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SAÚDELOUCURA direção de Antônio Lancetti A partir deste número os Cadernos de Subjetividade serão publicados na SaúdeLoucura. Desejamos assim intensificar nossa vocação plural e nosso afeto pelos pensadores da imanência. ANTONIO LANCETTl diretor de SaúdeLoucura A RELAÇÃO COMPLETA DAS OBRAS PUBLICADAS NA COLEÇÃO SAÚDELouCURA ACHA-SE NO FIM DO LIVRO. Cadernos de Subjetividade o REENCANTAMENTO DO CONCRETO Núcleo de Estudos da Subjetividade Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP EDITORA HUCITEC EDUC São Paulo, 2003

Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

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Page 1: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

SAÚDELOUCURAdireção deAntônio Lancetti

A partir deste número os Cadernos de Subjetividade serão publicadosna SaúdeLoucura. Desejamos assim intensificar nossa vocação plural enosso afeto pelos pensadores da imanência.

ANTONIO LANCETTl

diretor de SaúdeLoucura

A RELAÇÃO COMPLETA DAS OBRAS PUBLICADAS NA COLEÇÃO SAÚDELouCURA ACHA-SE NO FIM

DO LIVRO.

Cadernos de Subjetividade

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO

Núcleo de Estudos da SubjetividadePrograma de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

EDITORA HUCITECEDUCSão Paulo, 2003

Jesio
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Page 2: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

Cadernos de Subjetividade é uma publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade doPrograma de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP - Linha de pesquisa:Subjetividades Contemporâneas

COLETIVO EDITORIALEli<ftbeth Araújo Lima, Maria Cecília Galletti, Maurício Lourenção Garcia, Edson Olivari de Castro,Abraão dos Santos, Paulo Lima Buenoz, Rogério da Costa, Peter Pál Pelbart

CONSELHO CONSULTIVOCelso Favaretto (USP), Daniel Lins (UFC), David Lupoujade (Paris X - Nanterre - França), FranciscoOrtega (UERJ),jeanne-Marie Gagnebin (PUC-SP),john Rajchman (MIT- USA),josé Gil (UniversidadeNova de Lisboa - Portugal), Luiz B. L. Orlandi (Unicamp), Maria Cristina Franco Ferraz (UFF),MichaelHardt (Duke University - USA), Peter Pál Pelbart (PUC-SP), Pierre Lévy (University of Ottawa- Canadá), Regina Benevides (UFF), Roberto Machado (UFRJ), Rogério da Costa (PUC-SP), Suely Rolnik(PUC-SP), Tania Galli Fonseca (UFGRS).

PROJETO GRÁFICOPaulo Lima Buenoz

CAPABaseada em trabalho de Guto Lacaz:, intitulado ÓleoMaria àprocura da salada, de 1982, técnica mista.Foto de Nélson Kohn

AGRADECIMENTOSMara Selaibe, Leila Reinert, Beá, Denise B. Sant'Anna, Hermetes Reis de Araújo

PRODUÇÃO EDITORIALEditora Hucitec

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIACadernos de SubjetividadePós- Graduação de Psicologia ClínicaRua Monte Alegre, 984, 4.' andarCEP 01060-970 Perdizes São Paulo - [email protected]

Catalogação na Fonte - Biblioteca Monte Alegre/PUC-SP

Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP - voI. 1,n.' 1 (1993) - São Paulo, 1993 -

Anual

I. Psicologia - periódicos I - InstituiçãoISSN 0104-1231 CDD 150..1

A subjetividade designa um campo de complexidade crescente. Ali secruzam vetores que até recentemente pertenciam a domínios do saberestanques, demolindo as clássicas fronteiras entre o psíquico e o social,o subjetivo e o político, a esfera inconsciente e a produtiva, o teatrointerno e a cena material, a invenção de si e do mundo. Cresce a cadadia o descompasso entre as matrizes teóricas ainda hegemônicas e aexperiência subjetiva do contemporâneo.

O Núcleo de Estudos da Subjetividade (NES), vinculado ao Pós-Gra-duação de Psicologia Clínica da PUC-SP, tem-se proposto a explorar(~stepanorama, na interface entre vários domínios e prismas da cultura.Cadernos de Subjetividade, revista do NES, acolhe a inventividade teórica(~política nascente no Brasil e no exterior que vem desenhando os con-(ornos desta nova paisagem.

O presente volume vem dar continuidade a um trabalho interrompi-do por cerca de três anos, devido em grande parte à falta de apoio finan-ceiro e às crises consecutivas que enfrentamos no setor editorial. O tem-po de silêncio, contudo, serviu-nos para uma reorientação no projeto,que segue focando o mesmo âmbito de inquietações e sendo realizadopor um grupo de alunos do Núcleo de Estudos da Subjetividade, porémIIgora em formato de revista-livro anual e sob a organização alternadade professores, pesquisadores e convidados do NES.

SUELY ROLNIK

Coordenadora do Núcleo de Estudos da Subjetividade

Page 3: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

SUMÁRIO

ApresentaçãoPeter Pál Pelbart & Rogério da Costa

11

() comunismo da imanêncial:ntrevista de Félix Guattari a Toni Negri

15

Plissê fractalI)ierre Lévy

23

A paixão das máquinasNlix Guattari

39

( ) som da linha de varredura/lill Viola

53

( ) reencantamento do concretoFrancisco]. Varela

71

( ) indivíduo e sua implexa pré-individualidade1.lliz B. L. Orlandi

87

A g~nese do indivíduomlbert Simondon

97

Page 4: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

8 • SUMÁRIO

Gilbert Simondon, O indivíduo e sua gênese físico-biológica 119Gilles Deleuze

Da linguagem zaum à rede tecnomaya 125Franco Berardi

A máquina-cinema 135Raymond Bellour

o trabalho afetivo 143Michael Hardt

Uma política do futuro-presenteMauro Sá Rego Costa

Por uma ética da metaestabilidade na relação homem-técnica 177Liliana da Escóssia

Notas sobre os autores 187

Fontes dos artigos traduzidos 189

159Homenagem a Francisco Varela

(1946-2001)

Page 5: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

APRESENTAÇÃO

COMO PROJETAR O pensamento à altura do nosso tempo e de suasvertigens? O desencanto pós-moderno não soube apreender o sen-

tido das mutações em curso. A subjetividade esgarçada por todos oslados pede novas ferramentas teóricas, outras antenas, direções inédi-tas. As formas inerciais de pensar, de existir, de subjetivar-se e de relaci-onar-se caducaram, mas ainda persistem. O fato é que continuamos im-pregnados por dicotomias tais como consciente/inconsciente, acaso/ne-cessidade, natureza/cultura, Ocidente/Oriente, infra-estrutural superes-trutura, etc. No entanto, o tecido fibroso de nossa realidade transbordouem muito esses pares, introduziu no meio deles dobras insuspeitadas,revelando uma tessitura em tal medida complexa que apenas um pen-samento já instalado nessa multiplicidade pode aí orientar-se.

Como expor-se então às novas forças em jogo neste universo poli-morfo, numa época em que a megamáquina capitalista não cessa deproduzir novas formas de controle social e subjetivo, novas formas demiséria e horror? Como abrir-se para a vitalidade das subjetividadesemergentes, nesse contexto? Como cuidar dos vetores que atravessam aMultidão? Eis o propósito desta publicação: não se ater ao fascínio com-placente da globalização, nem ao pessimismo atávico em relação aosubismos sociais, culturais e tecnológicos do planeta, mas dar-se meiospara lidar com o nascente, operá-lo, corporificá-lo, reconhecer-se nele epor meio dele resistir ao mortífero.

Estamos inseridos numa rede planetária cada vez mais acentrada eçomplexa. Para uma nova geografia, novas estratégias. Nesse sentido,resistir hoje significa mais do que crispar-se na marginalidade ou nas

11

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12 • APRESENTAÇÃO

bordas ou inilitarizar-se no enfrentamento com um suposto centro pla-netário. Não se trata tão-somente de opor-se, mas de compreender osprocessos que percorrem a Multidão, conceber meios concretos quepermitam a eles se expressarem, ganharem voz e rosto.

O reencantamento do concreto é um mapeamento de algumas dessas es-tratégias. Eis o calidoscópio que oferecemos ao leitor: experimentaçõesteóricas, textos inéditos ou inacessíveis em nossa língua. Dos muitosmundos possíveis que eles encerram, quais hão de vingar, quais hão desoçobrar, quantos hão de se mutiplicar? Em todo caso, é preciso rein-ventar o sopro das coisas.

•••Em meio a um tecnocosmos a cada dia mais complexo e sofisticado,

o homem contemporâneo vê-se às voltas com um novo para o qual ain-da não tem palavras. A estranheza de habitar um ciberespaço, de vercrianças tomadas numa relação apaixonada com a multimídia, de assis-tir à informatização galopante da vida doméstica, de enfrentar questõesinéditas no campo da bioética e da biodiversidade - eis alguns poucosindícios, e apenas anedóticos, das mutações cuja dimensão e amplitudemal chegamos a avaliar.

O que resta de "subjetivo" neste perturbador mundo novo? Afinal,quem somos nós sem os nossos instrumentos, as nossas máquinas, osnossos remédios e as nossas bactérias? Essas misturas em que vivemos eque nos constituem solicitam uma retomada em profundidade da ques-tão da subjetividade. São tantas as passagens que nos lançam do "subje-tivo" ao "tecnológico", que mal sabemos hoje onde começa um e termi-na o outro, quanto de maquínico encontramos no humano e vice-versa.É preciso percorrê-los como o avesso um do outro, como numa fita deMoebius.

Assim, não se trata de lamentar ou glorificar a morte do sujeito. Nemo triunfo ou os desastres resultantes dos progressos técnicos. Pois soacada dia mais artificial pensar técnica e sujeito sem considerar a conti-nuação que os reinventa a cada momento.

Seria preciso partir da idéia mais provocativa e radical que atravessaos textos do presente volume: a subjetividade ela mesma situa-se naadjacência de focos de produção múltiplos, heterogêneos, não hum a-

APRESENTAÇÃO • 13nos. É apenas a partir dessa heterogeneidade constitutiva, micro e ma-crocósmica, povoada de elementos técnicos, semióticos, energéticos, quea produção de si é pensável. Há portanto uma nova circularidade a serinventada.

O humanismo clássico concedeu um privilégio excessivo ao indiví-duo já constituído, em detrimento do processo de individuação. A for-mulação desse problema pelo filósofo francês Gilbert Simondon, numtexto seminal de 1964, está presente, de maneira direta ou indireta, emgrande parte dos trabalhos reunidos neste volume. Quando se pensa afundo esses processos, como o faz a maioria dos ensaios aqui publicados,percebe-se em que medida o indivíduo emerge de um mundo complexo(biológico, técnico, semiótico, político ...) e o corporifica, encama-o .

Se podemos nomear nossa Atualidade uma megarrede heterogênea ondenão há estratos determinantes, nela não caberia procurar o fio de Ariad-ne em busca de uma visão totalizante. A infinitude de variáveis em jogonos convida a exercer aqui uma certa miopia: ao deter-se neste ou na-quele ponto singular, deixar ressoar a megarrede em toda a sua diversi-dade. Afinal, o que somos hoje senão fragmentos espalhados por estamiríade de linhas, aninhados em seus entroncamentos, seduzidos porsuas bifurcações e ramificações? Por que então essa insistência em bus-car no espelho do mundo apenas o reflexo opaco de nosso rosto dema-siadamente humano? Talvez já pudéssemos abrir mão dessa miragem.Mais do que nunca, vemo-nos enlaçados pela heterogeneidade a maisestrangeira, a mais avessa, simplesmente inumana. Ao ver roubado nos-so reflexo, estaríamos mesmo perdidos?

PETER PÁL PELBART & ROGÉRIO DA COSTA

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oCOMUNISMO DA IMANÊNCIA .

.................................... FÉLIX GUATTARIEntrevistado por To N I N E G R [

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16 • O COMUNISMO DA IMANÊNCIA

CD0G)~) (~®

TONI NEGRI

Gostaria de começar por uma questão que também fiz, recentemen-te, a Gilles Deleuze, a propósito de Mil Platôs. Nesse livro, que consideroum dos grandes ensaios filosóficos do século, acreditei perceber umanota trágica. Os pares conflitantes que nele se desenham (processo/pro-jeto, singularidade/sujeito, composiçã%rganização, linhas de fuga/dis-positivo e estratégia, micro/macro, etc.), tudo o que, em suma, constituium sistema aberto encontra-se, por outro lado, não re-enclausurado,mas contido como numa tensão insolúvel e num esforço sem fim. Énisso que me parece consistir o elemento trágico desse livro.

FÉLIX GUATTARI

Alegria, tragédia, comédia ... os processos que gosto de qualificar co-mo maquínicos trançam um futuro sem garantia - é o mínimo que po-demos dizer! Estamos ao mesmo tempo "presos numa ratoeira" e desti-nados às mais insólitas e exaltantes aventuras. É impossível levar-se asério, mas também impossível não "se enganchar". Essa lógica da ambi-güidade, eu não a vejo tanto como uma "tensão insolúvel", mas como ojogo multívoco, polifônico, de escolhas paralelas, por vezes antagôni-cas, que não lhe deixa outro recurso senão o da má-fé, a bifurcaçãointerrompendo todo o resto. Como "lidar" com essas constelações in-sustentáveis de universos de referência? O esquecimento pode ser degrande ajuda, mas ele não está ao alcance de todos!

16

o COMUNISMO DA IMANÊNCIA !!li 17NEGRI

Nas Cartographies Schizoanalytiques, mas a partir daí em todos os seustextos, para caracterizar o período histórico atual, você utiliza a expres-são "era informática planetária". Esta categoria ecoa com os discursosfoucauItiano e deleuziano sobre a era da comunicação, especificando-os. A aceitação dessa categoria em filosofia tem efeitos metodológicosfundamentais: ela lhe permite resolver a genealogia na epistemologia evice-versa, e construir os agenciamentos de enunciação de um ponto devista histórico. No entanto, esta redução não pode ter também efeitosperversos no caso de uma epistemologia de referência informática? Nãohá risco de achatamento da determinação ou do agenciamento genea-lógico no universo das relações transversais, lineares e indiferentes ca-racterísticas desta epistemologia? Como romper a indiferença do hori-zonte informático?

GUATTARI

A subjetividade capitalística implica uma binarização e uma desqua-lificação sistêmica de todas as "mensagens". Ela coroa o reino de umequivaler generalizado que tem, além disso, estendido suas coordena-das nos domínios do Espaço, do Tempo, da Energia, do Capital, doSignificante, do Ser ... Trata-se ao mesmo tempo de um horizonte histó-rico, cujo surgimento é datado, e de uma vertigem axiológica que re-monta a tempos imemoriais. Por toda parte sempre houve ameaça deabolição da complexidade qualificada, desde o interior. O caos habita ocomplexo; o complexo habita o caos. O que implica que este últimoseja composto de entidades animadas a uma velocidade absoluta - dei-xando que a ciência "reduza" essas velocidades com constantes tais comoc, h (constante de Planck), o instante zero do bigue-bangue, o zero abso-luto, etc ... O que legitima uma perspectiva de "revolução molecular" éque esta entropia capitalística da subjetividade se instaura em todos asescalas e renasce constantemente de suas cinzas. Uma periodização comoa que encadeia a passagem das sociedades de soberania para as socieda-des disciplinares, para resultar nas sociedades de controle, é ao mesmotempo genealógica e ontogenética. Todos esses regimes de territoriali-zação do poder, do saber e da subjetividade se decompõem e se re-compõem na subjetividade contemporânea. O que faz com que, porexemplo, não se possa falar hoje, com a escalada dos integrismos e dos

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18 • O COMUNISMO DA IMANÊNCIA

racismos, de "regressão arcaica", mas antes de progressismo fascista ou,a rigor, de neo-arcaísmo, sendo entendido que eles reinventam comtodas as peças formas de inteligência e de sensibilidade do mundo con-temporâneo. Recomeçar a história desde o começo ou dobrá-la em di-reção a finalidades progressistas: este não é mais, verdadeiramente, oproblema! Trata-se antes de recompor, sobre outras bases, os agencia-mentos de subjetivação e, neste momento, recriar de um modo páticoas diversas figuras da subjetivação histórica, das quais a subjetividadecapitalística é a mais vertiginosa por seu vazio, sua banalidade, sua vul-garidade ...

NEGRI

Nós vivemos num mundo em que a pluralidade dos processos desubjetivação se constitui através de uma pluralidade de equipamentoscoletivos, bem como de mercados e de instituições. Esse processo émuito rico e impossível de ser encaixado nas velhas categorias da de-mocracia ou do socialismo. Para não falar nas velhas categorias do capi-talismo liberal. Mas esse processo é também atravessado por dinâmicasde globalização e de subordinação que relativizam e sobrecodificam aintensidade dos processos de subjetivação. Por vezes, tenho a impressãoque o processo molecular, uma vez tomado hegemõnico, foi consumi-do e digerido por uma potência molar que não reconhece mais seu opostocomo existente. Nesse contexto as saídas metafísicas e políticas não sãointeressantes. Como na multidão molecular se pode reconstruir umaoposição molar?

GUATTARI

Substituída pela mídia de massa, pelas sondagens, pela publicidade,pelas consultorias em comunicação, a democracia política toma-se nãosó cada vez mais formal, cada vez mais cortada da realidade, mas tam-bém cada vez mais delirante. O que não significa que ela perca todarelação com a subjetividade capitalística. Os líderes políticos rivalizamcom os apresentadores de televisão para penetrar sempre mais na pseu-do-intimidade dos lares. É o reino do show de variedades substituídopelo psico-show. O vertiginoso, em tudo isso, é a capacidade que temesse tipo de produção de subjetividade de capturar toda imanência pro-cessual, toda mutação molecular. Existiria, contudo, uma prova de ver-

o COMUNISMO DA IMANÊNCIA • 19

dade capaz de discriminar-se do engodo, do fingimento, do simulacro,já que estes podem também tomar-se o lugar de uma autêntica territo-rialização existencial? Veja, por exemplo, o gestual estereotipado de umaestrela da cultura rock, cujos traços são contudo objetos de reapropria-ção por crianças e adolescentes em momentos cruciais de sua existên-cia. Mas a prova da verdade não engana, ela é de ordem pática: é elaque encadeia uma espécie de adesão existencial que cria o aconteci-mento.

É bem verdade que todos esses focos de resistência molecular contraa serialidade da subjetividade capitalística se encarnam, freqüentemen-te, como retornos à transcendência, ao misticismo, ao culto do "natu-ral". Isso me incomoda menos que a você. Eu me digo que Deus encon-trará aí os ~eus! Há algo de tão artificial nesses neo-arcaísmos ... Elesnunca implicam mais que um estrato dentre outros das formações desubjetividade. Sabemos muito bem que os integristas tomam um trago eassistem filmes pornõs às escondidas. O que não desculpa nada! Resu-mindo, o microfascismo está sempre renascendo, mas não forçosamen-te o macrofascismo.

A oposição molar passa ainda e sempre pela constituição de máqui-nas de guerra social. Chegou a hora, porém, de pensar em outra coisaque não nas máquinas leninistas. Acabamos de ver nascer máquinasmolares conhecidas no terceiro mundo, com o integrismo iraniano edepois o nacionalismo iraquiano. Houve durante oito anos guerra demodelos, seleção artificial e depois colocação à prova! Uma vez que asobrecodificação das relações internacionais pelo antagonismo Leste-( leste se enfraqueceu, podemos esperar ver nascer e proliferar toda umasérie de máquinas molares. Não há apenas exemplos catastróficos: o PT!lO Brasil autoriza esperanças reservadas ... mas veja bem que eu nãotenho programa, modelo de referência! Tudo o que posso dizer é queme parece legítimo, inevitável, que as revoluções moleculares sejam"duplicadas" por máquinas de grande escala trabalhando no seio dasrelações de forças sociais que, longe de se apagar, irão se endurecer,mesmo que se diferenciando.

N EU RI

Você sustenta o direito fundamental à singularidade. Você o ilustraWITIO um recentramento das finalidades da divisão do trabalho e das

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20 _. O COMUNISMO DA IMANÊNCIA

práticas sociais emancipadoras, como exercício de uma ética da finitu-de. Como a partir daí um processo de singularização pode tornar-seantagonista? Ou ainda, como a resistência das singularidades oprimidaspode tornar-se eficaz? Há ainda um intolerável? Ou ele próprio foi reab-sorvido no mecanismo da pluralidade crescente dos mercados? Existe apossibilidade de construir uma idéia filosófica do comunismo e de ligá-la ao processo de subjetivação? Ainda é possível fazer tudo isso sem cairnas armadilhas do positivismo, do dogmatismo e da utopia?

GUATTARI

Tenho a impressão que você se esforça em me fazer falar. Você sabetanto quanto eu que um processo de singularização é uma pura afirma-ção que ignora o antagonismo, a opressão ou mesmo simplesmente ainteração. Trata-se justamente aí de sair mais uma vez das metáforasdinãmicas e energéticas. Um comunismo da imanência conduziria cons-tantemente o cursor sobre práxis ético-políticas dando suporte a seuspróprios universos de referência. Fora com os paradigmas científicosque assediaram o marxismo, o freudismo, o estruturalismo, etc ... Todoum pensamento da transcendência, toda uma sentimentalidade da eter-nidade transformaram o progressivismo em uma imensa fobia, um evi-tamento sistemático da finitude, da inutilidade última da existênciamagnificamente ilustrada por Samuel Beckett. No lugar de fazer dissouma doença, constituir uma razão pragmática. Há aí um salto estéticoque expropriaria o salto religioso de Kierkegaard. Por que mudar? Porque a revolução e não o nada? Porque isso tem uma cara melhor! Mas,no fundo, por nada, por um prazer imaterial, uma palpitação impercep-tível na superfície das coisas.

NEGRI

Conheço sua paixão pelo acontecimento e seu prazer pela vida. Masquando filosofa, você parece querer distanciar-se disso. Como você con-segue gerir a esquizofrenia estrutura-acontecimento? Você não tem sem-pre tendência de antecipar a estrutura subjacente ao acontecimento,correndo risco de não o deixar falar? Esta questão pode ser encontradaem seu trabalho com Deleuze? Qual é sua teoria do acontecimento?Como imaginar hoje não o processo, mas o acontecimento revolucioná-rio, não as condições da revolução, mas o poder constitu!nte?

o COMUNISMO DA IMANÊNCIA • 21

GUATTARI

O acontecimento é um dom de Deus. Temos sempre a impressão deque nada acontece, de que nada mais acontecerá. E, então, surgem os"acontecimentos do Golfo". Mesmo neste caso eu pensei que, no fundo,nada aconteceria. A máquina mass-mediática planetária lamina todasas asperidades, todas as singularidades. Não encontramos mais as zonasde mistério. A questão agora é fazer um acontecimento com o que seapresenta. Não como os jornalistas que são obrigados, o que quer que sepasse, a fazer seu "serviço". Mas de modo mais poético. Trata-se aqui,portanto, de um poder constituinte, de uma produção ontológica suigeneris. Lidar com a serialidade. Nem que seja sonhando com os mili-tares americanos cozinhando nos seus tanques, com a confusão dos re-féns, com o júbilo dos jovens árabes, com o delírio sistemático deSadam ... Essas cenas, sem limites precisos, para que enfim aconteçaalguma coisa!

Quanto à questão que você levanta, relativa à estrutura, eu gostariade descentrá-Ia. Eu nunca pretendo descrever um estado de fato, umestado da história ou da subjetividade. Eu procuro apenas demarcar ascondições de possibilidade dos diversos modos de descrição possíveis.Para apreender ou para contornar as problemáticas da enunciação cole-tiva, todo sistema de modelização - quer seja ele teórico, teológico, es-tético, delirante ... - é levado a posicionar o que chamo de fatores onto-lógicos (os Fluxos, os Phylums maquínicos, os Territórios existenciais, osUniversos incorporais). Assim, encontra-se conjurada ou assumida par-cialmente a questão, para mim essencial, do pluralismo ontológico. Háescolha de constelações singulares de Universos de referências, encar-nados em Territórios existenciais, eles próprios marcados por uma pre-cariedade, uma finitude que faz oscilar o Ser numa irreversibilidadecriacionista. Nessas condições, uma ontologia só pode ser cartográfica,ll1etamodelização de figuras transitórias de conjunções intensitárias. Ollcontecimento reside nessa conjunção: de uma cartografia enunciadora(~essa tomada de ser precária, qualitativa, intensiva. Essa relação defundação recíproca entre o que exprime e o expresso, o que dá e oChldo, encontra sua expressão exacerbada na criação estética precisa-mente considerada como poder constituinte ontológico.

Digamos que existam três tempos: o do estado inicial, o do retorno a

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22 • O COMUNISMO DA IMANÊNCIA

zero e o da retomada de processualidade. O segundo tempo não é dia-lético. Nele, nunca se termina com a finitude, com o não-senso. E, noentanto, trata-se de um tempo rico, de uma recarga de complexidadeatravés de um banho caótico. O tempo zero sempre reserva surpresas; apartir de pontos de singularidade podem dar partida novas linhas depossível. O terceiro tempo seria o dos imaginários, ou seja, da retomadadas ambigüidades. Como definir um comunismo, ou simplesmente umamor bem-sucedido, escapando de fato às ilusões de um desejo de eter-nidade. A potência de viver, a alegria spinozista só escapa à transcen-dência, à lei mortífera por seu caráter de modalidade fragmentar, po-lifônica, multirreferencial. A partir do momento em que uma normapretende unificar a pluralidade dos componentes éticos, a processuali-dade criativa se oculta. A única verdade última é a do caos como reser-va absoluta de complexidade. O que constituiu a força e a pureza dasprimeiras "reprises" de socialismo e de anarquismo foi justamente termantido reunidos, ao menos parcialmente, um imaginário comunistaou libertário e um sentido agudo da precariedade dos projetos indivi-duais e coletivos que os suportavam. Desde então, a finitude tornou-seinsípida, a subjetividade mass-mediatizada e coletivizada se infantilizou.A finitude do segundo tempo de "fio-terra" não está dada de uma vezpor todas. Sem cessar, ela deve ser reconquistada, recriada nos seusritornelos e na sua textura ontológica. A reconstrução do comunismopassa hoje por uma ampliação considerável dos modos de produção desubjetividade. Donde a temática de uma junção entre a ecologia do meioambiente, a ecologia social e a ecologia mental por uma ecossofia.

TraduçãoROGÉRIO DA COSTA

PLISSÊ FRACTAL .

........................................ PIERRE LÉVY

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O PENSAMENTO deve lançar-se acima dos "fatos" para interrogar-se, não apenas sobre suas causas mecânicas, mas também so-

bre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciaçãodos quais eles são os enunciados, sobre os mundos de vida e de signifi-cação do magma dos quais eles surgem. Remontar até às fontes, tal é osentido do problema do transcendental.

Através de quê há um mundo? A história da filosofia e, parcialmente,a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de proposiçõesque foram articuladas para responder a esta questão. Evidentementenão é possível retomar aqui toda a história da filosofia e nem mesmoresumi-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas poralguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas deGuattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje arepropor este problema.

No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger,depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então,como os cognitivistas contemporâneos, uma arquitetura do sistema cog-nitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância,pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, comopensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora,mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico,não seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações re-cursivas e sua autopoiese, como o sujeito cognitivo último, aquele quecalcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda ci-

24

PLISSÊ FRACTAL • 25bernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela.Teríamos então atingido o termo? Não, pois o organismo, tal como eleé, remete duas vezes às contingências da História: o "fora" intervémuma primeira vez através da construção ontogenética e da experiênciade vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo especí-fico ao acaso da filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não podese separar da história infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfe-ra, e até mesmo além, ela se conecta rizomaticamente com a Terra, comsuas redobras e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as com-plexidades da physis e de seu devir.

Em vez de conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biológico e dobiológico ao físico, a meditação do sujeito transcendental do conheci-mento pode remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulsõese dos fantasmas. Mas ainda aqui é impossível deter-se no inconscientefreudiano como num termo último. Guattari e Deleuze mostraram queo dito inconsciente não se limita a um reservatório de desejos incestuo-sos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a História, asociedade e o cosmos. O inconsciente total, que não é mais concebidocomo uma entidade intrapsíquica, são os agenciamentos coletivos deenunciação, os rizomas heterogêneos ao longo dos quais circulam nos-sos desejos e pelos quais se lançam e se relançam nossas existências.Ora, não se pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra nacomposição dos agenciamentos de enunciação e das máquinas desejan-tes: lugares, momentos, imagens, linguagens, instituições, técnicas, flu-xos diversos, etc. E, finalmente, descobrimos mais uma vez que o termoúltimo, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomea-do "inconsciente", bem poderia ser o próprio mundo.

Voltemos à encruzilhada de onde partimos, o sujeito do conhecimen-to, para seguir uma terceira via, a da empiria. A experiência não é originá-ria? E antes mesmo da experiência, os sentidos que a tornam possível?Em Os Cinco Sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de construir, apartir de cada uma das modalidades sensoriais, uma metafísica, umaIlsica, uma gnosiologia, uma estética, uma política e uma ética. A sensa-ção seria, por conseguinte, fundadora. Mas o próprio do tato, da audi-çã.o, do olfato, do paladar e da vista não seria o de se remeter ao mun-do? Se a percepção faz existir para nós o fora, por outro lado, é tambémsobre o devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida dos

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sentidos. Ser é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção e o mundosensível são as duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por umareversão talvez previsível, o livro seguinte de Michel Serres, Statues, punhaa coisa, a massa, a exterioridade mais densa no fundamento dos coleti-vos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O empirismo si-tua o mundo no coração do conhecimento. É o que Kant, que pretende-ra põr o sujeito no centro, demonstrou muito bem em sua metáfora da"revolução copernicana" em filosofia. Mas por mais que se queira ex-pulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele volta pelasjanelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpáveis que freqüen-tam e fazem viver o sujeito, e pela força do tempo, que tudo transforma.

Explorando outras vias, podemos remontar do sujeito individual àssignificações sociais que o habitam, ao imaginário instituinte que () atra-vessa (Castoriadis), à remissão historial que o destina (Heidegger), aosepistemai que estruturam seu discurso (Foucault), etc. Recordemos que aprincipal aporia, quando se considera um transcendental histórico, vemde seu caráter por definição evolutivo e variado. Um transcendental his-tórico existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominadosele se metamorfoseia permanentemente? Se concebêssemos causas eefeitos na região transcendental, o que então a diferenciaria do campoempírico? Todo o fatual e o contingente da História (geografia, quedade impérios, propagação de religiões, invenções técnicas, epidemias,etc.) não retroage sobre a região historial? Não resultam as idas e vindasdo transcendental histórico, de efeitos ecológicos, de processos cosmo-politas? Mais uma vez, para compreender aquilo através de que há ummundo, somos conduzidos à complexidade e aos redemoinhos do pró-prio mundo.

PRIMEIRA ABORDAGEM DA DOBRA

Com efeito, é sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, suarealidade, sua materialidade, sua topologia singular, as contingências deseu devir, Cosmópolis povoada de coletivos heterogêneos ao infinito eem todas as escalas de descrição, é finalmente o próprio mundo que sedescobre, a cada vez, acima do complexo vital de significações que o fazser tal mundo para nós.

Pelas metáforas e imagens recebidas, pelas significações culturais a

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nós transmitidas (implicando em suas dobras fragmentos holográficosde natureza), pelo inconsciente maquínico conectado ao fora, pelas téc-nicas materiais, as escrituras e as línguas sob cuja dependência pensa-mos e produzimos nossas mensagens, tudo aquilo através de que expe-rimentamos e vivemos o mundo é precisamente o próprio mundo, acomeçar por nosso corpo de sapiência.

Mais do que grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o orga-nismo vivo é com certeza seu produtor; nisso é preciso seguir Varela.Mas devemos reconhecer igualmente que o mundo exterior, ou se qui-sermos, "o meio", já está também sempre incluído no organismo cog-noscente que o produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente emmáquina autopoiética e exopoiética, produtora de si e de seu fora. Aci-ma do mundo empírico experimentado por nós, o mundo transcenden-tal que evocamos aqui não é certamente redutível a algum estrato físico,ou biológico, ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é asoma ordenada ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo comoreserva infinita, transmundo, sem hierarquia de complexidade, sempree por toda parte diferente e complicado: Cosmópolis.

Corpos, culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações ... oempírico torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mun-do empírico. "Isso" se dobra e se redobra em transcendental e empíri-co. A dobra é o acontecimento, a bifurcação que faz ser. Cada dobra,ação-dobra ou paixão-dobra, é o surgimento de uma singularidade, ocomeço de um mundo. A proliferação ontológica é irredutível a uma ououtra camada particular dos estratos; igualmente irredutível a qualquerdobra-mestra como a do ser e dos entes, da infra-estrutura e da su-perestrutura, do determinante x e do determinado y. O mundo total eintotalizável, o transmundo cosmopolita, diferenciado, diferenciante emúltiplo é, ao contrário, infinitamente redobrado, ele fervilha de singu-laridades nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposições biná-rias maciças ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto, oindivíduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a técnica, oinerte e o vivo, o sagrado e o profano, e até a oposição de que partimosentre transcendental e empírico, todas essas partições são maneiras dedobrar, resultam de dobras-acontecimentos singulares do mesmo "pla-no de consistência" (Deleuze e Guattari). "Isso" poderia ter-se dobradode outra maneira. E como a dobra emerge num mundo infinitamente

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diversificado mas único, sempre se pode voltar ao acontecimento dadobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu drapê, pas-sar continuamente de um lado para o outro.

A ALMA E o CORPO PARA GILBERT SIMONDON

De sorte que, como o demonstrou Gilbert Simondon, não há subs-tâncias, mas processos de individuação, não há sujeitos, mas processosde subjetivação. A subjetivação como ação ou processo continuado cons-titui um "dentro", que não é outro senão "a dobra do fora" (Deleuze).Os dualismos achatam e unificam violentamente aquilo que eles distin-gue~, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas pelasquaIS passam as regiões do ser, uma na outra. "Descartes não apenasseparou a alma do corpo; ele criou também, no próprio interior da alma,uma homogeneidade e uma unidade que prOíbe a concepção de um gradien-te contínuo [o grifo é meu - P.L.] de distanciamento em relação ao euatual, reunindo as zonas mais excentradas, no limite da memória e daimaginação, a realidade somática" (Gilbert Simondon. L'individuationpsychique et collective, p. 167).

A alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas. ,comUnIcam-se por suas zonas de sombra. A consciência livre, racional evolunt~ria, de um lado, o mecanismo físico-químico dos órgãos, de ou-tro, se Juntam pela sensação, pelo afeto, toda a obscuridade psicossomá-tica do desejo, da sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o her-dado do psiquismo, toda a divisão e a exterioridade do espírito a simesmo o redobram para o somático, fazem-no tornar-se corpo.

A união psicossomática só se torna um problema se tentarmos conec-tar as extremidades da dobra, que são apenas dois casos-limite: de umlado, a consciência clara e racional; do outro, o corpo-matéria ou o ca-dáver automóvel. ~as a alma e o corpo já se comunicam sempre peladobra que os relacIOna um ao outro, pelas multiplicidades negras dacurvatura, que formam a maior parte do sujeito.

O esforço em se seguir a dobra, esboçado aqui sobre o caso da almae do corpo, deveria ser levado a todas as oposições molares. A cada vez,no lugar de entidades homogêneas e bem recortadas, descobriríamosum plissê fractal (Mandelbrot), uma infinita diferenciação do ser segun-do dobras, passando continuamente umas nas outras.

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A CIÊNCIA E A SOCIEDADE EM BRUNO LATOUR

O que Gilbert Simondon assinalou sobre as relações da alma e docorpo, Bruno Latour mostrou no caso da ciência e da sociedade. O au-tor de La Science en Action mergulhou a ciência e a técnica no grandecoletivo heterogêneo dos homens e das coisas. Mas seria um erro acre-ditar que ele negou toda especificidade à tecnociência, uma vez que elemostra as forças díspares que a compõem.

A ciência e a técnica emergem de uma megarrede heterogênea; emcontrapartida, elas contribuem para atá-la, curvá-la de outra maneira.Ciências e técnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita,que se redobra em ciência das coisas, de um lado, e em sociedade doshomens, de outro.

Há certamente uma identidade (múltipla e variável) da ciência, umestilo de dobra, um regime de enunciação que a singulariza. Mas umpensador rigoroso não pode se atribuir a particularidade produzida porum acontecimento (por mais contínuo que seja) sem ter percorrido pre-viamente a dobra que o efetua. Ele não pode dar-se a essência antes doprocesso. Antes de qualquer especificidade do conhecimento científicoe da eficácia técnica, há primeiro uma maneira de dobrar entre a verda-de das coisas em si e o conflito hermenêutico das subjetividades. Essetipo de partição se redobra sempre :novamente, no próprio seio da ativi-dade científica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outrolugar. Uma tal proposta científica ter-se-ia situado na face social ou de-masiado humana da partição se a dobra tivesse passado mais longe.Como para a alma e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar edesenhar a dobra não pode se realizar sem dissolver a unidade e a ho-mogeneidade das regiões que ele distingue. Apesar de todas as analo-Kiaspossíveis, a dobra que singulariza a ciência não é idêntica, por exem-plo, às que fazem advir a justiça, a beleza ou a santidade.

As LEIS DO INERTE E O MILAGRE

no VIVO EM PRIGOGINE E STENGERS

De todos os contemporâneos exploradores de dobras, Ilya Prigogine(! Isabelle Stengers estão indubitavelmente entre os mais notáveis. Em

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suas duas obras, Entre o Tempo e a Eternidade e A Nova Aliança, eles tenta-ram pôr abaixo a cortina de ferro ontológica que uma certa tradiçãofilosófica havia construído entre os seres (o em si) e as coisas (o para si).Apoiando-se sobre os últimos desenvolvimentos da ciência contempo-rânea, a filósofa e o prêmio Nobel renovaram profundamente a filosofiada natureza. Lendo-os, redes cobrimos na physis a irreversibilidade dodevir e o caráter instituinte do acontecimento que acreditávamos reser-vados aos universos do homem (desde que se pensa a História) e davida (desde a descoberta da evolução biológica). Os processos distantesdo equilíbrio e os sistemas dinâmicos caóticos conectam, por uma do-bra que permaneceu invisível por muito tempo, a necessidade estáticado mecanismo e o acaso miraculoso da auto-organização viva. Desde omomento em que o determinismo da "matéria" e a inventividade finali-zada do vivo não são mais do que casos-limite de um continuum infinita-mente complexo, redobrado e semeado de singularidades, a vida e ouniverso físico, o sinal e a significação deixam de se opor. Não somenteeles se relacionam um com o outro em sua diferença, mas passam tam-bém um no outro.

O conceito de sistema dinâmico caótico é um dos que permitem pen-sar a voluta gigante unindo a vida organizada às necessidades da physis.Para ilustrar e modelizar este conceito, Prigogine e Stengers escolheramespecialmente a "transformação do padeiro", isto é, o estiramento e aredobra indefinidamente reiterada de uma superfície representando "oespaço das fases de um sistema". A operação matemática da transfor-mação do padeiro é uma espécie de análogo formal do trabalho que umverdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão (ver La Nouvelle Alliance,p. 329-43 e 401-07, assim como Entre le Temps et l'Éternité, p. 96-107). Etalvez seja a própria imagem do tempo antes que ele escoe, antes queele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento semfim de estiramento, de dobra e de redobra de uma superfície abstrata.

A MECANOSFERA

Dobras não cessam de involuir e de se recurvar umas nas outras, aopasso que outras se desdobram. Acolhido na dobra individuante, o si-nal, ou a ondulação das coisas, torna-se significação. Os seres se indivi-duam em torno das dobras das coisas, da ondulação das paisagens, das

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curvas dos corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha melódi-ca da curvatura dos acontecimentos ... Entidades se individuam ou se,desindividuam para que "isso" se preste a outras dobras, para que "isso"se reindividue de outra maneira. Quer se trate de um objeto cósmico,de uma espécie, de um biotopos,l de uma cultura, de um regime políti-co, de um momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquerprocesso de individuação, uma máquina trabalha (ver "I1hétérogenesemachinique", Félix Guattari, Chimeres n.O 11, 1991, retomado em Caos-mose, Galilée, 1992).

A análise redutora acredita ter encontrado um fundamento da expli-cação, um último solo causal, que se confunde freqüentemente com esteou aquele estrato (o "biológico", o "psíquico", o "social", o "técnico",etc.) Ora, a análise preocupada com a singularidade dos seres, em vezde perder tudo (exceto a certeza), numa regressão a um fundamento,qualquer que seja ele (ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vatti-mo), deve ao contrário tentar fazer aparecer a consistência própria, adimensão de autopoiese (Vareia), a qualidade ontológica p~rticular da<'ntidade, do fenômeno ou do acontecimento considerado. E para esca-par da redução que precisamos do conceito de máquina.

Uma máquina organiza a topologia de fluxos diversos, desenha osmeandros de circuitos rizomáticos. Ela é uma espécie de atrator querccurva o mundo em volta dela. Enquanto dobra dobrando ativamenteoutras dobras, a máquina está no cerne do retorno do empírico sobre otranscendental. Uma máquina pode ser considerada numa primeiraaproximação como pertencendo a tal estrato físico, biológico, social,t(>cnico, semiótico, psíquico, etc., mas ela é mais geralmente transestrá-tica, heterogênea e cosmopolita. As máquinas são "aquilo através deque" há estratos. .

Não somente uma máquina produz algo num mundo, mas ela contn-hui para produzir, para reproduzir e para transformar o mundo no qualdu funciona. Uma máquina é um agenciamento agenciante, ela tende aIIP voltar, a retornar sobre suas próprias condi-,nes de existência para reproduzi-las. A composi-çIIo das máquinas não é nem conjuntista, nemmecânica, nem sistêmica. Isso é impossível, poisI1ll perspectiva neovitalista que é a nossa aqui,('ndn máquina é animada por uma subjetividade

I "biotope", em francês: meiobiológico determinado queoferece a uma população ani-mal e vegetal bem determina·da condições de hábitat rela·tivamente estáveis (Eco!.)

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ou por uma pro to-subjetividade elementar. Não nos representaremos,portanto, máquinas (biológicas, sociais, técnicas, etc.) "objetivas" ou"reais", e vários "pontos de vista subjetivos" sobre esta realidade. Naverdade, uma máquina puramente "objetiva" que não fosse movida pornenhum desejo, nenhum projeto, que não fosse infiltrada, animada, ali-mentada de subjetividade, não se sustentaria nem um segundo, essacarcaça vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade nãopode, portanto, ser restringida ao "ponto de vista" ou à "representa-ção", ela é instituinte e realizante. Por outro lado, a subjetividade nãotoma forma e só se sustenta com agenciamentos maquínicos diversos,entre os quais, na escala humana, os agenciamentos biológicos, simbóli-cos, midiáticos, sociotécnicos ocupam um lugar capital.

As concepções habituais da composicão só respondem na verdadeaos problemas da objetividade pura, dos quais os modelos sistêmicos,informáticos e cibernéticos são apenas uma variante elaborada. Masas máquinas não são nem puramente objetivas nem puramente subje-tivas. A noção de elemento ou de indivíduo também não lhes convémmais, nem a de coletivo, uma vez que a coleção supõe a elementari-dade e faz sistema com ela. Como pensar então a composição das má-quinas?

Cada máquina possui uma qualidade de afecto diferente, uma con-sistência e um horizonte fabulatório particular, projeta um universosingular. E no entanto ela entra em composição, ela se associa comoutras máquinas. Mas de que modo? Querer integrar, unificar violen-tamente as máquinas plurais sob um só projeto, um só princípio deconsistência, resultaria talvez em matá-las e certamente diminuir suariqueza ontológica. Uma unificação "real" seria destruidora, uma uni-ficação conceitual empobreceria a compreensão e a inteligência dofenômeno considerado. Portanto, é necessário respeitar a pluralidademaquínica, uma pluralidade sem elementos (por baixo) nem sínteseou totalização (por cima). Mas a pluralidade, justamente porque elanão é composição de elementos, não pode ser sinônimo de separação.Há certamente uma composição ou uma correspondência das máqui-nas. Esta articulação paradoxal deverá ser analisada com infinita deli-cadeza e precaução em cada caso particular. Levantamos a hipótesede que não existe nenhum princípio geral de composição, mas que, pelocontrário, cada agenciamento maquínico inventa localmente seu pró-

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prio modo de comunicação, de correspondência, de compossibilida-de ou de entrelaçamento da autopoiese (pólo identitário) e da hetero-poiese mútua (pólo associativo).

Distingamos cinco dimensões da máquina:1. Uma máquina é diretamente (como no caso do organismo) ou in-

diretamente (na maior parte dos casos) autopoiética (Varela), ou auto-realizadora (como se diz de uma profecia auto-realizadora), isto é, elacontribui para fazer durar o acontecimento da dobra que a faz ser.

2. Uma máquina é exopoiética, ela contribui para produzir um mundo,universos de significações.

3. Uma máquina é heteropoiética, ou fabricada e mantida por forças dofora, pois ela se constitui de uma dobra. O exterior já está aí presentesempre, ao mesmo tempo geneticamente e atualmente.

4. Uma máquina é não somente constituída pelo exterior (é a redobrada dobra), mas igualmente aberta para o fora (são as bordas ou a abertu-ra da dobra). A máquina se alimenta, recebe mensagens, está atravessa-da por fluxos diversos. Em suma, a máquina é desejante. A este respeitolodos os agenciamentos, todas as conexões são possíveis de uma máqui-na a outra.

5. Uma máquina é interfaciante e interfaciada. Ela traduz, trai, desdo-bra e redobra para uma máquina jusante os fluxos produzidos por umamáquina montante. Ela é ao mesmo tempo composta por máquinaslradutoras que a dividem, multiplicam e heterogenizam. A interface é adimensão de "política estrangeira" da máquina, o que pode fazê-la en-trar em novas redes, fazê-la traduzir novos fluxos.

Toda máquina possui as cinco dimensões, mas em graus e propor-~:(cs variáveis. Repitamo-lo, as máquinas nunca são puramente físicas,hiológicas, sociais, técnicas, psíquicas, semióticas, etc. Cosmópolis atra-v(~ssasempre as dobras transitórias que escavam estas distinções. Certas1l1(Lquinasestratificantes ou territorializantes - elas mesmas perfeitamenteIwlcrogêneas - trabalham precisamente para endurecer as dobras es-Ir(llicas. São redes de máquinas cosmopolitas que produzem os seres, oslIlodos de ser, o próprio Ser de acordo com uma modulação infrnita deIJ.I'llUS e qualidades.

A produtividade ontológica se auto-entretém, pois máquinas interfa-n's, parasitas, vêm gerar os hiatos, os abismos ou as dobras muito pro-fundas que separam as subjetividades-mundos, suas temporalidades, seus

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espaços e seus signos. Uma máquina mantém presente (traindo-o aomesmo tempo) o acontecimento da dobra do qual ela resulta. Ela ins-creve o clinâmen inicial na mecanosfera, faz com que ele dure, retorne e,ao fazê-lo, ela se instaura na origem de outras dobras.

