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Cadernos do GIPE-CIT N. 3 Os Novos Dramaturgos Gil Vicente Tavares e Cláudia Barral Fev– 1999 Coordenação Geral do GIPE-CIT Armindo Bião Equipe de Editoria Christine Greiner (coordenação), Luiz Cláudio Cajaiba e Renata Pitombo Diagramação Antonio Firmo Capa André Mustafá Revisão Arthur Brandão Juliana Gutmann Universidade Federal da Bahia GIPE-CIT. Escola de Teatro. Programa de Pós- Graduação ISSN / 1516 – 0173 Cadernos do GIPE-CIT. Salvador, n. 3, p. 7-82, fev. 1999

Cadernos do GIPE-CIT N

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Page 1: Cadernos do GIPE-CIT N

Cadernos do GIPE-CIT N. 3

Os Novos DramaturgosGil Vicente Tavares e Cláudia Barral

Fev– 1999Coordenação Geral do GIPE-CIT

Armindo Bião

Equipe de EditoriaChristine Greiner (coordenação), Luiz Cláudio Cajaiba e

Renata Pitombo

DiagramaçãoAntonio Firmo

CapaAndré Mustafá

RevisãoArthur BrandãoJuliana Gutmann

Universidade Federal da BahiaGIPE-CIT. Escola de Teatro. Programa de Pós-

Graduação

ISSN / 1516 – 0173Cadernos do GIPE-CIT. Salvador, n. 3, p. 7-82, fev. 1999

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Ficha Catalográfica

Cadernos do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Escola de Dança. - n. 1, nov. 1998. - Salvador: UFBA/ PPGAC, 1998 –

n ; 21cm.IrregularISSN 1516 - 0173 1. Teatro-Periódicos. 2. Dança-Periódicos.

3. Etnocenologia-Periódicos. 4. Contemporaneidade e Imaginário-Periódicos. I. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas.

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Cadernos do GIPE número 3

Os novos dramaturgos

Sumário

APRESENTAÇÃO...................................................................

.................................7

PARTE 1 – GIL VICENTE TAVARES

ATO ÚNICO (PEÇA EM 1 ATO).................................................8

CANTO SECO (PEÇA EM 1 ATO)............................................16

OS JAVALIS (PEÇA EM 1 ATO)...............................................33

QUARTOS – QUATRO MONÓLOGOS SOBRE SOLIDÃO...............56

MONÓLOGO 1 (SEM TÍTULO).....................................56

MONÓLOGO 2 (SEM TÍTULO).....................................63

MONÓLOGO 3 (SEM TÍTULO).....................................68

MONÓLOGO 4 (SEM TÍTULO).....................................73

PARTE 2 - CLÁUDIA BARRAL

A CONVERSA DE LUCILA......................................................78

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Apresentação

Cadernos do GIPE número 3 reúne uma coletânea de textos inéditos de dois jovens dramaturgos baianos: Gil Vicente Tavares e Claudia Barral.

Gil Vicente, filho do poeta e escritor Ildásio Tavares, tem 21 anos, é também músico e aluno de Direção da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

Cláudia Barral, 19 anos, aluna do curso de direção da Escola de Teatro da UFBA tem se destacado entre os talentos da nova dramaturgia baiana.

A coleção de Cadernos do GIPE vem publicando ensaios e artigos de pesquisadores ligados ao Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia e, a partir deste número, amplia as suas possibilidades de atuação no meio editorial com esta reunião de textos teatrais que deverá ter prosseguimento, divulgando a obra de novos autores, para fertilizar, não apenas os meios acadêmicos, mas também os artísticos onde, a cada dia, os conhecimentos teórico-práticos parecem mais enamorados.

Mais do que uma proposta para o futuro, que os nossos leitores entendam este nosso desejo de divulgar os novos talentos como um convite e que nos enviem os seus textos inéditos para que sejam analisados e publicados!

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Christine Greiner, coordenadora editorial do GIPE-CIT

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Parte 1 – Gil Vicente TavaresAto Único (peça em 1 ato)

Personagens:

Mulher AMulher B

“Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nela ia.”(Fernando Pessoa, Mensagem).

ATO ÚNICO(Mulher sentada. Uma das mãos enfaixada. Costura uma colcha.)

A - Ela não chegou. Já se passam duas horas e ela ainda não chegou.(Pausa). A porta entreaberta vai permitir que ela entre sem que me incomode. De ladrão não tenho medo, botei tudo no seguro. O relógio está quebrado. O cavalinho de vidro poderia até ser roubado, mas com a luz apagada ninguém vai ver. Sorte minha.(Pausa). No escuro ela não vai conseguir enxergar...(Barulho de vidro quebrando).

B (De fora) - Ôh de casa. A porta estava aberta...

A - A mesinha...

B (Entra) - Me desculpe, a luz estava apagada e...

A - Pode sentar.(Aponta a cadeira. B senta-se). Quantos anos?

B - Quem, eu?

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A (Olha pra ela) - Menos de trinta, suponho!?

B - Mais ou menos.

A - Não parece. Achou a cadeira confortável?

B - Sim.(Pausa). Olha, eu trouxe as rosas que você pediu.

A - Que rosas?(Sorri pra si mesmo).

B - Vermelhas, rosas vermelhas. Deixei lá na frente, perto do piano. Tem algum problema?

A - Você ainda estuda música!?

B - Acabei de ganhar um concurso. Meu pai ficou muito orgulhoso.(Pausa). Isto foi no ano passado, um pouco antes de...

A (Larga a costura friamente, interrompendo) - Fale-me de seu pai.

B - Ele é bonito, alto, charmoso. Está um pouco pálido por causa dos remédios que ele toma...

A (Cortando) - Fale-me da vida de seu pai.

B - Todos os dias, uma mulher de branco troca suas roupas e lhe dá comida. Ele só sai de casa aos domingos. Vai ao Jockey-club em sua cadeira de rodas e aposta sempre no cavalo errado. Ele adora cavalos. No dia em que ganha alguma coisa, leva rosas pra minha mãe. Rosas vermelhas!

A - Você gosta de rosas vermelhas?

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B - A primeira vez que eu ganhei foi de um namorado meu. O único. A gente nunca tinha se beijado, mas nesse dia eu agarrei ele e...(Pausa). Depois disso ele ficou com medo, eu cresci, fiquei feia e ninguém mais me mandou rosas, de qualquer cor que fosse. Só meu pai, quando as levava pra casa, é que me fazia lembrar o cheiro do primeiro beijo, com gosto de chiclete. Era moda na época. Beijar com chiclete.(Pausa). Depois eu vi a porcaria que era. Aliás, meus pais estavam certos. Beijar na boca é uma porcaria danada. É nojento. Minha mãe disse que José e Maria nunca beijaram de língua.

A - Eu já. E com chiclete...

B - Você gostou?

A - Você gostou?

B - A única coisa que eu gostei na vida foi de meu pai ter morrido. Nunca mais vou sentir o cheiro das flores me perseguindo, impregnando a casa toda...

A - Você não me falou da morte de seu pai. Ainda há pouco...

B - Foi hoje. Um pouco antes de eu vir pra cá. É por isso que eu estou de preto. Minha casa está toda de luto.

A - E sua mãe, não se abalou com a notícia?(Pega a costura do chão e volta a costurar).

B - claro que não, se foi ela quem matou!?

A - Ela o quê?

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B - Foi. Foi por amor. Disse que não agüentava mais ver meu pai sofrendo, indo ao Jockey, essas coisas...

A - Você ajudou?

B - Mais ou menos. Fiquei lá embaixo, na sala de visitas, conversando com a mulher de branco, enquanto minha mãe sufocava ele.

A - Com o travesseiro.

B - Isso, exatamente!

A - De quem era o travesseiro?

B - Meu, por quê?

A - E você vai conseguir dormir nele depois de tudo o que aconteceu?

B - É claro que não. Vou lavar ele com bastante cuidado pra sair a baba, o sangue. Eu sempre fui muito asseada.

A - E você sabe lavar uma fronha...

B - No melhor aniversário de minha vida, minha mãe disse que eu podia ir ao Jockey com meu pai. Ela me arrumou toda, dos pés a cabeça. Botou um vestido vermelho em mim e um laço de fita no cabelo. Eu odiava trança, porque ficava puxando minha testa e dava dor de cabeça. Pedi pra minha mãe fazer um rabo de cavalo, já que estava indo ao Jockey e ela aceitou a desculpa. Toda festa que tinha eu sempre usava o mesmo vestido. Era amarelo...

A - Rosa.

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B - Não, vermelho! Vermelho como suas rosas...

A - Continue.

B - Está bom. Onde foi que eu parei mesmo? Eu estava falando...

A - Da festa.

B - Isso! Pois é, nesse dia teve bolo, bola de soprar, minha mãe tinha convidado um bocado de gente. Meu pai que não gostava. Era chato pra ele pois não podia sair do quarto. A mulher de branco ia embora cedo e não tinha quem cuidasse dele.

A - E sua mãe? Não podia levar ele pelo menos até a sala? Ele fazia o quê à noite?

B - Geralmente eu ia estudar piano e ele ficava ouvindo. Ele odiava música...

A - E por que te ouvia?

B - Não tinha outro jeito, ele e o piano eram pesados demais pra eu ficar carregando de um lado para o outro.

A - Você não terminou a história do Jockey...

B - Ah, sim, já tinha até me esquecido. O dia mais feliz da minha vida! Eu sempre tinha sonhado em ver um cavalo de verdade, assim, na minha frente. Aqui na cidade a gente de vez em quando esquece que existe muita coisa por aí que respira, anda, precisa comer. Eu fiquei impressionada quando vi um cavalo comendo. Pra mim ele só servia pra correr, só sabia fazer isso. Era costume de meu pai visitar os cavalos. Ele sabia o nome de todos, mas o

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preferido dele era o “Sargento”, um cavalo bonito, todo branco; era o mais manso também. Deixou eu alisar a cabeça dele e até me deu um beijo. Meu pai sorriu e me levou pra tribuna de honra, porque ia começar a corrida. Lá de cima deu pra ver o “Sargento”, com uma espécie de roupa toda verde, igual ao meu vestido. Meu pai disse que daria sorte. Eu segurei no vestido e comecei a torcer de olho fechado. Só dava pra ouvir os gritos de meu pai. A cadeira de rodas dele ia pra frente e pra trás, e ele gritando mais alto, cada vez mais alto, meu ouvido já estava doendo quando de repente ele calou. Ficou aquele silêncio e eu comecei a abrir o olho, bem devagarinho. Meu pai estava rasgando o bilhete com um olhar de raiva e tristeza. Olhei pra minha mão e vi um pedaço do vestido, a bainha estava toda descosturada. Meu pai olhou pra mim e deu um sorriso.

A - Só isso?

B - Depois a gente foi tomar sorvete. Tinha que ser rápido pois minha mãe não gostava que meu pai chegasse tarde, ainda mais hoje, que era meu aniversário e eu tinha que tomar banho pra botar meu vestidinho amarelo. Meu pai tirou uns trocados do bolso, pagou o sorveteiro e me deu o resto pra comprar tudo de doce. Comprei um monte de chiclete e fui pra casa. Meu pai disse pra guardar pra depois da janta senão minha mãe ia brigar. quando cheguei em casa, minha mãe tinha ido ao cemitério. Era dia de finados e ela sempre visitava o vovô. Levava rosas e conversava com ele.

A - Como é que você sabe que ela conversava com o morto?

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B - Porque eu já fui com ela. No início eu estranhava, ficava ali, sem ter o que fazer; até que achei um menino da minha idade pra conversar também. Na verdade não era conversa, porque só quem falava era eu. O menino ficava quieto o tempo todo. Minha mãe disse que ele tinha morrido entalado, talvez seja por isso. Talvez ele também não gostasse muito de conversa. Será?

A - E os chicletes, você fez o que com eles?

B - Meu pai estava tomando sopa. Ele me chamou só que eu não fui. Estava sem fome mesmo. Peguei os chicletes e botei todos na boca...

A - E a festa, o bolo, sua mãe tinha esquecido?

B - Botei todos na boca... de vez... A - O vestidinho, os convidados?

B - Cheguei a pensar que ia ficar entalada, mas o cheiro do chiclete começou a ficar cada vez mais forte e aí me esqueci de tudo, só conseguia lembrar do meu primeiro beijo... minha mãe nunca soube... um beijo... com chiclete...

A - Você gostou?

B - Você gostou?

A (Para com a costura) - Você não gostaria de saber.

B - Ah, conta vai!

A - Não insista!

B - Conta!

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A - Pare.

B - Por favor...(Pausa).

A - Está bem, eu conto. Mas antes traz as rosas.

B - Rosas vermelhas! Pode contar enquanto eu pego na sala. (Se levanta e vai saindo). Pode falar que eu estou ouvindo.

A - Meu primeiro beijo... meu pai era militar e quase nunca parava em casa. Quando aparecia era bêbado, fardado ainda, sempre mascando alguma coisa. Tinha a maior curiosidade de saber o que era, e descobri da pior forma possível. Aproveita que está aí e traz uns panos que eu deixei na cozinha...

B (De dentro) - Pode continuar que eu estou ouvindo.

