias urbanas. São de algum modo intelectuais, apesarde se colocarem acima de tudo enquanto artistas.

Ora, para Bourdieu, os artistas e intelectuais são considerados, emúltima instância, a fração dominada da classe dominante, poisparticipam, ainda que econômica, social e politicamente de formasubordinada, do modo de socialização e logo, por decorrência, domodo de constituição dos instrumentos de apropriação simbólica domundo típico desta classe4. Esta é a raiz de sua condição estruturalmenteambígua. Bourdieu constata que:

“A disposição estética se constitui numa experiência do mundoliberada da urgência e na prática de atividades que tenham nelasmesmas sua finalidade, como os exercícios de escola ou decontemplação das obras de arte. Dito de outro modo, ela supõe adistância com o mundo [...] que está no princípio da experiênciaburguesa do mundo” (1983:87).

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Claro que Bourdieu considera o fato de que os agentes do campointelectual, ainda que dependam de uma condição de percepção domundo e de afastamento das pressões ordinárias de sobrevivência – oque justamente permite a canalização de energias para as esferas daabstração conceitual ou estética, possuem sua própria margem de açãodentro das regras de seu campo. E o próprio intelectual pode ter clarezadisto, e é muitas vezes sob esta clareza que pode justificar suaindependência. No entanto, o intelectual e o artista são, por assimdizer, demandados para as funções de produção e reprodução simbólicada ordem dominante, e operam nesse âmbito consciente ouinconscientemente. O mais importante dessa observação está no fatode que a estilização da vida, do modo como a conhecemos hoje, exigecertas condições que são possibilitadas pelas condições de posição declasse. E é assim que devem ser entendidas, em uma leiturabourdieusiana, a apropriação e a utilização de elementos de distinçãopor estes agentes.

III. Grupos Sociais, Distinção e Estilos de Vida em Bourdieu

“As diferenças nas atitudes, tal como as diferenças deposição (às quais elas se acham freqüentemente

associadas) estão na origem de diferenças de percepçãoe de apreciação e, por isso, de divisões bem reais”

Pierre Bourdieu (1989:98)

A sociedade brasileira moderna, urbana e capitalista, é cenário deconfigurações e articulações dos mais variados círculos de sociabilidade,estruturados desde a base da ação mobilizadora tradicional do poderda simbolização da territorialidade e da consangüinidade, como nosesquemas de um Tönnies, até os fluidos e “horizontais” vínculos deafinidades típicos dos padrões de sociabilidade metropolitanos,traduzidos de modo mais clássico na versão de tribo urbana mafesoliana.Os vínculos de afinidade mobilizados por convergências de ordemestética são os que interessam para o tipo de reflexão que aqui proponho.

Para Bourdieu, os grupos sociais organizam-se em torno de interessese afinidades estruturadas simbólica e socialmente segundo a posição

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que ocupam em determinado lugar do espaço social. Tais “lugaressociais”, quando configurados como espaços capazes de se manter pelasdinâmicas de suas regras e normas próprias, autonomizadas, produtoresde determinados habitus, são denominados campos: estruturasestruturadas e estruturantes. Sendo tautológicos os campos, têm a sipróprio e sua reprodução como fins últimos. Daí pode-se pensar ocampo econômico, político, artístico, burocrático, religioso etc., comoigualmente os “sub-campos” possíveis no interior destes ou eminterseção com outros demais. Os campos não são, nem poderiam ser,espaços herméticos. E apesar de serem universos sociais que adquiriramhistoricamente autonomia enquanto tais, são por outro lado, enquantorealidade concreta, também atitude metodológica do pesquisador:

“Lembrar que o campo [...] como um sistema autônomo oupretendente à autonomia é o produto de um processo histórico deautonomização e de diferenciação interna é legitimar aautonomização metodológica, autorizando a pesquisa da lógicaespecífica das relações que se instauram no interior desse sistema eo constituem enquanto tal” (1968:113).

O conceito bourdieusiano de campo está intrinsecamente ligado à idéiaque elabora de habitus. Em outras palavras, em uma antinomia heurísticacara às ciências sociais, o campo está para a estrutura assim como ohabitus está para a agência. Tal noção, apropriada e remodelada porBourdieu, foi originalmente usada por Erwin Panofsky, ao analisar asrelações existentes entre as práticas e percepções de arquitetos góticose monges escolásticos a partir do estudo da estrutura das catedraismedievais (Bourdieu, 1992:339). O habitus deve ser entendido comoum conjunto de disposições que orientam a percepção e a prática doagente no mundo social. Está de certa forma inscrito até na hexiscorporal, sendo o próprio corpo socializado, estruturado e condicionadoa sentir e agir na realidade social segundo essas condições. Cada campoengendra determinado(s) tipo(s) de habitus, que é(são) internalizado(s)pelos indivíduos em processos de apropriação e enculturação de saberese práticas. Operam nos agentes como uma segunda natureza, sendo,aliás, uma força social naturalizada. Nele está muitas vezes o“impensado que nos pensa”, o que não significa que seja refratário àreflexão5.

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O habitus, entretanto, é mobilizado e muitas vezes até mesmo postoem ação pelo poder de uma crença na validade das normas sociaismais fundamentais que dirigem determinado campo, de uma noçãoaxiomática, e por decorrência, não objeto de dúvidas. É necessário umsentido para o jogo social6, e o jogo deve fazer sentido para poder serjogado. O cimento que garante esta adesão às regras do jogo social, amanutenção da ordem gnosiológica e a garantia do sentido mais imediatodo mundo é o que Bourdieu denomina illusio:

“Se você tiver um espírito estruturado de acordo com as estruturasdo mundo no qual você está jogando, tudo lhe parecerá evidente ea própria questão de saber se o jogo vale a pena não é nem colocada.Dito de outro modo, os jogos sociais são jogos que se fazem esquecercomo jogos e a illusio é essa relação encantada com um jogo que éo produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre asestruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social”(1996:139-140).

Através do conceito de illusio, incorpora as idéias de investimento elibido, enquanto móbiles da ação, colocando em outros termos apreponderância do velho interesse utilitarista. Ela, pois, é tanto condiçãode funcionamento quanto produto do campo.

Os agentes reunidos enquanto grupos de afinidade e sociabilidade, emseus respectivos campos, agem segundo a posição que ocupam nestemesmo campo, muitas vezes através da luta e de alianças para aquisiçãode posições de honra, prestígio, poder ou aumento de seu capitaleconômico. É na relação propensa do habitus sintonizado àspredisposições do campo que o agente pode ser levado a serrecompensado com méritos e alcançar melhores posições (idem:153).

Todo habitus apresenta uma gama própria possível de valores e estilosa serem adotados pelos agentes. O que se entende por estilo de vida,assim, é o conjunto das opções éticas e estéticas, do gosto ao julgamentodo gosto, elemento sobre o qual se alicerça toda forma de distinçãosocial, dado que é materializado pelas escolhas esportivas, alimentares,indumentárias, sexuais, corporais, intelectuais etc.

O corte de classe não é de modo algum abandonado, apesar da visãocrítica e neokantiana que Bourdieu (1992) tem sobre as classes sociais.Classes são para ele categorias lógicas, mais que reais, apesar de nada

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impedir que as localizemos no espaço social e que elas possam vir ater mesmo existência concreta, ainda que também por algum tipo deeficácia simbólica – como através do trabalho de intelectuais engajadosou de uma vanguarda revolucionária. O mais fundamental é focar naposição ocupada pelos agentes no espaço social. A posição quedeterminado agente ocupa em seu campo se articula também de algummodo com a posição que ocupa no campo da produção da vida material,no campo da produção econômica, atuando solidária ouantagonicamente na condição de sua posição nos campos em que integra.

IV. Do Sentido da Apropriação Cultural e seus Desdobramentos

“E agora que a gente tem a elite fazendo cultura popular?”7

Todas as entrevistadas tinham lucidez de que lidavam, de uma formaou de outra, com aquilo que de um modo geral é conhecido comocultura popular. No entanto, quando questionadas sobre o queconsideravam ser cultura popular, mantinham uma grande reserva emlançar qualquer definição. Considero basicamente dois fatos. Primeiroo receio de fazê-lo na presença de um pesquisador sociólogo, portadorde credenciais acadêmicas que por si só atribuem status de agente“versado sobre o assunto”. Segundo, o fato de três delas participaremdo universo acadêmico das ciências sociais e terem noção das dimensõesda crise dos conceitos de cultura popular e folclore. As antinomiascultura popular versus cultura erudita, ou cultura popular versus culturade massa, foram enfaticamente rejeitadas.

De todo modo, consegui extrair de todas uma concepção particular decultura popular, as quais associavam ao suporte social da tradição edos saberes tradicionais. Em uma postura relativista, também típicado nosso campo acadêmico, tal concepção era incrementada pela defesae compreensão da alteridade, da cultura do outro.

Mas a grande questão que intrigava era: por que jovens brancosuniversitários de classe média queriam se aproximar desses saberestradicionais? Por que tocar tambores raros e artefatos até certo pontorústicos e exóticos, e não instrumentos elétricos e eletrônicos? Por

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que organizar eventos onde se exaltam cantigas regionais ou populares,muitas de coloração infantis e/ou religiosas, e não festas juvenis urbanasregadas às típicas canções pop, rock ou techno8? E se isso está ocorrendo,o que há propriamente de moderno nisso?

Em uma grande cidade é regra que grupos de sociabilidade se organizemem torno de afinidades compartilhadas. Tais grupos, apesar de surgiremde modo quase aleatório, são aproximados por dadas condições sociaise materiais que refletem em certa medida a posição que ocupam noespaço social. Neste caso, o círculo juvenil universitário é a base dateia que montei. A diferenciação estética necessita de certas condiçõesde apropriação simbólica que, como foi visto, é desdobramento de umtipo específico de socialização e de constituição de um padrão desensibilidade correspondente. O extremo grau de diferenciaçãopossibilitado pela metrópole, por outro lado, que reúne territorialmentegrupos procedentes dos mais diversos meios, permite o contato comelementos a partir do qual tais disposições estéticas podem conformarpólos de convergências sociais.

A apropriação da cultura popular, nesse sentido, caminha na direçãoda produção de sentido e de padrões distintivos próprios ao estilo devida desses jovens. Vejamos o que dizem nossas entrevistadas:

“[...] o que a gente faz é buscar a cultura do outro, que tem umaoutra forma de vida, que não é a que a gente está inserida, nessemeio que a gente vive. A gente não está vivendo aquilo, mas aosnossos olhos nos agrada, nos fascina, e a gente quer conhecer, quervivenciar, acha bom, acha gostoso. É assim esta questão, mas enfim,interior mesmo. Então, acho que tem essa busca do diferente, nãoque isso seja popular ou não [...]” (A).

“[...] a gente nunca quis fazer o Maracatu como o de lá (Recife),nunca quis reproduzir a coisa de lá. Isso é uma coisa legal, porquenão foi de uma forma consciente, ninguém decidiu assimteoricamente antes de qualquer coisa: - ‘Nós não podemos, porquenão é correto!’. Não é isso. É uma coisa que o grupo sempre fez [...]até porque a gente sempre quis misturar com o funk, quer misturarcom isso, quer misturar com aquilo [...] a gente não carrega estatradição, não nos pertence. A gente é só um canal para isso [...]”(D).

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“[...] a cultura popular tem essa força de se diferenciar, de não sermais um [...] e eu estou vivendo muito isso, de querer ter o meugrupo no Rio de Janeiro e não copiar o que tem no Maranhão. Nãoquero fazer uma cópia, nem um pouco [...]” (B).

“[...] a possibilidade de ver alguma coisa diferente do que eu estavaacostumada a ver: acho que isso me despertou [...]” (C).

A várzea principal por onde corre este rio é a da busca. Buscar substratosconcretos e simbólicos que pudessem dar vazão à constituição depadrões de sociabilidade distintivos concreta e simbolicamente.

Nessa mesma direção, essa era também uma busca por produção desentido. Em uma sociedade urbana, moderna e secularizada, as grandesinstituições tradicionalmente produtoras de sentido (as religiões) foramde algum modo esvaziadas, atingidas pela crítica racional sobre asdimensões do espaço moral que ocupava na vida das pessoas. O quenão significou que os modernos abandonaram qualquer idéia geralsobre a espiritualidade, pelo contrário, apontaram-na para outroscaminhos, mobilizada prioritariamente para satisfação dasidiossincrasias individuais9. Assim em certos setores sociais aconstrução de sentido passa pela busca dessa satisfação, e para tanto seassume a possibilidade de remodelagens a partir de enxertos oriundosde várias crenças e filosofias de vida. A cultura popular, através de suadimensão espiritual ligada aos cultos afro-brasileiros e ao catolicismopopular, oferece assim também matéria-prima para a edificação deuma visão de mundo, e principalmente está conectada às aspiraçõesdistintivas desses agentes. Este aporte de sentido que esses jovensencontram na cultura popular, muitas vezes aprofundado pela utilizaçãode elementos religiosos para algum tipo de upgrade espiritual, constitui-se em um dos elementos primários para a constituição da illusio nessecampo.

Esses agentes descobrem na cultura popular também valores queassimilam e re-significam aos seus, nesse complexo processo debricolagem, conformando um habitus que tenta articularcomportamento individualista com concepção holista do mundo.Relatou-me a entrevistada B: “[...] a cultura popular me ensina, nomeu cotidiano, a olhar no olho, a ter mais paciência, a ver que a

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natureza muda. Isso mexe com o meu trabalho e com a minha vida[...] eu lembro do Maranhão para não deixar o Rio de Janeiro mesufocar, a cidade grande sufocar [...]”.

É muito curioso observar que todas as entrevistadas possuíam relativaclareza do papel que essa cultura estava jogando dentro de seu universopessoal, e, por mais que a tivessem como fonte inspiradora, radial ematriz, esperavam criar algo próprio a partir de seus elementos passíveisde assimilação. Logo, algo que lhes fosse legítimo para sua “condiçãoilegítima”. A legitimidade é uma questão cara a esse campo. Osentimento de que há algo fora do lugar às vezes assombra algumas dasentrevistadas. Há verdadeiramente um conflito interno, maisprecisamente entre as duas pessoas que mantêm um dos dois pés maisfirmes nas ciências sociais, quanto à natureza desse mergulho na culturapopular, na assimetria passível da troca que se estabelece entre doismundos distintos. Mas sua illusio fornece os pontos de apoio para aestabilidade e manutenção dos agentes nesse campo. Para tanto, lançammão do argumento do canal, da necessidade de se estabelecer umaponte entre as duas culturas como atitude fundamental dos agentes:

“[...] eu estou nesse conflito [...] mas acredito que pode-se fazeruma ponte entre estes dois universos através das relações pessoais[...] ter uma relação mesmo de intimidade, de troca, em que vocêpode ajudar ele [o artista popular] e ele pode te ajudar, até demaneiras diferentes. Principalmente de maneiras diferentes [...]”(C).

“[...] através do Maracatu que a gente faz aqui, que não é o Maracatude Recife, que é branqueado sim — porque são as pessoas brancasque o fazem, e daí? [...] mas esse Maracatu do jeito que é ele estáconstruindo uma ponte. Ele está fazendo que essas pessoas brancasvão para lá, e sentem no mesmo bar, e tomem cerveja com o carinhada comunidade, troquem idéias e se gostem, e se falem o ano inteiro[...]” (D).

Para tanto, valem-se de uma concepção antropológica de culturaenquanto estrutura dinâmica, fluxo mutável e vivo. Dessa forma, nãohá problemas entre os intercâmbios que se processam entre as culturas,ainda porque ambas participam de uma dimensão maior, que é a deintegrantes da sociedade nacional. Esta ponte, ainda, é o que podepermitir aos portadores dos saberes tradicionais acessarem as outras

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formas de saberes, urbanos e modernos, que lhe são socialmente negadospor uma estrutura socioeconômica excludente.

A questão maior seria a de compreender as condições de edificaçãodessa ponte, dessa permuta cultural que naturalmente tende a seestabelecer. A própria condição de agentes socioeconomicamenteexcluídos, privados do mínimo aporte de capital econômico e, por suavez, de capital cultural, inviabiliza que esta troca se dê de maneiraminimamente simétrica, satisfazendo potencialmente apenas uma daspartes. Diria Bourdieu: que meios culturais e econômicos podem osagentes populares mobilizar para realizar os elementos dessa troca?

O ponto da assimetria de condições é, além de ambíguo, delicado,mas também reconhecido, e é mais um peso no dilema interno destesagentes: “[...] infelizmente não mexe com a estrutura, não mexe [...]quem vai ser mais contratado agora, os grupos que re-significam ou osgrupos tradicionais? Isto é complicado. Mas a gente não pode fazeresta leitura tão [...] quase que sei lá [...] marxista ortodoxa da parada!”

(D).

V. A Espetacularização do Popular e a Indústria do Entreteni-mento

Se de um modo esses agentes encontram na cultura elementos para asua organização na qualidade de um universo identitário de artistasperformáticos, assumindo um habitus baseado em uma hexis corporalcaracterística, ressemantizando expressões próprias do vocabulário daspopulações tradicionais e regionais, utilizando-se de um código internode valores que se mesclam com uma visão de mundo e uma sensibilidadeespiritual afastados no tempo e no espaço, mobilizados por uma illusioque garante o sentido da ação dentro e fora do campo, de outro precisamgarantir as condições materiais e simbólicas de sua reprodução enquantopróprio campo. E ainda que em sua maioria esses artistas nãosobrevivam unicamente dessa atividade cultural, e se a tomaraminicialmente como tal foi por motivações outras que não utilitárias, aprofissionalização parece caminho natural dos grupos:

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“[...] os grupos surgiram não para virar mercado de trabalho, meiode vida, para vender. Não, eles surgiram por uma necessidade detocar junto, de estar junto, era um momento de reunir. Isso é muitolegal: surgiram porque queriam estar juntos. Aí a conseqüência,claro, as pessoas tem que ganhar dinheiro, vão e começam a tornaraquilo profissional. E eu vejo que agora está na moda [...]” (B).

Como produtores de bens simbólicos, hoje os grupos comercializamespetáculos na cidade. Realizam em geral oficinas de dança, música eteatro. Um deles até mesmo chegou a participar de uma gravação denovela da Rede Globo. Para Carvalho (2004), as sociedades urbanasdemandam entretenimento como um dos seus modos típicos de consumocultural. E a espetacularização das artes populares, sua formatação emeventos de consumo cultural, com a compressão do tempo para atendero ritmo e a dinâmica da intercalação de apresentações variadas, culminafatalmente em necessário empobrecimento e mutilação.

A indústria do entretenimento nas sociedades modernas alimenta-seda possibilidade de construção e reconstrução de produtos e produçõesfugazes que são convertidos em espetáculos para um mercado de bensculturais cuja dinâmica demanda a constante apresentação de novidades.É dentro desse estado de coisas que devemos entender a inserção daarte popular re-significada, como elemento igualmente partícipe daestrutura do mercado cultural. O bom êxito de artistas e literatos,geralmente, está então associado às suas capacidades em responderaos apelos demandados pelos setores da sociedade consumidores debens culturais ao seu campo.

De outro lado, a força de atração que a indústria do entretenimentoexerce aos demais campos e agentes é tão significativa que hoje maisdo que nunca o próprio poder público entra substancialmente nessejogo, seja através de seus departamentos de publicidade e turismo,contratando diretamente produtores e organizadores de festas/espetáculos populares e tradicionais, seja através de legislação eincentivos fiscais que tornem atrativos a execução dos mesmos pelainiciativa privada.

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O caso maranhense é paradigmático do que anda ocorrendo pelo país:a transformação de artes e tradições populares em objeto de políticacultural dos governos, na perspectiva de geração de lucros para ainiciativa privada e atração de recursos para investimentos públicos.No estado do Maranhão foi criado há pouco tempo, ainda no governode Roseana Sarney, o circuito de São João, com uma rede de espetáculose atividades culturais típicas da região tendo em vista o seu potencialturístico10. Este fenômeno envolvendo o poder público, objeto deinúmeros trabalhos densos e pesquisas originais nestes últimos anos,ficou diagnosticado na literatura especializada por um termo que traduzbem o sentido mais geral desse processo: a city marketing 11.

VI. À Guisa de Conclusão

A análise da trajetória de vida das quatro entrevistadas reúne algumaspeças instigadoras para a montagem desse quebra-cabeça. Nos casosestudados, pode-se compreender como foi fundamental o contato quetiveram na academia com elementos do universo da chamada culturapopular para incorporarem-se nesse campo. Em todos os casos a famílianão teve qualquer participação direta nesse processo, mesmo no casode B, cujo pai antropólogo morou um período em São Luís/MA, ondeinclusive ela veio a nascer, e nesse período chegou a estar envolvidopor lá em um estudo sobre a cultura negra. Mas a própria entrevistadarevela que, ainda tendo algum tipo de contato com esse universo pelainfluência paterna, saiu da cidade sem se importar muito com o assunto,e foi justamente ao vir morar no Rio (os pais eram cariocas) que acultura maranhense ganhou um significado especial:

“[...] eu saí do Maranhão porque não agüentava a cultura populardo Maranhão. Eu precisei vir para o Rio para conhecer outras coisas,sair e esquecer aquela coisa do Maranhão, para depois de um temporetornar a essa força e essa magia que é a cultura popular doMaranhão [...]” (B).

Pelos depoimentos pude perceber que há verdadeiramente um grandenúmero de pessoas nas universidades do Rio que transitam de algumaforma por esse circuito, que envolve, incorpora e absorve de maneiradiferenciada muitos desses jovens estudantes que ingressam na academia.

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Esse campo juvenil cultural alternativo participa como um dos braçosfortes do circuito cultural universitário carioca. E mais: o que se produzcom o nome de cultura popular nesse sentido é na verdade um tipo decultura universitária alternativa, e alternativa não por carregar algumaaura de contracultura, pelo contrário, desta reserva apenas seus apelosestéticos. O que se busca é a legitimidade da originalidade de se estarcriando algo novo, ressemantizado, a partir das tradições populares eregionais, em um campo de produção cultural e artístico onde todamontagem, re-ordenamento e apropriação são legítimos para o projetocriador desses agentes.

Em uma ótica bourdieusiana, esse processo só pode ser possível seentendido como um movimento desencadeado e possibilitado pelaposição ocupada por esses agentes no campo de um espaço socialdeterminado, desaguando portanto em um modo típico desse esforçode constituir sentido e de se distinguir.

As apropriações realizadas por esses agentes nessa “troca” que operame estabelecem com os setores populares, suas “fontes” de inspiração ematéria-prima, são sim desiguais, e não poderia ser diferente, pelomenos nos marcos estruturais que são dados. Não chega a ser exatamenteum jogo de soma zero, pois há elementos em uma relação entre doisuniversos culturais distintos que efetivamente irão circular. O trágico,se assim se pode falar, é que as condições de realização potencialdesses elementos nesses universos não são as mesmas para ambos, e opior, para um dos lados é perversamente desigual.

A utilização comercial dos saberes tradicionais pode vir a ser umproblema quando produz um esvaziamento de significado, maisprecisamente em seu processo de adaptação às condições deapresentabilidade próprias das dinâmicas dos espetáculos, enquantoprodutos de consumo cultural. No entanto, considerando que essasmanifestações culturais re-significadas já não são mais cultura popular,e nem no discurso de sua produção existe qualquer pretensão de sê-la,todo o sentido é recriado. E como tal pode legitimamente servirduplamente a necessidade de distinguir, produzir sentido existencialpor um lado, e por outro atender as necessidades de acumular capital

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social e econômico, sem gerar constrangimentos nas consciências dosagentes. Quanto ao último ponto, ressalte-se ainda que esses artistassão produto de uma sociedade que demanda tais bens culturais, e épara isso que foram socializados enquanto o que são.

Não existe de modo algum uma visão da cultura popular como resistênciacultural, não havendo assim claramente nenhum projeto político emjogo. A música, a dança, as artes populares performáticas, enfim, sãodiretivas apenas paras as dimensões estética e lúdica desse campo. Aapropriação não se resume também aos seus aspectos instrumentais.Esses jovens urbanos são performes modernos que querem exibir oque fazem e recriam, e derivar desses processos âncoras de sentidopara a vida que escolheram.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Os grupos em questão foram: Rio Maracatu, Céu na Terra e Três Marias.

2. Utilizo essencialmente o conceito de artes performáticas, a partir da leitu-ra de artigo de Carvalho (2004).

3. As entrevistas, quando citadas no corpo do texto, estarão indicadas atravésde uma letra do alfabeto entre A e D, associada às mesmas de maneiraaleatória, preservando assim o anonimato das pessoas envolvidas nesseestudo.

4. O campo intelectual é um dos principais responsáveis pela produção debens simbólicos, que por sua vez só podem ser devidamente “consumidos”mediante a utilização de instrumentos cognitivos que forneçam os códigosnecessários para decifrá-los (Bourdieu, 1992:192).

5. É curioso para Bourdieu (1968) como as ciências sociais podem contribuirpara a elucidação desses determinantes, não sua supressão. Assim, seriamestes sentidos não mais como movimentos naturais involuntários, mascomo violência.

6. Bourdieu (1996:139) extrai a noção de jogo de Johan Huizinga em seulivro Homo Luden.

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7. Indagação lançada pela entrevistada D, quando argüida a respeito doque considerava “cultura popular”.

8. Afirmo que utilizo a palavra infantil não com intenção depreciativa,unicamente para expressar que algumas canções foram elaboradas paraserem apresentadas junto às crianças, apesar de haver também outrasque assim parecem e são “jogadas” apenas pelos adultos. Por outro lado,como constatei também, a participação nesses tipos de eventos não é demodo algum impeditiva do envolvimento com outras atividades culturaistípicas da cidade moderna.

9. Não se pode deixar de considerar que tais modos de vivência religiosapreenchem de forma mais coerente os hábitos de vida das classes médiasurbanas intelectualizadas, ainda que possua elementos mais ou menosdifusos entre outros segmentos sociais (Amaral, 2000).

10. Estas informações foram inicialmente coletadas através de informaçõesda entrevistada B, que visita anualmente São Luís e mantém contatosconstantes com pessoas do universo cultural do Maranhão.

11. Para mais informações sobre os movimentos estruturais que estão portrás de fenômenos como este, ver Sanchez (2002).

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AMARAL, Leila. (2000), Carnavais da Alma. Petrópolis, RJ, Vozes.

BOURDIEU, Pierre. (1968), “Campo Intelectual e Projeto Criador”,in M. Godolier et alii (orgs.), Problemas do Estruturalismo. Rio deJaneiro, Zahar.

___. (1983), “Gostos de Classe e Estilos de Vida”, in R. Ortiz (org.),Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática.

___. (1989), O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

___. (1992), A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, Perspectiva.

___. (1996), Razões Práticas. Campinas, Papirus.

___. (2000), La Distinción (2ª ed.). Madrid, Taurus.

CARVALHO, José Jorge de. (2004), “Metamorfoses das TradiçõesPerformáticas Afro-Brasileiras: De Patrimônio Cultural a Indústriade Entretenimento”. Série Antropologia, nº 354. Brasília, UnB.

NUNES, Edson de Oliveira (org.). (1978), A Aventura Sociológica:Objetividade, Paixão, Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio deJaneiro, Zahar.

SANCHEZ, Fernanda. (2002), A Reinvenção das Cidades: Para umMercado Mundial. São Paulo, Argos.

Referências Bibliográficas

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Gramsci y las Lecciones de laHistoria. Reflexiones sobre el

Volumen 5 de losCuadernos de la Cárcel *

FLAVIO GAITÁN**

Resumo

El presente artículo es una reformulación de la reseña del Volumen Vde los Cuadernos de la Cárcel. A partir del estudio de Gramsci sobreel resurgimiento italiano, se analizan los conceptos de hegemonía ydirección política, el papel que los intelectuales están llamados acumplir en un proyecto político y los fenómenos de voluntariado,transformismo y revolución pasiva. Asimismo se presta fundamentalimportancia a la centralidad de la historia para un estudio fructíferode las Ciencias Sociales.

Palabras Clave: hegemonía; revolución; Ciencias Sociales

* El artículo es una readaptación de la reseña presentada a la profesora Maria AlizeRezende de Carvalho, para la disciplina Estudios Ejemplares en Ciencias Socialesdurante el año de 2004.