Pensado como mecanosfera, todo o mundo empírico retorna ao trans-cendental, torna-se fonte multiforme e plurívoca de universo de exis-tência e de significação.

OS TRÊS ANDARES DO TRANSCENDENTAL

Partimos de uma concepção clássica do transcendental: a interiorida-de do sujeito, ou o objeto, ou a experiência, etc. Pouco a pouco, é adobra do ser e do ente (ver Heidegger. Essais et Conférences. Gallimard, p.279-310) ou do transcendental e do empírico que se impôs à nossa medi-tação. Devemos agora voltar à própria possibilidade das dobras (e nãosomente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para este fimtrês níveis de transcendental.

O transcendental de nível zero: Há inicialmente o "isso", o inconscientetotal intotalizável, o plano de consistência. As entidades que povoamesse arquilugar ou esse prototempo estão em composição e decomposi-ção perpétuas e simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade absolu-ta e estão ao mesmo tempo infinitamente próximas e infinitamente dis-tanciadas umas das outras. Evidentemente será preciso ter cuidado paradistinguir o caos transcendental da desordem no sentido habitual outermodinâmico do termo ... antes de meditar a dobra que relaciona unscom outros estes sentidos. (Ver, para uma exposiçâo mais detalhada so-bre o caos, as Cartographies Schizoanalytiques de Félix Guattari.) O caostranscendental é a condição de possibilidade da dobra como aconteci-mento.

O transcendental de nível um: O acontecimento da dobra é aquilo peloqual algo se diferencia. A dobra é trabalho antes de qualquer objeto ouqualquer fluxo trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativoabsoluto. A dobra é uma espécie de inflexão do plano de consistência,um clinâmen.

O transcendental de nível dois: São os complexos maquínicos dobrados/dobrantes que produzem os mundos empíricos. Sob o ser e o nada, oser e os entes, os universos biológicos, sociais; seus modos de enuncia-

PLISSÊ FRACTAL • 35ção e suas significaçôes trabalham agenciamentos transestráticos, má-quinas cosmopolitas heterogêneas que se entre traduzem, se entrepro-duzem e se entredestroem perpetuamente. O transcendental de níveldois é o coletivo em metamorfose permanente de todos os "aquilo atra-vés de que". A organizacão "hipertextual" (ver P. Lévy. As Tecnologias daInteligência, 1993) da rede maquínica proíbe qualquer redução a umainfra-estrutura, qualquer rebatimento do transmundo sobre uma ordemparticular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a megamáquina mundo-mundo, o anel de Moebius cósmico onde empírico e transcendentalIrocam perpetuamente seus lugares ao longo de uma dobra única e infi-nitamente complicada.

DIREÇÕES DE PESQUISA: ÉTICA E SEMIÓTICA

A ontologia do plissê fractal poderia prolongar-se em duas direções.I'rimeiramente para uma filosofia da significação. Pois todo signo é do-Ilra, a forma mais simples da dobra significante sendo o desdobramentosignificado/significante, que se pode complicar, segundo Hjelmslev, emI'xpressão e conteúdo, cada um destes dois termos se subdividindo ain-da em forma e matéria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos (ape-IIIIS Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). É o mesmo quedizcr, com Félix Guattari, que existem tantas semióticas (de estilos dedobras significantes) quantos agenciamentos de enunciação. Músicas,!'idades, rituais, tatuagens, signos plásticos ou cinematográficos, ima-Io4f'nsinfinitamente difratadas da rede midiática, máquinas de escrita emIlbismo dos softwares, imaginários plurissemióticos em ato, universosf'xislcnciais ... a dobra simples do significante e do significado só apare-1'1', p.ntão, como um caso-limite bastante pobre.

Sú evocamos aqui, por enquanto, a estática do signo, sua estrutura.ll.!lltl é o trabalho da significação como ato? Como pensar o redobra-IIIPlllo/desdobramento de afetos, de imagens e representações produzi-do pelo acontecimento do signo no grande drapê fractal da memória e,IlIIt1salém, ao longo das alternâncias de dentro e de fora interfaciadasChl mecanosfera? Quais são as máquinas heterogêneas que trabalhamI'UI'Il manter o estrato semiótico como tal e pelas quais o signo se rela-I'lollll sempre já com o a-significante, se confunde com os processosl'IIIUllOpolitas ?

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Enfim, a ontologia da dobra desemboca numa ética, ou numa polí-tica. Se o empírico volta ao transcendental, os cabalistas tinham razão:é no mundo de baixo que se decide em última instância a sorte domundo de cima. Não somos somente destinados pelo desvelamentohistoriaI, como o pretendia Heidegger, somos também responsáveis(no sentido mais forte do termo) por ele. Agindo efetiva ou empirica-mente, fazemos emergir um horizonte de sentido historiaI, um imagi"nário instituinte, um universo existencial ou incorporaI. Temos certa-mente de responder pelas conseqüências materiais de nossos atos, mastambém pelas matrizes de significação que ajudamos a transmitir, con-solidar, edificar e destruir. Não entendamos esta relação essencial daética com a significação num sentido estreito. Não se trata unicamentede lembrar o papel primordial dos escritores, dos artistas, dos homensde "comunicação" e, em geral, de todos os que trabalham explicita-mente no campo semiótico. Os atos "puramente práticos", técnicos,administrativos, econômicos e outros contribuem tanto quanto os atosde discurso para a construção dos agenciamentos coletivos de enun-ciação, para a produção das qualidades de ser. A ética e a política nãoconcernem apenas às relações dos humanos entre eles, à relação como "próximo", mas igualmente à relação com o mundo. Que mundoajudamos a inventar e a fazer existir?

Esta interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questõesético-políticas particulares.

Em primeiro lugar, enquanto cidadãos do mundo total, o que é feitode nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas flo-restas, suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremosviver?

Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de quemodo devemos agir para com os outros mundos, produtos de formas devida, de cultura, de significação e de subjetividade diferentes? Que tiposde relação estabelecemos com modos de ser que não são os nossos (mascom os quais estamos, no entanto, sempre em relação pelas redobras denossa participação com a mecanosfera)?

Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com otransmundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência de novosagenciamentos de enunciação? Favorecemos ou, ao contrário, restringi-mos a produtividade ontológica? Mantemos as dobras em sua essência

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de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em oposições, es-tratos, substâncias? Escolhemos as individuações sempre capazes dereceber novas dobras ou as individualizações rígidas e fechadas?

A ética se relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, osoutros mundos (o próximo é apenas um caso particular de outro mun-do), e o transmundo das dobras, dos agenciamentos de enunciação edos processos cosmopolitas. Três figuras do anel imanência-transcen-dência que não cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o serem sua infinita diversidade.

TraduçãoSORAYA OLIVEIRA

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A PAIXÃO DAS MÁQUINAS .

.................................. FÉLIX GUATTARI

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(]) (i) ®

O TEMA da máquina ocupa-me há muito tempo, talvez menos como·objeto conceitual que como objeto afetivo. Sempre fui, como mui-

tos dentre vocês, atraído, fascinado pela máquina. Quando estudanteda Sorbonne, lembro-me de ter apresentado uma análise sobre Le Tra-vail en Miettes de Friedmann, e do olhar espantado do professor enquan-to e~ lançava meus ataques contra Friedmann; nessa época, eu era mui-to vIrule~to contras as visões mecanicistas da máquina. Achava, no quetalv:z. seja uma queda pelo cientificismo, que podíamos esperar umaespecIe de salvação pela máquina. Na seqüência, tentei alimentar esteobjeto maquínico. Devo avisá-los que não se trata de algo que dominomas de uma espécie de núcleo ao qual fui conduzido por ciclos. O últi-mo foi desencadeado pelo livro de Pierre Lévy, As Tecnologias da Inteli-gência. Fiquei surpreso por encontrar ali uma reativação dessa temática,transposta para o campo das tecnologias informáticas. Em outras pa-lavras, reivindico o direito a essa forma de pensamento que procedepor eixos afetivos, por afetos, em vez de um pensamento que preten-de fornecer uma descrição científica, axiomática. Repito que se trata deuma temática totalmente aberta, e gostaria que ela assim fosse tratadana discussão, para perceber os ecos que esse tipo de reflexão podedespertar.

Encontramo-nos atualmente numa inevitável encruzilhada, a do aná-tema lançad~ contra a máquina, a idéia de que as tecnologias nos colo-c~ nu:n~ sItuação de inumanidade, de ruptura em face de qualquerprojeto etlco. De fato, a história contemporânea reforça esta perspectiva

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maquínica catastrófica, com as degradações ecológicas e outras mais.Poderíamos assim ficar tentados a dar meia-volta e recuar em relação~l era maquínica, para compartilhar de não sei qual territorialidadeprimitiva.

Pierre Lévy usa a seguinte fórmula, na minha opinião muito feliz:"lentar derrubar a cortina de ferro ontológica entre o ser e as coisas".Parece-me que um dos meios de derrubar esta cortina de ferro, presenteem toda a história da filosofia até Heidegger, talvez seja esta interfacemaquínica, ou esta máquina concebida como interface, que Pierre Lévydenomina "hipertexto". De fato, para sair desta fascinação pela técnica,c da dimensão .mortífera que às vezes assume, é preciso reapreender,reconceitualizar a máquina de outro modo, para partir do ser da máqui-na como aquilo que se encontra na encruzilhada, tanto do ser em suainércia, sua dimensão de nada, como do sujeito, a individuação subjeti-va ou a subjetividade coletiva. Este tema está presente na história daliteratura e do cinema, nos mitos, como o da máquina que possui umaalma e um poder diabólico. Não proponho exatamente um retorno alima concepção animista mas sim uma tentativa de considerar que, namáquina, na interface maquínica, existe alguma coisa que seria, não daordem da alma, humana ou animal, anima, mas da ordem de uma pro-lo-subjetividade. Isto quer dizer que há na máquina uma função de con-sistência, de relação a si e de relação a uma alteridade. É seguindo estesdois eixos que tentarei avançar.

Comecemos do mais simples, do que é já mais ou menos adquirido, aidéia de que o objeto técnico não pode ser limitado à sua materialidade.Ilá na techné elementos ontogenéticos, elementos de um plano, de cons-trução, relações sociais que sustentam as tecnologias, um capital de co-nhecimento, relações econômicas e, pouco a pouco, toda uma série deIlIlerfaces no seio das quais se insere o objeto técnico. A partir destaconcepção, pode-se estabelecer uma ponte entre uma máquina tecnoló-~'ica de tipo moderno e as ferramentas ou mesmo as peças da máquina,(' considerá-los igualmente como elementos que se conectam uns· aosoulros. Desde Leibniz, dispomos do conceito de máquina articulada (deIllaneira fractal, diríamos hoje) com outras máquinas, elas mesmas com-postas de elementos maquínicos até o infinito. Assim, aquém e além daml'lquina, o ambiente da máquina faz parte de agenciamentos maquíni-('OS, O elemento liminar da entrada na área maquínica passa por um

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certo aplainamento, a uniformização de um material, como o aço que éprocessado, desterritorializado e uniformizado para se moldar às for-mas maquínicas. A essência da máquina está ligada aos procedimentosque desterritorializam seus elementos, seu funcionamento, suas relaçõesde alteridade. Falaremos de uma relação de ontogenia da máquina téc-nica que a faz abrir-se para o exterior.

Ao lado deste elemento ontogenético, há uma dimensão filogenética.As máquinas tecnológicas são consideradas dentro de um Phylum, ondehá máquinas que as precedem e outras que as sucedem. Elas seguempor gerações - como as gerações de automóveis - cada uma abrindo avirtualidade de outras máquinas que virão. Elas incitam, por este ouaquele elemento, uma junção com todas as filiações maquínicas do fu-turo.

As duas categorias de ontogênese e de filogênese aplicadas ao objetotecnológico nos permitem traçar uma ponte com outros sistemas ma-quínicos que nem sequer são tecnológicos. Na história da filosofia geral-mente toma-se o problema da máquina como um elemento secundáriode uma questão mais geral, a da techné, das técnicas. É aqui que eu pro-poria uma inversão de ponto de vista, no sentido de que o problema datécnica não passaria de um subconjunto de uma problemática maquíni-ca muito mais ampla. Esta "máquina" é aberta para o exterior, para oseu ambiente maquínico e entretém todo tipo de relações com os com-ponentes sociais e as subjetividades individuais. Trata-se então de ex-pandir o conceito de máquina tecnológica ao de AGENCIAMENTOS MA-

QUÍNICOS, categoria que engloba tudo o que se desenvolve como máqui-nas nos diferentes registros e suportes ontológicos. Em vez de haveroposição entre o ser e a máquina, o ser e o sujeito, esta nova concepçãoda máquina implica que o ser se diferencia qualitativamente e desem-b~c~ ~uma pluralidade ontológica, que é o próprio prolongamento dacnativIdade dos vetores maquínicos. Em vez de haver um ser, comotraço comum presente no conjunto dos entes maquínicos, sociais, hu-manos, cósmicos, teremos, ao contrário, uma máquina que desenvolveUNIVERSOS DE REFERÊNCIA, universos ontológicos heterogêneos, marca-do~ por reviravoltas históricas, um fator de irreversibilidade e de singu-land~de. Não farei aqui uma descrição exaustiva, seria demasiado longa.

Alem ~a ferramenta protomáquina e das máquinas tecnológicas, háos conceitos de máquinas sociais. Por exemplo, a cidade é uma mega-

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máquina. Ela funciona como uma máquina. Teóricos da lingüística comoChomski introduziram o conceito de "máquina abstrata", presente nasmáquinas lingüísticas ou sintagmáticas. Atualmente, muitos biólogosI"alamde máquina a respeito da célula viva, do órgão, da individuaçãoe mesmo do corpo social. Aí também o conceito de máquina tende aimpor-se. Máquinas matemáticas de Turing ... Também no domínio dasidealidades - outro universo de referência - assiste-se à ampliação doconceito de máquina. Máquina musical. Muitos músicos contemporâ-neos desenvolvem esta noção. Máquina lógica, máquina cósmica, umavez que certos teóricos afirmam que o ecossistema da Terra é equivalen-le a um ser vivo, ou a uma máquina, no sentido amplo que estou usan-do. Para remeter a um passado de já vinte anos, podemos evocar asMÁQUINAS DESEjANTES, que retomam a teoria dos objetos parciais da psi-canálise - o objeto "a" como máquina desejante -, mas sob a forma deelementos não redutíveis a objetos adjacentes ao corpo humano. Aocontrário, o que está em questão são objetos de desejo, máquinas dedesejo, objetos-sujeitos de desejo e vetores de subjetivação parcial, quese abrem bem além do corpo ou das relações familiares, para os conjun-los sociais, cósmicos, e os universos de referência de todo tipo.

No campo da biologia, este cOI\ceito de máquina foi recentementedesenvolvido por teóricos como Umberto Maturana e Francisco Vare-la. Eles defmem a máquina como o conjunto de inter-relações dos seus('omponentes, independentemente dos próprios componentes. Eles ofe-recem assim uma definição que é próxima de uma máquina abstrata eque descreve a máquina como autopoiética, autoprodutora dela mesma(I reproduzindo permanentemente os seus componentes qual um siste-IIIU sem input nem output. Varela desenvolve bastante esta teoria. Na sua('otlcepção, opõe a autopoiese, relacionada essencialmente aos seres vi-vos biológicos, a uma alopoiese, em que a máquina busca os seus com-ponentes no exterior dela mesma. No seu conceito de alopoiese ele ar-rola os sistemas sociais, as máquinas técnicas e, para terminar, todos osHIst.emasmaquínicos que não os viventes. Este conceito de autopoiesepllrece-me muito interessante e proveitoso. No entanto, acho que seriapl"(~cisoir além da perspectiva de Varela e estabelecer uma ligação entreIIN máquinas alo e autopoiéticas. As máquinas alopoéticas encontram-se11t1mprena adjacência das máquinas autopoiéticas e é preciso assim le-vur em consideração os agenciamentos que as fazem viver juntas.

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Uma outra idéia, tomada de empréstimo a P. Lévy, é que os sistemasmaquínicos são interfaces que se articulam umas às outras - no que elechama de hipertextos - e que aos poucos recobrem o conjunto da "me-canosfera". Finalmente, gostaria de reunir as perspectivas de Varela ede P. Lévy, a fim de considerar a máquina ao mesmo tempo no seucaráter autopoiético e em todos os seus desenvolvimentos alopoéticos,de interfaceamento, que lhe conferem uma espécie de política exterior,de relações de alteridade. No seu primeiro livro, La Machine Univers,Pierre Lévy fazia referência a Varela; no segundo, paradoxalmente, nãoo menciona. Creio que isto ficará para uma terceira obra.

A máquina tem qualquer coisa a mais que a estrutura. Ela é "mais"que a estrutura porque não se limita a um jogo de interações, que sedesenvolve no espaço e no tempo, entre os seus componentes, mas pos-sui um núcleo de consistência, de insistência, de afirmação ontológica,que é prévio ao desenvolvimento nas coordenadas energético-espaço-temporais. Este núcleo maquínico que se pode qualificar, sob certosaspectos, de proto-subjetivo, protobiológico, possui caraterísticas queVarei a não levou em consideração. São elementos de onto ou filogêne-se, mas também de finitude. A máquina é portadora de uma finitude, dequalquer coisa da ordem do nascimento e da morte, donde a fascinaçãoque ela pode exercer enquanto máquina explodida, destruída, em im-plosão, portadora da morte no exterior mas também por si mesma.

Este foco de insistência autopoiética e de desenvolvimento de umalateridade heterogenética - que desenvolve registros de alteridade - édifícil de descrever ou definir. Não é um existente que se afirma nodesdobramento das coordenadas energético-espaço-temporais. Comoabordar um tal objeto, senão por intermédio do mito, da narração, istoé, de meios não científicos. Acho que este núcleo maquínico está sem-pre, de uma certa maneira, ligado a sistemas de metamodelações queexigem um desenvolvimento da teoria. Dou apenas uma indicação quenão desenvolverei, pois será retomada ulteriormente numa obra comGilles Deleuze. Este núcleo de afirmação autopoiética e interestrático,de abertura para o exterior, implica uma concepção da complexidadeconsiderada a partir de coordenadas decididamente "extra-ordinárias".A complexidade do objeto maquínico se realiza e se encama nos dife-rentes sistemas maquínicos que evoquei acima. Ao mesmo tempo, ela épermanentemente perseguida pelo caos que a dissocia, repartindo os

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seus elementos numa decomposição de natureza diferente. Como se('ste ser autopoiético, esta proto-subjetividade maquínica estivesse aomesmo tempo no registro da complexidade e do caos. Creio que é pre-ciso considerar o caos não como puramente caótico, mas que pode, nassuas composições de elementos e de entidades, desenvolver fórmulasde uma complexidade extrema. Tomemos um sistema aleatório como ojogo de roleta. Se você aposta no preto e no vermelho, a cada jo?~davocê tem a impressão de um sistema caótico que forma composlçoesaleatórias, sem nenhuma apreensão cognitiva. Mas se você joga porlongos períodos, aparecem séries das quais certos cálculos estatísticospermitem detectar composições complexas. Este sistema aleatório de-pende portanto de uma certa descrição matemática. D~-se o mesm~com o caos. O caos é portador de dimensões da maior hlpercompleXI-dade. Existe um mito muito conhecido segundo o qual, sorteando letrasao acaso, pode-se obter a fórmula da obra poética de Mallarmé. Serápreciso esperar muito tempo. Não obstante, a obra de Mallarmé habitapotencialmente este universo caótico de combinações múltiplas entre

as letras.Como fazer coexistirem essas duas dimensões, a complexidade e o

caos? Simplesmente considerando que as entidades presentes no caossuo animadas por uma velocidade infinita. Elas podem compor as com-pleições mais diferenciadas, mas se decomplexificar com a mesma ve-locidade. A idéia de uma velocidade infinita desemboca numa concep-(,JLO do caos capaz de ser portadora da complexidade. É nesses focoscaóticos que virá inserir-se essa proto-subjetividade que pode, por suavez, ser adjacente à dissociação caótica, à sua própria morte e às compo-sições infinitamente complexas. É o que chamo de "grasping CAÓTICO":

Ilpreensão instantânea da complexidade, constituída por todo tipo depotencialidade. Chamarei de "hipercomplexidade" essa complexidadeque é mais assumida do que realmente dominada e que se encontranuma relação de insistência, de repetição.

Na teoria estruturalista do significante, os diferentes componentes deum sistema podem ser tratados em termos de economia do significante.111\ sempre um sistema de quantidade de informação ou um sistemabinário presente nos diferentes sistemas heterogêneos. No modelo qu:pl'Oponho, não existe tradução entre os diferentes níveis de complexl-Ilude. Eles são portadores do seu substrato ontológico.

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48 • FÉLIX GUATTARI

ralizada. De modo algum. Esses diferentes sistemas de codificação estãoo tempo todo impregnados de focos de afirmação e posicionalidadesautopoiéticas do sistema de expressão. Este último é portanto sempresegundo em relação a um foco não discursivo do núcleo ontológico.

Seria preciso falar agora dessa heterogeneidade ontológica que re-presentam os universos de referência encarnados em diferentes siste-mas de discursividade e de certa forma tributários deles. Como se temacesso a eles? Estamos diante de um paradoxo. Somos lançados emsistemas discursivos, relações de tempo, de espaço e de trocas energéti-cas, e, ao mesmo tempo, temos de lidar com focos de afirmação existen-ciais por sua vez não discursivos. O paradoxo é que é justamente atra-vés de um material discursivo que devemos conseguir fornecer, nãouma representação, mas uma presentificação existencial desses focos.

No domínio da poesia, é o ritmo, os elementos de regularidade, tantono nível da expressão quanto do conteúdo, que desenvolvem um certouniverso poético. É a chave da existência de uma encruzilhada ontoló-gica entre a poesia e a música. No domínio psicanalítico, são objetos,sistemas repetitivos, portanto discursivos, que constituem os suportesexistenciais de focos de afirmação subjetiva. Por exemplo, na neuroseobsessiva encontra-se uma repetição infmita da lavagem de mãos quenão remete em absoluto a uma significação do tipo "o que significa la-var-se as mãos? E os micróbios?" Tudo é co-presente. O indivíduo serecompõe ao efetuar esse ritual. Ele se reafirma num componente desubjetividade parcial: sentir-se-estar-nessa-Iavagem-de-mãos. A neuro-se obsessiva talvez não seja o exemplo mais simples. Certos comporta-mentos têm a mesma função. O fato de roer as unhas, de cantarolarmentalmente quando se sente medo ou de repetir uma frase (como sehouvesse uma testemunha), tudo isto representa um meio de "apreen-são" dessas relações não discursivas. É uma função que eu chamo exis-tencial.

Ela aparece nos sistemas semióticos. Os lingüistas já a descreveramparcialmente. Penso nos teóricos como Austin, Ducrot, Benveniste, queenfatizaram a questão dos "shifters", os elementos da linguagem queexistem não para portar uma significação, mas para gravar no enuncia-do a marca do sujeito da enunciação. Lacan também fez uso dessa fun-ção performativa. De certo modo, foi através desse tipo de operadorque ele construiu a sua teoria da fala plena e da relação simbólica. Para

A PAIXÃO DAS MÃQUINAS • 49

uma boa abordagem desse assunto, recomendo o livro de R.Jakobson(Essais de Linguistique Générale, Minuit, 1963), mestre absoluto de Lacan.

Estamos diante de um paradoxo insustentável que somos obrigadosa sustentar. De qualquer forma, todos nós estamos nesta situação. Todasas sociedades têm de aceitar essa aposta, particularmente as sociedadesanimistas ou científicas. Devemos propor universos de referência, estru-turas qualitativas, texturas ontológicas a partir de elementos de discursi-vidade. Temos de produzir, desenvolver UNIVERSOS INCORPORAIS quesáo universais, ainda que datados ou marcados pelo nome próprio dosseus inventores. Eles poderiam evocar as idéias platônicas, e, no entan-to, estão inscritos na história. Trata-se de rupturas, mutações, marcadasde um fator de irreversibilidade, de singularidade.

P. Lévy opera grandes distinções entre as máquinas que derivam dooral ou da escrita, e as máquinas informáticas. Dentro do universo damáquina de processamento de texto - que muda completamente a re-lação à expressão -, Lévy nota as interfaces que compõem, que singula-rizam esse novo universo de referência: a escritura, o alfabeto, a im-prensa, a informática, a tela catódica, a impressora laser, a linotipo, osbancos de dados, o banco de imagens digitais, as telecomunicações ...Pronto, uma nova máquina. Hoje em dia, as crianças que aprendemlínguas através do processador de texto não se encontram mais no mes-1110 tipo de universo de referência, nem de um ponto de vista cognitivo(mmo se dá uma outra organização da memória, ou melhor, das memó-rias ... ), nem na ordem das dimensões afetivas, das relações sociais ouNicas.

O que essa espécie de delírio maquínico suscita? Tomemos um obje-to institucional, por exemplo um estabelecimento que acolha doentesIlsicóticos. Pode-se reificar completamente as relações intersubjetivasdizendo: o doente psicótico vem buscar ajuda de indivíduos que pos-Hlwmum saber, que administrarão medicamentos, interpretações, indi-,'u~:ües comportamentais para curar a psicose. É toda uma concepçãodll. subjetividade onde cada um está fechado na sua mônada, o que,lIum segundo momento, obriga a construir meios de "comunicação". ÉIIl1niverso da "referência comunicacional". É preciso inverter essa pers-jl"ctiva e nunca partir de entidades fechadas umas em relação às outras,pois isto implica a intervenção de modos de "comunicação", de "trans-1'",' .!lcia", Pelo contrário, a transferência deve ser primeira, deve já estar

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lá. Haverá máquina de subjetivação (ou não), segundo haja ultrapassa-mento (ou não) dos diferentes limiares de insistência ontológica, subje-tiva. Nesse momento, nessa relação autopoiética, há um conhecimentoimediato e pático da situação, "alguma coisa se passa". Quando umamáquina amorosa ou uma máquina de medo se desencadeia, não é de-vido ao efeito de frases discursivas, cognitivas ou dedutivas. Ocorre derepente. Tal máquina desenvolverá progressivamente diferentes meiosde expressão.

A clínica de La Borde é um estabelecimento concebido (em princí-pio) como uma máquina de subjetivação que, por sua vez, é compostade n subconjuntos de subjetivação. Desde a internação, essas relaçõesde subjetivação devem funcionar entre o doente e quem o acolhe. Ou-tros tipos de relações serão construídas a seguir entre os pacientes, osmonitores, mas também com os animais ou as máquinas. Cada um des-ses conjuntos deve ser suscetível de produzir ou de ser vetor de trata-mento, vetor de tomada de consistência existencial para os psicóticos,os quais, precisamente, estão em fase de descompensação ontológica.Será que nos contentaremos em fazer a constatação passiva: "Tudo vaibem, não nos restringimos ao mero face-a-face com o doente, há váriasoutras inter-relações"? Ou, ao contrário, trabalharemos as linhas de vir-tualidade maquínica, as linhas de alteridade maquínica trazidas pelosdiferentes subconjuntos? Se a cozinha for considerada um foco auto-poiético de subjetivação, será importante preocupar-se com o seu espa-ço, com suas dimensões arquiteturais, para favorecer as trocas e paraque ela não se torne uma pequena cidadela fechada em si mesma. Hojeem dia, nos hospitais, caminhões trazem, do exterior, os pratos de comi-da já prontos. Não há máquina de subjetivação. Uma máquina-cozinhaimplica um certo tipo de espaço, mas também num certo tipo de forma-ção e de troca entre as pessoas que nela trabalham. Os cozinheiros de-vem poder circular pelos outros serviços para conhecer as posições dealteridade dos diferentes postos de trabalho. É uma máquina complexa,um sistema de interfaces. Diria o mesmo para todos os outros serviços.A condução de um automóvel, por exemplo, é um momento muitoimportante para os psicóticos. Um psicótico pode ser incapaz de man-ter uma conversa, mas perfeitamente capaz de dirigir. Haverá assimuma composição subjetiva em função da tomada de consistência dessesdiferentes conjuntos. Enquanto alguns dentre eles perdem a sua consis-

A PAIXÃO DAS MÃQUINAS • 51

lência, outros poderão aparecer. Pode-se também levantar o problemade uma perda de· consistência geral, na medida em que se entra emrelações de serialidade de natureza etológica, provocando estados deselvageria inter-humana tal como ocorrem nos hospitais tradicionais.

A posição autopoiética e "hipertextual" da máquina possui uma po-tencialidade pragmática, permite assumir uma atitude criacionista, decomposição maquínica, em face dessa corlina de ferro ontológica quesepara o sujeito de um lado e as coisas de outro.

TraduçãoJAYME ARANHA FILHO

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o SOM DA LINHA DE VARREDURA .

,,·· BILL VIOLA

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Nossas maiores alegrias muitas vezes tomam a formada loucura.

S6CRATES

OS GREGOS ANTIGOS ouviam vozes. Nas epopéias de Homero,muitas vezes as personagens deixam-se guiar em seus pensamen-

tos e ações por uma voz interna, à qual obedecem automaticamente.Como observouJulianJaynes,' esse tipo de narrativa nos apresenta aimagem de um povo que não exerce por completo o que chamaríamosde livre-arbítrio ou julgamento racional. Para a maioria de nós, umaconversa parece desenrolar-se em nossa cabeça, mas com um interlocu-tor externo. Jaynes denomina esta paisagem mental de "mente bicame-ral", sustentando que, muito antes da civilização grega, os povos antigosnão concebiam plenamente uma idéia de consciência. Noutras pala-vras, eles tinham vários deuses. Hoje em dia, desconfiamos de quemexibe comportamentos semelhantes, mas esquecemos que o verbo "ou-vir" refere-se a uma espécie de obediência (as raízes latinas dessa palavrasão ob e audire, ou seja, "ouvir diante de, na frente de"). A necessidadede conceber a mente como uma entidade independente está tão profun-damente ancorada em nós, que só podemos admitir a existência de pes-

soas que "ouvem" vozes sob as três categoriasseguintes: os farsantes, os poetas, e os que so-frem de distúrbios mentais. Os "telespectadores"poderiam constituir uma quarta categoria. Os

I .JUlillll .I11ynes. The Origin ofGOII.ldmJ.meofof ill lhe Breakdown(lftllt 1I{(:IlTlleralMind. Boston:1-loughlOIl MilTIin Co., HJ76.

.14

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 55profetas e os deuses desertaram do nosso mundo, e a confusa conversaque se seguiu à sua partida deve agora ser exorcizada pelos que chama-IIlOS de "terapeutas".

"Um dia, na Namíbia, uma mulher chamada Be estava sozinha nomato, quando percebeu um bando de girafas fugindo diante da amea-ça de uma tempestade. O barulho dos cascos tornou-se cada vez maisforte e se misturou, na sua cabeça, com o barulho da chuva que co-meçava a cair. De repente, ela se põs a cantar uma canção quenunca havia ouvido. Gauwa (o grande deus) disse-lhe que era umacanção terapêutica. Be voltou para casa e ensinou a canção para Tike,seu marido. Eles cantaram e dançaram juntos ao ritmo daquela can-ção, que produzia um transe: uma canção terapêutica. Tike ensinou-a para outras pessoas, que também a transmitiram para outros."

(História tradicional dos kung bushmans, de Botsuana, registradapor Marguerite Anne Biesele.)2

Ao falar do funcionamento mental, a maioria das pessoas, de um modoIlIltiS ou menos consciente, pressupõe a existência de uma espécie de es-l"t~'O,Com freqüência, para descrever pensamentos, utilizamos termos ec'ollceitos próprios à manipulação de objetos sólidos, tais como "atrás da,'ttl)('ça" " d 'd'" " ".. , apreen er uma 1 ela, agarrar-se a uma crença", "bloqueio1I11'lltal",etc. Este espaço mental é análogo ao que o "espaço de dados" éplll'll. o computador, este primeiro e efetivo duplo do nosso cérebro. É ali'111(' se produzem os cálculos e são criadas, manipuladas e destruídas as1'1'1 )I'(~sentaçõesvirtuais, em forma digital, das imagens. À maneira de umaIIl1tol()gi~ fundamental, este espaço particular impõe sua presença antes1111 depOIS de cada ação, como alguma coisa que existiria a priori e de uma11 vez, desde o nascimento até o apagar final das luzes. Se existe umIfplL~:O do pensamento, seja real ou virtual, o som também deve ter o seu

hlMlll', na medida em que todos os sons procuram expressar-se como vi-11I't,~, () do espaço. Suas propriedades acústicas11I1'lIulIl-se,assim, o tema deste artigo.

I'IlI'll os europeus, os efeitos de reverberação1U'()Pl'ios às catedrais góticas estão ligados de'IOdo indissolúvel a um profundo sentimentolo ,mf~Tadoe tendem a evocar, ao mesmo tem-

2 História contada porJosephCampbell, em Alfred Van derMarck (ed.). The Jtáy of lheAnimal Powers. San Francis-co: Harper and Row, 1983, p.163.

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:"11,.

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po, O espaço interno privado - espaço da contemplação - e o reinoainda mais vasto do inefável. No cinema, efeitos de ressonância forammuitas vezes utilizados nas cenas de sonho ou nos flash-backs, para subli-nhar o caráter subjetivo e o desinteresse. As catedrais, como a catedralde Chartres, na França, foram construídas a partir de conceitos deriva-dos da filosofia grega - em particular de Platão e Pitágoras -, a partir desuas teorias sobre a correspondência entre o macrocosmo e o microcos-mo. Elas se expressam na linguagem do número de ouro, na proporçãoe na harmonia; manifestam-se na ciência dos sons e da música. Estesconceitos não eram considerados nem como fruto do pensamento hu-mano, nem como puras funções do pensamento arquitetural; represen-tam, ao contrário, os princípios divinos que sustentam a estrutura douniverso. Incorporá-los na estrutura de uma igreja era uma maneira derefletir sua forma na Terra, de um modo harmonioso.

Chartres e as outras catedrais foram freqüentemente descritas como"música petrificada". Neste contexto, a referência ao som e à acústica3 édupla. Trata-se não somente das características sonoras do espaço inter-no, que lembram as de uma caverna, mas também da própria forma eestrutura do prédio, que refletem os princípios das proporções sagradase da harmonia universal, espécie de acústico dentro do acústico. Assim quese entra numa igreja gótica, percebe-se imediatamente que é o som quedomina o espaço. Não se trata simplesmente de um efeito de eco, mastodos os sons - estejam eles próximos, afastados, fortes ou fracos - pa-recem ter como fonte o mesmo ponto afastado, como se eles se des-prendessem da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o ponto devista se torna o espaço inteiro.

A arquitetura antiga está repleta de exemplos notáveis de es~a~osacústicos - galerias com eco, onde um simples sussurrar se matenahzaalgumas centenas de metros mais adiante; perfeita nitidez dos anfitea-tros gregos, onde a voz de um ator, proveniente de um ponto fo.caldeterminado pelas paredes do recinto, pode ser claramente entendIdapor todos os ouvintes. As técnicas modernas da arquitetura acústica -Wé\.llaccSabine foi pioneiro nessa área, no início do século - foramdesenvolvidas para responder aos problemas de falta de nitidez devido~

à reverberação do som dentro de um espaço. Eduplamente divertido se pensarmos que, por um

:1 Ver lUj notaM complcmenta- d hárCM, no Ilnal do artigo, lado, os anfiteatros gregos foram construí os

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 57

dois mil anos, e, por outro, que o efeito de reverberação acústica dascatedrais góticas - resultante de sua estrutura arquitetônica, e não deuma intenção precisa - era considerado um elemento essencial de suaforma e de sua função global.

A ciência acústica estuda o som no espaço. Ainda que possa ser des-crita simplesmente como o estudo do comportamento das ondas sono-ras, não pode ser dissociada da arquitetura, pois os sons se manifestam,justamente, em sua forma mais interessante e complexa, quando se cho-cam com corpos sólidos, sobretudo os que enchem os espaços internosconstruídos pelo homem. Na sociedade rural da Idade Média, os mem-bros do clero ouviram, provavelmente pela primeira vez, as terríveisreverberações sonoras que invadem o espaço das catedrais. Uma lista,mesmo parcial, dos fenômenos acústicos mais comuns, pode parecerlima enumeração das visões místicas da natureza.

REFRAÇÃO.: quando ocorre uma mudança de meio (duas camadas dear em diferentes temperaturas, por exemplo), a velocidade de propaga-(,:<.1.0 da onda sonora varia, provocando uma curva na trajetória do som.Por ocasião dos funerais da Rainha Vitória em Londres, em 1901, aartilharia deu salvas de tiros, os quais, ainda que inaudíveis em toda aregião, materializaram-se subitamente, num estrondo poderoso, a cercade 145 quilômetros do local.

DIFRAÇÃO.: quando atingimos a extremidade de um obstáculo, ele pro-duz novas séries de ondas; mesmo sem enxergar, podemos ouvir pessoasfalarem do outro lado de um muro alto. O som parece contorná-lo.

REFLEXÃO.: ondas sonoras ecoam numa superfície, formando um ân-~lllo igual àquele em que chegaram. Se as superfícies são múltiplas, elasIW lransformam em eco e podemos ouvir nossa própria voz, às vezesI't~pctidavárias vezes, como se já existisse no tempo. Então, é possível('unlar consigo mesmo. Múltiplas reflexões regulares produzem as con-diçôes necessárias à reverberação, em que um mesmo som pode se re-p('Lirsem cessar num efeito de superposição, de modo que não se podedistinguir o som precedente do som presente.

INTERFERÊNCIA: dois sons entram em colisão. O que provoca, alterna-cllllllcnte, o reforço ou o enfraquecimento da força ondulatória de cada1I1ll. Por exemplo, num salão, o som de um instrumento grave torna-seMl'lldativamente quase inaudível quando nos aproximamos de um de-It'I'minado lugar.

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RESSONÂNCIA:4 as ondas sonoras se reforçam ao juntar-se a um somidêntico, ou quando sua forma física se harmoniza com as propriedadesda matéria ou as dimensões do espaço. A voz de um cantor toma-semais poderosa quando difundida num pequeno espaço; um objeto pro-duz um som específico quando batemos nele. O material e a forma deum objeto representam o seu potencial sonoro imobilizado.

VIBRAÇÃO SIMPÃTICA:5 ligada à ressonância; é provavelmente o fenô-meno mais evocador: quando se toca uma campainha, uma outra cam-painha idêntica começa a vibrar através da casa, produzindo o mesmosom.

Cada um destes fenômenos continua nos maravillhando mesmo de-pois de apreendermos o seu funcionamento científico de um modo ra-cional. Há algo de imortal num eco. Poderíamos, por exemplo, aventarum último estágio de reverberação, um espaço no interior do qual tudoo que já existiu um dia continuaria existindo - o final dos tempos, ondetudo está vivo, eternamente presente. Não é mera coincidência quandose tem a impressão de que a descrição de uma vibração simpática lem-bra uma emissão de rádio: é o mesmo princípio atuando. Os procedi-mentos que caracterizam os sistemas midiáticos contemporâneos estãopresentes em estado latente nas leis naturais; existiram desde sempre,sob diversas formas.

No fenômeno da ressonância, podemos constatar que todos os obje-tos possuem um componente sonoro, uma espécie de segunda existên-cia oculta, que se traduz num certo conjunto de freqüências. Em 1896,Nikola Tesla, um dos grandes gênios da era da eletricidade, suspendeupor uma corrente um pequeno motor oscilante na pilastra central deseu laboratório em Manhattan. Produziu, assim, uma poderosa resso-. nância física que se propagou através do prédio até as suas fundações

e provocou um tremor de terra: prédios intei-ros sacudiram, vidros quebraram e os condutos

, Ver as notas complementa-res, no final do artigo. de vapor explodiram em vários pátios de edi-, Ver as notas complementa- fícios. Ele teve de detê-lo a golpes de martelo.res, no final do artigo. Tesla concluiu que poderia calcular a freqüência

da ressonância da terra e transformá-la numaforte vibração, utilizando um condutor correta-mente ajustado, calibrado e colocado no lugarcerto.(i

1.1111.,

H Descrito por John ü'Neillem Prodigal Genius: lhe Lift ofNikola 'Rsla. Nova York: IvesWashbum Inc., W44, p. 159-62.

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 59"Percorrendo a terra, Palongawhoga experimentou o seu chama-

do, conforme lhe havia sido pedido. Todos os pontos de vibração aolongo do eixo terrestre, de um pólo a outro, começaram a ressonar: aterra inteira tremeu, o universo estremeceu em uníssono. Ele fez domundo um instrumento de som, e do som, um meio para transmitirmensagens e para celebrar o criador do universo."7

(Mito dos índios hopis sobre a criação do primeiro Universo.)

"No começo era o Verbo" ... E nos perguntamos, agora: "onde estava11 imagem?" Assim como o mito bíblico da Criação, a religião hindu (oioga e o tantra, por exemplo), e as religiões asiáticas mais recentes (comoo budismo) decrevem a origem do mundo no som. A força criadoraoriginal permanece acessível ao homem sob a forma do discurso sagra-do e do canto religioso. A invenção e o desenvolvimento das tecnolo-fl,iasde comunicação suscitam a seguinte idéia: o som estaria na origemelasimagens. Na era da imagem eletrônica, tendemos a esquecer que os~islcmasmais antigos de comunicação tinham por objetivo transmitir ar"la. Edison, por exemplo, tentou, inicialmente, promover o fonógrafo110 mundo dos negócios, para substituir os estenógrafos dos escritóriospor um meio mecânico. Se o discurso está na base da criação de umI'IIr/Jusmidiático(telégrafo, telefone, rádio, televisão, etc.), a acústica (ou,C'II1 geral, a teoria das ondas) constitui o princípio estrutural fundamen-t,,1de suas numerosas manifestações.

!\. imagem de vídeoS é um motivo de ondas estacionárias de energiac.INrica,um sistema vibratório composto de freqüências específicas, como1111 que esperamos encontrar em qualquer objeto sonoro. Como se ob-IIf'rvou com freqüência, a imagem que aparece na superfície do tuboc'lItúdicoé o traço de um único ponto de luz em movimento, produzidopor um jato de elétrons que vêm bater na tela por trás, fazendo irradiarIIlIll superfície recoberta de fósforo. Em vídeo, não existe imagem fixa.A fonte de toda imagem de vídeo, seja ela fixa ou móvel, é um feixeIrlr('mico ativo, varrendo permanentemente aI III - é a chegada regular de impulsos elétricosJlI'ovc'nientes da câmara ou do videoteipe. AsIIvlHllcsem linhas e frames são unicamente divi-.n Ij no tempo: abrir e fechar de janelas tempo- 8 Ver as notas complementa-I..que delimitam períodos de atividade no in- res, no final do artigo.

7 Frank Waters. Book of lheHopi. Nova York: BallantineBooks, 1963, p. 5.

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60 • BILL VIOLA

terior do fluxo de elétrons. A imagem de vídeo é um campo energéticovivo e dinâmico, uma vibraçâo que adquire uma aparência sólida so-mente porque ultrapassa nossa capacidade de discernir intervalos detempo tâo finos.

Todo vídeo tem suas raízes no que é ao vivo, direto (live). E a essênciadesta vitalidade reside no caráter acústico vibratório do vídeo, enquantoimagem virtual. De um ponto de vista tecnológico, o vídeo desenvol-veu-se a partir do som (o eletromagnetismo); por outro lado, a referên-cia ao cinema parece enganadora, pois o filme e seu antepassado, afotografia, fazem parte de um outro ramo da árvore genealógica (a me-cânica e a química). A câmara de vídeo, enquanto transdutor eletrônicode energia física em impulsos elétricos, está mais diretamente ligada aomicrofone do que à câmara de cinema.

Em sua origem, o estúdio de televisão era uma mistura de rádio, teatroe cinema. As imagens só existiam no presente. Sua estrutura estava calca-da na estrutura dos estúdios de rádio, com cabine de controle isolada porvidros e, no palco, câmaras colocadas para captar a ação. A estrutura dosdiferentes elementos no interior do estúdio pode ser considerada como arepresentação concreta da estética cinematográfica, uma espécie de re-médio engenhoso à obrigação de "só poder existir diretamente". Váriascâmaras, geralmente três (que correspondem aos três planos clássicos docinema: longo, médio, e rapproche), retomam a ação, cada uma de umponto de vista diferente. No cinema, a atividade numa determinada cenadeve criar uma ilusão de simultaneidade e de fluxo temporal seqüencial;o vídeo representa, ao contrário, um ponto de vista que, literalmente,desloca-se no espaço em tempo presente, de um modo paralelo à ação. Ovídeo se esforçou em criar a ilusão de um tempo gravado - o que foi feitosó quando necessário -, utilizando as diferentes partes do estúdio comefeitos de luz. As primeiras novelas de televisão e uma grande parte dastransmissões de variedades eram, de fato, o resultado da transposiçãodireta de uma forma de arte, o teatro, que se expressa em tempo presente.Geralmente, estas emissões eram produzidas diante de um público queestava lá como telespectador privilegiado, mais tarde substituído por risa-das gravadas e máquinas de aplausos.

Um elemento essencial do cinema, a montagem (que consiste numaarticulação no tempo), foi traduzida, nos primórdios da televisão, porum de seus aspectos fundamentais, a emissão direta (que consiste numa

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 61

articulação no espaço), graças a um instrumento chave: a console. Foigraças a ela que diferentes seqüências foram organizadas para formar oprograma destinado aos telespectadores. Os elementos de base da lin-guagem cinematográfica estavam contidos em sua própria estrutura. Umsimples botão representava a montagem soberana de Eisenstein, o cor-te, e, com um botão para cada câmara, os cortes podiam ser realizadosde qualquer ponto de vista. O fondu au noir de Griffith era nada mais doque uma redução progressiva da voltagem do sinal, com um potenciô-metro variável. Os volets e as telas divididas foram transformados pelostécnicos em circuitos destinados a interferir eletronicamente com a vol-tagem normal da corrente elétrica do sinal e a compensá-lo. Os mode-los mais simétricos de postes de mixage eram as notas harmônicas dasfreqüências fundamentais do sinal de base do vídeo. Assim, na ausênciade qualquer possibilidade de gravação, e através de um instrumentoeletrônico de emissão direta, podia-se obter uma simulação de monta-gem cinematográfica do tempo.