A - Eu tinha começado a aprender piano. Toda vez que eu sentava pra estudar e meu pai estava em casa, ele vinha atrás de mim, com a desculpa que ia me ouvir tocar. Ele então sentava do meu lado, conferia se minha mãe estava na cozinha, e ia se aproximando de mim, cada vez mais perto, até que sua perna roçava na minha, sua arma me machucando, e começava a me tocar por debaixo da saia, beijava meu pescoço, minha boca, meus seios...

B (De dentro ainda) - Não achei os panos na cozinha não, vou ver se está na área de serviço.

A - Era sempre assim. O cheiro do álcool misturado com o suor da farda me davam mais nojo ainda. Pra mim, aquilo tudo era muito estranho. As poucas vezes que sua boca estava livre era pra me mandar

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continuar tocando. Ele dizia que se eu contasse pra mamãe, que ele ia me bater. Eu não sabia o que era pior.(Pausa). Até que um dia minha mãe descobriu tudo. Ela pegou o vaso de flores, enquanto meu pai me bolinava, e partiu pra cima dele. Meu pai viu a tempo e sacou a arma. Minha mãe parecia tão enfurecida que nem percebeu e continuou. Ele se apoiou no piano, deixando um acorde dissonante no ar, e atirou nela. Na mesma hora ela caiu.(Se concentra na costura). O vaso, as flores, o sangue, minha mãe tão mansa...(Pausa). Depois disso nunca mais vi ninguém, nunca mais ouvi ninguém... Agora eu costuro.

B (De dentro) - Não consegui achar os panos ainda. Quer que eu procure em outro lugar? Talvez no...

A - Olha...

B (Ainda de dentro) - Diz.

A - Já que está aí na sala, aproveita e toca uma música pra mim...

B - E as rosas?

A - Depois.

B - Se você prefere.(A sorri e B começa a tocar. A música vai aumentando à medida que A vai se exaltando).

A - Você toca bonito. Muito bonito mesmo. É lindo demais, lindo demais...(A música é cortada bruscamente)

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C (Que será a mesma pessoa B, só que agora com outra maquiagem e vestida de enfermeira, ainda de dentro) - Falando sozinha de novo?

A - Hã!?

C (Entrando) - Eu conversei com o doutor, e ele disse que é perigoso botar outro espelho no seu quarto. (A olha a mão enfaixada). Parece que você vai perder seu eterno companheiro de conversa. (Coloca um xale em A e tenta lhe tomar a costura, A impede). Vamos dormir, sua cama já está pronta. (C sai amparando A carinhosamente até saírem de cena. A luz vai abaixando).

(CAI O PANO)

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Canto Seco (peça em 1 ato)

PERSONAGENS:

ZÉTONHAHOMEM

“Ora, nesse catar feijão entra um risco:o de que entre os grãos pesados entreum grão qualquer, pedra ou indigesto,um grão imastigável, de quebrar dente.Certo não, quando ao catar palavras:a pedra dá à frase seu grão mais vivo:obstrui a leitura fluviante, flutual,açula a atenção, isca-a com o risco.”(João Cabral de M. Neto, Catar Feijão)

ATO ÚNICO(Casa pobre à esquerda do palco. Ambiente

bastante seco, árido. ZÉ e TONHA já se encontram em cena, no black, com jarros na mão. Luz.).

ZÉ- Larga o seu primêro, Tonha. Num tem corage?

TONHA- E vô tê medo de quê, Zé? A mãe deve de tá drumino.

ZÉ- É, mais isprito do pai vorta e briga...

TONHA- Briga? Briga não, nós num tem curpa de num tê achado água...

ZÉ- Mãe deve de tá cum sede!

TONHA- Isprito do pai briga nada... (Pausa).

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ZÉ- Ói? Você ouviu? É agôro de pássaro. Deve de tá triste também...

TONHA- Que nada. Se quisé ele voa prôto canto. (Pausa).

ZÉ- Nós num tem mais força, né Tonha?

TONHA- Mais força que a mãe nós tem. (Pausa).

ZÉ- Ouviu de novo?

TONHA- Tu tá é variano, Zé. Leva os pote lá pa dentro.

ZÉ- E s’eu acordá a mãe?

TONHA- Mãe qué acordá nada! (ZÉ entra com os potes enquanto TONHA fica cavando a terra). Botô onde? Num disarruma a casa não que mãe reta, viu!

ZÉ (Voltando)- Tá fazendo o quê? Ê terra seca, né!? Parece a farinha da mãe. (Pausa). Eu quiria ir na cidade. (Senta ao lado de TONHA).

TONHA- Pra quê? Tu nunca foi lá.

ZÉ- Purisso mermo.

TONHA- Tu já foi no céu?

ZÉ- Não!?

TONHA- Tu qué ir pra lá? (ZÉ se levanta). Parece a farinha da mãe. Tá cum fômi? A cidade deve sê bunita. A mãe disse que tem um monte de bicho pela rua...

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ZÉ- Tudo vivo?

TONHA- É, Zé! (Pausa). Sabe a carcaça do jegue? Nem urubu vem mais. Tô cuns ombro me dueno.

ZÉ- Tá cum fômi? Tinha urubu no riacho, antes de pai morrer. Tu viu os urubu na cruz do pai?

TONHA- Deus benza. É só rezá. Deve de ser agôro de pássaro. (Bate na boca). Ôxi, tô ficando iguar você. Deus benza.

ZÉ- Tu já viu Deus? (TONHA o olha desconfiadamente). Bença só dá quem tem mão.

TONHA- Isprito do pai é diferente...

ZÉ- Tu pede bença à ele?! Mãe num gosta, cê sabe! (Pausa). Os pote já tá rachando de seco. Pai morreu tem tempo, né?

TONHA- Lembro não. Tu acendeu as vela que eu pidi onti? Qué que tenha água não?!

ZÉ- Nem santo... (Pausa). Deve ser agôro de pássaro. Onti me cortei em tiririca. Será que sara? Meu joelho parece que tá pôdi. Sangrô pôco mas ficou logo preto. Deu bicho e tudo. Lembra do jegue? O jegue era do pai. Pai morreu junto e dexô nós só. Mãe dorme sempre. Tem que enterrá o jegue pra morrer de vez. Vira ispritu ruim, a mãe falou. Tu já viu isprito do pai?

TONHA- Ôxi, Zé.

ZÉ- Tu num pede bença à ele? Eu qui tô variano...

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TONHA- Pai que ia na cidade. Trouxe santo de mãe e badogue procê. Me arlembro que mãe deu bronca que ele me deu essa correntinha...(Mostra corrente com crucifixo, que não existe).

ZÉ- Ôxi, Tonha, aí num tem crucifixo nenhum, tu deve de ter perdido. Si abaxô no riacho...

TONHA (interrompendo)- Foi pai que levô. Isprito do pai aparece quando tem água.

ZÉ- Tu já viu?

TONHA- Tu lembra do pai? (Pausa).

ZÉ- Não.

TONHA- Nem eu. (Pausa). Vou acendê as vela.

ZÉ- Tu espera o quê?

TONHA- Guardô as vela aonde? Vou contá as moeda da mãe. Acho que as vela acabô. Quem qui compra?

ZÉ- Eu num posso...

TONHA- Tu num disse que queria conhecer a cidade?

ZÉ- Vô lá não. Pai disse que é ruim...

TONHA- Tu tá é com medo...

ZÉ- Tu ouviu o pássaro? Só doido qui vai... deve de sê agôro.

TONHA- Si quisé ele voa prôto canto. Nóis que num pode. (Pausa).

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ZÉ- Mãe tá véa...

TONHA- Pega os pote.

ZÉ- E já deu tempo...? Nóis largô os pote agora.

TONHA- Acende as vela e umbora vê o pai...

ZÉ- Mãe num gosta...

TONHA- Mãe deve de tá druminu.

ZÉ- Vô pegá os pote. (Pausa. ZÉ entra. TONHA começa a cavar, mexer na terra).

TONHA- Zé!

ZÉ(de dentro)- É o que, Tonha?

TONHA- Chega aqui.

ZÉ- Qui foi?

TONHA- Tu ajuda a achar minha corrente?

ZÉ- Tu num disse que pai levou?

TONHA- E si pai botô no jegue? Isprito do jegue num discansô. Pai gostava dele.

ZÉ- Os urubu já deve de ter cumido até o isprito do jegue...

TONHA- Ôxi, Zé. Dêxa de falá bobage. Deus benza. (Pausa).

ZÉ- E Deus vai ficar nessa seca nada.

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TONHA- E deus esquece assim da gente, é!? Mãe disse que santo ninhum larga da gente. É Deus que vai larga, é?!

ZÉ- Será que foi as vela?

TONHA- Vai na cidade, Zé.

ZÉ- Pai num ia gostá.

TONHA- Pai morreu, Zé.

ZÉ- E o isprito!? Sô besta não...

TONHA- Pai qué vê a gente bem...

ZÉ- Pai é Deus, é? (Pausa).

TONHA- Cadê os pote, Zé?

ZÉ- Tudo seco, vai rachá. A poêra tá rachando a gente também... já viu meus pé?

TONHA- O joelho sarô?

ZÉ- Ôxi, tá é coçâno. (Pausa). Urubu canta, Tonha?

TONHA- Sei lá!

ZÉ- Eles deve de tá vortâno. (Pausa). Será que vem pra busca nóis? Tu tem medo?

TONHA- Poêra quando levanta né só bicho não.

ZÉ- E gente vem pra cá!? Mãe num foge cum nóis porque já tá véia. Mãe nem chora mais. (Pausa).

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Tu qué farinha? Vô contá as moeda da mãe. Acho que a farinha acabô.

TONHA- Tô cum fômi não. As vela é que faz farta. (Pausa). Tu ainda anda com esse joelho, Zé?

ZÉ- E como é que sara? Deu nem pra lavá.

TONHA- Se apodrece cai. Os bicho deve tá é ti cumêno por dentro. Que nem cum jegue.

ZÉ- Ôxi, Tonha. Os bicho morri de fômi. Num tem nem mais carne pra cumê...

TONHA- Tu tá mermo muito seco. Também, num cômi. (Pausa).

ZÉ- Tu já viu os santo da mãe como é bunito? Mãe disse que se nóis cumesse direito ficava tudo iguar à eles. Umas cara gorda, né Tonha...

TONHA- Pai até qui tinha cara assim, e mãe também. Tu viu na foto?

ZÉ- Ôxi, as traça já cumeu tudo. Só sobrô os zói de mãe. Ficô de cara triste...

TONHA- E só os zói dá pra vê tristeza?

ZÉ- Sei lá, mãe nunca chorô... (Pausa).

TONHA- Tu já viu chôro, Zé? Diz que parece água do riacho...

ZÉ- O jegue chorô, quando morreu... caia as gota e os urubu já tava comeno ele. Num sei se era dô ou tristeza. Pai morreu primêro... as perna do bicho

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nem batia mais. Acho que o bichinho respirou até os urubu comê o nariz dele.

TONHA- Deve de ter doido...

ZÉ- Tu não viu foi a tiririca... catei mais três bicho hoje de manhã...

TONHA- Tu tem corage de comê?

ZÉ- O nariz ou os bicho?

TONHA- Sei lá! Tu num tem nojo não?

ZÉ- Pai morreu antes, bicho foi junto.

TONHA- Mãe disse que gente quando morre num leva tristeza junto. Acho que pai dexô pro bicho. Jegue deitô pra num levantá mais. Morreu de seco... tu num tem nojo não?

ZÉ- Já matei foi dois urubu com badogue. Teve um que morreu do lado do jegue. Acho que eles morrêro se oiando. Os zôio dos dois tava frio...

TONHA- Frio como, Zé?

ZÉ- Sei lá, chega me deu um arrupeio. Parecia que era os zóio do pai. Os da mãe eu só lembrava na foto. E ói que era assim, paradão, que nem os ôtro. Uma frieza de de noite. Sabe aqueles arrupeio que chega nós se abraça? (Pausa).

TONHA- A poêra tá estranha...

ZÉ- Num disse!? Deve ser arguem. E se fô o pai?

TONHA- Pai morreu, Zé.

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ZÉ- Mãe disse que pai ia vortá. Que eu ia ver pai de novo.

TONHA- Só se fô no céu. Ou sinão vê o isprito. Tu disse que tem medo...

ZÉ- Tenho medo não, se fô isprito do pai... mãe disse que pai era santo...

TONHA- Num tem medo o quê, Zé!? Tu se caga todo de ovi os pássaro cantano. Num gosta de ir na cruz do pai. Tu tem medo até de sombra.

ZÉ- Tenho mermo. Mãe disse que foi isprito ruim que levou o pai. Que pai num fez nada. Pai era homem santo, Tonha. A mãe que dizia. Tu se lembra do pai?

TONHA- Não. (Pausa).

ZÉ- Nem eu. (Pausa).Tu tá sentindo a friage, Tonha? (Pausa). Tu ouviu agora? Pássaro quando canta é agôro ou aviso. Tá com medo não?

TONHA- Ôxi, e mãe tá aí dentro pra quê?

ZÉ- Mãe tá drumino, Tonha...

TONHA- Fale baixo, então. Se mãe acorda ela reta.