** Doutorando em ciência política do IUPERJ, bolsista CAPES. E-mail:[email protected].

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La obra de Antonio Gramsci, intelectual, militante apasionado, sinningún lugar a dudas la mayor contribución a la teoría marxista delsiglo XX en una serie de conceptos de su autoría, puede ser analizadaen los escritos que el autor hiciera sobre el Resurgimiento Italiano, elmovimiento que, a mediados del siglo XIX tendió a la unificación deItalia y la formación de un Estado nacional, situación que se daría enlos hechos con la proclamación del Reino de Italia, bajo la Casa Saboya,en el año 1861.

Fundador del Partido Comunista en los tiempos de ascenso yconsolidación de Mussolini y condenado a veinte años de prisión porel régimen fascista, Gramsci es considerado, aun por aquellos que nocomparten sus ideas, una de las mentes más brillantes del siglo pasado,siendo los Cuadernos, escritos en el perído intermedio de la prisión,su contribución más significativa. A pesar de haber sido publicadosen forma de libro (Los intelectuales y la formación de la cultura oNotas sobre Maquiavelo son los más conocidos) los 33 cuadernos queGramsci escribió en la prisión no constituyen obras conclusas; sonapuntes, fragmentos, críticas de libros que va elaborando sobrediversos temas que considera centrales. Cuatro de ellos sontraducciones de Goethe, Fink y Marx y el resto han sido clasificadosen cuadernos misceláneos, esto es, sobre generalidades, y cuadernosespeciales (o temáticos), en los que desarrolla un tema central a lolargo del mismo.

Los escritos sobre el Resurgimiento italiano, si bien no fueronnominados por Gramsci (sólo lo hace indirectamente por referenciasen otro cuaderno), pertenecen, en su mayor parte, al cuadernotemático número 19, aunque también existen sobre el particular notasmisceláneas dispersas, previas al cuaderno temático. En estasreflexiones el autor busca analizar el proceso italiano de la época quevive, tratando de remontar sus orígenes al Resurgimiento. En principiole interesa estudiar cómo se dieron los hechos, cuál ha sido la historiaprecedente, tanto italiana como europea en general. En la obra,Gramsci demuestra un gran conocimiento no sólo de la historia sinotambién de la historiografía, sobre la cual se basa a menudo para

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llegar a conclusiones, siendo la crítica el camino elegido para elaborarun análisis claro y minucioso de la temática y apelando a las másdiversas fuentes bibliográficas: artículos periodísticos, libros, notas.

Ya desde el inicio, Gramsci (2002:17) aclara que

“As origens do movimento do Risorgimento [...] não devem serbuscadas neste ou naquele evento concreto registrado numa ou noutradata, mas precisamente no mesmo processo histórico pelo qual oconjunto do sistema europeu se tranforma [processo que] não eindependente dos eventos internos da península e das forças quenele se localizam”.

Así, analiza una amplia variedad de temas como la función de lospartidos políticos, del Piemonte, el papel de la Iglesia y del movimientomodernista, el rol de los Estados circundantes (especialmente Austria,Inglaterra y Francia), la relación campo – ciudad y norte – sur, la faltade participación de las masas en relación con la cuestión agraria, elpapel de la revolución española de 1812 (que reconocía la soberaníapopular y que fuera adoptada por los liberales italianos), elantisemitismo, la dirección militar, entre otros.

De particular importancia es la revisión que hace el autor de lasvisiones más populares sobre el Resurgimiento y la crítica que realizapor tener éstas un carácter parcial, ideológico; por ser una expresiónde la lucha política, siendo que “o defeito máximo de todas estasinterpretações ideológicas do Risorgimento consiste no fato de queelas foram meramente ideológicas, isto é, não se orientavam no sentidode suscitar forças políticas efetivas” (idem:37). Y en ese sentido, criticatanto las interpretaciones liberales (Omodeo, Croce) como lasantitradicionales (Oriani, Gobetti). Cree que esta forma de ver lahistoria, a la que denomina biografía nacional, se vuelve “uminstrumento político para coordenar e fortalecer nas grandes massasos elementos que, precisamente, constituem o sentimento nacional”(idem:119).

Las notas sobre el Resurgimiento pueden ser vistas, básicamente, comouna serie de agudas reflexiones sobre política e historia y la íntimarelación que encontraba entre ambas; postura que se ve claramentecuando afirma: “e se escrever história significa fazer história do

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presente, é grande livro de historia aquele que, no presente, ajuda asforças em desenvolvimento a se tornarem mais conscientes de simesmas e, portanto, mais concretamente ativas e operosas” (idem:37).

Preocupado por la realidad del fascismo y la falta de identidad históricade los partidos políticos, realiza una aguda presentación de laproblemática italiana en un profundo enfoque histórico, con ladeliberada intención de lograr una guía de acción para la Italia de laépoca. Su visión es que el Resurgimiento italiano fue una revoluciónsin revolución, revolución pasiva que generó un Estado modernoasentado sobre el transformismo. En ese proceso faltó elinvolucramiento de las masas y, principalmente, el interés de losprotagonistas políticos por lograrlo; en especial, critica el descuidopor la cuestión agraria, que hubiera posibilitado una movilizaciónpopular. Y quizá en esta importancia de la historia en relación a lapolítica para encontrar una solución a los tiempos actuales podemosencontrar similitudes con un pensador que Gramsci cita a menudo ya quien conoce bien: Nicolás Maquiavelo, pionero en analizar elpresente desde la historia, buscando a partir de la crítica llegar aconclusiones. Gramsci, como Maquiavelo, no es un intelectualabstraído de la realidad; por el contrario, es un hombre de acción quetoma partido, despreciando la indiferencia.

Como transfondo de la presentación histórica del Resurgimientoitaliano, aparece la cuestión de la dirección política. En sus palabras:

“[...] a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos,como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um gruposocial domina os grupos adversários [...] e dirige os grupos afins ealiados. Um grupo social pode, e aliás, deve ser dirigente já antes deconquistar o poder governamental [...]” (Gramsci, 2002:62).

Su visión es clara: para conquistar el poder cualquier grupo debe serpreviamente dirigente, lo que equivale a decir que debe lograr unaposición hegemónica intelectual, moral y política. La dirección políticaes, inexorablemente, un aspecto de la función del dominio y en elproceso de generar esa posición es central el rol de los intelectuales ylos partidos políticos. Por ello, realiza un recorrido por la situación

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italiana y se ocupa, a nivel interno, de los partidos y los dirigentesque los componen; y en lo que podríamos llamar externo, de larealidad europea y del Vaticano. De modo particular, se aboca a unaminuciosa crítica de los dos partidos políticos más importantes de laépoca: el Partido Moderado (liderado por Cavour, a quien Gramscireconoce como político extraordinario, con visión y capacidad deacción suficientes para influir sobre la acción de los contrarios) promonárquico, ubicado a la derecha del espectro político y el Partidode la Acción, liderado por Mazzini y Garibaldi, pro republicano yque puede ser definido como la izquierda del momento. Y siempreteniendo en mente la política como necesidad de proyectohegemónico, analiza no sólo la capacidad de los moderados parainvolucrar en su proyecto a la burguesía y neutralizar a las fuerzasreaccionarias, sino también la incapacidad de los democráticos (elPartido de la Acción) para movilizar a las masas, sean proletarias ocampesinas, con vistas a la acción en el mezzogiorno italiano. En suanálisis es claro que los moderados lograron una actividad hegemónica,por medios liberales, apelando a la iniciativa individual y con unprograma de partido elaborado con base en una acción organizativa.De ese modo, este grupo social llegó a digitar, incluso, la acción desus oponentes. Y su posición dominante fue posible por la estrecharelación con los intelectuales, dadas las ventajas que podía otorgarlesa estos en tanto grupo sobre la base de una filosofía que les brindabadignidad intelectual y la posibilidad de desarrollo en el campo másamplio de los intelectuales del momento: la escuela.

En relación con esta incapacidad de los democráticos, que explica enparte las diferencias entre la Italia del Resurgimiento y la FranciaRevolucionaria, realiza un intersante análisis sobre la cuestiónjacobina,

“[...] único partido da revolução em ato [...] [partidários que]representavam o movimento revolucionário em seu conjunto, comodesenvolvimento histórico integral [como] também as necessidadesfuturas [...] realistas à Maquiavel e não seguidores de abstrações”(Gramsci, 2002:80).

Compara el éxito que tuvieron los jacobinos en el procesorevolucionario francés para conquistar a las masas campesinas, a pesar

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de tener su centro en los sectores urbanos de París, combinandopolítica agraria con revolución democrático burguesa, con el fracasoen ese sentido de los democráticos italianos. Del análisis sobre losjacobinos podemos rescatar uno de sus legados más importantes: lanecesidad de tomar partido, de adaptar los cursos de acción a la realidadde los tiempos, de movilizar las fuerzas por la acción y la consecuciónde los fines buscados.

Teniendo en cuenta que estos escritos están atravesados por el interésde Antonio Gramsci por la acción política, o la necesidad de involucara las masas, quizá la mayor riqueza del análisis es haber dado cuentade las estrategias de la clase dominante y su constante apelación auna estrategia del proletariado. Se puede decir que ese es el núcleo detoda la obra gramsciana: cómo hacer posible, frente a la Revoluciónpasiva y el transformismo, un proyecto desde abajo, con el compromisode las masas. El término Revolución pasiva, a pesar de ser una creaciónde Vicente Cuoco, aparece como uno de los conceptos más difundidosde la obra de Gramsci (2002:209), para quien “o conceito de revoluçãopassiva [é] exato não só para a Itália, mas para os outros países quemodernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerrasnacionais, sem passar pela revolução política do tipo radical-jacobino”.La revolución pasiva es uma “revolución-restauración”, o sea, unatranformación desde arriba por la cual los poderosos modificanlentamente las relaciones de fuerza para neutralizar a sus enemigosde abajo. Mediante la revolución pasiva los segmentos políticamentehegemónicos de la clase dominante y dirigente intentan cooptar a susadversarios y opositores políticos incorporando parte de sus reclamos,pero despojados de todo peligro revolucionario.

Una revolución pasiva designa, así, la forma en la que un Estado, ungobierno, introducen reformas en la economía y en la estructura socialde un país, sin recurrir para ello ni a la opinión ni a la participaciónde los gobernados, sino manipulándolos para administrar los efectossociales de esas reformas económicas. Este proceso se asienta en loque el autor llama el transformismo, entendido “como ‘documentohistórico real’ da real natureza dos partidos que se apresentavam comoextremistas no período de ação militante [...]” (Gramsci, 2002:286),

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en referencia a la política de acuerdos y compromisos de la izquierdacon la derecha, adoptando así una posición crecientemente moderada.Y la necesidad de una verdadera revolución se relaciona, también,con la crítica que hace del voluntariado que,

“[...] apesar de seu mérito histórico [...] foi um sucedâneo daintervenção popular e, neste sentido, é uma solução de compromissocom a passividade das massas nacionais. Voluntariado-passividadecaminham juntos [...]. A solução do voluntariado é uma soluçãoautoritária, de cima para baixo [...]” (idem:51).

El problema sigue siendo la falta de participación de las masas, porquela invocación al voluntariado es “legitimada formalmente peloconsenso, como se costuma dizer, dos ‘melhores’. Mas, para construirhistória duradoura não bastam os melhores, são necessárias as energiasnacional-populares mais amplas e numerosas” (idem:51-52)

Como hemos dicho, de particular importancia en estos escritos es elpapel que juegan los intelectuales en el proceso político italiano. Poreso es fácil de entender que Gramsci asocie el concepto de revoluciónpasiva, la revolucion desde arriba, con la cooptación de losintelectuales por parte de las clases dominantes que buscan evitar,por su parte, que la clase subalterna cuente con sus propiosintelectuales “uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigosleva à decapitação destes e a sua aniquilação por um períodofreqüentemente muito longo” (Gramsci, 2002:63). En el pensamientogramsciano, todo hombre es un intelectual, dado que cualquier tareafísica implica el uso del intelecto, pero cada clase social destaca unaelite entre los intelectuales y es así que debe entenderse porintelectuales “não só aquelas camadas comumente compreendidasnesta denominação, mas, em geral, todo o estrato social que exercefunções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção,seja no da cultura, e no político-administrativo [...]” (idem:93).

Dada la íntima relación dominación – hegemonía y la importancia delos intelectuales en este proceso, el análisis gramsciano nos fuerza apreguntarnos por su actitud al frente del poder, si

“[...] sua atitude psicológica em relação às classes fundamentais...têmuma atitude paternalista para com as classes instrumentais ou se

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consideram uma expressão orgânica destas classes? O si têm umaatitude ‘servil’ para com as classes dirigentes ou se consideram, elespróprios, dirigentes, parte integrante das classes dirigentes?”(Gramsci, 2002:93).

Revelar que cada clase social posee sus intelectuales que cumplen unafunción organizativa y proclamar que también el proletariado debetener la suya es otro aporte significativo que se vuelve hoyabsolutamente actual. De este modo, Gramsci nos hace reflexionarsobre el papel de los intelectuales, en especial de aquellos que buscan(buscamos) ser hombres de ciencia social. Esta cuestión es central,siendo que, en nuestros días, bajo el manto del fín de la historia, cadavez más los intelectuales son cooptados y dirigidos por las grandescorporaciones (ya Gramsci había advertido que los intelectuales“exercem muitas vezes uma direção de segundo grau, uma vez queeles propios estão sob a influência dos grandes propietários da terra[...] dirigidos pela grande burguesia, especialmente financeira”)(2002:205), volviendo el pensamiento crítico, acallado, silenciado.

En definitiva, Gramsci escribe preocupado por el poder, por develarlas estrategias dominantes del capitalismo y lo hace de manerabrillante, dando cuenta de un poder que reside en las relacionessociales y que se expresa en la hegemonía, en tanto proceso queexpresa la conciencia y los valores organizados prácticamente de ungrupo social dominante. Pero, en virtud de esa preocupación por elpoder, no agota su trabajo en presentar los hechos (algo que, de porsí, ya constituye un aporte teórico invalorable) sino en explorarcaminos para la acción: la necesidad de una contrahegemonía, unarevolución de las clases subalternas en que el Partido Comunista y lossindicatos (su eterna apelación a las masas) estaban llamados a cumplirun rol trascendental. Y es aquí donde adquiere vital importancia laguerra de posiciones, entendida como una estrategia de asedio y node asalto, no como una ofensiva frontal sino como una estrategia quedemanda una concentración sin precedente de hegemonía pero que,una vez ganada, lo es en términos definitivos. En otras palabras, lanecesidad de un bloque histórico asentado sobre las fuerzas delproletariado, un momento en que la hegemonía logra realizarse.

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Pero la importancia del análisis gramsciano sobre el Resurgimiento(y los cuadernos en general) va más allá, porque no sólo ha sidoconciente de las transformaciones del pasado, sino que también supodar cuenta de los cambios venideros, en sus críticas al capitalfinanciero, en la inexorabilidad de la unificación europea (creo, dice,que “o processo histórico tende para esta união e que existem muitasforças materiais que só com esta união poderão se desenvolver” (:249),en la necesidad de ganar la batalla cultural, en los peligros deltransformismo (téngase en cuenta que Gramsi escribe unos quinceaños antes del auge socialdemócrata).

En definitiva, el análisis sobre el Resurgimiento italiano, que, en líneacon toda su obra, se propone encauzar al proletariado hacia la acción,sobre la base del marxismo-leninismo, constituye un ejemplo deintelectualidad viva, un reto a las Ciencias Sociales que pretenden laavaloración, el mero academicismo. Y es por eso que el análisis deGramsci es hoy, más que nunca, actual. En un momento en que elavance del capitalismo y los sectores reaccionarios aparece comoirreversible, en tiempos de confusión, cuando el cambio pareceimposible, la obra de Antonio Gramsci, magnificada por su coherenciade vida, es un bálsamo a explorar. Porque, aún hoy, a más de mediosiglo de su muerte, sigue siendo una deuda pendiente generar un

“[...] método da liberdade [...] uma nova construção de baixo paracima, na medida que todo um estrato nacional, o mais baixoeconômica e culturalmente, participe de um fato histórico radicalque envolve toda a vida do povo e ponha cada qual, brutalmente,diante das próprias responsabilidades inderrogáveis” (Gramsci,2002:268).

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Referencia Bibliográfica

GRAMSCI, Antonio. (2002), “O Risorgimento” (vol. 5). Cadernosdo Cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

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Oliveira Vianna e o ProblemaInstitucional Brasileiro

FREDERICO CARLOS DE SÁ COSTA*

Resumo

Este artigo aborda a visão de umdos mais importantes autores docomeço do século XX, Francisco José de Oliveira Vianna, a respeitodas instituições políticas brasileiras. O autor em questão critica afundação da então incipiente república brasileira, apontando o abismoexistente entre direito-lei e direito-costume.

Palavras-chave: instituições; costumes; idealismo

*Aluno do programa de doutorado do IUPERJ. E-mail: [email protected].

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Introdução

Um conjunto de autores e obras de cunho histórico-sociológicoformou-se nos primeiros trinta anos do século XX no Brasil, conjuntoeste caracterizado por uma postura crítica quanto ao modelo liberalda Constituição Republicana de 1891 e responsável pela construçãode uma tradição de pensamento político autoritário. Nesta tradiçãodestacam-se Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral eFrancisco Campos1. Um dos pontos que une estes autores é o desejode efetivamente influenciar a ação política de seu tempo, partindo deum diagnóstico do país – que surge da análise histórica da formaçãobrasileira – e da proposição de linhas alternativas de ação, queremodelariam a estrutura político-institucional do Brasil.

Inserido nesse contexto, Francisco José de Oliveira Vianna produziuuma obra – de 1920, com Populações Meridionais do Brasil, até 1949,com Instituições Políticas Brasileiras, e mesmo depois de 1951, anode sua morte, com a publicação de suas obras póstumas – cuja visãode sociedade e de modelo político paga o tributo de seu tempo2,enredada que está em uma armadilha autoritária, por um lado, masque, por outro lado, também apresenta pontos que ainda hoje sãopertinentes e centrais à vida político-institucional do Brasil.

O escopo deste trabalho, com o recurso da visão de Oliveira Viannada questão racial e da formação do homem brasileiro, privilegia oproblema institucional do Brasil, o idealismo de suas elites (e o que oautor entende por este idealismo), o particularismo que impede aformação de uma mentalidade pública e a dupla antinomia: país legalversus país real e direito-lei versus direito-costume.

Sempre que se pensa em Oliveira Vianna, surge a crítica aos seusprimeiros trabalhos, que propunham a tarefa de arianizar o Brasil.Apesar de ocupar um espaço importante no pensamento do autor empauta – com implicações em suas formulações políticas –, o tratamentoda questão racial vai se alterando e perdendo valor heurístico ao longode sua obra, o que não quer dizer que a questão racial desapareçacompletamente em Oliveira Vianna, mesmo em seus trabalhos tardios.A ênfase no problema institucional justifica-se, aqui, pelo anacronismo

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de qualquer interpretação arianista do Brasil depois do impacto deCasa Grande & Senzala, pela pertinência contemporânea e pormotivos de adequação a este espaço.

Antes da abordagem dos tópicos aqui apontados, cumpre ressaltar aatualidade da postura teórico-metodológica de Oliveira Vianna. Oautor buscava respostas e alternativas sempre segundo a especificidadeda História do Brasil, sempre condenando a insistência com que aselites nacionais teimavam em adaptar, canhestramente, modeloseuropeus, nascidos da história e dos costumes da Europa, a umarealidade brasileira totalmente diversa àquela, seja cultural, geográficaou sociopoliticamente considerada.

Somente pelo estudo do Brasil e de suas condições poder-se-iavislumbrar um conjunto de propostas adequadas à sua realidade, pois,segundo nosso autor, se “nós somos um dos povos que menos seestudam a si mesmo: quasi tudo ignoramos em relação á nossa terra,á nossa raça, ás nossas regiões, ás nossas tradições, á nossa vida, emfim,como aggregado humano independente” (Oliveira Vianna3, 1938),só poderíamos tentar imitar modelos estrangeiros, ao passo que, sefosse produzido um conhecimento do Brasil, pelos brasileiros, novase viáveis propostas surgiriam.

Problema Institucional Brasileiro

“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”,dizia Sérgio Buarque de Hollanda (1981:119). O problema daconformação institucional brasileira – aliás, da conformaçãoinstitucional de qualquer país – passa necessariamente pelo modocomo se constrói o homem da nação e, com esta nação, o Estado quedelimita suas fronteiras e lhe submete ao império da lei.

É ponto comum de convergência histórico-analítica o fato de, noBrasil, o Estado ter se formado antes da nação e construído um modode ocupação da terra baseado em latifúndios com grande grau deautonomia. O tipo humano brasileiro teria se formado, então, nomeio rural como um “amante da solidão e do deserto, rústico e anti-urbano, fragueiro e dendrófilo, que evita a cidade e tem o gosto docampo e da floresta” (Oliveira Vianna, 1974:118).

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O homem personalista e particularista assim formado não possuiriaos elementos necessários à formação dos laços de solidariedadenecessários ao surgimento de uma vida política tal qual idealizadapelas elites ao tempo de Oliveira Vianna. A vida antiurbana e isoladadentro do mundo rural teria impedido que as “estruturas desolidariedade social e os complexos culturais correspondentes[pudessem] ter ambiente para se formar, e se desenvolver, e secristalizar em usos, costumes e tradições” (idem, 1974:124), enfim,“no ponto de vista culturalístico, o nosso povo é, por isso, sob oaspecto de solidariedade social, absolutamente negativo” (idem:125).Esse diagnóstico que nosso autor faz do homem brasileiro é decisivopara o entendimento de todo o seu pensamento político-institucional,pois, ainda segundo o autor, uma institucionalidade não deve fugir àrealidade de seu povo. Nesse ponto, as definições de idealismo utópicoe idealismo orgânico, dentro do pensamento de Oliveira Vianna,fazem-se necessárias para o perfeito enfrentamento do abismoapontado pelo autor entre o povo e as elites marginais, ou entre direito-costume e direito-lei.

Segundo Oliveira Vianna, o abismo dicotômico anteriormenteapontado devia-se ao abandono devotado pelas elites políticas de entãoàs especificidades do Brasil, à desconsideração de suas realidadesíntimas. Essa elite estaria imbuída de um idealismo utópico, que seria“todo e qualquer systema doutrinario, todo e qualquer conjuncto deaspirações politicas em intimo desaccôrdo com as condições reaes eorganicas da sociedade que pretende reger e dirigir” (Oliveira Vianna,1939:10). Por outro lado, a postura realista e correta das elites deveriafundar-se no rico manancial de experiências que a história de umpovo (brasileiro) fornece, revestindo-se de um idealismo orgânico,nascido da “propria evolução organica da sociedade, e não são outracousa sinão visões antecipadas de uma evolução futura” (idem:11).Oliveira Vianna acusa o fato de nunca termos praticado o idealismoorgânico, o que seria a grande fonte de todos os tropeços e revezes denossas experiências institucionais.

Esta é uma questão pertinente e atual: sob que condições (ou substratohistórico) pode ser arquitetado um arranjo institucional otimizador

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de procedimentos democráticos? Oliveira Vianna, entre tantos outrosautores, diz que a formação do povo brasileiro “se processou dentrodo mais extremado individualismo familiar” (1974:127), sendo obrasileiro “fundamentalmente individualista, mais mesmo, muito maisdo que os outros povos latino-americanos. [...] No Brasil, só oindivíduo vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – dacomunidade” (idem:126).

Ora, a democracia liberal, alvo das elites políticas idealistas do começodo século XX, exigiria uma grande vivência prévia de laçoscomunitários de solidariedade para que suas instituições nãooperassem no vazio sociológico já apontado por Joaquim Nabuco:“uma pura arte de construcção no vácuo: a base são as theses – e nãoos factos; o material idéas – e não homens; a situação o mundo – enão o paiz; os habitantes, as gerações futuras – e não as actuaes”(apud Vianna, 1939). A arquitetura institucional do Brasil, então,deveria levar em consideração a história social do povo brasileiro, eisso significaria – em Oliveira Vianna – ter em conta tipos sociaisbrasileiros como o oligarca, o coronel, o afilhado, o genro, o juiznosso e o eleitor de cabresto.

Essa complexa teia de vida social teria formado uma

“trama densa e viva de fatos sociais que se anastomosaram emcostumes, instituições, tipos, praxes, usos, [...] formando um sistemapuramente costumeiro de motivações e atitudes e determinando, porfim, a conduta real, efetiva, dos homens e dos cidadãos” (OliveiraVianna, 1974:181).

Oliveira Vianna é um autor que não vê ou admite possibilidades reaispara uma ação político-social popular, quer seja por determinaçõesbiológicas advindas da miséria do contato com as “raças inferiores”,quer seja extrapolando essas determinações para uma visão vertical,determinista, evolucionária da História.

No debate relativo à construção das estruturas institucionais adequadasàs condições brasileiras, a História aparece como um deus ex machinarevelador do porquê de nosso fracasso político, econômico e social eindicador do caminho futuro a seguir, que jamais contrariaria a

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autoridade da experiência passada. Muitos dos descompassosapontados pelo autor vêm desta visão do homem brasileiro na História,preso a seu passado rural e antiurbano que teria conformado uma“população destituida do sentimento dos interesses communs edesafeita, por motivo da sua formação historica, á pratica dasolidariedade e da cooperação” (Oliveira Vianna, 1939:62).

Esta formação histórica foi desprezada, segundo Oliveira Vianna, portodos aqueles que montaram as instituições políticas liberais daRepública Velha – alvo por excelência das críticas do autor – pois amaneira como foram idealizadas partia de pressupostos comunitáriose culturais ingleses, e não brasileiros. Os construtores da República,nessa linha de raciocínio, mergulhados em um idealismo utópico,poderiam “ter-nos dado um bello edificio, solido e perfeito, construidocom a mais pura alvenaria nacional – [ao invés disso] deram-nos umformidavel barracão federativo, feito de improviso e a martelo, comsarrafos de philosophia positiva e vigamentos de pinho americano”(idem:58).

Sempre na análise histórica de nosso autor, o mundo rural brasileiroteria produzido dois tipos de solidariedade, os clãs feudal (ou rural) eparental, expressões do caráter particularista do homem nacional.Com a República, sobre este chão rural de particularismo epersonalismo, pretendeu-se plantar – ou melhor, transplantar a árvoreadulta – o sufrágio universal. O resultado disto, segundo OliveiraVianna, foi a formação dos clãs eleitorais, “organizações constituídaspara fins exclusivamente eleitorais [...] verdadeiras células origináriasdo nosso direito público costumeiro” (Oliveira Vianna, 1974:182).

Estes clãs eleitorais seriam nada mais que a expressão pública deinteresses privados, expressão essa formada pela ação do senhor localunindo os clãs feudal e parental em uma única organizaçãorepresentante do

“velho elemento aristocrático com o novo elemento democrático.[...] O princípio ou força de agregação era a autoridade do senhorde engenho – o que equivale dizer que o clã eleitoral não tinhanenhuma origem democrática, não provinha da vontade do povo;derivava, sim, da propriedade da terra” (idem:255).

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A vida política brasileira veria perpetuada a carência de motivaçõescoletivas na ação pública, constituindo um jogo cujos resultados eramsempre conhecidos ex ante. Oliveira Vianna, pois, olha para o paísreal e identifica um homem que não pode tornar-se cidadão apenaspela força de um decreto e uma elite que não pode tornar-sedemocrática pelo motivo acima, agravado pelo vazio sociológico (a“arte de construção no vácuo” apontada por Nabuco) verificado noespaço público. Olhando para o país legal, nosso autor identifica umaelite que “combate com sombras” – ainda relembrando Nabuco – eque não consegue entender os motivos da ruína de sua engenhariainstitucional.

Mas então qual a saída? Segundo Oliveira Vianna, precisar-se-ia

“[...] organisar um conjunto de instituições específicas, um systemade freios e contra-freios que, além dos fins essenciaes a todaorganisação politica, tenha tambem por objectivo: a) neutralisar aacção nociva das toxinas do espirito de clan no nosso organismopolitico-administrativo; b) quando não seja possivel neutralisal-as,reduzir-lher ao minimo a sua influencia e nocividade” (OliveiraVianna, 1939:71).