Esta imitação dos modelos cinematográficos durou até o final dosanos 60, quando os artistas começaram a penetrar na superfície pararevelar as características fundamentais da medium, liberando o potencialvisual único da imagem eletrônica, que hoje se costuma considerar ba-nal, como uma das características normais da televisão. A console foilogo depois transformada, e se tomou o primeiro sintetizador de vídeo.Os princípios em que se baseou foram acústicos e musicais, uma etapaposterior na evolução dos primeiros sistemas de música eletrônica, comoo Moog. O videoteipe foi o último elo da cadeia a ser desenvolvido,uma boa dezena de anos após o surgimento da televisão, e só foi inte-grado de fato ao sistema de tratamento da imagem de vídeo no iníciodos anos 70, com a introdução do time-based corrector. Graças à inclusãonatural de material gravado no fluxo das imagens, e ao progresso damontagem eletrônica, sentiu-se cada vez mais a necessidade de identifi-car acontecimentos anteriores como sendo ao vivo. O vídeo começou aficar parecido não só com o cinema, mas com todo o resto: a moda, asconversas, a política, as artes visuais e a música.

"Um único neurônio funciona com a forçade quase um bilionésimo de watt. O cérebrointeiro funciona com quase dez watts."!J

!I SirJohn Eccles. The Physiol·ogy of the Imagination. SeiOI,-tific American, I!)5!!,

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62 • BILL VIOLA

Em termos musicais, o processo físico da radiodifusão pode ser des-crito como uma espécie de bordão. A imagem de vídeo se repete semcessar nas mesmas freqüências. Esta nova estrutura comum do bordãorepresenta uma mudança significativa em nossos modelos culturais depensamento. rsto aparece de modo evidente ao compararmos um outrosistema baseado no bordão - a música indiana tradicional- com amúsicaclússica européia.

A música ocidental foi construída superpondo nota sobre nota, formasobre forma, do mesmo modo como se constrói um edifício, até o últimopedaço. Ela se baseia num princípio aditivo: o elemento de base é o silên-cio, de onde provêm todos os sons. A música indiana, ao contrário, tem osom como ponto de partida. Ela é subtraente. Todas as notas e todas asformas que podem ser utilizadas em música estão presentes antes mesmoque os principais músicos comecem a tocar, afirmados pela presença epela função do tambura. O tambura é um instrumento de bordão, geral-mente com quatro ou cinco cordas; graças à estrutura peculiar de seucavalete, ele amplifica as harmonias ou as séries harmônicas de cada notaem cada uma das cordas. Ele é ouvido com mais nitidez no início e nofim, mas está presente ao longo de todo o concerto. A série das notasdescreve a gama de música a ser tocada. Em conseqüência, assim que osmúsicos principais começam a tocar, pensamos que eles emitem notas deum campo musical já existente, ou seja, o bordão.

Esta estrutura musical reflete a teoria fIlosófica hindu que faz do soma origem do universo, encarnada pela vibração essencial chamada Ohm.Ela estaria sempre presente, sem início nem fim, em todos os lugares, egeraria todas as formas do mundo fenomenal. Em música, acentua-sesobretudo o acorde, a harmonia, ao passo que, em fIlosofia, fala-se em"harmonizar o indivíduo" como um meio de tocar e enriquecer estaenergia fundamental. A idéia de um campo sonoro sempre presentedesloca a ênfase dos objetos de percepção para o campo no qual a per-cepção ocorre: um ponto de vista não específico.

Enquanto bordão, o aspecto mais significativo da televisão consisteem que suas imagens eletrônicas existem em toda a parte, ao mesmotempo; o receptor é livre para deixar o sinal sair da linha em qualquermomento do seu percurso e em qualquer lugar do campo de emissão.Sabe-se, por exemplo, que as crianças podem captar sinais de rádio<:oms us aparelhos dentários, uma espécie de versão contemporãnea

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 63

do "dom das línguas". O espaço de emissão lembra o espaço acústico dascatedrais góticas, onde todos os sons, próximos ou afastados, fortes oufracos, parecem ter como fonte um mesmo ponto afastado. Eles pare-cem desprender-se da cena mais próxima para ir flutuar lá onde o pon-to de vista torna-se o espaço inteiro.

No domínio da tecnologia, a passagem freqüente das ondas seqüen-ciais do analógico aos códigos combinatórios digitais acelera a difusãodo ponto de vista. Assim como para a transformação da matéria, trata-se da passagem da tangibilidade de um estado sólido ou líquido a umestado gasoso. Há menos coerência; barreiras sólidas tornam-se poro-sas, e a perspectiva é a do espaço inteiro: () ponto de vista do ar.

Algumas semanas depois do lançamento de seu satélite, o Brasil esta-beleceu comunicações com os quatro cantos do país e fez um mapa, emquilômetro quadrado, de uma das regiões mais vastas e mais inexplora-das do planeta: a bacia Amazônica. Teoricamente, agora é possível tele-remar, fornecendo sua própria posição, de qualquer lugar perdido naselva, ou mesmo assistir ao seriado Dinastia, bastando ter uma televisão(~um gerador portátil. Nos Estados Unidos, já existe um sistema quepermite a um carro comunicar sua posição e sua direção a um satélitecapaz de retransmiti-Ia, e que faz aparecer um mapa eletrônico numatda colocada no painel de bordo. Neste mapa, cada rua da região podes(~rselecionada, chegando à precisão de alguns grupos de prédios. Cadarlla é reproduzida com seu nome. Atualmente, é impossível se perder.Parece muito chato. E, também, mais um motivo de paranóia.

No final do século XX, a idéia do Desconhecido, do "outro lado dalIIontanha", que foi fundamental para o desenvolvimento do nosso pen-,~lImento,desapareceu no que se refere a espaço geográfico. No iníciodos anos 80, toda a superfície do planeta foi levantada por satélite com11 lI1áximaprecisão - numa resolução de até trinta pés. O fato de conhe-('lfr tudo criou novos modos de consciência bastante estranhos, compa-I'oveisaos sistemas militares de navegação por computador, em que nãoh(I, nenhum vínculo sensível direto com o mundo exterior. Um foguetepode viajar em grande velocidade ao redor da Terra, seguindo apenastlH informações contidas na memória do computador de bordo - dadosqll(' também foram coletados por satélite. A memória substitui a expe-1'It\lIciasensorial: um pesadelo proustiano.

() universo mental do pensamento e das imagens é um espaço sem

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I "1I

1,·1 • B 11.1. VIOLA

(·onl<~údo.A maioria das técnicas xamânicas baseia-se na idéia de exer-CI'!' um controle poderoso e misterioso sobre o seu próprio ponto de vista

o uma maneira de dizer que ponto de vista não é necessariamente sinô-nimo de posição física. Mircea Eliade, em seus estudos sobre as origensdo pensamento religioso, sugere que a passagem à posição vertical reor-ganizou a consciência em torno de um eixo vertical, criando assim asquatro direções fundamentais: frente/trás, direita/esquerda, e, talvez,alto/baixo. A isso pode-se acrescentar o centro privilegiado, o eu, o pontofocal ptolemaico que daí decorre naturalmente. 10 A peça formada porquatro paredes e seis faces é a destilação arquetípica desta estruturamental que se articula posteriormente na perspectiva de Brunelleschi(produto da civilização urbana). A mente não apenas está dentro de umespaço tridimensional: ela cria este espaço.

As paredes sólidas, com sua conotação claustral, começam a se dis-solver nos espaços transparentes da arquitetura informativa. Os mes-mos termos matemáticos que servem para descrever um espaço acústi-camente plano, sem reverberação, uma peça "neutra" completamentedesprovida de eco, podem igualmente servir para descrever um grandeplano, uma planície. O termo plano é utilizado nos dois casos. Para osíndios da América que habitavam as grandes planícies, ou mesmo paraos aborígines do interior da Austrália, a acústica não existe como tal. Oseu espaço acústico é interno.

o",.

"Quando um homem está na planície e eu na colina, eu o vejo fa-lando comigo, tranqüilamente. Ele me vê e se vira para mim. Eu di-go: «Estás me ouvindo?» Eu balanço a cabeça, olhando-o com severi-dade. Depois, fixo o meu olhar nele e digo: «Vem, depressa!» Enquan-to olho para ele fIxamente, vejo que ele se volta, porque sentiu o meuolhar. Ele ainda vira para o outro lado e olha ao redor, enquanto eucontinuo a mirá-lo. Eu lhe digo, então: «Vem aqui, agora, aqui ondeestou sentado». Ele vem até mim, até onde estou, sentado atrás deuma moita. Eu o atraio com meu poder (miwi). Nenhum gesto, ne-

nhum grito. No fInal, ele sobe a colina e vem di-reto para mim. Ele me diz: «Falaste comigo e euouvi. Como podes falar assim?» Explico e ele diz:«Eu senti tuas palavras enquanto falavas, e, de-pois, senti que estavas aí». Respondi: «É verda-

111 M. Eliadeo A Hislory ofReli-/(11111,( Ideas. Vol. 1. Chicago:IJlllverNlly or Chicago Press,1IJ71\,p. :-1.

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 65de, foi assim que te falei e tu sentiste as palavras e também este poder»."ll

(Lenda aborígine, coletada por Ronald M. Berndt, Lower MurrayRiver, Austrália.)

A telepatia e a visão à distância dos aborígines encarnam a imensidãoe o silêncio do deserto australiano, à imagem do telégrafo e dos outrosmeios de comunicação sem fIo, inventados para romper o isolamentode indivíduos que moravam nos grandes espaços do Novo Mundo. Asolidão do deserto é uma das primeiras formas de tecnologia visionária;pode ser encontrada, com freqüência, na história das religiões. Os ho-mens serviram-se dela para interrogar o passado e o futuro, para setornarem "profetas", receber imagens ou, como os índios da América,para incentivar sua "busca de visôes". Quando o barulho e a confusãoda vida diária foram reduzidos a sua mais simples expressão, as válvulasde segurança se abriram, liberando as imagens do interior. A fronteiraentre o conforto do espaço interno e a aspereza da paisagem externa fI-cou incerta: suas respectivas formas se misturaram, convergindo entre si.

Provas de sinestesia, o cruzamento e a intercambialidade dos senti-dos foram constatados em certas pessoas desde os tempos mais antigos.Esta idéia inspirou os artistas, que sonharam com a reunifIcação dossentidos. Na história da arte, há muitos exemplos recentes, do pianocromático de Scriábin, que criaria cores a partir de um teclado, aos re-pulsivos espetáculos de som e luz feitos para turistas. Muitos artistasplásticos já afirmaram ter ouvido música ou mesmo sons enquanto tra-balhavam; assim como muitos compositores declararam ter concebidosua música sob a forma de imagens.

"Tantas imagens cruzavam minha mente;formas há muito perdidas, e perseguidas compaixão, inscreviam-se de modo ainda mais cla-ro nas realidades vivas. Um mundo de fIgurassurgia-me na mente, fIguras que se revelavamde modo tão estranho, plástico e primitivo,que, quando as distinguia claramente diante dosolhos e ouvia suas vozes em meu coração, nãoconseguia explicar sua familiaridade quase tan-gível e a segurança do seu comportamento."12

11 Citado por A. P. Elkin, in:Aboriginal Men of High Degree.St. Lucia, Austrália: Universi-ty ofQueensland Press, 1977,p.45.

12 R. Wagner. My Life. Doddand Mead, 1911.Citado porC. E. Seashore, in: Psychologyof Musico Nova York: DoverPublications Inc., reedição dooriginal de 1931\,p. Hin·7.

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11(, • BI 1.1. VIOLA

A sinestesia representa a tendência natural da mídia contemporânea.Praticamente o mesmo material é utilizado para produzir sons a partirde um aparelho estéreo, para transmitir a voz pelo telefone, e para ma-terializar a imagem numa tela de televisão. Com o desenvolvimento douso de códigos digitais para efetuar operações bancárias, encher o tan-que, utilizar o microondas, etc., as raízes comuns da linguagem vão seestender cada vez mais. Os esforços realizados no domínio das tecnolo-gias artificiais tomaram necessário distinguir a sinestesia como teoria eprática artística, da sinestesia como verdadeira capacidade subjetiva oucomo condição involuntária para certos indivíduos. Tendemos a rela-cionar o som e a imagem de um modo natural. A beleza destas expe-riências está na sua linguagem fluida de imaginação pessoal, e dependedo humor do momento. Enquanto levarmos em conta o seu carátersubjetivo, e enquanto elas não assumirem nenhum caráter convencio-nal, estaremos salvos do tédio do dogma e das teorizações pessoais dospráticos, seja os "vídeo-músicos", seja os "músico-videastas".

A livre-troca das modalidades sensoriais, no entanto, é apenas a pri-meira etapa rumo à transposição da barreira suprema que separa o ter-ritório do corpo físico do território da mente luminosa. Este limiar físicofoi algumas vezes ultrapassado, em casos extremos. Temos o exemplode E. Lucas Bridges, filho de um missionário cristão do final do séculoXIX, que vivia com uma população indígena da Terra do Fogo, os onas:

"Houshken [... ] começou a cantar e pareceu entrar em transe, comose estivesse possuído por um espírito. Ele se levantou, deu um passoem minha direção e deixou cair a veste cerimonial, que era sua únicaroupa. Levou as mãos à boca num gesto teatral, depois afastou-as,com os punhos cerrados, os polegares juntos. E sustentou-as, por ummomento, na altura dos meus olhos. Depois, abriu as mãos, quandojá estavam a menos de um palmo do meu rosto. No seu interior, vis-lumbrei um pequeno objeto quase opaco; seu diâmetro não ultrapas-sava meia polegada e parecia terminar em ponta. Poderia ser umpedaço de massa semitransparente ou um elástico, mas, o que querque fosse, parecia estar vivo e girar em grande velocidade, enquantoHoushken parecia tremer violentamente, com todos os músculos re-tesados. A Lua estava suficientemente clara para que eu pudesse dis-tinguir aquele estranho objeto. Houshken abriu um pouco mais as

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 67mãos e o objeto parecia ficar cada vez mais transparente, até que medei conta, à medida que suas mãos se aproximavam do meu rosto,que não estava mais lá. Ele não se quebrou, não explodiu como umabolha: simplesmente desapareceu, depois que o percebi por menosde cinco segundos. Houshken não fez nenhum gesto brusco; abriulentamente as mãos e as exibiu para mim, para serem inspecionadas.Pareciam limpas e secas. Ele estava completamente nu e não havianinguém ao seu lado. Olhei para a neve e, apesar do meu estoicismo,Houshken não pôde deixar de rir docemente, pois não havia nada aser visto em suas mãos."13

Quando as primeiras tecnologias do som e da imagem viabilizaram aprodução de uma forma artificial de substituição dos cinco sentidos, apercepção humana tomou-se objeto de uma compreensão imprevisívele assustadora. Do mesmo modo, à medida que os computadores substi-tuírem a inteligência humana, os novos laços criados entre o processa-mento de dados digitais e a "inteligência" vão, com toda a certeza, favo-recer possibilidades de tradução ainda mais importantes, para além dosdados dos sentidos básicos. Ainda que sejamos tentados a considerar aspossibilidades de uma reunificação sinestésica do domínio da percepçãoC~ do domínio do conhecimento no domínio da ciência (inspirada pelaliberdade e fluidez da interação de nossos modos de ver, graças à eletrô-lIica), parece que, atualmente, começa a se manifestar uma espécie deIlmnésia ou anestesia que se livra de um vasto panorama, desordenadoc' confuso, de imagens fragmentárias: o sonho do semiólogo.

Esta situação da mídia contemporânea é encarnada de modo extra-ordinário por um personagem do início do século, "mnemonista" notá-vd, capaz de ter acesso, de um modo fluido e incontrolável, a todas aslIlodalidades sensoriais. Este homem era constantemente assaltado por!luxos de imagens e de associações que ocupavam sua mente durantehoras, dias, e, por vezes, até mesmo anos; ele estimava que a distinçãot111I.repassado (memória), presente (experiência sensorial) e futuro (ima-~lllllÇão)era confusa e não existente. Devemos11 testemunho ao grande pesquisador russo A.lto I,uria, que passou trinta anos de sua vida es-h""lOdo este estranho personagem profético, port,lc' chamado simplesmente de S.

13 L. Bridges. The UttermOslEnds Df lhe Earlh. Nova York:E. P. Dutton, 1948, citado porJ. Campbell. The Way Df lheAnimal Powers, op. cit. p. 16il.

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68 • 1311.1. VIOLA

Luria descreveu S. como alguém que teria sido capaz de recitar deze-nas de páginas de textos repletas de todo o tipo de coisas, desde umanarrutiva até uma língua estranha, desconhecida dele, até termos cientí-ficos complicados ou mesmo palavras desprovidas de sentido. Sua me-mória possuía um caráter espacial: ele podia lembrar da posição dediferentes elementos numa página ou num quadro-negro, apresentadasem qualquer ordem e mesmo anos depois. Quando era criança, as ima-gens de sua escola adquiriam um tal caráter de realidade que, muitasvezes, ele acabava saindo da cama para ir até lá. Uma das particulari-dades de seu mundo interior que mais impressionou Luria foi a suaaptidão natural para a sinestesia. Como Luria bem compreendeu, a si-nestesia estava na base de sua memória extraordinária. S. descrevia asucessão de seus pensamentos da seguinte forma:

I, li'111:1

"Ouço a campainha tocar. Um pequeno objeto de forma arre-dondada rolou diante dos meus olhos ... senti sob meus dedos algu-ma coisa que parecia uma corda ... Depois, senti o gosto de águasalgada na boca ... e alguma coisa branca.

"Estou agora num restaurante com música. Sabem por que tocammúsica nos restaurantes? Porque a música modifica o gosto das coi-sas. Se você escolhe a música certa, tudo tem gosto bom. As pessoasque trabalham nos restaurantes sabem disso, com certeza."14

. ::::

Pouco a pouco, a vida diária toma-se difícil para S.:

"Sempre tenho sensações desse tipo. Quando estou num bonde,sinto o seu barulho metálico repercutindo em meus dentes. Uma vez,decidi comprar um sorvete, pensando que, assim, ficaria absorvidopelo sorvete e não sentiria aquele barulho metálico em meus dentes.Procurei uma vendedora de sorvetes e perguntei-lhe quais os sabo-res. «Sorvetes de frutas», ela disse, mas falou de tal modo que umaverdadeira montanha de carvão e cinzas jorrou de sua boca e eu não

pude mais me decidir a comprar o sorvete ... Ou-tra coisa ... se eu leio enquanto como, não consi-go compreender o que leio, porque o gosto dacomida engole o sentido das palavras." 15

1< A. R. Luria. The Mind of aMllemrmisl. Nova York: BasiclIookH, Hl(ill, p. 111-2.

I' Ihldl!ll), p. 1!i!J,

o SOM DA LINHA DE VARREDURA • 69

À medida que S. envelhecia, sua incapacidade de esquecer tomava-se cada vez mais incômoda, de tal forma que ele foi obrigado a deixar oemprego e ganhar a vida exibindo-se como um fenômeno. Luria decla-rou que foi muito difícil fazer um relato exaustivo a respeito de S., pois,mesmo durante as sessões, ele era constantemente assaltado por fluxosde imagens que lhe faziam perder o controle e o levavam a "agir au-tomaticamente": S. tomou-se verborrágico, sua mente transbordava dedetalhes e histórias fúteis, e ele se perdia em digressões cada vez maislongas. Esta memória sobre-humana e indelével levou-o a um senti-mento poderoso e perturbador da precariedade das coisas.

Se S. fosse um grego antigo, teria sido considerado como um dosprodutos mais extraordinários de sua cultura. Mas sua vida terminoucomo a de um herói trágico contemporâneo, imortalizado por revistascientíficas: suas experiências nos lembram a vingança de um péssimodiretor de vídeos musicais. Atualmente, o sistema midiático que inven-tamos põe à nossa disposição um potencial criador antes reservado aindivíduos dotados de poderes especiais. As possibilidades oferecidaspela sinestesia, nos domínios sensorial e conceitual, são da ordem dainspiração. Em compensação, todos nós, vítimas de saudáveis profissio-nais da comunicação, dotados de uma imaginação igualmente saudável,estamos nos tornando iguais ao "mnésico" de Luria, totalmente imersosc reduzidos à impotência por imagens sem fundamento e por vozesamplificadas. É o feiticeiro da aldeia que nos falta, não as estruturas for-mais de um sistema eficaz de processamento 'de informação, nem osprofissionais da comunicação.

Os artistas, os poetas, os compositores e os sábios que ouviram vozessabem agora que não são loucos; o seu trabalho é testemunha disso.Porém formas graves de depressão nervosa podem ser consideradascomo doenças profissionais possíveis para as pessoas que trabalham nolimiar do que chamamos comumente de realidade, ou seja, um espaçoculturalmente fabricado em tomo de convenções perceptivas, impostaspelos mecanismos que estruturam a linguagem, pelo comportamentocomum, e por histórias agora esquecidas. A loucura criativa poderia sersimplesmente um desarranjo da história, que o escoamento do tempoleria "corrigido", à medida que a perspicácia visionária tomou-se umfilio cultural banal. Em nenhum momento, ao longo de suas sessões('om Luria, S. referiu-se a si mesmo como louco. Apenas uma vez, ele

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'/0 • 1\11.1. VIOLA

cI i.~S(' a Luria que, antes de se tornar adulto e de entrar no seu primeirot'lllprego, sempre pensou que todo mundo funcionava igual a ele.

"Todos os homens podem ter sonhos e visões."WILLlAM BLAKE

NOTAS COMPLEMENTARES DA REDAÇÃO

Acústica: Na época de Pitágoras, a acústica era considerada a "ciênciadas ciências". "Ela pretendia explicar o universo inteiro [, .. l. Os fIlóso-fos gregos elaboraram toda uma doutrina onde os dados sobre os sons,entremeados de considerações metafísicas, forneciam a base de umavasta harmonia universal" . (E. Leipp. Accoustique et musique. Masson, 1971).

Vibração simpática: A onda sonora está intimamente ligada a uma for-ma geométrica, a qual é capaz de emitir ou reforçar um som. Inversa-mente, ela pode desempenhar o papel de receptor e começar a vibrar sefor alcançada por ele. Uma corda em repouso irá vibrar se receber deuma outra fonte o som preciso que ela é capaz de emitir.

Ressonância: A forma do violino, por exemplo, é estudada para per-mitir o reforço das ondas emitidas pela vibração das cordas em todos osseus registros. A dificuldade consiste em conceber um violino que am-plifique os sons de modo harmonioso num espectro o mais amplo pos-sível.

Imagem de vídeo: É produzida pelo recorte do quadro em linhas (625linhas, por exemplo). Vinte e cinco vezes por segundo, o quadro é ana-lisado linha por linha. Cada linha é percorrida, "varrida". Um sinal elé-trico proporcional à intensidade luminosa encontrada é emitido. Elevaria, com certeza, ao longo da linha, se esta recortar uma imagem nãouniforme. Com a imagem variando debilmente em relação à rapidez daanálise do mesmo ponto (25 vezes por segundo), cada ponto engendrauma onda de freqüência de 1/25 avos de segundo, equivalente. a umaonda sonora.

'traduçãoANA LUIZA MARTINS COSTA

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o DESENCANTAMENTO DO ABSTRATO

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Mu danças nas ciências cognitivas. "Racionalista", "cartesiana" ou'objetivista": estes são alguns dos termos empregados nos úl-

timos tempos para caracterizar a tradição dominante dentro da qualfomos criados. Mas, quando se trata de uma reavaliação do conheci-mento e da cognição, constato que a noção que melhor descreve nossatradição é "abstrata": nada caracteriza melhor as unidades de conheci-mento consideradas as mais "natUrais". É essa tendência em descobrirnosso rumo em direção à atmosfera rarefeita do geral e do formal, dológico e do bem-definido, do representado e do planejado, que tornanosso mundo ocidental tão nitidamente familiar.

A principal tese que pretendo investigar aqui é esta: há fortes indíciosde que, entre o grupo não organizado das ciências que tratam do conhe-cimento e da cognição - as ciências cognitivas -, vem crescendo lenta-mente a convicção de que esse quadro está invertido, de que uma mu-dança paradigmática ou epistêmica radical vem-se desenvolvendo comrapidez. Bem no centro dessa visão emergente está a crença de que aspróprias unidades de conhecimento são fundamentalmente concretas, cor-porificadas, incorporadas, vividas. Esse conhecimento concreto e úni-co, sua historicidade e contexto, não constitui um "ruído" que obstrui oIH\drào mais luminoso a ser captado em sua verdadeira essência, umallbstrução, nem se trata de um passo rumo a algo mais: trata-se de comorhcgumos e onde ficamos.

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 73

Talvez nada ilustre melhor essa tendência do que a gradual transfor-mação das idéias no campo bastante pragmático da i~teligência artifi-cial. Nas duas primeiras décadas (1950-1970), as pesqUIsas basearam-seno paradigma computacionalista segundo o qual o co.nh~c~mentoo.p~~aatravés de regras de tipo lógico para manipulação szmbolzca, um~ I.de.laque encontra sua plena expressão nos modernos computador~s dIgItaIS.Inicialmente, os esforços foram direcionados para a resoluçao de pro-blemas mais gerais, tais como a traduçào da linguagem ~:tural o~ odesenvolvimento de um "solucionador de problemas geraIs . ConSIde-rava-se que essas tentativas, que procuravam igualar a intelig~ncia deum perito altamente treinado, estavam lidando com as questoes. cen-trais da cognição. Visto que as tentativas de cumpri: ~ssas tare:as mva-riavelmente fracassavam, tornou-se evidente que a umca maneIra de seobter progressos era reduzindo a tarefa a algo mais m~desto e l~c~iza-do. As tarefas mais comuns, mesmo as executadas por msetos mmuscu-los, são simplesmente impossíveis de se realizar com uma est~atégiacomputacional. Esses anos de pesquisa resultaram t~acompreen~ao, pe-los envolvidos, de que é necessário inverter as posIções do pento e dacriança na escala de desempenho. Ficou claro que a forma ~e int~ligên-cia mais profunda e fundamental é a de um beb ,que adq~lr~ a lm.gua-gem a partir de emissões vocais diárias e dis~~rsas e deh.neIa objetossignificativos a partir de um mundo não especIÍtcado prevIamente.

Ao ser elaborada, essa visão revitalizou o papel do concreto, concen-trando-se em sua escala apropriada: a atividade cognitiva que ocorreem um espaço muito especial, que denominarei "junções" do presenteimediato. Pois é no presente imediato que o concreto de fato vive. Mas,antes de prosseguir, devo rever algumas suposições arraigadas que fo-ram herdadas da ortodoxia computacionalista.

Sobre os agentes cognitivos desunidos. Há muitas evidências que .ap~ia~a visão de que cérebros não são máquinas lógicas, mas redes dIstnbUI-das, altamente cooperativas e não homogêneas. O sistema todo le~bramais uma colcha de retalhos, formada por sub-redes reunidas atraves deum intricado histórico de remendos, do que um sistema otimizado re-sultante de um projeto claro e unificado. Esse tipo de arquitetura su-gere também que, em vez de se procurarem grandiosos modelos unifi-cados para todos os comportamentos de rede, deveriam ser estudadas

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74 • FRANCISCO J. V ARELA

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as redes cujas capacidades estejam restritas a atividades cognitivas c"an-cretas e específkas, enquanto interagem entre si.

De diferentes maneiras, os cientistas cognitivos começam a levar asério essa concepção de arquitetura cognitiva. Marvin Minsky, por exem-plo, apresenta uma visão na qual as mentes são constituídas por diver-sos "agentes", cujas capacidades são fortemente circunscritas: tomadoindividualmente, cada agente trabalha somente com problemas de pe-CJucna escala ou com problemas do gênero "brinquedos de montar". IOs problemas devem ser dessa ordem, pois se tomam insolúveis para~ma única rede quando têm sua escala aumentada (esse último aspectohcou claro para os cientistas cognitivos há bem pouco tempo). A tarefaconsiste, então, em organizar os "agentes" que operam nesses domíniosespecíficos em sistemas ou "agências" eficientes e maiores e, em segui-da, transformar essas agências em sistemas de nível mais alto. A mentesurge, então, como uma espécie de "sociedade".

É importante lembrar aqui que, embora inspirado por nova visão so-bre o cérebro, este é um modelo de mente. Em outras palavras, não setrata de um modelo de sociedades ou redes neurais; é um modelo dearquitetura cognitiva abstraído (de novo!) do detalhe neurológico, quedesconsidera, portanto, a "fluidez" da experiência viva e vivida. Agen-tes e agências não são, portanto, nem entidades nem processos mate-riais; são processos ou funções abstratas. Esse aspecto merece ser des-tacado, sobretudo pelo fato de Minsky por vezes escrever como se estivessefalando a respeito da cognição em nível de cérebro. Como irei enfatizar ,o que está faltando é a conexão detalhada entre esses agentes e o acopla-mento encarnado, pelo sentir e agir, que é essencial à cognição viva. Fare-~os agora uma pausa momentânea para examinar algumas das implica-çoes das concepções de sub-redes cognitivas fragmentadas e localizadas.

O modelo da mente como sociedade composta por numerosos agen-tes está concebido de forma que abral!ja uma multiplicidade de aborda-gens para o estudo da cognição, que vão desde as redes distribuídas, auto-organizáveis, até a concepção clássica, cognitivista, do processamentosimbólico. Essa visão abrangente desafia um modelo centralizado ou uni-

ficado de mente, seja em um extremo, na formade redes distribuídas, ou, em outro, na de pro-cessos simbólicos. Tal deslocamento é visível, porexemplo, quando Minsky argumenta que exis-

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I MlIl'vln Minsky. The SodetyI!f MIIIII. Novu York: Simon!Uul Sdl11HlOI', Wllli.

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 75

tem qualidades não apenas na distribuição, mas no isolamento, isto é,nos mecanismos que mantêm separados os diversos processos. A idéiatambém foi amplamente explorada, em contexto um pouco diferente,por Jerry Fodor.2 Os agentes situados no interior de uma agência po-dem estar conectados sob a forma de uma rede distribuída; porém, se aspróprias agências estivessem conectadas da mesma maneira, pratica-mente iriam constituir uma grande rede cujas funções estariam distri-buídas de modo uniforme. Tal uniformidade, contudo, restringiria acapacidade de combinar as operações de agências individuais de formaprodutiva. Quanto mais distribuídas estiverem essas operações, maisdifícil se toma para muitas delas agir ao mesmo tempo sem interferirementre si. Contudo, esses problemas não aparecem se houver mecanis-mos para manter as diversas agências isoladas entre si. As agências con-tinuariam a interagir, mas através de conexões mais limitadas.

É claro que os detalhes dessa visão programática são discutíveis, maso quadro geral que ela sugere (que não se refere exclusivamente à for-mulação de Minsky sobre agentes e agências) não é o da mente comoentidade unificada, homogênea, nem mesmo como um grupo de enti-dades, mas sim como um grupo desunificado, heterogêneo, de processos. Ob-viamente, esse conjunto desunificado pode ser considerado em mais deum nível. O que se considera uma agência (isto é, um grupo de agentes)poderia, se se alterasse o enfoque, ser considerado simplesmente um agenteem uma agência maior. E, inversamente, o que se considera um agentepoderia, focalizado mais de perto, ser visto como uma agência compos-ta por diversos agentes. Da mesma forma, o que se considera uma so-ciedade irá também depender do nível de enfoque que se escolhe.

Tendo assim definido o cenário para essa questão crucial dentro dasciências cognitivas contemporâneas, quero desenvolver suas implica-ções para o ponto em questão: a centralização no presente que caracte-riza o concreto.

SOBRE O SER-AÍ: DURANTE OS COLAPSOS

Prontidão-para-ação no presente. Minha pre-ocupação atual relaciona-se a uma das muitasconseqüências dessa visão acerca da desuniãodo sujeito, entendido como um agente cogniti-

2 Jerry Fodor. The Modulari!yof Mind. Cambridge, Mussu·chusetts: Bradford Books·MIT Press, 19113.

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'11i • FRANCISCO J. VARELA

VCI, A questão que tenho em mente pode ser formulada da seguinteforma: dada a infinidade de subprocessos competindo em cada ato cog-lIilivo, como iremos entender o momento de negociação e emergência,quando um deles assume o comando e estabelece um comportamentodefinitivo? Ou, em termos mais evocativos: como iremos compreender() momento exato do ser-aí, quando surge algo concreto e específico?

Imagine-se andando pela rua, talvez indo ao encontro de alguém. Odia está acabando e não há nada muito especial em sua mente. Você sesente relaxado, naquele estado que podemos chamar de "prontidão" dopedestre que está simplesmente dando uma caminhada. Você põe a mãono bolso e de repente descobre que sua carteira não está lá como decostume. Colapso: você pára, seu aparelho mental obscurece, sua tona-lidade emocional muda. Antes que você se dê conta, surge um novomundo: você percebe claramente que deixou sua carteira na loja ondeacabou de comprar cigarros. Sua disposição agora muda para uma pre-ocupação acerca de perder documentos e dinheiro, sua prontidão-para-ação é agora a de voltar rapidamente para a loja. Você presta poucaatenção para as árvores e os transeuntes à sua volta; toda a sua atençãoconcentra-se em evitar maiores atrasos.

Situações como essa constituem exatamente a matéria-prima de quesão feitas as nossas vidas. Sempre operamos em uma espécie de ime-diatismo em relação a uma dada situação: o mundo em que vivemosestá tão pronto e à mão que absolutamente não deliberamos sobre oque ele é e de que forma o habitamos. Quando nos sentamos à mesapara comer com um parente ou amigo, o conhecimento completo ecomplexo acerca da manipulação de talheres, as posturas corporais epausas durante a conversação, tudo está presente sem deliberação. Nos-

so eu-à-mesa é transparente.3 Terminamos o al-

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moço, retornamos ao escritório e entramos emuma nova prontidão, com um modo diferentede falar, uma postura diferente e avaliações dife-rentes. Apresentamos uma prontidão-para-açãoadequada para cada situação específica vivida.Maneiras novas de se comportar e as transiçõesou pontuações entre elas correspondem a mi-crocolapsos que sofremos constantemente. Porvezes os microcolapsos tornam-se não exatamen-

" O conceito de transparêncialili amplamente desenvolvidoem um manuscrito inédito de!lutoria de Fernando Flores eMichel Craves (Logonet, Inc.,B(~rkeley, Califórnia, 1990).Meus ugradecimentos a Fer-Illlndo Flores por permitir-me1(·.. (~NSC trabalho em anda-I1wlltn. do quul minhas pró-prlllN Idéllls tiraram grandeprov('h".

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 77

te micro, mas sim microscópicos, como quando um choque ou perigosúbito acontece de forma inesperada. Denominarei qualquer uma des-sas prontidões-para-ação como "microidentidade" e sua situação cor-respondente como "micromundo". A maneira como nos mostramos éindissociável da forma pela qual as coisas e os outros se apresentam pa-ra nós. Eu poderia discorrer um pouco sobre fenomenologia elementare identificar alguns micromundos típicos dentro dos quais nos movi-mentamos ao longo de um dia normal, porém a questão não é catalogá-los, mas direcionar sua recorrência: ser capaz de ações apropriadas é,num sentido significativo, uma maneira pela qual corporificamos umatorrente de transições de micromundos recorrentes. Não estou negandoque existam situações nas quais a recorrência não se aplica. Por exem-plo, quando se chega pela primeira vez a um país estrangeiro, há umaausência total de prontidão-à-mão e de micromundos recorrentes. Di-versas ações simples, tais como conversar socialmente ou comer, de-vem ser executadas de forma deliberada ou aprendidas de imediato.Em outras palavras, os micromundos e as microidentidades são consti-tuídos historicamente. Mas o modo mais comum de se viver se dá pormicromundos constituídos, que compõem nossas identidades. Obvia-mente, há muito mais coisas que deveriam ser exploradas e ditas a res-peito da fenomenologia da experiência cotidiana e pouco foi feito atéagora.4 Minha intenção aqui é mais modesta: apenas apontar um cam-po de fenômenos intimamente próximos de nossa experiência normal.

Quando deixamos o domínio da experiência humana e mudamospara o dos animais, o mesmo tipo de análise aplica-se como um relato('xterior. O caso extremo é ilustrativo: há algum tempo os biólogoslêm conhecimento de que os invertebrados possuem um repertório11mtanto reduzido de padrões de comporta-lIlento; por exemplo, uma barata apresenta so-mente algumas poucas formas de movimento:ficar em pé, andar devagar, andar depressa ecorrer. Contudo, esse repertório comportamen-lal básico permite que elas enfrentem de ma-neira apropriada qualquer ambiente possível,Iltnto natural como artificial. Então, a questãopnra o biólogo seria: como ela decide qual açãol1lotora irá adotar em uma dada circunstância? ities Press, 1962.

, Como principais exemplos,refiro-me especificamente aBeing and Time, de MartinHeidegger, tradução deJohnMacquarrie & Edward Ro-binson. Nova York: Harper,1929; e Phenomenology of Per-ception, de Maurice Merleau-Ponty, tradução de ColinSmith. Nova York: Human-

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o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 7978 • FRANCISCO.J. VARELA

Como ela seleciona uma ação comportamental adequada? Como elapossui bom senso para avaliar uma dada situação e interpretá-la comoexigindo uma corrida em vez de uma caminhada lenta?

Nos dois casos extremos - a experiência humana durante os colapsos eo comportamento animal em momentos de transições comportamentais- nos defrontamos, de formas tremendamente diversas, é inegável, comlima questão comum: a cada colapso desses, a maneira pela qual o agentecognitivo será em seguida constituído não é nem decidida externamentenem simplesmente planejada. Ao contrário, trata-se de uma questão deemergência segundo o bom senso, da configuração autõnoma de uma posturaapropriada. Uma vez selecionada uma postura comportamental ou gera-do um micromundo, podemos analisar de forma mais clara seu modo deoperação e sua estratégia ótima. De fato, a chave para a autonomia é queum sistema vivo encontre seu curso no momento seguinte, agindo demaneira adequada a partir de seus próprios recursos. E são os colapsos, asjunções que articulam os micromundos, que constituem a origem do ladoautônomo e criativo da cognição viva. Esse bom senso deve então serexaminado em uma microescala: no momento durante o qual ocorre umcolapso ele realiza o nascimento do concreto.

damentais: primeiro, a percepção consiste em ação orientada percep-tivamente; e, segundo, as estruturas cognitivas' surgem a partir depadrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação sejaorientada perceptivamente. (Isso irá ficar mais claro à medida que euprosseguir.)

Deixe-me começar pelo conceito de ação orientada perceptivamen-te. Para a tradição computacionalista dominante, o ponto de partidapara se compreender a percepção é tipicamente abstrato: trata-se doproblema de reconstituir as propriedades preestabelecidas do mundoatravés do processamento de informações. Em contraposição, o pontode partida para a abordagem enactiva é o estudo sobre como o "sujeitopercipiente" orienta suas ações em situações locais. Em virtude do fatode essas situações locais mudarem constantemente em decorrência daprópria atividade do sujeito percipiente, o ponto de referência para acompreensão da percepção não é mais um mundo preestabelecido, in-dependente do sujE1itoda percepção, mas sim a estrutu'ra sensório-moto-ra do agente cognitivo, a maneira pela qual o sistema nervoso conecta assuperfícies sensoriais e motoras. É essa estrutura - a maneira pela qualo sujeito percipiente é corporificado -, e não algum mundo preestabeleci-do, que determina como o sujeito da percepção pode agir e ser modula-do pelos eventos ambientais. Assim, a preocupação geral de uma abor-dagem enactiva da percepção não é determinar como algum mundoindependente do sujeito que percebe vai ser reconstituído; trata-se, sim,de determinar quais os princípios comuns ou conexões lícitas entre ossistemas sensorial e motor que irão explicar como a ação pode ser orien-tada perceptivamente em um mundo dependente de um sujeito percipiente.

Essa preocupação central da abordagem enactiva situa-se em oposi-ção à visão convencionada de que a percepçãoé basicamente um registro das informações am-bientais existentes, com a finalidade de recons-truir verdadeiramente um pedaço do mundo fí-sico. A realidade não é projetada como algo da-do: ela é dependente do sujeito da percepção,não porque ele a "constrói" por um capricho,mas porque o que se considera um mundo rele-vante é inseparável da estrutura do percipiente.

Tal abordagem da percepção é na verdade um

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Conhecimento como enacção*. Permitam-me agora explicar como pre-tendo utilizar a palavra "corporificado", ressaltando duas questões: emprimeiro lugar, a cognição depende dos tipos de experiência que ad-vêm do fato de se possuir um corpo dotado de diversas capacidades

sensório-motoras; e, em segundo lugar, essas ca-pacidades sensório-motoras individuais estãoelas próprias embutidas em um contexto biológi-co e cultural mais abrangente. Essas questões fo-ram apresentadas acima em termos de colapsoe bom senso, mas desejo explorar ainda sua es-pecificidade corpórea e enfatizar que os proces-sos sensoriais e motores, a percepção e a ação,são basicamente inseparáveis na cognição vivi-da, e não estão simplesmente conectados de ma-neira casual nos indivíduos.

Ao adotar o que denomino uma "abordagemenactiva da cognição",5 dois princípios são fun-

• O termo traduzido aqui por"cnacção" foi transposto doinglês enaction, que é utiliza·do pelo autor no sentido delima ação que "faz emergir".Pode também significar "acio·llllmcnlo". (NdT)

Thompson & Eleanor Rosch.The Embodied Mind: CognitiveScience and Human Experience.Cambridge, Massachusetts:MIT Press, 1991; e Thomp·son, Alden Palacios & Vare Ia.Ways of Coloring: Compara-tive Calor Vision as a CaseStudy in the Foundations ofCognitive Science. BehavioralBrain Sciences 76(1), a sair.

, Francisco Vare la. Connaitre:16.f .fciences cognitives. Paris:SCIIII, l!)!l!); Varela. Organism:11 MCHhwork of Selfless Selves.111:Alfl'cd Tauber (ed.). Org-11111,11" 11111/ the Origin of SelfI )lIl'1ll'uchtl Ullgcverij: ReidelI<IIIWMI', I!)!)I ; Vurcla; Evan

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80 • FRANCISCO J. VARELA

dos insights centrais da análise fenomenológica empreendida por Mau-rice Merlcall-Ponty em seus primeiros trabalhos. Cabe citar aqui inte-gralmente lima de suas passagens mais visionárias:

O organismo não pode ser comparado estritamente a um teclado so-bre () qual os estimulos externos tocariam e no qual sua forma exata seriadclineada, pela simples razão de que o organismo contribui para a cons-titlli~~ã()daquela forma ... "As propriedades do objeto e as intenções dosujeito ... não estão apenas mescladas; elas constituem também um novotodo." Quando o olho e o ouvido seguem um animal em vôo, é impossí-vel dizer "qual começou primeiro" na troca de estímulos e respostas. Vis-to que todos os movimentos do organismo são sempre condicionadospor influências externas, pode-se facilmente, se assim o quiser, tratar ocomportamento como um efeito do meio. Mas, da mesma forma, já quetodos os estímulos que o organismo recebe foram, por sua vez, possibili-tados unicamente pelos seus movimentos precedentes, que resultaram naexposição do órgão receptor às influências externas, pode-se também di-zer que o comportamento é a primeira causa de todos os estímulos.

Assim, a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por suamaneira particular de se oferecer a ações vindas do fora. Sem dúvida, afim de poder subsistir, ele deve deparar-se com determinado númerode agentes físicos e químicos à sua volta. Mas é o próprio organismo -segundo a natureza particular de seus receptores, os limiares de seuscentros nevrálgicos e os movimentos dos órgãos - que escolhe no mundofísico os estímulos aos quais ele será sensível. "O ambiente (Umwelt) emergedo mundo por meio da realização ou do ser do organismo - [admitin-do-se que] um organismo somente pode existir se conseguir encontrarambiente adequado no mundo." Isso seria um teclado que se move de

tal forma que ofereça - de acordo com ritmos va-riáveis - essas ou aquelas teclas para a ação em simesma monótona de um martelo exterior.6

Segundo essa abordagem, então, a percepçãonão está simplesmente embutida e confinada nomundo ao redor; ela também contribui para aenacção desse mundo ao redor. Assim, como ob-serva Merleau-Ponty, o organismo simultanea-mente instrui e é modelado pelo ambiente: M.-Ponty admitiu claramente que devemos ver o

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,;Maurice Merleau-Ponty. TheStructure of Behavior, traduçãode Alden Fisher. Boston: Bea-con, W63, p. 13 (a ênfase éminha). A primeira citação in-lorna, de V. F. von Weizsecker.Hencxgeselze. In: Bethe (ed.).1/ll7Idbuclt der Normalen und"lIt/wlo/(isclten Physiologie, p.:11\ !Ii 11 Hcgunda, de K. Gold-NI"ln, 'lYt6 Or/(Iwism. Boston:I1IIIH'UII, !!Im!.

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 81

organismo e o ambiente como enlaçados em especificação e seleçãorecíprocas - uma questão da qual necessitamos nos recordar constante-mente, pois ela é bastante contrária às visões herdadas, oriundas datradição cartesiana.

Um exemplo clássico do direcionamento perceptivo da ação é o es-tudo de 1958 empreendido por Richard Held e Alan Hein, que criaramgatos no escuro e os expuseram à luz sob condições controladas.7 A umprimeiro grupo foi permitido movimentar-se normalmente atrelados auma canga que puxava um cesto; seus movimentos eram transferidosmecanicamente para um segundo grupo de animais transportados nes-se mesmo cesto. Os dois grupos compartilhavam portanto da mesmaimpressão visual, mas o segundo grupo era completamente passivo.Quando os animais foram soltos, após algumas semanas sob esse trata-mento, o primeiro grupo de gatinhos comportou-se normalmente, masos que haviam sido carregados comportavam-se como se fossem cegos:eles colidiam com objetos e caíam das bordas. Esse estudo admirável dásuporte à visão enactiva de que os objetos não são vistos a partir daextração visual de suas características, mas sim pelo direcionamentovisual da ação. Resultados semelhantes foram obtidos sob diversas ou-tras circunstâncias e estudados até mesmo ao nível de uma única célula.

Se o leitor julgar que esse exemplo é bom para gatos, mas longe daexperiência humana, vamos examinar outro. Em 1962, Paul Bach y Ritaprojetou uma câmara de vídeo para pessoas cegas, capaz de estimularpontos múltiplos na pele através de vibrações ativadas eletricamente.8

Utilizando essa técnica, fez-se com que as imagens formadas com a câ-mara correspondessem a padrões de estimulação de pele, dessa formasubstituindo a perda visual. Os padrões projetados na pele não pos-suem nenhum conteúdo "visual", a não ser que o indivíduo esteja com-portamentalmente ativo, dirigindo a câmara devídeo através de movimentos com a cabeça, mão 7 Richard Held & Alan Hein.

ou corpo. Quando a pessoa cega de fato se com-porta assim ativamente, após algumas horas deexperimento surge um efeito notável: a pessoanão mais interpreta a sensação na pele como es-tando relacionada ao corpo, mas sim como ima-gens projetadas no espaço sendo exploradas pelo"olhar" corporalmente direcionado da câmara

Adaptation of DisarrangedHand-Eye Coordination Con-tingent upon Re-afferent Stimu-lation. Perceptual and MotorSkills 8, 1958, p. 87-90.

8 Paul Bach y Rita Brain Mech-anisms in Sensory Substitution.Nova York: Academic PrCRN,

1972.