ZÉ- Mãe acorda não... (Pausa). Essa pereba me deu moleza. (Encosta em TONHA). Ê sono...

TONHA (empurrando)- Tu vai drumi pra quê, injura? Quê que eu fique só?

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ZÉ- É só cuchilo, Tonha, dêxa de bestage. (Deita de novo).

TONHA- Zé, dormi não...

ZÉ (desfalecendo)- Me dêxa, Tonha... (Ouve-se pela primeira vez um canto de pássaro).

TONHA- Tu ouviu, Zé?

ZÉ- É o quê, Tonha?

TONHA- O canto..?!

ZÉ- Xô drumi, Tonha...

TONHA- É canto de agôro?!

ZÉ- Tu tá é ficano besta! Nesse calô num da pra drumi direito. Só mãe que consegui. (Pausa. Ouve-se mais uma vez o canto, mais alto).

TONHA- Ó pra aí, Zé. Acorda abestado! (Pausa. A luz do ambiente muda discretamente, com súbita ventania). Que é aquilo ali, Zé. Acorda, diabo! (Empurra ZÉ fortemente).

ZÉ (ainda lerdo do sono, olhando TONHA)- Ôxi, deus benza...

TONHA- Ó ali...

ZÉ- Ôxi! (Entra o HOMEM, de certa idade, roupas comuns, carregando uma sacola, traz um leve sorriso).

HOMEM- Com licença. (ZÉ e TONHA se agarram).

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ZÉ- É o quê, hômi? (Se solta de TONHA tentando mostrar coragem e volta).

HOMEM- Calma, só tô de passagem. Sua mãe?

TONHA- Tá lá dentro.

HOMEM- Seu pai?

ZÉ- Se fôr água, veio na direção errada. A cidade é pra lá...

HOMEM- Sou um vendedor.

ZÉ- A sacola é de tralha, é?

TONHA- Zé!?

HOMEM- É sim.

ZÉ- E tu viaja muito per’esse sertão?

HOMEM- Como bom vendedô que sô.

ZÉ- E pra quê veio pará aqui?

HOMEM- Tô vindo da cidade...

ZÉ- Vorta pra lá, ué!

HOMEM- Não dá, já tô indo pra ôtra...

ZÉ (encantado e desconfiado ao mesmo tempo)- Tu já foi ni muita cidade? Mãe disse qui dá medo de tanta gente...

HOMEM- A gente se acustuma. Ela está?

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TONHA- Mãe tá em casa... (Aponta pra casa).

ZÉ- É só entrá.

TONHA (com ZÉ)- Vai dexá ele entrá, é?

ZÉ- Vá lá, moço. (Pra TONHA). Tá cum medo de perder o quê?

TONHA (pra ZÉ)- E si fô ladrão? (Pro HOMEM). O sinhô vende o quê?

HOMEM- Eu vendo tudo que um bom homem precisa, que um bom garoto quer e uma boa menina gosta. Nessas andanças acabei descobrindo os desejo de cada um, e botei tudo no saco. Cada viaje era um novo desejo guardado.

ZÉ- E tu mora onde pra viajá tanto?

HOMEM- Num moro não. Vivo de cidade em cidade, comprando, vendendo, enchendo minha sacola.

TONHA- Posso vê?

HOMEM- A sacola? Claro! (Coloca o saco no chão e começa a tirar coisas).Tem esse espelho aqui... (Os dois correm pra ver).

TONHA- É bunito...

HOMEM- Bunito e resistente. Só tá meio sujo da viaje.

TONHA (pegando o espelho e se olhando)- Ói, Zé, tô bunita?! (ZÉ se aproxima tentando pegar o espelho).

ZÉ- Cadê!?

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TONHA (empurrando)- Pra quê vai vê esse rosto sujo, seco. Tu é feio mermo, Zé...

ZÉ- Ôxi, Tonha, e precisa falá assim... só quiria vê meu rosto... pra vê s’eu pareço cum pai... (se afasta tristemente).

TONHA- Parece não, pai tinha a cara gorda... (continua se olhando no espelho).

HOMEM- Tem também esse porta-retrato. Comprei agora, nessa cidade que’u passei.

TONHA (pra si)- Eu fiquei foi fêa nesse espêio. (Puxa o porta-retrato). Vem, Zé! (ZÉ, que estava triste, meio afastado pela questão do espelho, se reanima e volta pra perto da irmã). Umbora ficá assim que nem na foto. (Sorri.Olha pra ZÉ). Ri também abestado. É pra fingí que é nóis na foto. Finge que é espêio... (Os dois se olham e olham pra foto, sorrindo. Concomitantemente, o HOMEM tira algumas peças de roupa, entre elas um paletó e um vestido).

TONHA- Dêxa a gente vistí as rôpa, moço?

HOMEM- Só tenha cuidado. É tudo rôpa elegante. (Eles pegam as roupas alegremente e se vestem). Ficou bem em vocês... (ajuda-os a vestir). Vocês tão ótimos. Parecendo gente grande, da cidade. Que nem o casal da foto...

TONHA (se olhando e olhando ZÉ)- Ah, num gostei não. Nóis num presta pr’essas rôpa. Tira, Zé, qu’eu num gostei não...

ZÉ (tirando)- Ôxi, Tonha, é assim, bota e tira, é?!

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HOMEM (mexendo na sacola e fechando algo na mão, enquanto os dois tiram as roupas do vendedor)- Talvez disso você goste... (abre a mão e mostra uma corrente com crucifixo).

TONHA (puxando a corrente, avidamente)- Xô vê!

HOMEM- Calma, calma...

ZÉ- O senhor vende vela, farinha...?

TONHA- Calaboca, Zé! A corrente é quanto?

HOMEM- Ela é cara, de ouro, foi de uma princesa. Uma princesa muito rica e bunita. Bunita assim como você...

TONHA (encabulada)- Ôxi, moço... (Olha a corrente). Ela é linda! Posso botar só um pouquinho..?

HOMEM- Claro. Fique a vontade. (Ajuda a colocar a corrente).

ZÉ- Ói, Tonha, tem um crucifixo...

TONHA (ignorando ZÉ)- Vem, vem vê minha mãe... (Puxa-o pelo braço levando-o pra dentro de casa).

ZÉ (Advertindo, enquanto os dois entram)- Tonha, pode acordar a mãe... (Pausa). Mãe reta. (Mexe na sacola). Ói, tem um badogue bonito. Deve de ser mió que o meu. (Pega uma pedra e atira no próprio chão). É bom. Assim mato até no céu. Vou vê chuva de verdade, chuva de urubu! (Ri de felicidade). Tonha! Ói que buniteza... ôxi, Tonha nem responde. Vou ispantá os urubu todo da cruz

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de meu pai. Num vô nem tê medo dos urubu cumê meu joelho. Mato tudo. (Os dois voltam).

TONHA- Ele esqueceu a sacola.

ZÉ- Dêxa o badogue aqui, tá bom?

HOMEM- Tudo bem. Você gostou?

ZÉ- Desse aqui, mato até no céu. Era de príncipe esse badogue?

HOMEM- Mais ou menos. Ele é realmente muito bom, mas é caro também. Vai lhe custar muito.

ZÉ- Num custô pro sinhô chegá aqui? Pois intão! É custo pur custo. (Atira, cai na real, desanimado). Mas nóis num tem dinheiro não...

TONHA- Tem sim...

ZÉ- É dinheiro da mãe, Tonha!

HOMEM (pega uma lata vazia na sacola, colocando esta no ombro)- Tome essa lata.

ZÉ- Ôxi, pra quê, hômi?

HOMEM- Pra você atirar. Vê como ele é bom.

ZÉ- Brigado, moço. (Vai preparar a lata. TONHA pega o homem pelas mãos).

TONHA- Vâmu, vâmu! (Leva de novo o homem pra dentro).

ZÉ- Tonha! A mãe acordou? (Pausa).Ôxi! Tá tão animada que nem ôvi. (Atira na lata). Êta que faz

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um zuadêro retado. (Atira de novo1). A mãe num deve acordar assim não. (Atira). É baruio pôco. Mãe tá num sono solto, acorda nada! (Atira). Vô rebentá a lata tôda. Esbagaçá. (Atira). Parece baruio de sino da igreja! Mãe que falô. Iguar panela quando cai, deve até de sê bunito. (Atira). Pai quando morreu num teve nem desse nem de ôtro sino. Só os urubu na cruz. (Atira). Vô botá mais longe, parecendo os urubu no céu. (Levanta e coloca a lata mais longe). Vô vê chuva de verdade! Êta que os urubu se camparam... (Finge atirar para o alto, em desvario). É só os urubu caíno. Êta porra! Cada um prum lado! Ê lasquêra! (Entra TONHA sorridente segurando algo ao pescoço). Ôxi, Tonha, cadê o hômi?

TONHA- Saiu pela porta do fundo. Disse que ia siguí viaje.

ZÉ- Ôxi, hômi vêio que nem vento.

TONHA- Tá quente, né Zé?!

ZÉ- E isso? (Aponta para seu pescoço).

TONHA (com um sorriso)- Me dêxa, Zé!

ZÉ- Ele esqueceu o badogue!

TONHA- Dêxa!

ZÉ- Será que eu ainda pego ele?

TONHA- Dêxa pra lá, Zé!

ZÉ- Mas e o badogue?1 Cada tiro deve ser acompanhado de determinada ação que faça o tempo passar ainda mais. Algo como o preparativo para o tiro e o acerto da lata.

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TONHA- Fica com ele, abestado.

ZÉ- Ele disse que era caro, que ia custá muito. E isso no seu pescoço?

TONHA- Cê é besta, Zé!?!

ZÉ (se aproximando)- É a corrente, não é?

TONHA- Me dêxa, Zé!

ZÉ- Xô vê! (Tenta pegá-la).

TONHA- Sai!

ZÉ (agarrando-a)- Larga isso aí! (Arrancando). Tu robô, Tonha?!

TONHA- Deus benza, que nóis nunca precisô disso, Zé.

ZÉ- Num mete Deus nas sua trapaiada. (Olhando a corrente). É a corrente de princesa! O hômi disse que ia custá muito, mais que o badogue. Tu comprô cum dinheiro da mãe, num foi?

TONHA- Num servia pra nada...

ZÉ- E as vela, comprô?

TONHA- Pra quê?

ZÉ- Pra quê?!

TONHA- É, já tem o crucifixo, num precisa vela não...

ZÉ- Mas e o santo da mãe?

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TONHA- Num precisava de vela não. Agora tem o crucifixo, minha correntinha...

ZÉ- Tu tá doida. Comprô a farinha?

TONHA- Tu num ficô com o badogue? Mate seus urubu. Tu num come mermo!

ZÉ- O quê que a mãe disse? Acordô?

TONHA- O moço disse que a mãe num acorda mais não. Desde muito tempo que ela drumiu. Chega fedeu quando eu cheguei perto. Os zôio frio que nem você falou da foto...

ZÉ- Foi da foto não... (Pausa).

TONHA- Mãe disse que tirou a foto cum pai na cidade. Ela só foi uma vez. Disse que pai era vendedô lá. É por isso que trôxe presente. A foto também. Mãe disse que pai era bunito, se vestia muito bem, mas morreu cedo. Pai até tinha dinheiro. Pai comprava coisa pra gente e pra mãe, lembra?! (Brinca com a corrente).

ZÉ (de costas, como que não querendo ouvir a história do pai, atirando no chão com o badogue)- Tu deu o dinheiro todo?

TONHA- A corrente é linda, não é. Tu gostô?

ZÉ (se reanimando, olhando o badogue)- O badogue é retado mermo... se eu atirar nos pote, quebra tudo... os urubu vai saí tudo de meu pai. Tu vai querer matar também?

TONHA- Pega os pote lá dentro, Zé.

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ZÉ- Tu ouviu? O pássaro nem tá cantando. Deve di tê água.

TONHA- Pega os pote, Zé. (Brinca com a corrente).

ZÉ- Mãe fedeu mermo, Foi? Deve de sê iguar chêro do jegue. Deve de ser farta d’água. Mãe só faz é drumi de sede. Nem santo prela acordá. Se nóis trussé água!? Mato os urubu tudo.

TONHA- Pega os pote. (Continua a brincar).

ZÉ- O badogue é lindo. Só os urubu que num vai gostá. (Anda em direção a casa e sente o joelho). Ai. (Mexe no joelho, como que catando algo). Só achei um bicho essa manhã. Tenho medo não. No riacho é cheio dos bicho. O pai deve de tá lá, junto com o jegue, cheio dos bicho, iguar meu joelho. No riacho num fica mais bicho ninhum. Mãe deve de tá fedendo. Vou pegá os pote. (Se encaminha em direção à casa).

TONHA (brincando com a corrente)- É linda, né Zé?

ZÉ (parando subitamente)- Tu ôviu? O pássaro cantô. Vai acordá a mãe... (BLACK).