A atuação positiva deste sistema de freios e contra-freios deveriaeliminar as mazelas dos complexos de clã, daí advindo a democracia.Impõe-se, então, a tarefa da mudança institucional, mas resta tambémsaber quem é o agente dessa mudança e como ela se processaria.

Oliveira Vianna nunca reputou ao povo-massa a capacidade de açãopolítica construtiva, por esse povo-massa ser prisioneiro de suahistória. O papel da construção virtuosa da esfera pública brasileiraseria sempre, segundo o autor, reservado à elite, ressaltando que ocritério de recrutamento dessa elite exclui todos aqueles que, pordecreto, teriam sido alçados à condição de cidadãos, apesar deoriundos de um extrato populacional composto por trabalhadoresbraçais, homens de cor e mercadores, justamente o tipo de homemantiurbano e fragueiro apontado por Oliveira Vianna. Esses homens,subitamente cidadãos, teriam sido os responsáveis pelo fim do aspectograve e solene das reuniões políticas, iniciando uma tradição detumultos e arruaças eleitorais: esta era a “patuléia”, toda a “peonagem

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das cidades. Toda a peonagem dos campos. Toda esta incoerentepopulaça de pardos, cafuzos e mamelucos infixos” (Oliveira Vianna,1974:260).

A imagem que melhor ilustra a idéia de elite política em OliveiraVianna – este tipo de homem fora da História – é a por ele construídaa respeito da elite do Império, os “homens de 1000”4. Estes homensestavam fora da História porque não os animava na vida pública oinstinto individualista e privatista típico do povo-massa, além de seremrecrutados pela atitude conscientemente seletiva do Imperador, “esteshomens, assim tão grandes, não eram grandes porque inspirados nopovo-massa, na sua ‘cultura’ e em seus complexos respectivos”(idem:314), mas antes por seu carisma e, repito, por suas qualidadesexcepcionais, identificadas e aproveitadas pelo Imperador.

Sendo também uma variável importante no problema institucionalbrasileiro, o fenecimento desta “elite de 1000” teria deixado o paísórfão de homens capazes de dirigi-lo com espírito público. Ao invésdo Senado e do Conselho de Estado do Império – vitalícios ambos eassim garantindo ao Estado que os “homens de 1000” a ele sededicassem durante toda sua carreira –, agora teríamos homens eleitospor

“[...] párias sem terra, sem lar, sem justiça e sem direitos, todosdependentes inteiramente dos grandes senhores territoriaes; de modoque, mesmo quando tivessem consciencia dos seus direitos politicos(e, realmente, não tem...) e quizessem exercel-o de um modoautonomo – não poderiam fazel-o. E isto porque qualquer velleidadede independencia da parte desses párias seria punida com a expulsãoou despejo immediato pelos grandes senhores de terras” (OliveiraVianna, 1939:112).

Contesta-se claramente a competência do eleitorado e aponta-se umponto até hoje polêmico para qualquer sociedade que se pretendademocrática: procedimentos democráticos não garantem qualidadedemocrática ou, em outras palavras, a excelência de um líder políticonão está, necessariamente, ligada à quantidade de cidadãos que nelevotaram, podendo estar, inclusive, inversamente proporcional aonúmero de votos, se levarmos ao limite as restrições de Oliveira Viannaao voto de um povo dependente dos senhores locais e do sistema de

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partidos – também expressão do particularismo e da libido dominandidos mandões locais.

Como então produzir um sistema de freios e contra-freios que leveem conta as mazelas da formação histórico-social brasileira e construainstituições capazes de engendrar progresso político em condiçõesadversas? A chave seria neutralizar o voto popular – ou, no mínimo,o voto popular naquilo que ele contém de expressão de particularismose de solidariedades familiares e afetivas – favorecendo o surgimentode oligarquias esclarecidas.

O papel outrora exercido por D. Pedro II deveria ser assumido peloEstado, mas não um Estado como o que se apresentou de 1889 a1930, mas sim espelhado no que a partir daí, com Getulio Vargas, severificou. A obra política de Oliveira Vianna concentra-se napostulação de um governo forte e intervencionista, lúcido como oPoder Moderador, em oposição ao poder local e latifundiário,representado então no Parlamento, que havia se

“[...] tornado um óbice á efficiencia da administração publica; a)pelo espirito faccioso que animava as suas atitudes; b) pela esterilidadede sua acção legislativa; c) pela nenhuma preoccupação de interessecollectivo ou nacional da parte dos grupos (partidos) que se agitavamem seu seio” (idem:122).

Pela história do brasileiro, mudar esse estado de coisas pela via liberalseria insensato e impossível, justamente pela utopia desse idealismodespregado de nossa realidade. Assim sendo, alguma coação serianecessária, assumindo a idéia de “autoridade”, um valor superior aode “liberdade”: a liberdade representada pelo liberalismo seriadesagregadora da sociedade e do território brasileiros, fortalecendoos poderes dos mandões locais, enquanto o princípio da autoridademanteria unidos país e sociedade, povo e nação. O Estado Autoritário5

seria o agente de uma política nacional que eliminaria qualquer tipode dispersão ou fragmentação que pudesse dissolver o país.

A ênfase na autoridade integra-se em um raciocínio que pensa asociedade a partir do todo e não das partes. Foi a observação do povobrasileiro que gestou em Oliveira Vianna esse posicionamento político-ideológico. A respeito da Constituinte de 1934 dizia que

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“[...] differiam [Oliveira Vianna era membro desta assembléia] apenasnisto: é que para elles [os idealistas utópicos] o objectivo da reformaera a organisação da liberdade e para mim este objectivo devia ser aorganisação da autoridade, principalmente da autoridade central.Elles viam a nação, mas do ponto de vista do indivíduo; eu, semdúvida, também via o indivíduo e os seus direitos inalienáveis, maso via, e o vejo, do ponto de vista da Nação” (Oliveira Vianna,1939:157).

Essa nação deveria expressar sua autoridade na figura do Presidente– eleito indiretamente – e de sua legitimidade. A essa figura caberia opapel de organizar o povo e lhe fazer crescer a maturidade políticapela eliminação progressiva dos complexos particularistas de clã. Aorganização corporativa da sociedade seria o meio adequado paraisto, pois somente o homem sindicalizado ou associado teria o treinoe a cultura próprios para pensar e deliberar sobre algo exterior a simesmo.

Leis inadequadas de nada valiam, mas leis afeitas às condições doBrasil teriam o poder de coagir os homens à organização política.Legisladores e executores presos ao idealismo utópico são acusadospor Oliveira Vianna de, com seu liberalismo, produzir e executar nãoleis, mas sugestões morais, ao passo que aqueles afeitos organicamenteàs condições reais brasileiras lançariam mão da “técnica autoritária”,acrescentando sanções ao corpo das leis, sejam elas administrativas,civis ou penais. A autoridade da lei produziria um caldo culturalpropício à criação entre os brasileiros de um tipo humano livre doscomplexos de clã.

Como temos visto, o sistema de partidos e o Parlamento daí resultanteseriam apenas o reflexo do poder local e particularista dos senhoresrurais. Como os partidos políticos não representariam, segundoOliveira Vianna, nem interesses coletivos, nem ideologias políticas,

“[...] nada mais absurdo, pois, do que se dar preferência derepresentação no governo a estes grupos improductivos e, mesmo,nocivos e deixar-se de lado os grupos que significam interesses reaes,que fazem com a sua actividade a grandeza e a riqueza do Paiz. [...]É tempo de corrigir este erro secular – e o meio único para isto seráconferir esta funcção, essencial á vida das democracias, ás corporaçõeseconômicas, ás corporações de cultura, ás corporações religiosas e,

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especialmente, ás associações de classes; em summa, a todas asorganisações que exprimam uma funcção social util ou um interessecollectivo positivo” (Oliveira Vianna, 1939:193-194).

Leis adequadas às condições brasileiras, com poder de mudançagradativo e dotadas de dispositivos coercitivos, tudo isto sob aliderança de um poder central forte e autoritário (ao revés da frouxidãoliberal), deveriam, então, no jogo de freios e contrafreios, produziruma sociedade neste molde, em que a organização corporativa surgiriacomo meio para eliminar nossos complexos de clã. Oliveira Viannatoma esse posicionamento ao seu limite, considerando os sindicatosde classe e as associações como as únicas escolas cívicas possíveis emnosso povo, que assim aprenderia, pela vivência de solidariedadecomunitária, a “manejar esta pequenina arma delicada, uma cédulade eleitor” (Oliveira Vianna, 1974, vol. 2:160).

Temos então a função-guia da elite, seu recrutamento, leis orgânicase afeitas à nossa peculiaridade histórica, um Estado com autoridadeindiscutível e a organização corporativa da sociedade. Falta um últimoelemento a este conjunto, tendo em vista a ênfase de Oliveira Viannana autoridade sobre a liberdade e na ordem sobre a participaçãopopular indiscriminada: este elemento é o constrangimento legal sobreos eleitores e sobre os elegíveis.

Para nosso autor, a quantidade de votos não implica necessariamentena escolha da melhor liderança, mas antes deve imperar a qualidadee independência do eleitor, pois não se pode dar “a mesma capacidadeeleitoral ao sertanejo da Cachoeira do Roberto (cujo nível de vida ede cultura é o mais miserável do mundo, segundo Luetzellburg) e aocidadão do Rio ou da Paulicéia, instruído, lido em jornais, socializadopelo sindicato de classe” (idem:158).

Somente a escola democrática poderia fazer progredir a qualidadedo eleitor e as instâncias em que seu voto seria válido. Mirando noEstado Novo, Oliveira Vianna aponta as regras eleitorais daConstituição de 1937 como indicativas do acerto de seu prognósticosobre a capacidade eleitoral dos cidadãos, pois estabelece pleitosindiretos nos âmbitos Legislativo estadual, federal e presidencial. O

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presidente da República seria eleito por delegados das câmarasmunicipais (aqui estaria o elemento popular) e do Conselho Federal,e por eleitores indicados pelo Conselho Nacional de Economia, pelaCâmara dos Deputados e pelo Conselho Federal (além de seusdelegados).

O sistema de freios e contrafreios deveria, por todos estes mecanismos,educar para a democracia e nos livrar dos vícios dos complexos declã, a fim de que a democracia entre nós não mais fosse “um lamentávelmal-entendido”. Considero instrumental a ênfase que Oliveira Viannadá à autoridade, um meio para se atingir uma democracia que, apesardas críticas aos idealistas utópicos, nunca deixou de ter o mundoanglo-saxão como paradigma, apenas dever-se-ia, para atingir talpadrão, seguir o caminho adequado às condições brasileiras. A idéiade uma democracia autoritária não se sustenta hoje, mas a preocupaçãocom a autoridade da democracia e com um arranjo institucional eficazpermanece viva e ainda sem uma resposta clara no campo político.

Conclusão

Ao cabo deste estudo, emerge a constatação de que há algumas tarefasinconclusas no Brasil. O conhecimento de nossa realidade histórico-social, sem mitos, devaneios ou preconceitos de raça; a construçãode uma identidade nacional que consiga de uma vez por todas inseriro homem brasileiro no mundo, e isso sem sentimentos deinferioridade, sem nostalgia do passado rural e com um sentimentogenuíno de orgulho nacional; e a articulação virtuosa de um conjuntode instituições políticas afeitas às nossas condições histórico-sociais,articulação esta que permita ao direito-costume moldar as instituições,mas que também delegue às instituições o poder de conformar, etambém coagir, comportamentos politicamente adequados a ummundo em constante movimento.

A obra de Oliveira Vianna preocupa-se do começo ao fim com essasquestões. Seu diagnóstico da realidade social e política do Brasil possuiimportantes pontos em comum com outros autores, suas propostasde ação, porém, nem tanto, por pecarem pelo demasiado apego aomomento histórico de então, dominado por um forte sentimentoantidemocrático.

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Apenas como indicação, para que não se fuja aos limites desse espaço,indico o posicionamento de alguns autores brasileiros tambémenvolvidos na tarefa de construção e análise do Brasil, do brasileiro esua institucionalidade.

Com Oliveira Vianna, temos uma ênfase no papel condutor das elitesesclarecidas, na incapacidade do povo-massa de exercer esse papel ena necessidade da construção de um sistema de freios e contrafreiosque aprimorasse uns e contivesse outros. Ao longo da leitura de CasaGrande & Senzala, observei que Gilberto Freyre trabalha com umaperspectiva bem distinta, partindo do princípio que, apesar deinstitucionalmente o poder político estar nas mãos de uma eliteempedernida, o dia-a-dia das relações sociais brasileiras constituiuum mundo no qual os costumes e usos da senzala – símbolo desubmissão – teriam invadido e conquistado, sutilmente, o mundo daCasa Grande – símbolo de domínio. Segundo Gilberto Freyre, a famíliacolonial formada na Casa Grande foi o centro por excelência da coesãosocial e o símbolo de todo um sistema político e econômico, assumindofunções que chegaram ao Estado.

Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna aproximam-se em umponto importante a respeito da institucionalidade brasileira, qual sejaa distinção entre família e Estado, entre homem cordial e homemcivil. Oliveira Vianna acusa a promiscuidade dessas esferas decausadora da inexistência entre nós de qualquer espírito desolidariedade social – à exceção dos complexos de clã, que sãoexpressões do particularismo), e Sérgio Buarque de Holanda, nestamesma linha, faz questão de separar as esferas pública e privada, ocivil do sentimental. A amargura da constatação de que a democraciaé, no Brasil, “um lamentável mal-entendido” parte também, comoOliveira Vianna, do diagnóstico sobre a formação do homembrasileiro, este “homem cordial” que quer bastar-se a si mesmo,independente da sociedade que o acolhe, dotado de uma“personalidade individual [que] dificilmente suporta ser comandadapor um sistema exigente e disciplinador” (Hollanda, 1981:113).

Outro autor que realizou, anos depois, uma análise da formação doBrasil e do brasileiro, tendo em vista a herança ibérica, mas agora

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segundo as categorias analíticas do pensamento weberiano, foiRaymundo Faoro, que viu o ritmo da colonização brasileira e daformação do ambiente nacional determinado pelo fato de que “omundo português foi patrimonial, e não feudal. [...] Aopatrimonialismo se atrelava uma ordem burocrática, que superpunhao soberano ao cidadão numa relação semelhante à existente entre ochefe e o funcionário” (Souza, 1999:337). Segundo Raymundo Faoroa formação do Brasil foi marcada pelo estigma de nossa ancestralidadeibérica, antiliberal e patrimonialista.

O começo do século XX foi o momento quando floresceu opensamento de Oliveira Vianna e, depois dele, de outros autores quepensaram a institucionalidade brasileira. Penso que não é descabido,neste limiar do século XXI, repensar o Brasil e suas instituições apartir dessas obras fundadoras. Questões como a educação para acidadania, o papel e recrutamento das elites, a estruturação do“barracão federativo”, do homem não associativo e que quer bastar-se a si mesmo, da boa coordenação entre nossas condições históricase nosso complexo integrado de comportamento político, permanecemem aberto.

Penso que a desdenhosa expressão “barracão federativo” sintetiza eindica as tarefas por fazer. Ainda está por vir o melhor equilíbrioentre as esferas federal, estadual e municipal em seus respectivoslimites de autonomia política e arrecadação e distribuição de impostos,para falar o mínimo; o desequilíbrio representativo encontrado nasrelações entre Senado e Câmara dos Deputados e mesmo encontradodentro da própria Câmara, entre Estados mais e menos populosos, semantém; como garantir que os melhores candidatos sejam eleitos, enão os piores e mais ricos; como promover cultura cívica; como lidarcom o cidadão amorfo e despreparado, evitando o diagnóstico deErnesto Geisel, que acusava a inconveniência do sufrágio universalem um “país de analfabetos”; enfim, garantir legitimidade aoCongresso, não permitindo que esta casa confirme os vaticínios deOliveira Vianna, que a via como mero reflexos de nossos “complexosde clã” e fonte de eterna instabilidade. As tarefas estão presentes ecomportam o desafio adicional de encontrar soluções democráticas

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para resolver problemas democráticos, escapando das duas trilhas daarmadilha autoritária de Oliveira Vianna, que pretendia resolver osproblemas de nosso liberalismo e nossa democracia com menosliberalismo e menos democracia, justificando tais propostas com oconcurso da História: a formação do brasileiro, homem fragueiro edendrófilo, determinaria a necessidade de um regime político quelhe fosse afim, um regime que restringisse as liberdades liberais e asexigências democráticas.

(Recebido para publicação em novembro de 2005)

Notas

1. Os autores citados representam “autoritarismos” diferentes. O que inte-ressa a este trabalho, porém, é a percepção de que no começo do séculoXX no Brasil, a opção por práticas políticas autoritárias era predominanteem relação a quaisquer outras.

2. Nas palavras de Jarbas Medeiros (1978:155), temos que “a leitura de suaobra [...] revela-nos um só bloco de idéias, cimentado no decurso dosanos 10 do nosso século, do qual Oliveira Vianna foi prisioneiro até ofim”.

3. Nas citações retiradas de edições da década de 1930 será mantida agrafia original.

4. Metáfora retirada da Bíblia, transcrita em Instituições Políticas Brasileiras(1974:314): “E tu, dentre todo povo, procura homens capazes, tementesa Deus, homens de verdade, que aborrecem a avareza; e põe-nos sobreele por maiorias de mil, por maiorias de cento, por maiorias de cinqüentae por maiorias de dez. E Moisés escolheu homens capazes de todo Israele os pôs por cabeças sobre o povo: maiorias de mil, maiorias de cento,maiorias de cinqüenta e maiorias de dez. E eles julgaram o povo em todoo tempo; o negócio árduo trouxeram a Moisés e todo negócio pequenojulgaram eles” (Êxodo, cap. 18, versículos 21, 25, 26).

5. Segundo Oliveira Vianna (1939:149), a expressão “Estado Autoritário”é pleonástica.

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Uma Apresentação Concisa daHistória Conceitual*

HENRI CARRIÈRES* *

Resumo

Metodologia voltada para o estudo em perspectiva histórica dos conceitospolíticos e sociais, a Begriffsgeschichte, ou história conceitual, nasceu na Ale-manha na primeira metade do século passado. Além de comentar resumida-mente a trajetória intelectual de seus fundadores, o presente artigo faz umabreve exposição do programa dessa corrente historiográfica e a compara aocontextualismo lingüístico. A conclusão indica algumas linhas de pesquisa emque a história conceitual pode mostrar-se particularmente útil.

Palavras-chave: história conceitual; contextualismo lingüístico; historiografiadas idéias

* Versão preliminar deste artigo foi apresentada como trabalho final no curso “His-tória Intelectual e História dos Conceitos Políticos e Sociais”, ministrado pelo prof.Marcelo Gantus Jasmin no 1º semestre de 2004. Agradeço a ele e aos pareceristasanônimos pelos úteis comentários. As imperfeições ficam exclusivamente por contado autor.** Mestrando em ciência política do Iuperj e bolsista da Capes. E-mail:[email protected].

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Os Pioneiros: Koselleck, Brunner e Conze

Tratarei neste artigo de um método historiográfico de grande fascínio eque vem se tornando conhecido em nosso meio acadêmico, a históriaconceitual (ou Begriffsgeschichte, em alemão). Elaborada especialmen-te para servir aos que se dedicam ao estudo das idéias políticas, ela temna obra Geschichtliche Grundbegriffe (GG) sua realização talvez a maisimponente. Com oito volumes (e mais outro de índice), essa obra to-mou um quarto de século (1972-1997) para ser concluída. No entanto,as raízes da proposta teórica de que é uma das materializações máxi-mas nasceu bem antes, nos anos 30 do século passado, em um cenáriode aguda conturbação política.

Dos três idealizadores da GG, todos eles historiadores, apenas um con-tinua vivo, Reinhart Koselleck, já octagenário1 . Otto Brunner morreuem 1982, e Werner Conze, em 1986. Ambos participaram ativamentedo regime nazista, conciliando suas pesquisas com o cumprimento dasexigências da ideologia hitlerista. Brunner, renomado medievalista, éautor de Land und Herrschaft (1939), obra em que tenta umareinterpretação da história da Baixa Idade Média germânica a partirdos próprios conceitos do período, especialmente os de Land (terra) eHerrschaft (domínio), e não de concepções do constitucionalismo mo-derno. Projetar a oposição política-sociedade (ou res publicas e societascivilis) na Idade Média foi, para Brunner, o anacronismo fatal em queincorreram historiadores do século XIX. A fusão de Estado e sociedadeem uma terceira entidade (Volksgemeinschaft), superior aos dois, re-presenta, de acordo com ele, o traço distintivo da história germânica,sem o qual não há como interpretá-la corretamente. O livro de Brunner,conquanto tratasse de um tema aparentemente distante da política dosanos 30, representou um ataque à democracia liberal e suas categorias.No plano político, em aparente conformidade com as conclusões deseu trabalho, Brunner aderiu ao nacional-socialismo, que o acolheu debraços abertos, favorecendo-lhe a carreira universitária2 .

Quanto a Werner Conze, sofreu influência de Günther Ipsen, colabora-dor de Hans Freyer, sociólogo que pôs sua grande inteligência a serviçodo regime nacional-socialista. Ipsen estudava, não por acaso, a história

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dos camponeses germanos, que considerava os últimos depositários davitalidade do povo alemão. Daí sua aversão à modernidade, que oscondenava à extinção. Conze, que nunca fez segredo do quanto deviaao mestre, serviu como oficial na Wehrmacht durante a guerra. Nasdécadas que se seguiram ao término do conflito, reconheceu o carátermaligno do movimento em que se envolvera, e adotou umconservadorismo compatível com os valores da democracia liberal.

Koselleck é o mais jovem dos editores da GG3 . A ele coube a iniciativada empreitada. Só veio a ingressar na vida adulta com a guerra já emcurso. Foi orientando de Conze em Heidelberg e, admirador de CarlSchmitt, absorveu a idéia de que a política é palco de rivalidades inso-lúveis. Martin Heidegger, que conheceu pessoalmente, também neledeixou forte impressão, dando-lhe demonstrações de como rastrear ossentidos de um conceito até suas raízes, a fim de encontrar diferentes“estratos” semânticos. Já em 1963, o projeto do dicionário conceitualamadurecera na mente de Koselleck: tanto foi assim que, nesse ano,em uma reunião com Conze, Brunner e outros pesquisadores, come-çou a trabalhar para concretizá-lo, sem que tivesse ainda a mais pálidaidéia do quanto de tempo e de trabalho a GG consumiria.

Em seus estudos, desde o princípio manifestou interesse pelo fenôme-no da modernidade e de como rompeu dramaticamente com o passa-do4 . Em Crítica e Crise, livro de 1954, Koselleck analisou a derrocadada antiga ordem, fazendo remontar as origens ideológicas da entãonascente Guerra Fria ao Iluminismo: “O século XVIII é a antecâmarada época atual, cuja tensão se acentuou progressivamente desde a Revo-lução Francesa, que afetou o mundo inteiro, extensivamente, e todosos homens, intensivamente” (Koselleck, 1999:10)5 .

A GG, com efeito, é uma obra que investiga fraturas, e seus autores,pessoas que provaram do sentimento de viver momentos em que ahistória parece atingir níveis máximos de tensão. A colaboração deBrunner e Conze com o nazismo é, por mais que se queira deplorá-la,insuficiente para impugnar a contribuição dos dois à ciênciahistoriográfica. Se houve menção a esses fatos de sua biografia, é por-que ajudam a mostrar que a Begriffsgeschichte decorre, em parte apre-

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ciável, de preocupações políticas características do século XX. Paraseus fundadores, talvez tenha exercido algum efeito de caráterterapêutico; difícil saber com exatidão. Mas uma coisa, pelo menos, écerta: a história conceitual representa notável esforço para tornar inte-ligíveis as transformações que revolucionaram os conceitos com queinterpretamos a realidade. Pode, assim, contribuir à preservação dopróprio equilíbrio do homem moderno.

Do Conceito à História e Vice-Versa

Tratar a GG como simples obra de referência, ainda que excepcional-mente bem documentada, seria, como observou Melvin Richter, faltar-lhe com a justiça. É verdade que o cuidado com a reconstituição se-mântica de conceitos sociopolíticos vai ao encontro da sólida tradiçãogermanófona nas áreas da filologia e do direito. Mas os fundamentosteóricos que norteiam tanto a seleção dos conceitos como a maneira deescrever-lhes a história fazem com que a GG seja algo bem diferente deuma coleção de registros e definições. Na próxima seção, veremoscom mais detalhe em que, metodologicamente, a Begriffsgeschichterompe com a Geistesgeschichte de um Meinecke ou a history of ideasde um Lovejoy. Por agora, é importante entender melhor a própriaBegriffsgeschichte, olhando com atenção para a obra que reúne seusresultados.

A tese da GG consiste em dizer que houve, entre 1750 e 1850, umatransformação radical no sentido dos conceitos sociopolíticos entãoexistentes, além do surgimento de outros conceitos até aí inconcebí-veis. Esse intervalo no qual se deu a gestação da modernidade recebe adesignação de Sattelzeit. A GG examina o comportamento de 115 con-ceitos antes, durante e depois do Sattelzeit, dando prioridade à culturagermânica6 . Mas suas conclusões têm amplo alcance, uma vez que atransição histórica em questão ocorreu um pouco por toda parte, naesteira do Iluminismo, da Revolução Industrial e da Revolução France-sa. Observo, todavia, que historiadores adeptos da história conceitualna Holanda e na Espanha têm proposto em seus países marcos cronoló-gicos diferentes para o Sattelzeit, que só coincidem parcialmente ounão coincidem de todo com aqueles adotados na GG7 .

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Como estabelecer critérios para definir o que vem a ser um conceito,de modo que este não se confunda com uma mera palavra? SegundoKoselleck, um conceito é sempre mais substancial, em termos semân-ticos, do que uma palavra. Ele encerra ambigüidades que denunciam apresença de vários sentidos, uns disputando com os outros. E tal dispu-ta jamais pode ser apaziguada, ao contrário do que ocorre com a pala-vra que não é conceito: um indivíduo com domínio razoável das técni-cas de expressão escrita em sua língua é capaz, quando assim o deseja,de empregar uma palavra sem deixar margem para dúvidas semânticas.Por outro lado, um conceito sociopolítico, de acordo com Koselleck,nunca se encontra livre de ambigüidades. Mesmo o teórico mais rigo-roso fracassará na tentativa de eliminá-las. Como exemplo da riquezasemântica que caracteriza um conceito, Koselleck (1985:82) lista a “va-riedade de objetos” que compõem o conceito de Estado: domínio, bur-guesia, legislação, jurisdição, administração, tributação, exército etc.Diante de uma simples palavra, é possível pensar isoladamente no objetoa que ela se refere. Com o conceito, não: ele sempre condensa umamultidão de objetos.

A Begriffsgeschichte distingue três famílias de conceitos, segundo ograu de mudança que sofreram ao longo do tempo. Em primeiro lugar,temos os conceitos originados da Antigüidade Clássica que mantive-ram seu sentido mais ou menos constante desde então, apresentandoainda hoje correspondência com a realidade. Koselleck fala, por exem-plo, dos conceitos do pensamento constitucional de Aristóteles (creioque tem em mente a teoria das formas de governo, exposta em diferen-tes passagens da Política). Em segundo lugar, estão os conceitos queatravessaram várias e profundas mutações no decorrer da história (soci-edade civil, Estado etc.). Em terceiro, aqueles que surgiram só emtempos recentes (comunismo, fascismo etc.). Um mesmo conceito, comodemocracia, pode pertencer simultaneamente a essas três famílias(ibidem).

Para cada um de seus conceitos no período do Sattelzeit, a GG tentaprovar pelo menos uma de quatro hipóteses, todas de fácil apelo àintuição de quem lida com questões de filosofia política. Cada umadessas hipóteses, se confirmada, pode servir tanto à crítica como ao

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elogio da modernidade. Mas em Koselleck não parece haver nem umacoisa nem outra, pelo menos não na forma mais vulgar que as tomadasde partido costumam assumir. É um ponto a favor da GG e que atestasua independência em relação à conjuntura histórica sombria em quenasceu. É importante que as iniciativas inspiradas na Begriffsgeschichteque começam a surgir fora das fronteiras do mundo alemão sigam oexemplo e preservem esse distanciamento. A Begriffsgeschichte perde-rá muito de seu interesse original, caso se queira transformá-la eminstrumento para intervir no sentido que devem ou não possuir os con-ceitos do léxico social e político contemporâneo. Melhor seria mantê-la assim, como um método sofisticado para a descrição dessas inter-venções ao longo do tempo.