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82 • FRANCISCO J. VARELA

de vídeo. Assim, a fim de perceber "os objetos reais do lado de fora", apessoa deve dirigir a câmara ativamente (utilizando sua cabeça ou mão).

A estrutura sutil do presente. Agora que situei o surgimento do con-creto dentro do quadro enactivo para a cognição, onde ele de fato fazsentido, posso retomar à questão inicieal: como micromundos emer-gentes podem surgir a partir de um turbilhão de diversos agentes e sub-redes cognitivas? A resposta que proponho aqui é que no intervalo emque ocorre um colapso há uma rica dinâmica envolvendo subidentida-des e agentes simultâneos. Esse rápido diálogo, invisível à introspeção,foi revelado recentemente em estudos sobre o cérebro.

Alguns aspectos centrais dessa idéia foram apresentados primeira-mente por Walter Freeman que, ao longo de vários anos de pesquisa,conseguiu introduzir uma série de eletrodos no bulbo olfativo de umcoelho, de forma que uma pequena porção da atividade global pudesseser mensurada enquanto o animal agia livrementeY Ele constatou quenão havia um padrão claro de atividade global no bulbo, a não ser queo animal fosse exposto a um odor específico por diversas vezes. Desco-briu ainda que esses padrões de atividade surgiam a partir de um cená-rio de atividade incoerente ou caótica, em rápidas oscilações (isto é,com períodos de aproximadamente cinco a dez milissegundos), até queo córtex se acomodasse a um padrão elétrico global, que durava até ofinal do procedimento de farejar e entâo dissolvia-se novamente no ce-nário caótico. 10 As oscilações proporcionam, pois, um meio de amar-rar seletivamente um conjunto de neurônios em um todo transitório queconstitui o substrato para a percepção olfativa naquele instante preciso.O ato de cheirar aparece nesse sentido não como uma espécie de ma-peamento de características externas, mas como forma criativa de enac-

tar significância levando em conta a históriacorporificada do animal. E, o que é mais impor-tante, essa enacção ocorre na junção entre ummomento comportamental e o seguinte, atravésde rápidas oscilações entre populações neurôni-cas capazes de dar origem a padrões coerentes.

Há crescente evidência de que, durante umapercepção, essa espécie de ressonância rápidaliga transitoriamente os conjuntos neurônicos.

"Walter Freeman. Mass Actionin the Nervous System. NovaYork: Academic Press, 1975.

111 Walter Freeman & Christi-IIC Skada. Spatial EEG Pat-torllH, Nonlinear Dynamics,IIlId l'crccption: The Neo-Sh~I'I'lngl()niun View. BrainUmllTcll Ueview.r 70, 198!i, p.1117?!í.

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 83Isso foi observado, por exemplo, no córtex visual de gatos e macacosconectados a um estímulo visual;11 foi também constatado em estrutu-ras neurais radicalmente diferentes, como o cérebro das aves,12 e mes-mo nos gânglios de um invertebrado, Hermissenda.13 Essa universalidadeé importante, pois ela sugere a natureza fundamental da ligação porressonância como um mecanismo para a enacção de acoplamentos sen-sório-motores. Se fosse um processo específico de uma espécie - carac-terístico, digamos, apenas do córtex de mamíferos -, seria muito menosinteressante como hipótese de trabalho.

É importante observar que essa ressonfmcia rápida não está simples-mente relacionada a um gatilho sensorial: as oscilações surgem e desapa-recem de forma bastante espontânea em diversas partes do cérebro. Issosugere que essa dinâmica rápida diz respeito a todas as sub-redes que dãoorigem à completa prontidão-à-mão no momento seguinte. Elas envol-vem não apenas a interpretação sensorial e a ação motora, mas tambémtoda uma gama de expectativas cognitivas e tonalidades emocionais quesão fundamentais para a modelagem de um micromundo. Entre os colap-sos, essas oscilações são os sintomas de rápidascooperações recíprocas e competições mútuasentre agentes distintos que são ativados pela si-tuação presente, rivalizando entre si para im-por diferentes modos de interpretação a fim deconstituir um quadro cognitivo coerente e umaprontidão-para-ação. Com base nessa dinâmicarápida, da mesma forma que em um processo evo-lutivo, um conjunto neurônico (uma sub-rede cog-nitiva) finalmente toma-se mais predominante econverte-se no modo comportamental para o momento dety Neuroscience Abstracts 76,

cognitivo seguinte. Por "toma-se mais predominan- 1990.

te" não quero dizer que se trata de um processo 13 Alan Gelperin & David

d Tank. Odour-Modulated Col-e otimização: isso se assemelha mais a uma bi- lective Network Oscillationsfurcação ou forma de dinâmica caótica destrui-dora de simetria. Segue-se que esse berço da açãoautõnoma está sempre perdido para a experiên-cia vivida, pois, por definição, somente podemosI b d da Cortical Information Car-la itar uma microi enti ade quando ela]' á se en- rier. Trends in Neurosdence 73,contra presente, mas não quando ela está em ges- 1990, p. 161-2.

11 Charles Gray & Wolf Sin-geroStimulus-Specific Neuro-nal Oscillations in Orienta-tion Columns in Cat VisualCortex. Proceedings ofthe Nati-onal Academy of Sdences of theUSA 86, 1989, p. 1698-702.

12 Serge Neuenschwander &Francisco Varela. Sensori-trig-gered and Spontaneous Oscil-lations in the Avian Brain. So-

of Olfactory Intemeurons ina Terrestrial Mollusc. Nature345, 1990, p. 437-40. Para umestudo recente, ver StevenBressler. The Gamma Wave:

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84 • FRANCISCO.l. VARE LA

tação. Em outras palavras, no colapso que antecede o surgimento do mi-cromundo sl'p;uinle, há um número infinito de possibilidades disponíveisaté que, em virtude das imposições da situação e da recorrência da histó-ria, uma única seja selecionada. Essa dinâmica rápida é o correlato neuralda collstituiçào autônoma de um agente cognitivo incorporado em umdado momento presente de sua vida.

o REENCANTAMENTO DO CONCRETO • 85das em processos sensório-motores auto-organizáveis; segue-se, então,que as estruturas cognitivas emergem a partir de padrões recorrentes deatividade sensório-motora. De qualquer modo, a questão não é, comoafirmaria Lakoff, que a experiência determina de forma absoluta as es-truturas conceituais e os modos de pensamento; trata-se, antes, de que aexperiência possibilita e ao mesmo tempo restringe a compreensão con-ceitual por entre os múltiplos domínios cognitivos.

Lakoff ejohnson fornecem numerosos exemplos de estruturas cogni-tivas geradas a partir de processos experienciais. Rever todos esses exem-plos iria me desviar muito de meu curso; assim, irei discutir de formaresumida apenas um dos tipos mais significativos: as categorias de nívelbásico. Pense nas coisas de tamanho médio com as quais interagimosconstantemente: mesas, cadeiras, cães, gatos, garfos, facas, xícaras e as-sim por diante. Essas coisas pertencem a um nível de categorização queé intermediário entre os níveis mais baixo (subordinado) e mais alto(superior). Se tomarmos uma cadeira, por exemplo, no nível mais baixoela poderia pertencer à categoria "banco", ao passo que no nível maisalto ela pertence à categoria "mobília". Eleanor Rosch e seus co-autoresdemonstraram que esse nível intermediário de categorização (mesa, ca-deira e assim por diante) é psicologicamente o mais fundamental ouhásico, pelas seguintes razões, entre outras: primeiro, o nível básico é onível mais geral no qual os membros da categoria possuem formatos glo-bais percehidos como semelhantes; segundo: é o nível mais geral no qualuma pessoa utiliza ações motoras similares para interagir com os mem-bros da categoria; e, terceiro, é o nível no qual uma série de atributoscorrelatos são mais aparentes.17

Pareceria, assim, que o fato de uma categoria pertencer ao nível bási-co depende não de como as coisas estão organizadas em algum mundopreestabelecido, mas sim da estrutura sensório-motora de nossos cor-pos e dos tipos de interações direcionadas perceptivamente que essaestrutura possibilita. As categorias de nível bási-co são tanto experienciais como corporificadas.l Im raciocínio semelhante pode ser construídopara esquemas de imagens que emergem a par-tir de determinadas formas básicas de ativida-des e interações sensório-motoras.

Da sutil estrutura temporal à ação cognitiva. Conforme foi observa-cio, a ressonância rápida da reciprocidade de um agente proporciona ocenário para o surgimento de um micromundo. Há indícios de que esseacoplamento sensório-motor esteja relacionado com outros tipos dedesempenho cognitivo tipicamente humanos: em outras palavras, osníveis cognitivos realmente "mais altos" surgem a partir do evento desentir e agir de nível "baixo", possibilitando que a ação seja direcionadaperceptivamente.

De fato, esse conceito básico está bem no núcleo do programa piage-tiano.14Como a idéia de estruturas cognitivas corporificadas foi defendidapor George Lakoff e Markjohnson,15 irei apresentá-la fazendo mençãoespecial ao trabalho desses autores. Novamente, devo sair do abstrato esalientar uma abordagem experimentalista da cognição. Conforme de-clara Lakoff, o argumento central de sua própria abordagem e da dejohn-

son é que as estruturas conceituais significativasoriginam-se de duas fontes: da natureza estru-turada da experiência corpórea e de nossa ca-pacidade em projetar imaginativamente, desdecertos aspectos bem-estruturados da experiênciacorpórea e interativa até estruturas conceituais.

O pensamento racional e abstrato constitui elepróprio a aplicação de processos cognitivos bas-tante gerais - focalização, varredura, sobreposi-ção, reversão fundo- figura e assim por diante -a essas estruturas conceituais. 16 Em linhas gerais,as estruturas corporificadas (sensório-motoras)constituem a essência da experiência e as estru-turas experienciais "motivam" a compreensãoconceitual e o pensamento racional. Conformeenfatizei, a percepção e a ação são corporifica-

14Jean Piaget. Biologie el Con-naiJJance. Paris: Gallimard,1969.

" George Lakoff. Wamen, FiTeand DangeroUJ ThingJ. Chica-go: University of Chicagol'ress, 1983; e MarkJohnson.The Body in lhe Mind. Chica-go: University of ChicagoPress, 1989.

IH George Lakoff. CognitiveS()lmmtics. In: Umberto Econllll. (eds.). Meaning and Men-tal Repre.rentations. Blooming-tem: Indiana University Press,IUHH,p. 121,proporciona umahl'ov(! vlHllo geral da aborda-j((!ln llxpcl"imenlalista de La-k"I1' O.lOhI1HOI1.

17 Eleanor Rosch; CarolynMervis; Wayne Gray; DavidJohnson &PennyBoyes-Braem.Basic Objects in Natural Cal-egories. Cognitive Psychology 8,1976, p. 382-439.

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86 • FRANCISCO.]. VARELA

CONCLusAo

J,',10.,

AJ'g'lIIlICllleique a percepção não consiste na reconstituição de ummundo prcestabelecido, mas sim no direcionamento perceptivo da açãoem 11111 mundo que é inseparável de nossas capacidades sensório-moto-ras. As estruturas cognitivas emergem de padrões recorrentes de açãodirccionada perceptivamente. Posso resumir, então, afirmando que acognição consiste não de representações, mas de ação corporificada. Demaneira correspondente, o mundo que conhecemos não é preestabele-cido; é, ao contrário, enactado através de nosso histórico de acoplamentoestrutural. As junções temporais que articulam a enacção estão enraiza-das na dinâmica rápida não-cognitiva, em que uma série de micromun-dos alternativos são ativados; essas junções são a fonte tanto do bomsenso como da criatividade na cognição.

É portanto a busca, bastante contemporânea nas ciências cognitivas,de uma compreensão da compreensão que aponta numa direção queconsidero pós-cartesiana de duas maneiras significativas. Primeiro, oconhecimento parece cada vez mais como algo construído a partir depequenos domínios, isto é, micromundos e microidentidades. Esses'modos básicos de prontidão-à-mão variam, mas estão presentes em todoo reino animal. Porém, o que todos os seres cognitivos vivos parecemter em comum é o conhecimento que é sempre um know-how constituí-do com base no concreto; o que chamamos "geral" e "abstrato" sãogrupos de prontidão-para-ação. Segundo: esses micromundos não sãocoerentes ou integrados em alguma imensa totalidade que regula a ve-racidade das partes menores. É mais como uma interação conversacio-nal desregrada: a própria presença des~e desregramento permite queum momento cognitivo passe a existir de acordo com a constituição e ahistória do sistema. A autêntica fonte dessa autonomia, a rapidez deseleção do comportamento do agente, está para sempre perdida para opróprio sistema cognitivo. Assim, o que tradicionalmente chamamos"irracional" e "não-consciente" não contradiz o que parece racional eintencional: constitui sua própria fundamentação.

o INDIVÍDUO E SUA IMPLEXA PRÉ-INDI-VIDUALIDADE .

.. LUIZ B. L. ORLANDI

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.......

AMEDIDA que lia pela primeira vez um conjunto de textos dedica-dos por Gilbert Simondon e Gilles Deleuze ao problema da indivi-

duação, textos finalmente reunidos em boa hora neste volume, sentia-me transformando em nuvem. Pior ainda, nuvem mais complicada queas do céu, poeira de palavras movendo-se ao sabor de um descontrolede ventos-frases. Ao reler o mesmo corijunto pela enésima vez, sintoque me recupero muito lentamente daquele caos, daquele estado deinterfusões e extravios, daquele estado, digamos, de metaestabilidade, es-tado brumoso, enfim. "A bruma solar", diz Deleuze a propósito da des-crição que Thomas Edward Lawrence faz do deserto, "é o primeiro es-tado da percepção nascente", a "miragem na qual as coisas sobem edescem",l como que indecisas quanto as suas próprias individualidades.Agora já percebo algumas direções marcadas pelos ventos. Vejo quecertas palavras se atraem, reagrupando-se em cumplicidades conceituais,e isto acontecendo numa luta em que elas experimentam sua capacida-de de erigir um domínio que outras palavras, distintamente imantadas,não teriam conseguido circunscrever. Que novo domíriio estaria sendotraçado por esses textos, por essa nova maneira de dizer o problema daindividuação?

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1 1)tlIClIZC, Gilles. Critique el cli-"lrl"~' I'uris: Minuit, 1993, p.144, (Cr(lica e c[{nica; tr. br. de1'"lflr 1'1\1 I'clbllrt. São Paulo:11:11,:14, 1!)!l7, p, l:~O.)

Ora, essa pergunta já estava querendo impor-se desde quando minhas primeiras e nebulosasleituras sofriam o assédio desses textos. Ela conti-nua arregimentando a construção das minhaspróprias frases, de tal modo que um texto a ser

88

o INDIVÍDUO E SUA IMPLEXA PRÉ-INDIVIDUALIDADE • 89por mim assinado começa a sofrer sua própria individuação como respos-ta a essa pergunta, começa a compor-se, mesmo que de modo indeciso,insuficiente ou errático, como aparentemente uno em si e distinto da-queles outros também destinados a respondê-la. Repito a pergunta, comose esta fora um barco navegando de olho na variação dos sinais que vãomapeando sua própria errância: que domínio está se erigindo quandoesses textos de Simondon e Deleuze transformam o problema da indi-viduação?

Numa resumida e abusiva história de conceitos, a individuação aparececomo problema explícito quando a questão da realidade do ser se contrai,se encolhe numa viva atenção ao indivíduo, ao ente que se apresentacomo dado em sua imediatidade, este cristal, este vegetal, esta mulherou esta voz de cristal em Gal. Cada um desses entes, pensado comoessência inferior em Platão ou como substância primeira em Aristóteles,fundamento e sujeito real dos predicados, foi considerado como indivíduopronto, como individuum, como não-dividido, como atomon. Se dividoesta flor em duas partes, já não posso oferecê-la assim inteira, comoindivíduo-camélia colhido no jardim de Zilda, ali onde vislumbro umapluralidade de outras camélias inteiras; posso também obter indivíduos-pétalas, mas, a cada vez, o que preciso observar é se obtive uma indivi-dualidade que resista em si como única entre as demais. Se dividoSócrates ao meio, a coisa é mais grave, pois cometo homicídio com aagravante de não obter uma duplicação de filósofo. Quando Aristóteles2

diz que Sócrates é UM indivíduo único num conjunto numericamentemúltiplo, ele não está pensando na animalidade racional de Sócrates,pois isto equivaleria a salientar tão-somente a unidade formal pela qualSócrates e todos os homens se definem genérica e universalmente comoanimais racionais. É por estar ligada à materialidade-Sócrates que a[mimal-racionalidade-Sócrates pode ser encontrada pelos habitantes deAtenas nos limites de um indivíduo inconfundível, justamente ele quetinha fama de confundir os demais com suas perguntas pelo ser do ente.() indivíduo-Sócrates é um todo-inteiro de matéria e forma, como sedizia, nem disperso na pura materialidade, nem evaporando-se na purageneralidade. Pois bem, se atribuirmos à matéria o poder de limitarlima forma universal, forma que, então, ganhaos contornos de uma individualidade, estaremos 2 Aristóteles. Metaftsica, XII, 11,('ncontrando a resposta por assim dizer aristoté- 1074 a 33 ss.

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90 • LUIZ B, L, ORLANDI

lica que um 11I6sofoárabe do século XI, Avicena, procurava para o pro-blema que o atraiu e que nós herdamos, qual seja, o problema da' cons-tituição do indivíduo: o que faz com que uma substância ou naturezacomum a vários se torne este ou aquele indivíduo?

Feita à maneira tradicional, essa pergunta recebeu respostas quevariaram ao longo dos séculos. De um lado, diz Simondon, o substancia-li.l'rrtoatomista estabelece a individuação como um fato: seja tomando oátomo como existência dada,' seja apreendendo o composto como fatoresultante de um "encontro ao acaso". Por outro lado, a posição domi-nante caracteriza-se como um hilemorfismo que - privilegiando ora a for-ma, ora a matéria, ora dosando combinações de ambas - procura dizero princípio de individuação, isto é, o princípio pelo qual o indivíduo éindividuável e individuado, Em sua resposta, Tomás de Aquino, porexemplo, elabora a difícil noção de "matéria signata quantitate", isto é,a matéria disposta a variações de quantidade.3 Respostas desse tipo, comopode ser visto, são reunidas por Simondon como aplicações de um es-quema hilemórfico, isto é, um esquema que pensa a própria operação deindividuação como dependente de um princípio de individuação, umprincípio "contido na matéria ou na forma". Tal esquema estaria supon-do, diz ele, uma "sucessão temporal" que, partindo do princípio de indi-viduação, chegaria ao indivíduo constituído depois de passar por aquiloque esse esquema não estaria tematizando suficientemente: a própriaoperação de individuação. Simondon está de olho nesse meio, nessazona obscura, um entremeio que certa tradição teria maltratado em suasmaneiras de ligar indivíduo pronto e princípio de individuação,

É a operação de individuação, ela mesma, portanto, que Simondonreexamina. Ele o faz de tal modo que acaba abalando dois ancoradourostradicionais do pensamento. Nesse reexame, o princípio de individuaçãonão passará de um efeito daquela operação, ao mesmo tempo que oindivíduo não mais terá o monopólio do ser concreto em sua totalidade.Para se sustentar esse resultado, é preciso pensar a imanência' entre aindividuação e o indivíduo, é preciso conceituar a individuação comocomplexa operação ativada no indivíduo tomado como meio de indi-viduação, um meio que implica uma realidade pré-individual, um campo

de singularidades pré-individuais. Para exemplificarI '1lllnl\H de Aquino. De ens et isso, pensemos um vegetal individuando-se co-',1-"1,/111, :l, mo meio de atuação de um sistema que, por não

o INDIVÍDUO E SUA IMPLF.XA PRÉ-INDIVIDUALIDADE • 91se confundir com ele, é dito sistema pré-individual, Neste exemplo, o siste-ma é composto de duas regiões, de duas ordens de realidade: uma "ordemcósmica", com sua energia luminosa, e uma "ordem inframolecular",com suas "espécies químicas distribuídas no solo e na atmosfera", espécies"classificadas e repartidas" justamente por meio daquela energia luminosa"recebida na fotossíntese". O vegetal vive individuando-se como aquiloque vai dobrando, segundo estratégias de entrelaçamento do dentro edo fora, do self e do non-self, como diria Francisco Varela,4 uma ordempré-individual na outra; vive compondo-se como mediação (não dialético-hegeliana) entre essas ordens, como resson(1ncia interna de um "sistemapré-individual feito de duas regiões de realidade primitivamente semcomunicação" ,

Posso agora retomar a pergunta feita anteriormente: que domínio seerige com essa nova maneira de dizer o problema da individuação?Com palavras de Deleuze, o domínio que se erige é o de uma "novaconcepção do transcendental":' Sabe-se que Deleuze emprega um nomeparadoxal para designar essa concepção: empirismo transcendental.6Roberto Machad07 lembra que esse nome já sepreparava, na obra de Deleuze, desde os anoscinqüenta e início dos anos sessenta, na confluên-cia de pequenos e magníficos estudos dedicadosa Hume e a Kant. Resumindo:

De um lado, Deleuze valoriza, em Hume, aidéia de separar as relações e os termos que se en-contram relacionados; valoriza, portanto, a ini-ciativa humiana de estabelecer uma "dualidadeempírica" entre "os termos e as relações", duali-dade situada para além da dualidade, tambémhumiana, entre as impressões e as idéias.8 Comose justifica essa valorização? O empirismo deIlume, como diz Michel Malherbe, não é um"empirismo vulgar", aquele que reduz o conheci-mento a uma "relação entre um sujeito real eum objeto já constituído",9 Para Deleuze, ao afir-lIlar que "as relações são exteriores aos seus ter-I1IOS", havendo impressões e idéias de termos edistintas impressões e idéias de relações, Hume

4 Costa, Rogério da. Limiares docontemporâneo - entrevistas. SãoPaulo: Escuta, 1993, p. 83.

5 Deleuze, G. Logique du sensoParis: Minuit, 1969, p. 126, n.3; tr. br. de L. R. Salinas Fortes(Lógica do sentido. São Paulo:Perspectiva, 1974, p. 107, n. 3).

6 Deleuze, G. Différence et répé-tition Paris: PUF, 1968, p. 186,187; tr. br. de Luiz B. L.Orlan-di & Roberto Machado (Dife-rença e repetição. Rio de J anei-ro: Graal, 1988, p. 236, 237).

7 Machado, Roberto. Deleuze ea filosofia. Rio de Janeiro:Graal, 1990, p. 139 sS.

8 Deleuze, G. Empirisme et sub-jectivité. Paris: PUF, 1953, p.122.

9 Malherbe, Michel. Kanl ouHume - ou la raison el le .fenfi-ble. Paris: Vrin, 19110,p, l!l.

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o INDIVÍDUO E SUA IMPLEXA PRÉ-INDIVIDUALIDADE • 93!l:l • Lu IZ B. L. ORLANDI

praticar o empirismo transcendental implica viabilizar forças eminentementesubversivas: indo por ele, experimentando-o, conforme um "tipo deexperiência muito particular" e que "permite descobrir as multiplicida-des", como adverte e antevê Deleuze,'" indo por ele, repito, a primeiraadvertência é desconfiar de pontos de vista sobrepostos em relação aeste ou àquele campo de estudos; trata-se de, com cuidado e operaçõesespeciais, colocar-se à disposição das emissões daquilo que se estuda; épreciso lavrar contatos numa ambiência de reciprocidades de aberturasforçadas, tendo-se em vista que estas são violenta ou suavemente impostaspelas ações dos díspares. Ou seja, a exploração de um campo empírico-transcendental exige variações ardilosas, como as operações de um subisentir, de um entre/sentir, de um intra/sentir, extra/sentir, trans/sentiretc. e não simplesmente de um re/sentir, operações articuladas no meiodas maquinarias em que se agenciam níveis disparatados de naturalidadese artificialidades; exige refinamentos táticos da disposição de contemplare contrair as intensidades de x, as pulsações de uma questão, as inten-sificações que determinado problema exala em sua pauta de efetuações.Mireille Buydens salienta justamente a "natureza intensiva" das "singula-ridades nõmades, impessoais e pré-individuais" que povoam o campotranscendental, marcando-se, assim, o caráter virtual desse campo, dadoque pensar as singularidades em sua naturezaintensiva exige que se evite concebê-las tão-so-mente como "infinitesimais", por exemplo, con-cepção que apenas restauraria o império dos in-divíduos.!5 A exploração desse campo intensivoimplica não só uma abertura do sensível comotambém exige que se deixe a coisa "pensar emmim", como diz Pierre Lévy, exige, em suma,colocar-se como ampla suscetibilidade a "possí-veis metamorfoses sob o efeito" dos problemas. 16

Aliás, basta reler estudos nietzschianos de De-Icuze para notar o quanto ele reencontra em Nie-tzsche a atuação de princípios e conceitos ditosplásticos ou "em metamorfose", denominação quelhes é atribuída porque, para não serem merasIl,'cneralidades, precisam determinar a si próprios(.'omaquilo que eles procuram determinar. 17

I'stal'ia elevando "o empirismo a uma potência superior", a potência capazd(\ descortinar um "mundo de exterioridade", mundo em que o própriopensamento está em relação fundamental com o Fora", mundo em queas relações não derivam de termos, mas são como "passagens externas".I;: justamente graças a relações assim entendidas que o sujeito humianopode ultrapassar o imediatamente dado, ultrapassamentos que se dãonum mundo feito de tecido "conjuntivo", este em que "a conjunção ~destrona a interioridade do verbo f', mundo rizomático, enfim. 10

Por outro lado, Deleuze aponta o que julga ser insuficiente no trans-cendental kantiano. Recordemos que, segundo ele, o termo transcenden-tal, com Kant, "qualifica o princípio de uma submissão necessária dosdados da experiência às nossas representações apriori e, correlativamente,de uma aplicação necessária das representações a priori à experiência",com o que se dispensaria a "idéia de uma harmonia entre o sujeito e oobjeto"." Pois bem, o que Deleuze desvaloriza em Kant é o ter ele acre-ditado que se possa induzir o transcendental a partir das "formas empí-ricas ordinárias, tais como elas aparecem sob a determinação do sensocomum"; desvaloriza, pois, o "decalque do transcendental sobre o empí-rico", decalque que só não acontece, segundo ele, em passagens dedicadaspor Kant ao sublime na terceira Crítica. 12

Ora, o que pretende Deleuze, precisamente, com essa reapropriaçãodissimétrica de iniciativas de Hume e Kant? Ele pretende dizer que aexploração do domínio e das regiões do transcendental depende, jus-

tamente, do exercício de um empirismo dito su-perior. Que significa isto? Significa, no caso dequalquer faculdade, por exemplo, levá-la a um"exercício transcendente não decalcado sobre oexercício empírico" vulgar, de tal modo que, in-do além das apreensões que costuma efetuar apartir "do ponto de vista de um senso comum",essa faculdade possa ir até o ponto de sentir-sepresa de tudo aquilo que "a força a exercer-se;assim procedendo, ela pode vir a descobrir "apaixão que lhe é própria";13 pode vir a descobriros sistemas de diferenças, as multiplicidades, asproblemáticas, as disparações em que ela própriaé extremada e até estressada. Nesse sentido,

14 Deleuze, G. Lettre-préface.In:Jean-Clet Martin. Váriatiom- La philosophie de Giltes Deleu-ze. Paris: Payot, 1993, p. 8.

10 Deleuze, G. Hume. In: Châ-telet, Fr. (org.). Histoire de laphilosophie. VaI. 4, Les lumieres(Le XVI/Jeme siecle). Paris: Ha-chette, 1972, p. 66, 67; tr. br.do artigo de Deleuze feita porGuido de Almeida (Rio deJaneiro: Zahar, 1982, p. 60,(il).

15 Buydens, Mireille. Sahara,l'esthétique de Gilles DeleuZt. Pa-ris: Vrin, 1990, p. 17, 14. (Agra-deço a Paulo César Lopes alembrança desse interessanteestudo.)

16 Lévy, Pierre. As tecnologias dainteligência (1990); tr. br. deCarlos Irineu da Costa. Rio de

Janeiro: Ed. 34, 1993, p. lI." Dcleuze, G. La philosophieGritiqlle de Kant. Paris: PUF,1!)(i,I, p. 22, 23.

17 Deleuze, G. Nietzrche el laphilosophie, Paris: PUF, 1962,11, § 6. (Nietzrche e afilosofia, tr.br. de E. F. Dias e Ruth.J. DhlN,RJ: Ed. Rio, 197o, lI, § 6.

1'1 1>(~Ir.IIZC, G. Dif. et réP., op.elt., p. IH(i, IH7, IH7n; tr. br.,p. :l:Hi, 2:17, 237n.1'lhlcll1l11,

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94 • LUI". B. L. ORLANDI

Pois bem, é nessa perspectiva de um empirismo transcendental que aresenha de Deleuze está lendo os textos de Simondon. Voltemos aosindivíduos que encontramos em nossas relações empírico-vulgares. Emvez de simplesmente abarcá-los com a ajuda de categorias mobilizadasem cstnMgias dedutivas ou indutivas, devo operar transduções, diz Si-mOlldoll. Isto quer dizer que, ao inverso da dedução, esta operação que"procura alhures um princípio para resolver o problema de um domínio",a tmnsdução, mais sutil, deve "extrair das próprias tensões" dessedomínio a "estrutura" capaz de resolvê-las; isto também quer dizer, poroutro lado, que, embora a indução procure também extrair estruturas da"análise dos próprios termos do domínio estudado", ela acaba fraque-jando ao conservar tão-somente o que "há de comum a todos os termos",ao passo que a transdução procura "descobrir dimensões", vasculhar aproblemática, detectar disparidades etc., e dizer tudo isso com "a menorperda possível de informação".

Pode-se ver que essa idéia de transdução sinaliza no sentido daexploração de domínios empírico-transcendentais. Assim, para transduziro indivíduo, devo perguntar, por exemplo, pelo sistema no qual está eletomado no exercício de sua própria individuação, sistema dito metaestável(nem estável, nem instável), sistema metaestável de singularidades pré-individuais; devo perguntar pela ação dos díspares, pela disparação entrepelo menos duas "escalas de realidades díspares", disparação que, paraDeleuze, "define essencialmente um tal sistema", sistema que implica,portanto, um "estado de dissimetria", uma "diferença fundamental". Ecomo devo perguntar pelo "problema colocado pelos díspares"? Devofazê-lo indiretamente, capturando a própria operação de individuaçãocomo passagem que resolve, na composição do indivíduo, um campo pro-blemático pré-individua~ campo distendido na agitação dos díspares. Comou sem ironia ou humor, devo pensar o indivíduo que vejo como sendoum precário, mutante e mutagênico revestimento de uma individuaçãoque se agita por ser "organização de uma solução", por ser "resoluçãopara um sistema objetivamente problemático".

Com Jean-Clet Martin, pode-se resumir deste modo as exigênciasque se impõem a quem pretenda estudar um domínio empírico-transcendental: estar atento ao "campo de resolução", este campo den~ulidade-atual, campo em que se "cristalizam singularidades segundopercursos determinados"; mas essa atenção deve prolongar-se para

o INDIVÍDUO E SUA IMPLEXA PRÉ-INDIVIDUALIDADE • 95explorar o "campo problemático", esse campo de realidade-virtual,campo em que as singularidades pré-individuais se distribuem nomadi-camente como "instâncias topológicas" não ainda direcionadas.18

Finalmente, lembremos apenas que Deleuze retoma a inspiração deSimondon em vários pontos de sua obra. Isto não quer dizer que deixede existir um importante desacordo. Por exemplo, ao mesmo tempoque destaca, concordando com Simondon, a "importância das sériesdisparatadas e de sua ressonância interna na constituição dos sistemas",Deleuze evita a condição ainda mantida por Simondon, qual seja, "aexigência de semelhança entre séries ou de que sejam pequenas as dife-renças postas em jogo". Ora, essa observação crítica, essa manifestaçãode interessante acordo-discordante, acontece no momento em que Deleuzeenfrenta o que chama de "dificuldade maior", acontece quando perguntapela "condição" da "comunicação entre séries heterogêneas", quandopergunta pelo seu "acoplamento" ou "ressonância" interna, evitandoaceitar, como resposta, que essa condição seja a de "um mínimo desemelhança entre as séries" ou de uma "identidade no agente (ou força)que opera a comunicação". A resposta propriamente deleuziana falaem "diferenciador", em "precursor sombrio", em "díspar", em "em-sida diferença", em "diferentemente diferente", em "objeto = x", aqueleque "se desloca perpetuamente em si mesmo e se disfarça perpetuamentenas séries", resposta que remete de modo permanente ao estatuto doproblemático .19 Mas é também certo que Deleuze vê em L'individu ... ,apesar de não acompanhar as "conclusões" desse livro, a "primeira teoriaracionalizada das singularidades impessoais e pré-individuais". Diz aindaque, nele, Simondon analisa as "cinco características" pelas quais elepróprio, Deleuze, tenta "definir o campo transcendental". Essas caracte-rísticas já foram aqui esboçadas. Como não podemos estudá-las emdetalhe, por que, então, fazer mais uma passageira referência a elas?

O primeiro motivo é chamar a atenção para a importância que ott~xtode Simondon ganha no conjunto da obra de um filósofo tão criativop tão mergulhado na história da filosofia quanto(. I)eleuze. O segundo motivo explica o primeiro,lIIasdá também um sinal às divergências existen-t"s entre esses autores e que não pudemos aquid(~senvolver: a reapropriação deleuziana do tex-to de Simondon é mais do que um amparo bi-

18 Martin,j.-C. Op. cit., p. 22;sobre empirismo transcenden-tal, ver cap. 2.

19 Deleuze, G., DR, op. clt.,p. 158, 156 ss.; tr. br., p. 201,199 ss.

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I~

!II. • Lu 11'. B. L. ORLANDI

hliogl'állco para conceitos já elaborados; ela participa de conceituações(' rc-conceituações em andamento; ela se imiscui como dobra criativaIlO fluxo conceitual a que Deleuze se entrega; ela opera, funciona emlinhas decisivas do sistema deleuziano, do planõmeno dessa filosofia dadiferença; engrena-se produtivamente com a maquinaria conceitual quea deglute. Para se ter ligeira idéia disso, é suficiente ler esta passagem deLogique du sens, passagem relativa à primeira característica do campotranscendental, o campo que Deleuze procura determinar para evitar amera oscilação entre "campos empíricos" e "profundidade indiferen-ciada": "em primeiro lugar, as singularidades-acontecimentos correspon-dem a séries heterogêneas que se organizam em um sistema nem estávelnem instável, mas «metaestável», provido de uma energia potencial emque se distribuem as diferenças entre séries", sendo, "a energia potencial",diz ele, "a energia do acontecimento puro, ao passo que as formas deatualização correspondem às efetuações do acontecimento".

Com aquele hífen imbricando singularidades-acontecimentos, ele estáreativando, por contato poroso com o texto de Simondon, seu próprioconceito empírico-transcendental de acontecimento, sendo este um dosfilosofemas mais reincidentes em sua obra e que acabará exigindo umaatenção especial ao conceito de virtualidade e, portanto, com o desingularidades pré-individuais. Na quinta característica do campo trans-cendental, a complicação se reafirma: "em quinto lugar, esse mundo dosentido tem por estatuto o problemático: as singularidades se distribuemnum campo propriamente problemático e advêm neste campo comoacontecimentos topológicos aos quais não está ligada qualquer direção".Por que a complicação aqui se reafirma? Porque Deleuze tece a relaçãoacontecimento/problemático: "o modo do acontecimento", diz ele, "é oproblemático".20 E ambos os conceitos, além de muitos outros, sãotratados de tal modo que neles se adensa essa perspectiva de exploraçãode mundos empírico-transcendentais, perspectiva tão presente nessetexto tão reverenciado de Simondon. Carecemos de um estudo detalhado

do alcance que esse encontro de Deleuze comSimondon propicia na constituição de um novotranscendental na história da filosofia.

IjI

~" Dclcuzc, G. LS, op. cit., p.12(i, 125, 127,69; tr. br., p. 107,HHi,57.

A GÊNESE DO INDIVíDUO ..

............................ GILBERT SIMONDON

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CD (i) (}) o.

INTRODUÇÃO

• I,

Existem duas vias segundo as quais a realidade do ser como indiví-duo pode ser abordada: uma via substancialista, que considera o sercomo consistindo em sua unidade, dado por si próprio, fundado sobresi mesmo, inengendrado, resistente ao que não é ele próprio; uma viahilemórfica, que considera o indivíduo como engendrado pelo encon-tro de uma forma e de uma matéria. O monismo, centrado em si mes-mo, do pensamento substancialista opõe-se à bipolaridade do esquemahilemórfico. No entanto, há algo em comum nestas duas maneiras deabordar a realidade do indivíduo: ambas supõem que existe um princí-pio de individuação, capaz de explicá-la, de produzi-la, de conduzi-la. Apartir do indivíduo constituído e dado, esforçamo-nos para remontar àscondições de sua existência. Essa maneira de propor o problema daindividuação, partindo da constatação da existência de indivíduos, en-cerra uma pressuposição que deve ser elucidada, porque conduz a umaspecto importante das soluções que propomos e se insinua na busca doprincípio de individuação: é o indivíduo, enquanto indivíduo constituí-do, que é a realidade interessante, a realidade a explicar. O princípio deindividuação será investigado como um princípio capaz de explicar oscaracteres do indivíduo, sem relação necessária com outros aspectos doser que poderiam ser correlativos da aparição de um real individuado.7àlperspectiva de investigação atribui um privilégio ontológico ao indivíduo cons-titu(do. Logo, ela corre o risco de não operar uma verdadeira ontogêne-

9a

. ,I

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 99

se, de não colocar o indivíduo no sistema de realidade em que a indivi-duação se produz. Qy,e a individuação tenha um princípio, isso é um postula-do na pesquisa do princípio de individuação. Na própria noção de princípio,há um certo caráter que prefigura a individualidade constituída, com aspropriedades que terá quando estiver constituída; a noção de princípiode individuação decorre, de certo modo, de uma gênese às avessas, deuma ontogênese invertida: para explicar a gênese do indivíduo, comseus caracteres definidos, é necessário supor a existência de um primei-ro termo, o princípio, que traz em si o que explicará que o indivíduoseja indivíduo e dará a razão de sua hecceidade. Mas faltaria mostrar demaneira precisa que a ontogênese pode ler, como condição primeira,11mtermo primeiro: um termo já é um indivíduo ou, pelo menos, algoindividualizável e que pode ser origem de hecceidade, que é possívelconverter em hecceidades múltiplas; tudo o que pode ser origem derelação já é do mesmo modo de ser que o indivíduo, quer seja o átomo,partícula insecável e eterna, a matéria-prima ou a forma: o átomo podec'ntrar em relação com outros átomos pelo clinâmen e constituir assim, ,11m indivíduo, viável ou não, através do vazio infinito e do devir semrim. A matéria pode receber uma forma, e nesta relação matéria-forma~wencontra a ontogênese. Se não houvesse certa inerência da hecceida-de ao átomo, à matéria ou à forma, não haveria possibilidade de encon-Irar, nas realidades invocadas, um princípio de individuação. Procurar oIlrincípio de individuação em uma realidade que precede a própria individuação~nJnsiderar a individuação unicamente como ontogênese. Nesse caso, o princí-pio de individuação é origem de hecceidade. Com efeito, tanto o subs-Illllcialismo atomista quanto a doutrina hilemórfica evitam a descriçãodireta da própria ontogênese; o atomismo descreve a gênese do compos-lo, como o corpo vivo, que só tem uma unidade precária e perecível,1111(\ resulta de um encontro casual e que irá se dissolver novamente emIU'IIS elementos quando uma força, maior que a força de coesão dosIloIllOS, atacá-lo em sua unidade de composto. As próprias forças del'IH'SUO, que poderíamos considerar como princípio de individuação do11Idivíduo composto, são rejeitadas na estrutura das partículas elemen-hu'os que existem pela eternidade afora e são os verdadeiros indivíduos;1111 lltomismo, o princípio de individuação é a própria existência da infi-IIllIude dos átomos: já está presente no momento em que o pensamentoIIUtll' tomar consciência de sua natureza: para cada átomo, a individua-

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100. GII.IIERT SIMONDON

ção é um fato, é sua própria existência dada e, para cada composto, é ofato de ser o que é em virtude de um encontro casual. Segundo o esquemahilem6~fic(), ao contrário, o ser individuado ainda não é dado quandoconsideramos a matéria e a forma que se tomarão o cruvoÀ.Óv:1 nãoassistimos à ontogênese porque sempre nos colocamos antes dessa to-mada de forma que é a ontogênese; logo, o princípio de individuaçãonào é apreendido na própria individuação como operação, mas naquiloque esta operação necessita para poder existir, isto é, uma matéria euma forma: supomos que o princípio está contido na matéria ou naforma, porque supomos que a ope-ração de individuação não é capazde conter o próprio princípio, mas unicamente de utilizá-lo. A pesquisado princípio de individuação realiza-se antes ou depois da individua-ção, conforme o modelo seja tecnológico e vital (para o esquema hile-mórfico) ou físico (para o atomismo substancialista).Mas, em ambos oscasos, existe uma zona obscura que recobre a operação de individuação.Esta operação é considerada como coisa a explicar e não como aquiloem que a explicação deve ser encontrada: daí a noção de princípio deindividuação. E a operação é considerada como coisa a explicar porqueo pensamento tende para o ser individuado acabado, do qual é neces-sário dar uma explicação, passando pela etapa da individuação parachegar ao indivíduo após a operação. Logo, há suposição da existên-cia de uma sucessão temporal: primeiro, existe o princípio de indivi-duação; em seguida, este princípio opera em uma operação de indi-viduação; por fim, o indivíduo constituído aparece. Se, ao contrário,supuséssemos que a individuação não produz apenas o indivíduo, nãoprocuraríamos passar rapidamente pela etapa de individuação parachegar a esta realidade última que é o indivíduo: tentaríamos apreen-der a ontogênese em todo o desenvolvimento de sua realidade, e conhe-cer o indivíduo pela individuação muito mais do que a individuação a partirdo indivíduo.

Desejaríamos mostrar que é necessário ope-rar uma reversão na investigação do princípiode individuação, considerando como primor-dial a operação de individuação a partir da qualo indivíduo vem a existir e da qual ele reflete Odesenrolar, o regime e, por fim, as modalidadesem seuscaracteres.Então, o indivíduo seria apre-

I O'\Jvo",óv- termo grego queHlgnificao total, o conjunto (cf./)ictionnaire Grec-Français, deA. llailly, Paris: Hachette).I'llfll Aristóteles o\JvoÂ.Óvde-NIK'llIllI Hubstllncia,o compos-to d" mlltéria e de forma(N.T.).

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 101endido como uma realidade relativa, uma determinada fase do ser quesupõe uma realidade pré-individual anterior a ela, e que não existe com-pletamente só, mesmo depois da individuação, pois a individuaçãonão esgota de uma única vez os potenciais da realidade pré-individual;por outro lado, o que a individuação faz aparecer é não só o indivíduo,mas também o par indivíduo-meio.~Dessa maneira, o indivíduo é rela-tivo em dois sentidos: porque ele não é todo o ser e porque resulta deum estado do ser em que ele não existia como indivíduo, nem comoprincípio de individuação.

Por conseqüência, unicamente a individuação, enquanto operação do ser com-pleto, é considerada como ontogenética. A individuação deve, então, ser con-siderada como resolução parcial e relativa, que se manifesta em umsistema contendo potenciais e encerrando uma certa incompatibilidadeem relação a si próprio, incompatibilidade feita tanto de forças de ten-são quanto de impossibilidade de uma interação entre termos extremosdas dimensões.A palavra ontogênese ganha todo o seu sentido se, em vez de lhe atri-

buirmos o sentido, restrito e derivado, de gênese do indivíduo (em opo-sição a uma gênese mais vasta, por exemplo, a da espécie), fazemo-ladesignar o caráter de devir do ser, aquilo por que o ser devém enquantoé, como ser. A oposição do ser e do devir só pode ser válida no interiorde certa doutrina, supondo que o modelo próprio do ser é a substância.Contudo, também é possível supor que o devir é uma dimensão do ser,corresponde a uma capacidade que o ser tem de defasar-se em relação asi próprio, de resolver-se defasando-se; o ser pré-individual é o ser em quenão existe fase; o devir é o ser em cujo seio se efetua uma individuação, oser em que uma resolução aparece pela sua re-partição em fases; o devir não é um quadro noqual o ser existe; ele é dimensão do ser, modode resolução de uma incompatibilidade inicial,rica em potenciais.3 A individuação corresponde à

fi fi d I grandeza que o indivíduo me-aparição de ases no ser, as ases o ser; e a não é diatiza quando vem a ser.lima conseqüência depositada ao lado do devir(~isolada, mas esta própria operação enquantose efetua; só podemos compreendê-la a partirdessa supersaturação inicial do ser homogêneoe sem devir que, em seguida, se estrutura e de-

2 Aliás, o meio pode não sersimples, homogêneo, unifor-me, mas ser originalmenteatravessado por uma tensãoentre duas ordens extremas de

3 E constituição de uma ordemde grandeza mediata entre ter-mos extremos; o próprio de-vir ontogenético, em certosentido, pode ser consideradocomo mediação.

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I·j j..

10:2 • (}II.IlERT SIMONDON

Vhll, fazendo aparecer indivíduo e meio, em conformidade com o de-vir, que é uma resolução das tensões primeiras e uma conservação des-sas lensões sob forma de estrutura; em certo sentido, poderíamos dizerque o único princípio pelo qual podemos nos orientar é o da conservaçãodo ser pelo devir, essa conservação existe pelas trocas entre estrutura eoperação, procedendo por saltos quânticos entre equilíbrios sucessivos.Para pensar a individuação é necessário considerar o ser, não comosubstância, matéria ou forma, mas como sistema tenso, supersaturado,acima do nível da unidade; não consistindo unicamente em si mesmo enão podendo ser pensado, adequadamente, mediante o princípio doterceiro excluído; o ser concreto ou ser completo, isto é, o ser pré-indi-vidual, é um ser que é mais que uma unidade. A unidade, característicado ser individuado, e a identidade, que autoriza o uso do princípio doterceiro excluído, não se aplicam ao ser pré-individual, o que explica aimpossibilidade de o mundo ser recomposto, posteriormente, com mô-nadas, mesmo acrescentando-lhes outros princípios, como o de razãosuficiente, para ordená-las em universo; a unidade e a identidade só seaplicam a uma das fases do ser, posterior à operação de individuação;essas noções não podem ajudar a descobrir o princípio de individua-ção; elas não se aplicam à ontogênese, entendida no sentido pleno dotermo, isto é, ao devir do ser enquanto ser que se desdobra e se defasaindividuando-se.