CAI O PANO

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Os Javalis (peça em 1 ato)

Personagens:

HOMEM a, homem acima de 40 anosHOMEM b, homem acima de 40 anos

“...matam nosso cão...”(Vladimir Maiakovisk)

ATO ÚNICO(Sala de uma casa comum. À esquerda, entrada que dará pra cozinha. À direita, porta que será a saída da casa. Sala cheia de móveis, aparência antiga. O HOMEM a estará em posição de tiro, em direção à cozinha. Veste roupas básicas, calça e camisa, que serão parecidas com as do HOMEM b, com exceção ao paletó. O motivo se tornará óbvio no decorrer da trama. Ouve-se um disparo. A luz abre-se.)

HOMEM a- O tiro de misericórdia. Não adianta a insistência. O prolongamento da espécie deveria ser um procedimento comum à homens e mulheres. Ah, mas no meio tem os problemas, e no meio das pernas o maior deles! (Pausa, guarda a arma que estará em suas mãos). Não suporto visitas. Perco meu tempo discutindo coisas que sempre levarão à morte. Pois sim?! Tudo não leva à morte? Ou vai me dizer que tudo que fazemos, apressadamente, não é para afastá-la? Pois sim. Ainda ontem, tomava chá com minha mãe, em sua casa, quando o vizinho veio pedir açúcar. Odeio armas.

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Ando com elas sempre escondidas. É pra eu não ver o quanto somos ruins. Se eu caçava quando era novo!? Ah, essa é boa. Javalis no meu prato. Em plena cidade tropical. Só podia ficar louco. Um cavaleiro não pode comer comidas perecíveis. Enlatados nem pensar. Talvez por isso não existam cavalheiros hoje em dia. As visitas me perturbam e eu ando armado. Se sou louco?! Essa é boa. Não saio às ruas porque não tenho motivos. Minha mãe faz compras e me traz aqui. Minha vizinha. Ela e a gostosa da frente. Sempre quis comer a vizinha da frente. Javali no dendê. Se saio de casa aos domingos? Minha mãe faz os almoços e convida muita gente. A maioria vem de penetra. Coisa da nossa gente. Você está em uma festa, na sua casa, e acaba como desconhecido. Posso ir ao banheiro? É o que dá vontade de perguntar. Vou ter que limpar a cozinha de novo. Visitas só dão trabalho... (Toca a campainha). Quem é? Deve ser o vizinho pedindo açúcar. (Toca mais uma vez). Já vai! Oh, inferno, são esses vizinhos. (Abre a porta. HOMEM b entre esbaforido).

HOMEM b- Feche a porta, rápido. Os javalis estão chegando...

HOMEM a (estranhando)- Como é que é?

HOMEM b- Os javalis! (Empurrando a porta entreaberta). Aí fora...

HOMEM a (meio irônico)- Javalis? Em nossa cidade?!

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HOMEM b (se explicando)- Foi o que eu disse à eles.

HOMEM a- Faça o favor de se retirar de minha casa. Não te conheço e estou farto de histórias de javali.

HOMEM b- O javali é um porco feroz. Pode nos matar com suas presas.

HOMEM a- Não com a porta fechada...

HOMEM b- A boca do javali não é uma porta, não tem como ser fechada!

HOMEM a- Você quer que eu chame a polícia?

HOMEM b- Os javalis já comeram as cabeças de todo mundo, nessa cidade. Não sobraram nem policiais, nem professores, nem jovens. Só nos resta esperar pelo fim do mundo...

HOMEM a- Espere em outro lugar. Menos na minha casa. Tenho que dar de comer ao meu gato.

HOMEM b- Não há mais gatos e nem gente na cidade. Você não está levando a sério?! Também não acreditei quando vi sua mãe triturada por um deles.

HOMEM a- Não mete a mãe no meio!

HOMEM b- É verdade, experimente ligar pra ela... (se dirige à cozinha, procurando o telefone).

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HOMEM a- Não entre aí! Quero dizer, por favor, esse lugar é área restrita da casa. (Pra si). É por isso que eu não gosto de visitas.

HOMEM b- A história de sua mãe é verdade. Ela inclusive mandou um beijo pra você enquanto era devorada pelos javalis!

HOMEM a- E por quê você não impediu?

HOMEM b- A sociedade protetora dos animais disse que eu estaria agredindo a cadeia alimentar. Disseram que eu tinha que respeitar os animais. Que na Índia a vaca era sagrada. Vê se pode?! O que é bom pra hindu, é bom pra hindu! Mas o engraçado é que quando os javalis partiram pra cima deles, pediram socorro e ajuda pra mim.

HOMEM a- E você ajudou?

HOMEM b- E a cadeia alimentar, fica aonde?

HOMEM a- Mas, vem cá, já que os javalis estavam comendo todo mundo, por quê não te comeram, então?

HOMEM b- Esqueci de dizer. Eu vendo produtos de limpeza naturais. Talvez o cheiro dos produtos não tenha agradado eles.

HOMEM a- Então é daí que vem o fedor?

HOMEM b- Fedor, não. Só não estamos acostumados a sentir o puro sabor da natureza...

HOMEM a- Os javalis, sim, estão até demais...

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HOMEM b(cortando)- Se bem que eu também acho fedorento. Foi o chefe que mandou dizer essas coisas todas. Preciso ganhar a vida. Quer dizer, precisava. Agora que eu vou morar com você aqui, longe dos javalis, longe de tudo, viveremos de suas despensas, até que tenhamos que enfrentar de novo o mal do século.

HOMEM a- Vá embora, homem... deixe de falar bobagem. Tenho um almoço marcado com minha mãe. Hoje é domingo... dia de fazer javali...

HOMEM b- Eles viraram a mesa, homem! Não há mais saídas. Até a vizinha gostosa da frente foi comida.

HOMEM a(irônico)- Ora, eu sempre soube, menos por mim...

HOMEM b- Ligue pra sua mãe. Eu espero. Se ela atender eu saio.

HOMEM a- Que coisa ridícula. Javali ser o mal do século... (pega o telefone, disca, espera). Chama e ninguém atende, deve ter ido comprar o tempero pro javali. (Bate o telefone).

HOMEM b- Viu que eu disse?!

HOMEM a- Que ridículo! Como é que você conhece a vizinha da frente? E como sabe que minha mãe é minha mãe?!

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HOMEM b(mórbido)- Na desgraça todos se conhecem... (se animando). E eu também era vendedor!

HOMEM a- Era? Então entrar em minha casa é uma espécie de carta de demissão?

HOMEM b- Não seja tão rude. Precisamos viver como irmãos a partir de agora. Só existimos nós dois no mundo. Ligue a televisão e verá!

HOMEM a- Não costumo ver televisão. Esse sim é o mal do século. A minha fica na cozinha...

HOMEM b (dirige-se à cozinha)- Então vamos lá...

HOMEM a(barrando sua entrada)- Já lhe disse pra não entrar aí!

HOMEM b- E como veremos a TV?

HOMEM a- Não veremos. É fácil. Eu ficarei em minha sala, esperando minha mãe chegar do mercadinho e você vai se retirar de minha casa.

HOMEM b- Por favor, me entenda! Estamos prestes a morrer. Bem que sua mãe me falou de sua avareza...

HOMEM a- Minha mãe o quê?

HOMEM b- Me disse que você era pão-duro. E olha que isso não foi a única coisa que ela disse.

HOMEM a(Mudando repentinamente de comportamento)- Bem, sente-se. Conte

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um pouco mais. Sempre quis saber o que minha mãe achava de mim.

HOMEM b- Bem, ela me disse... ah, você não gostaria de saber...

HOMEM a- Pode contar, eu estou preparado.

HOMEM b- Ai meu deus... (encarrilhado). Bem, ela disse que não aguenta mais você ir almoçar com ela aos domingos, que você é chato, entrão, que na verdade te odeia, que não sabe como botou um filho assim no mundo e...

HOMEM a(cortando)- Chega, é o bastante. Sempre soube que minha mãe não prestava. Desde o dia em que ela escondeu o doce de goiaba atrás das verduras, na geladeira...

HOMEM b- Sua mãe também fazia isso?

HOMEM a- Pior é que ficava com gosto de coentro depois... vinha com o argumento que era melhor aumentar a goiabada pra depois repartí-la. Nessa história, eu acabava não comendo nunca.

HOMEM b (pra si)- E eu que pensava que javali era o mal do século...

HOMEM a(desconversando)- Você quer ver televisão?

HOMEM b- Daqui a pouco. Conte mais sobre essas atrocidades...

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HOMEM a- É muito doloroso lembrar disso. Você gosta de doce de goiaba?

HOMEM b- Adoro. Minha mãe também o escondia de

mim, e pior é que era atrás da carne de feijão, imagine o cheiro que ficava...

HOMEM a- No mínimo igual a seus produtos de limpeza...

HOMEM b (cortando)- Ainda hoje eu comprei doce de goiaba pra levar pra casa. Só que os javalis comeram todo.

HOMEM a- Que horas foi isso?

HOMEM b- Na hora em que eu tocava na campainha de sua casa. Por isso eu entrei tão afobado.

HOMEM a- Você realmente acha que eu estou acreditando nessa história de javali?!

HOMEM b- Tente ligar pra sua mãe!

HOMEM a(buscando mudar de assunto)- E sua mãe, também já fez javali pra você, alguma vez?

HOMEM b- Nunca comi e nem tinha visto um javali até o dia de hoje. Eles são terríveis!

HOMEM a- Seu gosto também. Sempre odiei os javalis que minha mãe fazia. E a ingrata ainda saia por aí dizendo que sou chato, entrão...

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HOMEM b- Êpa, por aí não. Ela contou isso pra mim em total segredo!

HOMEM a- Você conheceu ela quando?

HOMEM b- Hoje, por quê?

HOMEM a- Você confiaria em alguém que você conheceu hoje?

HOMEM b- Eu confio em você.

HOMEM a- Ora, vamos, fale sério.

HOMEM b- Estou falando sério. De qualquer forma, eu terei que confiar em você. Se não vai ficar parecendo casamento, um porre nossa relação. Estamos ligados pelos sagrados laços dos javalis. Falei bonito?! Sempre treinei pra falar bem. É o primeiro exercício de um bom vendedor. Lembro que eu entrava em fila de banco só pra conversar com as pessoas...

HOMEM a- Deixe de falar bobagem. Não se pode confiar em alguém da noite pro dia!

HOMEM b- Pois eu confio em você e você precisa acreditar, confiar em mim. Duas cabeças lutam melhor contra um javali do que uma só. Pense bem, se sua mãe confiou em mim, você também tem que confiar. Peça a mãe que o filho atende.

HOMEM a- Deixe minha mãe fora disso. (Toca o telefone).

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HOMEM b- Quer que eu atenda? Deve ser alguma armadilha. (Ouve-se pancadas na porta). Veja, são eles!

HOMEM a- Pelo amor de deus. Esse barulho é a bola dos meninos do apartamento da frente.

HOMEM b (o telefone continua tocando)- Os filhos da gostosa?

HOMEM a- Você vai atender o telefone?

HOMEM b- E se forem eles? (O telefone para de tocar).

HOMEM a(correndo para atender)- Parou de tocar. E se foi minha mãe? Javalis não sabem discar, não é!?

HOMEM b- Eles devem estar com reféns. O que será de nós?! (Toca o telefone de novo). Agora eu atendo. (Pega o fone). Alô!? Ele não está, foi pescar na praia. Deixo sim. Um beijo. (Bate o telefone).

HOMEM a- Quem era?

HOMEM b- Sua mãe. Estava te chamando pra comer o javali.

HOMEM a- Você não disse que ela tinha sido devorada pelos javalis?

HOMEM b- Bem lembrado, então foi engano.

HOMEM a- Que outra mãe chamaria o filho pra comer javali?!

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HOMEM b- Realmente, deve ter sido trote, então.

HOMEM a- Você realmente esgotou minha paciência. Se todos estivessem realmente mortos, não ligariam pra mim. Vou almoçar com minha mãe (pega o telefone), e o senhor vai se retirar de minha casa. (Disca o telefone).

HOMEM b- Que senhor, o quê! Nós já temos intimidade o suficiente para estes tipos de trato. Pois ligue pra sua mãe! Quero ver quem é o mentiroso aqui.

HOMEM a- Chama e ninguém atende. Estranho. Ela deve ter ligado da rua. (Bate o telefone).

HOMEM b- Impossível, os javalis comeram todos os orelhões, palitaram os dentes com os cartões e só cuspiram as fichas. Inúteis, é claro. (Barulho na porta, desesperado). São eles!

HOMEM a- Já te disse, rapaz, não existem javalis em nossa cidade.

HOMEM b- Você já foi no Zoológico?

HOMEM a- Lógico. O Zoológico é vizinho daqui de casa...

HOMEM b- Existem girafas em nossa cidade?

HOMEM a- Existem no Zoológico, apenas. Não tente me enrolar com deduções óbvias. Por mais javalis que tivessem no Zôo, não seriam em número suficiente para destruir a cidade, muito menos o mundo

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inteiro. Eu mesmo tenho uma arma pra me defender. (Tira a arma).

HOMEM b (jogando-se ao chão)- Largue isso. Pelo amor de deus, eu tenho trauma!

HOMEM a- Você prefere a arma ou os javalis? Vou ligar de novo pra mamãe.

HOMEM b- Aquela que escondia a goiabada atrás das verduras?

HOMEM a- Você por acaso quer me influenciar?

HOMEM b- De certa forma, (pra si, levantando-se), e sua mãe já morreu mesmo...