Agora, voltemos nossa atenção para as quatro hipóteses, seguindo deperto a exposição de Richter (1995:37-38).

A primeira delas é a da temporalização (Verzeitlichung), e afirma que,no período do Sattelzeit, os conceitos sociopolíticos foram incorpora-dos por filosofias diversas da história, ganhando, com isso, uma di-mensão teleológica. Sua validade passou a estar vinculada às diferentesetapas de um suposta evolução da história nesta ou naquela direção.Em vez de pairar acima do tempo, os conceitos no Sattelzeit expressa-vam uma tensão entre um presente fadado à superação e um futuropara o qual convergiria a sociedade.

A segunda hipótese é a da democratização (Demokratisierung), que,como já diz o nome, tem por fim traduzir um quadro de ampla disse-minação pela sociedade de conceitos até então restritos ao manuseio deuma reduzida elite. Essa ampliação do círculo de contestação e debateguarda relação com o fortalecimento de novos canais de comunicação(os jornais, por exemplo) e a conseqüente expansão das audiências.

Em terceiro lugar, temos a ideologização (Ideologiesierbarkeit). Talhipótese supõe que os conceitos sociopolíticos adquiriram, durante oSattelzeit, um caráter mais universal e menos particular. Uma sutilezagramatical ajuda a compreender melhor do que se trata. Conceitos queantes eram expressos no plural sofrem uma transição para sua forma

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singular. As “liberdades” de um dado povo, por exemplo, cedem lugarà “liberdade” de um sujeito que pode variar segundo as conveniênciasdo momento. Uma conseqüência vocabular dessa mudança reside noaparecimento dos vários “ismos” que veiculam mensagens abstratas,desligadas de situações concretas.

Por fim, a GG submete seus conceitos à hipótese da politização(Politisierung), ou, como escreve Richter, do emprego de conceitos àmaneira de “armas entre classes adversárias”. Sem a metáfora, issoequivale a dizer que muitos conceitos gestados no Sattelzeit ou por elereformulados encerravam conteúdo propagandístico, podendo facilmen-te converter-se em slogans.

O teste dessas quatro hipóteses obrigou os colaboradores da GG acompulsar uma gama extensa e variada de fontes, que não poderiaesgotar-se nos textos “canônicos” da filosofia política. O interesse pe-los substratos culturais silenciosos, que não sobrevivem a seu tempomas que nele imprimem marca característica, é uma importante seme-lhança entre a Begriffsgeschichte e o chamado contextualismo lingüístico.Além do que de melhor se escreveu na filosofia e na teoria política, nodireito e na teologia, sem excluir a literatura, a GG também aproveitafontes documentais originadas dos mais diversos grupos sociais e cir-cunstâncias de redação: jornais, revistas, diários, panfletos, discursosparlamentares, documentos oficiais, memórias, cartas e, dada a preo-cupação com as palavras, dicionários de época, enciclopédias, tesaurose livros de consulta em geral (idem:39).

Como se pode ver, são estreitos os laços que unem a história conceitualao contextualismo – ou pelo menos assim pensam os praticantes daprimeira. Na GG, a atenção dispensada às idéias não ocorre em detri-mento do relevo histórico. A relação entre o conceito e a configuraçãosocial em que foi gerado é objeto de estudo cuidadoso, sem que seprecise cair na armadilha marxista de reduzir o mundo do espírito asimples emanação de uma infra-estrutura. Se o mundo age sobre aidéia, esta, por sua vez, reage sobre o mundo, sem que nenhum dosdois pólos tenha prioridade. Talvez limitadas em um primeiro momen-to, por causa de condicionantes socioeconômicos, as idéias podem, na

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medida em que abrem um leque até então ignorado de possibilidadesde ação, suplantar a lógica das relações sociais.

Mas antes de avançar mais na análise do intercâmbio entre aBegriffsgeschichte e o contextualismo, acredito que seja importanteentender melhor aquilo que as separa de outras formas prestigiosas defazer a história das idéias políticas. Será o assunto da próxima seção.

A Crítica à History of Ideas e à Geistesgeschichte

É difícil mencionar uma só nova proposta historiográfica que não reti-re boa parte de sua inspiração da crítica às metodologias que a antece-deram. Pois assim ocorre com a Begriffsgeschichte e o contextualismo.Os principais nomes associados a cada uma delas defendem-nas ata-cando certas formas de escrever a história do pensamento político muitoem voga na primeira metade do século passado, as quais, apesar desuas particularidades, têm em comum o fato de atribuir pouco peso àscaracterísticas próprias de cada época.

Tome-se, para começar, a history of ideas de Arthur Lovejoy. No pri-meiro capítulo de seu The Great Chain of Being (1936), Lovejoy bus-cou consolidar aquilo que, segundo pensava, devem ser os fundamen-tos da história das idéias políticas. Para esse autor, uma das principaistarefas do especialista nesse campo consiste em decompor as grandesdoutrinas até que restem apenas suas unit-ideas, ou idéias básicas àdisposição do filósofo, como tijolos nas mãos de um construtor: “Aaparência de novidade – acreditava ele – de muitos sistemas se deveunicamente à originalidade com que utilizam ou dispõem os velhoselementos de que se aproveitam”. Mas as ambigüidades ou mesmo aincompreensão em torno dessas unit-ideas deram ensejo às maioresmixórdias, pensava Lovejoy. Por isso, propôs uma linha de investigaçãochamada “semântica filosófica”, que recuperasse o sentido supostamentegenuíno das unit-ideas.

Uma crítica a Lovejoy partiu de Quentin Skinner, em artigo que publi-cou em 1969 na revista History and Theory. Nessas páginas, Skinneracusou a history of ideas de incorrer naquilo que chamou de “mitolo-

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gia das doutrinas”, isto é, a propensão de projetar sobre idéias passadasuma coerência interna ou uma atualidade que simplesmente não possu-em:

“O perigo dessa abordagem é que a doutrina a ser investigada logo éhipostasiada numa entidade. [...] O resultado é que a história (story)prontamente assume o tipo de linguagem adequada à descrição deum organismo em desenvolvimento. O fato de que idéias pressupõemagentes desaparece tão logo aquelas se preparam para falar em nomede si mesmas” (Skinner, 2002:62).

Em outras palavras, fazer a história do pensamento político do modocomo queria Lovejoy implica desconsiderar todo contexto, seja elelingüístico ou social, rompendo com os laços que ligam uma doutrinaao seu tempo e meio. E, segundo Skinner,

“[...] se quisermos entender uma determinada idéia, mesmo que numtempo e lugar definidos, não podemos simplesmente nos concentrar,à la Lovejoy, no estudo dos termos com que foi expressa. O maisprovável é que eles tenham sido empregados [...] com intenções vari-adas e incompatíveis” (idem:84).

Existe ainda uma segunda visão historiográfica com a qual se bate,mais particularmente, a Begriffsgeschichte. Refiro-me àGeistesgeschichte, que tem em Hegel seu grande inspirador. Não cabeentrar aqui em uma exposição sobre a filosofia da história de Hegel.Para tanto, remeto ao livro cristalino de Jean Hypollite. Retenhamosapenas esta citação, relativa aos anos que antecedem a publicação de AFenomenologia do Espírito (1807): “O que interessa ao nosso filósofo édescobrir o espírito de uma religião, ou o espírito de um povo, é forjarconceitos novos aptos a traduzir a vida histórica do homem, sua exis-tência em um povo ou na história” (Hypollite, 1983:13). Essa intençãose fará perceber na obra de Meinecke e Cassirer, para falar apenas dedois nomes bastante conhecidos. O terreno em que pisam não é vizi-nho ao da history of ideas. Sua ambição consistiu em apreender a uni-dade das épocas que se sucedem umas às outras, e não de idéias toma-das isoladamente. Mas como? Dedicando-se à compreensão da filoso-fia dos maiores representantes da inteligência de cada uma dessas épo-cas. Ou, nas palavras de Meinecke, considerando “as idéias que perso-nalidades individuais advogam e elaboram como o retrato da históriaviva” (apud Chabod, 1973).

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Nas décadas de 50 e 60, essa abordagem hegeliana sofrerá os ataquesda Begriffsgechichte precisamente por não “relacionar as mudançasconceituais à posição social dos filósofos ou de outros pensadores ou àsmudanças estruturais no Estado, na sociedade e na economia” (Richter,1987). Ironicamente, crítica semelhante seria endereçada àBegriffsgeschichte algumas décadas depois. Vejamos como foi isso.

O Diálogo entre a Begriffesgeschichte e o Contextualismo

É possível uma síntese dos métodos dessas duas escolas, por assimdizer? A pergunta tem dado margem a muitos debates. A semelhançadas críticas que ambas dispararam contra suas rivais faz crer que con-vergem naturalmente para o mesmo ponto, e que seria espontâneo oentendimento mútuo entre elas. No entanto, quando deixadas a sós, aBegriffsgeschichte e o contextualismo não se põem automaticamentede acordo. A resistência, pelo que posso entender, é maior por partedesta. Há mais de uma razão para explicar o porquê disso. De acordocom Pocock, sempre cético no que diz respeito à possibilidade de umahistória dos conceitos, pode ser que a Begriffsgeschichte alemã e ocontextualismo representem, no fundo, fórmulas adequadas a diferen-tes “culturas históricas”, sem que faça sentido promover a união dasduas:

“[o]s dois métodos de estudo são, cada um deles, destinados a reali-dades históricas, culturais e nacionais específicas; [...] não se pode-mos propor sua extensão às demais culturas históricas da Europa semtermos conhecimento de que não se trata de uma panacéia, e de quecada cultura tem, em verdade, seu próprio passado e seus própriosmodos de compreendê-lo [...]” (apud Koselleck, 2004).

A observação é inteligente, mas penso que não basta para encerrar oassunto. O interesse que a Begriffsgeschichte tem suscitado em paísesde tradição distante da alemã (Espanha, Finlândia, Itália, Brasil...) cons-titui um primeiro indício de que é capaz de cruzar com sucesso frontei-ras culturais. Prossigamos, pois, na análise da disputa.

O principal ataque feito à Begriffsgeschichte parte do princípio de que,para acompanhar os diversos sentidos de um conceito através do tem-po, é preciso idealizá-lo, isto é, de uma forma ou de outra arrancá-lo

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de seu universo próprio. Priorizar o conceito, e não o discurso, é tor-nar relativa a importância dos jogos de linguagem, aos quais ocontextualismo atribui importância central. O problema é que, segun-do José Ferrater Mora (1971), a teoria dos jogos de linguagem exigealguns reparos. Para começar, explica o filósofo que

“[l]a expresíon ‘juegos de lenguage’ (o ‘juegos lingüísticos’) -Sprachspielen, language-games – fue introducida por Wittgenstein ensus cursos y recogida en sus Investigaciones filosóficas (PhilosophischeUntersuchungen [1943]). En sustancia, consiste en afirmar que lomás primario en el lenguaje no es la significación, sino el uso. [...]Ahora bien, el lenguaje puede ser comparado a un juego; hay tantoslenguajes como juegos de lenguaje. Por tanto, entender una palabraen un lenguaje no es primariamente comprender su significación,sino saber cómo funciona, o cómo se usa, dentro de uno de esos“juegos”. [...] Como las palabras que usamos tienen una aparienciauniforme cuando las leemos, tendemos a pensar que tiene unasignificación uniforme. Pero con ello caemos en la trampa que nostiende la idea de la significación en cuanto supuesto elemento idealinvariable en todo término. Cuando nos desprendemos de la citadaniebla, podemos comprender [...] la multiplicidad (para Wittgenstein,prácticamente infinita) de los lenguajes – o juegos de lenguaje”.

Agora, atente-se para a crítica sutil de Ferrater Mora à teoria dos jogosde linguagem:

“La noción wittgensteiniana de juego de lenguaje parece contradeciruna de las ideas-clave de dicho autor: la de que lo primario en untérmino no es su significación, sino su uso. En efecto, a menos que‘juego’ tenga un significado, parece que no haya posibilidad de rela-cionar unos juegos de lenguaje con otros [...]” (Ferrater Mora, 1971).

O mais provável é que Koselleck subscrevesse integralmente as pala-vras de Ferrater Mora, porque é exatamente por essa aparente brechano raciocínio de Wittgenstein que a Begriffsgechichte articula sua reaçãoàs críticas do contextualismo, como fica claro quando Koselleck (2004)diz que “o que é novo só pode ser compreendido pela primeira vez porcausa de algum traço recorrente, alguma referência a um significadoaceito, não questionado anteriormente”. É certo que nenhuma garantiatemos de que um indivíduo, quando emprega um conceito já em circu-lação em seu meio, se preocupará com a preservação de seu sentidooriginal. O que se verifica é geralmente algo bem diferente: essa apro-

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priação conceitual resulta, no mais das vezes, em mudança no conteú-do do conceito. E precisamente isso interessa à Begriffsgeschichte, con-tinua Koselleck(idem):

“A história dos conceitos pode ser reconstruída por meio do estudoda recepção ou, mais radicalmente, da tradução dos conceitos que,usados pela primeira vez no passado, são postos em uso pelas gera-ções posteriores. Portanto, a singularidade história dos atos de fala,que parecia tornar qualquer história dos conceitos impossível, naverdade cria a necessidade de se reciclar as conceituações passadas. Oregistro de como os seus usos foram subseqüentemente mantidos,alterados ou transformados, pode ser chamado, apropriadamente, dehistória dos conceitos”.

Outro importante fator que, além das divergências de ordem teórica,tem contribuído para alargar o fosso entre a Begriffsgeschichte e ocontextualismo são os diferentes períodos históricos em que ambas atéaqui concentraram seus esforços. Os trabalhos mais conhecidos deSkinner e Pocock – restrinjo-me aos dois por saber pouco sobre outrosautores que apliquem suas técnicas – privilegiam o princípio da histó-ria moderna. A GG, como expliquei, preferiu eleger os anos entre1750 e 1850, de modo que é impossível confrontar diretamente osresultados de uma e outra escola. Mas sou levado a acreditar que aBegriffsgeschichte pode iluminar de forma única épocas de comoçãohistórica, e particularmente a do Sattelzeit. É dificil, por isso, pôr-se deacordo com Pocock, o qual acredita que a utilidade de uma obra comoa GG é, no máximo, secundária. Melhor seria, entendo eu, questionarum outro ponto, a saber: a validade de aplicar os métodos da históriaconceitual a qualquer outro período que não seja o do Sattelzeit. Se aBegriffsgeschichte tem um objeto definido, este parece ser menos acultura germânica do que um certo intervalo histórico.

***

Quanto às restrições geográficas e culturais da GG, de maneira nenhu-ma elas fazem do trabalho realizado apenas uma curiosidade para pes-quisadores de outros países. Os verbetes da GG que até o momentoforam traduzidos para o inglês (ainda que em versão abreviada) forne-cem valiosos painéis da história dos conceitos sociopolíticos, úteis aquem quer que transite pela civilização ocidental. E, dentro de poucotempo, talvez a Begriffsgeschichte alcance também outras civilizações.

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Afinal, de dois ou três séculos para cá praticamente todas as regiões doplaneta absorveram intensamente os conceitos sociopolíticos que, deinício, cruzaram apenas o Atlântico. Acompanhar como foram recebi-dos em outras partes do mundo é uma tarefa que pode revestir-se deenorme importância para a compreensão de fenômenos presentes –meta que está na ordem do dia para a história conceitual desde seusprimórdios, como assinalei na primeira seção. Um caso promissor aser estudado é o chinês, como lembrou Melvin Richter em sua fala deabertura na VII Conferência Internacional sobre a História dos Concei-tos. Para ilustrar sua proposta, Richter leu trechos de um artigo dejornal que tentava, na China do final do século XIX, traduzir para seusleitores o sentido do conceito ocidental de liberdade, que buscava en-tão aclimatar-se por lá. Richter lembrou também que a grande inspira-ção de Sun Yat-sen, um dos fundadores da China moderna, foi Rousseau.

Resta-me concluir dizendo que se torna crescente, pelo mundo afora, onúmero de pesquisadores mobilizados em torno da história conceitual.É sinal de que em poucos anos haverá pesquisas que permitam avaliarse, de fato, é possível aplicar com êxito a história conceitual no âmbitode outras culturas nacionais ou civilizações.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

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Notas

1. Extraí algumas das informações biográficas dos parágrafos seguintes deRichter (1995). Devo dizer que não tive acesso direto à GG, apenas aversões abreviadas de seus artigos, publicadas em inglês.

2. Sobre a tese de Brunner e as relações deste com o regime e a ideologianazistas, é imprescindível recorrer à equilibrada análise de seus tradutorespara o inglês, Howard Kaminsky e James Van Horn Melton (Brunner,1984:XIII-LXII).

3. Para este sucinto retrato intelectual de Koselleck, baseio-me na introduçãode um de seus tradutores para o inglês, Keith Tribe, acrescida a Futures Past(1985).

4. Koselleck (2002:154-169) situa a modernidade (Neuzeit) no século XVIII.É só aí, diz ele, que percebemos com nitidez uma plena tomada de consciênciadas características do conceito de modernidade, como a convicção de queo futuro é um campo aberto à ação do homem.

5. É significativo que Koselleck cite, ainda na introdução, o estudioso dasreligiões Ferdinand Christian Baur. Ele foi um inspirador dos filósofos que,no século XX, interpretaram as ideologias modernas como sintoma deprofunda desordem espiritual. Eric Voegelin, importante pesquisador nessecampo, destaca o nome de Baur em sua autobiografia intelectual: “I shouldlike to mention the great work by Ferdinand Christian Baur on Die christlicheGnosis; oder, die christliche Religionsphilosophie in ihrer geschictlichenEntwicklung of 1835. Baur unfolded the history of Gnosticism from theoriginal Gnosis of antiquity, through the Middle Ages, right into thephilosophy of religion of Jakob Böhme, Schelling, Schleiermacher, andHegel” (Voegelin, 1989:66).

6. Richter (1987) lista todos os 115 conceitos, tal como aparecem na GG, emordem alfabética. Há um quê de irônico nisto, que uma obra concebidapara examinar criticamente o Século das Luzes se aproveite desta subversivainovação do enciclopedismo, a ordenação alfabética dos assuntos.

7. Ver as comunicações ainda não publicadas que apresentaram Wyger Velema(Universidade de Amsterdã) e Javier Fernández Sebastián (Universidad delPaís Vasco) à VII Conferência Internacional sobre a História dos Conceitos,em julho passado, no Rio de Janeiro.

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A Crueldade, a Técnica Modernae as faces do Terrorismo

MARCIAL A. GARCIA SUAREZ*

Resumo

A crueldade, a técnica moderna e o terrorismo adquiriram contornosexpressivos em nossos dias. Entenderei a crueldade de forma a queesta se apresente como uma ação que ultrapassa o mero exercício dador sobre o outro; ficarei, assim, sob os cuidados de Montaigne paraquem “pareceria cruéis todos os atos que vão além da simples morte”.A técnica moderna, sendo compreendida por alguns pensadoresemblemáticos do século XX, como Martin Heidegger e maisrecentemente Paul Virilio, permite uma aproximação aos elementosmais íntimos desta. Sobre o terrorismo e de como este pode variar deacordo com as circunstâncias e o período de tempo, proponho umaanálise da idéia acerca do mesmo e de suas possíveis definições,tentando encontrar uma linha única que as una, neste caso, à crueldade.Tentarei propor um percurso através da crueldade, do terrorismo eda técnica moderna com o intuito de alcançar nossos dias e pensarsobre a relação desses conceitos.

Palavras-chave: terrorismo; técnica moderna; crueldade

* Doutorando em ciência política do IUPERJ. Email: [email protected].

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[...] Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia;Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncepes, meus irmãos,Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?Então sou só eu é que é vil e errôneo nesta terra?(...)Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Poema em linha reta, Fernando Pessoa)

Da Crueldade e da Política –A Morte Violenta

Um pensador para nos guiar na questão do pensamento sobre apossibilidade da morte violenta e o medo que esta causa é TomasHobbes (1558-1679). Para o autor, tal fim deveria ser evitado aqualquer custo, chegando mesmo a imaginar a criação de um Sersuperior capaz de reger as forças descontroladas e violentas doshomens.

Hobbes no seu estudo De Cive (1642) parte da premissa teórica quequestiona a posição do teórico clássico Aristóteles, na medida emque considera a falibilidade da proposição que estima o Homem comoZoon Politikon, para Hobbes, este axioma, “[...] embora acolhidopela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procedede considerarmos a natureza humana muito superficialmente”(Hobbes, 1998:26).

O homem possuiria uma propensão à violência, dada pela condiçãopeculiar em que se encontra no mundo. O homem hobbesiano temcomo uma de suas características principais a necessidade inexorávelde maximizar a satisfação de suas necessidades. Deve-se considerar ofato de Hobbes considerar que o homem está em igualdade decondições perante os outros e que esta igualdade se justifica pelaproposição de que todo o homem possui o artifício da violência, ouseja, “A causa do medo recíproco consiste, em parte, na igualdadenatural dos homens, em parte na sua mútua vontade de se ferirem –

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que decorre que nem podemos esperar dos outros, nem prometer anós mesmos, a menor segurança” (idem:29).

Além de estar vivo, o homem tem como desejo imanente manter-sevivo e, partindo desse pressuposto, quaisquer meios que este use paramanter-se vivo são considerados legítimos e justos, “pois todo homemé desejoso do que é bom para ele, e foge do que é mau, mas acima detudo do maior entre os males naturais, que é a morte; e isso ele fazpor um certo impulso da natureza, com tanta certeza como uma pedracai” (idem:31).

Hobbes considera o homem em seu estado de natureza, estado esseno qual o homem possui juízo sobre as suas ações e liberdade paraexecutá-las. Entretanto, se cada homem possui propriedade de justiça,isto representa um paradoxo à manutenção da própria existênciahumana, “pois, embora qualquer homem possa dizer, de qualquercoisa, isto é meu”, não poderá porém desfrutar dela, porque seuvizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender que é deleessa mesma coisa” (idem:33). A partir deste ponto, Hobbes propõe anecessária negociação entre os indivíduos para que através da retarazão seja possível estimar uma condição ideal, na qual todos sejamcapazes de ao mesmo tempo em que buscam a satisfação de suasnecessidades não entrem em conflito com outros indivíduos, esteprojeto racional é o fundamento do contrato social em Hobbes.

Cabe salientar que esse racionalismo hobbesiano já traz consigo aspremissas fundamentais da razão moderna;

“Razão, nesse sentido, nada mais é do que cálculo, isto é, adição esubtração, das conseqüências de nomes gerais estabelecidos paramarcar e significar nossos pensamentos. Afirmo marcar quandocalculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ouaprovamos nossos cálculos para outros homens” (idem:39).

Para que exista a possibilidade de uma sociedade sobreviver, deve-seantes de tudo encontrar um meio de disciplinar a violência, deve-secriar uma instância na qual a violência ou o poder de execução deatos violentos seja tornado impessoal. Digo impessoal, seguindo aargumentação de Hobbes sobre os atos justos e injustos, em que oautor afirma que é injusto um súdito se voltar contra o soberano,

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porque este tem em seu fundamento a própria concessão do súdito;isto equivaleria a dizer que o súdito estaria indo contra uma das leisnaturais, qual seja a de não causar mal a si próprio. Por força dessaargumentação, constato que o poder se torna impessoal, na medidaem que não se pode reconhecer todos os súditos um a um olhandoapenas para o soberano. Este representa a unidade do poder instituídoe detentor dos meios de violência, mas a vontade individual dos súditosnão penetra nessa instância.

Através dessa análise, podemos considerar que Hobbes, ao proporessa ordenação política, propõe também um exercício racional daviolência, ou seja, a intervenção racional sobre os meios de violência.A separação da vontade individual em relação à força necessária paraatos violentos. Poderíamos contra-argumentar que o soberano possuiuma vontade pessoal, contudo, cabe deixar claro que nos referimosàs relações de força, se nos detivéssemos na pessoalidade de cadasoberano, pouca coisa nos traria de útil tal raciocínio.

O pressuposto de uma racionalização sobre a violência, analisada apartir da teoria de Hobbes, permite-nos considerar que não existeuma real preocupação na abolição da violência, e sim na manutençãodesta de forma privilegiada e direcionada através da reta razão a umfim proposto como objetivo primordial do contrato entre osindivíduos, a saber – a paz.

Essa paz, resultante da apropriação dos meios de violência pelosoberano, torna as relações entre os homens mais seguras, porquecada um sabe que o braço do Estado pode alcançar qualquer um.Então pode-se dizer que o medo continua sendo o elemento quemantém a ordem social estável, seguindo os pressupostos de Hobbes.O quanto é necessário de violência para alcançar esse estado de coisas?Toda a que for possível para que não haja dúvidas sobre a capacidadede execução das ações por parte do soberano.

Pode-se a partir do que foi exposto até o momento analisar em Hobbesdois pontos específicos: a) a violência é um pressuposto que permanecepróximo ao homem; b) que esta deve ser controlada e direcionada.

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Através desta breve incursão ao pensador inglês percebe-se como acrueldade pode revestir-se de formas mais civilizadas, o que representaa economia da violência1 senão a crueldade travestida de civilidade.Não se hesita em usar a violência até o limite do necessário paramanter-se a ordem e impedir que os homens retornem ao estado denatureza. A violência acompanha a humanidade, e esta premissa ébasilar para que a crueldade encontre seus espaços. Este parágrafo jáé suficiente para que se ponha tudo a perder, afirmo: o uso da violênciaaté o limite do necessário. Qual limite é esse? Quando parar? Aqui,começo a penetrar o campo da crueldade. Não existe regra para ouso da violência, como afirmar que em determinado ponto a violêncianão é mais necessária e que o objeto sobre o qual a violência se abateencontrará seu estado de equilíbrio novamente (uma ação é violentaquando rompe o equilíbrio entre coisas).

Na teoria política hobbesiana, a violência e a capacidade de exercíciodesta pelos homens são ultrapassadas por um ser maior, que podeexerce-la na forma da crueldade, pois um ser de tal magnitude(Soberano) nunca terá a razão e a medida individual, e sim condizenteà sua envergadura. Como analisar a violência perpetrada pelos Estados,senão apenas pela luz da crueldade?

A Amplitude da Escala como Referência para a Crueldade

Tomei impulso em Hobbes para compreender a violênciainerentemente humana e como a crueldade pode ser extraída dopressuposto hobbesiano do Soberano, este fato se impõe simplesmenteporque esbarramos na incapacidade de equalizar as escalas deviolência, no que tange ao indivíduo e ao Soberano. O quantum deviolência gerado pelo Soberano (irei me referir de agora em diante àidéia do Estado-Nação Moderno) que é para nós a referência principalque fundamenta a noção de crueldade que desejei tratar inicialmente.

A condição de Guerra entre Estados Modernos2 talvez nos permitater uma visão clara do disparate de violência que pode ser gerado porestes em relação aos indivíduos singulares. Recorri a textos que tratamde impressões e relatos realizados sobre a Alemanha derrotada naSegunda Guerra Mundial (1939-1945), imagens de cidades devastadas

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por ataques aéreos, comuns ao fim da guerra quando a Luftwaffe jánão mais era capaz de oferecer resistência contra as investidas aliadas.Textos como os de Dagerman (1998), Winter (1998) ou ainda Sebald(2004) imprimem e tornam quase impensável uma relativização doseventos ocorridos e da ferocidade da destruição ocorrida durante osanos de guerra.

Existem duas passagens muito interessantes do texto de Sebald, quese tornam pertinentes ao nosso intento. A primeira diz respeito aocomandante-em-chefe do Comando de Bombardeio, Sir Arthur Harris,o qual defendia e implementava uma estratégia de ataqueindiscriminado sobre a população civil bem como os alvos militares,ou de outra maneira, a população civil passou a ser considerada umalvo militar. A violência neste sentido não era uma questão de ordemmoral, mas sim uma de se efetivar e se alcançar um objetivo, que erao de reduzir ao mínimo possível a moral da população.