A individuação não pôde ser pensada e descrita de maneira adequa-da porque uma única forma de equilíbrio era conhecida, o equilíbrioestável; o equilíbrio metaestável não era conhecido; o ser era implicita-mente suposto em estado de equilíbrio estável; ora, o equilíbrio estávelexclui o devir, pois corresponde ao mais baixo nível possível de energiapotencial; é o equilíbrio atingido em um sistema quando todas as trans-formações possíveis foram realizadas e não existe mais nenhuma força;todos os potenciais se atualizaram, e o sistema não pode se transformarnovamente, tendo atingido o seu mais baixo nível energético. Os anti-gos só conheciam a instabilidade e a estabilidade, o movimento e orepouso, não conheciam clara e objetivamente a metaestabilidade. Paradefinir a metaestabilidade é necessário fazer intervir a noção de energiapotencial de um sistema, a noção de ordem e a de aumento da entropia;Ilsslm, é possível definir este estado metaestável do ser, muito diferentedo .quilíbrio estável e do repouso, que os antigos não podiam fazer

A GÊNESE DO INDIViDUO • 103

intervir na investigação do princípio de individuação, porque, para eles,nenhum paradigma físico preciso podia esclarecer o seu emprego.4 Ten-laremos, portanto, apresentar primeiro a individuação física como um casode resolução de um sistema metaestáve~ a partir de um estado de sistema comoo da superfusão ou da supersaturação que preside a gênese dos cristais.A cristalização é rica em noções muito estudadas e que podem ser em-pregadas como paradigmas em outros domínios; ela não esgota, no en-lanto, a realidade da individuação física.

Ora, podemos supor também que a realidade, em si mesma, da mes-ma maneira que a solução supersaturada e ainda de modo mais comple-lo no regime pré-individual, mais que unidade e mais que identidade, é pri-mitivamente capaz de se manifestar como onda ou corpúsculo, matériaou energia, porque toda operação, e toda relação no interior de umaoperação, é uma individuação que desdobra, defasa o ser pré-indivi-dual, correlacionando simultaneamente valores extremos, ordens degrandeza primitivamente sem mediação. A complementaridade seria,então, a repercussão epistemológica da metaestabilidade primitiva e ori-ginal do real. Nem o mecanicismo, nem o energetismo, teorias da identida-de, explicam a realidade de maneira completa. A teoria dos campos,acrescentada à dos corpúsculos, e a teoria da interação entre campos ecorpúsculos, ainda são parcialmente dualistas, mas encaminham-se parauma teoria do pré-individual. A teoria dos quanta, por outra via, apreendeliste regime do pré-individual que ultrapassa a unidade: uma troca de ener-gia se faz por quantidades elementares, como se houvesse uma indivi-duação da energia na relação entre as partículas, que, em um sentido, épossível considerar como indivíduos físicos. Nesse sentido é que pode-ríamos assistir à convergência de duas novas teorias que, até hoje, semantiveram impenetráveis, a dos quanta e a damecânica ondulatória: elas poderiam ser consi-deradas como duas maneiras de exprimir o pré-in-dividual pelas diferentes manifestações em quede intervém como pré-individual. Sob o contí-nuo e o descontínuo há o quântico e o comple-mentar metaestável (o mais que unidade), que é() verdadeiro pré-individual. A necessidade der.orrigir e de acoplar os conceitos de base emfísica talvez traduza o fato de os conceitos serem vimento das ciências.

4 Havia, entre os antigos,equivalentes intuitivos e nor-mativos da noção de metaes-tabilidade; mas, como a me-taestabilidade geralmentesupõe a presença simultâneade duas ordens de grandeza ea ausência de comunicaçãointerativa entre elas, este con-ceito deve muito ao desenvol-

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104 • GILBERT SIMONDON

adequados unicamente à realidade individuada, e não à realidade pré-indi-vidual.

Compreenderíamos, então, o valor paradigmático do estudo da gêne-se dos cristais como processo de individuação: ele permitiria apreender,em uma escala macroscópica, um fenômeno que repousa sobre estadosde sistema pertencentes ao domínio microfísico, molecular e não molar;apreenderia a atividade que ocorre no limite do cristal em formação. Talindividuação não é o encontro de uma forma e de uma matéria prévias,que existem como termos separados, anteriormente constituídos, mas umaresolução que surge no seio de um sistema metaestável rico em poten-ciais: forma, matéria e energia preexistem no sistema. A forma e a matéria nãosão suficientes. O verdadeiro princípio de individuação é mediação, quegeralmente supôe dualidade original das ordens de grandeza e ausênciainicial de comunicação interativa entre elas, em seguida, comunicaçãoentre ordens de grandeza e estabilização.

Ao mesmo tempo que uma energia potencial (condição de ordem degrandeza superior) se atualiza, uma matéria se ordena e se divide (condi-ção de ordem de grandeza inftrior) em indivíduos estruturados em umaordem de grandeza média, que se desenvolve por um processo mediatode amplificação.

O regime energético do sistema metaestável é que conduz à cristali-zação e a sustenta, a forma dos cristais exprime, porém, certos caracte-res moleculares ou atômicos da espécie química constituinte.

No domínio do vivo, a mesma noção de metaestabilidade pode serutilizada para caracterizar a individuação; mas a individuação não seproduz mais, como no domínio físico, apenas de maneira instantânea,quântica, brusca e definitiva, deixando atrás de si uma dualidade domeio e do indivíduo, o meio empobrecido do indivíduo que ele não é, eo indivíduo não tendo mais a dimensão do meio. Sem dúvida, tal indivi-duação existe também para o vivo, como origem absoluta, mas é acom-panhada de uma individuação perpétua que é a própria vida, conformo modelo fundamental do devir: o vivo conserva em si uma atividade per-manente; ele não só é resultado de individuação, como o cristal oumolécula, mas também teatro de individuação. A atividade do vivo, porconseqüência, não está toda concentrada em seu limite, como a do indi-vrduo físico; existe nele um regime mais completo de ressonância interna,que exige comunicação permanente e mantém uma metaestabilidad

A GtNESE DO INDIVÍDUO • 105

que é condição de vida. Não é esse o único caráter do vivo, e não pode-mos assimilar o vivo a um autômato que manteria certo número deequilíbrios ou buscaria compatibilidade entre várias exigências, segun-do uma fórmula de equilíbrio complexa, composta de equilíbrios maissimples; o vivo é também o ser que resulta de uma individuação iniciale amplifica esta individuação, o que não faz o objeto técnico, ao qual omecanicismo cibernético gostaria de assimilá-lo funcionalmente. No vivohá uma individuação pelo indivíduo e não apenas um funcionamento resul-tante de uma individuação já efetuada, comparável a uma fabricação; ovivo resolve problemas, não só adaptando-se, isto é, modificando suarelação com o meio (como uma máquina pode fazer), mas tambémmodificando-se a si próprio, inventando novas estruturas internas, in-troduzindo-se completamente na axiomática dos problemas vitais:' Oindivíduo vivo é sistema de individuação, sistema individuante e sistema indivi-duando-se; a ressonância interna e a tradução da relação consigo próprioem informação estão neste sistema do vivo. No domínio físico, a resso-nância interna caracteriza o limite do indivíduo individuando-se; no do-mínio vivo, ela devém o critério de todo indivíduo enquanto indivíduo;ela existe no sistema do indivíduo, e não apenas no que o indivíduoforma com seu meio; a estrutura interna do organismo já não resulta(como a do cristal) unicamente da atividade que se efetua e da modula-~:ãoque se opera no limite entre o domínio de interioridade e o domíniode exterioridade; o indivíduo físico, perpetuamente descentrado, peri-rórico em relação a si próprio, ativo no limite de seu domínio, não temverdadeira interioridade; o indivíduo vivo, ao contrário, tem uma ver-dadeira interioridade, porque a individuação se realiza dentro; no indi-viduo vivo o interior também é constituinte, enquanto no indivíduo físi-co só o limite é constituinte, e o que é topologicamente interior é gene-Ikamente anterior. O indivíduo vivo é contem-porâneo de si próprio em todos os seus elemen-los, o que não o é o indivíduo físico, o qual con-I(ml passado radicalmente passado, mesmoquando ainda está crescendo. O vivo, em seuprúprio interior, é um núcleo de comunicaçãoInformativa; ele é sistema em um sistema, com-portando em si mesmo mediação entre duas or- 6 Essa mediação interior podec1tms de grandeza.6 intervir como retransmissor

5 Por esta introdução é que ovivo faz obra informacional,ele próprio tornando-se umnúcleo de comunicação inte-rativa entre uma ordem derealidade superior à sua di-mensão e uma ordem inferiora esta, que ele organiza.

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I()(;. GILBERT SIMONDON

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Em suma, é possível fazer uma hipótese análoga à dos quanta emIIsica, e também à da relatividade dos níveis de energia potencial: épossível supor que a individuação não esgota toda a realidade pré-indi-vidual, e que um regime de metaestabilidade não só é mantido peloindivíduo, mas também carregado por ele, de maneira que o indivíduoconstituído transporta consigo certa carga associada de realidade pré-individual, animada por todos os potenciais que a caracterizam; umaindividuação é relativa como uma mudança de estrutura em um sistemafísico; um certo nível de potencial se mantém e as individuações aindasão possíveis. Essa natureza pré-individual, que permanece associadaao indivíduo, é uma fonte de estados metaestáveis futuros de onde po-derão sair novas individuações. Segundo esta hipótese, seria possívelconsiderar toda verdadeira relação como tendo posição de ser e como desenvolven-do-se no interior de uma nova individuação; a relação não surge entre doistermos que já seriam indivíduos; ela é um aspecto da ressonância internade um sistema de individuação; faz parte de um estado de sistema. Essevivo, que, simultaneamente, é mais e menos que a unidade, comportauma problemática interior e pode entrar como elemento em uma problemáticamais vasta que seu próprio ser. A participação, para o indivíduo, é O fato deele ser elemento em uma individuação mais vasta, por intermédio da carga derealidade pré-individual que o indivíduo contém, isto é, graças aos poten-ciais que detém.

Toma-se, então, possível pensar a relação interior e exterior ao indi-víduo como participação, sem apelar para novas substâncias. O psiquis-mo e o coletivo são constituídos por individuações produzidas após aindividuação vital. O psiquismo é continuação da individuação vital em umser que, para resolver sua própria problemática, é obrigado a intervir, por suaprópria ação, como elemento do problema, como sujeito; o sujeito podeser concebido como a unidade do ser, enquanto vivo individuado, ecomo elemento e dimensão do mundo, enquanto ser que se representa

sua ação no mundo; os problemas vitais não sãofechados em si mesmos; sua axiomática abertasó pode ser saturada por uma seqüência indefi-nida de individuações sucessivas que sempreintroduzem mais realidade pré-individual e in-corporam-na na relação com o meio; afetivida-de e percepção se integram em emoção e ciên-

em relação à mediação exter-nll que o indivíduo vivo reali-ZII, o que permite ao vivo fa-/,('1' comunicar uma ordem dej4"'lIndczll cósmica (por exem-plo, 11 cnergia luminosa solar)11IIIllII ordclll de gnmdeza in-1"'1111101(1(' 111111',

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 107

cia que supõem um apelo a novas dimensões. No entanto, o ser psíquiconão pode resolver em si mesmo sua própria problemática; sua carga derealidade pré-individual, ao mesmo tempo que ela se individua comoser psíquico que ultrapassa os limites do vivo individuado e incorpora ovivo em um sistema do mundo e do sujeito, permite a participação sobforma de condição de individuação do coletivo; a individuação sob for-ma de coletivo faz do indivíduo um indivíduo de grupo, associado aogrupo pela realidade pré-individual que traz consigo e que, reunida à deoutros indivíduos, se individua em unidade coletiva. As duas individua-ções, psíquica e coletiva, são recíprocas uma em relação à outra; elaspermitem definir uma categoria do transindividual, que contribui paraa explicação da unidade sistemática da individuação interior (psíquica)c da individuação exterior (coletiva). O mundo psicossocial do trans-individual não é o social bruto nem o interindividual; ele supõe umaverdadeira operação de individuação a partir de uma realidade pré-individual, associada aos indivíduos e capaz de constituir uma nova pro-blemática, tendo sua própria metaestabilidade; exprime uma condiçãoquântica, correlativa de uma pluralidade de ordens de grandeza. O vivoé apresentado como ser problemático, simultaneamente superior e infe-rior à unidade. Dizer que o vivo é problemático é considerar o devircomo uma dimensão do vivo: o vivo é conforme o devir, que operalima mediação. O vivo é agente e teatro de individuação; seu devir éuma individuação permanente, ou melhor, uma seqüência de acessos deindividuação, avançando de metaestabilidade em metaestabilidade; as-sim sendo, o indivíduo não é substância nem simples parte do coletivo:() coletivo intervém como resolução da problemática individual, o quesignifica que a base da realidade coletiva já está parcialmente contida('m um indivíduo sob a forma da realidade pré-individual que permane-ce associada à realidade individuada; o que geralmente consideramoscomo relação, em razão da substancialização da realidade individual é,de fato, uma dimensão da individuação por que o indivíduo devém: al't'lação com o mundo e com o coletivo é uma dimensão da individuaçãodll qual o indivíduo participa a partir da realidade pré-individual que se11Idividuaetapa por etapa.

Logo, psicologia e teoria do coletivo estão ligadas: a ontogênese éqlle indica o que é a participação no coletivo e também o que é a opera-~n.()psíquica, concebida como resolução de uma problemática. A índi-

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vi<luação que é a vida é concebida como descoberta, em uma situaçãode conflito, de uma nova axiomática incorporando e que unificandotodos os elementos desta situação em sistema que contém o indivíduo.Para compreender o que é a atividade psíquica no interior da teoria daindividuação, enquanto resolução do caráter conflituoso de um estadometaestável, é necessário descobrir as verdadeiras vias de instituiçãodos sistemas metaestáveis na vida; neste sentido, tanto a noção de rela-ção adaptativa do indivíduo com o meio 7quanto a noção crítica de relação dosujeito do conhecimento com o objeto conhecido devem ser modificadas; oconhecimento não se edifica de maneira abstrativa a partir da sensação,mas de maneira problemática a partir de uma primeira unidade tropística,par de sensação e de tropismo,8 orientação do ser vivo em um mundo polarizado;ainda aqui é necessário desligar-se do esquema hilemórfico; não há umasensação que seria uma matéria constituindo um dado a posteriori paraas formas a priori da sensibilidade; as formas a priori são uma primeiraresolução por descoberta da axiomática das tensões, resultante do afron-tamento das unidades tropísticas primitivas; as formas a priori da sensibili-dade não são a-prioris nem a-posterioris obtidos por abstração, mas asestruturas de uma axiomática que aparece em uma operação de indivi-duação. Na unidade tropística já há o mundo e o vivo, mas o mundofigura aí unicamente como direção, como polaridade de um gradiente

que situa o ser individuado em uma díade indefi-nida, a qual se estende a partir dele e na qual eleocupa o ponto mediano. A percepção, poste-riormente a ciência, continuam a resolver essaproblemática, não só pela invenção dos quadrosespaço-temporais, mas também pela constitui-ção da noção de objeto, que devém fonte dosgradientes primitivos e que os ordena entre si

Iidade, sem intercomunicaçãoantes da inclividuação. em conformidade com um mundo. A distinção

de a priori e a posteriori, repercussão do esquemahilemórfico na teoria do conhecimento, enco-bre, com sua obscura zona central, a verdadeiraoperação de individuação, que é o centro do co-nhecimento. A própria noção de série qualitati-va ou intensiva merece ser pensada segundo ateoria das fases do ser: ela não é relacional e sus-

7 Particularmente, a relaçãocom o meio não poderia serconsiderada, antes e durantea inclividuação, como relaçãocom um meio único e homo-gêneo: o próprio meio é siste-ma, grupamento sintético deduas ou várias escalas de rea-

"Noção introduzida por LoebtiO estudo do comportamentoutllmal, designando os fenô-tlWI!OSde crescimento, de1l1'l<mlllç!lo local e de desloca-11H'1llo. Cf: Vocabulaire techni-I/'I~ ~I criliqlle de la philosophie,i\llch·(lI.ltluucle,PUF, p. 1.154.(N.T.)

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 109

tentada por uma preexistência dos termos extremos, mas se desenvolvea partir de um estado médio primitivo que localiza o vivo e o insere nogradiente que dá um sentido à unidade tropística: a série é uma visã~abstrata do sentido, segundo o qual a unidade tropística se orienta. Enecessário partir da individuação, do ser apreendido em seu centro emconformidade com a espacialidade e com o devir, não de um indivíduosubstancializado diante de um mundo estranho a eleY

O mesmo método pode ser empregado para explorar a afetividade ea emotividade, que constituem a ressonância do ser em relação a si pró-prio e ligam o ser individuado à realidade pré-individual que lhe é asso-ciada, como a unidade tropística e a percepção o ligam ao meio. Opsiquismo é feito de sucessivas individuações que permitem ao ser re-solver os estados problemáticos correspondentes à permanente comu-nicação do maior e do menor que ele.

Contudo, o psiquismo não pode resolver-se ao nível do ser indivi-duado isolado; ele é o fundamento da participação em uma individua-ção mais vasta, a do coletivo; o ser individualisolado, que se coloca a si próprio em questão,não pode ultrapassar os limites da angústia, ope-ração sem ação, emoção permanente que nãochega a resolver a afetividade, experimentaçãopela qual o ser individuado explora suas dimen-sões de ser, sem as poder ultrapassar. Ao coletivo,apreendido como axiomática que resolve a problemá-tica psíquica, corresponde a noção de transindividual.Tal conjunto de reformas das noções é sus-

tentado pela hipótese de que uma informaçãonunca é relativa a uma realidade única e homo-gênea, mas a duas ordens em estado de dispara-tion: a informação, quer ao nível da unidade tro-pística, quer ao nível do transindividual, jamaisé depositada em uma forma que pode ser dada;ela é a tensão entre dois reais díspares, a signifi-cação que surgirá quando uma operação de indivi-duação descobrir a dimensão segundo a qual dois reais(Hsparespodem tornar-se sistema; portanto, a infor-mação é um início de individuação, uma exigên-

9Com isso queremos dizer queo a-priori e o a-posteriori nãose encontram no conhecimen-to; não são forma nem maté-ria do conhecimento, pois nãosão conhecimento, mas ter-mos extremos de urna díadepré-individual e, conseqüen-temente, pré-noética. A ilu-são de formas a-priori proce-de da preexistência, no siste-ma pré-inclividual, de condiçõesde tota-lidade, cuja climensão ésuperior à do indivíduo emprocesso de ontogênese. In-versamente, a ilusão do a-pos-teriori provém da existên-cia de urna realidade cuja or-dem de grandeza, quanto àsmodificaçôes espaço-tempo-rais, é inferior à do indivíduo.Um conceito não é a-priorinem a-posteriori, mas a-prae-senti, pois ele é uma comuni-cação informativa e interatlvltentre o que é maior e o que 6menor que o indivíduo.

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('ia de individuação, nunca é uma coisa dada; não há unidade e identida-de da informação, pois a informação não é um termo; ela supõe tensãode um sistema de ser; só pode ser inerente a uma problemática; a infor-mação é aquilo por intermédio de que a incompatibilidade do sistema não resol-vido devém dimensão organizadora na resolução; a informação supõe umamudança de fase de um sistema, porque ela pressupõe um primeiro estado~ré-individual que se individua conforme a organização descoberta; amformação é a fórmula da individuação, fórmula que não pode preexis-tir a esta individuação; poderíamos dizer que a informação é sempre nopresente, atual, porque ela é o sentido segundo o qual um sistema seindividua.1O

A concepção do ser sobre a qual repousa este estudo é a seguinte: oser não possui uma unidade de identidade, que é a do estado estável emque nenhuma transformação é possível, o ser possui uma unidade trans-dutora, isto é, ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a sipróprio de um lado e de outro de seu centro. O que consideramos relaçãoou dualidade de princípios é, de fato, escalonamento do ser, que é maisque unidade e mais que identidade; o devir é uma dimensão do ser, nãoo que lhe advém conforme uma sucessão que seria sofrida por um ser

primitivamente dado e substancial. A indivi-10 Essa afirmação não leva a duação deve ser apreendida como devir do ser,contestar a validade das teo- e não como modelo do ser que esgotaria suarias quantitativas da informa- "fi OSlgnl lcação. ser individuado não é todo o serção e das medidas da comple-xidade, mas supõe um estado nem o ser primeiro: em vez de apreender a indivi-fundamental - o do ser pré- duação a partir do ser individuado, é necessário ahre-individual - anterior a qual- rquer dualidade do emissor e ender O ser individuado a partir da individuação e ado receptor, portanto, a qual- individuação a partir do ser pré-individua4 reparti-quer mensagem transmitida. d dO que subsiste deste estado O segun O as várias ordens de grandeza.fundamental, no caso clássico Logo, a intenção desse estudo é estudar asda informação transmitida co- formas, modos e graus da individuação a fim de re-mo mensagem, não é a fonteda informação, mas a condi- colocar o indivíduo no ser, consoante os três ní-Çno primordial sem a qual não veis: físico, vital, psicossocial. Em lugar de su-111\ efeito de informação, logo, bIIlIdllde informação: a meta- por su stâncias para explicar a individuação,I'HllIlJllldlldedo receptor, quer consideramos os diferentes regimes de indivi-"I' 1r'lIlcde ser técnico ou de duação como fundamento de domínios taisIlIdlvlduo vivo, Podemos no-11111111' I'NllIIntimnllçi'lo de "in- como matéria, vida, espírito, sociedade. A sepa-tll1'lIlIl~nllpl'lrnell'll", ração, o escalonamento, as relações desses do-

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 111

mínios aparecem como aspectos da individuação conforme suas dife-rentes modalidades; as noções de substância, de forma e de matéria sãosubstituídas pelas noções mais fundamentais de informaçâo primeira,de ressonância interna, de potencial energético, de ordens de grandeza.

Para que essa modificação de noções seja possível é necessário, toda-via, fazer intervir simultaneamente um método e uma noção novos. Ométodo consiste em não tentar compor a essência de uma realidade pormeio de uma relação conceitual entre dois termos extremos, e em consi-derar qualquer verdadeira relação como tendo posição de ser. A rela-ção é uma modalidade do ser; é simultânea relativamente aos termos deque assegura a existência. Uma relação deve ser apreendida como rela-ção no ser, relação do ser, maneira de ser e não como simples relaçãoentre dois termos que poderíamos c()nhec(~r de modo adequado me-diante conceitos, porque teriam uma exisl .nda detivamente separada,Porque os termos são concebidos como suustClIIcias é que a relação érelação de termos, e o ser é separado em lC'l'IllOS porque o ser é, primi-tiva e anteriormente a qualquer exame da individua~~ào, concebido comosubstância. Em contrapartida, se a subst(lncia deixa de ser o modelo doser é possível conceber a relação como nilo-identidade do ser em rela-ção a si próprio, inclusão no ser de uma r ulidad' que não é só idênticaa ele, de maneira que o ser enquanto S 'I" unleriormente a qualquerindividuação, pode ser apreendido como mais que unidade e mais queidentidadeY Tal método supõe um postulado de natureza ontológica:ao nível do ser apreendido antes de qualquer individuação, o princípiodo terceiro excluído e o princípio de identidade não se aplicam; essesprincípios aplicam-se unicamente ao s r já individuado, e definem umser empobrecido, separado em meio e indivíduo; não se aplicam, então,ao todo do ser, isto é, ao conjunto formado ulteriormente por indivíduoe meio, mas somente àquilo que, do ser pré-individual, se tornou indiví-duo. Nesse sentido, a lógica clássica não pode ser empregada para pen-sar a individuação, pois ela obriga a pensar a operação de individuaçãocom conceitos e com relações entre conceitos,que só se aplicam aos resultados da operação deindividuação considerados de maneira parcial.

Do emprego desse método, que considera oprincípio de identidade e o princípio do tercei-ro excluído como excessivamente estreitos, li-

II Particularmente, a pluralida-de das ordens de grandeza, aausência primordial de comu-nicação interativa entre estasordens faz parte de tal apre-ensão do ser,

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112. GIl.BERT SIMONDON

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bera-se uma noção que possui uma multidão de aspectos e de domíniosde aplicação: a de transdução. Por transdução entendemos uma opera-ção física, biológica, mental, social, por que uma atividade se propagagradalivamente no interior de um domínio, fundando esta propagaçãosobre lima estruturação do domínio operada de região em região: cadaregião de estrutura constituída serve de princípio de constituição à re-gião seguinte, de modo que uma modificação se estende progressiva-mente ao mesmo tempo que esta operação estruturante. Um cristal queaumenta e cresce, a partir de um germe muito pequeno, em todas asdireções em sua água-mãe, fornece a imagem mais simples da operaçãotransdutora: cada camada molecular já constituída serve de base estru-turante à camada em formação; o resultado é uma estrutura reticularamplificante. A operação transdutora é uma individuação em progres-so; no domínio físico, ela pode efetuar-se de maneira mais simples sobforma de iteração progressiva; mas em domínios mais complexos, comoos domínios de metaestabilidade vital ou de problemática psíquica, elapode avançar com um passo constantemente variável e estender-se emum domínio de heterogeneidade; há transdução quando há atividade,estrutural e funcional, partindo de um centro do ser e estendendo-se emdiversas direções a partir desse centro, como se múltiplas dimensões doser aparecessem em torno desse centro; a transdução é aparição corre-lativa de dimensões e de estruturas em um ser em estado de tensão pré-individual, isto é, em um ser que é mais que unidade e mais que identi-dade, e que ainda não se defasou em relação a si próprio em múltiplas,dimensões. Os termos extremos, atingidos pela operação transdutora,

não preexistem a essa operação; seu dinamis-mo provém da tensão primitiva do sistema doser heterogêneo que se defasa e que desenvolvedimensões segundo as quais ele se estrutura; ele

uma maior que o indivíduo - não procede de uma tensão entre os termos queo sistema de totalidade meta- serão atingidos e depositados nos limites extre-

mos da transdução. 12 A transdução pode ser umaoperação vital; em particular, exprime o senti-do da individuação orgânica; pode ser operaçãopsíquica e procedimento lógico efetivo, aindaque não seja absolutamente limitada ao pensa-mento lógico. No domínio do saber, ela define

" Ele exprime, ao contrário, aheterogeneidade primordialde duas escalas de realidade,

eslável -, a outra menor que"Ie, como uma matéria, Entreestas duas ordens primordiais<l()Hl'llildeza o indivíduo se de-HI:llvolvc por um processo del'Ollllllllcação amplificante, do1)11((1II ll'UllSdução é o modoIIIIIIHpl'lmlllvo,já existenle nahllllvl<lllnçno Ilsicll.

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 113a verdadeira maneira de progredir da invenção, que não é indutiva nemdedutiva, mas transdutora, isto é, que corresponde a uma descobertadas dimensões segundo as quais uma problemática pode ser definida; éa operação analógica no que ela tem de válida. Essa noção pode serempregada para pensar os diferentes domínios de individuação: ela seaplica a todos os casos em que uma individuação se realiza, manifestan-do a gênese de um tecido de relações fundadas sobre o ser. A possibili-dade de empregar uma transdução analógica para pensar um domíniode realidade indica que este domínio é efetivamente a sede de umaestruturação transdutora. A transdução corl'esponde a essa existênciade relações que nascem quando o ser pré-individual se individua; elaexprime a individuação e permite pensá-la, logo, é uma noção simulta-neamente metafísica e lógica; aplica-se à ontogênese e é a pr6pria ontogênese.Objetivamente, ela permite compreender as condições sistemáticas daindividuação, a ressonância interna,':i a problemática psíquica. Logica-mente, pode ser empregada como fundamento de uma nova espécie deparadigmatismo analógico, para passar da individuação fIsica à indivi-duação orgânica, da individuação orgânica à individuação psíquica e daindividuação psíquica ao transindividual subjetivo e objetivo, o que de-fine o plano dessa pesquisa.

Poderíamos afirmar, sem dúvida alguma, que a transdução não pode-ria ser apresentada como procedimento lógico possuindo valor de pro-va; aliás, não queremos dizer que a transdução é um procedimento lógi-co no sentido corrente do termo; ela é um procedimento mental, e maisainda que um procedimento uma maneira de progredir do espírito quedescobre. Essa maneira de progredir consiste em seguir o ser em sua gêne-Je, em efetuar a gênese do pensamento ao mesmo tempo que ocorre~ênese do objeto. Nessa pesquisa, ela é chamada a representar um pa-pel que a dialética não pode representar, porque o estudo da operaçãodc individuação não parece corresponder à aparição do negativo comoNegunda etapa, mas a uma imanência do negativo na condição primeira,~()bforma ambivalente de tensão e incompati-bilidade; isso é o que há de mais positivo noc'Nladodo ser pré-individual, isto é, a existênciad(~potenciais, que é também a causa da incom-Plllibilidade e da não-estabilidade deste estado:li ncgativo é primeiro como incompatibilidade

13 A ressonância interna é omodo mais prirrútivo da co-municação entre realidades deordens diferentes; ela conlémum duplo processo de llmplIficação e de condensuçllo.

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114 • GIL13ERT SIMONDON

olllogenética, mas ele é a outra face da riqueza em potenciais: logo, nãoé um negativo substancial; jamais é etapa ou fase, e a individuação nãoó síntese, retorno à unidade, mas defasagem do ser a partir de seu cen-tro pré-individual de incompatibilidade potencializada, Nessa perspec-tiva ontogenética, o próprio tempo é considerado como expressão dadimensionalidade do ser individuando-se,

Conseqüentemente, a transdução não só é maneira de progredir doespírito, mas também intuição, visto que ela é aquilo por que uma estru-tura aparece em um domínio de problemática, fornecendo a resoluçãodos problemas levantados, Mas, ao contrário da dedução, a transduçãonão vai procurar alhures um princípio para resolver o problema de umdomínio: ela extrai a estrutura resolutiva das próprias tensões deste do-mínio, da mesma maneira que a solução supersaturada cristaliza-se gra-ças a seus próprios potenciais e conforme a espécie química que con-tém, não pela contribuição de alguma forma estrangeira, Ela tambémnão é comparável à indução, pois a indução conserva realmente os ca-racteres dos termos de realidade compreendidos no domínio estudado,extraindo as estruturas da análise destes próprios termos, mas só con-serva o que há de positivo, isto é, o que há de comum a todos os termos,eliminando o que estes têm de singular; a transdução, ao contrário, éuma descoberta de dimensões, as dimensões de cada um dos termosque o sistema faz comunicar, de tal maneira que a realidade completade cada um dos termos do domínio possa vir a ordenar-se sem perda,sem redução, nas novas estruturas descobertas; a transdução resolutivaopera a inversão do negativo em positivo: aquilo por que os termos não sãoidênticos uns aos outros, aquilo por que são díspares (com o sentido queeste termo ganha na teoria da visão) é integrado ao sistema de resoluçãoe devém condição de significação; não há empobrecimento da informa-ção contida nos termos; a transdução caracteriza-se pelo fato de o resul-tado dessa operação ser um tecido concreto que compreende todos ostermos iniciais; o sistema resultante é feito de concreto, e compreendetodo o concreto; a ordem transdutora conserva todo o concreto e carac-teriza-se pela conservação da informação, enquanto a indução reclama umaperda de informação; à semelhança da progressão dialética, a transdu-çdo conserva e integra os aspectos opostos; à diferença da progressãodialética, a transdução não supõe a existência de um tempo prévio comoquudro em que a gênese se desenrola, o próprio tempo sendo solução,

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 115

dimensão da sistemática descoberta: o tempo sai do pré-individual, da mes-ma maneira que as outras dimensões segundo as quais a individuação se efetua, 14

Ora, para pensar a operação transdutora, que é o fundamento daindividuação em seus diversos níveis, a noção de forma é insuficiente. Anoção de forma, a de substância ou a de relação, como relação posteriorà existência dos termos, fazem parte do mesmo sistema de pensamento:estas noções foram elaboradas a partir dos resultados da individuação;podem apreender unicamente um real empobrecido, sem potenciais, e,portanto, incapaz de individuar-se.

A noção de forma deve ser substituida pela de informação, a qual supõe aexistência de um sistema em estado de equilíbrio metaestável podendoindividuar-se; a informação, à diferença da forma, jamais é um termoúnico, mas a significação que surge de uma "disparation", A antiga no-ção de forma, tal como a libera o esquema hilemórfko, é excessivamen-te independente de qualquer noção de sistema e de metaestabilidade.A que foi dada pela Teoria da Forma comporta, ao contrário, a noção desistema e é definida como o estado para o qual o sistema tende quandoencontra seu equilíbrio: ela é uma resolução de tensão. Infelizmente,um paradigmatismo físico sumariíssimo levou a Teoria da Forma aconsiderar exclusivamente o estado de equilíbrio estável, como esta-do de equilíbrio de um sistema que pode resolver as tensões: a Teoriada Forma ignorou a metaestabilidade. Desejaríamos retomar a Teoria daForma e mostrar, mediante a introdução de umacondição quântica, que os problemas propostospela Teoria da Forma não podem ser diretamenteresolvidos pelo emprego da noção de equilíbrio('stável, mas unicamente utilizando a de equilí-I)rio metaestável; então, a Boa Forma não é mais" forma simples, a forma geométrica pregnante,llIas a forma significativa, isto é, a que estabelecelima ordem transdutora no interior de um siste-IIIlI. de realidade que comporta potenciais. Essa um núcleo interelementar, e

boa forma é que mantém o nível energético doI4lslema, conserva seus potenciais, compatibili-,.,",!ldo-os:ela é a estrutura de compatibilidade ed., viabilidade, é a dimensionalidade inventadaNt'gundo a qual há compatibilidade sem degra-

14 Essa operação é paralela àda individuação vital: um ve-getal institui uma mediação,pelo emprego da energia lu-minosa recebida na fotossín-tese, entre uma ordem cósmi-ca e uma ordem infra-molecu-lar, classificando e repartindoas espécies químicas contidasno solo e na atmosfera. Ele é

desenvolve-se como ressonân-cia interna deste sistema pré-individual feito de duas cama-das de realidade primitiva-mente sem comunicaç!lo, ()núcleo interelementar fll1. 11mtrabalho intra-clcmcnlar,

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II(i. GILBERT SIMONDON

dação.lr. A noção de Forma merece, então, ser substituída pela de infor-mação. No decurso desta substituição, a noção de informação jamais deveser reduzida aos sinais ou suportes ou veículos de informação, como aleoria tecnológica da informação, inicialmente extraída por abstração da tecnolo-gia das transmissões, tende a fazê-lo. Logo, a noção pura de forma deve sersalva duas vezes de um paradigmatismo tecnológico sumariíssimo: umaprimeira vez, relativamente à cultura antiga, por causa do uso redutorque é feito desta noção no esquema hilemórfico; uma segunda vez, no esta-do de noção de informação, para salvar a informação como significaçãoda teoria tecnológica da informação, na cultura moderna. Pois nas sucessi-vas teorias do hilemorfismo, da Boa Forma, em seguida da informação,a visada é exatamente a mesma: a que procura descobrir a inerência dassignificações no ser, esta inerência deve ser descoberta na operação deindividuação.

Assim, um estudo da individuação pode tender para uma reformadas noções filosóficas fundamentais, pois é possível considerar a indivi-duação como aquilo que, do ser, deve ser conhecido em primeiro lugar.Antes mesmo de perguntar por que é ou não legítimo fundar julgamen-tos sobre os seres, devemos considerar que o ser se diz em dois sentidos:em um primeiro sentido, fundamental, o ser é enquanto é; mas em umsegundo sentido, sempre sobreposto ao primeiro na teoria lógica, o seré o ser enquanto individuado. Se fosse verdade que a lógica só funda asenunciações relativas ao ser após a individuação, uma teoria do ser an-terior a toda lógica deveria ser instituída; essa teoria poderia servir defundamento para a lógica, porque, de antemão, nada prova que o serseja individuado de uma única maneira possível; se existissem diversostipos de individuação, deveriam existir também diversas lógicas, cadauma correspondente a um tipo defmido de individuação. A classifica-ção das ontogêneses permitiria pluralizar a lógica com um fundamentoválido de pluralidade. Quanto à axiomatização do conhecimento do serpré-individual, ela não pode estar contida em uma lógica prévia, pois

nenhuma norma, nenhum sistema destacado deseu conteúdo podem ser definidos: só a indivi-duação do pensamento pode, ao se realizar,acompanhar a individuação de seres outros queo pensamento; portanto, não é um conhecimen-to imediato, nem um conhecimento mediato que

II Por conseqüência, a formaIIplll'CCC da mesma maneiraqUI' u. comunicação ativa - a!'(lHH(lIInnclll inlerna que ope-111 11 Itullvlduuçllo: ela apare-('!' ('11111 o IlIdlvlduo,

A GÊNESE DO INDIVÍDUO • 117

podemos ter da individuação, mas um conhecimento que é uma opera-ção paralela à operação conhecida; não podemos, no sentido habitualdo termo, conhecer a individuação; podemos unicamente individuar, indi-viduar-nos e individuar em nós; logo, esta apreensão à margem do co-nhecimento propriamente dito é uma analogia entre duas operações, oque é um certo modo de comunicação. A individuação do real, exteriorao sujeito, é apreendida pelo sujeito graças à individuação analógica doconhecimento no sujeito; mas a individuação dos seres não sujeitos éapreendida pela individuação do conhecimento e não só pelo conhecimen-to. Os seres podem ser conhecidos mediante o conhecimento do sujei-to, mas a individuação dos seres só pode ser apreendida mediante aindividuação do conhecimento do sujeito.

TraduçãoIVANA MEDEIROS

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A PROPÓSITO DE SIMONDON* .

• Publicado sob o título de "Gilbert Simolldllll, <) illdivíduo e sua gênese físico-biológica", naRevue philosophique de la France et de l'étTaTI/iCT,VIII. Cl.vl, li." 1-:1,janeiro-março de HHi6, pp. 115-11R. A obra de G. Simondon (1924- W!l!J), l:il/dirJidl/ ti .111 lienése physico-biologique, apareceu em1964 (Paris, PUF, coleção "Epiméthée"). lhllll SI' dll pllhlicação parcial da tese de doutorado deEstado, L'individuation à la lumiere des noi,io/l.1 di' .fimlll' ti, rl'information, defendida em 1958. Asegunda parte só foi publicada em I!J!l!J, 1'('111 AlIlJln, ('1I1ll o tílulo L'individuation psyehique etcolieetive. [Nota de David Lapoujade, orgalli/.lldlll' dll ('III,'IOIH'II I:fle f)éserte et autres textes, a sair noBrasil pela Ed. Iluminuras, incluindo o pl'p.s(,lIll' I('xlll di' IlPll'lIzc. NEI [O indivíduo e sua gêneseftsico-biológiea ganhou uma nova edição I'ruIlCl'SII « :1'('lIohl(',,I. Mill()lI, I!J9!í) que incorpora passa-gens da tese de doutorado não presenles 11I1.~ jlllhllnll;I;(,s PI'I'I'I·c!('nll·s. NTI .

.................................. GILLES DELEUZE

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(I) (~) 0 8) (6)80®@@

O PRINCÍPIO de individuação é respeitado, julgado venerável, masparece que a filosofia moderna se absteve até agora de retomar o

problema por sua conta. As conquistas da física, da biologia e da psico-logia nos levaram a relativizar, a atenuar o princípio, mas não a reinter-pretá-Io. Já é um grande mérito de Gilbert Simondon apresentar umateoria profundamente original da individuação, teoria que implica todauma filosofia. Simondon parte de duas observações críticas: 1°)Tradi-cionalmente, o princípio de individuação é reportado a um indivíduo jápronto, já constituído. Pergunta-se apenas o que constitui a individuali-dade de um tal ser, isto é, o que caracteriza um ser já individuado. Eporque se "mete" o indivíduo após a individuação, "mete-se" no mesmolance o princípio de individuação antes da operação de individuar, aci-ma da própria individuação; 2°) Por conseguinte, "mete-se" a individua-ção em toda parte; faz-se dela um caráter coextensivo ao ser, pelo me-nos ao ser concreto (mesmo que seja ele divino). Faz-se dele todo o sere o primeiro momento do ser fora do conceito. Este erro é correlativodo precedente. Na realidade, o indivíduo só pode ser contemporâneode sua individuação e, a individuação, contemporânea do princípio: oplincípio deve ser verdadeiramente genético, não simples princípio dereflexão. E o indivíduo não é somente resultado, [121]porém meio deindividuação. Contudo, precisamente deste ponto de vista, a individua-ção já não é coextensiva ao ser; ela deve representar um momento quenllo é nem todo o ser nem o primeiro. Ela deve ser situável, determiná-vnl em relação ao ser, num movimento que nos levará a passar do pré-Indlvldunl ao indivíduo. 120

GILBERT SIMONDON, o INDIVÍDUO E SUA GÉNESE FÍSICO-BIOLÓGICA • 121A condição prévia da individuação, segundo Simondon, é a existência

de um sistema metaestável. Foi por não ter reconhecido a existência detais sistemas que a filosofia caiu nas duas aporias precedentes. Mas oque define essencialmente um sistema metaestável é a existência de uma"disparação", ao menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas derealidade díspares, entre as quais não existe ainda comunicação intera-tiva. Ele implica, portanto, urna diferença fundamental, como um estadode dissimetria. Todavia, se ele é sistema, ele o é na medida em que, nele,a diferença existe como energia potencia4 como diferença de potencial repar-tida em tais ou quais limites. Parece-nos que a concepção de Simondonpode ser, aqui, aproximada de uma teoria das quantidades intensivas;pois é em si mesma que cada quantidade intensiva é diferença. Umaquantidade intensiva compreende uma diferença em si, contém fatoresdo tipo E-E' ao infinito, e se estabelece, primeiramente, entre níveisdíspares, entre ordens heterogêneas que só mais tarde, em extensão,entrarão em comunicação. Ela, assim como o sistema metaestável, éestrutura (não ainda síntese) do heterogêneo.J á se nota a importância da tese de Simondon. Descobrindo a condição

prévia da individuação, ele distingue rigorosamente singuléiridade eindividualidade, pois o metaestável, definido como ser pré-individual, éperfeitamente provido de singularidades que correspondem à existênciae à repartição dos potenciais. (Não éjustamente isso que se tem na teoriadas equações diferenciais, na qual a existência e a repartição das "singula-!idades" são de natureza distinta da forma "individual" das curvas inte-grais em sua vizinhança?) Singular sem ser individual, eis o estado doser pré-individual. Ele é diferença, disparidade, disparação. E entre asmais belas páginas do livro há aquelas nas quais Simondon mostra comoa disparidade, como primeiro momento do ser, como momento singular,é efetivamente suposta por todos [122] os outros estados, sejam eles deunificação, de integração, de tensão, de oposição, de resolução de opo-sições... etc. Notadamente contra Lewin e a Gestaltheorie, Simondonsustenta que a idéia de disparação é mais profunda do que a de oposição,que a idéia de energia potencial é mais profunda do que a de campo deforças: ''Antes do espaço hodológico há esse acavalamento de perspecti-vas que não permite apreender o obstáculo determinado, porque nãohá. dimensões em relação às quais o conjunto único se ordenaria; a flue-/.uatio anim~ que precede a ação determinada, não é hesitação entrv(lriosobjetos ou mesmo entre diversas vias, mas recobrimento movent(\

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l:l:l. GILLESDELEUZE

de conjuntos incompatíveis, quase semelhantes e, todavia, díspares" (p.:l2:J)....Mundo imbricado de singularidades discretas, tanto mais imbrica-do quanto mais estas não estejam ainda se comunicando ou não estejamtomadas numa individualidade: é este o primeiro momento do ser.

Como vai a individuação proceder a partir desta primeira condição?Dir-se-á tanto que ela estabelece uma comunicação interativa entre asordens díspares de grandeza ou de realidade; ou que ela atualiza a energiapotencial ou integra as singularidades; ou que ela resolve oproblema postopelos díspares, organizando uma dimensão nova na qual eles formamum conjunto único de grau superior (por exemplo, a profundidade nocaso das imagens retinianas). No pensamento de Simondon, a categoriado "problemático" ganha uma grande importância, justamente na medidaem que ela está provida de um sentido objetivo: com efeito, ela.já nãomais designa um estado provisório do nosso conhecimento, um conceitosubjetivo indeterminado, mas um momento do ser, o primeiro momentopré-individual. E, na dialética de Simondon, o problemático substitui onegativo. A individuação, portanto, é a organização de uma solução, deuma "resolução" para um sistema objetivamente problemático. Esta re-solução deve ser concebida de duas maneiras complementares. De umlado, como ressonância interna, sendo esta o "modo mais primitivo da co-municação entre realidades de ordem diferente" (e acreditamos que Si-mondon tenha conseguido fazer da "ressonância interna" um conceitofIlosófico extremamente rico, suscetível de toda sorte de aplicações, mes-mo e sobretudo em psicologia, no domínio da afetividade). Por outro la-do, como informação, [123] sendo que esta, por sua vez, estabelece umacomunicação entre dois níveis díspares, um definido por uma forma jácontida no receptor, o outro definido pelo sinal trazido do exterior (re-encontramos aqui as preocupações de Simondon concernentes à ciberné-tica e toda uma teoria da "significação" em suas relações com o indivíduo).De toda maneira, a individuação aparece bem como o advento de umnovo momento do Ser, o momento do ser fasado, acoplado a si mesmo."í~a individuação que cria as fases, pois as fases são tão-somente essedesenvolvimento de uma parte e outra do próprio ser... O ser pré-

individual é o ser sem fases, ao passo que o ser• I't\glnll 20!) na referida edi- após a individuação é o ser fasado. Uma tal con-~nlldo !!)!)!i (NT). cepção identifica, ou pelo menos reata individua-•• Ihicl(.tn, p. 2,12 (NT). ção e devir do ser" (p. 276).**

GILBERT SIMONDON, o INDIVÍDUO E SUA GÊNESE FÍSICO-BIOLÓGICA • 123Até agora indicamos apenas os princípios mais gerais do livro. No

detalhe, a análise organiza-se em torno de dois centros. Primeiramente,um estudo de diferentes domínios de individuação; notadamente, as di-ferenças entre a individuação física c a individuação vital são objeto deuma profunda exposição. O regime de ressonância interna aparece comodiferente nos dois casos; o indivíduo físico contenta-se em receber infor-mação de uma só vez e reitera uma singularidade inicial, ao passo que ovivente recebe, sucessivamente, vários aportes de informação e contabili-za várias singularidades; e, sobretudo, a individuação física se faz e seprolonga no limite do corpo, por exemplo, do cristal, ao passo que o vi-vente cresce no interior e no exterior, sendo que o conteúdo todo doseu espaço interior mantém-se "topologicamente" em contato com oconteúdo do espaço exterior;* (sobre esse ponto, Simondon escreve umcapítulo admirável, "topologia e ontogênese"). É de estranhar que Simon-don não tenha levado mais em conta, no domínio da biologia, os traba-lhos da escola de Child sobre os gradientes e os sistemas de resoluçãono desenvolvimento do ovo,DL pois esses trabalhos sugerem a idéia deuma individuação por intensidade, a idéia de um campo intensivo deindividuação, que confirmaria suas teses em muitos pontos. Porém, issoocorre, sem dúvida, porque Simondon não quer [124] ater-se a umadeterminação biológica da individuação, mas precisar níveis cada vezmais complexos: assim, há uma individuação propriamente psíquica,que surge, precisamente, quando as funções vitais já não bastam pararesolver os problemas postos ao vivente, e quando uma nova carga derealidade pré-individual é mobilizada numanova problemática, em um novo processo desolução (cf. uma teoria muito interessante daafetividade). E o psiquismo, por sua vez, abre-se a um "coletivo transindividual".