HOMEM a- Pois conseguiu. (Guarda a arma). Minha mãe realmente, depois de tudo que fez e disse, não merece a minha companhia. Você visita sua mãe?

HOMEM b- Me recuso. Por isso virei vendedor. Pra não precisar olhar mais pra cara dela.

HOMEM a- Você a odeia tanto assim?

HOMEM b- Além de tudo ela era feia. Ou você acha que eu nasci com esse rostinho à toa.

HOMEM a- Você realmente é meio feinho...

HOMEM b- Não precisa escrachar, também. No emprego como vendedor tinha a necessidade de boa aparência, e no entanto eu entrei. Você talvez entrasse também! Por quê não experimenta!? Eu emprestaria meu paletó e você iria. (Tira

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o paletó). Vista. (Ajuda-o a vestir-se). Ficou lindo. O patrão iria adorar. Poderíamos sair para vender juntos. Se alguém não quisesse comprar, você obrigava com a arma! (Ri). Brincadeira. Mas ficou bom mesmo...

HOMEM a- A gente iria vender pra quem? Como falaríamos com seu patrão? Você não disse que todos foram devorados pelos javalis?

HOMEM b- Tem razão. Eu tinha me esquecido... ah, mas de qualquer forma, eu dou o paletó pra você. Ficou melhor que em mim.

HOMEM a(tentando tirá-lo)- Não faço a mínima questão...

HOMEM b (recolocando-lhe o paletó)- Por favor, não me faça essa desfeita. É um presente. Quando é seu aniversário?

HOMEM a- O quê importa, a essa altura dos acontecimentos?

HOMEM b- Diz! Está com vergonha, é?

HOMEM a- É hoje.

HOMEM b- Eu sabia!

HOMEM a- Como você sabia?

HOMEM b (irônico)- Isso tudo é uma grande brincadeira, fui contratado por sua mãe para uma festa surpresa, ela mandou esse

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paletó de presente. Parabéns! (Começa a rir, misto de graça e nervosismo).

HOMEM a- Você está falando sério?

HOMEM b- É claro que não... (é interrompido por outro barulho, mais forte, na porta). Ai! São eles de novo!

HOMEM a- Ora, pois sim. Não aguento mais brincadeiras. Vou reclamar com esses moleques e pôr você pra fora.

HOMEM b (tomando a frente da porta)- Não faça isso. Eles vão entrar. Por favor!

HOMEM a- Nossa, como eu odeio visitas!

HOMEM b (começando a ficar nervoso)- Lembre que eu não sou uma visita. Sou o que restou de sua extinta espécie. Se você realmente quer abrir a porta, então abra. Abra sem medo. (Se exaltando). Pois eu sou um louco e estou perdendo esse tempo todo aqui, para te convencer de uma coisa que não existe. Abra a porta. Não existe nada além de crianças brincando com bola. Vamos ver o quanto eu sou louco e você está certo. Esqueça as coincidências dos telefonemas, meu desespero ao entrar em sua casa, tudo que sua mãe me disse. Esqueça e abra a porta. Tem um mundo lá fora, belo, com um único javali no prato, à sua espera, e sua adorada mãe sorrindo pra você. (Totalmente exaltado). Abra a porta! Vamos! Abra esta porta agora! Abra! Abra! Abra!

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HOMEM a(constrangido)- É melhor você se acalmar primeiro. Sente-se um pouco. Vou pegar um pouco de chá que eu fiz. Chá de tília. Gosta?

HOMEM b- Não precisa, já estou mais calmo.

HOMEM a- Você sempre foi assim, histérico, ou é apenas circunstancial?

HOMEM b (mudando radicalmente de humor, acalmando-se)- Só estou um pouco preocupado, mais nada. Nossa situação de vítima não me agrada nem um pouco. Num momento em que deveríamos relaxar, frente às atuais circunstanciais, você só me deixa mais nervoso...

HOMEM a- Desculpa. É que esses meninos... (pancada mais forte, gritos indecifráveis bem ao longe, ele toma um grande susto). Nossa. (Preocupado). Dessa vez foi mais forte! Você está começando a me deixar preocupado. (Tentando cair na real). Onde já se viu! Javalis! Essa é boa...

HOMEM b (sentado, parecendo relaxado, despreocupado)- Tranque as portas em vez de ficar falando.

HOMEM a(tentando disfarçar a preocupação)- Bem, não custa nada, por precaução. Mas não pense que com isso eu estarei aceitando sua absurda história... (barulho mais forte, esta vez, ele sai desesperado momentaneamente pra trancar a porta, enquanto o outro apenas se abana sentado na cadeira). Vou trancar logo

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tudo! (Sem graça, disfarçando). Esses meninos...

HOMEM b- Você tem filhos?

HOMEM a- Ora, você não está vendo que eu moro só?

HOMEM b- Poderia ser desquitado...

HOMEM a- Não tenho filhos e nem nunca me casei!

HOMEM b- Você é veado?

HOMEM a- Ora, deixe de falar besteira, só não achei a mulher certa pra mim ainda...

HOMEM b (imitando-o)- Ainda... não existe mais mulheres, esqueceu? Acabou. Só nos resta esperar pela morte.

HOMEM a(já aparentando preocupação)- Como você é pessimista! Mesmo que sua história seja verdade, o que eu ainda duvido, não é possível que os javalis tenham matado todo mundo assim, da noite pro dia...

HOMEM b- Mas não foi da noite pro dia, foi do dia pra noite. Já são seis horas da tarde...

HOMEM a(toma a dianteira)- O almoço de minha mãe... (grunhidos e barulhos lá fora, ele se acovarda). Mas pensando bem, às seis horas não deve-se mais ir almoçar na casa de ninguém, mesmo que seja da mãe...

HOMEM b(pra si mesmo)- A não ser que você queira almoçar ela...

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HOMEM a- O quê que você disse?

HOMEM b- Ora, deixe de confusão! Pois sim! Devemos aceitar a condição que nos é imposta. Não podemos mudar o mundo com nossas vontades. Fui panfletário, mas deve ter ajudado...

HOMEM a- Você já estudou filosofia, niilismo, essas coisas?

HOMEM b- Nunca vi mais gordo!

HOMEM a- E essas frases?

HOMEM b- Nunca perco essa sessão nas revistas de moda. Minha mãe faz coleção de corte e costura. Você se interessa?

HOMEM a(triste)- Será que mamãe morreu...

HOMEM b- Ora, homem, vamos, pois sim! Deixe de agonia. Que tal falarmos sobre futebol?

HOMEM a- Detesto.

HOMEM b- Política?!

HOMEM a- Desacreditado.

HOMEM b- Por favor, preciso saber do que você gosta para mantermos um diálogo saudável. Deixe-me ver... (olha pra arma). Você serviu ao exército?

HOMEM a- Inútil!

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HOMEM b- O quê, você ter servido?

HOMEM a- Não, o exército. Estamos sitiados em casa por uma revolta javalinesca e o exército não faz nada. Pra quê gastar dinheiro público comprando novas armas, se nunca as usaremos?

HOMEM b- Ora, então você está mais desinformado do que eu pensava. Já faz um bom tempo que os javalis tomaram conta das forças militares. Eles entraram de mansinho, aos poucos, com propostas sedutoras ao exército. Os javalis propuseram uma aliança - aliás, você sabe que a política inteligente precisa de aliança - que consistia no seguinte: Os javalis exterminariam com instituições do governo, destruindo universidades, hospitais públicos, estatais, e tendo destruído todas elas, arranjariam um jeito de desviar mais verbas, para que todos do poder se beneficiassem.

HOMEM a- Onde, então, eles guardariam essas verbas desviadas?

HOMEM b- Nos bancos. Eles também entraram no acordo. Foi uma proposta tentadora para todos. Você sabe como são as coisas, se o poder não se interessa nem um pouco por educação, saúde, essas coisas, imagine então os javalis. No entanto, os planos dos javalis não paravam por aí. Como bons gananciosos que são, acabaram por trair o exército. O general foi o primeiro a ser devorado na reunião.

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HOMEM a- Você quer dizer que na conversa, os javalis enganaram todo o exército? Você é louco...

HOMEM b- Não na conversa, pois eles perderiam muito tempo explicando aos militares sem que eles entendessem, mas falou em poder, o exército se ouriça logo.

HOMEM a- E agora?

HOMEM b- Os javalis já comeram o exército todo. Inclusive seu arsenal. Eles agora peidam granadas e arrotam balas de fuzil. Estão mais preparados do que nunca! O pior é que os javalis dominaram também a aeronáutica e a marinha. Daqui a pouco você vai ver um bocado de javalis voando sobre sua casa... imagine javali kamikase...

HOMEM a- E os javalis que dominaram a marinha?

HOMEM b- Esses gastaram um pouco mais de tempo, porque você sabe, né, porco não nada, afunda. O dinheiro que eles gastaram de bóia, dava pra alimentar metade do país. Os javalis submarinos tomaram conta da costa nacional. É o caos!

HOMEM a(já entrando na viagem, preocupado)- E como nos livraremos deles agora, só com uma arma e...

HOMEM b- Meus produtos de limpeza! É isso! Vamos espalhar pelas entradas da casa! (Pega a maleta, tira uns frascos e distribui com o homem). Vamos! (Começa a espalhar na

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porta, enquanto o HOMEM a espalha na janela. O HOMEM b vai em direção à cozinha. Vale ressaltar uma devida atenção ao fedor dos produtos).

HOMEM a(olhando preocupado para a cozinha, nervoso)- Não entre aí! Quer dizer, aí não tem saída pra rua, deixe pra lá...

HOMEM b- Tudo bem então. Estamos mais tranquilos ou não?

HOMEM a- Bom, mais ou menos. Como posso ficar tranquilo sabendo de um plano como esse. De comunhão militar com javalis, a quase total extinção do ensino público, desvio de verbas, é um verdadeiro absurdo!

HOMEM b- Não me venha com histórias de absurdo! Esqueceu que só temos nós dois, agora, no mundo? Deixe de se preocupar com besteiras. Temos que pensar na gente, não existem mais outros, é o mundo moderno em que vivemos. Sitiados, como você mesmo disse, por javalis, sem nada podermos fazer diante da situação. E você mesmo disse que não gostava de política...

HOMEM a- Isso não é questão mais de política. É

questão de sobrevivência! Os jovens não fazem nada à respeito disso!?

HOMEM b- Já lhe disse. Os javalis comeram os jovens também. Os jovens estão mortos. Os javalis comeram todos na sobremesa. Como se fossem goiabada...

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HOMEM a(buscando alguma solução)- Poderíamos ligar a televisão...

HOMEM b- Você correria o sério risco de ter sua televisão invadida pelos javalis.

HOMEM a- Como eles entrariam aqui em casa? Os produtos de limpe...

HOMEM b- Eles já têm tecnologia o suficiente para entrar em nossas casas através da televisão, ou você acha que foi mérito do homem ter chegado à lua? (Barulhos, grunhidos e tiros do lado de fora).

HOMEM a- Isso foi um tiro?

HOMEM b- Possivelmente um peido.

HOMEM a(começa a inverter-se o pânico inicial)- Estamos perdidos!

HOMEM b (remexendo no bolso da calça e pegando um papel amassado)- Só se for você!?! Estamos na Alameda Costa e Silva é o nome do bairro, meu nome é... como é o nome do senhor?

HOMEM a(agoniado)- Não interessa, vamos morrer mesmo...

HOMEM b- Eu te disse que era vendedor, e no entanto você ainda não disse nada sobre o que você faz.

HOMEM a- Sou aposentado.

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HOMEM b- Coitado.

HOMEM a(justificando-se, sem graça)- Vamos morrer mesmo. Aposentado ou não, estamos no mesmo barco.

HOMEM b (sonhador)- Na mesma casa, só eu e você...

HOMEM a- Bem, de qualquer sorte... (barulhos novamente. Os grunhidos estão cada vez mais fortes, o HOMEM a se desespera cada vez mais, olha pra cozinha, enquanto HOMEM b parece aparentemente calmo). Minha nossa senhora, será que os produtos vão adiantar muito tempo?

HOMEM b- Nossa senhora foi comida também...

HOMEM a- Não é o que diz a bíblia...

HOMEM b- Você é religioso!?

HOMEM a- Apostólico romano. Você?

HOMEM b (se ajeitando)- Estou bem, obrigado.

HOMEM a- Você está muito calmo com essa situação toda. Não parecia com aquele vendedor esbaforido que entrou em minha casa. (Começa a pegar os móveis para botar na porta).

HOMEM b- Um dia é da caça e outro do caçador. Mudo de acordo com a situação.

HOMEM a(nervoso)- Já sei, leu isso na revista de corte e costura? Adivinhei?

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HOMEM b- Não, foi o que sua mãe disse quando os javalis abocanharam ela. Na hora ela estava servindo um tira-gosto de javali pra mim, nem tive tempo de experimentar.

HOMEM a- Sorte sua... vamos me ajude com esses móveis!

HOMEM b (sem sair da cadeira, dando ordens)- Bota mais para a direita, assim sustenta melhor...

HOMEM a(obedecendo cegamente)- Assim?

HOMEM b- Um pouco mais...

HOMEM a- Assim?