A outra imagem do texto de Sebald refere-se ao relato feito pelarádio BBC de um dos primeiros ataques aéreos transmitidos ao vivo,direto dos aviões que sobrevoavam Berlim. Os relatos apresentadospor Sebald fazem menção de uma tripulação que realiza sua tarefa desoltar sua carga, e aprecia o espetáculo pirotécnico desencadeadopela realização de sua tarefa. A crueldade aqui aparece de forma sutil,quase imperceptível, pois novamente devemos retornar ao pressupostode que a crueldade como um exercício de violência, elevada a potênciasimpensáveis, escapa da apreciação moral singular de um indivíduo, eaqui talvez encontremos o silêncio. Mas sobre qual silêncio estou mereferindo, talvez aquele de que se trata quando qualquer linguagemse torna incapaz de exprimir a realidade empírica.

Estendendo a análise sobre tal silêncio, poderíamos abordar o capítulo5 intitulado The Art of Sinking, de Stig Dagerman, no qual temos adescrição de como a noção de moralidade se torna relativa quandoos parâmetros se dissolvem ante a agonia da morte. Deprecie-se umpouco e vá-se além. A crueldade novamente aqui pode ser pensadacomo a dissolução do ponto em que não existe retorno ou mesmo aausência deste ponto que em algum momento foi perdido. Asobrevivência para as populações do pós-segunda guerra, para aqueles

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países que foram mais devastados amplia ou de outra maneirapoderíamos dizer, relativiza as margens do permitido, do aceitável enesta esteira encontramos a crueldade.

Ao encerrar este pequeno percurso sobre esses autores encontramosem Jay Winter uma interessante passagem que retorna a PrimeiraGrande Guerra (1914-1918). Tal interesse, se expressa pelo momentohistórico no qual os mortos de guerra franceses chegavam ao país eisto havia criado um sério problema logístico de espaço físico para ossepultamentos (caso chegassem ao país de origem). Novamentegostaria de retomar que a crueldade aqui não se permite analisar poruma avaliação pura e simples, o que dizer de um fato como este? Doque realmente tratamos ao nos referir a um exemplo desses?Simplesmente tratamos de uma questão técnica, e não valorativa.Parece que, quando a violência aumenta sua escala ao impensávelatravés da técnica moderna o silêncio também aumenta.

Violência e Técnica Moderna

Martin Heidegger retorna a cena intelectual na década de 1950apresentando um texto singular, dirigido à Academia Bávara de BelasArtes, pretendemos aqui apenas tangenciar o texto em alguns pontosque tornarão claras a nossa perspectiva sobre a técnica moderna3.

Por onde nos perdemos? Pergunta Heidegger em seu texto “A Questãoda Técnica” (1953). Se a busca é pela essência da técnica, o que oprincípio da causalidade pode trazer a compreensão daquilo desejado?Ao passar pelo princípio das causalidades, adentramos a um dos modosda técnica. Aquilo que a define como tal, o produzir, a forma pelaqual a técnica traz à luz tudo que reside em potência; “o produzirleva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somentese dá na medida em que algo oculto chega ao desocultamento. Estesurgir repousa e vibra naquilo que denominamos o desabrigar‘Entbergen’” (Heidegger, 1997:53).

Retorna-se àquilo que possibilita questionar a essência da técnica, ouseja, o modo pelo qual o desocultamento se realiza. A visão do des-abrigar não é apenas a técnica meramente como um meio, mas sim

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traz consigo as possibilidades deste desocultamento que passam pelatécnica.

Ao abandonar a idéia de uma técnica orientada a fins, começa-se adesocultar o modo pelo qual a técnica moderna se apresenta. “Diz-seque a Técnica Moderna é algo totalmente incomparável com todasas outras técnicas anteriores, porque ela repousa sobre a modernaciência exata da natureza” (idem:57).

Se essa definição de técnica moderna respondesse a questão sobre aessência da técnica, o erro subtrairia a possibilidade de análise. Arazão pela qual Heidegger aponta esse perigo está no fato de que, aolevar-se em consideração essa noção de técnica moderna, penetra-seem uma relação causal, e não se analisa o modo pelo qual o saberempírico, que é base das ciências exatas, possibilita sua aproximaçãoao mundo. “O que é a Técnica Moderna? Também ela é um desabrigar.Somente quando deixamos repousar o olhar sobre este traçofundamental, mostrar-se-á a nós a novidade ‘Neuartige’ da TécnicaModerna” (ibidem).

Aquilo que é característico da técnica moderna aparece como sendoa forma pela qual esta requer a natureza. O desabrigar técnico trazpara seu domínio a capacidade de desdobrar as forças em diversoselementos, abstrair das condições naturais toda a capacidade dearmazenamento. Segundo o autor: “O desabrigar imperante naTécnica Moderna é um desafiar ‘Herausfordern’ que estabelece paraa natureza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída earmazenada enquanto tal” (ibidem).

O desabrigar desafiante toma para si as possibilidades de exploração,de transformação, de armazenamento e de distribuição das forçasque potencialmente jaziam na natureza.

O homem em seus modos de relação com a técnica toma parte nessedesabrigar, a partir do homem a técnica toma movimento. Deve-se,entretanto, compreender o modo pelo qual esta representação se dá:o homem também é requerido para o domínio da técnica, ou seja, atécnica moderna toma movimento, e este movimento se desdobrasobre o homem.

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Ao considerar-se a armação como a definição para o modo reinantena essência da técnica, deve-se colocar que esta não possui em si nadade técnico, mais uma vez aqui a distinção da análise instrumentaldeve ser lembrada. “Na armação acontece o descobrimento, segundoo qual o trabalho da Técnica Moderna desabriga o real enquantosubsistência. Ela não é, por isso, nem um fazer humano nem um meromeio no seio de tal fazer” (idem:67).

O pensar técnico antes de se condensar em realização traz em si oespaço das possibilidades. A emergência4 pressupõe os “modos de sertécnicos; A moderna teoria física da natureza é a preparação, não datécnica, mas da essência da Técnica Moderna. Pois o recolher quedesafia no desabrigar requerente já impera na física, emborapropriamente ainda não se manifeste nela” (idem:69).

O dominar que pretensamente o homem se outorga não tem em siapenas a força de requerer a natureza como subsistência nestecaminho. O desabrigar técnico ordena-se através da armaçãorequerendo a natureza como o espaço onde se pode extrairpossibilidades de realização para a própria técnica moderna, e nesteponto Heidegger olha e avisa sobre o perigo da técnica:

“A ameaça aos homens não vem primeiramente das máquinas eaparelhos da técnica cujo efeito pode causar a morte. A autênticaameaça já atacou o homem em sua essência. O domínio da armaçãoameaça com a possibilidade de que a entrada num desabrigar maisoriginário possa estar impedida para o homem, como também ohomem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdademais originária” (idem:81).

Heidegger penetra a questão da técnica e nos permite considerar quea mesma não deve ser pensada apenas voltando nosso questionamentoem uma única direção. Não devemos apenas perguntar sobre osinstrumentos, se não compreendemos aquilo que está inserido noprincípio que fundamenta a técnica moderna. O domínio da naturezae a disposição desta como outra em relação ao homem torna-se, paraa técnica moderna, seu modo principal de propor as formas de relaçõese de exploração do ambiente sobre a qual se desdobra.

A técnica moderna explorou no século XX as potencialidades natentativa da humanidade em desenvolver seu domínio sobre o seu

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ambiente, e a violência de maneira imanente entra nesse projeto, talveznão como o elemento principal, mas sem dúvida alguma que aassociação entre técnica moderna e violência explorou novos limitespara a definição do que é crueldade. Pode-se pensar sobre os camposde concentração nazistas, que traduziam em si a ausência de umaregra moral específica, corporificavam a inexorável realização de umprojeto amparado e realizado tecnicamente. Registro, cálculo,procedimento, domínio são características da técnica moderna, masela não se mostra por estes fatos, mas tais acontecimentos somentesão possíveis através dela. Bombardeios aéreos nos quais os pilotosencontravam-se a 10.000 pés de altitude largando bombas de 500kg, não permitem a experimentação do impacto, da destruição maisferoz. A técnica moderna introduz uma distância que torna a crueldadeinsípida, inodora, incolor. Talvez espetacular como pudemos ver nosrelatos dos pilotos da Real Força Aérea Britânica durante um dosbombardeios sobre Berlim.

Entre alguns autores que poderíamos trazer à discussão está PaulVirilio5, que promove, até de certa forma iconoclasta, uma análise datécnica na contemporaneidade. Virilio tem como substrato de seupensamento a sua própria experiência de vida, que foi marcadafortemente pela Segunda Guerra Mundial. Algumas descrições desuas visões de infância dão mensagens daquilo que se traduz nesteestudo como técnica moderna. Virilio cita uma sociedade dromológica,ou seja, uma sociedade da velocidade, do deslocamento, domovimento. Fala também de uma esthétique de la disparition, ou seja,uma estética do desaparecimento que emerge como resultado doextremo potencial da implementação técnico-bélica utilizada noperíodo da guerra. A velocidade e o impacto desta racionalidadetécnica que se realiza conjuntamente com a violência intrínseca aosconflitos exercem sobre Virilio uma impressão indelével que o autorparece carregar consigo em suas análises sobre a tecnologia.

O autor fala de que a realidade desaparece ante o impacto da técnicabélica, vidas, bairros, tudo aquilo que se encontra em um instante, nopróximo não está mais. A técnica moderna oferece-nos esse tipo deespetáculo, a velocidade das ações e o grau elevado das transformações

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que pode inserir no ambiente, não possuem paralelo na históriahumana. Em seu estudo Velocidade e Política (1977), Virilio apresentaalgumas características da emergência de uma sociedade pautada navelocidade e no deslocamento. Para tanto, discute através de suadromologia de que forma a sociedade ocidental se estruturou sobesse pressuposto. A Inglaterra é para Virilio uma das representantesdessa nova lógica, que na modernidade têm seu maior alcance.Segundo ele:

“Com a fleet in being, a Inglaterra concentra seus esforços na inovaçãotécnica no campo dos transportes e, mais precisamente, na fábricaçãode engenhos rápidos. É disso que ela tira diretamente suasuperioridade econômica e, sobretudo, a orientação que fez dela aprimeira grande nação industrial, modelo para todas as outras,criando ‘este sentimento de superioridade técnica confundindo-secom o sentimento de uma superioridade geral’” (Virilio, 1996:56).

A presença não vista que caracteriza a lógica de mobilização da frotamarítima inglesa, a partir do século XVII e que se manteve durante arevolução industrial, representa para Virilio justamente acontraposição do pressuposto de uma revolução industrial, o autorsugere que o que ocorreu foi uma revolução dromológica.

“O homem ocidental pareceu superior e dominante apesar de umademografia pouco numerosa porque pareceu mais rápido. Nogenocídio colonial ou no etnocídio, ele é o sobrevivente porque éefetivamente o sobre-vivo – VIF, a palavra francesa para vivoconcentra pelo menos três significados: prontidão, velocidade(vitesse, em francês) equiparada à Violência (que vem de força viva,aresta viva, etc.), à própria vida (estar vivo é estar em vida!)”(idem:57).

A velocidade surge para o autor como um elemento central,principalmente quando é considerada a Primeira Guerra Mundial(1914-1918). A velocidade e a amplitude dos confrontos ocorridosnesse conflito apresentaram ao mundo pela primeira vez apossibilidade do alcance das implementações técnicas atingidas nesseperíodo. O volume de gastos de material bélico consumido no conflitonão tinha precedente ao longo da história das guerras.

“A guerra de desgaste voluntária era, simultaneamente, a primeiraguerra de desaparecimento e consumo. Desaparecimento, no local,dos homens, dos materiais, das cidades, das paisagens; e consumo

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desenfreado de munições, de material, de mão-de-obra. Pouco apouco, os elegantes planos de engajamento ou as ordens de ataquecedem lugar a novas considerações: consumo de obuses por metrocorrido de trincheira, programa de produção, orçamento e avalizaçãode estoques” (ibidem).

Paul Virilio apresenta-se como uma criança da guerra, que viu o queela pode fazer e qual o seu alcance. O autor fala da Blitz Krieg6 alemãutilizada durante a Segunda Guerra Mundial e nos diz de forma claracomo essa experiência representou para ele a forma pela qual a guerraentrou em seu quintal. A guerra da surpresa, da mídia, no mesmoperíodo as informações não possuíam fronteiras e nem tampoucolimites. De maneira fragmentada, muitas vezes Virilio apresenta suasanálises sobre a técnica moderna. “O avião toca o solo, o solo abre oavião em quatro, mais delicadamente que o gourmet descasca seufigo [...]. Com essa lentidão de câmera lenta, o choque mais violento,o acidente mais mortífero nos parecem tão suaves quanto uma sucessãode carícias”, assim o autor cita Paul Morand7 e expõe a ambigüidadeda técnica cinematográfica, que é capaz de decompor um desastreem uma série de movimentos suaves. A questão que desperta ointeresse acerca deste exemplo é que a noção de desastre fica ligada avelocidade da ação. Pode-se considerar o mesmo exemplo aoimaginarmos uma carícia e um tapa no rosto; excluída a intenção, oque resta é a velocidade.

“PASSADO, PRESENTE, FUTURO – essa antiga tripartição daduração cede lugar a imediatez de uma telepresença que se assemelhaa um novo tipo de RELEVO [...]. Relevo do acontecimento e não deuma coisa, em que a quarta dimensão temporal muitas vezes toma olugar da terceira dimensão: esse volume material que perde, assim,seu valor geométrico de ‘presença efetiva’ em proveito de um volumeaudiovisual cuja evidente ‘telepresença’ leva de vencida a naturezados fatos” (Virilio, 1999:115).

Da Crueldade, da Técnica Moderna e as Faces do Terrorismo

Quando pensamos na definição de terror ou terrorismo, devemosdar atenção aos dois elementos que constituem as duas definições: oprimeiro pode ser entendido como uma condição de vida ou daprecariedade sob a qual esta vida se encontra, o sentimento de ameaça;o segundo, por outro lado, pode ser compreendido como uma tática,

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um conjunto de métodos – violentos na maioria dos casos – quepretende impor uma certa condição de terror à um certo grupo deindivíduos. Veja-se que, ao nos aproximarmos desses conceitos a partirde um olhar técnico, podemos abordá-los como referência paradiversos agentes, ou seja, terror e terrorismo podem ser promovidospor Estados contra sua própria população, contra populaçõesestrangeiras, por grupos nacionalistas que desejam o poder político,grupos messiânicos que desejam a reestruturação de um Estadoreligioso, e outras tantas formas que se pode imaginar.

A eficiência do terrorismo contemporâneo, e nesse sentido gostariade focar principalmente nos grupos que utilizam essa tática, que nãoé nova no Oriente Médio, desde a morte do profeta em 632 atos deauto-sacrifício, foi perpetrada por ambos os lados do islamismo –xiitas e sunitas8. Ao nos inscrevermos em uma abordagem históricasobre essas organizações, somos levados a penetrar em suas raízesreligiosas e políticas. Bernard Lewis (2003) trata pontualmente dessaorigem. Essa contenda entre Ocidente e Oriente tem longas raízesque podem ser encontradas desde a primeira Cruzada no século XI.Entretanto, começarei a trajetória no século XIV.

No ano de 1332, Filipe VI da França preparava uma nova cruzadapara retomar os lugares santos da cristandade, quando um padrealemão chamado Brocardo escreveu um tratado intitulado Directoriumad Passagium Faciendum, oferecendo ao rei um alerta aos perigos doOriente. Através dessa descrição, Lewis oferece-nos uma primeiraaproximação aos assassinos10. Segundo Brocardo, e a partir de Lewis,os assassinos são homicidas secretos e contratados de um tipoespecialmente hábil e perigoso. Sobre essa designação, a palavraespalha-se na Europa do século XIV. Entretanto, perde seu alcance esua especificidade original. Segundo Lewis, a palavra apareceprimeiramente nas crônicas das cruzadas, indicando o nome de umestranho grupo de sectários muçulmanos, coordenados por uma figuramisteriosa conhecido como Velho da Montanha. É interessante exporuma mensagem que um emissário traz para Frederico Barba-Roxaem 1175: “Observe que nos confins de Damasco, da Antioquia eAlepo, há certa raça de sarracenos nas montanhas, que em seu próprio

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vocabulário são chamados Heyssessini e em romano signors demontana” (Lewis, 2003:12).

Lewis propõe quatro pontos principais acerca do lugar dos assassinosna história do islã: a sua existência foi encarada com uma forte ameaçaà ordem, política social e religiosa do período – séculos VIII ao XII,principalmente. O segundo ponto diz respeito que aqueles não foramparte de um fenômeno isolado, mas, sim, constituíram-se como umalonga série de movimentos messiânicos impelidos por angústiasprofundamente enraizadas. Como terceiro ponto, Lewis afirma queHasã-i Sabá foi bem-sucedido em reformar e dar um novo sentidoaos vagos desejos, às crenças rebeldes e à raiva sem objetivo dosdescontentes. A conseqüência final talvez não tenha sido a imaginadapelos assassinos, pois não conseguiram derrubar a ordem religiosadominante. Entretanto, um elemento significativo permaneceupresente em torno de uma imagem messiânica da religião e de seusdevotos bem como os métodos de auto-sacrifício, ou seja, o terrorcomo forma de atingir objetivos religiosos.

“‘Irmãos’, diz um poeta ismaelita, quando chegar o tempo do triunfo,com a boa sorte dos dois mundos como nossa companheira, então,perto de um único guerreiro a pé um rei poderá ser tomado peloterror, embora conte com mais de cem mil cavaleiros” (Lewis,2003:146).

A História remete-nos a um passado de violência, mas a questão maisintrincada a qual desejo fazer menção neste tópico diz respeito àrelação entre a expansão da técnica moderna, a amplificação daviolência e a impalpabilidade da crueldade. Poderia pontuar minhasimagens nas cenas de execuções sumárias de civis televisionadas parao mundo por grupos terroristas de resistência atuantes no Iraque, oude outra forma poderia discutir sobre os ataques aéreos aliados e asluzes e imagens verdes que foram televisionadas também para o mundotodo. Mas o que torna interessante discutir é que os grupos não passamde pequenos grupos – se comparados com a figura do Estado – comuma câmera na mão, dispostos a realizar atos de extrema violência etorná-los públicos, assumindo a autoria. Isto somente é capaz porque,através da técnica moderna o espectro de sua violência amplia-se ereverbera no mundo.

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Para Mary Kaldor (2003), esses grupos fariam parte de umaglobalização regressiva, que consiste basicamente em uma reação aoprocesso de absorção de determinadas culturas por um movimentomais amplo. Os grupos terroristas seriam caracterizados por umainadequação, um desencaixe, em relação aos princípios políticos,sociais e econômicos ocidentais, mas por outro lado utiliza parte daestrutura (principalmente informação e armamentos) colocada adisposição pelo processo de globalização. Para Gearson (2002) eFreedman (2002), a própria definição de terrorismo e gruposterroristas adquirem contornos pouco claros e podem levar aequívocos em uma simplificação analítica. Compreendo o terrorismobem como os grupos terroristas contemporâneos sob um olhar técnico,ou seja, ambas definições podem residir no âmbito da técnica, comoum conjunto de métodos que são postos em determinada ordem paraatingir um objetivo.

O que se pode dizer ao ver uma cena na qual um indivíduo édecapitado com uma pequena faca de cozinha e agoniza em sua morteante uma pequena câmera (made in Taiwan, provavelmente)? O queparece nos escapar dessa imagem? Afirmo que aquilo que nos escapaé a impalpabilidade que a crueldade adquire. Esta violência não épalpável, não se dá em nosso entorno, se dá através dos meiosmidiáticos. Logo, a questão que surge é: qual relação podemos tercom esta crueldade. A técnica moderna insere um hiato, dilui e aomesmo tempo amplia. Dilui a experiência da dor no sentido anímicoe amplia o sentido da experiência do terror. Existe, logo, um caráterambíguo na crueldade elevada a potência n pela técnica moderna.

Note-se que não afirmo que haja uma alteração na violência e nacrueldade como uma característica humana, mas sim que ambasentrelaçadas por uma condição técnica elevada podem explorar novoslimites de percepção dos indivíduos que são tocados por essas imagens.O que se pode esperar para o futuro, a paz perpétua imaginada porKant no século XVIII, ou talvez que caminhos inexoravelmente paramais violência e mais crueldade. A técnica moderna amplia-se, e naspalavras de Heidegger o homem é também um instrumento dela, nãoexiste o domínio sobre a técnica, existe a relação do homem com a

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técnica moderna. Até o momento esta ampliou o espectro de violênciapossível, e em um momento histórico no qual o domínio por umnúmero cada vez maior de países sobre artefatos nucleares se tornacada vez mais comum e as clivagens emergem na política internacional.O que podemos esperar? Talvez já vivamos em uma cena na qual oterror e o terrorismo são singulares em relação ao que foram nopassado, apenas em alguns casos ainda não percebamos ou nãodesejamos perceber.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Sheldon Wolin (1974) aborda este conceito em sua análise sobreMaquiavel.

2. Autores na área das Relações Internacionais fornecem-nosfundamento para a análise, entre eles: Carl von Clausewitz (séculoXVIII) (1996), contemporaneamente, John Keegan (1996).

3. Estudos sobre modernidade técnica são desenvolvidos por FranzJosef Bruseke (2001).

4. O princípio da causalidade que Heidegger analisa compõe o própriomodo do ocasionar, ou seja, não apenas na causa material, eficiente,formal e a final. Na composição entre as possibilidades, a técnicanão é o meio, mas sim a condição de surgimento.

5. Aquilo que surge; que em potência pode vir a se realizar emdeterminado momento.

6. Tratarei basicamente de dois estudos: Velocidade e Política (1996)e A bomba Informática (1999).

7. Blitz Krieg, era uma das táticas de combate alemãs mais eficazesdurante a Segunda Guerra Mundial.

8. A primeira crise no islã, segundo Lewis, ocorre com a morte doprofeta em 632. Fica estabelecido um vácuo de poder, que é

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resolvido pela elevação ao poder de Abu Bacr, um dos primeirosconversos e um dos mais respeitados. Intitulado Khalifa(representante do profeta). Evidentemente que, como todatransição de poder, existiam grupos rivais que não concordaramcom a elevação de Abu Bacr. Estes descontentes acreditavam quepor direito quem deveria assumir a liderança era Ali, sobrinho egenro de Maomé. Este grupo veio a ser conhecido como Xi’ atu’Ali (partido de Ali) e depois apenas como Xi’ a, originando dessaforma o conflito mais significativo no interior do Islã.

9. Lewis (2003) Os Assassinos. Os Primórdios do Terrorismo no Islã.

10. Ao usar a palavra “assassinos”, não estou de forma algumaindicando uma terminologia pueril ou depreciativa, mas simconcordando com a designação de Lewis.

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Crise na Aliança Atlântica:EUA e Europa diante das Novas

Ameaças à Segurança Internacional*

MAURÍCIO SANTORO**

Resumo

Este artigo examina a crise nas relações entre os EUA e a Europa,tomando como ponto central da discussão as funções assumidas pelaOTAN no pós-Guerra Fria e as controvérsias trazidas pelas novasameaças à segurança internacional, como o terrorismo.

Palavras-chave: EUA; Europa; OTAN

* O artigo é uma adaptação do terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado“O 11 de Setembro e a Doutrina Bush”, defendida em novembro de 2003. Adissertação foi orientada por Cesar Guimarães e financiada com bolsa da CAPES.

**Doutorando em ciência política pelo IUPERJ, pesquisador do Instituto Brasileirode Análises Sociais e Econômicas e professor da pós-graduação em relaçõesinternacionais da Universidade Candido Mendes.

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O objetivo deste artigo é discutir a crise na mais poderosa aliançapolítico-militar do mundo, a Organização do Tratado do AtlânticoNorte – OTAN que reúne os Estados Unidos, a maioria dos países daEuropa e o Canadá. A OTAN foi criada para combater a UniãoSoviética, e desde o fim dessa superpotência o futuro da aliança vemsendo tema de muitas controvérsias, com a organização passandopor grandes mudanças, tanto nas funções que desempenha quantonos países que a compõem.

A primeira parte do artigo examina a expansão da OTAN para oLeste, incorporando os países que faziam parte da esfera de influênciasoviética na Europa Oriental. Além do aumento no número demembros, esse movimento também provocou uma mudança nasfunções da aliança.

A segunda parte trata do dilema europeu de segurança: a necessidadedo envolvimento dos EUA para manter o equilíbrio de poder nocontinente e estabelecer a ordem em sua turbulenta periferia (osBálcãs). Mas existem, simultaneamente, os receios que os países daEuropa sentem das ações unilaterais dos Estados Unidos.

O artigo é concluído com uma análise das divisões entre Europa eEUA diante das novas ameaças à segurança internacional, como oterrorismo, e as crises provocadas pela invasão do Afeganistão e doIraque.

1) A Expansão para Leste

Durante a Guerra Fria, a aliança entre EUA e Europa foi o principalcontraponto ao poderio soviético, institucionalizado no Pacto deVarsóvia. Após a queda da URSS, surgiram várias divergências entreos aliados, e muitos previram o fim da OTAN, a qual seria sepultadapelas rivalidades econômicas emergentes, ou simplesmentedesmantelada com o término da ameaça comunista. A análise docientista político Kenneth Waltz é talvez o exemplo mais conhecidodessa posição:

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“Alianças são organizadas contra um inimigo reconhecido. Sabemostanto através da teoria do equilíbrio de poder quanto pela históriaque coalizões que ganharam guerras entram em colapso em seguidaà vitória, com ainda mais certeza se esta foi decisiva [...]. Os dias daOTAN não estão contados, mas seus anos, sim” (Waltz, 1995:73-74).

Como tantas outras profecias sobre o pós-Guerra Fria, essa tambémse mostrou errada. A Aliança Atlântica não terminou. Ao contrário, apartir de fins dos anos 90, iniciou uma expansão para o Leste,incorporando os países da Europa Oriental, que haviam feito partedo bloco soviético – “o Ocidente seqüestrado”, na expressão doescritor tcheco Milan Kundera. Entender as razões desse movimentoajuda na compreensão do papel que os Estados Unidos vêmdesempenhando na Europa e dos pontos de divergência na OTANque se agravaram após o 11 de setembro e a invasão do Iraque.

A expansão da OTAN atende a objetivos militares e políticos. Nafamosa frase do general inglês Lord Ismay, a aliança foi criada para“deixar os americanos dentro, os russos de fora e os alemães porbaixo”, isto é, conter os soviéticos e ao mesmo tempo impedir aAlemanha (e em menor medida, os europeus) de exercer uma políticaexterna independente dos EUA no Velho Continente. Essas razõescontinuam presentes no pós-Guerra Fria.

O expansionismo russo na Europa Oriental não foi inventado pelaRevolução de 1917. Era, ao contrário, uma característica marcanteda diplomacia dos czares desde o século XVII. Nesse sentido, o colapsosoviético foi visto por analistas como o ex-assessor de segurançanacional do presidente Carter, Zbiegniew Brzezinski (1992:49), comouma oportunidade cuja essência é “garantir que a desintegração daUnião Soviética se torne o fim pacífico e permanente do impériorusso”. Ou seja, os EUA, além de ter certeza da extinção do regimesocialista, devem forçar a Rússia a abandonar suas zonas de influênciatradicionais, na Europa Oriental e no Báltico.

O alargamento da OTAN também é uma maneira de conter asambições de uma Alemanha reunificada, e extremamente poderosa,com a maior população da Europa (80 milhões de habitantes) e 35%

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do PIB da União Européia – UE. Com os antigos rivais russosenfraquecidos, e uma enorme turbulência política em sua antiga áreade influência, o que impedira os alemães de retomarem seu antigopadrão de poder?

“Os franceses em particular temeram que a multiplicação do queMitterand se referiu como as ‘tribos’ da Europa Oriental iria tentarou talvez mesmo compelir a Alemanha a aumentar seu papeldiplomático e militar na região, levando à reconstrução de uma‘Mittleeuropa’ que iria reforçar o peso hegemônico da Alemanha naEuropa e conduzir suas prioridades rumo a leste” (Loriaux,1999:368).

No entanto, os mecanismos institucionais da OTAN funcionam comouma garantia de que a Alemanha submeterá sua política externa aodebate com os aliados. Ainda mais importante é um compromisso deque os EUA continuarão vigilantes diante de qualquer aspiração alemãde retomar o projeto de hegemonia continental que levou a duasguerras mundiais durante o século XX. O temor não é tanto umavisão apocalíptica de divisões panzer ocupando Paris e Varsóvia, maso receio concreto de uma “germanização” da UE.