Vê-se qual é o segundo centro das análisesde Simondon. Em certo sentido, trata-se de umavisão moral do mundo, pois a idéia fundamen-tlll é que o pré-individual permanece e deveI)prmanecer associado ao indivíduo, "fonte depstados metaestáveis futuros". O estetismo é entãocondenado como o ato pelo qual o indivíduo seIi(~parada realidade pré-individual na qual ele

* Há, certamente, um erro deimpressão no original francêsao repetir "espaço interior"(intérieur) neste ponto. O queSimondon escreve no capítu-lo "topologia e ontogênese" (aque Deleuze fará referêncialogo em seguida) não deixadúvidas a esse respeito (cf. pp.222-7 da ed. de 1995) (NT).

DL Sobre esta questão, Deleu.ze remete invariavelmente liobra de Dalcq. L'Oeu[ el .llm

dynamisme organisat6ur. 1'111'11:A1bin Michel, W41 (NT).

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1:24. GILLES DELEUZE

mergulha, fecha-se numa singularidade, recusa comunicar-se e provoca,de certa maneira, uma perda de informação. "Há ética na medida emque há informação, isto é, uma significação encimando uma disparaçãode elementos de seres e fazendo, assim, com que seja também exterioraquilo que é interior" (p. 297).* A ética percorre, portanto, uma espéciede movimento que vai do pré-individual ao trans-individual pela indi-viduação. (O leitor se pergunta, todavia, se, em sua ética, Simondon nãorestaura a forma de um Eu [Moi] que ele, entretanto, havia conjuradoem sua teoria da disparidade ou do indivíduo concebido como serdefasado e polifasado.)

Em todo caso, poucos livros levam-nos, como este, a sentir a queponto um filósofo pode inspirar-se na atualidade da ciência e, ao mesmotempo, porém, reencontrar os grandes problemas clássicos, transforman-do-os, renovando-os. Os novos conceitos estabelecidos por Simondonparecem-nos de uma extrema importância: sua riqueza e sua origina-lidade impressionam vivamente ou influenciam o leitor. E o que Si-mondon elabora é toda uma ontologia, segundo a qual o Ser nunca éUno: pré-individual, ele é mais que um metaestável, superposto, simul-

tâneo a si mesmo; individuado, ele é ainda múl-tiplo porque "polifasado", "fase do devir que con-* Página 245 na edição de

1995 (NT). duzirá a novas operações".

TraduçãoLUIZ B. L. ORLANDI

DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNO-MAyA .

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e ®00

LEIBNIZ escreveu: "Poderia introduzir-se na comunicação um ca-ractere universal, algo melhor do que os caracteres usados pelos

chineses. Poderemos empregar pequenas figuras no lugar das palavras,no sentido de representar coisas visíveis e também invisíveis. Isto servi-ria para a comunicação com nações distantes, mas também poderia serutilizado na comunicação ordinária. O emprego dessa forma de escritu-ra seria muito útil para o enriquecimento da imaginação e para a produ-ção de pensamentos".

A caracteristica universalis, como simbolização translingüística, é umaquestão de grande atualidade, mais hoje em dia do que na época deLeibniz, já que uma comunicação intercultural planetária faz-se cadavez mais necessária.

TRANSMENTALISMO SIMBOLISTA

A poesia simbolista trabalha sobre a mesma intuição: deve existiruma substância translingüística na comunicação, uma vibração do serque se possa perceber e comunicar com outros instrumentos, que nãoas palavras. A poética simbolista tenta superar o limite lingüístico dacompreensão inter-humana, e procura uma forma de comunicação queseja livre da convenção semântica. O conceito central da es~ola poéticasimbolista é a noção de linguagem transmental.

Mallarmé busca uma poética capaz de transmitir emoções em vez deIIlgnif1cados. A palavra torna-se uma corda musical que quer vibrar em

DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNOMAYA • 127

uníssono com o seu mundo. A concepção mallarmiana de emoção deveser entendida para além do contexto romântico e da sua sugestão deca-dente.

Mallarmé escreve que o simbolismo é "uma poética totalmente nova,que pode pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz". Pintár, dizele, não a coisa, mas o efeito produzido na mente daquele que recebe amensagem poética. Estamos distantes da aura romântica: o efeito emo-cional do qual Mallarmé está falando é a transmissão do estado mental.A ação exercida pela cor, pelo fonema, por lima imagem ou por umapalavra tem o propósito de produzir uma mutação mental, uma emoçãoneurológica ou uma telepatia sinestésica.

Aqui deve-se mencionar o poeta russo Velímir Khlébnikov, que per-tenceu ao movimento futurista e foi amigo de Maiakóvski nos anoshudetljane. Dentre os futuristas, Khlébnikov pode ser visto como o poe-Lamais próximo do espírito da pesquisa simbolista. De resto é precisodizer que as afinidades entre estas duas tendências literárias (simbolis-mo e futurismo) são muito mais interessantes do que as suas diferen-<,:as.Khlébnikov, que adorava viajar de trem de um vilarejo a outro dasua terra russa, e que amava os modos de vida arcaicos e freqüentavaas práticas mágico-xamânicas da Rússia tradicional, queria criar umalinguagem virtualmente planetária, capaz de ser entendida para alémdas fronteiras nacionais e lingüísticas. Chamou Zaum esta sua lingua-Kem, palavra que pretendia significar uma linguagem emocional trans-lingüística.

Angelo Maria Ripellino, erudito italiano que escreveu livros belíssi-1II0Ssobre a literatura eslava, aponta que "o futurismo tem duas faces.I}c um lado ele enfatiza a tecnologia, os arranha-céus, as máquinas; dooutro é movido pelos trogloditas, pelos selvagens, pelas cavernas, pela1,( lade .da pedra; e assim opõe a dormência de uma Ásia pré-lógica aoII'C~neSlda metrópole moderna européia". I

Com efeito estamos num terreno ambíguo, aberto em duas frentesdiferentes. A linguagem Zaum foi seduzida pelas formas pré-simbólicasd,1 comunicação, pela vocalidade original pro-!olingüística, a linguagem das emoções originais.Mns ao mesmo tempo está predisposta a imagi-11111' a possibilidade de uma comunicação pós-_llIll>ólica, ou seja, uma tecnologia telepática.

1 Angelo Maria Ripellino.Tentativa di esplorazione deicontinente Khlebnikov, In:Saggi informa di ballal6. 'fil!'1n1,1978, p. 93.

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128. FRANCO BERARDI

Neste sentido, vemos simbolismo e futurismo convergindo na direçãoda imaginação das utopias lingüísticas, fundindo o arcaico e o futuro.

Khl(~bnikov estava fascinado pelas encantadoras virtudes dos sons,pelas feitiçarias fonemáticas. "Crença na bruxaria dos fonemas, interes-se na cultura xamânica, pesquisa de uma linguagem ritual ... ; esta é ainlluência simbólica, que considera a poesia uma ação mágica, espéciede mensagem oracular. Vários poemas de Bal'mont, Bel'ij, Blok sãoconcebidos como significados de uma ação mágica, semelhantes aosungüentos dos feiticeiros, aos cérebros dos animais, à pele de cobra, àsfolhas de beladona ou figueira-brava e assim por diante." 2

Khlébnikov volta as costas para o mundo europeu moderno, nãoobstante os seus flertes futurísticos, preferindo a Ásia eterna, e mergu-lha na "noite etimológica", nas profundezas de um passado que tendeem direção às origens imaginárias. Neste pano de fundo mágico, elevislumbra a possibilidade de um efeito telepático de transmissão dosignificado, sem a mediação de um "significante" convencional, atra-vés da estimulação direta das emoções neurológicas correspondentesao significado. O caminho de Khlébnikov conduz a uma comunicaçãopré-simbólica, mas esta estrada acaba convergindo com a da buscapós-simbólica, que hoje, à luz do desenvolvimento das tecnologias derealidade virtual, constituem o verdadeiro problema. Khlébnikov pa-rece ser o ponto de convergência das duas modalidades comunica-tivas: a arcaica-ritual pré-simbólica e a tecnológico-virtual pós-sim-bólica.

O objetivo da linguagem transmental de Khlébnikov é encontrar umadimensão não convencional de comunicação através de uma viagem deregresso ao território noturno das etimologias e das origens. A partir deKhlébnikov podemos hoje progredir na direção da mesma finalidade,através das ousadas experimentações das técnicas telepáticas.

SHABDA E MANTRA

A pesquisa simbolista está explicitamente conectada às buscas místi-cas de todos os tempos, porque o misticismo conhece o caminho para adimensão não convencional da comunicação.

Nos Fundamentos do Misticismo Tibetano, Lamai 111111"111,p. 4,. Anagarika Govinda escreve: ''A natureza essen-

DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNOMAYA • 129cial das palavras não se esgota no seu significado presente, e nem suaimportância está limitada à sua utilidade como transmissoras de pensa-mentos e idéias". 3

Anagarika Govinda está perfeitamente consciente do fato de que, nestecampo, o simbolismo budista mostra uma profunda coincidência com osimbolismo poético, e observa: ''A magia que a poesia exerce sobre nósdeve-se a esta qualidade do ritmo [... ] o nascimento da linguagem foi onascimento da humanidade mesma. Cada palavra era o equivalente so-noro de uma experiência, conectada a um estímulo interno e externo". 4

A consistência material do signo poético (isto é, do som, do ritmo, davibração) produz sua eficácia e a capacidade para criar efeitos mentais.Referindo-se à tradição tibetana, Anagarika Govinda faz uma distinçãoentre a palavra como SHABDA e a palavra como MANTRA; SHABDA é apalavra ordinária que compõe o discurso comum, a palavra capaz decarregar significação através de uma compreensão convencional. OMANTRA, ao contrário, é o impulso que cria uma imagem mental, é uminstrumento capaz de criar um estado mental sem passar pela significa-ção convencional. "MANrRA é um instrumento para pensar, algo quecria uma imagem mental. Através do seu som, traz à tona seu conteúdocomo um estado de realidade imediata. MANrRA é poder, não mera-mente um discurso com o qual a mente pode contradizer ou evadir-se.O que o MANTRA expressa pelos seus sons existe no tempo, e depois de-saparece. O fato de que a palavra cria algo de atual reflete a verdadeirapeculiaridade da poesia. A sua palavra não fala, mas age."5 O mantra éuma força capaz de evocar imagens, de criar e transmitir estados mentais.

REALIDADE MENTAL E IDEOGRAFIA DINÂMICA

O simbolismo poético e o simbolismo mágico estão ambos envolvi-dos no processo de evocação que a palavra e o signo podem produzir.Mas hoje devemos reconsiderar o problema partindo de um dado novo,Oliundo da tecnologia eletrõnica: a máquina paraa produção de REALIDADE VIRTUAL, que repro-põe o mesmo problema colocado pela poéticasimbolista e pelo simbolismo mágico, quer di-zer, o problema da comunicação telepática.

A comunicação lingüística tornou-se possível

3 Lama Anllglll'lkn Ouvlu!!n,Founr/atillltl (if 1I/JnuIII My,rtl-ci.!m, [,ondI'llN, 1II(i(), p, 17.

41bldelTI, p, 111,

n Ibldllm, p, 111,

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Io\Tuçasaos sinais convencionais, conectados arbitrariamente a um signi-l'icado: estamos falando aqui de uma comunicação que estimula estadosmentais correspondentes à imagem, à emoção, ao conceito que o emis-sor quer transmitir ao seu receptor.

A produção de instrumentos técnicos para a estimulação, especial-mente as máquinas de REAUDADE VIRTUAL, apresentam o problema sobuma nova luz.

Não me interessam estes aparelhos de Virtual Reality que podem serencontrados no mercado de entretenimento, que na verdade são poucomais do que videogames interativos. Para além da sua aplicação presente,o que me interessa é a dimensão conceitual da realidade virtual.

O que há de novo na realidade virtual? Ela pode ser definida comouma tecnologia capaz de transmitir impulsos diretamente de um cére-bro a outro, com o objetivo de estimular uma certa configuração si-náptica no cérebro do receptor, e, portanto, uma imagem, um conceito,uma emoção. De modo puramente abstrato podemos dizer que a reali-dade virtual é a estimulação de uma onda neuronal, estruturada segun-do modelos que são intencionais e isomórficos aos estados mentais quecorrespondem a uma certa experiência. Nesse sentido é uma tecnologiaadequada para um tipo de comunicação telepática.Jaron Lanier, que foi o primeiro a construir máquinas de REALIDADE

VIRTUAL, fala de comunicação pós-simbólica. Se é possível criar umaimpressão mental correspondente a uma certa experiência, e comparti-lha-se esta impressão mental com uma outra pessoa, ou outras pessoas,então não há mais necessidade de descrever-se o mundo, porque bastasimplesmente criar esta contingência, esta coincidência. Não há maisnecessidade de descrever uma ação, basta criá-la.

IDEOGRAFIA DINÂMICA

Partindo destas premissas, podemos voltar ao problema exposto porLeibniz, aquele do caractere universal. Em termos contemporâneos, é oproblema de uma linguagem planetária, de uma linguagem capaz deagregar pessoas que pertencem a contextos e tradições culturais e lin-gUísticas diferentes.

Pierre Lévy propõs a idéia de uma tecnologia de comunicação quetllt' mesmo definiu como IDEOGRAFIA DINÂMICA.

DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNOMAYA • 131

O que quer dizer, sinteticamente? A IDEOGRAFIA DINÂMICA é umatecnologia de comunicação que permite transmitir estados mentais, ima-gens, emoções, conceitos, configurações de sentido, sem nenhuma co-dificação, e, portanto, sem nenhum meio de tipo convencional. A trans-missão de estados mentais torna-se possível pela estimulação direta dasconexões neurofísicas correspondentes às configurações de sentido.

Podemos dizer que a ideografia dinámica é uma tecnologia de comu-nicação capaz de transferir de uma pessoa a outra os modelos mentaisque estão envolvidos na visão de uma certa imagem, na experiência deuma determinada situação, no ato de pensar um certo conceito.

É fácil ver a relação entre Virtual Reality e IDJo;OGRAJIlA DINÂMICA. AIDEOGRAFIA DINÂMICA é uma técnica que põe em ação uma seqüênciade realidades virtuais, correspondentes aos conteúdos que eu quero man-dar a alguém -leia-se comunicar a ele (no sentido de partilhar com ele).I':stamos aqui num terreno que não é redutível à informática ou à tele-mática, porque estas são tecnologias capazes de produzir e comunicarmodelos lógicos, enunciados de tipo digital. Tecnologias que podem tor-Ilar mais performáticos os processos de abdução, dedução e indução,ou seja, naqueles processos nos quais estão envolvidas combinações de11mnúmero de unidades finitas, portadoras de significados convencio-nais codificados.

A INFORMÂTICA INTRODUZ UM REINO DA COMUNICAÇÂO DISCRETA, JÁ

QUE A INTENSIDADE E A COMPLEXIDADE DAS CONFIGURAÇÕES SEMIÓTICAS

1'ltODUZIDAS PELAS MÁQUINAS INFORMÁTICAS PROVOCAM UM EFEITO DE

'1'11'0 cONTÍNuo NA MENTE DE QUEM A USA. Mas o fluxo da comunicaçãohumana, o fluxo perceptivo e mesmo o processo de elaboração cons-I'i(~nte têm características de continuidade. Para realizar processos deIIpo ideo-dinãmico - para levar a cabo o processo de realidade virtual -(o Ilecessário criar interfaces capazes de traduzir séries digitais em sínte-NlO contínua, ou seja, de conectar o digital com o orgânico, de traduzirfllll termos de configuração neuronal algoritmos correspondentes aosIIlj1jl1ificados.

A IDEOGRAFIA DINÂMICA, como transmissão de modelos mentais (emo-!:lonais, perceptivos ou conceituais) é uma ferramenta de tipo analógi-l'I " global e sinestésica, e não opera na base de escolhas binárias ouIU'jljundoum modelo de tipo recombinatório, apoiado em unidades dis-l'I'CltllS elementares. Ela funciona diretamente sobre a imaginação.

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1:12. FRANCO BERARDI

o QUE É A IMAGINAÇÃO?

A imaginação é uma faculdade de variação infinita capaz de combi-nar elementos analógicos. A imaginação é uma variação infinita de pos-sibilidades que a mente elabora partindo dos diagrama disponíveis, dosfragmentos memorizados da experiência passada. O depósito da me-mória é limitado, mas as possibilidades de composição dos conteúdosestocados são ilimitadas. Ao processo de combinação destes elementosanalógicos, deterioráveis e plásticos, chamamos imaginação.

Ao estudo prático e teórico do devir da imaginação podemos chamarPSICODEUA. Com efeito, PSICODEUA significa a possibilidade de modifi-cação da atividade da mente por meio das estimulações de tipo quími-co, elétrico, e assim por diante.

Como se produz uma estimulação programada, intencional, con-trolada, da atividade mental do nosso partner comunicativo? Partindoda possibilidade de transmissão dos modelos mentais, de estímulo dasondas sinápticas correspondentes aos estados mentais que queremoscomunicar, vemos que é possível compartilhar mundos imagináriosem co-evolução mental. "Entender uma proposição significa intuir eimaginar como seria o mundo se aquela proposição fosse verdadeira.Podemos pensar a significação seguindo a metáfora da composição defragmentos, em vez da concepção clássica da tradução ou expressão." 6

Sobre esta base podemos dizer que cada forma de linguagem é atransmissão de sinais com a finalidade de desencadear na mente doreceptor a construção de modelos mentais, que seguem as intenções doemissor.

TECNOMAYA

Até agora falamos de comunicação, agora falemos do mundo. Wil·liam Gibson vê o mundo como ciberespaço. "Uma alucinação comparotilhada cotidianamente por milhares de operadores em todo mundo,

meninos que aprendem os conceitos matemáti·" P. I.évy. I:idéographie dyna- cos, representações gráficas dos dados recebidos1111'1"6• PllrlM, i!)!)I, p. !)!í. de cada computador do sistema nervoso huma·I W, UlhNon. Neuromance. no." 7 O ciberespaço é uma nova hipótese de

DA LINGUAGEM ZAUM À REDE TECNOMAYA • 133mundo: ontologia e gnosiologia não são mais distinguíveis, porque oSer revela-se essencialmente uma projeção. "Estamos numa espécie decaverna, como disse Platão, e fazem-nos assistir sessões intermináveisde filmes funky" - Philip Dyck.

Podemos pensar que a realidade seja uma projeção infinita de fIlmesintermináveis sobre a tela do nosso cérebro. Mas se queremos nos des-locar do mundo alucinatório para a dimensão do mundo real, simples-mente temos de introduzir a noção de comunicação, ou seja, de partilhada alucinação. "Quando duas pessoas dividem o mesmo sonho, não setrata mais de uma ilusão: a prova fundamental que distingue a realidadeda imaginação é o consensus gentium, o fato que uma outra pessoa oumuitas outras vêem a mesma coisa que eu vejo. Isto é idios kosmos, osonho privado, oposto ao sonho que dividimos, o koinos kosmos. O que énovo, no nosso tempo, é isto: começamos a ver a qualidade plástica evibrátil do mundo comum, e isto nos dá medo, porque mostra a suainsubstancialidade, e nós estamos começando a ver que a qualidade daimaginação não é meramente fumaça. Como a ficção científica, umaterceira realidade está emergindo entre ficção e realidade." 8

Os hindus o chamam MA_YA.Mas a significação profunda deste con-ceito não é de fácil compreensão. "Maya é o resultado de um processo,de um congelamento, rígido na forma e no conceito, é ilusão, porque foimodelado pelas suas conexões viventes e limitada no espaço e no tem-po. A individualidade e corporeidade do ser humano não iluminado,que procura manter e preservar a sua identidade ilusória, é maya emseu sentido negativo. Até o corpo do iluminado é maya, mas não nosentido negativo, porque é criação consciente de uma mente livre dailusão e por isso ilimitada, não mais constrangida pelo ego."g

MA_YA não significa ilusão, mas algo mais: quero dizer que significaprojeção do mundo. A projeção do mundo pode ser congelada e tornar-se mera ilusão, auto-engano, se pensamos que o mundo imaginado sejaindependente da comunicação e do devir do mundo. Mas MAYA em sisignifica ação que projeta, criação do mundo. "Do ponto de vista daconsciência do Dharmakaya, todas as formas de aparência são MAYA,

Todavia, MA_YA,no sentido mais profundo, é rea-lidade no seu aspecto criativo, ou o aspecto cria-tivo da realidade. Assim MAYA torna-se a causada ilusão, mas não é ilusão em si, se sabemos vê-

8 P. Dick. Only Appamllly U~IILNova York, W74.nA. Govlndu, Op. rlt., p, ~~().

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I:I~ • FRANCO BERARDI

la como uma globalidade, na sua continuidade, na sua função criativa,ou como poder infinito de transformação e de relação universal."1O

O conceito de MAYA como projeção do mundo é extremamente útilpara nós que estamos assistindo ao processo de proliferação dos instru-mentos tecnológicos para a simulação dos mundos. A tecnologia socialde comunicação objetiva ligar imaginação e a projeção dos indivíduos edos grupos. A rede projetiva pode ser denominada TECNOMAYA, umarede neurotelemática que está empenhada em projetar incessantemen-te um filme compartilhado por todos os organismos conscientes e co-nectados dentro de uma sociedade. Esta tecnoimaginação, esta impli-cação recíproca no koinos kosmos é a socialização mesma. Através daproliferação de máquinas para a estimulação eletrônica e holográfica, ea neuroestimulação programada, podemos entrar no domínio de TEC-

NOMAYA, porque produzimos mundos de significados e, ao transmiti-los,pomos em movimento a imaginação das pes-

10 Ibidem, p. 219. soas que nos circundam.

TraduçãoSÍLVIO MIELE

A MÁQUINA-CINEMA .

............................. RAYMOND BELL UR

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(I) (~) eI) ~)o @

SE LANG é o cineasta por excelência ou pelo menos de um certocinema anterior a Rossellini e à Nouvelle Vague, que, pela voz de

Godard, prestou-lhe duas vezes a homenagem que conhecemos, é por-que Lang é o homem do dispositivo, aquele que lançou o olhar maisagudo sobre a máquina-cinema: olhar que vai até o ponto em que oolho se estende ao próprio corpo, do qual ele parece ser a ponta afina-da. Sustentada em Mabuse e Splone por todo-poder do olhar delegado epela reflexão sobre a hipnose, metaforizada, em Metrópolis, pela inven-ção do andróide e uma primeira antecipação da dinâmica da mídia, afiguração do dispositivo impregna de um modo excessivo, físico e míti-co, o último filme mudo do seu período alemão: Frau Im Mond..Esta mulher que parte em direção à Lua dá o seu nome ao foguete,

Fnede, que leva uma tripulação de três homens, um velho e uma crian-ça. O caráter antecipatório da viagem (em 1929) não basta para explicara loucura que a anima. Chega um momento em que é preciso inverter oque se acredita ver para encontrar algo que se pareça com a razão, fa-zendo dos atores do drama também espectadores. Não como esses he-róis quaisquer, que se tomaram, no cinema moderno, aqueles que vêem,no sentido deleuziano, a sua própria inércia motriz e a propagam para O

espectador. Mas como seres significativos, espécimens de espécies exem-plares, confrontados à dinâmica do movimento que os une, do ponto devista deste viajante imóvel que sempre foi, desde o início, o espectadorde cinema.

Islo pode ser uma ficção. O efeito de uma impressão. Um desejo136

A MÁQUINA-CINEMA • 137

indevido de extrapolação. Mas ao rever Frau Im Mondhá quase um ano,compreendi de repente o estranho efeito produzido por aquele longotrajeto da Terra até a Lua, preparado por uma mise-en-scene impecável,que culmina nos célebres planos da partida do foguete. Simplesmenteisso: o foguete, que é o próprio movimento, também é um espaço fecha-do, próximo da sala de cinema. Ele materializa bem de perto (como jáfazia o trem, em Splone) o deslocamento fixo, em que os corpos são aprópria presa, quando submetidos a uma projeção que sutiliza sua es-pessura e motricidade para favorecer as sombras jogadas na tela. Astransformações sofridas pelos viajantes do espaço, vestidos assim comonós, é uma maneira de expressar as transformações vividas pelos espec-tadores, imobilizados em suas cadeiras. Isto ilustra uma idéia que jáficou evidente: o cinema é contemporâneo das máquinas de transfor-mar o espaço e vive esta transformação de uma maneira bastante pe-culiar, como um olho que, ao mesmo tempo, se liga e se desliga dasmáquinas e, por isso, pode figurá-las, assim como substituí-las. Langenriquece esta colusão com um suplemento: é aí que reside todo o seuinteresse.

Tais idas-e-vindas, cena-sala, foguete-cinema, foram sabiamente ma-nejadas durante a primeira fase do filme, antes da decolagem. Por qua-tro vezes, em quatro níveis superpostos. Os planos extraordinários quepreludiam a projeção, quando o foguete é exibido aos possíveis finan-dadores do projeto, servem de base prévia: tela que desce, painel mó-vel que sobe, janela minúscula, onde se enquadra a cabeça de quem fazIlprojeção, feixe de coisas que jorram à direita, onde não são esperadas,como se para reduzir ao espaço-plano o que pertence ao volume - pro-blema que Lang dominou plenamente com seus espaços secos, cinzas,(tlonos, tons sobre tons, onde cada coisa vibra por ser remetida ao seuvlLlormínimo e absoluto. A assimilação máquina-espaço-tempo/máqui-IItl-de-visão é concluída nos poucos planos (interiores a esta seqüência)que mostram um foguete concebido por Helius, o herói, e dotado delima câmara que permitiu captar as primeiras imagens da face oculta daI:ua. Por outro lado, há uma longa seqüência da partida do foguete. Sualorça é midiática: acima de tudo, por envolver os olhares dos especta-dores. Espectadores da era das multidões, ao mesmo tempo sujeitos eobjetos do ponto de vista, massificados e semi-individualizados, traba-IlIudos de um jeito como só Lang sabe fazer, na tenaille en recul de um

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138. RAYMOND BELLOUR'

olhar que não parece ter começo nem fim, que parece sempre ter esta-do lá onde se encontra. De tal modo que, ao olharmos o foguete partir,esle inslrumento da viagem a que somos conduzidos, somos ainda re-projetados no interior da sala de cinema em que estamos. Enfim, pode-mos lembrar de um plano extraordinário, que quase só Lang sabe fazer:Helius sentado num carro, encobrindo a borda de uma minúscula jane-la de trás que lembra uma cabine de projeção. O enquadramento éfechado, o herói é "capturado" na sua cadeira, vítima daquele humordelicado, tão característico dos grandes filmes mudos, o qual atinge ex-cessos grotescos ou sublimes em Frau Im Mond, dependendo de como évisto. Estes pensamentos indecisos podem ser atribuídos a um fracassosentimental com Friede (noiva, não se sabe por que, de Hans Windeg-ger, um amigo comum, ainda que fique claro que ela ama Helius) e àaventura extrema que prepara, da qual ele é o cérebro científico e ometteur-en-scene. Ora, enquanto ele rumina à beira do indizível, efeitosde luz e sombra, projeções mínimas e desmesuradas percorrem a super-fície da tela. Elas provêm, logicamente, das janelas do carro, hors champ,mas de tal modo concentradas no campo que perdemos qualquer idéiade sua localização, para sermos atraídos pelo efeito de duas forças quese atraem: de um lado, a agitação interna deste ator sentado, paralisado,quase um espectador de sua própria imagem, interior-exterior, cujoseflúvios o invadem; por outro, a força ligada a um meio de deslocamen-to, de translação, que já é uma pura máquina de visão.

No momento em que entramos no foguete para fazer a viagem, esta-mos prontos para aquele efeito de reversão do qual eu falava, o efeitoque imagino. Atores que se tomam espectadores. Não somente por cau-sa do espetáculo para o qual se preparam, e que vai culminar na terceirafase da viagem. Mas porque compõem um microcosmo da sociedadehumana, reduzida a um estado coletivo e diferenciado, em função doqual eles abraçam a situação em que se encontram: rumo à Lua, aocinema. É muito simples afirmar que Lang só estava interessado no fo-guete (o que é dito por Lotte Eisner, sem mais detalhes), e jogar paraalgum porta-voz ou para Thea von Arbou (então cenógrafa e mulher deLang) a responsabilidade de algumas linhas assinadas por ele, publica-das na Deutsche Filmzeitung.

"Quatro homens, uma mulher, uma criança: um punhado de seres

A MÁQUINA-CINEMA • 139humanos com destinos entrelaçados. Num veículo jamais visto atéentão, numa nave espacial rumo a um solo que ninguém ainda pisou,percorrendo a solidão infinita da Lua - mas todos permanecem acor-rentados pelo destino, na Lua como na Terra, segundo as leis de seusangue, de suas paixões, de sua felicidade e de suas tragédias. Repre-sentar tudo isso: tal era o sonho que Ilutuava diante dos meus olhos."

Lang não estava interessado apenas no foguete, mas em algo aindamais inquietante. Ele se apropriou de sentimentos e de relações bastan-te rudimentares, ao mesmo tempo excessivas, delicadas e convencio-nais, para circunscrever um espaço misto que permite que elas sejamsimuladas não só pelos heróis efetivos, mas também por espectadorespotenciais, cujas forças expressam estados ligados não só ao filme mas àidéia, ao corpo do cinema. Assim, no foguete estão: Helius, bravo, frio eincandescente, uma espécie de Siegfried científico, mestre de si mesmo,assim como do universo; Windegger, um ser frouxo e violento, covardee indeciso, de sentimentos sem qualidade; Friede, a mulher antiga etambém nova, que sofre mudanças a partir da fusão do romantismo, domodernismo e da tecnologia; o professor Mansfeldt, o iniciador, muitovelho e frenético: com trinta anos de antecedência, profetizou a existên-cia de ouro na Lua e os meios de se chegar até lá; Turner, técnico ehomem de finanças inescrupuloso, enviado pela firma que garante ofinanciamento da operação em troca do monopólio da exploração doouro; por fim, Gustav, a criança valorosa que se escondeu no foguete,assim como nas histórias em quadrinhos que são a sua paixão. Estamosdiante de um resumo da humanidade, personalidades, idades e sexos(não falta nem um mascote, o camundongo Josefine, levado por Mans-Iddt). Os espectadores podem se reconhecer como tais no grupo huma-110 assim constituído, indentificando-se individualmente com cada umdos personagens por pulsões e repulsões, como ocorre diante de todosos corpos do cinema. Mas estes corpos também são qualificados, umpor um e em conjunto, pelos estados singulares característicos da expe-riência extrema que atravessam. A combinação destes estados com osIWlIS traços de humanidade acaba produzindo neles o mesmo númerode faces compósitas. E os espectadores - os verdadeiros - têm, assim, aImpressão de viver uma experiência una e múltipla, que toca as raízesobscuras de seu ser de espectador de cinema.

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I~,O. RAYMOND BELLOUR

'li'ês estados se sucedem durante o vôo do foguete. Primeiro, o cho-que da decolagem. Em diversos estágios, superpostos no tempo e va-riando segundo as posturas dos corpos, todos os personagens desfale-cem. Um sono singular. Uma hipnose favorecida pela conjugação daimobilidade (todos estão presos em suas camas) e do movimento-deslo-camento, como em certas máquinas de inibição sensorial. O segundoestado é a embriaguez ligada à ausência de peso. Basta um leve movi-mento para Gustav levantar-se e passar de um andar a outro do foguete,prestes a medir mal o efeito e bater no teto. Sonhos de vôo, sonho dedecolagem. O terceiro estado, que se afirma à medida que o foguete seaproxima da Lua, é de pura fascinação. Em momentos de estonteantebeleza, as imagens do solo lunar desfilam pelas janelas do foguete. ÉMansfeldt que fica possuído por este estado, abrindo perigosamente asjanelas até o pouso na Lua, para ver e ver sempre mais, e querer tocar oque vê, abraçando a imagem com as mãos, para acariciá-la, arranhá-la,apagá-la, até mesmo para mergulhar nela, num gesto alucinado que seránovamente encontrado por Ulisses, nos Carabiniers. Mas todos os via-jantes entram em êxtase, mais ou menos assim como acreditamos, àsvezes, ter entrado na imagem - o que pode ser visto nos planos quelembram, com muita precisão, a massa de espectadores diante da pistano momento do lançamento do foguete. O círculo que assim se fechatem o propósito de nos fazer sentir que estes três grandes estados, su-portes de estados intermediários e de posturas singulares, são claramen-te sucessivos, na medida em que participam da construção de uma his-tória. Mas a cronologia que os separa de nós faz com que possamosapreender até que ponto também eles se encontram misturados, nasprofundezas do corpo. Intimidades do corpo arcaico apreendido emseu pertencimento à máquina-cinema.

Quanto ao que ocorre na Lua, é um pouco indizível, pelo tanto queas almas e os corpos parecem vítimas de afectos erráticos que às vezesultrapassam o limite das marcas de ação e de conduta (Mansfeldt é per-seguido por Turner, numa busca de ouro alucinada, e desaparece numburaco, sem que sua morte tenha nenhum efeito; Turner procura sell.possar do foguete - com que finalidade? - e acaba morto por Win-ti gger, etc ... ). Fraqueza do cenário? Divórcio entre as intenções ini-'Inlll o ntme pronto (como em tantos filmes mudos de Lang, pelo queLollcl Elsncr dá a entender)? Pelo menos duas coisas são certas. Existe

A MÁQUINA-CINEMA • 14lna Lua uma atmosfera; podemos respirar como na Terra. Este retornodo real tem o propósito de aproximar o que o fantástico da viagempoderia ter afastado. Ele nos leva para o lugar de onde partimos, com osuplemento adquirido pelo trajeto, que permanece essencial. E existeouro na Lua. Esta resposta à miragem inicial faz da Lua uma terra pro-metida, uma espécie de Eldorado: uma imagem do cinema, tal comohavia sido para Mélies em seus devaneios de origem, tal como ela setoma também aqui, através das especulações financeiras que têm porobjeto a expedição - o filme. A Lua-cinema, quando suas fases aindanão eram refletidas pelo circuito abstrato dos monitores (Palk) e quandonão estava cheia, como uma imagem pobre de pub (Fellini).

No entanto, existe ainda um suplemento, expresso no próprio títulodo filme. Ele também toca, por outro lado, na máquina, no destino dodispositivo. Uma mulher na Lua: é exatamente isto que está em jogo,algo dificilmente concebível (em 1929), e sem o qual o filme seria incon-cebível. A cena do lançamento é explícita: Helius sugere a Friede queela poderia desistir da viagem; ela responde (indo ainda mais longe doque o peso do olhar dos espectadores): "Você está tentando me dizerque nós, mulheres, não somos suficientemente corajosas para esta aven-tura? Os olhos do mundo inteiro nos vêem - as orelhas do mundo estãoà escuta." A réplica é uma oportunidade para Lang conceber um daque-les estranhos planos modernistas que contrastam com seu minimalis-mo: uma mistura de rostos e engrenagens (objetivas? alto-falantes?), com-parável ao Plan de générique do último Mabuse. Um plano-máquina queevoca aquilo que prefigura. Como sabemos, o foguete tem o nome daheroína. Simbolismo bastante simples, apagado pelo fato de que elaentra lá dentro. A não ser por ele vincular o foguete, uma vez na Lua eatravés de Friede, a uma outra máquina que, de um modo bem maisdireto, cabe àmulher: a câmara, que a câmara de Fritz Lang se incumbede nos mostrar. Em planos magníficos, ele filma Friede filmando o solodesértico da Lua, revelando seus filmes dentro do foguete.

Mas por que é preciso que seja a mulher que filme? Evidentement ,para que o dispositivo-cinema dependa da mulher. Que tipo de dep n·dência, exatamente? Em Me trópo lis, duas Marias se confundem 11

opõem: Maria-puro-amor e Maria-máquina, que encarnam, ao m limolempo, o processo de fabricação das imagens e o poder negativo 111111'lifero, ligado a este processo, que o filme acaba restituindo ao PUf() Inm,

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142 • RAYMOND BELLOUR

E também em Splone, Sônia, a bela esplonne (representada por GerdaMaurus, a atriz de Frau 1m Mond), passava da esfera de Haghi-o-enun-ciador ti esfera de Trémaine-o-herói (representado por Willy Fritsch, quetam bém (~Helius em Frau 1m Mond) através do trem - a máquina Splone.Desse modo, o personagem feminino deixava a vertente do terror nega-Livo, vinculada ao olhar da mise-en-scene desde o início do filme, paraentrar na dimensão do amor, que também pertence à própria imagem(no cinema mudo, o rosto extático de Gerda Maurus, em dose, de Sôniaà Friede, é uma expressão muito forte disso). Neste sentido, Frau 1mMond leva tudo para o lado do puro amor. Foguete e câmara se conju-gam para, na Lua, conduzir o destino dos heróis, do casal, a um últimoestado: o estado amoroso, próximo dos estados que o precedem, emparticular da hipnose (como sabemos, Freud faz esta associação no fa-moso capítulo 8 de Psicologia de Massas e Análise do Eu). Nesta viagem,neste filme, não há nada comparável ao desejo de domínio desregradoque associa numa mesma imagem - fundada na força (real e virtual) dasmáquinas - Mabuse e Haghi, o mestre de Metrópolis e Rotwang. Estaforça é dividida entre homem e mulher, deslizando de um a outro emcada filme mencionado: Helius e Friede permanecem juntos na Luaapós a partida forçada do foguete (o final real); ou Helius permanece sópara esperar a volta de seus amigos (outro final previsto, segundo LotteEisner). De qualquer forma, este abandono tem sucesso no amor, assimcomo o dispositivo-cinema conduz o herói ao apaziguamento (Friede) -estranho estado de graça que poderia explicar o seu nome solar. Helius:o noivo da Lua, mais mulher - mulher-cinema - do que nunca. Assim,o estado do cinema, projetado através do espectro de mitologias ime-moriais - sua herança - ocorre aqui como o casamento imaginário daLua com o Sol.

TraduçãoANA LUIZA MARTINS COSTA

o TRABALHO AFETIVO .

.................................. MICHAEL HARDT

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A OBSERVAÇÃO atenta da produção dos afetos em nosso trabalho eem nossa vida social tem freqüentemente sido útil a projetos an-

ticapitalistas, por exemplo no contexto de discursos sobre o desejo ousobre o valor de uso. O trabalho afetivo representa, em si e diretamen-te, a constituição de comunidades e subjetividades coletivas. Portanto, ocircuito da produção de afeto e de valor se parece, sob vários aspectos,com um circuito autônomo de constituição de subjetividade, alternativoao processo de valorização capitalista. Modelos teóricos associando Marxe Freud expressaram o conceito de trabalho afetivo utilizando termoscomo produção de desejo; de modo ainda mais significativo, várias pesqui-sas feministas analisando as potencialidades existentes no que tem tra-dicionalmente sido designado como trabalho feminino, abordaram otrabalho afetivo com termos como trabalho familial e prestação de cuida-dos!. Cada uma dessas análises revela os processos pelos quais nossas

práticas de trabalho produzem subjetividades co-letivas, produzem sociabilidade e, finalmente,produzem a própria sociedade.

Tais concepções do trabalho afetivo hoje (eeste é o aspecto fundamental deste ensaio), de-veriam, entretanto, ser situadas no contexto daevolução do papel do trabalho afetivo na eco-nomia capitalista. Em outras palavras, emborao trabalho afetivo nunca tenha estado inteira-mente fora da produção capitalista, os proces-

1 N.T. O autor utiliza aqui ostermos kin work e caring labor.Kin designa parentes ou fami-liares; o que está em jogo nes-(e tipo de atividade são os eui-duelos tradicionais que as mu-lheres dedicam a pessoas da1"1111111111 (crianças, idosos, en-fl'I'1I10N, etc ... ), no desempe-IIho dI' 11m (mblllho que, mui-In~VfI1.I'H, uno é reconhecido1011101111.

144

o TRABALHO AFETIVO • 145sos de pós-modernização econômica dos últimos vinte e cinco anos nãosó deram ao trabalho afetivo um papel diretamente produtor de capital,mas também o puseram no topo da hierarquia das formas produtivas.O trabalho afetivo é uma dos aspectos do que chamarei de "trabalhoimaterial", que assumiu uma posição preponderante na economia capi-talista global em relação a outras formas de trabalho.

Dizer que o capital incorporou e valorizou o trabalho afetivo e que otrabalho afetivo é uma das mais importantes formas de produção devalor do ponto de vista do capital não signiHca que, assim contaminado,ele não possa mais ser útil a projetos anticapitalistas. Pelo contrário,considerando o papel do trabalho afetivo como um dos elos mais fortesna corrente da pós-modernização capitalista, seu potencial de subver-são e de constituição autônoma torna-se ainda maior. Nesse contextopodemos reconhecer o potencial biopolítico do trabalho, utilizando bio-poder em um sentido que adota ao mesmo tempo que inverte o uso queFoucault faz deste termo.

Eu quero então proceder em três etapas: em primeiro lugar, situar otrabalho imaterial na fase atual da pós-modernização capitalista; em se-gundo, situar o trabalho afetivo em relação às outras formas de trabalhoimaterial; e, por fim, explorar o potencial do trabalho afetivo no tocanteao biopoder.

PÓS-MODERNIZAÇÃO

Na sucessão dos paradigmas econômicos nos países capitalistas do-minantes,2 desde a Idade Média, é comum, hoje, considerar três mo-mentos distintos, cada um deles definido por um setor privilegiado daeconomia: um primeiro paradigma, no qual a agricultura e a extraçãode matérias-primas dominavam a economia; nosegundo, no qual a posição prepoderante per-tencia à indústria e à fabricação de bens durá-veis e o paradigma atual, no qual a prestação deserviços e o processamento da informação são aessência da produção econômica. A posição do-minante passou, portanto, da produção primá-ria, para a secundária e desta para a terciária.Chamou-se modernização econômica à passagem

2 Optamos por manter a de-nominação escolhida pelo au-tor para designar a posiçãoque os países ocupam naeconomia globalizada, tradu·zindo os termos utilizados,dominant capitalist countrl6.f l'subordinated countrl6.f, por"países capitalistas c10mlnllfltes" e "países dcpcnclolltoH".

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146. MICHAEL HARDT

do primeiro paradigma para o segundo, isto é, do domínio da agricultu-ra para o da indústria. Modernização significava industrialização. Pode-ríamos chamar a passagem do segundo para o terceiro paradigma, istoé, a passagem do domínio da indústria para o dos serviços e da informa-ção, de p6s-modernização, ou melhor, de informatização econômica.

Os processos de modernização e industrialização transformaram eredefiniram todos os elementos do plano social. Quando a agricultura,como a indústria, se modernizou, a fazenda transformou-se progressiva-mente em fábrica, com todos os seus elementos de disciplina, tecnolo-gia e relaçôes salariais, entre outros. De modo mais geral, a própriasociedade foi se industrializando, a ponto de transformar as relaçôeshumanas e a natureza humana. A sociedade tornou-se uma fábrica. Noinício do século XX, Robert Musil, refletindo sobre as transformaçõesda humanidade na passagem do mundo agrícola para a fábrica social,observou com acuidade que: "Houve um tempo em que os homenscresciam naturalmente nas condições do momento e isso era uma ma-neira muito saudável de se tornar um indivíduo. Mas, nos dias de hoje,com toda essa turbulência, quando tudo é separado do solo em quecresceu, até mesmo no campo da produção do espírito, deveríamosrealmente substituir, por assim dizer, os artesanatos tradicionais pelotipo de inteligência que vem associada às máquinas e às fábricas".3 Ahumanidade e seu espírito são produzidos nos próprios processos deprodução econômica. Os processos para tornar-se humano e a próprianatureza do humano foram fundamentalmente transformados na mu-dança qualitativa trazida pela modernização.

Hoje, no entanto, a modernização chegou ao fim, ou, para usarmosas palavras de Robert Kurz, a modernização fracassou. Em outras pala-vras, a produção industrial não está mais aumentando sua predominân-cia sobre outras formas econômicas e outros fenômenos sociais. Umdos sintomas dessa alteração manifesta-se em mudanças quantitativas

no emprego. Enquanto a migração do trabalhoda agricultura e da mineração (setor primário)para a indústria (setor secundário) indicava pro-cessos de modernização, os processos de pós-modernização ou informatização são identifica-dos na migração de empregos da indústria parao setor de serviços (setor terciário), mudança que

:J Robert Musil, The ManwitllOut Q_ualities,v. 2. NovaYork: Vintage, 1996, p. 367.(Publicado em português co-mo Homem sem qualidades.RiocI" .lmleiro: Nova Fronteira,1111\11,'Ihld. Lya Luft e CarlosAhbllllHC'lh),

o TRABALHO AFETIVO • 147vem ocorrendo nos países capitalistas dominantes, e em particular nosE.u.A., desde o início dos anos 70.4 O termo serviços aqui cobre umgrande leque de atividades, desde assistência médica, educação e servi-ços financeiros até transportes, entretenimento e publicidade. A maio-ria dos empregos mostra alta mobilidade e envolvem habilidades flexí-veis. Mais importante ainda: tais empregos caracterizam-se, em geral,pelo papel central desempenhado por conhecimento, informação, co-municação e afeto. Nesse sentido, podemos dizer que a economia pós-industrial é uma economia informacional,5

A afirmação de que o processo de modernização está acabado e deque a economia globalizada está hoje vivendo um processo de pós-mo-dernização em direção a uma economia informacional não significa quea produção industrial será abolida nem que ela deixará de desempe-nhar um papel relevante, mesmo nas regiões mais desenvolvidas doglobo. Assim como a revolução industrial transformou a agricultura etornou-a mais produtiva, a revolução informacional irá transformar aindústria redefinindo e rejuvenescendo os processos de produção - atra-vés da integração, por exemplo, de redes de informação a processosindustriais. O novo imperativo operacional deadministração é "tratar a produção como umserviço".6 Com efeito, à medida que as indús-trias se transformam, a distinção entre produ-ção e serviços vai tornando-se menos nítida. Damesma forma como, através do processo de mo-dernização, toda produção se tornou industria-lizada, é também através do processo de pós-modernização que toda produção tende a serprodução de serviços e tende a se tornar infor-IIIacionalizada.