HOMEM b- Pra esquerda agora...

HOMEM a- Você sabe mais ou menos o número de javalis que se encontram na cidade?

HOMEM b- Devem ser milhares, milhões, sei lá...

HOMEM a(sempre ajeitando os móveis)- E agora?

HOMEM b (falando dos móveis)- Melhor. Sei que são em número suficiente para derrotar qualquer exército do mundo!

HOMEM a(percebendo momentaneamente sua condição de subalterno)- Ora mas isso é fácil, com o arsenal que eles têm. difícil é trabalhar aqui, com esse peso todo, tenso,

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preocupado, sozinho. E com essa arma me espetando a pele...

HOMEM b- Deixe ela aqui, em cima da mesa. Fica mais fácil.

HOMEM a- Realmente, é melhor. (Tirando a arma e botando em cima da mesa). Qualquer coisa, você atira. Sabe?

HOMEM b- Aprendo.

HOMEM a(procurando mais móveis)- o quê mais... (tropeça em uma cadeira). Ai!

HOMEM b- Cuidado, esses móveis foram caros...

HOMEM a- Como eram as caras dos javalis?

HOMEM b- Pareciam homens de longe. Só de bem perto é que se viam o quanto eram repugnantes.

HOMEM a- Você teve medo?

HOMEM b- Pois sim. Claro que não.

HOMEM a- Eu teria. Não suporto javalis, animais, exército, política, tenho zoofobia...

HOMEM b- Não suporto homens covardes.

HOMEM a- Ainda há pouco você...

HOMEM b- Não suporto homens covardes perto de mim. Homem que é homem não chora.

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HOMEM a(chegando perto do HOMEM b)- Mas você...

HOMEM b (pegando a arma)- Não se aproxime!

HOMEM a- Por favor, me compreenda. Estou apavorado pela situação. Nós somos os únicos sobreviventes da espécie e um arsenal de javalis está aí fora, prestes a nos matar. Como posso ficar corajoso frente a uma situação destas? (Começa a chorar).

HOMEM b- Não chore, imbecil. Não vê que os produtos espantaram qualquer ameaça daqui?! Estamos, por hora, livres. Não ouvimos mais barulhos tem algum tempo. Eles se foram, pelo menos momentaneamente.

HOMEM a- E se eles estiverem preparando uma armadilha?! Somos os únicos sobreviventes, lembra, você mesmo disse...

HOMEM b- Veja bem, eu vou abrir a porta (se dirige para a porta da frente), e vou mostrar pra você que não há nenhum animal aí fora. Acalme-se e sente-se.

HOMEM a(tomando a frente)- Não faça isso, pelo amor de deus!

HOMEM b- Vou lhe mostrar que não há nenhuma visita além de nós dois...

HOMEM a- Lembre que eu não sou uma visita. Sou o que restou de sua extinta espécie. Se você

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realmente quer abrir a porta, então abra. Abra sem medo. Pois eu sou um louco e estou perdendo esse tempo todo aqui, para te convencer de uma coisa que não existe. Abra a porta. Não existe nada além de crianças brincando com bola. Vamos ver o quanto eu sou louco e você está certo. Esqueça as coincidências dos telefonemas, meu desespero. Esqueça e abra a porta. Tem um mundo lá fora, belo, com um único javali no prato, à sua espera, e minha adorada mãe sorrindo pra você. Abra a porta! Vamos! Abra esta porta agora! Abra! Abra! Abra!

HOMEM b (empurrando HOMEM a com certa força)- Sente-se já. (Aponta-lhe a arma). E acalme-se. Vou mostrar como está tudo em ordem.

HOMEM a(sem saber o que fazer, sentindo-se ameaçado, sentando na cadeira; constrangido, chorando)- Por favor, eu estou com medo...

HOMEM b- Você verá que não tem nada... (começa a tirar os móveis da frente da porta, que deverão ser móveis fáceis de pôr no lugar onde estavam). Vamos, me ajude, tire esses móveis daqui. (HOMEM a vai em direção aos móveis, totalmente receoso, HOMEM b apontando-o a arma, HOMEM a arruma-os, olha para a porta e volta correndo para a cadeira). É só um instante. Você vai ver...

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HOMEM a(se agarrando a maleta de produtos do HOMEM b, com medo, apavorado)- Por favor...

HOMEM b- É só um instante... (nisso ouve-se barulhos muito mais fortes que qualquer das outras vezes, gritos e tiros, pancadas também vindas da cozinha; até um barulho mais forte, absurdamente, impulsionar o HOMEM b para trás, sem no entanto largar a arma).

HOMEM a(sai correndo desesperadamente em direção à cozinha, com a pasta do HOMEM b na mão)- Preciso vedar a porta dos fundos...

HOMEM b (se levantando, com a arma em punho)- Ah!! Você me enganou...

HOMEM a(olhando pra trás, da porta da cozinha)- É que você não podia... (vai entrando na cozinha, sumindo de cena).

HOMEM b- Não entre aí! (Atira no HOMEM a. Este, já fora de cena, consequentemente não será visto pela platéia no momento do tiro). O tiro de misericórdia. Não adianta a insistência. O prolongamento da espécie deveria ser um procedimento comum à homens e mulheres. Ah, mas no meio tem os problemas, e no meio das pernas o maior deles! (Pausa, guarda a arma que estará em suas mãos). Não suporto visitas. Perco meu tempo discutindo coisas que sempre levarão à morte. Pois sim?! Tudo não leva à morte? Ou vai me dizer que tudo que fazemos,

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apressadamente, não é para afastá-la? Pois sim. Ainda ontem, tomava chá com minha mãe, em sua casa, quando o vizinho veio pedir açúcar. Odeio armas. Ando com elas sempre escondidas. É pra eu não ver o quanto somos ruins. Se eu caçava quando era novo!? Ah, essa é boa. Javalis no meu prato. Em plena cidade tropical. Só podia ficar louco. Um cavaleiro não pode comer comidas perecíveis. Enlatados nem pensar. Talvez por isso não tenham cavalheiros hoje em dia. As visitas me perturbam e eu ando armado. Se sou louco?! Essa é boa. Não saio às ruas porque não tenho motivos. Minha mãe faz compras e me traz aqui. Minha vizinha. Ela e a gostosa da frente. Sempre quis comer a vizinha da frente. Javali no dendê. Se saio de casa aos domingos? Minha mãe faz os almoços e convida muita gente. A maioria vem de penetra. Coisa da nossa gente. Você está em uma festa, na sua casa, e acaba como desconhecido. Posso ir ao banheiro? É o que dá vontade de perguntar. Vou ter que limpar a cozinha de novo. Visitas só dão trabalho... (Toca a campainha). Quem é? Deve ser o vizinho pedindo açúcar. (Toca mais uma vez). Já vai! Oh, inferno, são esses vizinhos. (Abre a porta. HOMEM a entre esbaforido, com o paletó e a maleta do HOMEM b).

HOMEM a- Feche a porta, rápido. Os javalis estão chegando...

HOMEM b(estranhando)- Como é que é?

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HOMEM a- Os javalis! (Empurrando a porta entreaberta). Aí fora...

HOMEM b(meio irônico)- Javalis? Em nossa cidade?!

HOMEM a- Foi o que eu disse à eles.

HOMEM b- Faça o favor de se retirar de minha casa. Não te conheço e estou farto de histórias de javali.

HOMEM a- O javali é um porco feroz. Pode nos matar com suas presas.

HOMEM b- Não com a porta fechada...

HOMEM a- A boca do javali não é uma porta, não tem como ser fechada!

HOMEM b- Você quer que eu chame a polícia?

HOMEM a- Os javalis já comeram as cabeças de todo mundo, nessa cidade. Não sobraram nem policiais, nem professores, nem jovens. Só nos resta esperar pelo fim do mundo... (black).

(CAI O PANO)

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Quartos – Quatro Monólogos sobre Solidão

“Embaixo dela, os esgotos;nela mesma, não tem nada;em cima dela, fumaça.Nela nós vivemos, rotos, a nossa vida frustrada,uma passagem violenta.E a cidade também, lenta,e a cidade também passa.(Bertold Brecht)

MONÓLOGO 1 (SEM TÍTULO)

MULHER 1:Certa noite... bem, de manhã para mim era o

melhor horário pra chorar. Acordava e ia direto pro banheiro, deixando pelo caminho uma leve música de fundo. A maioria das vezes era Tchaikovski. (Pausa). Claro que eu não aprendi a ouvir música sozinha, seria um ato tortuoso. Aprender a ouvir música clássica... aposto que você nunca prestou atenção em Tchaikovski, nunca ouviu nada além do que os outros quisessem. Com certeza não. Aposto que nem está me ouvindo direito agora. O que foi que eu disse? Você nem sabe quem é Tchaikovski. E olha que ele era viado, a classe mais divulgada por aqui. Se ele nascesse hoje seria homem, talvez. E com certeza não seria gênio. Pelo menos pra você e sua corja. (Pausa). Sim, por que eu chorava? E precisa dar motivo? Não, o único motivo que você imaginaria para meu choro seria o amor. (Pausa). E foi. Mas naquela noite... pois é, o choro. Ser largada às vésperas do aniversário de sete anos... superstição, não, deixei de acreditar em

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tudo depois de Pessoa. Aliás, passei a acreditar mais em tudo. Talvez tenha sido esse o problema. (Pausa). A mania de deixar o chuveiro ligado. Nem me permitia chorar mais pela manhã. Não tinha tempo. Nos últimos meses, esperar horas pelo fim de um banho enquanto era esquecida na cozinha fazendo café, era a rotina de uma relação nada harmoniosa. (Pausa). O problema era que nunca se esgotava a questão de um limite. Sempre o outro dia era pior. Ficar esperando na sala o telefonema que nunca chegava, e ser acordada às três da manhã com a porta batendo. Nunca deixar o som ligado. (Pausa). Você já percebeu que eu só falo de mim? Você não sabe de nada também. Adiantaria dizer que no dia que eu li Pessoa, a exclamação que eu ouvi foi: “Leia Nietzsche”. Não, não, talvez se eu falasse de um ator de novela, da cantora da moda, da peça que eu mais ri... morder a maçã... a certeza do bicho... quem aceitaria comer a outra metade? Cuspir agora é arte? Tive quem me ensinasse que não. (Pausa. Ri). Que não se pode amar. Pelo menos duas vezes, duas horas, duas mulheres. (Pausa). Cuspiria na cara de todos os homens. O único prazer que eu tinha era me trancar no banheiro e ouvir Tchaikovski. Ele tinha tirado a chave, “o som estava muito alto”, e... bem, cuspiria de novo, na cara de todos homens, o grito que eu guardei só pra um. Porra, guardei só pra um. Será que valeu a pena? Tudo vale a pena quando a alma não é pequena... pro caralho! Alma é a puta que te pariu! Só vale a pena ser feliz. Eu aprendi assim. Até o dia em que o mestre virou as costas e me deixou sozinha, procurando a felicidade. Se eu encontrei? (Pausa). Foi naquela noite... encontrar meus discos espalhados e um bilhete de “não encontrei Debussy” era quase todo dia. Quando eu ia explicar, só ouvia um “tenho a impressão de que deixei no carro”. Porra de impressionismo de merda! (Pausa). Desculpe, não fica bem uma mulher da minha idade estar se exaltando desta maneira. É

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que... é que... deixa pra lá. Você deve estar sem graça. Mas cá entre nós, romantismo é lavar cueca. Nunca acreditei em nada além de mim. A prova disso foi meu sonho. Era meu? Não era. Se fosse, a esta hora estaria num aeroporto. Indo pra onde? Com certeza não muito longe, teria medo de me encontrar de novo. Ali adiante, poderia me esbarrar em outro sonho. Melhor mesmo é ficar em casa. (Pausa). Ouvir música? Primeiro tive que me acostumar. Meu ouvido de merda achava tudo aquilo um cocô. Nós sempre esperamos dos outros o que a gente quer ouvir. Dói fundo tudo aquilo que não era pra ser dito. Não era pra ser dito!? (Pausa). Não devo dizer hoje tudo o que a vida me gritou? Poderia ser mais sutil. Ela, não eu. Me gritar todo dia larga: esses livros, vai pra rua e sai correndo, se joga no mar e tire a roupa. Sem a loucura, que é o homem? Tentava então, como única saída, ser sábia e selvagem. Fora louco esperar. Tarde demais descobri que só eu dependo de mim. Gritar com o espelho não adiantava nada. Era preciso silêncio. No outro quarto, só o aquário me interessava. O peixe ainda não tinha comido, e só eu dependia de mim. Que culpa haveria no peixe, em ser aprisionado numa redoma de vidro? Eu quis. Talvez não soubesse, e gritar não adiantava, não conseguiria ouvir nada além do barulho da água caindo e a música tocando, cada vez mais forte, com a subida da orquestra, os tambores...! (Pausa). Mais uma vez, desligado o som. “Muito tempo no banheiro”. Eu não podia. Agora era fazer o café e esperar a eternidade de um banho, que só eu não tinha direito. Uma ducha de água fria. (Ri). Só me restava o trocadilho e uns biscoitos na geladeira. “Sem tempo pro café”, qua, qua, qua. Nem um suquinho? (Pausa). Foi estranho no dia em que ele me jogou na mesa, por cima da comida, assim como era estranho o modo como ele chupava meus seios. Faltava-lhe delicadeza e eu gostava. Sensibilidade não. Tinha de sobra. Foi o que me conquistou de primeira. De primeira... dei de