O duplo padrão de contenção – aos russos e aos alemães – fica claroquando se percebe que os primeiros novos membros da Aliança,incorporados em 1999, foram países como Polônia e República Tcheca,que no passado foram vítimas de agressões de ambas as potências –às vezes simultaneamente, como no caso das partilhas polonesas doséculo XVIII e de 1939.

O cronograma de expansão da OTAN prosseguirá até 2007,abrangendo toda a Europa Oriental, Chipre, Malta e, de maneiraainda mais humilhante para os russos, os países bálticos – Letônia,Lituânia e Estônia. Essas pequenas nações ocupam uma posiçãoestratégica, a poucos quilômetros da importante cidade de SãoPetersburgo, e contém entre sua população um significativo percentualde minorias étnicas russas. Foram tradicionalmente vistas por Moscoucomo vitais à segurança nacional, e sua entrada na OTAN provocouprotestos, sendo um dos fatores para a crise no Kosovo (Trenin,2002:380-384).

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O cerco aos russos foi completado com o estabelecimento de“parcerias estratégicas” da OTAN com 27 países, incluindo as quinzeex-repúblicas soviéticas, muitas das quais envolvidas em disputas comMoscou. Por conta desses acordos, a Aliança estabeleceu bases emquatro nações fronteiriças à China. Além disso, foi criado o DiálogoAtlântico com os países do norte da África, uma tentativa de inserir omundo árabe nas instituições de segurança cooperativa da Europa(Talbott, 2002).

Strobe Talbott, que foi secretário-assistente de Estado de Clinton,deixa claro que, além das questões de segurança, a expansão da OTANtambém envolve temas políticos e econômicos. Os países que desejamse juntar à Aliança precisam se submeter a reformas estruturais, alémde reequipar suas Forças Armadas de acordo com os padrõesocidentais: segurança, estabilidade política e abertura de mercados.Nas palavras da secretária de Estado do presidente democrata,Madaleine Albright:

“O objetivo da expansão é fazer pelo leste da Europa aquilo que aOTAN fez há cinqüenta anos pelo oeste: integrar as novasdemocracias, conter os ódios ancestrais, dar confiança à recuperaçãoeconômica e dissuadir os conflitos” (apud Asmus, 2002:361).

Esses objetivos também são atendidos pela expansão da UniãoEuropéia, que corre simultânea à da OTAN. A assinatura do Tratadode Maastricht, em 1992 (que criou a UE), provocou especulaçõesnos Estados Unidos a respeito de uma possível “fortaleza Europa”,um bloco econômico que rivalizaria com a América pelo domínio daeconomia global. Desse ponto de vista, o alargamento da UE seriamais um passo no fortalecimento europeu e no crescimento de suainfluência mundial.

A realidade, no entanto, é mais complexa. A expansão da UniãoEuropéia incorpora muitos países ex-comunistas que dependem emgrande medida dos EUA, tanto para sua segurança quanto para receberajuda financeira. Esses Estados foram aceitos na UE na cúpula deCopenhagen, em dezembro de 2002, apenas três semanas após suaentrada na OTAN, formalizada na conferência de Praga. Em 2007,quando o processo de expansão em ambas as organizações estiver

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completo, 23 dos 27 membros da União serão também membros daAliança Atlântica. Os únicos países europeus que não fazem parte daOTAN são Áustria, Finlândia, Irlanda, e Suécia. Os membros da OTANque não integram a UE são EUA, Canadá e Turquia, embora estaúltima negocie sua inclusão.

Diante desse quadro, analistas como o jornalista Bernard Cassen(2003) vêem a Europa se definindo “mais e mais como simples espaçoque marcha inscrito na estratégia imperial dos Estados Unidos”,considerando a incorporação dos países pró-EUA da Europa Orientalcomo a garantia para Washington de que a UE não irá se opor a seusprojetos políticos.

2) O Dilema da Segurança Européia

Nesse caso, por que a Europa aceita a hegemonia americana? Por quea UE não se utiliza de seus vastos recursos econômicos para construiro poder militar necessário para se tornar uma superpotência e exercermaior influência internacional? Essa possibilidade foi levantada pordiversos analistas e chegou a figurar como discurso oficial dadiplomacia francesa. O ex-chanceler Hubert Védrine, crítico constantedo que chamava de “hiperpotência americana”, afirmou que o objetivoda política externa da França era o estabelecimento de um mundomultipolar.

A multipolaridade, no entanto, não pode ser criada por decreto eenvolve custos muito altos. Robert Kagan duvida que os europeustenham disposição para aceitar um aumento de gastos militares nessaescala e diz que a União Européia atingiu uma espécie de paz kantiana,baseada na cooperação internacional, ao passo que os EUA

“[...] continuam chafurdando na história, exercendo o poder nummundo hobbesiano anárquico, onde as leis e as diretrizesinternacionais não são dignas de confiança, a verdadeira segurança,a defesa e a promoção da ordem liberal, ainda dependem da posse edo uso do poderio militar. É por isso que, nas principais questõesestratégicas e internacionais da atualidade, os norte-americanos sãode Marte e os europeus são de Vênus. Têm poucos pontos em comume seu entendimento é cada vez menor”. (Kagan, 2003:7)

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Na abordagem de Kagan, o poder dos Estados Unidos solucionou odilema de segurança europeu, permitindo que as nações do continenteabandonassem seus ódios seculares e construíssem o “milagregeopolítico” de sua integração regional. A nova situação faria doseuropeus entusiastas do Direito Internacional e da negociaçãodiplomática, relutantes em apoiar as ações americanas, baseadas muitasvezes no uso da força militar. O autor afirma que o unilateralismodos EUA só tende a aumentar, pois não é fruto da ideologia dedemocratas ou republicanos, mas uma conseqüência do mundo semsuperpotências rivais do pós-Guerra Fria.

A ênfase nas diferenças culturais entre americanos e europeus foibastante destacada ao longo dos anos 90, tanto entre acadêmicosquanto na imprensa. Fatores como pena de morte, posse de armas defogo e a natureza do Estado de Bem-Estar Social eram vistos comofontes de divergências cada vez maiores entre os aliados. No entanto,essa é uma explicação falha, pois tudo isso já era parte do cenário daGuerra Fria sem que houvesse provocado maiores problemas naOTAN.

As raízes das dificuldades entre Europa e Estados Unidos estão nosproblemas que surgiram após o colapso soviético, como a turbulêncianos Bálcãs, as novas ameaças dos “Estados-Bandidos” e do terrorismoe, principalmente, a falta de um freio às ações americanas.

A fragmentação da Iugoslávia trouxe de volta à Europa o pesadelodas guerras étnicas que haviam dilacerado os Bálcãs no início do séculoXX e sido o estopim para a Primeira Guerra Mundial. O risco foiaumentado diante da incapacidade da UE em agir, mesmo diante dosmassacres cada vez maiores. A crise da Bósnia só foi solucionadaquando os Estados Unidos concordaram em intervir, liderando amissão da ONU na região. Mais tarde, o mesmo ocorreu no Kosovo.Para Kissinger (2001), é a repetição dos padrões tradicionais, com osEUA estabelecendo protetorados entre os grupos étnicos em guerra,como os impérios otomanos e austro-húngaro haviam feito antes deles.

Em outras palavras, a fragilidade militar da Europa é tão grande quese faz necessária a presença do poder hegemônico americano para

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manter a ordem e a estabilidade política em sua própria periferiacontinental. Na Bósnia, essa situação ainda foi de certo modomascarada pela intervenção da ONU. Mas no Kosovo, as NaçõesUnidas ficaram de fora – a proteção russa à Sérvia significaria umveto à ação militar no Conselho de Segurança. O resultado foi umataque da OTAN, o primeiro realizado pela Aliança em seus cinqüentaanos de existência.

As operações militares limitaram-se a bombardeios aéreos, com oobjetivo de convencer a Sérvia a chegar a um acordo com os rebeldesalbaneses. A maior parte do armamento e das informações estratégicasveio dos americanos, cujos generais reclamavam constantemente dastáticas européias (ataques limitados a alvos militares) e de suainsistência em obter o aval da ONU para agir. Na avaliação de Kagan(2003:51-53), as tensões entre os aliados durante a guerra resultaramna decisão de Washington em agir unilateralmente em um conflitofuturo, sobretudo se interesses nacionais importantes estivessemenvolvidos.

Qualquer aliança envolve concessões feitas pelos membros, de modoa permitir o trabalho conjunto. Quando era preciso enfrentar a URSS,os EUA submetiam-se a essas limitações. A questão é que, no cenáriodo pós-Guerra Fria, os Estados Unidos consideram as restrições comoincômodos desnecessários, preferindo agir sozinhos ou com gruposde países reunidos ad hoc – coalizões dos dispostos (coalitions ofthe willing). Nesse sentido, a experiência do Kosovo serviu deprenúncio para o comportamento americano após o 11 de setembro,em suas guerras contra o Afeganistão e o Iraque.

Mas Kosovo também é importante por outras razões. Primeiro, porquemarcou o primeiro ataque conduzido pela OTAN, e em uma missão– preservar a estabilidade em uma região periférica turbulenta –bastante diversa da contenção à URSS, para a qual foi criada: “dealiança defensiva, a OTAN foi transformada em uma organizaçãodita “de segurança”, isto é, intervencionista” (Achcar, 2003). A guerradeu origem a um debate sobre a possibilidade de a aliançadesempenhar um papel semelhante fora da Europa, em missões deataque ou de estabilização pós-conflito.

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Kosovo também foi importante por ter reafirmado uma divisão detarefas que já havia ocorrido na Bósnia: os EUA entraram com opoder militar maciço e a UE, com os esforços de longo prazo demanutenção de paz e reconstrução nacional.

A tentativa de formular uma política de defesa comum européia tem,no entanto, esbarrado em diversos problemas e avançado muitolentamente. Defesa comum contra o quê? A que custos? Para muitosdos países da UE, sobretudo os novos membros do Leste, a maiorameaça seria o ressurgimento do expansionismo russo e alemão – e,para impedir isso, contam com a hegemonia americana.

Simultaneamente ao conflito no Kosovo, as cúpulas européias emColônia e Helsinque levaram à proposta da criação de uma “força dereação rápida” da Europa um conjunto de tropas bem treinadas eequipadas, prontas para agir e independentes da OTAN. Essecontingente teria, a princípio, 60 mil homens – o núcleo de um possívelexército europeu.

No entanto, se os europeus precisam dos americanos para resolver osdilemas da segurança do Velho Continente, essa convivência está longede ser pacífica e consensual. Os conflitos nos Bálcãs já haviamdemonstrado a insatisfação com a divisão de tarefas do pós-GuerraFria. E as divergências só se acentuaram com a ênfase dos EUA nasnovas ameaças, em especial após Bush decretar “guerra ao terror”.

3) A OTAN diante das Novas Ameaças

Na década de 1990, as duas regiões de maior instabilidade na políticainternacional foram os Bálcãs e o Oriente Médio. Na primeira delas,EUA e Europa conseguiram agir em conjunto, apesar das muitasdivergências. Na segunda, as diferenças foram ainda maiores eagravaram-se após o 11 de setembro.

Analistas franceses como Gilles Andreani e Fréderic Bozo destacaramo conflito árabe-israelense como sendo a linha de fissura entre osaliados ocidentais. Os europeus rejeitam a política pró-Israel dosamericanos e pressionam pela criação de um Estado palestino como

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a única maneira de garantir a paz. Evidentemente, questõesdomésticas, como a população judaica dos Estados Unidos e osimigrantes muçulmanos na EU, são fatores determinantes dessas linhasdiplomáticas.

Os acordos de Oslo (1994), intermediados por Clinton, haviamdespertado esperanças de conciliação entre israelenses e palestinos,mas uma série de desdobramentos, como o assassinato do premiêIsaac Rabin, o fracasso da implantação do plano paz, a segunda Intifadae a eleição do linha-dura Ariel Sharon para primeiro-ministro de Israel,levaram ao retorno do conflito.

O segundo ponto de ruptura é a relutância da Europa em aceitar agravidade das novas ameaças, tais como o que os EUA chamam de“Estados Bandidos” (Iraque, Irã, Coréia do Norte, Síria) e oterrorismo, preferindo ressaltar problemas políticos e econômicos,como subdesenvolvimento, desemprego e degradação ambiental. Aspesquisas de opinião mostram que “os europeus não apenas se sentemmais seguros e menos ameaçados que os americanos, eles tambémsentem que os Estados Unidos são em parte culpados por suavulnerabilidade atual” (Kennedy e Bouton, 2002).

Esse é o cerne da divisão da Aliança. Enquanto os EUA se concentramnas novas ameaças, a Europa vê como maior risco à ordem mundial aação unilateral da superpotência sem rivais. Esse conflito já estavapresente nos anos 90, mas se intensificou no governo Bush devido àdecretação da guerra contra o terror e, ao mesmo tempo, pela posturaainda mais unilateral dos republicanos, em comparação com Clinton.

O dilema europeu após o 11 de setembro foi resumido por FrédericBozo (2002: 343) em uma pergunta: “como conceder aos americanosum apoio a curto prazo, sem um mínimo de visibilidade sobre suaestratégia a longo prazo?”. Dito de outro modo, era preciso dar umaresposta aos crimes de Bin Laden, mas como fazer isso sem assinarum cheque em branco que permitisse aos Estados Unidos utilizar aOTAN para impor sua própria agenda de expansão no Oriente Médioe na Ásia Central?

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A reação imediata aos atentados foi de solidariedade na Aliança. OLe Monde assinalou em manchete histórica no dia 12 de setembro de2001: “Somos todos americanos”. A OTAN traduziu esse sentimentoinvocando, pela primeira vez, o artigo V de seu tratado – os ataquesa Nova York e ao Pentágono eram considerados um ato de guerra aosEUA, e o princípio de defesa mútua colocava à disposição deWashington as tropas aliadas.

No entanto, os Estados Unidos rejeitaram o apoio e foram à guerrano Afeganistão com base em uma coalizão dos dispostos. Quando osinteresses nacionais vitais da superpotência entraram em jogo,Washington preferiu agir sozinho, sem as limitações impostas pelaOTAN. As lições do Kosovo entravam em prática.

À medida que a Doutrina Bush ganhava corpo, os europeus foram semostrando mais apreensivos com a guerra contra o terror. Diversosintelectuais manifestaram apreensão com o risco de o espírito decruzada americano provocar uma onda de extremismo político entre(ou contra) os 20 milhões de muçulmanos que vivem na UE. Ohistoriador inglês Timothy Ash destacou esse perigo:

“O jornaleiro de quem comprei os jornais de hoje é muçulmano. Ofarmacêutico local é muçulmano. A jovem trabalhando na faxina émuçulmana. Eles todos são pessoas corteses, amigáveis, altamentecompetentes, falando um inglês perfeito e, até onde posso ver,aceitando e sendo totalmente aceitos na sociedade britânica. Até o11 de setembro, nunca teria me ocorrido descrevê-los como’muçulmanos’, não mais de como eu descreveria o gerente doscorreios ou o vendedor de computadores como ‘cristãos’” (2001).

A realidade é mais sombria do que o sonho de integração étnico-religiosa. O próprio fato de os muçulmanos mencionados por Ash sóexercerem profissões subalternas demonstra isso. Violências eagressões contra os imigrantes islâmicos já existiam em grandesnúmeros antes do 11 de setembro. Após os atentados, a ascensão daextrema-direita em diversos países europeus comprovou o potencialeleitoral do ódio.

A crise detonada pela guerra ao Iraque, que teve seu ponto alto nasdisputas do Conselho de Segurança da ONU, repetiu o padrão de

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disputas anteriores – os EUA tiveram o apoio britânico e enfrentaramoposição dos franceses. Bush também contou com os aliados da “novaEuropa” dos países ex-comunistas e das nações ibéricas – em suma, aperiferia da União Européia.

A rápida acomodação obtida após o conflito dá alguma razão aKissinger, para quem as atitudes britânicas e francesas são menosantagônicas do que parecem à primeira vista, tratando-se, no fundo,de duas faces da mesma moeda – a necessidade de lidar com umpoder hegemônico muito maior:

“A Grã-Bretanha persegue seus interesses tornando a si mesma umaparte tão presente do processo decisório que desconsiderar suasopiniões é quase constrangedor. A França tem perseguido seusinteresses fazendo com que seja muito doloroso ignorá-los” (Kissinger,2001:50).

A urgência de se chegar a um entendimento com os EUA aumentouna mesma proporção dos gastos militares da superpotência. É muitodifícil criar um mundo multipolar quando o orçamento de defesaamericano pula de US$280 bilhões para US$400 bilhões, e a novaestratégia prevê lutar quatro guerras simultâneas, ao redor do mundo– quando os europeus sequer conseguem agir nos Bálcãs.

Os atentados contra Madri (11 de março de 2004) e Londres (7 dejulho de 2005) mostraram que a Europa também está vulnerável diantedo terror. A Al-Qaeda atacou os membros europeus da coalizão deapoio aos EUA. Tanto na Espanha quanto na Inglaterra ocorreramgrandes manifestações contrárias à guerra do Iraque, que contribuírampara enfraquecer os governos. A tentativa do primeiro-ministroespanhol em atribuir os atentados ao ETA foi desmascarada pelaimprensa e levou à sua derrota eleitoral. O novo premier, o socialistaZapatero, retirou as tropas espanholas do Iraque.

Os ataques a Londres chocaram a opinião pública por teremenvolvidos terroristas que eram cidadãos britânicos. A reação trágicada polícia britânica, que assassinou no metrô um brasileiro inocenteao ser confundido com um terrorista, contribuiu para o clima deinsegurança e medo de que o combate ao terrorismo enfraquecesse

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os direitos civis e as liberdades democráticas dos países europeus. Oimpacto das guerras travadas no Oriente Médio e na Ásia Centralchegou à Europa.

4) Conclusões

O fim da URSS e da Guerra Fria não acabou com a OTAN, masprovocou grandes transformações na aliança, que incorporou os paísesda Europa Oriental e, em lugar de uma coalizão defensiva contra oPacto de Varsóvia, se tornou uma força intervencionista, entrandoem ação na guerra do Kosovo. Contudo, alguns de seus objetivosforam mantidos, como a contenção à Alemanha e à Rússia, impedindoque esses países desenvolvessem políticas externas expansionistas naEuropa.

Na última década aumentou o fosso entre os EUA e seus aliadoseuropeus. As linhas de fissuras da Aliança nos anos 90 foram agravadaspelo 11 de setembro e pela guerra ao Iraque. O Oriente Médiopermanece uma zona de turbulência, tanto pelo conflito árabe-israelense, quanto pela ocupação anglo-americana de um dos maiorespaíses da região.

O unilateralismo da superpotência ganhou força com as rápidasvitórias militares. E a UE e a OTAN, após sua expansão para leste,ficaram mais divididas do que nunca em relação aos Estados Unidos.

A situação na Aliança é, em resumo, de instabilidade. Os ataquesterroristas contra Inglaterra e Espanha mostraram que os EUA nãosão mais capazes de garantir a segurança da Europa, ao contrário doque havia ocorrido durante a Guerra Fria. Pode-se inclusiveargumentar que o apoio ao expansionismo militar dos Estados Unidosapenas gerou mais ameaças e preocupações aos aliados europeus.Como superar as divisões da OTAN e formular uma agenda desegurança cooperativa? Eis o desafio que se coloca para a diplomaciados países da Aliança Atlântica na primeira década do século XXI.

(Recebido para publicação em novembro de 2005)

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Max Weber e Karl Mannheim:Duas Perspectivas Sociológicas do

Problema do Conhecimento

PAULO HENRIQUE S. FERREIRA PIRES GRANAFEI*

Resumo

O artigo compara as abordagens de Max Weber e Karl Mannheim aoproblema do conhecimento. Para ambos, a questão central é a relaçãoentre visão de mundo e estratificação social, com ênfase na relaçãoentre ciência e política. Weber não vê diferenças de posicionamentocomo estritamente determinadas por interesses de classe, remetendo-as primordialmente a valores. O conhecimento, neste caso, conservariasua validade universal. Mannheim explica as diferenças intelectuaispor interesses de classe, atribuindo-lhes uma dimensão conceitual,que relativiza a validade do conhecimento.

Palavras-chave: conhecimento; interesses; valores

* Bacharel e Licenciado em História pela PUC-Rio, mestrando em sociologia peloIUPERJ, bolsista FAPERJ. E-mail: [email protected].

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Em seu alvorecer no século XIX, as ciências sociais depositaramuma fé ilimitada no poder da razão de atingir verdades absolutas.Percebia-se pela primeira vez, naquele momento, que o conhecimentorelativo à vida social tinha um caráter socialmente determinado,principalmente no que dizia respeito à política. Mas pretendia-sesuperar esta falha através de uma ciência livre de pressuposições.Predominava, então, a crença na possibilidade de verdadesuniversalmente válidas, aceitáveis em quaisquer circunstânciashistórico-sociais, independente de posicionamentos políticos. Navirada do século XIX para o XX, esta postura estritamente objetivistarecua, quando se reconhece como impossível um conhecimento livrede condicionamentos sociais. O que se aponta, pelo contrário, é quetodo e qualquer conhecimento não apenas está sujeito à influência decondições sociais como também que estas são imprescindíveis para oseu surgimento. Nesta linha, o presente trabalho pretende examinarcomparativamente duas contribuições seminais para a constituiçãoda sociologia do conhecimento: as de Max Weber e Karl Mannheim.

Max Weber

No caso de Max Weber, não se pode falar de uma sociologia doconhecimento em sentido estrito. O que existe em sua obra sãoreflexões dispersas sobre a determinação social do conhecimento emescritos metodológicos e sobre religião, que não constituem um corpounificado e sistemático de teoria acerca do assunto. A reconstituiçãoque se segue busca construir artificialmente este corpo a partir de seistextos clássicos: “A Psicologia Social das Religiões Universais”,“Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções”, “A Ciência comoVocação”, “A ‘Objetividade’ do Conhecimento na Ciência Social e naCiência Política” e “O Sentido da ‘Neutralidade Axiológica’ nasCiências Sociais e Econômicas”.

Segundo Weber, explicar o conteúdo doutrinário de uma religião peladeterminação exclusiva dos interesses ideais e materiais de um estratosocial é perder de vista a complexidade do jogo de forças que definemsua conformação. É inegável a importância da adesão de certos grupos

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na propagação de um credo religioso e a influência de seu estilo devida sobre as formas que a religião assume. Mas independente de talinfluência, as doutrinas também conquistam adeptos em outrascamadas sociais.

Assim, a relação entre condições de vida e confissão religiosa, paraWeber, não é exclusiva, sem contudo deixar de ser relevante. Asteodicéias do sofrimento, neste esquema, não são simplesmente formasde os dominadores justificarem seu favorecimento, como tambémnão são pura expressão do ressentimento dos dominados. Seriam ummodo de conferir inteligibilidade à injustiça do mundo, tanto parauns quanto para outros. Mas, ao mesmo tempo, verificar-se-ia umadisseminação maior destas entre os oprimidos, devido à sua posiçãosocial. No grupo dominante, a situação privilegiada justifica-se poruma superioridade intrínseca do seu ser, enquanto os dominadosaceitam sua inferioridade dando-lhe o sentido de uma missão divina.

As teodicéias confeririam à experiência do sofrimento – seja a fome,a morte, a seca, a doença, a guerra etc. – uma explicação racional,um “sentido”, prometendo a salvação para os injustiçados, cujoconteúdo varia de acordo com os grupos aos quais se dirigem. Webero afirma para, mais uma vez, tornar mais complexas as relações dedeterminação. Se as religiões conquistam preferencialmente certosgrupos sociais, não significa que surjam no seu seio. As aspirações deum dado estrato só se traduzem em doutrinas religiosas, sistematizadase racionalizadas em uma “imagem de mundo” coerente, trabalhorealizado por um estrato social particular: os intelectuais. No entenderde Weber, os interesses têm um papel decisivo no sucesso de umareligião, mas não produzem idéias por si mesmos, conseguem justificar-se e legitimar-se apenas dentro dos “limites do pensável” – para utilizara expressão de um historiador –, que são demarcados pelosintelectuais. Os grupos sociais escolheriam os caminhos que seguem,mas as opções de que dispõem seriam dadas pelos construtores de“imagens de mundo”.

Estes diriam “de que”, “para que” e “como se pode” ser salvo. Ditariamuma “metodização racional da vida” que parte de pressupostosirracionais tomados como dados. A determinação de tais pressupostos

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dependeria de interesses, social e psicologicamente condicionados,de cada estrato representativo de um modo de vida. Portanto, avariabilidade dos bens de salvação seria devida às diferenças de grupodominante em cada religião. Onde houvesse o predomínio deintelectuais, a contemplação ocuparia este lugar. A hierocraciapreocupar-se-ia em preservar seu monopólio administrativo sobre osbens de salvação, sendo hostil a qualquer tentativa de obtê-losisoladamente. O funcionário político veria com receio toda a buscade bens de salvação, por seu caráter pouco prático. Sua tendênciaseria para uma religiosidade utilitária, que estipularia deveres rituaise oficiais. O guerreiro tenderia a enfatizar a cegueira do destino e a sevoltar para interesses mundanos, pela extrema incerteza a que submetesua vida no combate. Os camponeses, pelo seu vínculo econômicodireto com os ciclos naturais, teriam propensão a uma religiosidademágica, com o fim de dominar as forças da natureza. Os estratosurbanos, compostos pela burguesia ocidental e seus equivalentesfuncionais – artesãos, comerciantes, empresários domésticos etc. –,apresentariam a maior maleabilidade de opção religiosa, mas nãodeixariam de possuir suas afinidades eletivas com idéias específicas.Habituados por força de ofício ao cálculo econômico e técnico,poderiam desenvolver uma ética racional da conduta. Seu modo devida, sem relação direta com os ritmos da natureza, abriria espaçopara o abandono de procedimentos mágicos tradicionais.

Sob toda esta diversidade, permaneceria, no entanto, um elementocomum a todas as religiões “proféticas”: uma hierarquia de valores.As várias esferas de valor entrariam em conflito, exigindo umaracionalização das doutrinas religiosas. A impessoalidade do amoruniversal chocar-se-ia com o mesmo princípio na esfera econômica.Relações impessoais, se baseadas no amor, impõem solidariedadeincondicional. Se baseadas na troca econômica, produzem o efeitoinverso, com a busca do ganho individual. Em razão disso, as religiõesde irmandade universal condenavam a posse de bens materiais, criandoum impasse para seus praticantes. A solução poderia vir, por exemplo,no abrandamento desse imperativo, concedendo o direito à posse debens indispensáveis, ou pela permissão de recolher donativos. Demodo análogo, o amor universal excluiria a possibilidade da guerra,

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contrariando as obrigações de lealdade política. A contradição poderiaser superada por um espírito cruzadista, que apregoasse a guerra santaaos infiéis. Ou poderia ser retirada do fiel qualquer responsabilidadepor suas ações sob ordem do Estado, permitindo-lhe também resistirpassivamente. Uma solução alternativa seria a “ética orgânica”, queatribuiria um caráter santo ao desempenho funcional de cada estratosocial. A hierarquia social seria preservada por seu imbricamento comuma hierarquia religiosa. Algo semelhante poderia suceder em relaçãoà esfera erótica: como válvula de escape aos impulsos da libido, acópula passava por uma santificação quando submetida a certasrestrições, como o casamento e finalidades procriativas.

Portanto, em cada instante de sua vida, o indivíduo age sem ter derefletir para ponderar sobre os critérios de suas escolhas. Tudo o quetem a fazer é ponderar a respeito do rumo mais adequado para aconsecução de dados fins, que para ele já estão estabelecidos. Odomínio da ciência teria acabado com este estado de coisas; teriafeito o conflito entre as esferas de valor adquirir uma nova dimensão.O longo processo de intelectualização, por que vem passando ahumanidade há milênios, atingiria com a ciência o seu ápice. O homemmoderno não estaria muito acima do homem “primitivo” em termosda compreensão da realidade à sua volta. Mas lhe seriaindiscutivelmente mais fácil obter esclarecimento sobre qualqueraspecto particular, dada a quantidade de conhecimento acessível nasociedade em que vive. O mundo moderno teria a seu dispor meiostécnicos em uma escala sem precedentes. Não é mais preciso lidarcom forças mágicas, cercadas de mistério, para dominar a natureza.Nos dias de hoje, isto seria alcançável por cálculos racionais: o mundofoi desencantado pela ciência.