O fato de que a informatização e o movimen-lo favorecendo os setores de serviços são maisvisíveis nos países capitalistas dominantes, nãonos deveria fazer retroceder a uma compreen-Nilo da situação econômica global contemporâ-lIea no tocante a estágios de desenvolvimento -('orno se hoje os países dominantes fossem eco-lIomias informacionais de serviços, seus depen-

4 Sobre as mudanças na ofer-ta de empregos nos países do-minantes, ver Manuel Cas-teUs & Yuko Aoyama. "Pathstowards the informational so-ciety: employment structUI'Cin G-7 countries, 1920-90".International Labour Revi,w133(1):5-33, 1994.

.1 N.T. O termo informalilmllleconomy refere-se tanto à Informatização da economlu,quanto ao papel centl'lll d"sempenhado pela Infol'muçllonesta mesma economlu,

fi François Bar. "InformllUflllinfrastructure and Ih IrlLllI'formation of mUllufll lur~rt ,In: The New Injllrmoltoll 11structure: Slral"I',I/Or I I

Poli". ed, WllIllLlfl 11 ~"Novll York: ·lwc,"~I•• 1 Itu,'y 1'~mrll'rIlNN, IIJUII, I n

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IIj·H. MICHAEL HARDT

dentes diretos os países de economia industrial, e os outros, os países deeconomia agrícola.

Para os países dependentes o colapso da modernização significa, an-tes de mais nada, que a industrialização não pode mais ser vista como achave para o desenvolvimento econômico e a competitividade. Algu-mas das regiôes mais subordinadas do mundo, tais como as regiôes daÁfrica Subsaariana, foram efetivamente excluídas não só dos fluxos decapital e do acesso às novas tecnologias mas até mesmo da ilusão dasestratégias de desenvolvimento, e se encontram portanto à beira da fome(mas devemos reconhecer que a pós-modernização, embora responsá-vel por essa exclusão, continua dominando essas regiôes).

Na maioria dos casos, a competição pelas posiçôes intermediárias nahierarquia global não se realiza através da industrialização da produçãomas de sua informatização. Países territorialmente extensos, com eco-nomias variadas, tais como a Índia, o Brasil ou a Rússia, podem darapoio, simultaneamente, a toda a variedade de processos produtivos: àprodução de serviços baseada na informação, à moderna produção in-dustrial de bens, bem como às tradicionais produções artesanal, agrí-cola e mineira. Não precisa ter uma progressão histórica entre essasformas, que, aliás, freqüentemente coexistem e se misturam; não é ne-cessário passar pela modernização antes da informatização - a produ-ção artesanal tradicional pode ser imediatamente computadorizada; te-lefones celulares podem ser imediatamente operacionados em remotasvilas de pescadores. Todas as formas de produção existem dentro dasredes presentes no mercado mundial e sob a dominação da produçãoinformacional de serviços.

o TRABALHO IMATERIAL

A passagem para uma economia informacional envolve necessaria-mente uma transformação tanto na qualidade quanto na natureza dosprocessos de trabalho. Esta é a implicação sociológica e antropológicamais imediata da mudança de paradigmas econômicos. Informação,comunicação, conhecimento e afeto passam a desempenhar um papelcstrutural nos processos produtivos.

Muitos vêem como primeiro aspecto dessa transformação a mudan-çu no processo de produção industrial - tomando-se a indústria auto-

o TRABALHO AFETIVO • 149mobilística como elemento central de referência - do modelo fordistapara o modelo toyotista.7 A mudança estrutural fundamental entre essesmodelos envolve o sistema de comunicação entre a produção e o con-sumo de mercadorias, isto é, envolve a transmissão da informação entrefábrica e mercado. O modelo fordista construía uma relação relativa-mente "muda" entre a produção e o consumo. Na era fordista a produ-ção em massa de bens de consumo padronizados podia contar comuma demanda adequada e, assim, tinha pouca necessidade de "ouvir"atentamente o mercado. Graças a um circuito de feedback consumo-pro-dução, mudanças no mercado podiam acelerar mudanças na produção,mas essa comunicação era restrita (devido a canais de planejamentofixos e estanques) e lenta (devido à rigidez das tecnologias e dos proce-dimentos da produção de massa).

O toyotismo é baseado numa inversão da estrutura fordista de comu-nicação entre produção e consumo. Idealmente, de acordo com essemodelo, o planejamento da produção estaria em comunicação constan-te e imediata com o mercado. As fábricas manteriam um estoque zero eas mercadorias seriam produzidas apenas no último instante, de acordocom a demanda existente no mercado. Portanto, este modelo não envol-ve apenas um feedback mais rápido mas uma inversão na relação, umavez que, ao menos em teoria, as decisões da produção ocorrem poste-dormente às decisões do mercado, e em reação a elas. Este contextoindustrial nos oferece uma primeira percepção de forma como a comu-nicação e a informação passaram a desempenharum papel novo e fundamental no processo deprodução. Poderíamos dizer que a ação instru-mental e a ação comunicativa se entrelaçaramprofundamente nos processos industriais infor-matizados. (Seria interessante e útil observar aquicomo estes processos destroem a teoria da divi-sào entre ação instrumental e ação comunicati-va proposta por Habermas, e, da mesma forma,desintegram as distinções que Hannah Arendt(~stabeleceentre trabalho, ação e obra.8) Contu-do, precisa ressalvar, desde logo, que a noçãode comunicação como mera transmissão de da-dos de mercado é uma noção empobrecida.

7 Sobre a comparação entre osmodelos fordista e toyotista,ver Benjamin Carial. Penser àl'envers: travail et organisatiolldans l'entreprire japonaire. Pa·ris: Christian Bourgeois, W!J4.(Publicado em português CO·

mo Pensar pelo avesso. RICI doJaneiro: Revan/UFI\J, l!)fI4,)R Penso principalmont !ImJiirgen Habermas. '1711 '17"0'"01 Communicativ6 ACIIOrl, Un.ton: Beacon Pron, 11)"41•Hannah Arondl. T1I, IIrI .,.Condition. Chlcl\~(1I tJttlvsity af ChlclllJC) 1r'''I 1 nM,{publicado (Im portu,", I

Page 75: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

Os setores de serviço na economia apresentam um modelo mais ricode comunicação produtiva. A maioria dos serviços está, de fato, basea-da no intercâmbio contínuo de informações e conhecimentos. Uma vezque a produção de serviços não resulta em um bem material ou durável,poderíamos definir o trabalho envolvido nessa produção como trabalhoimaterial - isto é, trabalho que produz um bem imaterial, como ser-viços, conhecimento, ou comunicaçãoY Um dos aspectos do trabalhoimaterial pode ser identificado por meio de uma analogia com o fun-cionamento de um computador. O uso cada vez mais amplo de compu-tadores tem levado progressivamente à redefinição de práticas e rela-ções de trabalho Uuntamente, na verdade, com a redefinição de todas aspráticas e relações sociais). Nos países dominantes, a familiaridade e aintimidade com a tecnologia dos computadores vêm se tornando, deforma cada vez mais generalizada, uma qualificação básica para o traba-lho. Mesmo quando não se trata de contato direto com computadores, é

extremamente comum exigir-se a capacidade delidar com símbolos e informação seguindo omodelo operacional de um computador. Um as-pecto original do computador é que ele pode

visão habermasiana entre dmo ificar continuamente sua própria operaçãoação comunicativa e ação ins-trumentai no contexto da através de seu uso. Mesmo as formas mais rudi-

mentares de inteligência artificial permitem aocomputador expandir e aperfeiçoar suas opera-ções baseado na interação com seu usuário e seuambiente. O mesmo tipo de interatividade con-tínua caracteriza uma ampla gama de atividadesprodutivas contemporâneas em todos os setoresda economia, quer o computador esteja direta-mente envolvido ou não. Há algum tempo, osoperários aprendiam a agir como máquinas tan-to dentro quanto fora da fábrica. Hoje, à medi-da que o conhecimento social se torna cada vezmais uma força de produção direta, pensamoscada vez mais como computadores e o modelointerativo das tecnologias de comunicação tor-na-se cada vez mais essencial para nosso tra-balho.1O As máquinas interativas e cibernéticas

150. MICHAEL HARDT

mo Condição humana. SãoPaulo: Edusp, 1981). Parauma crítica excelente da di-

pós-modernização econômi-ca, ver Christian Marazzi. /Iposto dei cab.ini: la svolta /in-guistica dell'economia e i suoi effoti nella politica. Bellinzona,Suíça: Casagrande, J!)lJ5, p.29-34.

9 Para urna definição e anâli-se do trabalho imaterial, verMaurizio Lazzarato. "Irnrna-teriaILabor". In: Radical T1wughtin Italy, ed. Paolo Vimo &Michel Hardt. Minneapolis:University ofMinnesota Press,1996, p. 133-147.

10 Peter Drucker entende apassagem para a produçãoimaterial como a destruiçãocompleta das categorias tradi-cionais da economia politica."The basic economic resource

tornaram-se uma nova prótese integrada aos nossos corpos e mentese, também, uma lente atravésda qual redefinimos nossos pró-prios corpos e mentes.ll

Robert Reich chama esse tipode trabalho imaterial de "serviçossimbólico-analíticos" - tarefasque envolvem "atividades deidentificação de problema, desolução de problema e de inter-mediação estratégica."!:.! Hoje,esse tipo de trabalho é o mais va-lorizado e por isso Reich o iden-tifica como a chave para a com-petição na nova economia global.Ele reconhece, entretanto, que oaumento de postos para esse tipode emprego, que exige tanto umconhecimento especializado co-mo a capacidade de processa-mento criativo de símbolos, im-plica um crescimento correspon-dente de empregos de baixa qua-lificação e pouco valorizados, queexigem uma manipulação rotinei-ra de símbolos, como, por exem-plo, a digitação de textos e o pro-cessamento de dados. É nesseponto que começa a emergir umadivisão fundamental do trabalhono universo dos processos ima-leriais.

O modelo do computador, noentanto, pode explicar apenas umaspecto do trabalho imaterial ecomunicacional envolvido naprodução de serviços. O outro

o TRABALHO AFETIVO • 151

- «the means of production», to use the economist'stcrm - is no longer capital, nor natural resources(the ecollomist's «Iand»), nor «Iabor». It is and wi/l/ir krlllwledlie." (O recurso econômico básico - osmcios de prouução, para usar a expressão do eco-llomislu .. nuo (~mais o capital, nem os recursos na-lurals (u "h'ITU"dos economistas), nem o trabalho.R e .lerá o amhet:iTlln71to).Peler Drucker. Post-capitalistSodety. NOVIIVork: Ihlrpcr, 1!)!)3,!l. (Publicado emporlugu~s como Sociedade pós-capitalista. São Paulo:Pioneiru, Olleçilo Novos Umbrais, 1!)lJ3. Trad. Ni-valdo MonUngclliJr.). () quc ()ruckcr não compre-ende é que u conhecimento ntlo é dadu mas pro-duzido e que sua produção envolve novos tipos demeios de produção e trnbalho.

11 Marx usa a expressão general intellect para refe-rir-se a esse paradigma da alividndc soci!ll produ-tora. "The development of fixcd cnpilnl indicntcsto what degree social knowledge hns becomedirect force of production, and to what degrce,hence, the conditions of the process of socinl lifeitself have come under the control of the generalintellect and been transformed in accordance withit. Towhat degree the powers of social productionhave been produced, not only in the form ofknowledge, but also as irnrnediate organs of socialpractice, of the real life process." ("O desenvol-vimento de capital fixo indica até que ponto oconhecimento social se tornou força direta da pro-dução, e, conseqüentemente, até que ponto as con-diçôes do próprio processo da vida social ficaramsob controle da inteligência coletiva, sendo trans-formadas de acordo com ela. Até que ponto ospoderes da produção social foram produzidos, nãosomente sob a forma de conhecimento, mas tam-bém como órgãos imediatos da prática social, doprocesso da vida real.") Karl Marx. Grundrisse.Nova York: Vintage, 1973, p. 706; trad. Martin Ni-colaus. (Publicado em português como Contribui-ções à crítica da economia política. São Paulo: Flamll,1946; trad. Florestan Fernandes).

12 Robert Reich. The Work o/Nations: Preparing Ou r-sewes for 21st Century CaPitalismo Nova York: Knopf,I9lJI, p. I7Z (Publicado em português como O Im-balho das nações: preparando-nos para o capttaUsrrlll doséculo XXI. São Paulo: Educator, WlJ3.)

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1!i2 • MICHAEL HARDT

aspecto do trabalho imaterial é o trabalho afetivo de interações e contatoshumanos. Este é o lado do trabalho imaterial que tem menos possibili-dade de ser discutido por economistas como Reich, mas ele me pareceser o aspecto mais importante, o elemento que liga todos os demais. Osserviços de saúde, por exemplo, baseiam-se fundamentalmente em tra-balho afetivo e prestação de cuidados, e a indústria do entretenimento eas várias indústrias culturais igualmente enfatizam a criação e manipu-lação dos afetos. Em maior ou menor grau, esse trabalho afetivo desem-penha algum tipo de papel em cada um dos segmentos da indústria deserviços, das lojas de fast food às instituições financeiras, inserido nosmomentos de interação e de comunicação humana. Este trabalho é ima-terial, mesmo sendo corporal e afetivo, no sentido de que seus produtossão intangíveis: um sentimento de tranqüilidade, de bem-estar, de satis-fação, de entusiasmo, de paixão - até mesmo uma sensação de união oude integração a uma comunidade. Categorias de serviços que exigem apresença ou a proximidade física de uma outra pessoa são freqüen-temente utilizadas para identificar esse tipo de trabalho, embora o queé essencial nele, seu aspecto de presença física, é, de fato, a criação emanipulação dos afetos. Esta produção, troca e comunicação afetivaé geralmente associada ao contato humano, à presença efetiva de umoutro, mas esse contato pode ser tanto real quanto virtual. Na produçãodos afetos na indústria do entretenimento, por exemplo, o contato hu-mano, a presença de outros, é sobretudo virtual mas, nem por isso, me-nos real.

Este segundo aspecto do trabalho imaterial, seu aspecto afetivo, seestende além do modelo de informação e comunicação definido pelocomputador. Poderemos entender melhor o trabalho afetivo se come-çarmos por aquilo que as análises feministas do "trabalho da mulher"têm chamado de "trabalho na modalidade corporal" .13 As prestações decuidados estão, com certeza, completamente imersas no corporal e nosomático, mas os afetos que elas produzem são, não obstante, imate-riais. O que o trabalho afetivo produz são redes sociais, formas de co-

munidade, biopoder.Poderíamos observar aqui, mais uma vez, que

a ação instrumental da produção econõmica sefundiu à ação comunicativa das relações huma-nas. Neste caso, entretanto, não foi a comunica-

• I,

II Vllr Dorothy Smith. The",~),rydlly World as Problematic:" Ft,,,,llIlsl Sociology. Boston:NllI'lhlillMlnl'll Unlvcrsity Press,11111'. )I. 7111111.

o TRABALHO AFETIVO • 153ção que se tornou empobrecida mas sim a produção que foi enriquecidaaté o nível de complexidade da interação humana. Embora, num pri-meiro momento, por exemplo na informatização da indústria, seja pos-sível dizer que a ação comunicativa, as relações humanas e a culturaforam instrumentalizadas, reificadas e "rebaixadas" ao nível das intera-ções econômicas, deveríamos logo acrescentar que, em um processorecíproco, a produção tornou-se, em um segundo momento, comunica-tiva, afetiva, desinstrumentalizada, e elevada ao nível das relações hu-manas - mas, evidentemente, a um nível de relações humanas inteira-mente dominadas pelo capital e integradas a ele. (E aqui a distinçãoentre cultura e economia começa a se esfacelar.) Na produção e repro-dução de afetos, naquelas redes de comunicação e cultura, subjetivida-des coletivas são produzidas e sociabilidade é produzida - mesmo queessas subjetivi?ades e essa sociabilidade sejam diretamente exploráveispelo capital. E aqui que percebemos o enorme potencial do trabalhoafetivo.

Não pretendo discutir aqui se o que é novo é o trabalho afetivo em siou o fato de que o trabalho afetivo produz valor. As análises feministas,em particular, já reconheceram, há muito tempo, o valor social das pres-tações de cuidados, do trabalho familial e das atividades maternas. Oque é novo, por outro lado, é o quanto esse trabalho imaterial afetivo éagora diretamente produtor de capital e a forma como ele se generali-zou em amplos setores da economia. De fato, como componente dotrabalho imaterial, o trabalho afetivo conquistou uma posição domi-nante do mais alto valor dentro da economia informacional contempo-rânea. No que diz respeito à produção do espírito, como diria Musil,não deveríamos olhar mais para o solo e o desenvolvimento orgânico,nem para a fábrica e o desenvolvimento mecânico, mas para as formaseconômicas dominantes de hoje, ou seja, para a produção definida poruma combinação de afetos e cibernética.

Este trabalho imaterial não está restrito a alguns grupos de trabalha-dores como, por exemplo, programadores de computadores ou enfer-meiras, que formariam potencialmente uma nova aristocracia de tra-balhadores. Ao contrário, o trabalho imaterial em suas várias formas(informacional, afetivo, comunicativo e cultural) tende a se espalhar portodas as forças produtivas e por todas as tarefas, como um componenL ,maior ou menor, de todos os processos de trabalho. Isto posto, com

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154. MICHAEI. HARDT

certeza há válias divisões dentro do universo do trabalho imatelial -divisões internacionais, divisões de gênero, divisões raciais, e assim pordiante. Como diz Robert Reich, o governo dos Estados Unidos vai fazertodo o possível para manter nos Estados Unidos o trabalho i~atelialmais valioso e exportar os de menor valor para outras regiões. E muitoimportante esclarecer estas divisões do trabalho imaterial que, devo fri-sar, não são as divisões de trabalho às quais estamos acostumados, par-ticularmente no que diz respeito ao trabalho afetivo.

Resumindo, podemos distinguir três tipos de trabalho imaterial quelevam o setor de serviços ao topo da economia informacional. O pri-meiro está envolvido numa produção industrial que foi informacionali-zada e incorporou tecnologias de comunicação de uma maneira quetransforma o próplio processo de produção industrial. A produ~ão in-dustlial é considerada como um serviço e o trabalho material da produ-ção de bens duráveis se aproxima do trabalho imatelial e se confundecom ele. O segundo é o trabalho imatelial de tarefas analíticas e simbó-licas, que, por sua vez, se divide em manipulação cliativa e inteligente,por um lado e, por outro, em tarefas simbólicas de rotina. Finalmente,um terceiro tipo de trabalho imaterial envolve a produção e manipula-ção de afetos e requer o contato e a proximidade humana (virtuais ouefetivos). Esses são os três tipos de trabalho que conduzem a pós-mo-dernização ou informatização da economia global.

BIOPODER

Denomino de biopoder o potencial do trabalho afetivo. Biopoder é opoder de criação da vida; é a produção das subjetividades coletivas, dasociabilidade e da própria sociedade. A observação atenta dos afetos edas redes de produção de afetos revela esses processos de constituiçãosocial. O que se cria nas redes de trabalho afetivo é uma forma-de-vida.

Quando Foucault discute o biopoder ele oolha de cima. É opatria potestas, o direito de vidàe morte do pai sobre filhos e servos. Mais im-portante, biopoder é o poder que permite às for-ças emergentes da governabilidade criar, admi-nistrar e controlar populações - o poder de ad-ministrar a vida.14 Outros estudos mais recentes

lO Ver especialmente Michel(lollcllult. The History 01Sexu-II/lty, vol 1. Nova York: Vin-IUKo, li)7!!, p. 135-45; trad.I~()bol'l Hurley. (Publicado~11l (l()I'IIl!lill~S - Hist6ria da se-~'IIII1t1(lIlnI: (I vuntade de saber.I~I() di' .)ulloll'O: Gl'llltl, 1997;

o TRABALHO AFETIVO • 155ampliaram essa perspectiva de Foucault, considerando o biopoder comoa lei do soberano sobre a "vida nua", ou seja, a vida separada de suasválias formas sociais.15 Em cada caso, o que está em jogo no poder é aprópria vida. Essa passagem política para a fase contemporânea do bio-poder corresponde à passagem econômica da pós-modernização capi-talista na qual o trabalho imaterial foi levado a uma posição dominante.Aqui também, na criação de valor e na produção de capital, o que éessencial é a produção da vida, ou seja, a criação, a administração e ocontrole das populações. Essa visão foucaultiana do biopoder, no en-tanto, focaliza a questão apenas de cima, como prerrogativa de um po-der soberano. Por outro lado, quando olhamos para a situação do pontode vista do trabalho envolvido na produção biopolítica, podemos co-meçar a observar o biopoder a partir de baixo.

O plimeiro fato que vemos quando adotamos essa perspectiva é queo trabalho da produção biopolítica é fortemente configurado como tra-balho de gênero. De fato, diferentes linhas de teorias feministas já nosforneceram análises amplas da produção de biopoder sob este ponto devista. Uma corrente do eco-feminismo, por exemplo, emprega o termobiopolítica (de uma forma que poderia parecer, à plimeira vista, bastantediferente da utilizada por Foucault) para se referir às políticas das váriasformas de biotecnologia que são impostas por corporações transna-cionais a populações e ao meio ambiente, especialmente em regiõessubordinadas do mundo.16 A Revolução Verdec outros programas tecnológicos, que foram co-locados como meios do desenvolvimento eco- trad.DeAlbuquerque,M.T.C.&

GuiIlon de Albuquerque, J.A.)nômico capitalista, trouxeram com eles, na ver-dade, tanto a devastação para o meio ambientecomo novos mecanismos de subordinação damulher. Esses dois efeitos, no entanto, na verda-de não passam de um só. Fundamentalmente opapel tradicional da mulher, lembram-nos essesautores, é de realizar as tarefas de reprodução,que foram severamente afetadas pelas interven-~:õesecológicas e biológicas. Deste ponto de vis-lu, então, mulher e natureza são dominadas con-.iuntamente, mas também trabalham juntas numarelação cooperativa, contra o ataque das tecno-

15 Ver de Giorgio Agamben,Homo sacer. Turim: Einaudi,1995; e "Form-of-life". In: Rad-ical Thought in llaly, ed PaoloVimo & Michael Hardt Min-neapolis: University of Minne-sota Press, 1996, p. 151-6.

16 Ver Vandama Shiva & In-gunn Moser, ed. Biopolitics: aFeminist and Ecologial Reader.Londres: Zed Books, 1!J95; cVandama Shiva Staying A/ivn:Womem, Ecology and SUrVIV(11in lndia. Londres: Zed DookH,1988.

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l!i(i • MICHAEL HARDT

logias biopolíticas, para produzir e reproduzir vida. [SobrevivênciaI7]: a

política tornou-se uma questão que envolve a própria vida e a luta assu-miu a forma de um biopoder vindo de baixo contra um biopoder vindode cima.

Num contexto bastante diferente, vários autores feministas nos Esta-dos Unidos vêm analisando o papel essencial do trabalho feminino naprodução e reprodução da vida. Em particular, a prestação de cuidadosenvolvida nas atividades maternas (distinguindo-se estas atividades dosaspectos biologicamente específicos do trabalho de parir) tem provadoser um terreno extremamente rico para a análise da produção biopolíti-ca.18A produção biopolítica aqui consiste basicamente no trabalho en-volvido na criação da vida - não nas atividades de procriação, mas nacriação da vida precisamente na produção e reprodução de afetos. Aquipodemos perceber claramente que se está desfazendo a distinção entreprodução e reprodução, assim como a distinção entre economia e cultu-ra. O trabalho atua diretamente nos afetos; ele produz subjetividade;ele produz sociedade; ele produz vida. O trabalho afetivo, nesse sen-tido, é ontológico - ele revela o trabalho vivo que constitui uma formade vida e, assim, demonstra novamente o potencial da produção bio-política. 19

Devemos logo acrescentar, no entanto, que não podemos simples-mente dar nosso total suporte a uma dessas pers-pectivas, sem reconhecer os enormes perigos queelas apresentam. No primeiro caso, a identifica-ção entre mulher e natureza cria o risco de senaturalizar e absolutizar a diferença sexual, alémde propor uma definição espontânea da próprianatureza. No segundo caso, a celebração do tra-balho materno poderia facilmente servir parareforçar tanto as divisões de gênero do trabalhoquanto as estruturas familiares de sujeição esubjetivação edipianas. Mesmo nessas análisesfeministas do trabalho materno fica claro o quan-to pode ser difícil, às vezes, deslocar-se o poten-cial do trabalho afetivo, seja das construções pa-triarcais da reprodução, seja do "buraco negro"subjetivo da família. Esses perigos, no entanto,

17 N.T. Staying Alive. O autorbrinca, aqui, com o título dolivro de Vandama Shiva, cita-do acima, indicando que, pa-ra sobrevivermos no mundoatual, temos de estar atentosao fato de a política ter-se tor-nado um questão de vida.

'H Ver Sara Ruddick. MaternalTltinking: towards a Politics ofPeace. Nova York: BallantineBooks, 1989.

li' Sobre as capacidades onto-logicamente constitutivas do(l'IIbulho, especialmente noconlexlo das teorias feminis-(UN, VllI' KlIlhi Weeks. Consti-111/1"1<I'~mirli.ft Subjects. Itha-1'11: COI'noll lJnlvcrsily Press,1111111, p. I:lO fi I.

o TRABALHO AFETIVO • 157por mais relevantes que sejam, não invalidam a importância de se reco-nhecer o potencial do trabalho como biopoder, um biopoder que vemde baixo.

Esse contexto biopolítico é precisamente a base para uma investiga-ção da relação produtiva entre afeto e val.or. O que encontramos aquinão é tanto a resistência ao que poderíamos chamar de "trabalho afeti-vamente necessário",21,22mas sim o potencial do trabalho afetivo neces-sário. Por um lado o trabalho afetivo, a produ-ção e a reprodução da vida, plantou-se firme-mente como um alicerce necessário para a acu-mulação capitalista e a ordem patriarcal. Poroutro lado, no entanto, a produção de afetos, desubjetividades, e de formas de vida, apresentam ."N.T o autor faz aqui umaenorme potencial para circuitos autônomos de IIlusno 11idéhl marxista de

"trabalho socialmcntc neces-valorização e, talvez, de liberação.

" Ver Gayatri ChakravortySpivak. "Scattered Specula-tinnson the Queslion ofValue".In: Olher Wurlds. Nova York:HOlltl!:dgc, 1!J!lil; p. 1!í4-75.

sário".

TraduçãoELIZABETH ARAúJO LIMA e PAULO AUGUSTO CERTAIN

RevisãoJ. G. GHIRARDI e NADINE FRAJMAN

Page 79: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE

..................... MAuRO SÁ REGO COSTA

Page 80: Cadernos de Subjetividade - O Reencantamento Do Concreto

(_I) 0) 0) @

1. o que importa não é o futuro da revolução mas o devir revolucioná-rio. 1 Vamos agora ouvir falar de novo em revolução. Em vez do fim daHistória, como desejam alguns, uma história em várias camadas, tem-pos não sucessivos, mas simultâneos, vários ritmos incongruentes e su-perpostos como na música dos pigmeus, tempos não pulsados co~o :mBoulez e Cage, devires com movimento retrógrado. A revoluçao e ocorpo-sem-órgãos da política. É a partir dela que se distribui o novoespaço da política no tempo que a sucede. A revolução não tem passa-do, não é determinada; é num surto que se dá o acesso ao corpo-sem-órgãos da socialidade. Os períodos revolucionários sã~ ~s~ustadores efascinantes. Benjamin: são como surtos para fora da Hlstona, para forado tempo. Kayrós, quando se cruzam o tempo dos Deus~s e. o ,te.mpodos homens. Durante a Revolução, não há tempo, não ha Hlstona. AHistória nasce à medida que se cristaliza e se perde o vigor dos novospotenciais que se comunicam na sua eclosão.

LEMBRANÇAS DA REVOLUÇÃO

Em 1972, os maoístas franceses explodiam bombas em Nice e naEspanha para estragar o verão dos burgueses. Terrorismo e disp~rate.I,a révolution sera jaite. "A revolução será feita", berravam voluntanstas.

Em 1973, vários grupos transformaram-se embandas. Tocavam nas esquinas, davam con-

I Iltlltlll'W, (;i1lcs & Parnet,Clnll'll. /JlllloJ(lu.1. certos em asilos de velhos e de órfãos. La ré-

160

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 161volution c'est la fite. "A revolução é a festa", gritavam cheios de com-paixão.

PARIS, MAIO DE 68

QUANTO MAIS EU FAÇO AMOR, MAIS EU FAÇO A REVOLUÇÃO

Uma revolução que não se preocupa em tomar o poder. Dez mil pa-lávras de ordem. Dez mil questões diferentes. Em junho, ainda nas ruas,guerra de paralelepípedos contra o gás lacrimogêneo da polícia. Umagreve geral pára a França. Param as fábricas, os transportes, as comuni-cações. Ocupações de fábricas e a criação de conselhos operários comoos sovietes. Ocupação dos prédios das faculdades para fazer festas emudar currículos e programas. A imaginação no poder. Cada grupo fazsua própria revolução. Não há questões unificadas, nem líderes. Noscampos, os proprietários fogem de suas terras, armados. Vão acamparnos bosques, nas montanhas, organizados para enfrentar o exército re-volucionário que não chega. É a guerra. Mas ninguém sabe quem man-da nem o que quer essa revolução.

FRANKFURT, 68

Theodor Adorno chama a polícia para desalojar os estudantes queocupam o Instituto de Pesquisas Sociais. Para Adorno é a volta da bar-bárie, que ele identifica, míope, com a dos nacional-socialistas. Os es-tudantes não perdoam.

Como morreu Adorno, o grande ideólogo do marxismo de Frank-furt? Adorno não cansa de olhar os peitinhos e as coxas de suas alu-nas, durante as aulas. Depois da rebelião de maio, as meninas con-tra-atacam. Invadem seu escritório de diretor do Instituto. Tiram asblusas, os soutiens e passam os peitinhos na suacara. Depois tiram o resto da roupa e encenamlima trepada sobre sua mesa de reitor. Horasdepois, Adorno morre de enfarte.2

Não interessa o futuro da revolução. O queinteressa é o devir revolucionário.

2 História ouvida de estudan-tes universitários alemães noinício dos anos 70. Não seise é a verdadeira história dumorte de Adorno. Nesse mo-mento, não me importll Mil liverdadeira: é um mito bt1l11construído.

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162 • MAU !tO SA REGO COSTA

2. O primeiro grande teórico contra-revolucionário foi RichardHooker, crilicando a Revolução Inglesa, a primeira, aliás, a mereceresse nome. Em seu Ecclesiastical Polity, Hooker faz um perfil dos maisradicais entre os revolucionários, os puritanos.

Pa.ra pôr em marcha um movimento, é preciso ter uma "causa". Hápouco tempo se usa este termo em política, ele foi lançado pelos purita-nos. Para promover sua "causa", segundo Hooker, deve-se criticar seve-ramente os males sociais e principalmente o comportamento das elites, efazê-lo repetidamente. Os críticos devem ser considerados, pelos que osouvem, homens de grande integridade, "pois somente homens muito bonspodem ofender-se tão profundamente com o mal". Depois, deve-se diri-gir a crítica de forma direta sobre o governo instituído. Todos os defeitose a corrupção do mundo devem ser atribuídas ao governo. Fica claroentão o que deve ser atacado a fim de livrar o mundo de todo o mal. Eapós esta preparação, é o momento de indicar uma nova forma de gover-no como "o remédio para todos os males", assim como identificar oslíderes do movimento. Os seguidores do movimento preferirão a compa-nhia de outras pessoas envolvidas com a mesma causa, aceitarão facil-mente os conselhos e as orientações dos líderes, "negligenciarão seus pró-prios interesses para devotar todo o seu tempo ao serviço da causa".

"Se algum indivíduo de opinião contrária abre a boca para persuadi-los, eles se comportam como surdos, não ponderam as razões que lhessão oferecidas, a tudo respondem repetindo as palavras de João: «Nóssomos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve». Quanto aos de-mais, vocês pertencem ao mundo, e falam da pompa e da vaidade domundo; e o mundo, feito de gente como vocês, lhes dá ouvido."3

O. primeiro recurso usado pelos puritanos para garantir seu apoio é ode reescrever as Escrituras. Usá-las para finalidades que não estão nelas,para sustentar suas próprias teses. A proposta da Reforma de que todosdevem interpretar livremente as Escrituras, certamente levaria ao caos -é o que pensam. Cada um dos reformadores, a partir de Calvino, escreve

então seu próprio texto canõnico. Os seguidoresdos puritanos se abstêm da leitura de qualqueroutra fonte. E exercem uma censura cerrada àque-les que lêem ou citam outros autores além dos desua corrente. A crítica livre, o exercício livre dateoria são naturalmente banidos.4

I vllegclin, Eric. A nova ciênciadll f!0/flica. 2.' ed. Trad. JOSéVII1K"H Filho. Brasília: Edito-1'11 tlnll, Hll\2, p. IO:l

I 111111(1111, p. 1()4. O!i.

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • W:IComo afirma Eric Voegelin: "nenhum trecho do Novo Testamento

permite extrair conselhos em prol de uma ação política revolucioná-ria. Nem mesmo a Revelação de São João, animada pela expectativaescatológica do Reino de Deus [... ] coloca o estabelecimento dessereino nas mãos de um exército puritano [... ] [... ]. No capítulo 20 daRevelação, um anjo desce dos céus e lança Satã num poço sem fundopor mil anos: na Revolução Puritana, [eles] arrogam para si própriosessa função angelical".

Passagens de um panfleto puritano de 1641 - Um Vislumbre da Glóriade Sion, citado por Voegelin: "Deus tenciona empregar os homens dopovo na grande tarefa de proclamar o reino de Seu Filho. [... ] [Avoz deCristo] vem primeiramente da multidão, dos homens comuns. A voz sefaz ouvir inicialmente por meio deles, antes que outros a expressem.Deus usa a gente comum para proclamar que Deus Nosso Senhor Oni-potente reina. [... ] o povo de Deus é feito de gente desprezada. Os san-tos são chamados de facciosos, carismáticos e puritanos, de sediciosos eperturbadores do Estado. No entanto eles serão libertados desse estig-ma, e os governantes se convencerão [... ] que os Santos de Deus [... ]são os melhores cidadãos".

A convicção dos governantes, aponta Voegelin, será reforçada pormudanças drásticas nas relações sociais. O panfleto cita Isaías 49:23:"Os reis serão teus provedores; prostrados diante de ti, a face contra aterra, lamberão a poeira de teus pés".

Na concepção dos puritanos, a vitória de sua revolução implicaráuma mudança radical dos governantes, que agora deverão ser obvia-mente seguidores de sua doutrina. Outro panfleto, de 1649, com a revo-lução já em pleno curso - e intitulado Perguntas - também citado porVoegelin: "O antigo grupo de governantes deve ser eliminado, pois «quedireito têm os homens meramente naturais e mundanos de deter o go-verno, que carece de uma justificativa santificada para as menores gra-ças tangíveis?» [... ]. Se esperamos novos céus e uma nova terra «comopoderá ser legal remendar o velho governo mundano». O único cur O

correto de ação será aquele que resulte em «suprimir para sempr OI

inimigos da religiosidade» [... ]. Este mundo é feito de trevas, as qu 111

devem ceder lugar a uma nova luz. Conseqüentemente são inviáv I, 011Kovernos de coalizão".5

Nessa perspectiva, "o novo reino será univer- [,Ibidem, p. 101\.

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1(i4 • MAURO SÁ REGO COSTA

sal na substância como o será em sua reivindicação quanto ao poder:ele se estenderá [querem os puritanos]: «a todas as pessoas e coisas uni-versalmente». E continua Voegelin: "Os Santos antevêem que o univer-salismo de sua reivindicação não será aceito sem luta pelo mundo dastrevas, e sim produzirá uma aliança igualmente universal do mundocontra eles. Por isso os Santos terão de unir-se «contra os poderes anti-cristãos do mundo» enquanto tais poderes «concertar-se-ão universal-mente contra eles». Assim os dois mundos, que supostamente deveriamseguir-se cronologicamente, na realidade histórica transformar-se-ão emdois campos armados universais, empenhados em luta mortal".6

3. É preciso ver na Revolução Inglesa a revolução paradigmática dostempos modernos. É ela que inaugura a era das revoluções como asconhecemos, até a de 1917.Todas têm uma pretensão ética universalista,trazem um novo quadro ético e político que a partir delas deverá seinstaurar de modo universal na Terra, e, ao mesmo tempo, têm seu es-paço de ação concreta delimitado por fronteiras nacionais.

Richard Hooker é um modelo para os críticos reacionários, que seoporão às revoluções em nome da Razão - foi o principal inspirador dopensamento deJohn Locke, criador do liberalismo político. Eric Voege-lin é um teórico político contemporâneo, que se inspira em Hooker, notexto citado, A Nova Ciência da Política. Hooker e Voegelin percebemmuito claramente os aspectos sombrios das Revoluções e dos revolu-cionários, aspectos que vêm perseguindo os projetos revolucionáriosdesde a Revolução Inglesa - o sectarismo, a incapacidade de diálogocom outras formas de pensar, o comportamento de rebanho dos segui-dores, satisfeitos com a sua visão rígida da realidade e com a conviven-ciazinha incestuosa com outros que repetem seus mesmos bordões. Suacrítica lembra a leitura que D. H. Lawrence faz do culto do Apocalipsede SãoJoão e das igrejas que o incorporam - como religião da vingançae do ressentimento - completamente distante da nobreza e generosida-de do Cristo dos Evangelhos.7

Os aspectos descritos por Hooker e Voegelinsão, numa perspectiva nietzschiana, os aspectosreativos das Revoluções e dos revolucionários.E é claro, apesar da precisão de suas críticas aosaspectos reativos, eles não são capazes de ver

" Ihldem, p. 110·1.

I I.IIWI'CIICC, D. H. Apocalypse.l.olull'l'N: I'clIguin l!J76 (L'11t1" IU:II),

UMA POLÍTICA DO FUTURO·PRESENTE • l()!j

ou descrever os aspectos ativos e criadores de uma Revolução, seu cor·po-sem-órgãos, que só é experimentado por quem a vive no centro d 'seu movimento de criação. Este movimento, aliás, é sempre traído emsua narração posterior, que exclui todo o devir, a ambigüidade, as con-tradições, suas zonas de indiscernibilidade, sua alegria enlouquecida,suas paixões e tragédia. Seu caráter paradoxal e criador é traído nasformas cristalizadas da História.

4. Sessenta e oito marcou o fim da era das Revoluções Modernas.Ainda não falando sua língua, mascarada com os discursos e catego-rias do passado, ela produz paradoxalmente outra coisa. Sem fala. Mil,novecentos sessenta e oito representa o ponto mais alto e mais parado-xal dos. processos revolucionários e assim dá a ver, com clareza, abeleza paradoxal de todos os outros. Uma revoluçã.o que não apresen-ta mais um novo quadro de valores com pretensões universais. Aocontrário, promove singularizações, faz diferir continuamente suas in-tenções; não tem centro, nem se delimita por fronteiras nacionais. DoInstituto de Filosofia e Ciências Sociais (UFRJ), na Rua Marquês deOlinda, acompanhávamos nossa revolução em Paris, Chicago, Bue-nos Aires, Frankfurt, Cidade do México. Fizemos uma manifestaçãoem Botafogo contra os tanques soviéticos invadindo Praga.

5. A Cristã, a Reforma, a Liberal e a Comunista. As revoluções fo-ram os grandes momentos de criação ética, quando se produziram ese exercitaram novos modos de ser em sociedade, novas maneiras deexistir. O caráter de surto criador, ou o corpo-sem-órgãos das revolu-ções transforma-as em caixas-pretas para seus sucessores. O Iluminis-mo é a traição inteligente da revolução, os aristocratas alemães quecolonizam o pensamento revolucionário inglês e francês a partir dKant. E inventam uma revolução movida pela Razão. A invenção d'valores não é racionalizável. Os modos-de-ser, a sua construção é est .tica, ou ético-estética, movimentos corporais, correspondências s n f·veis, ritmos, cores e afetos. A crítica racional dos valores é igualm ntinútil, filha da mesma traição iluminista. Em caixas-pretas, traço d •grandes revoluções, cristã, da Reforma, Liberal e Comunista brlll 1ftainda, como universos incorporais, balizando a construção d t nUrios existenciais. Ver, por exemplo, os traços de Liberdad ,Igutu I I

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I(i(i • MAURO SÁ REGO COSTA

e Fraternidade, na trilogia do cineasta polonês Kieslowski - Azul, Bran-co e Vermelho.8

6. O trabalho e a Técnica eram compreendidos por Marx como me-diadores entre a sociedade e a Natureza, num longo processo que seacelerara com a Revolução Industrial. O trabalho como forma de or-ganização da sociedade, e as máquinas que lhe estão associadas, pro-duziriam uma hominização da Natureza. A Revolução comunista viriaapenas completar, no plano da organização da sociedade, um processoiniciado com a revolução técnica da indústria. O lugar da técnica, noentanto, foi deslocado com a atual revolução tecnológica. Em lugar deobjeto neutro, cujo sentido estava sujeito à ética da organização social;em lugar de materialização da teoria e do pensamento operatório, queteria seu valor ético acrescentado de fora, pelo seu uso social, as máqui-nas hoje são imediatamente expressão de valor. Gilbert Simondon (DoModo de Existência dos Objetos Técnicos).9 Não há novos agenciamentostécnicos qu~ não sejam imediatamente novos agenciamentos éticos. Re-volução técnica e revolução ética imediatamente associadas. Este foi ogrito enigmático de 1968.

A atual revolução tecnológica pede a criação de grandes exploratoriaéticos. Não mais a definição de uma nova tábua de valores - como acristã, a liberal ou a comunista - mas matrizes de grades valorativas.experimentais, múltiplas variações dos usos da vida. Como os funtores

e os diagramas nas Cartografias Esquizoanalíticasde Félix Guattari.1O

R Trois couleurs: bleu, trois cou-leurs: blane, trois couleurs: rouge(em português: A liberdade éazul, a igualdade é branca, .afraternidade é vermelha). Ver:França, Andréa. Azul, branco evermelho. A trilogia de Kies-lowski. Rio de Janeiro: SetteI.clrus, W96.

"Slmondon, Gilbert. Du modeli 'f,xútence des objets techniques.1'1I1'1H: Aubicr, 1989 (ed. revi-~lIdll).

111 0111111111'1, Félix. Cartogra-/IM'.! .frlllt.lIllnlllytique.f. Paris:(.,1"111/111, lU 1111.

7. Em 1987, Félix Guattari e Antonio Negriescrevem Os Novos Espaços de Liberdade, por sau-dosismo ou bela homenagem, um novo mani-festo comunista.

"Nós recomeçaremos a chamar comunis m'oà luta coletiva pela libertação do trabalho. [... ].Só um movimento imenso de reapropriação dotrabalho, enquanto atividade livre e criadora,enquanto transformação das relações entre ossujeitos, só uma revelação das singularidades

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 167

individuais ef ou coletivas, esmagadas, bloqueadas [... ] irá gerar no-vas relações de desejo suscetíveis de «inverter» a situação presente.[... ]. Trata-se de [... ] uma reconquista do domÚüo sobre o tempo deprodução, que é o essencial do tempo da vida. A produção de no-vas formas de subjetividade coletiva, capazes de gerir segundo fina-lidades não capitalísticas as revoluções da informática, da comuni-cação, da robótica e da produção difusa.""

Definem mui claramente as novas categorias revolucionárias, queimplicam uma compreensão do trabalho não mais como praxis, mascomo poiesis, meio de produção de mundo, imediatamente técnica evalor, ação produtiva de objetos e produção de subjetividade; o fim dequalquer pretensão universalista na expressão de seus valores, e a con-tínua produção de mundo e valor com a velocidade das novas tecnolo-gias - i.e., um estado de revolução permanente. •

Continuam Guattari e Negri:

"Os universais políticos não são portadores de nenhuma verdadetranscendente; [... ] eles são inseparáveis dos territórios particularesde poder e de desejo dos homens. A universalidade política não po-derá pois se desenvolver através da dialética aliado/inimigo, como astradições reacionária e jacobina o prescrevem. A verdade «ao alcan-ce do universo» constitui-se pela descoberta do amigo na sua singula-ridade, do outro na sua irredutível heterogeneidade, da comunidadesolidária no respeito pelos seus valores e finalidades próprias. Taissão o «método» e a «lógica» das marginalidades que são assim o sinalexemplar de uma inovação política adequada às transformações re-volucionárias solicitadas pelos modos de agir produtivos atuais."12

E concluem:

"Após alguns séculos de domínio capitalis-ta ef ou socialista, produção e sociedade tor-naram-se uma e a mesma coisa. É um fatosem retorno. As máquinas de luta revolucio-nária devem tornar-se elas mesmas modos de

11 Guattari, Félix & Ncgrl, 1b.ni. Novos espaço.! de UI/m/fl//"Lisboa: Centelhn, W1I7, p, 11,

12 Ibidem, p. 24.

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168. MAURO SA REGO COSTA

agir produtivos das novas realidades sociais e das novas subjetivida-des. Sua questão passa a ser então, estritamente, a da Produção deSubjetividade. Este seria o campo de luta principal pois é por aí, con-tra a produção de subjetividade monopolizada pela mídia e o consu-mo cada vez mais uniformizado do Capitalismo planetário que sedevem desenvolver os meios de singularização individual ou coleti-va, de heterogênese, a abertura para novos modos de ser, que chama-remos hoje de comunismo."13

Em 84, Guattari e Negri ainda falavam do Estado, dos partidos políti-cos e do movimento sindical, da necessidade de atuar com e sobre essesespaços, na busca de mudanças legislativas que propiciem a promoção edesdobramento dos modos de ser singulares. Mas, em 1987, no textoliminar ao Cartografias Esquizoanalíticas, Guattari já não se refere ao Esta-do nem a quaisquer das instâncias a ele associadas. Como se o poder dosEstados-nacionais já não representasse grande coisa para uma luta quetem o Capital Mundial Integrado como seu opositor e que portanto só sepode organizar em agenciamentos internacionais articulados a partir demovimentos locais, para os quais os limites nacionais pouco significam.

(Obs. É evidente que a forma Estado-nação tem cada vez menos im-portãncia na Europa de Maastricht ou em todo o velho Primeiro Mun-do; no entanto a ação sobre o Estado, passando pela via legislativa, temainda espaço nos países do Terceiro Mundo como mostra, por exemplo,Peter Evans em estudo sobre a globalização econômica e a função dosEstados nas economias emergentes - México, Índia, Brasil, Coréia, Cin-gapura, Vietnã, Malásia, etc.14- e - Harry Cleaver15falando do uso de

noções como sociedade civil e direitos humanos pelaesquerda mexicana ou brasileira, num movimen-to de criação de um Estado democrático que real-mente funcione - o que soa como anacronismopara as alternativas de esquerda européias.)

1" Ibidem, p. 36.

14 Evans, Peter. Embedded Au-lonomy. States & IndustrialTransformation. Princeton Uni-versity Press, 1995.

L' Cleuver, Harry. The Chia-pus Uprising and the FutureoI' Clnss Struggle in the NewWorld Order. Fevereiro de11104· - publicado primeira-IlInlllo nu revista italianaum,' UAN'(Páduu, s.d.)