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primeira sim. Se prejudicou a relação? Acho que não, hoje eu ouço Tchaikovski. (Pausa). Você deve ter uma relação muito boa com seu parceiro!? Até agora não disse nada, só fez dar umas leves risadas. Qua, qua, qua. Uma relação muito boa, ou talvez nenhuma relação. Melhor? Até hoje eu procuro o melhor, e cada vez mais me convenço que melhor mesmo é ficar calada, no alto do monte, sem comer, sem trepar, só olhando serena a vida passar no meio da rua, no meio da gente... taí um estágio que eu não alcançaria! seria impossível pra mim. Os poetas não precisaram ir tão longe para ver nossos problemas, se é que o temos. Se sou otimista? Com certeza não sou poetisa. Uma mulher que... naquela noite... (Ri). Bem, que diferença faz? Prefiro habitar a cabeça de poucos, do que os testículos de muitos. É questão de preferência. Têm uns que preferem pensar, outros foder, outros, ganhar dinheiro. São todos ofícios difíceis. Todos nós temos que cumpri-los. Geralmente esquecemos de algum. (Pausa). Pior do que esquecer é ser esquecida. É muito mais confortável a dor do outro. Claro, é por isso que nós amamos. Foi a gota d’água esquecer os sete anos, e ainda receber o grito de “contenção de despesas”. Cerveja só na rua, não é? (Pausa). O mais engraçado, é que parecia que o sofrimento era só meu. Não conseguia ser fria e terminava como chata. Quem terminou tudo? (Pausa). Seria à noite... a camisola preta, a mais sensual, não servia mais nem como pano de chão. A casa era limpíssima. Só saía do meu quarto pra rua. No outro quarto era o silêncio e o barulho das teclas de vez em quando. O resto era apenas falta de música. Eu esperava a qualquer momento a entrada dos violinos, uma melodia suave, e a tosse de três horas de chuveiro me fazia ir na farmácia. Eu indicava café. “Cafeína faz mal”. Também, não indicava mais nada. A indicação de Nietzsche me bastava. Não perguntara mais nada desde então. Lembra? Nietzsche? Esquece. Se lembra ou não lembra, é

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problema seu. Eu, particularmente, nunca li nada sobre anjos. Literatura moderna? Já ouvi falar sobre isso num livro de história. Nada novo sob o sol, a não ser meu peixinho morto. Ele tinha um nome. Quixote. (Ri). Foi a única novidade nesses anos todos. E eu doida pra estar em seu lugar. Do aquário a gente vê as coisas maiores. Efeito do vidro. Já tinha entrado demais quando percebi que no fundo, a saída dava para o boxe do banheiro. (Pausa). Foi num dia de viagem. Tinha o banheiro só pra mim. Havia aposentado Tchaikovski durante um bom tempo, e do jeito que eu estava, sem saber se alegre ou triste, dei um tempo a ele e a mim, e tapando os ouvidos comecei a cantar... Cantava com tristeza, a melodia primeira que me vinha na cabeça. Tchaikovski? Não, o tema de uma novela.(Pausa). Suicídio? Para mim, tudo no céu era estúpido, e com certeza eu não seria um anjo. Dizem que anjo não tem sexo, e depois de tudo que eu passei, não podia mais deixar de ser mulher. Não tive filhos e criei fantasias. Fui normal até certo ponto. “Barulho na casa? De jeito nenhum”. Estava criando nada mais do que uma criança invejosa. “Sujeira pra tudo que era lado”. E o sonho? Se não pertencia a mim, era pelo menos uma parte do meu útero. Meu corpo não pensava, não pensa. Acho que é por isso que eu abria as pernas. Fazer amor? A viagem já tinha acabado, e o pó de café também. Tossia de novo. Não era só o banho. O cigarro ajudava, “aproveita e passa na farmácia”. (Pausa). Era bonito o neon da farmácia. Lembrava os filmes. E todo mundo a passar por mim. Estranho era mesmo um velhinho, que sentado num banco, lia sempre o mesmo jornal. Se achava livre e não me dava bom dia. Liberdade era o neon da farmácia. Belo nome. Belo e estranho. Tinha acabado de faltar água em casa. Cheguei sem o café e encontrei apenas um bilhete “de noite a gente conversa”. (Pausa). Tinha esperado a água ferver, mas por ser naquela noite... “Banho quente no verão era

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gasto de energia”. Eu gritava e ninguém ouvia. Metia a cabeça no aquário, e Quixote me dava um sorriso. O único bicho que não mais me sorria era o homem. (Pausa). O sol essa época do ano era de lascar. Abria todas as janelas que não davam pra lugar nenhum. “O prédio da frente”. (Ri). Você não quis mesmo falar, heim? É bem mais fácil assim, ficar em silêncio e empurrar com a barriga. Grito, só no parto. Talvez me sentisse bastante mulher. Pra quê? Queria apenas me sentir sozinha, e para isso só precisava fechar os olhos e abrir as janelas. Ou quem sabe talvez o contrário. Com as janelas fechadas eu via muito mais. Era só ligar o som. Via cada vez mais minha solidão. (Pausa). Foi naquela noite que... bem, ficar sozinha era estado de espírito. Ligava pra minha melhor amiga e ficava horas no telefone. Sempre ocupado. Aquele sonzinho do telefone sempre igual me lembrava Ravel. Depois arrumava os livros na estante. Trabalho? Tentava pela segunda vez terminar meu mestrado. Em quê? Talvez a solução fosse pegar um ônibus e ir na casa dela. Fui correndo, nem tive tempo de tomar banho. Talvez eu não quisesse. O ônibus chegou num susto, pela porta do fundo “se mudou”. A última notícia era um “adeus”. Descia as escadas, queria chorar mais já era tarde. Talvez no chuveiro, numa viagem. Se eu gostava de ficar só? (Pausa). Resolvi voltar à pé, no primeiro telefone público me encostei e liguei pra casa, ninguém atendia. Sozinha outra vez. Que bom. Perto de casa, lembrei do cinema que havia fechado. Fui até lá? Não fui. Era tarde demais. minha amiga havia se mudado. Amiga? Naquele dia aprendi o resto de mim. Pelo menos na esquina. A noite se escondia atrás do neon da farmácia, e era sempre mais difícil esquecer a Liberdade. (Pausa). Pois de noite... a luz fraca da manhã permitia ao menos que eu visse o aquário. O ronco e a tosse, outro banho. Tentava ser diferente, era melhor assim. Pelo menos mudar a tristeza de lugar. Chorava na cama ao som das notícias do

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jornal... O ano novo estava perto e mais uma vez minha mãe morria dentro de mim. O cinema reabriria daqui a dois meses, e o peixe precisava comer. Naquele dia não haveria café, pelo menos até eu me levantar. “Minha toalha”. Só eu dependia de mim, e o resto eu engoliria à seco. O dia estava quente para um café, e ele suava como nunca. (Pausa). Você gosta de música? Antes de nós, os passarinhos, antes de tudo, a explosão. Porra! Meu café, e a porta batia-se atrás de mim. (Pausa). Meu pai criava passarinhos, e foi assim que eu aprendi... imitava-os... depois tudo que meu pai disse foi pro espaço. Pra uma estrela bem linda, daquelas que não se podia nem se pode ver por aqui. (Pausa). Aposto que você não costuma olhar as estrelas!? O prédio da frente? Que nada, minha janela dá pro mundo todo, eu é que não enxergo. Pelo menos aprendi a não enxergar. Ver o que então? Tudo o que eu não fui!? O mundo é do tamanho do meu quarto, e “leia Nietzsche” já não adiantava nada. O homem nunca voaria. Se voasse, virava música, até que o outro desligasse o som. (Pausa). Ele chegara às três horas, e eu tinha que estar dormindo. De manhã pra ele um “bom dia” resolvia, e eu tinha que estar dormindo. No café, novas notícias, e eu tinha que estar dormindo. Naquele dia ele não sairia, ficaria em casa, e eu não podia mais dormir. Era o dia do café e quem sabe algum beijo. Eu queria falar com ele quando o telefone tocou. Eu queria chorar quando ele me tocou. “Não vai atender?”. Sua mão forte, apertava meu ombro e ontem à noite tinha sido ótimo. Mais café? “Não”, e eu esquecia de sua mão forte, engolia o choro. Alô?! Era engano, chovia lá fora. Eu chamava pra conversar, “um momento”. Eu dizia que era rápido, “só a última frase”. Ele escrevia um livro e eu queria falar de minha vida. (Pausa). Tinha deixado a janela aberta, a chuva batia de leve no meu corpo e eu esquecia o calor da noite. Era só olhar pro lado. “Nunca mais como carne de noite” e um arroto.

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Acabava sempre assim, quando não era briga. Quixote se agitava dentro do aquário e eu só queria estar no chuveiro. Lá de casa não se via a farmácia, mas parecia que o neon estava quebrado. Cheguei lá e vi tudo escuro. Esqueci que era domingo. O velhinho também esquecera e debaixo de chuva lia o jornal. Não podendo ouvir Tchaikovski, preferi escutar a chuva. Olhava o neon desligado. O cinema reabriria daqui a dois meses, e eu nunca mais tinha saído. Lembrei de meu pai. Ele botava os passarinhos todos pra fora quando chovia de dia, e os recolhia se fosse à noite. “Lugar de passarinho à noite, é juntinho de mim...” e me abraçava. Engraçado, por um instante achei o velhinho parecido com meu pai, e foi o suficiente pro resto da noite. Tinha que ir embora e perguntei que horas eram, ele apenas me disse “feliz natal”. (Chora. Pausa). Se eu entendia o porque dele ser assim? Um homem culto... o som estava quebrado e não derramaria mais nenhuma lágrima, pelo menos até que o som voltasse. Ele sabia disso. Me acordou domingo ao som de Debussy, seria demais um Tchaikovski. Era o último dia do ano, e tudo parecia ser diferente. Naquela noite... naquela noite botei meu vestido branco, o mais caro do guarda-roupa. Não tinha superstições, mas as convicções me bastavam. Minha religião sempre fôra a música, mas o silêncio empurrado goela abaixo me fez entender melhor a vida. Em silêncio estava, em silêncio fiquei. Fui até a porta, por um momento fechei os olhos e abri os braços, nunca mais voltaria àquela casa. Botei Quixote num saco plástico e deixei o que não me faltava no banho. Fui até a farmácia procurar o velho e lá estava ele. Sentei ao seu lado ainda em silêncio, e ele me balbuciou “vou embora, o cinema não vai abrir nunca mais”. Me mostrou sua saudade e o jornal, levantou e eu precisava ir. (Pausa). A conversa deve estar chata, não é? Ouvir o absurdo de minha vida deve lembrar a sua. Tudo bem, nada tenho mais pra falar, minha

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história termina por aí, e a sua? Não precisa dizer, tenho certeza que o homem nunca vai voar. Sei que Tchaikovski é ultrapassado, e amar também. Quixote morreu num aquário novo, melhor assim. Morrer no aquário novo... (Ri), acho que deixei o chuveiro ligado, vou aproveitar e tomar banho...