Pondo de lado, junto com a magia, o milagre e a revelação, a ciênciaretiraria do mundo seu sentido racional, sem ser capaz de lhe oferecerum substituto à altura. Dados empíricos, por si mesmos, jamaisforneceriam valores segundo os quais orientar a existência. As ciênciassociais poderiam explicar o funcionamento da sociedade, mas nuncajustificá-lo moralmente. Assim, a ciência tornaria inviável qualquerhierarquia de valores, seu domínio acarretando uma experiência de

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“perda de sentido”. Os antigos deuses, adorados pelo politeísmo,teriam retornado sob a forma impessoal de esferas de valor emconflito, que a todo momento reivindicariam para si a lealdade dosindivíduos.

Por sua incapacidade de gerar valores, a ciência não estaria apta adizer aos homens que orientação política seguir – tal decisão seriafeita de acordo com valores, aceitos ou rejeitados em uma baseirracional. Não caberia ao cientista apontar o que é certo ou errado,o que é, ou não, justo. Ainda que se lhe oferecesse uma definiçãoformal de justiça, estaria além de seu alcance estabelecer sua aplicaçãocorreta. A título de ilustração, o imperativo da igualdade deoportunidades não diz por si o que é ou deixa de ser igual; não revelao conteúdo da idéia de igualdade. Com base unicamente nesteprincípio, não seria possível decidir se os mais talentosos mereceriamas mesmas chances dos menos dotados, ou se o talento natural deveser interpretado como fator de desigualdade, a ser corrigido por umaoferta maior de oportunidades ao fraco.

Quando toma por objeto o normativamente válido, a ciência não otem por norma, mas por um fato: “certos homens consideram corretoagir de determinado modo”. Não interessaria à investigação se areferida cultura seguia normas corretas ou não, mas em que medidaconseguia fazê-las valer. A operação do cientista consistiria empenetrar, empaticamente, formas de pensar e sentir que têm porincorretas, de modo a compreender sua lógica interna. Sem estasuspensão do juízo, permitindo-se atribuir as diferenças entre os seuspadrões e os de seu objeto a falhas ou decadência, corre o risco defracassar em sua tarefa. Muitas vezes, o que se exige de seu trabalhoé perceber o sentido daquilo que soa absurdo em nossa cultura comoproduto de uma orientação diversa, de uma diferença qualitativa devalores, não de uma diferença quantitativa de capacidade.

Porém, mesmo neutra axiologicamente, a ciência não poderiaprescindir de valores para existir. Juízos avaliativos podem sercientificamente válidos, constituindo, inclusive, um dos elementosque definem o caráter deste tipo de conhecimento. Não seria possível

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extrair princípios normativos da pesquisa empírica, mas a sua presençaé o que orienta todo o trabalho neste campo.

As ciências da cultura não estariam aptas a emitir juízos baseados emnormas extraídas das leis de funcionamento social. Para Weber, deduzira realidade a partir de um conjunto sistemático de proposições causaisseria um ideal irrealizável. Primeiramente, supondo o conhecimentodestas leis, restaria ainda o problema de identificar os fatores históricosque nelas se enquadrariam e a sua combinação específica em dadasituação. Mas verificar-se-ia, na prática, que o mais simples fenômenosofreria a determinação de infinitas causas. Nenhuma descrição darealidade seria capaz de esgotar a sua complexidade. Nenhum estudocientífico escapa à necessidade de selecionar aquilo que considerarelevante para sua explicação. Porém, apesar da impossibilidade deestabelecer leis, regularidades e generalizações continuariam tendo asua importância. A diferença estaria no fato de serem os meios dapesquisa, ao invés de seu fim. A teoria deveria servir à pesquisaempírica, e não o contrário, como se tende a pensar.

É o que fica claro na definição que Weber dá para o “tipo ideal”, aferramenta conceitual que preconiza como adequada às ciências dacultura. O pesquisador jamais estaria em posição de levar a cabo umareprodução exata da realidade histórica. Neste âmbito, os fenômenosmanifestar-se-iam de modo vago e difuso, com freqüência variável,resistindo a qualquer generalização rígida. Restaria ao pesquisadorisolar, dentre este emaranhado de dados, certos traços específicospara construir uma imagem conceitual coerente de seu objeto. Estaseria uma idéia “utópica”, que não corresponderia ao mundo concreto,servindo apenas para torná-lo inteligível. Se a sociologia deveria operarcom um processo dessa ordem, seria inevitável que emitisse juízos devalor. A seleção dos elementos causalmente relevantes suporia umaposição valorativa, que atribuísse um determinado sentido aosacontecimentos. A valoração aqui não diria respeito ao caráterpreferível ou não de uma ação, mas aos efeitos que lhe são atribuídos,à sua relevância dentro de um encadeamento causal. O indivíduo sóé capaz de compreender um objeto a partir de uma posição em facedo mundo, que deriva de sua inserção em uma cultura. Quando um

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aspecto da realidade é selecionado como digno de ser conhecido,não deve isso à sua natureza intrínseca, mas ao ponto de vista dosujeito – o que significa um interesse relativo do conhecimentocientífico, sem que isso implique relativizar sua validade.

Uma demonstração científica, portanto, não perde seu caráteruniversal por sua orientação segundo valores. E agua. seja ambsegundaaltern gue a alternativa. demonstração de inconsistências lógicas emum sistema de proposições valorativas não constituiria exceção à regra.A avaliação crítica de posições axiológicas seria justamente a funçãoprincipal das ciências da cultura. Pelo confronto teórico de diferentesideais, seria possível tornar mais claro seu conteúdo, suas motivaçõese suas implicações, permitindo posicionamentos mais coerentes. Odebate passaria a se travar dentro de termos comuns, o que seria algomuito distante de um consenso, de uma síntese dos pontos de vistaou de uma posição intermediária. O exame da realidade empíricapode provar que uma ação prática motivada por certa posição devalor pode ter efeitos indesejáveis de seu ponto de vista; pode mostrarsua inexeqüibilidade por falta de meios suficientes; ou ainda anecessidade ou conveniência de se optar por certos meios, em lugarde outros, para a consecução de determinado fim.

Em face de repercussões imprevisíveis, o ideal pode ser abandonadoou adaptado, decisão a ser tomada com base exclusiva em valores,mas motivada por uma constatação empírica. Na opinião de Weber,muitas controvérsias políticas não teriam sentido, por resultarem deuma incompreensão de que certos valores não são partilhados, demodo que não haveria um fim unívoco desejado por todas as partes.

A ciência prestaria inestimável serviço à política, nesta matéria,esclarecendo as diferenças de posicionamento e os constrangimentosa que a realidade submete a consecução de seus objetivos. Mas nãopoderia oferecer mais do que isso, não se devendo esperar dos grandescientistas que fossem líderes políticos.

Karl Mannheim

Minha exposição baseia-se na obra mais famosa de Mannheim (1956),Ideologia e Utopia. De acordo com Mannheim, o homem só pensa

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enquanto membro de um grupo, sem pretender com isso que houvesseuma mente coletiva. O conhecimento não é o produto da apreensãoda realidade por um indivíduo com capacidades inatas e comuns;origina-se, antes, de interações sociais, na cooperação para solucionarproblemas trazidos pela vida em certo grupo, cuja atenção priorizadeterminados aspectos em detrimento de outros.

Como corolário de tal concepção, temos que, a diferentes grupossociais, estão associados distintos modos de pensamento, que divergemnão apenas em seu conteúdo, mas até mesmo em suas basescategóricas. Diferenças dessa ordem seriam verificáveis não só entrenações ou etnias, como também entre estratos sociais, podendocoexistir em proximidade física por séculos. O abalo das tradições sóse dá quando a democratização produz ascensão social em escalasuficiente para que formas de pensamento e experiência incompatíveischeguem a coexistir em uma mesma consciência individual. Em todasociedade complexa, um grupo especial tem a tarefa de produzir umainterpretação do mundo – são as camadas intelectuais, tambémconhecidas como intelligentsia. No mundo medieval, a função eradesempenhada pela Igreja, composta por um grupo de posição estável,bastante organizado e de acesso restrito, que detinha o monopólio datransmissão e produção de verdades. A estabilidade de sua condiçãoera refletida na estabilidade de sua visão de mundo, que possuía umcaráter dogmático. Os tempos modernos são marcados pela aberturadesta “casta” a intelectuais livres, de origens sociais as mais diversas,ensejando confrontos entre visões de mundo. Em meio aos conflitosde classe, o novo tipo de pensador vai disputar com seus pares asimpatia dos grandes contendores sociais, levando a umaintelectualização da política e a uma politização da vida intelectual.No debate político, passa-se a buscar a vitória sobre o adversário pelarefutação de seus pontos de vista em termos científicos, visandoeliminar as bases tanto sociais quanto intelectuais de sua existência.Os contestadores da ordem estabelecida introduzem o conceito deideologia: a visão dos grupos dominantes é desqualificada porescamotear interesses inconscientes na preservação do status quo. Osagredidos, em contrapartida, respondem lançando a mesma acusaçãosobre os agressores. O resultado é que, a partir de então, as crises daciência e da política se confundem.

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O esforço permanente de desmascarar as verdadeiras intenções dooponente acabou por solapar a confiança do homem no potencial deseu conhecimento. O que a sociologia do conhecimento tem a ofereceré a explicitação dos conteúdos inconscientes que informam opensamento, abrindo a possibilidade de um maior controle destespela autocrítica. Mannheim aponta para o paradoxo da situação: omaior conhecimento das leis de determinação social traz maioreschances de escapar ao seu jugo.

Para atingir seu propósito, reelabora o conceito de ideologia, ao qualopõe um novo, o de utopia1. Distingue quatro modalidades possíveisdo daquele. Primeiramente, o conceito particular de ideologia: seriamidéias e representações como disfarce para interesses, conscientes emmaior ou menor grau. Teria por objeto apenas estas idéias específicas,operando no âmbito psicológico e supondo a possibilidade de umarefutação com base em critérios de validade objetiva comuns aos doispartidos. Em oposição a este conceito tem-se o conceito total deideologia: o conjunto de idéias e estruturas mentais próprios a umgrupo ou uma época. Refere-se à totalidade de seus sistemasconceituais, e não tanto ao seu conteúdo, limitando-se a relacioná-los com uma dada situação social, sem remetê-los a um interesseespecífico ou intenção deliberada de enganar. Em ambas asformulações, é manifesta a desconfiança na capacidade do adversáriode dizer o que de fato pensa, com a diferença de que o conceito totaltrata não do indivíduo, mas do grupo, do sistema de pensamento nasua totalidade, que não é formado pela média aritmética ou pelosomatório das idéias individuais, as quais são objeto do conceitoparticular. Mannheim distingue ainda dois outros conceitos opostos.O conceito especial de ideologia restringe a análise de determinantessociais apenas ao adversário, não incluindo a si mesmo, ou apenas aum grupo específico e não a todos, tal como o faz a concepção geraltotal de ideologia. Esta última marca a passagem da teoria da ideologiapara a sociologia do conhecimento.

Um resultado possível é a adoção de uma postura relativista, querejeita qualquer forma de conhecimento dependente de condiçõessociais. Mas haveria ainda outra opção: o relacionismo, que também

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considera impossível, em certos setores, um conhecimento absoluto,independente da posição ou dos valores do sujeito, sem contudo tomarpor inválido todo o saber socialmente determinado. Não lhe interessasaber qual partido tem razão, mas obter, por via indireta, uma verdadeaproximativa, mais fértil que uma verdade lógica diretamenteacessível. É preciso sair dos limites estreitos de um ponto de vistaespecífico, para reconhecer os significados parciais de cada grupo emsuas referências mútuas, de modo a alcançar a totalidade significativado período ou cultura.

Mannheim coloca o problema da falsa consciência em uma novachave: não se trata mais de incapacidade absoluta de compreender arealidade, mas de incapacidade de se adequar às mudanças ocorridasna realidade que a originara, de captar os elementos causalmentesignificativos em uma estrutura histórica. Segundo Mannheim, umateoria errônea seria aquela cujos conceitos e categorias impedem aadaptação do homem, que lhe ocultam o verdadeiro sentido dosacontecimentos e da conduta. Surge, então, o problema de saberquando um modo de pensamento tradicional já não é mais adequadoa certo campo de experiência. Assim como acontece nas ciênciasnaturais, fatos novos levam à revisão teórica das ciências sociais. Avisão da totalidade não seria uma verdade eternamente válida, massim uma assimilação de pontos de vista particulares em um horizonteintelectual ampliado, que, com o passar do tempo, também tenderiaa ser superada.

Uma visão totalizante viria a suprir aquilo que, para Mannheim, seriaa maior deficiência intelectual da época: a falta de uma Ciência daPolítica. Disciplinas como a História, a Estatística, a Teoria Política, aSociologia, a Psicologia Social teriam utilidade para o político, masseriam insuficientes para orientá-lo na ação, porque tratam a sociedadee o Estado como produtos acabados, ao passo que a vida política lidacom eles em desenvolvimento, exige que se saiba agir de acordo coma situação única do momento. Mannheim recoloca a distinção emtermos mais teóricos: toda situação social abrigaria uma esferaracionalizada, com processos estabelecidos e rotineiros para a soluçãode problemas que se repetem ordenados, havendo também uma esfera

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irracional que a circunscreve. A conduta, para ele, só existe no domínioainda não racionalizado, no qual as situações forçam a decisões nãosujeitas à regulação, trazendo à baila o problema das relações entreteoria e prática. As duas fontes maiores de irracionalismo na estruturasocial seriam a competição sem controle e a dominação pela força,em torno das quais se acumulariam os elementos irracionais maisprofundos que denominamos emoções.

Sob esta perspectiva, Mannheim procede a uma análise das formasde pensamento segundo cinco tipos ideais: o conservantismoburocrático, o historicismo conservador, o pensamento liberal-democrático burguês, o socialismo-comunismo e o fascismo. A marcado conservantismo burocrático seria sua tendência a reduzir todoproblema político a um problema administrativo, por sua esfera deatividade só existir dentro de leis já estabelecidas, cuja validade oburocrata toma por axiomática. Esquece, contudo, que toda normalegal corresponde aos valores de um grupo social específico, que nadatêm de universais. O conservantismo histórico, ao contrário, confereextrema importância à esfera irracional, imprevisível e não organizada,resistente a qualquer tipo de planejamento ou controle, que acreditaser a política. Para se mover nesse ambiente, considera necessário uminstinto inato, que só seria adquirível ao custo de muita experiência,e constituiria atributo próprio de uma classe aristocrática, que o cultivapor gerações. O traço distintivo do pensamento liberal-democáticoburguês seria seu intelectualismo. Esse pensamento não perceberiaos elementos fundados na vontade, no interesse e na emoção comoirredutíveis à razão. Propõe uma política científica, que se resumiriaa alcançar a única série de fins que reconhece como legítimos,condenando como juízos de valor a expressão de quaisquer objetivosque não os seus próprios. Dentro desse espírito, cria com a livreconcorrência uma esfera irracional de conflito. Julga-a solucionadano parlamento, quando, na verdade, o máximo que consegue ésubmetê-la a racionalização formal – o que jamais constituiria umasolução por si só. O socialismo-comunismo é a primeira forma depensamento a reconhecer que não existe “teoria pura”, que toda teoriatem um enraizamento social, sem que isto implique necessariamenteuma fonte de erros; o ponto de vista coletivo é muitas vezes a única

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via de acesso possível a certos conhecimentos. Considera impossívelqualquer cálculo apriorístico de como será ou deverá ser o futuro,operando dentro de um horizonte de previsibilidade muito limitado.No seu entendimento, a teoria e a prática mantêm uma relaçãodialética, os desenvolvimentos teóricos acompanham o desenrolarda história: em um primeiro momento, em função da realidade,produz-se uma teorização, que conduz a uma ação, cujo sucesso oufracasso em transformar o mundo exige uma revisão da teoria. Omarxismo retira sua força da compreensão da relação determinanteda estrutura econômica com a social e desta com a ideologia. Seumodo de conceber a ação política no processo histórico sintetiza ointuicionismo conservador e o racionalismo liberal. Foi capaz deproduzir uma teoria racional sobre aquilo que o historicismoconservador tinha por puramente irracional, mas sem ignorar oselementos de irracionalidade e impulsividade, justo dos quais tentatomar partido. Se os liberais vêem a história como progresso, osmarxistas como dialética e os conservadores como intuição, os fascistasrejeitam qualquer interpretação da história por terem-na comoabsolutamente privada de sentido. Para o fascismo, o que faz a históriaé a ação do momento por iniciativa de uma elite, o conhecimentoracional só tendo valor como meio de despertar a paixão da massaguiada por um líder. Fora o conhecimento da psicologia das massas,a única forma de orientação possível na política é a intuição. Essaexaltação do ativismo e do irracionalismo seria uma ideologia própriade grupos golpistas, estranhos à camada de líderes liberais burguesesou socialistas, que aguardam a chance em meio à crise para ainstauração de uma ditadura. O esquema líder/massas seria própriode elites ascendentes, preocupadas apenas em tomar o lugar das velhaselites, sem qualquer alteração no sistema. Sua visão confunde comuma condição permanente a circunstância específica deembaralhamento das relações e da consciência de classes que produza massa, composta de indivíduos sem orientação de classe, que abrecaminho para a ditadura. A crise da estrutura de classes de fato existe,mas estas não deixam de existir, o que muda é sua composição. Oespírito anti-histórico do fascismo corresponde a uma posição daburguesia já consolidada, que perdeu a capacidade de apreender osentido do processo histórico porque este já não lhe interessa mais.

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De acordo com Mannheim, as divergências entre esses modos depensamento são devidas a mais do que diferenças nos fatosselecionados, atingindo o nível das categorias e modos de organizaçãoda experiência. Conseqüentemente, uma síntese verdadeira só seriaalcançável operando além dos conteúdos sobre as próprias bases dopensamento. Se toda visão de mundo é produto de uma posição social,a síntese não constituiria exceção à regra, mas seu caráter peculiarexigiria um grupo em condições inteiramente diversas dos demais.Seria necessário um estrato relativamente livre, sem classe e de posiçãopouco definida: na expressão que Mannheim toma de empréstimo aAlfred Weber, uma “camada intelectual sem laços sociais”. Este grupoteria uma composição heterogênea, incluindo membros de todas asclasses sociais que, unificados pela instrução comum, formariam umespaço homogêneo para o embate de idéias. A indefinição de suacondição lhes permitiria fazer escolhas políticas pautadas por critériosintelectuais, independente de sua posição de classe, produzindo umasíntese sem que haja um partido integrado. Não lhes caberia ditar àsociedade que rumo tomar, mas antes preparar o caminho para umatal decisão, que jamais poderia ser ensinada. Tudo o que poderiamfazer seria orientar a escolha, pela compreensão das relações entrecertas posições sociais e políticas – o que já é de muita valia.

Em oposição à ideologia, Mannheim introduz um novo conceito, autopia. Por utopia estaria entendida uma orientação que transcendea realidade rompendo com a ordem vigente, enquanto a ideologiatranscenderia sem rupturas. Todo período histórico conteria idéiastranscendentes, mas que estariam de acordo com sua concepção demundo, sendo muito raras idéias congruentes com a realidade. Namaioria dos casos, os homens agiriam orientados por idéias que seriamdesvirtuadas pela prática, nunca se realizando de fato, como, porexemplo, o amor cristão. Esse comportamento ideológico seriaexplicável pela força de certos axiomas em uma cultura, os quaisimpediriam o indivíduo de perceber a inconsistência de suas açõescom suas idéias; pelo auto-engano, em uma situação na qual odespertar para a contradição fosse possível, ou ainda, pela intençãodeliberada de enganar os outros, mesmo tendo consciência do erro.O que distingue a utopia da ideologia é seu poder transformador, que

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produz ações efetivamente de acordo com as idéias que as motivam.Todavia, essa distinção não é absoluta, pois o enquadramento dentrodo conceito de utopia ou ideologia dependerá do estágio dedesenvolvimento histórico. Os inimigos da utopia haverão de atacá-la como irrealizável em princípio, independente das circunstâncias,quando, muitas vezes, acontece de sua irrealidade ser relativa à ordemvigente. Uma dificuldade adicional para a análise deriva do fato de,na prática, utopia e ideologia nunca aparecerem isoladas em estadopuro. A distinção poderia ficar mais clara adotando-se o critério darealização; seriam utópicas todas as idéias que depois vieram a serealizar, demonstrando não serem representações deformadas de umaordem passada ou somente potencial. Só cabe falar em utopia defato, a partir do momento quando as idéias impregnam a mentalidadeda época como um todo, atingindo, mais do que seus conteúdos, aspróprias formas de experiência, ação e perspectiva. Mesmo dentroda utopia, existem configurações e estágios diferentes. Umacompreensão profunda desse ponto é possível pela análise daconcepção de tempo resultante de suas esperanças, aspirações epropósitos, que conferem sentido tanto ao passado quanto ao futuro,integrando-os em uma totalidade significativa.

O primeiro estágio da mentalidade utópica teria sido o quiliasmoorgiástico dos anabatistas. Em decorrência da opressão das classesbaixas, a política sofre uma espiritualização, com a transferência deaspirações extramundanas para o mundo. Nesse sentido, o quiliasmodá início à política moderna, em que todas as classes lutam porobjetivos seculares, sem aceitarem a ordem vigente de modo fatalista.Desde então, as classes baixas foram se tornando cada vez mais omotor do processo social, em um progressivo despertar de suaautoconsciência. Mesmo seus opositores tiveram de levar em contasuas idéias, nem que fosse para atacá-las – não é outra a origem dopensamento conservador. Contudo, foram energias psíquicas deenraizamento muito mais profundo que as idéias que lhe deram seuimpulso. Ao quiliasta interessa o presente, que oferece a brecha paraa irrupção no mundo exterior das forças interiores que otransformarão. Para ele, a experiência espiritual confunde-se com asensitiva e a revolução não é meramente um meio, é um valor em si.

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O estágio seguinte de desenvolvimento da utopia é o humanitarismoliberal, que contrapõe a idéia à ordem existente. Na visão liberal, aidéia não é o conceito platônico, que explica a realidade, é uma normaideal, um objetivo formal para orientar o movimento de progressoinfinito. Seu ideal supremo é o desenvolvimento de umaindividualidade absolutamente livre de determinações econdicionamentos, conquistada pela participação na vida econômica,política e intelectual, garantido por uma ordem que se baseia emfundamentos institucionais. Essa preocupação com normas ideaisacaba fazendo com que se desligue da realidade concreta e material,de modo que o liberalismo peca por não reconhecer ao poder e àviolência sua devida importância, deixando de compreender o realproblema da vida em sociedade. À primeira disposição qualitativa dahistória pelo quiliasmo, o liberalismo contrapõe outra, de sentidoinverso, sem imediatismo, que pensa em um processo evolutivo. Cadaestrutura de consciência expressa uma estrutura histórico-socialprópria: ao quiliasmo corresponde a convulsão do fim da Idade Média,quando, em meio ao acirrado conflito de classes, era difícil às idéiasse cristalizarem. Ao liberalismo corresponde uma classe médiaeducada, que põe a base da experiência no cultivo do espírito. Amentalidade conservadora, por princípio, não produz teoriaespontaneamente. Seu conhecimento consiste em orientaçõescostumeiras para lidar com situações práticas. O que torna conscientesas concepções que emprestavam sentido à ação de modo inconscienteé o ataque das classes baixas em ascensão, forçando a uma defesaexplícita e racional desses valores. Mannheim considera um traçofundamental do desenvolvimento intelectual o fato de os termos dodebate serem ditados pelo antagonista mais recente, obrigando o maisantigo a se adaptar. Este é o sentido do esforço dos intelectuaisconservadores, em especial o de Hegel, ao explicitar, no âmbito dasidéias, o significado de atitudes há muito já firmadas na prática. Aidéia hegeliana é algo completamente diferente do que fora a idéialiberal: a norma coincide com a realidade existente, não sendo umideal formal, mas tendo um conteúdo claro nas leis vigentes do Estado.Não deixa de haver, porém, uma tensão entre idéia e existência, graçasà necessidade de discernir o essencial a ser preservado na respostaaos problemas do presente, que guardam sempre algo de novo e

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inesperado. O mesmo espírito que modelara as normas no passadoserviria como guia adequado para a ação no presente, sendo suasorientações perceptíveis apenas subjetivamente, por um métodomorfológico e nunca por cálculos racionais. Nessa concepção, opassado adquire importância capital como formador de valores, cujaexistência, por si mesma, os legitimaria, dado ao fato de serem ofruto de um processo longo e gradual de amadurecimento. O últimoestágio da utopia seria o socialismo-comunismo, no qual estariamsintetizados todos os anteriores. Compartilha com o liberalismo e acrença na realização da igualdade e liberdade em um futuro remoto,com a diferença de situá-la em um momento definido do tempo, ocolapso do capitalismo. O que significa dizer que esses princípios nãohaverão de vigorar após uma evolução progressiva, orientada pelaidéia normativa; mas sim após uma ação orientada por uma idéiaproduto de investigação da realidade prática, que apontaria ascondições favoráveis à efetivação da mudança pela ruptura. O sensode determinismo conservador é posto ao serviço da açãorevolucionária, indicando os limites estruturais com os quais develidar. Neste particular, os processos produzem as idéias mais do quesão produzidos por elas. O marxismo teria sido a primeira forma deutopia dotada de um verdadeiro sentido temporal, não limitado aopassado como o conservadorismo, nem ao presente como o quiliasmo,nem ao futuro como o liberalismo. Captaria melhor que seuspredecessores as relações entre estas dimensões temporais, sabendodiferenciar o futuro remoto do imediato. Identifica os determinanteshistórico-sociais do passado, que reduzem a sua margem de liberdade,mas na prática a aumentam, quando reconhece suas limitações e ascondições realmente propícias para a ação no presente.

Mas para a sociologia do conhecimento, Mannheim acha preferívelabandonar a teoria da ideologia. O conceito particular de ideologiadenuncia a falsidade do pensamento, quando o objetivo da sociologiaé estabelecer relações entre estruturas sociais e estruturas mentais,apontando de que meio social um modo de conhecer é produto e nãoa sua incorreção. A sociologia do conhecimento opera no âmbito doconceito total de ideologia, para o qual Mannheim propõe o nomealternativo de “perspectiva”, despido de conotações pejorativas.

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Caberia falar em determinação social de uma perspectiva, em quefosse constatável a influência de fatores independentes da naturezado objeto e de caráter não estritamente lógico, situação na qual certomodo de apreender a realidade só seria explicável em função dedeterminadas experiências coletivas. Se a validade de uma idéia nãodependesse de circunstâncias histórico-sociais, poder-se-ia dizer queexiste sempre um progresso do conhecimento, que iria se tornandocada vez mais completo, de modo a corrigir seus erros com o passardo tempo. Um esquema desse tipo talvez seja aplicável em algumamedida às ciências naturais; mas, definitivamente, este não é o casodas ciências sociais: a inovação não resulta tanto da superação pura esimples de erros, quanto de mudanças de perspectiva, que passam acaptar elementos diferentes de um mesmo objeto. As perspectivasdiferem umas das outras em seus conceitos, categorias e modelos deconhecimento, por razões mais profundas que uma simplessuperioridade cognitiva. Sua construção é motivada por interesses eposições valorativas, sem as quais não seriam sequer levantadas asquestões a que dão respostas. Mas, estabelecer relações entre a validadedo conhecimento e a estrutura social que o gera não constitui umarefutação, isto apenas demonstra suas limitações. A sociologia doconhecimento de Mannheim não se propõe a substituir a reflexãosobre a realidade em si, mas uma outra tarefa: estabelecer um patamarcomum para o debate teórico e político. A indicação das determinantessociais do pensamento permitiria escolhas mais conscientes e livresde sua influência, de modo a alcançar, por via indireta e aproximativa,uma visão mais objetiva da realidade.