8. Mas onde está a revolução proposta porGuattari?

Um passeio pela Internet mostra uma amplavariedade de sites políticos, para todos os gos-tos, desde os ambientalistas que já foram mais

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 169

ativos e eficazes, como o da Greenpeace, aos mais recentes como o lndi-genous Environmental Network, ligando as lutas ambientalistas às lutasdos povos indígenas; sites dos movimentos minoritários como os ho-mossexuais Lesbian Mothers Support Society, National Freedom to MarryCoalition, Digital Q,ueers, ou os da liberação do uso de drogas - o maisarticulado National Organization for the Reform ofMarijuana Law (especí-fico para os E.U.A.); até os sites de discussão política como o Liberals &Libertarians, ou a Netizen da Hot Wired, que acompanhou durante umano as práticas curiosas da mídia e dos diversos agentes nas campa-nhas dos dois partidos para as últimas eleições presidenciais nos Esta-dos Unidos.

Mas algo com a intensidade e as passagens entre dimensões e nature-zas diversas que caracterizam um movimento revolucionário só apa-rece nos sites que se associaram em tomo do Exército Zapatista de Li-bertação Nacional mexicano - o movimento dos grupos indígenasfederados, que circula pela Selva de Lacandona, em Chiapas.

A comunicação internacional e apoio às lutas dos zapatistas atravésda internet tiveram um efeito evidente sobre os modos como o governoe o exército mexicanos se comportaram em relação à revolta armadaem Chiapas, que no dia 1.0 de janeiro de 1994 - dia em que entrou emvigor o acordo de livre comércio Estados Unidos/Canadá/México, oNafta -, ocupou militarmente cinco vilas da região.

A primeira reação do governo mexicano teve a brutalidade que mar-ca esse tipo de ação militar no Ocidente, desde o Vietnã - invasão dealdeias, massacres indiscriminados de camponeses suspeitos de perten-cer ao EZLN, etc.16 Mas esse primeiro movimento foi logo sustado ten-do em vista a quantidade e variedade dos apoios vindo do exterior as-sim como de outras camadas da sociedade mexicana organizadas naCND - Convenção Nacional Democrática - um movimento não par-tidário, da sociedade civil. Muitos suspeitos ain-da estão na cadeia, o exército continua ocupan-do a região, e os grupos paramilitares matam(numa guerra de "baixa intensidade"), mas ogoverno propõe negociações (lentas, intermi-náveis ... ) e evita o escândalo de ações extrema-das. Outras lutas camponesas e de povos indí-genas por todo o México se articularam às lutas

16 Entre 3 e 10 de janeiro de1994, a "resposta" do exérci-to mexicano matou 157 peMsoas e deixou 427 "desapa·recidos", além de dewlocllr30.000 civis de suas uld 111Mpara acampamenloN nUMmUIItanhas e CampOH d I' ('li !tIdos.

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170. MAURO SA REGO COSTA

dos zapatistas. A internet foi o principal meio de comunicação nessa luta.Diz um documento da Acción Zapatista, principal site de apoio, sedia-

do na Universidade do Texas, Austin - "Zapatismo no Cyberespaço":'7O computador também favoreceu uma nova forma de organizar que

se aproxima do espírito dos zapatistas em sua forma de organizar-se emChiapas. As redes eletrônicas permitem a criação de um tecido de co-municação e cooperação democráticas, que se move rapidamente e comfluidez. Em contraste com organizações,·tradicionais que tendem a terestruturas rígidas, hierárquicas, de cima a baixo - mesmo as organiza-ções revolucionárias - este tecido eletrônico de organização é uma redelforizontal com uma infil}.idadede nós. Os esforços para IMPOR estru-turas hierárquicas no ciberespaço têm dado pouco resultado porque osparticipantes podem abandonar esse terreno com facilidade e criar denovo seus próprios contatos, listas, conferências, ou grupos noticiosos.

Foi por meio da rede que se organizou o primeiro Encontro Inter-nacional, na selva, em: Chiapas, em julho de 1996, reunindo três milativistas e intelectuais de quarenta e dois países e cinco continentes. Oencontro foi convocado em janeiro de 1966, com a preliminar de cincoconferências nos cinco continentes, para discutir Ações pela Humani-dade e contra o Neo-Liberalismo - os efeitos do neoliberalismo em di-versas áreas de experiência: econômica, política, social, cultural e sobreas populações indígenas. Na convocação para os Encontros, os zapatis-tas afirmam seu compromisso pela paz e sua análise de uma transiçãonecessária para um "verdadeiro espaço de luta democrático". Recusamo papel de vanguarda numa luta que deve incluir todos os setores dasociedade mexicana e propõem que a atual fase do capitalismo globali-zado oferece condições para integrar através das redes eletrônicas, eoutros meios, um amplo espectro de grupos políticos em todo o planeta.Eles insistiam sobre a nova forma dos fóruns como a produção de "diá-logos sem fim baseados necessariamente sobre relações sociais não hie-rárquicas e pelo conflito democrático" .18

Lá estavam Mme Mitterand e Régis Debray, representantes do PT ede muitos partidos socialistas e comunistas das'Américas e de centenas de organizações não-go-vernamentais de todo o mundo. Um dos resul-tados do encontro foi a criação da Rica - RedeIntercontinental de Comunicação Alternativa -

I1 In hUIJ.'!/www.eco.utexas.edullill'fIlly/(:16I1ver/c/tiapas95.html1111 l(oplwl'://eco.utexas.edu.

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 171como veículo para "troca de experiências e discussão de estratégias globais para a luta contra o capitalismo e para o desenvolvimento e expllllsão de ampla variedade de modos de organizar a vida social", como dizsua carta de princípios. O segundo Encontro aconteceu entre 25/7 e :118/1997, na Espanha. W

Entre os sites associados à Rica, e à Acción Zapatista, estão lhe Guate-malan Students Home Page, do movimento estudantil guatemalteco, a TlteMexican Solidarity Page sediada em Montréal, no Canadá (ambas têmversões em inglês e espanhol); o Movimento dos Trabalhadores pelaSolidariedade (Workers Solidarity Movement), um grupo anarquista na Ir-landa; a Instructional Workers Page, do sindicato dos trabalhadores inte-lectuais nas universidades públicas do Texas; a página Food Not Bombs,An Anarchy Homepage; Burn!, uma revista eletrônica sediada na Universi-dade da Califórnia em San Diego, e que integra os grupos Arm the Spirit,Long Haul Infoshop, Groundwork Books, a Rede de Informação Curdo-Americana (American Kurdish Information Network), e Art For @ Change.Outra página é a SOUDARITY, organização socialista fundada em 1986,por socialistas revolucionários que buscam um reagrupamento das es-querdas nos E.U.A., a partir de organizações de base. Fora dos EstadosUnidos, em Hanôver, Alemanha, o The Alternative Guide through theWWW- Galaxy canaliza os sites em alemão, a European Counter Network,os sites em italiano e inglês.20

Não há muitos recursos diferentes na rede: contatos de pessoa a pes-soa, conferências ou conversas em tempo real; listas, em que muitaspessoas contribuem e têm suas propostas acrescentadas num conjuntocrescente, e coordenadas por um moderador -não em tempo real; revistas/noticiosos que po-dem ter um corpo de editores e colaboradoresespalhados por qualquer parte do planeta ondehaja telefone. Como afirma Pierre Lévy, a dife-rença principal em relação à mídia eletrônicaanterior é a passagem de um sistema de comu-nicação um-todos a um sistema todos-todos. To-dos podem acessar todos. A diferença políticaaí é como propõe um artigo deJohn Arquilla & 20 Ibidem.

David Ronfeldt da Rand Corporation,21 sobre a 11CYllERWARIStJOMIN ICyberwar - os usos do ciberespaço na guerra: .John Arqulllll & nlwld I 11

19 Ibidem. Em 1998, novembro 22-25, o encontro doEZLN com a sociedadc civil,em Chiapas, contou com 1'0

presentantes de muitos grUpONinternacionais que npóltln1 11luta zapatista. Em dc1. mbl'Ode 1998, aconteccrum Illlcontros regionais nu DlnIl1111U't'II,na Alemanha c nu Ildlllu,

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172. MAURO SÁ REGO COSTA

''A História demonstra que, na vida incipiente de uma nova tecno-logia, as pessoas enfatizam os efeitos de eficiência e subestimam osefeitos potenciais sobre o sistema social. O avanço nas tecnologias derede torna possível pensar pessoas, juntamente com bases de dados eprocessadores como recursos de uma rede [... ]. A revolução da infor-mação põe em xeque o design de muitas instituições. Rompe com ashierarquias e redistribui o poder, freqüentemente em benefício dosagentes considerados mais fracos e menores. Atravessa fronteiras eredesenha os limites de escritórios e responsabilidades. Expande oshorizontes espacial e temporal que os agentes levam em conta. As-sim, ela obriga sistemas fechados a abrirem-se. Embora isto seja di-fícil para instituições antigas, grandes e burocráticas, a forma institu-cional per se não está ,se tornando obsoleta. [... ]. As mudanças quepreocupam as instituições, como a erosão da hierarquia, também fa-vorecem o crescimento de redes multiorganizacionais. [... ]. A redetem uma forma diferente da forma institucional [... ] redes multiorga-nizacionais consistem de (sempre pequenas) organizações ou partesde instituições que se ligaram para agir conjuntamente. [... ] [Assim,]agentes diversos e dispersos podem se comunicar, consultar, coorde-nar e operar juntos através de grandes distâncias e com base em maise melhor informação que nunca antes."

Eles criam uma nova categoria de guerra, além da política, econômi-ca, social, todas podendo associar-se à guerra militar propriamente dita:a netwar, guerra de rede. E entre as netwars está esta em que movimen-tos em torno do mundo se organizam de modo crescente atravessandoas fronteiras nacionais e criando coalizões, e identificando-se mais coma sociedade civil - uma sociedade civil globalizada - que com os Es-tados-nações. Segundo os autores, esta deveria ser a próxima grandefronteira do conflito ideológico e a netwar seria sua principal caracte-rística.

Os zapatistas foram mais longe. Em La Revolución Globa~ dizem:

"No passado, os esforços revolucionários bus-caram a unidade através da promulgação e ade-são a uma ideologia. Aprendemos de forma du-ra e penosa que esta prática não serve. Nós, os

f'('lclt.Inlcrnlllional Policy De-plll'lll1tlnl. RAND Journal of(:""'PllrIIllvtStrattlfj 72(2);141-M, 1110:1.

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 173seres humanos, nossas idéias, nossas culturas, nossas formas de fazeras coisas são muito variadas. Os esforços de homogeneizar-nos sãodestinados ao fracasso. Em lugar disso, devemos buscar uma unidademais orgânica, como as diferentes e complementares formas de vidaque evoluem numa ecologia auto-sustentada."

Onde a rede atua diretamente? Os militares falam de C3I, "coman-do, controle, comunicações e inteligência".n

9. Pierre Lévy fala de sinergia, em que, em um trabalho de grupo, aproposição de um se prolonga na do outro, dos outros, em tempo real -mensagens que se ampliam/reformam/crescem/transformam no ato datroca. Ao processo como um todo ele chama de criação de uma "inteli-gência coletiva". Pierre Lévy criou um sistema de produção de Inteligên-cia Coletiva, num software intitulado Árvore do Conhecimento; infelizmentenão está na rede. Ele o vende e ensina como usar, para grandes empre-sas e instituições. Está sendo usado pelo metrõ de Paris, por algumasuniversidades, uma francesa e outra escocesa. No Brasil, seu uso é pro-movido pela DDIC (http://www.ddic.com.br). A DDIC já o está usan-do no programa de pós-graduação da PUC-SãoPaulo, como árvore de gestão de projetos de pes- 22 In: Arquilla & Ronfeldt. op.quisa (professores, mestrandos, doutorandos ... ).Já foi adotado em uma escola particular de SãoPaulo (Logos) e deve chegar à Escola Superiorde Administração Fazendária, em Brasília.23

No modelo original de Lévy é um sistema emque se inscrevem todos os participantes de umainstituição de tamanho razoável e portanto ten-dente à impessoalidade nas relações e à criaçãode grupelhos variados, separados por preconcei-tos, ou simplesmente lutando pelo poder, nas for-mas mais baixas, como acontece nas nossas gran-des universidades. Cada pessoa, do servente aoreitor, faz um currículo onde especifica tudo oque sabe fazer, de preferência na ordem em queesses saberes foram adquiridos, mas não restritosaos diplomas acadêmicos - entra tudo no currí-

cit.23 Lévy, Pierre. As tecnologiasda inteligência. Ofuturo do pen-samento na era da informática.Trad. Carlos lrineu da Costa.Rio de Janeiro: 34 Letras,1993; Lévy, Pierre & Au-thier, Michel. As árvores de co-nhecimentos. Trad. Monica M.Seincman. São Paulo: Escuta,1995. Mais informações em:Arbor & Sens - http://www.globenet.org/arbor/;Arbres de connaissance pOUl'une nouvelle école http://www.erasme.org/acne/j Awuciación Espaiíola de 1b1 lrnbajo - http://www.clb rI ti,

es/aet/; - Cercq - hllp://www.cereq.rr/ c - 'orlallGingo - hltP://WWW.11111quilowcb.fr/ orl X/

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174. MAURO SÁ REGO COSTA

culo: aprendi piano com minha mãe, faço uma ótima macarronada, seicomprar peixe, soltar pipa, jogar poker, fui jornalista e sou doutor emmatemática. Essas fichas são feitas de modo que possam todas interagir.Na hora que preciso de uma receita de macarronada especial, tenho a lis-ta dos bons cozinheiros; da mesma forma, se quero montar um grupo depesquisas e preciso de um modelizador matemático, um antropólogo, umbiólogo, e estagiários em antropologia e biologia. Em cada situação e emcada posição que eu esteja e precise e queira ter a ajuda de outras pessoasou fazer algo com um ou mais parceiros/parceiras. O sistema corrói opeso da hierarquia da instituição, dá uma flexibilidade e uma velocidademuito grande a qualquer momento da produção ... ou do lazer.

Talvez o aspecto central da estética das revoluções seja este da am-pliação de possibilidade de relações entre as pessoas de origens, classes, cul-turas, raças, sexos, países, planetas os mais diversos. É uma festa. A revolu-ção é uma festa, como diziam os ex-maoístas franceses com suas bandas.

(Pierre Lévy é criticado como crente num certo determinismo dasmudanças tecnológicas sobre as transformações sociais. A mesma críticaera feita, com um pouco mais de conseqüência, em relação a MarshallMcLuhan, nos anos 70, por toda a intelectualidade européia de esquerda.Como engenheiro de softwares, no entanto, Pierre Lévy tem a experiênciada interpertinência entre os aspectos técnicos e éticos [ou etológicos, oupolíticos] em qualquer sistema informatizado, e é nessa direção, na linha-gem simondoniana, que aponta, ao não discutir de maneira independen-te as questões técnicas e ético-políticas das novas tecnologias.)

10. Giorgio Agamben pergunta como fazer política hoje, quando to-das as categorias políticas ruíram. Pergunta se tem sentido propor umnovo Comunismo. Lembra então a categoria da Escolástica, do quodli-bet, a "qualquer coisa". (Q,uodlibet ens est unum, verum, bonum seu perfectum- qualquer ente é uno, verdadeiro, bom, ou perfeito.) "Qualquer coisa"não era entendido como "não importa o que", mas como "o que real-mente importa". Libet é do verbo querer, como em português - qual-quer - qual dentre todas as coisas eu quero. Os seres na sua singularida-de não podem ser conhecidos de forma meramente intelectual com ascutcgorias ou classes aristotélicas (quando, sempre o ente x pertence àC'lllRS(~ y). Assim é por exemplo, no amor: eu não posso dizer que amo1,'uIUllll porque ela é bela, inteligente, tem olhos vibrantes, cabelos da

UMA POLÍTICA DO FUTURO-PRESENTE • 175

cor da asa da graúna. Todas as características de Fulana incluídas, amá-la é algo a mais que não está em nenhuma classe. O grau de conheci-mento mais profundo que é o amor, o amor terreno e o amor de Deus,me coloca nesse estado. Aquilo que eu não posso esgotar com as pala-vras; que por mais que fale ainda não a.preendo inteiramente. Isto é oque é verdadeiramente comum a todas a.s coisas: a sua singularidade.Como organizar-se politicamente não em função da classe a que se per-tence: ser trabalhador, ser negro, ser mulher, ser brasileiro ou campo-nês? Como organizar politicamente fora de qualquer classe, a partir dis-to que é comum a todos? - eis o novo projeto comunista.21

A proposta é bonita. Seu efeito é, ao mesmo tempo, poético e, apa-rentemente, um bom argumento. Mas, e daí? Uma etimologia pode serresponsável por escolhas políticas? Etimologias são bons argumentospolíticos? Nosso encanto apenas mostra o quanto ainda nos resta daesperança, de que todas as lutas singulares e dispersas encontrem novosmodos de se articular naquela grande nuvem .luminosa que varria oplaneta e costumávamos chamar de Revolução. Estas articulações vãoprecisar se fazer sempre e se refazer, não para a construção de um sócaminho, mas integrações variadas marcadas por correspondências sen-soriais, e entre afetos, concepções do trabalho ou da natureza, casamen-tos provisórios, coletivos provisórios, sempre a se constituir e desconsti-tuir, como o movimento das redes. Não interessa o futuro da revolução,o que interessa é o devir revolucionário.

Voltemos então aos zapatistas, e ao presságiopoético de Ricardo Domínguez:

"Na selva delirante de Lacandona flutuauma construção temporária de plantas, carnee circuitos que está tentando desenvolver umaperturbação rizomática, a «antecâmara» deuma «revolução que tornará a revolução pos-sível.. .». Os zapatistas não são a primeira re-volução pós-moderna, mas a última; eles sãoa mediação, em vias de desaparecer, entre aquebra do espelho da produção (capital mor-to) e o estilhaçar do cristal da (des)materiali-zação (capital virtual)."25

24 Agamben, Giorgio. The Co-ming Community. Trad. porMichael Hardt. The Univer-sity of Minnesota Press, 1993.

25 R. R. Domínguez. Run forthe Border: The Taco Bell War,p. I. Ricardo Domínguez tra-balha ao lado de Stefan Wrayno projeto The Electronic Dis-turbance Theater, que COOl'donou bloqueios eletrOnicoH 11

sites como o da Presidl!nclll ctllRepública do México, 11 !lolsa de Valores do M6xlro 01111Casa Branca, em rlUlllN dnhH'minadas, em upolu (I 111111doEZLN. Pum InI'UI'IllIlÇnU Ihllp:/ /www.lhlng.lIlI .. rdu ,

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POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADENA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA .

......................... LILIANA DA Esc SIA

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POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADE NA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA • 179A relação do homem com a técnica é concebida como um dos aspec-

tos da relação do homem com o mundo. Tal relação não está calcadaem uma distinção do homem e do mundo enquanto sujeito e objeto.Homem e mundo formam um único sistema.

Temos de admitir entretanto que as tecnologias contemporãneas têmgerado efeitos contraditórios: apresentam aspectos potencializadores easpectos despontencializadores da subjetividade, o que de certa formaresponde pelas atitudes pessimistas de um lado e (excessivamente) oti-mistas de outro.

Ao refletir sobre tais efeitos contraditórios, Félix Guattari reconheceinicialmente que a técnica tem dupla tendência: uma homogeneizante, uni-versa lista e reducionista, que no pior leva à mass-midialização embrutece-dora; e outra que reforça a heterogeneização e singularização de seus com-ponentes e, no melhor, leva à criação de novos territórios existenciais.3

Entretanto, ele reconhece que a primeira tendência tem predominadonas sociedades capitalísticas:

I(B(1)(I)

A CO-EVOLUÇÃO da humanidade e da técnica é o limite do pensa-mento ontogenético, que se caracteriza por pensar a gênese dos

sujeitos e dos objetos inserida num mesmo processo de evolução: o pro-cesso de individuação do ser.

Tal pensamento implica uma renúncia às concepções puramente ins-trumentalistas e antropocêntricas - que reduzem a técnica a um conjun-to de meios (neutros), utilizados para obtenção de fins que lhe são total-mente expostos do exterior - assim como às concepções puramentepessimistas, que analisam a questão da técnica em termos de impactonegativo sobre a suposta "natureza humana". Estas são concepções quese mostram incapazes de dar conta da complexidade da realidade técni-ca, especialmente na sociedade contemporânea.

É preciso pensar a técnica como uma dinâmica que retroage sobre oshomens, sobre a inteligência, os sentimentos e sobre valores culturais,

dinâmica esta em que todos os homens são con-vocados a participar de forma criativa e conse-qüente.

Não se trata, conforme afirma Gilbert Simon-don, "de uma técnica como meio, mas antescomo ato, como fase de uma atividade de rela-ção entre o homem e seu meio [...] a energia dogesto técnico, tendo progredido no meio, retor-na sobre o homem e lhe permite se modificar eevoluir ...2

A questão que volta aqui de maneira lancinante consiste em saberpor que as imensas potencialidades processuais trazidas por todasessas revoluções informáticas, telemáticas, robóticas, biotecnológicas,dos escritórios [bureautiques] ... até agora só fizeram levar a um reforçodos sistemas anteriores de alienação, a uma mass-midialização opres-siva e a políticas consensuais infantilizantes.4

É que, se por um lado, a nova ordem econô-mica e social parece solicitar o que Guattari cha-ma de uma subjetividade criacionistd' , por outro,ela tem tido enorme eficácia em sua ação reter-ritorializante - o Capital como modo de reterri-torialização universal tem conduzido todas asatividades humanas e os processos maquínicosà uma equivalência generalizada.

A saída, para Guattari, consiste numa reapro-priação dos equipamentos coletivos de subjetivação, ti

ou seja, de todos os sistemas maquínicos que sãosuporte dos processos de subjetivação (máqui-nas técnicas, sociais e religiosas, por exemplo).

3 F. Guattari. Caosmose: 11m '111

vo paradigma estético. 'Irad. AnilLúcia de Oliveira & Llíclll '.Leão. Rio deJaneiro: Ed. :I'h1992.

4 F. Guattari. Da pl'Odllçllu rlHsubjetividade. In: A, 1'111'""1(org.). Imag6m mdqul'ltll 11 "'fidas tecnologia.1 rll) vlrlual, 1\111 Ih •Janeiro: Ed, 114, 1111111, li, IM7,

5 F. GUIlUltrl, Ao! Irll, '111/111,CllmphullI: I'npl"", 1U1I1I,11 11,UUlltlllrl, Il O lu 11 I.Nllb.lnUvhlntlll,,,, fl' 11"

IEste artigo é uma versão par-cialmente modificada da con-clusão de rrúnha dissertaçãode mestrado intitulada A rela-ç(/() homem-técnica como proces-•HI de individuação do coletivo,orlcmtndn pelo Prof. Dr. Peterl'(l1 l'eI hlll'l. PUC/SP, 1997.I (:. Slmondon. Culture etIl'dllll((lIC!./JlIlletin de l'lnstituteri, l'IIl1o.HI!Jhie de l'Université1,1/1" ti, /lrrtxcllc.I, I!Hi!i, p. H.

178

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lHO. LILIANA DA ESCÓSSIA

Ele enfatiza entretanto - com base nas análises foucaultianas -, que essareapropriação deve considerar o intrincamento inevitável de três vias/vozes produzidas por tais equipamentos, e que estão na base dos pro-cessos de subjetivação das sociedades ocidentais contemporâneas: asvozes de poder, que incidem de forma coercitiva e dominadora sobre oscorpos, e de forma imaginária sobre as almas; as vozes de saberes tecnocien-tíficos e econômicos; e finalmente as vozes de auto-referência - processuais,autofundadoras e criativas.

A afirmação isolada de uma dessas três vozes capitalísticas, comoresolução dos problemas atuais, tem redundado em dogrnatismos detodo tipo, barrando qualquer produção de novos valores existenciais ede desejo.

No que se refere ao poder busca-se um retomo às antigas identida-des de povo, raça, religião, casta e sexo; no campo dos saberes, ou semantém uma fé ilimitada e irresponsável no capitalismo e no progressotecnocientífico, justificando todas as devastações humanas, culturais eambientais, ou, ao contrário, adota-se uma atitude antitecnológica; epor fim, a radicalização na idéia da criatividade, desvinculada das ou-tras vias/vozes, leva muitos a uma marginalidade crõnica.

Guattari quer descartar com isso qualquer idéia de determinaçãounívoca: as dimensões que concorrem para o engendramento da subje-tividade não mantêm relações hierárquicas obrigatórias e fixadas de for-ma definitiva, e por isso não podem ser pensadas isoladamente.7

Esse pensador convoca todos que continuam ligados à idéia do pro-gresso social - não no sentido instrumentalista do termo mas no senti-do de "processo social"- a priorizarem essas questões relacionadas àprodução de subjetividade, buscando entre outras coisas, reconciliar osvalores e as máquinas. O que passa necessariamente, a nosso ver, peladefinição de uma ética das virtualizações/individuações/subjetivaçõesoperadas pelas novas tecnologias.

METAESTABILIDADE E INFORMAÇAo

Embora a questão ética não seja temática central na obra de Simon-don, observamos que há uma preocupação éti-

I F. UlIlIlllIl'l. C(losmose: um no- ca, ou melhor, um sentido ético, que atravessa eI/"/lIlrIul/Nmll e.l'ldlico, p. 11. sustenta todo o seu pensamento, criando assim

POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADE NA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA • 181

uma rede conceitual que se apresenta como verdadeiro tratado de ética.Veremos que a crítica endereçada ao monismo substancialista e ao

dualismo do pensamento filosófico ocidental (o esquema platõnico e oesquema hilemórfico aristotélico), se desdobra em uma crítica à distin-ção - operada por esse mesmo pensamento -, entre dois tipos de ética:a ética pura (ou teórica) e a ética prática (ou aplicada). Pois é a separaçãoentre a substância e o devir, e a conseqüente definição do ser como um,como dado na substância individuada e acabada - e portanto fora dodevir - que institui essa distinção ética.8

A ética pura é aquela que preserva a substancialidade, a imutabilida-de, a eternidade do ser. É a ética do sábio, do instruído: da ordem dacontemplação ela se opõe à ação e à vida.

A ética prática, aplicada ou "da ação no presente" é a que confere umprivilégio ao devir enquanto devir, ou seja, concebe o ser em perpétuomovimento ou evolução.

Para Simondon, essas duas éticas são igualmente parciais, na medidaem que só obtêm sentido na própria oposição que estabelecem entre si:"a coerência interna de cada uma dessas éticas se faz pelo negativo,como recusa das vias da outra". A substancialidade da ética do sábionão é senão "uma contra-existência, um anti-devir, e este tem necessi-dade de que em torno dele a vida evolua para que seja dada a impressãode sua substancialidade".9 Simondon faz analogia entre esse tipo derelação e a relação entre o homem sóbrio e o homem embriagado -onde aquele tem necessidade deste para se saber sóbrio - e entre oadulto e a criança - na qual o primeiro necessita do segundo para sesaber racional.

É na teoria da individuação, mais especificamente nas noções de me-taestabilidade e informação, que Simondon fornece as bases de sua ética.Uma vez que a individuação é concebida como troca de informaçflo,sendo condicionada pela ressonância interna de um sistema que se e~ .tua de forma fracionada, não é possível admitir"nem uma ética da eternidade do ser, que visaconsagrar uma estrutura uma vez descoberta,como definitiva e eterna",lO, "nem uma perpé-tua evolução do ser sempre em movimento ..."ll 9 Ibidem, p.237.

Nem pura estabilidade, nem pura instabilida- 10 Ibidem, p. :lllM.de. Trata-se antes de uma operação que se ba- 11 lbld m.

8 G. Simondon. /"'I"rJlvl!luIItion psychique el coll6Cltv,.I'IlrlllAubier, 191\9.

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182 • LILIANA DA ESCÓSSIA

seia numa série de equilíbrios metaestáveis, que tem como fórmula, comoelemento disparador, a informação - entendida como "a maneira atravésda qual um sistema individuado se auto-afeta e se auto-condiciona" .12Informação é a modalidade de troca, de ressonância entre as partes deum sistema que se individua. Ela é informante e informada, é, simulta-neamente, resultado e germe de individuação, pois é o que transborda,irradia e resplandece de uma individuação a outra.

Na invenção técnica, como já foi dito anteriormente, o que transbor-da, o que passa como informação é a tecnicidade, contida e expressapela própria matéria. A matéria, ao veicular informação, é informante einformada. Nesse sentido, um objeto físico - natural ou técnico, poucoimporta - não pode ser considerado simples matéria "plástica", indife-rente sem estruturas ou virtualidades próprias, disponíveis à vontade e

, J.!

ao gesto técnico/humano. A matéria propõe um gesto, propõe uma ação.No caso do objeto técnico, a tecnicidade/informação contida no objetoconstruído retroage sobre os sujeitos, reconfigurando-os, produzindoassim novas subjetividades.

Mas para que a informação passe de um sistema.para outro, para queela tenha essa potência transformadora, é preciso conceber uma relaçãode pertencimento. Explico: é preciso que haja analogia entre os sistemas,que eles sejam subsistemas de um sistema mais vasto, e que a ressonân- .cia interna de um sistema seja esquema de resolução, não apenas destesistema, mas do sistema/conjunto ao qual pertence. O que significa di-zer que a informação/ressonância é interior e exterior ao mesmo tem-po, ou ainda, que não há distinção entre interior ou exterior. Ou, comoafirma Deleuze, o interior é a dobra do exterior. 13

Esse é o critério fornecido por um tipo de pensamento como o deDeleuze, Guattari e Simondon, assim como M. Serres, Bruno Latour,Pierre Lévy e Laymert G. dos Santos, para se pensar hoje o progressotecnocientífico. O gesto técnico, para ser ético, não pode ser um gestoisolado e fechado nele mesmo, uma vez que a ética é "o sentido no qual

a interioridade de um ato tem um sentido naexterioridade".14 Este sentido não está dadonuma instância transcendente ao ato, mas nopróprio ato, naquilo que ele é capaz de produ-zir, na relação que estabelece com o meio asso-ciado - esse sistema maior formado pelo homem

I'J Idem, p. 234.

11 (;lIIeHDeleuze. Foucault. São('nulo: Ul'llsiliense, 1988.

H (I. Sll11ondoll. Op. cit., p.:1oI 'J"

POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADE NA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA • 183e pelo mundo. Sabemos, desde Espinosa, que essa relação pode ser decomposição ou de decomposição.

Não temos dúvida de que a proposta ética de Simondon, ao postularuma imanência do ato, coincide com a ética espinosista, tal como apre-sentada por Deleuze, como uma tipologia dos modos imanentes de exis-tência.15Em Espinosa, e igualmente em Simondon, todo o caminho daética se faz na imanência. Nesse sentido, a ética da metaestabilidade é tam-bém uma ética da composição. 16É exigência de relação, de ressonância entreas diversas dimensões do ser. No caso do vivo, é a própria condição davida, pois é na relação que a vida acontece e se mantém.

Há outro aspecto da realidade ética que merece ser destacado, tendoem vista sua pertinência na análise dos dispositivos tecnológicos infor-macionais contemporâneos: a realidade ética é estruturada em rede. Oato ético - ou moral I? - desdobra-se em atos laterais, que se entrelaçamformando redes - e não cadeias contínuas - geradoras de sentido. Taisredes, diferentemente das cadeias contínuas, caracterizam-se por umasimultaneidade recíproca entre os diversos atos ou acontecimentos. Oato imoral, louco e parasita, além de não criar lateralidade, de não seconectar, ainda impede os outros atos de se estruturarem em rede.

A tendência à centralização e controle de informação, de alguns gru-pos sociais/ econõmicos, com relação à internet, é um exemplo corri-queiro de atos loucos e egoístas, na medida em que obstam essa estrutu-ração reticular do coletivo. Outro exemplo pode ser dado pela forma dehierarquia estabelecida em qualquer instituição em que o fluxo de infor-mação/ saber se submete a uma hierarquia piramidal, como empresas euniversidades: tal hierarquia não pode ser con-siderada ética, do ponto de vista ontogenético,pois ela impede o devir reticular.

ÉTICA E LÓGICA TEMPORAL

DESCONTÍNUA

A realidade ética solicita ainda uma aberturatemporal, isto é, a simultaneidade recíproca en-tre atos e acontecimentos implica uma exigên-cia de relação com o passado e o futuro, naquiloque eles contêm de informação, pois ela é o que

15 Gilles Deleuze. Spinosa nt Inprobteme de l'expressión. Plu'IN:Minuit, 1968.

16 Denise B. Sant'Annll, G'llrlJIIe técnica, 1997, mim u,

17 Simondon, !lU 'outr rio 11Espinosa, nllo dlfnron I llluético de ato mUI'UI,Para I. 11ato ético 6 ItunbOm ffiU I, 1111entllo 010 Ó Imorlll,lnd. 111Ilouco ou m NItlU UI I I

(L'lndlvltlul"lufI p ,lAt,,., "cnllncllv" p, :14;1)

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184. LILIANA DA ESCÓSSIA

relaciona passado, presente e futuro. Estamos mais uma vez falando dadinâmica atuallvir- tual: se o presente é da ordem do atuallindi- vidu-ado, passado e futuro são da ordem do virtual/pré-individual/co-Ietivo.

Não se trata aqui de uma lógica temporal linear, mas de uma lógicadescontínua - o tempo de Aion - em que o presente convoca passado efuturo como dimensões simultâneas do devir do ser, como dimensõesinformativas, portadoras de sentido. Na realidade ética, "cada ato re-toma o passado encontrando-o novamente; cada ato moral resiste aodevir e não se deixa sepultar como passado; por meio de sua forçaproativa ele fará sempre parte do sistema do presente, podendo ser ree-vocado em sua realidade, prolongado, retomado por um ato, ulteriorsegundo a data, mas contemporâneo do primeiro, segundo a realidadedinâmica do devir do ser". 18

Um ato técnico para ser ético deve ter essa atenção ao passado, poisos atos do passado - confeccionados no tempo - ressoam no presente,sob a forma de virtualidades, construindo assim, através de uma simul-taneidade recíproca, uma rede que não se deixa reduzir pela unidimen-sionalidade do sucessivo. Na invenção técnica isso fica mais claro, poisa antecipação dos esquemas técnicos se submete a essa dinâmica emque participam passado e futuro virtual.

A relação afetiva estabelecida com os objetos técnicos em desuso - oschamados objetos obsoletos - numa sociedade de consumo já era umapreocupação de Simondon no início dos anos 50, quando o descartávelainda não havia tomado as proporções que podemos observar hoje.Pois bem, já naquela época Simondon convocava uma atitude ético-

afetiva com esses objetos, ao lembrar que "quan-do um objeto se encontra em obsolência, é uma

IH G. Simondon. Op. cit., p. importante quantidade de trabalho humano que244.

se volatiliza sem proveito, e que torna-se irrecu-perável".19

Não apenas inventar o novo, mas reinserir ovelho, atualizando-o, para criar um presente sobo apelo do futuro.20 Isto significa estabelecer umacorrelação entre normas e valores: essa é tambémuma forma de apreender o sentido da ética dametaestabilidade, em sua exigência de relaçãoentre passado e futuro virtuais.

111 G. Simondon. Trois pers-pectives pour une réflexionSUl' l'éthique et la technique.A,ma[e.r de ['Institut de Philoso-liMe el de Sciences Morales del'U"ivmité Libre de Bruxelles,WII:I, p, 114(apud: G, Hottois.Slrllrmdoll ella philosophie de la(,llltlm IIclmiqlJe. Bruxelas: DeIIl1llck WOHmllol, W93),MI Ihllllll1l, p, IIH,

POR UMA ÉTICA DA METAESTABILIDADE NA RELAÇÃO HOMEM-TÉCNICA • I H!iSimondon afirma que é preciso substituir a noção de equilíbrios mela-

estáveis "a essa estabilidade absoluta e incondicional [da ética pura] c ti

essa perpétua evolução de um relativo fluente [da ética prática]".~1 Asnormas são justamente as linhas de coerência interna de cada um dessesequilíbrios metaestáveis: são as estruturas de um sistema metaestável.Os valores são as linhas pelas quais as estruturas de um sistema tornam-se estruturas do sistema que o substitui. Ou seja, os valores possibilitama transdutividade das normas, a passagem de um sistema para outrocomo informação: os valores são as normas tornadas informações. Sãoos valoreslinformações que transitam, que estabelecem relações e queformam redes de sentidos.22

Convém esclarecer, contudo, que não há uma separação, uma oposi-ção entre norma e valor. É a normatividade que, ultrapassando o siste-ma dado, pode ser considerada valor: a normatividade é o devir daprópria norma.

É verdade que, segundo Simondon, as normas exprimem a realidadeindividuada, definida, estável e atual, ao passo que os valores exprimema realidade pré-individual e virtual. Mas seria erro traduzir isso comouma oposição, estabelecendo mais uma dualidade. A questão não passapela dissociação dessas realidades, ao contrário, Simondon insiste emdizer que é na própria condição de estabilidade de um sistema - sejaum sistema físico, orgânico, psíquico ou social- que deve ser prefigura-da e incorporada sua metaestabilidade. Esse é o sentido que ele dá aoregime de metaestabilidade que caracteriza o devir do ser. É também apercepção da ética em sua unidade, em sua exigência de correlaçãoentre normas e valores, entre individuado e pré-individuado - essestermos extremos da dinâmica do ser. Simondon afirma que "a ética é osentido da individuação".23 Acrescentaria que tal ética, que é a da metn-estabilidade, é o sentido de todo processo de subjetivação.

É interessante observar que a noção de metaestabilidade fornece lU!

bases de uma ética da individuação/subjetivação/virtualização qu n ()busca eliminar as duas éticas criticadas (pura eprática). O que ela busca é combater a distinçãoinstituída uma vez para sempre: a metaestabili- li G. Simondol, p, ti"dade é a via onde as duas éticas tradicionalmen- p. 238.te separadas podem coincidir. II Ibidem,

Para concluir, queremos ressaltar a importân- ~:IIbidem, p, :.I4~.

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186. LILIANA DA ESCOSSIA'.

cia da dimensão coletiva na constituição dessa nova composição ética.O coletivo, sendo o campo da existência cotidiana, é o único capaz degerar sentido: ele traduz o sentido da imanência da ética. O coletivoconvoca o comum, o que está disponível, o que pode ser incluído. Esabemos que todo processo de subjetivação implica a inclusão deobjetos, paisagens, odores, sons, enfim, implica a inclusão do mundo: éincluindo o mundo e nos compondo com ele que nos reinventamos ereinventamos o mundo.

NOTAS SOBRE OS AUTORES

Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, fIlósofo e ativista político, au-tor entre outros de A Revolução Molecular (Brasiliense, 1985), O Inconscien-te Maquínico (Papirus, 1988) e As Três Ecologias (Papirus, 1989). Publicoucom Gilles Deleuze O Anti-ÉdiPo (Imago, 1978),Mille Plateaux (Ed. 34,1995) e O Q,ueÉ a Filosofia? (Ed. 34, 1994).

Pierre Lévy é fIlósofo, historiador das ciências e especialista das no-vas tecnologias de informática. Atualmente é professor na University ofOttawa, Canadá. Publicou notadamente As Tecnologias da Inteligência (Ed.34, 1993), O OJteÉ o Virtual (Ed. 34, 1995), Cibercultura (Ed. 34, 1999).

Bill Viola é artista, músico e videasta. Sua obra soma mais de cinqUen-ta instalações e vídeos, além de ensaios e entrevistas. Trabalha fundu-mentalmente com toda a diversidade de recursos tecnológicos dispo-níveis.

Francisco Varela (1946-2001), biólogo, diretor de pesquisa no labor·tório de neurociências do CNRS (Paris) e co-fundador da teoria d u·topoiese em biologia teórica. Autor de The Tree of Knowledge (19H~) 11"Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience (1994).

Luiz Orlandi é fIlósofo, autor de A Voz do Intervalo (Ática, lfJSl),de Malquerença (Boletim IFCH/Unicamp) e vários artigosobra de G. Deleuze. Traduziu, deste auto], A Dobra: L,th, ~ , O '"'11'...1""(Papirus,1991), O Bergsonismo (Ed. 34, 1999) e com a col

187

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188. SOBRE OS AUTORES

berto Machado Diferença e Repetição (Graal, 1989). Coordena atualmenteo curso de graduação em Filosofia da Unicamp.

Gilbert Simondon (1924-1989) é filósofo, autor de Du Mode d'Existencedes O~jets Techniques (1958), L'individu et sa Genese Physico-biologique (1964)e L'Individuation Psychique et Collective (1989, póstumo).

Gilles Deleuze (1925-1995) é filósofo, autor entre outros de Diferença eRepetição (Graal, 1989) e Conversações (Ed. 34, 1993). Publicou com FélixGuattari O Anti-Édipo (Imago, 1978),Mil Platôs (Ed. 34, 1995) e O QJle Éa Filosofia? (Ed. 34, 1994).

Franco Berardi (Bifo),militante e teórico italiano, foi fundador da Rá-dio Alice, experiência alternativa inspirada na leitura que Deleuze fezde Lewis Carroll em Lógica do Sentido. Pesquisa atualmente as relaçõesentre a questão social e a utilização das novas tecnologias. Publicou,entre outros, Come si Cura il Nazi; Lavoro Zero e Neuromagma (Castelvec-chi, Roma).

Raymond Bellour, diretor de pesquisa no CNRS (Centre National dela Recherche Scientifique), trabalha sobre literatura, cinema e vídeo. Éautor entre outros de: L' Analyse du Film (1979), Henri Michaux ou uneMésure de l'Étre (1986), Passages de 11mage (1990, org.), e animador darevista de cinema Trafic, da qual foi co-fundador.

Michael Hardt é filósofo e professor na Universidade de Duke (E.U.A.).É autor de Gilles Deleuze - um Aprendizado em Filosofia (Ed. 34, 1996), e,com Antonio Negri, de Labor ofDionysus: A Critic ofState-form (Universi-ty of Minnesota Press) e Império (Record, 2001).

Mauro Sá Rego Costa é doutor em Educação pela UFRJ, professor doPrograma de Pós-graduação do Conservatório Brasileiro de Música eda Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, UER]. É membrofundador da Universidade Livre do Rio de Janeiro.

Liliana da Escóssia é professora do Departamento de Psicologia dalJFS, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutoranda do Insti-(u(o de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, (UFRJ),lLulOrll de Relação Homem-Técnica e Processo de Individuação (Editora UFS,I!)!)!).

SOBRE OS AUTORES • 1H9

Peter Pál Pelbart é filósofo e professor na PUC-SP. É autor de O Tem-po Não-Reconciliado (Perspectiva, 1998), A Vertigem por um Fio (Iluminu-ras, 2000) e Vida CaPital (Iluminuras, 2003), entre outros. Traduziu, deGilles Deleuze, Conversações, Crítica e Clínica e parcialmente Mil PlatôsvoI. 5 (Ed. 34).

Rogério da Costa é filósofo, engenheiro de sistemas, professor doPós- Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e do Depar-tamento de Ciência da Computação da mesma universidade. Organi-zou Limiares do Contemporâneo (Escuta, 1993), e é autor de L'Ontologie duContingent (Presse Universitaire du Septentrion, 1999) e Cultura Digital(Publifolha, 2002).

FONTES DOS ARTIGOS TRADUZIDOS

"O comunismo da imanência", de Toni Negri & Félix Guattari, "Au delàdu retour à zero", Futur Antérieur, n.O4, inverno de 1990.

"Plissê fractal", de Pierre Lévy, "Plissê fractal", Chimeres n.O22, Paris,1994.

"A paixão das máquinas", de Félix Guattari, "A propos des machines",Chimeres n.oI9, Paris, 1993.

"Da linguagem zaum à rede tecnomaya", de Franco Berardi, inédito,1992.

"Gênese do indivíduo", de Gilbert Simondon, L'individu et sa génilst!fiI/ysico-biologique, "Introduction", Paris: Aubier, 1989.

"A propósito de Simondon", de Gilles Deleuze, "Gilberl SlnllllldClll1l'individu et sa génese physico-biologique", Revue philosopltiqUD dI ,,,"~ ,et de ['étranger, voI. CLVI, n.O13,janeiro-março de 196(;.]n III lutemente na coletânea de G. Deleuze, L1le Deserte et autre.f texl,., C I' I

David Lapoujade, a sair no Brasil pela Editora Iluminur UI,

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190. FONTES DOS ARTIGOS TRADUZIDOS

"O reencantamento do concreto", de Francisco J. Varela, "The Reen-chantement of the Concrete", Zone n.O6, Nova York, 1992.

"Amáquina-cinema", de Raymond Bellour, "La machine-cinema", Ca-tálogo Le temps des machines, Paris, 1990.

"O som de uma linha de varredura", de Bill Viola, "Le son d' une lignede balayage", Chimeres n.O11, Paris, 1991.

''Affective Labor", de Michael Hardt, inédito, 1998.

SAÚDELOUCURA

TÍTULOS EM CATÁLOGO

SaúdeLoucura 7,Antonio Lancetti et aloDesinstitucionalização, Franco Rotelli et aloSaúdeLoucura 2, Félix Guattari, Gilles Deleuze et aloSaúde Mental e Cidadania, Regina Giffoni Marsiglia et aloHospital: Dor e Morte como Oficio, Ana PittaCinco Lições sobre a Transferência, Gregório BaremblittA MultiPlicação Dramática, Hemán Kesselman & Eduardo PavlovskyLacantroças, Gregório BaremblittSaúdeLoucura 3, Herbert Daniel,Jurandir Freire Costa et aloPsicologia e Saúde: Repensando Práticas, Florianita Coelho Braga Campos (org.)Saúde Mental e Cidadania no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde, Maria E.X. Kalil (org.)Mario Tommasini: Vida e Feitos de um Democrata Radica4 Franca Ongaro BasagliaSaúdeLoucura 4, Antonio Lancetti, Gregório Baremblitt et a!.Saúde Mental no Hospital Geral: Espaço Para o Psíquico, Neury Botega & Paulo DalgalarrondoManual de Saúde Menta4 Benedetto Saraceno, Fabrizio Asioli e Gianni TognoniReabilitação Psicossocial no Brasi4 Ana Pitta (org.)Assistência Social & Cidadania, Antonio Lancetti et aloSaúdeLoucura 5, Gregório Baremblitt et aloSaúdeLoucura 6, André do Eirado Silva et alo(orgs.)Princípios Para uma Clínica Antimanicomial e Outros Escritos, Ana Marta LobosqueSaúdeLoucura 7 (Saúde Mental e Saúde da Família), Adib Jatene, Antonio Lancetti et aloConsumo de Drogas: Desafios e Perspectivas, Fábio Mesquita & Sérgio Seibel (orgs.)A Reforma Psiquiátrica no Cotidiano, Angelina Harari & Willians Valentini (orgs.)