Conclusão

Apesar do papel central da “perspectiva” para ambos, persistiriamdiferenças significativas entre os autores: em Weber o matiz diferentedas idéias diz respeito a valores, ao passo que, para Mannheim, tocamais aos quadros conceituais e categóricos. As “visões de mundo”que Weber analisa são religiões, cujo surgimento não seria estritamentedeterminado por interesses. Sua seleção e conformação estariamsujeitos a tal influência, mas também seriam verificáveis movimentosno sentido inverso. Os intelectuais constituiriam uma camada à parte

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na sociedade, sem um vínculo de origem com qualquer classe a lhedeterminar as posições. A estratificação social guardaria relação coma religião sob a forma de afinidades eletivas, que não ditariam umaconcomitância necessária entre classe e opção religiosa. O sentidodas teodicéias seria o de conferir inteligibilidade ao mundo do pontode vista moral, atribuindo um sentido positivo à experiência dosofrimento. Sua marca estaria em produzir hierarquias de valores,que se adequariam, com medida variável, às experiências desofrimento de cada estrato social.

Na sua construção teórica de ideologias e utopias, Mannheimpreocupa-se fundamentalmente com a adequação das idéias àrealidade. As diferenças de visão de mundo entre os grupos sociaisseriam devidas à diversidade de interesses que orientam sua apreensãoda realidade. Cada grupo, movido por interesses práticos diferentes,estaria em uma posição mais favorável a perceber certos aspectos domundo concreto, ao invés de outros, enfatizando de modo unilaterala sua compreensão parcial. Disso resultariam estruturas mentais muitodistintas, que não seriam de todo inválidas, apesar de seu carátersocialmente determinado. Mas sofreriam de uma limitação natural,por só captarem na realidade aquilo que justificasse o modo deexperiência de um grupo e a posição social que o embasa. Caberia àciência sintetizar os diferentes aparatos conceituais e categóricos emuma visão totalizante, que ampliasse os horizontes da humanidade.Essa seria a missão de uma camada de intelectuais sem vínculos sociais,que segundo Mannheim estaria em processo de formação. Suaatividade como membros das classes em conflito teria produzido asucessão de ideologias e utopias ao longo do processo histórico. Cadavisão de mundo, por sua relação estreita com uma posição social,teria uma validade relativa ao seu contexto de origem. Com umacamada de intelectuais autônoma, seria possível reduzir drasticamenteos efeitos de determinação social, oferecendo visões cada vez maisimparciais da realidade, ainda que válidas apenas relativamente.

Nisso haveria uma diferença crucial entre Weber e Mannheim. Oprimeiro duvidaria da possibilidade de uma visão sintética, na medidaem que a divergência partidária estaria mais nos valores e não tanto

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nos conceitos que ordenam a realidade. A ciência seria capaz deproduzir verdades universais, pois consistiria no ordenamentoconceitual da realidade empírica. As diferenças de valores e interessesredundariam na tentativa de explicar aspectos diferentes, mas nãonecessariamente em explicar toda a realidade de modos distintos.Interesses diversos levantariam questões diversas, mas de respostasuniversais. Na sucessão de sistemas de idéias, não haveria umprogresso, uma aproximação gradativa da verdade, mas mudança devalores. A função principal da ciência seria explicitá-los. Assim, emcontraste com Mannheim, Weber recusa a idéia de uma totalidadepassível de ser conhecida. O que não surpreende, se consideramos asreferências filosóficas de que partem os autores: o mundo da perdade sentido de Nietzsche, no caso de Weber, contra o desvelar da razãona história, de Hegel, no caso de Mannheim. A despeito da forteinfluência weberiana, “Ideologia e Utopia” continua dentro dos marcosdo marxismo. Aceitando o caráter socialmente relativo doconhecimento, sem, como antes, fazer do marxismo uma exceção àregra, Mannheim não abandona a determinação de classe como fatorexplicativo último. Como alternativa à “afinidade eletiva”, oferece ovelho argumento da “prática” como origem e sentido de todo opensamento: cada classe, tendo a sua prática específica, teria tambémseu aparato analítico próprio. Reconhece a contribuição de Weber àsociologia do conhecimento, mas suaviza suas conclusões; acredita,com isso, tê-lo depurado das incompatibilidades com Marx. Tentasalvar, no marxismo, justo aquilo que toda a ciência social posterioriria descartar: o determinismo de classe como causa geral em qualquersociedade, mesmo para além do mundo capitalista – nisso consistiriaseu maior equívoco.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

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Nota

1. É importante frisar que uma ideologia não é o oposto de umautopia. Como ficará claro mais adiante, é possível aplicar a umúnico sistema de idéias os dois conceitos. A oposição que de fatoexiste é entre os conceitos, não necessariamente – para dizer averdade, quase nunca – entre os objetos a que se aplicam. Dentrodo quadro analítico de Mannheim, seria perfeitamente cabível falarde uma ideologia e de uma utopia conservadoras presentes em ummesmo sistema de pensamento.

Referências Bibliográficas

GERTH, Hans. WRIGHT MILLS, C. (orgs.). (1947), From MaxWeber: Essays in Sociology. London, Kegan Paul, Trench, Trubner&Co..

MANNHEIM, Karl. (1956), Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Ed.Globo.

WEBER, Max. (1993), Metodologia das Ciências Sociais. Campinas,Cortez, Ed. Unicamp, parte 1 e 2.

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Reflexões acerca do Conceito de Do-minação da Naturezana Escola de Frankfurt

TATIANA GOMES ROTONDARO*

Resumo

Este trabalho tem como objetivo analisar o conceito de dominação da nature-za conforme formulado por Theodor Adorno e Max Horkheimer emDialética do Esclarecimento enquanto ferramenta analítica para compreen-são da relação homem-natureza. Para tanto, tomarei como eixo da análise asinfluências de Karl Marx sobre esses autores da Escola de Frankfurt, buscan-do compreender suas apropriações e rupturas. Paralelamente a este traba-lho de revisão bibliográfica, busco acrescentar algumas reflexões acerca doslimites analíticos presentes nesta leitura quando se deseja lidar com algumasvariáveis contemporâneas.

Palavras-chave: Teoria Social; Escola de Frankfurt; dominação da natureza

* Aluna do curso de doutorado em sociologia do Iuperj. E-mails: [email protected];[email protected].

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Introdução

No seio do debate sociológico acerca das relações entre ambiente esociedade, surge freqüentemente o seguinte questionamento: teriam osclássicos – Marx, Weber e Durkheim – se dedicado a analisar a formacomo os homens se relacionam com a natureza? Em resposta a estapergunta, encontram-se tanto vozes afirmando que os clássicos, sobre-tudo Marx, já haviam se preocupado em enunciar a relevância destarelação, quanto aqueles que argumentam que esta temática teria sidonegligenciada pelos autores.

De fato, reflexões aprofundadas, e muito menos vastas, sobre este temanão serão encontradas nas obras desses autores, mas existem algunselementos interessantes que foram posteriormente resgatados e desen-volvidos. Por este motivo, recuperarei alguns argumentos trabalhadospor Marx para que possamos compreender a gênese dessa temática nodesenvolvimento de uma determinada matriz sociológica1.

Antecedentes Marxistas

De acordo com bibliografia, entre os três sociólogos estruturadores dadisciplina, Marx foi o que mais se dedicou ao estudo da relação ho-mem-natureza.

Dentre aqueles autores2 que atribuem à obra de Marx a presença desubsídios analíticos relevantes para analisar as relações que o homemdesenvolveu com a natureza, alguns aspectos são constantemente resga-tados, como por exemplo a referência que Marx faz a esse tipo especí-fico de relação em sua análise de como o trabalho se torna valor de usoe de como a maquinaria é incorporada ao processo de trabalho.

No primeiro volume de O Capital, logo no início do capítulo 5, Marx(1975) afirma que o trabalho é, antes de tudo, um processo do qualparticipam homem e natureza, sendo que o o primeiro se defronta como segundo – como uma de suas forças, ou seja, enquanto parte constitu-inte da natureza – ao colocar em movimento as forças naturais de seupróprio corpo, com o intuito de apropriar-se dos recursos naturais,imprimindo-lhes forma útil à vida humana (idem:202). Marx aponta:

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“Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, [o homem]ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve aspotencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo dasforças naturais” (ibidem).

Ainda nesse capítulo, Marx enumera três elementos que julga seremconstituintes do processo de trabalho, são eles: i) a atividade adequadaa um fim, isto é o próprio trabalho; ii) a matéria a que se aplica otrabalho, ou seja, o objeto de trabalho; iii) os meios de trabalho, oinstrumento de trabalho (ibidem). Assim, recorrendo à afirmação ini-cial de Marx de que o trabalho seria um processo entre o homem e anatureza, pode-se identificar pelo menos esses três momentos nos quaisencontramos essa relação.

Quanto ao primeiro elemento, nos diz Marx que, apesar da atividadehumana se distinguir das formas primárias, animais e instintivas dotrabalho – uma vez que preexiste na mente do trabalhador, antes de serexecutada –, esta é, no fundo, expressão de suas forças naturais perten-centes à corporeidade – isto é, braços e pernas, cabeça e mãos – que otrabalhador põe em movimento, “a fim de se apropriar da matérianatural na forma utilizável para sua própria vida” (ibidem).

No segundo, a natureza como sendo o objeto sobre o qual o trabalho édirecionado, tem-se a idéia da terra, da água como objetos genéricos aserem trabalhados pelo homem, uma vez que no passado remoto esteso proveram com os meios de vida acabados. Mas já naquele período ocaso mais comum era que algo só se tornasse objeto de trabalho àmedida que sua conexão imediata com a totalidade da terra fosse inter-rompida, como, por exemplo, um peixe puxado para fora d’água, umaárvore derrubada de uma floresta virgem e o minério retirado, dentreoutros. O objeto sobre o qual o trabalho incide (neste caso a natureza)é, freqüentemente, “filtrado” ou “refinado”, passando a ser denomina-do matéria-prima. “O objeto de trabalho só é matéria-prima depois deter experenciado uma modificação efetuada pelo trabalho” (Marx,1975:203).

E finalmente, o terceiro elemento constituinte do processo de trabalhoé aquele que possibilita que a atividade do trabalhador sobre o objeto

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possa se efetivar, isto é, o meio (o instrumento) de trabalho. “O meiode trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhadorinsere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir suaatividade sobre este objeto” (ibidem).

Posteriormente, após atingir um determinado nível de desenvolvimen-to, a necessidade de meios de trabalho mais elaborados impõe-se quaseque automaticamente. A tentativa de captar as leis da natureza atravésda reprodução das propriedades químicas, físicas e mecânicas parautilizá-las como meio de poder sobre outras coisas, de acordo comseus propósitos, torna mais claro, progressivamente, o papel que a na-tureza assume nos meios de trabalho. A importância da natureza noâmbito dos meios de trabalho torna-se ainda mais evidente, quando seconstata que, abstraindo-se dos produtos inorgânicos como pedra, ma-deira (orgânica, mas morta), ossos e conchas, dos quais nossos ances-trais fizeram seus instrumentos, também os animais desde os primórdiosda história foram usados como meio de trabalho (Marx, 1975:204).

Esse terceiro ponto tornar-se-ia ainda mais complexo com o desdobra-mento do raciocínio que irá atribuir valor de uso às mercadorias, vistoque “o resultado do processo de trabalho é um valor de uso” (idem:205)3 ,que, por sua vez, ao invés de ser simples produto para ser consumido,pode ser novamente matéria-prima ou mesmo meio de trabalho paraum processo de trabalho ulterior. Nesse sentido, a idéia do domínio danatureza em Marx somente estará completa a partir de suas reflexões arespeito do emprego da maquinaria. Para Duarte, por exemplo, “so-mente com o surgimento da grande indústria, supera-se todo e qual-quer vestígio das formas científicas anteriores e o ideal do domíniototal da natureza externa se encontra plenamente realizado” (Duarte,1993:50).

Na opinião de Duarte (idem:52), Marx não se limita à condenação docapitalismo por seus efeitos deletérios sobre o humano, mas tambémsobre sua fonte de vida, isto é, a natureza externa a ele. Uma afirmaçãoa esse respeito encontra-se ao final do capítulo sobre a maquinaria,onde constata que: “Com a preponderância cada vez maior da popula-ção urbana que se amontoa nos grandes centros, a produção capitalista

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de um lado concentra a força motriz histórica da sociedade, e, do ou-tro, perturba o intercâmbio material entre o homem e a terra” (Marx,1975:578).

Adiante, prossegue Marx afirmando que: “A produção capitalista, por-tanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social deprodução, exaurindo as fontes originárias de toda riqueza: a terra e otrabalhador” (idem:579).

Mas, se para Marx a questão da natureza realmente tinha alguma im-portância, então por que importantes autores como Anthony Giddens(1991), Alfred Schmidt (1971), Klaus Eder (1996) o acusam de ternegligenciado ou de ter sido hostil a esta temática?

O debate entre Alfred Schmidt e Wolfdietrich Schmied-Kowarzik, re-cuperado por Duarte (1993:53-54), revela-nos as nuances dessa discus-são. Os autores partem de um polêmico trecho dos Grundrisse:

“A natureza se torna, então, puro objeto para o homem, pura coisa deutilidade; deixa de ser conhecida como potência em si; e o próprioconhecimento teórico de suas autônomas aparece apenas enquantoardil para subordiná-la – seja como objeto de consumo ou comomeio de produção – às necessidades humanas” (apud Duarte,1993:53).

Essa citação é utilizada por Schmidt para afirmar que Marx consideraque o mundo só é cognoscível na medida em que se torna artefatohumano. Schmidt afirma que somente podemos saber o que uma coisanatural é na medida em que conhecemos a totalidade dos procedimen-tos industriais e científico-experimentais que permitiram fabricá-la. Aesta afirmação contrapõe-se Schmied-Kowarzik, apontando para o fatode que Marx reconhece a situação presente na qual a natureza se tor-nou inteiramente objeto para o homem, porém não a exalta; ao contrá-rio, Marx deixaria indícios de como a natureza viva também é subjugadapela ciência natural e técnica enquanto agente das forças produtivas4.

Talvez não seja justo tentar atribuir ao pensamento marxista um pesotão grande à relação homem-natureza. Ainda assim, pela breve exposi-ção feita acima, acredito que seja possível reconhecer uma contribui-

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ção relevante, que viria a ter papel fundamental para reflexões posteri-ores acerca do tema. Entretanto, não se pode perder de vista que acompreensão de que as teorias de Marx, Durkheim e Weber estavamvisivelmente se opondo às posições de destaque que teorias sociais re-lacionadas à biologia possuíam, acabou por marcar uma “barreira”implícita quanto à incorporação de variáveis ecológicas às suas análi-ses. Da mesma forma, a cultura da profissão sociológica moderna, emgrande parte herdada dos teóricos clássicos, implica uma reação quaseque espontânea contra muitas formas de biologismo, em especial aque-las como a sociobiologia, que despertam imagens das doutrinas deSpencer e Darwin. Além disso, a partir do século XIX, a história inte-lectual acadêmica – em função do desenvolvimento de um processo dedivisão do trabalho científico – foi fortemente marcada por um proces-so de disciplinarização e profissionalização do conhecimento. Dentrodesse contexto, a sociologia descreveu-se a si mesma como uma ciên-cia que estuda as relações sociais na sociedade moderna, o que contri-buiu para que a questão da natureza – mesmo se pensada a partir dasinter-relações desta com os homens – não merecesse a devida atençãodo olhar humanista. Também não podemos negligenciar o fato de queas tradições do pensamento sociológico clássico de Marx – assim comode Weber e Durkheim – foram bastante influenciadas pelo contextosocial no qual a disciplina se desenvolvia; desta forma, a preocupaçãocom a relação ambiente (natural) e sociedade era praticamenteinexistente, uma vez que vigorava um clima de crescente urbanizaçãopermeada por uma ideologia caracterizada pela fé no progresso, naprosperidade sem precedentes e na racionalidade humana – típicas doIluminismo –, acreditando-se que os recursos e o progresso social,tecnológico, industrial seriam ilimitados e que portanto a vida humanaestava se tornando cada vez mais independente do mundo físico (Buttel,1992; Dunlap, 1997; Goldblatt, 1996).

Posteriormente, a partir da crítica ao espírito Iluminista e ao progressosem limites, alguns aspectos das reflexões de Marx são retomados, emespecial com os desenvolvimentos da Escola de Frankfurt.

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A Escola de Frankfurt

A partir da crítica ao espírito Iluminista e ao progresso sem limites,alguns aspectos das reflexões de Marx são retomadas, pela Escola deFrankfurt. Ainda sobre a temática da dominação da natureza, pode-sedizer que o livro Dialética do Esclarecimento de Max Horkheimer eTheodor W. Adorno (1986), iniciado em 1944 mas que foi publicadoapenas em 1947, introduziu uma mudança de paradigma, rica em con-seqüências para a forma como a teoria social tratou esta questão atéentão.

O primeiro ponto diz respeito ao fato de que o pensamento do Esclare-cimento, da forma como se desenvolvera no século XVIII, era tomadocomo o legado positivo comum da modernidade. Nesse sentido, libe-rais e marxistas reportavam-se igualmente às conquistas desse período,uma vez que ambos assentavam raízes na filosofia do Esclarecimentoanglo-escocês, francês e alemão.

Em um amplo sentido, pode-se dizer que as ideologias concorrentes noséculo XIX e XX giravam em torno da interpretação e evolução dopensamento do Esclarecimento. O próprio marxismo queria executara “missão histórica” do Esclarecimento a partir da crítica das relaçõessociais e econômicas. Uma posição contrária aos fundamentos do Es-clarecimento só parecia possível nos horizontes do pensamentoreacionário que supria ideologicamente o regime fascista.

Na Dialética do Esclarecimento, ao contrário, colocava-se em julga-mento a perspectiva emancipatória do Iluminismo. O desenvolvimentode Adorno e Horkheimer nos mostra que o fascismo, por exemplo, éuma conseqüência legítima, descendente do próprio Esclarecimento;ao dizer que “o Esclarecimento é totalitário” (1986:22), os autores dãocontornos ao programa de uma crítica social nova e diversa, que atéhoje aguarda seu cumprimento.

Mas como explicar esse momento totalitário comum à modernidadeesclarecida, no qual o fascismo representava uma forma irracional, ostalinismo em uma forma historicamente tardia e a democracia ociden-

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tal em uma forma madura?Não era tarefa simples para Adorno eHorkheimer formular, em 1944, o problema que percebiam. Eles uti-lizaram o conceito de “dominação da natureza” para descrever o tota-litarismo da modernidade; tal dominação transforma-se na “domina-ção sobre os homens”, sua forma social. Enquanto se trata naturezacomo “mera objetividade”, objeto isolado como “exemplar” de umaespécie (e, portanto, uma abstração), gera-se um sujeito onipotente parao qual o mundo deve ser dominado, manipulado, submetido: este su-jeito torna-se “mero possuir, mera identidade abstrata”.

Esse sujeito onipotente deve ainda manter um distanciamento diante danatureza (a fim de torná-la presente – enquanto conceito – de modo adominá-la); para tanto, deve surgir na sociedade humana uma classedominante, que intercala entre si e a natureza “os trabalhadores” en-quanto dominados sociais: A distância entre sujeito e objeto, pressu-posto da abstração, radica na distância com relação à matéria que osenhor ganha por meio dos dominados (Adorno e Horkheimer, 1986).

Ao se realizar através dessa diferenciação social, a dominação da natu-reza tem como conseqüência a identificação do próprio homem comoum objeto da natureza, também a ser dominado: a separação entresujeito e objeto (presente já no homem pré-histórico, através do mito,da mimese) leva ao reconhecimento do poder como princípio de todasas relações. Por este motivo, a própria subjetividade tem que ser torna-da objeto – e esta lição aparece no mito de Ulisses, tratado pelos auto-res como arquétipo do sujeito burguês, abstrato e objetivante – visandoà natureza e aos outros homens por meio da dominação.

No desenvolvimento desse processo, o Esclarecimento submete natu-reza e sociedade mediante a quantificação, a formalização, amatematização: “a lógica formal era a grande escola da unificação, [...]o número tornou-se o cânon do Esclarecimento” (idem:22). Nessa ca-racterística reside o caráter totalitário do Esclarecimento, já que forne-ceu o esquema de calculabilidade do mundo à modernidade esclarecida,herdeira da história ocidental e suspeita de tudo que não pode ser redu-zido a esse esquema.

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Há, entretanto, uma contradição insanável característica à modernidadeesclarecida. Por um lado, o Esclarecimento prometeu a emancipaçãohumana através do “desencantamento do mundo”; por outro, ele man-teve e agravou a dominação objetivante da natureza (e, com ela, doshomens). Mais ainda, por meio do mercado, da equivalência abstratada troca mercantil, consumou-se de maneira mais completa a reduçãodo mundo a grandezas abstratas.

Assim, Adorno e Horkheimer vêem o Esclarecimento moderno conde-nado à autodestruição, já que suas próprias bases, seu próprio conceitoteórico – como qualquer conceito universal – é atingido pelo processode desmitologização. Quando a metafísica é – para usar uma expressãode Robert Kurz – consumida até a última gota, e se põe de lado “aexigência clássica de pensar o pensamento”, este “reifica-se num pro-cesso automático, de curso independente, que imita a máquina”; mas,como “a neutralidade é mais metafísica do que a metafísica”, o Escla-recimento transforma-se em mito, a ciência reduz-se a “mero expedi-ente de aparato econômico” e a promessa de emancipação converte-seem “total mistificação das massas” (idem:35, 37, 51 e 52).

Finalmente, quase meio século depois de sua primeira edição, ADialética do Esclarecimento pode ser percebida de maneira ambígua.Por maiores que sejam os acertos do texto – por exemplo, sua idéiafundamental de que o próprio Esclarecimento contém o germe e setransforma em barbárie continua atual – hoje ele tem eficácia limitada.A despeito de sua mudança paradigmática, Adorno e Horkheimer con-tinuaram sendo filhos do Esclarecimento, uma vez que pretendem fa-zer a crítica do Iluminismo dentro dos parâmetros iluministas ao mes-mo tempo em que reconhecem que esses já não são mais suficientespara uma análise crítica da realidade. Assim, embora o caminho tenhasido indicado, a porta por eles entreaberta não foi cruzada.

Ainda que tenhamos sempre em mente as diferenças fundamentais en-tre o projeto normativo-teleológico de Marx para a emancipação hu-mana e a inexorabilidade do movimento de dominação presente naDialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, pode-se dizerque a dominação da natureza e do próprio homem – como constituinte

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de um processo de alienação – é apresentada por estes autores comoum desenvolvimento em direção ao mais alto ponto de subjugação hu-mana. Estes autores acreditavam que a técnica acoplada ao trabalhoatingira a capacidade de englobar os homens sob a forma de natureza,isto é, como se fossem objetos destituídos de subjetividade.

Desde o início o trabalho, através da técnica, separou progressivamen-te homens e natureza inventando modos de manipulação novos e muitosutis, pelos quais a manipulação exercida sobre as coisas implica asubjugação dos homens pelas técnicas de manipulação. Entretanto, apartir da tese frankfurtiana, no seu máximo desenvolvimento este mes-ma técnica os reuniu novamente: fazem-se máquinas a serviço do ho-mem e põem-se homens a serviço das máquinas; assim temos, ao invésde uma “humanização da natureza”, a ocorrência de uma “naturaliza-ção da humanidade”. Finalmente, vê-se muito bem como o homemtorna-se dominado pela máquina, enquanto esta manipula as coisas afim de libertá-lo; neste processo, temos a emergência de uma totalida-de à disposição de um único sujeito, o capital.

Em sua origem, a ciência ocidental tinha um caráter essencialmenteexperimental; para que esta experimentação pudesse ser efetuada sobrebases consistentes, foi necessário desenvolver cada vez mais seus pode-res de manipulação, em um processo que poderia ser descrito por “ma-nipular para conhecer”. Entretanto, com a crescente inter-relação entreciência e indústria e – seguindo a ideologia racionalista-humanista,fundada no Iluminismo – com a busca pela emancipação humana atra-vés da manipulação e dominação dos objetos naturais, verifica-se umainversão de finalidade, ou seja, cada vez mais se deseja “conhecer paramanipular”.

Atualmente, conhecimento, instrumentos de manipulação, fragmenta-ção e dominação, capital são elementos de um circuito que nos leva àimpossibilidade cada vez maior de distinguir com clareza as linhaslimítrofes entre ciência e técnica. A complexidade destas inter-relaçõesnos impele a utilizar o termo tecnociência, deixando de isolar termosque são cada vez mais incompreensíveis se tomados em separado.

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Além disso, pode-se dizer que a infiltração da técnica, ou melhor datecnociência, acontece também em um outro nível: na epistemologiade nossa sociedade e civilização, uma vez que a lógica das máquinasartificiais é progressivamente incorporada em nossas práticas e hábitoscotidianos. Em outras palavras, não mais aplicamos os esquemas e alógica contida na tecnociência apenas ao trabalho manual ou mesmo àmáquina artificial, mas também às nossas próprias concepções de soci-edade, vida e homem.

Nesse sentido, a idéia de “dominação da natureza” passacontemporaneamente a conquistar um outro nível diferente daquelespreconizados por Marx, Adorno e Horkheimer. Tanto a tese clássicaenunciada por Marx de que os homens modificam a natureza, ao mes-mo tempo em que se automodificam quanto a dos frankfurtianos deque o esforço humano para controlar a natureza voltou-se contra opróprio humano – teses que acompanham até hoje o imaginário canônicosociológico – apresentam agora um ponto de inflexão.

Em função da crescente especialização engendrada no âmbito acadêmi-co a partir do século XIX, a sociologia colocou-se a tarefa de explicaras relações sociais das sociedades modernas; visando alcançar esta meta,buscou-se delimitar o social da forma mais abrangente possível (Co-missão Gulbenkian, 1996), afirmando-se, por exemplo, que nas socie-dades modernas só é possível pensar na existência de uma naturezasocializada. Há uma idéia implícita nesta afirmação: a tese de que aação humana teria alcançado todos os ambientes naturais5 . Um corolárioóbvio dessa idéia é que não há mais espaços nos quais seria possívelintervir socialmente: o homem já teria conquistado a totalidade da na-tureza.

Mas talvez ainda haja espaços naturais a serem subjugados, manipula-dos e conquistados. Pensemos, como um exemplo simples, em umjardim planejado. Ainda que as plantas sejam naturais, está claro quepara o sociólogo o jardim é um objeto social, uma natureza não maisnatural: trata-se de um trabalho humano e, portanto, social. Isto por-que, até este momento, não faziam parte de nosso imaginárioquestionamentos acerca da natureza das plantas utilizadas para a con-

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fecção do jardim; entretanto, com a possibilidade de intervenção naestrutura genética dos seres vivos pode-se perguntar se as plantas eramde espécies encontradas no ambiente ou se foram “engenheiradas” emlaboratório. Isto nos mostra que havia fronteiras ainda não ultrapassa-das e territórios ainda não colonizados pelo social; no entanto, com osnovos desenvolvimentos tecnológicos, provavelmente em breve (talvezjá hoje) nos questionaremos sobre qual foi o processo de formação decada planta que compõe aquele jardim construído artificialmente.

A história recente mostra-nos que ainda era possível levar a cabo umamaior e mais significativa dominação da natureza para além do queAdorno e Horkheimer haviam imaginado.

(Recebido para publicação em outubro de 2005)

Notas

1. Estou aqui recuperando apenas um ramo através do qual este tema foidesenvolvido. Além disso, é importante ter em mente que os aspectos queestão presentes na obra de Marx já são produto da incorporação ereelaboração de uma linha de discussão que se inicia com Aristóteles ePlatão chegando até Hegel – passando por Bacon, Descartes, Schelling,dentre outros.

2. Dentre alguns é possível citar: Frederick Buttel, Allan Schnaiberg, TedBenton, Paul Burkett etc.

3. Embora o processo que foi até agora descrito em O Capital ainda nãotenha chegado à extração de mais-valia, é interessante notarmos que jáseu princípio se baseia na exploração da natureza.

4. Esta é uma discussão bastante complexa e multifacetada. Desta forma, edevido aos objetivos deste texto, a discussão não será aqui aprofundada;entretanto, a dificuldade de abordar este debate revela, em si, a própriadificuldade que a sociologia tem em reconhecer a importância do temapara a disciplina.

5. Esta concepção está presente, por exemplo, em Giddens (1991).

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Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. (1986) [1947], Dialéticado Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar.

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