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MONÓLOGO 2 (SEM TÍTULO)

HOMEM 1:Boa noite, vou apresentar para vocês o meu mais

recente número de... não, fica parecendo circo. Bem, eh... não importa. Também não vou ficar me desgastando pra uma simples apresentação. (Pausa). Os convidados... (Pausa). Não importa se virão de casacos de pele, roupas caras e alinhadas. (Pausa). Juro que não me importo. É sério. Nunca fui de muitas cerimônias. A primeira vez que tive a chance de encarar o público foi no colégio. Festa das Nações... me preparei todo, o maior cuidado do mundo! Eu ia representar a Espanha, terra natal de minha mãe. Ia ser o maior orgulho pra mim. Meu pai, claro, chegou atrasado pra me buscar. Eu nem ligava mais. (Pausa). O trabalho de meu pai era assim mesmo, não tinha hora pra acabar. Não sabia direito o que era não, só sei que ele viajava de duas em duas semanas - eu morria de vontade de ir - mas minha mãe não deixava. Dizia que era perigoso eu viajar naquela idade. Logo depois ela morreu. As Festas das Nações que tinham no meu colégio eram as melhores da cidade. Cidade do interior você sabe né? Tinha a maior disputa. Quem escolhia era o prefeito. Ele odiava meu pai. Ainda bem que não sabia quem eu era. Aliás ninguém sabia de quem eu era filho. Foi aí que eu viajei. Sem minha mãe, nada me prendia àquela cidade. Menos Adela. (Pausa). Adela era filha de imigrantes espanhóis que nem eu, só que de pai e mãe. Meu pai era Turco, segundo dizia minha mãe, assim como deveriam ser os seus amigos. Minha mãe xingava ele de estúpido e seus amigos eram da mesma forma. Claro que não fui tratado bem. Também, dizia meu pai, toda criança na cidade grande é tratada mal, era costume, segundo ele. Eu vi que era verdade quando meu pai me colocou pra morar com uma mulher num desses prédios velhos perto do porto. Os meninos todos, parecia que os meninos todos da cidade dormiam naquela calçada. E na calçada eu fiquei, esperando meu pai, todo vestido de espanhol. Minha mãe chamando ele de estúpido e eu rasgando a roupa. Não estava com raiva, somente não prestaria mais pro próximo ano, e Adela já tinha visto. Tinha conhecido uma menina parecida com

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ela, só que não falava comigo. A senhora que me criou naquele porto imundo chamava aquilo de preconceito. Dizia que ela era preconceituosa e por isso não falava comigo. Era Linda, o nome da senhora. Ali gostava de sofrer. Parecia que todos seus amigos batiam nela à noite. Ela gritava tanto que eu não conseguia dormir. Por isso que pela manhã era um tapa de preguiçoso que anunciava a chegada de meu pai, quando ele ia, era claro. Ela me parecia meio burra, pois dizia sempre “Um dia eu vou sair daqui” e não saia. Era tão simples. Foi só minha mãe morrer que eu tinha ido parar naquele lugar com ela. Foi tão rápido. Ela botou sangue pela boca e foi parar no hospital. (Pausa). Adela nem foi se despedir de mim. Foi tão rápido. Meu pai me pegou pelo braço e fomos embora. Ela só tinha me dito, antes da festa, que tinha gostado da minha roupa. Só isso. E as roupas de dona Linda eram parecidas com a minha. Quando ela voltava vestida e sem dinheiro meu pai também batia nela. “Só isso”. Minha mãe sempre sangrava mais. Acho que porque chamava ele de estúpido e ele não gostava. Dona Linda não, ficava calada enxugando sangue, suor e lágrimas do rosto. No dia que eu vi Adela... a menina estava olhando tudo que tinha acontecido... naquele dia eu entendi o que era preconceito. Ela realmente parecia com Adela, só que Adela era mais bonita. Se vestia mais bonito pra Festa das Nações. Eu sei que não tinha festa nenhuma das crianças do cais. Eu que tinha batizado assim. Na verdade tinha sido o jornal. Eu tinha lido no chão uma reportagem que dizia: “Meninos do cais são abandonados” e coisa e tal, e eu via abandono no rosto de todos os meninos que não se olhavam naquele porto, e depois no único espelho da casa eu via que não estava sozinho. Dava pra janela, e eu olhava escondido a menina abandonada do prédio. Ela parecia com Adela, e parecia uma Adela abandonada pelo sorriso. (Ri). Ficou engraçado, meninos do cais. Mundo, cais sobre mim. Tinha aprendido um pouco de português na escola, antes de vir pra cá. Aqui, eu larguei os estudos, não tinha escola mesmo. Meu pai é que dizia. (Pausa). No cais eu não conversava com ninguém. Só depois de conhecer dona Juanita, uma cartomante, é que meus dias passaram a ser mais espanhóis. Ela vinha do Sul da Espanha e tinha um sotaque bem forte. Minha mãe brigava comigo porque eu queria a todo custo aprender a dançar igual ao ciganos, e dona

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Juanita me vendeu, pelo preço de alguma companhia e leite fresco, todos segredos da dança. Às vezes eu ficava sem graça de estar enganando a velha, porque no fundo ela também me fazia companhia, e leite fresco era fácil de conseguir, principalmente quando ela dava o dinheiro. Vez por outra, meu pai me dava algum dinheiro, e, veja quanto era, dava pra juntar e comprar o leite quando dona Juanita não tinha. Assim passaram-se alguns meses, ou anos, ou dias, não sabia muito bem, e os clientes de dona Juanita começaram a voltar. Eu ficava ensaiando os passos em casa, na esperança que a menina me visse e se transformasse em Adela, como na história que a cigana me contava. Um dia, a menina triste, que deveria ser feliz, por parecer com Adela, foi na cartomante. Nesse dia eu me escondi para ouvir a conversa. (Pausa). A menina começou a dizer algo sobre visitas de um médico, doutor Luís, e veja, era o nome do único cliente que dona Juanita tinha. Depois a menina triste, agora triste não sei porque, tirou um pequeno maço de dinheiro do bolso, deu pra cigana e saiu. (Pausa). Dona Linda quando soube dos meus ensaios com Donita - era como chamavam a cigana - me disse pra eu não contar de jeito nenhum a meu pai. Disse que ia me botar pra dançar no 69. Ah, eu não tinha lembrado do 69. Era o lugar que dona Linda ia encontrar com os amigos dela, antes de voltar pra casa. Eu tinha loucura pra ir lá. Estava chegando a minha chance. Eu ia encontrar com Adela na Festa das Nações e dançar pra ela alguns passos. Naquele dia Adela estava linda, tão linda que eu não queria vê-la mais de outro jeito. E foi assim que aconteceu. Minha mãe estava morta e ela era rainha, daquelas que some em livro de contos de fada. Foi a única coisa que deu pra trazer escondido. Eu tinha roubado da escola e ninguém podia saber. Não sei também se aquilo era roubo, eu achava que quando eu ficasse grande, que o livro sumiria como as princesas e rainhas. (Ri). Eu sempre fui muito tímido, não conseguia nem olhar direito pra Adela. Como seria agora frente àquele público, os raivosos amigos de dona Linda. Tinha que me preparar. Fui correndo avisar pra Donita, a cigana, e pareceu-me que ela não gostou muito. Disse pra eu ensaiar sozinho, pois o que ela tinha me ensinado era uma dança de respeito; e foi pra isso que eu ensaiei, pra mostrar pra todos uma dança de respeito. Boa noite, vou apresentar

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para vocês o meu mais recente número de... não, fica parecendo circo. Bem, eh... não importa. Também não ia ficar me desgastando pra uma simples apresentação. Só tinha que ser bonito. A roupa, dona Linda disse que arrumava, e nesse dia eu vi outra mulher, que não ela, em nossa casa. Era Valdinéia, uma mulher com aparência de homem, mãos fortes, como as de meu pai, e um grande nariz turco. Eram os turcos que tinham nariz grande? Bom, meu pai tinha. Valdinéia veio me arrumar pra dança, e eu me sentia como Adela na Festa das Nações. Linda e sempre certa, no horário de se apresentar e brilhar pros outros. Eu não pude assistir. Lembrei então de olhar disfarçadamente pelo espelho e ver se a menina triste me olhava pela janela. A roupa tinha ficado muito bonita e estava na hora. Desci as escadas... as escadas eram imundas e cheia de ratos. Pareciam, os ratos, que eram a única companhia dos meninos do cais. Que não se olhavam. Engraçado, por ironia, o único que procurava alguém o tempo todo era o menino cego da beira da escada. Era costume dona Linda dar moedas à ele. Ele agradecia com um sorriso e a certeza que poderia algum dia deixar de ser menino do cais. Eu só pensava o tempo todo o quanto triste eu seria se não visse algum dia Adela, e me prometi que dali em diante eu seria feliz. Pelo menos enquanto a dança e aquela roupa, que Adela tanto ia gostar e o menino não poderia ver, estivesse presente na minha vida. Já estava no meio do caminho, quando olhei pra trás e corri em direção ao menino. Sussurrei no ouvido dele como era a minha roupa e dei um beijo nele. O menino sorriu, e a lágrima que eu enxuguei, ele me disse que era um agradecimento. Dali em diante eu percebi que não era uma moeda que faria ele feliz. Feliz fiquei o tempo todo. Cheguei no 69, e vi diante de mim várias pessoas bebendo, gritando, e me jogaram no palco. Houve um breve silêncio, eu imóvel. Depois foram gritos, eu imóvel, nervoso, meu pai entrando pela porta dos fundos, minha mãe correndo, dona Linda gritando, eu rasgando a roupa, sangue na cara de dona Linda, seu estúpido e um tapa, Adela tão linda, meu braço sendo puxado, Valdinéia me agarrando e meu pai segurado. Só lembro que eu corri pra casa da cigana. Dona Linda no hospital, e meu pai nunca mais. A cigana estava de cama, parecia doente e me sorriu: “Deu errado, não foi?”. Ela sabia de tudo e eu não

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podia esconder, me encostei na cama ao lado dela, como fazia com minha mãe, e chorei. Não sei porque, naquela hora só me lembrava do livro que eu tinha roubado. Seria castigo? Valdinéia foi me buscar e dona Linda me pediu desculpa. Eu aceitei. Mais uma vez me sentia enganando alguém. Quem devia desculpas era eu. Não tinha adiantado tanto ensaio e os avisos da cigana. Eu era burro. (Pausa). Dona Linda ficou em casa alguns dias, disse que não podia trabalhar com aquele rosto. Eu voltei a visitar Donita. Fui pagar toda dança e as histórias que ela me ensinava. Talvez tivesse sendo mais lucrativo pra mim. Lia de novo minhas histórias, e ainda levava o menino cego pra ouví-las comigo. Donita disse que aquilo tudo era muito bonito e me chamou de solidário. Por uma letra deixava de ser mais um menino do cais. Donita me explicou o que era solidariedade, e eu vi que solidária era ela, pois me ensinava a dançar e ainda dividia seu leite comigo e com o cego. Ouvíamos histórias. Às vezes eu dançava, enquanto Donita cantava e o ceguinho batia palmas. (Pausa). No dia de comprar remédios, nunca sobrava dinheiro pro leite. Logo depois vinha a menina triste, e com a mesma conversa de sempre, dava mais dinheiro pra ela, se bem, que naquele momento, dinheiro pra gente não era problema. A gente tinha meu livro, a voz de Donita e as moedas do cego. Nós éramos felizes, e sabíamos que, para sempre, só as histórias do livro. Dona Linda já tinha voltado a trabalhar e Valdinéia tomava conta de mim, com medo que meu pai voltasse. E ele só voltou nos jornais. Agora eram os meninos do cais e o gigolô turco morto na prisão. O que seria gigolô, e como havia sido morto, o ceguinho me contou depois. Percebi que ele também sabia histórias, e passamos a revezar, eu, ele e Donita, as histórias pra contar. (Pausa). O que passava a me incomodar era que só eu repetia sempre as mesmas histórias, as que estavam nos livros. Também só eu podia ler. Não era grande vantagem no cais. Passei a ficar em casa, desde esse dia, a somente ensaiar para a menina triste da janela, e tentar criar uma história pra contar pra eles. Minha cabeça fervia e não saia nada. Só me vinham as histórias do livro, até que um dia Donita, cortando o silêncio da pausa pro leite, disse-nos que todas as histórias sempre vinham da gente, não importando se eram livros, lendas ou desejos. Naquele dia então resolvi contar a história da

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minha vida, tinha finalmente conseguido buscar mais distante, o que era pra mim passado, e nas mãos da cigana, o futuro. “Quando você não tiver como ir em frente, olhe pra trás”, ela disse e eu contei. Vi que todos nós éramos aquilo que queríamos, e vi que ter histórias e um copo de leite, era o suficiente pra ser feliz. Pelo menos antes que a história terminasse. Antes que essa história terminasse, e os remédios também. Olhava então, pela primeira vez, o relógio que Donita tinha na parede. Percebia o quanto o tempo passava à medida que minhas histórias ficavam. Lembro que falei de minha mãe, da festa e de Adela, é claro. Disse exatamente como ela havia se vestido pra festa, e o quanto era bela. Daí não passei. Descobri que éramos fortes mas não éramos pedra. Parei a história e o ceguinho, somente pela segunda vez chorou. Outra lágrima e um suspiro. Ele tinha acabado de ver de novo, assim como no dia da minha apresentação, com todos os detalhes, que a vida poderia ser colorida, além da escuridão que o cercava. O resto da noite foi o silêncio, e a despedida da gente. Olhei pro relógio, e percebi quantas horas gastávamos com os outros, enquanto esquecíamos da gente. Donita já não tomava o remédio fazia uma semana, e cada dia estava pior. Naquele dia, o silêncio só era cortado pela sua tosse e um escarro de sangue. Mesmo assim, com toda falta de música, eu dançava dentro de mim, e sentia que Donita cantava ao som das palmas do cego. Ela mais que a gente, sabia como seria o amanhã, e a despedida daquele dia foi só ela cantando, sem palma e sem dança, uma música lenta e dolorosa. Não sei porque, ela não conseguiu terminar, soluçou e me disse: “Leve o ceguinho, mas vá pela luz”. (Pausa). No outro dia, pela manhã, enquanto não conseguia dançar, dona Linda me disse que sairíamos daquele porto imundo e a campainha tocou. Era a menina triste, com o relógio de Donita. “Minha mãe mandou te entregar”, ela disse; e saiu. Não deu tempo, e nem tive coragem de mostrar a dança e entender o que estava acontecendo. Parei um minuto, depois desci as escadas correndo. O ceguinho chorava pela terceira e última vez. Eu ia embora, e a luz da ambulância me confirmou todo o resto. Fui arrumar minhas coisas, enquanto via no espelho, pela última vez, a menina mais triste que eu havia conhecido. Desci as escadas, deixei o livro com o cego e fui embora, pra sempre, sem olhar pra

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trás. Tenho certeza que o cego ainda lembra das histórias, e a menina triste ainda me olha ensaiando. O relógio está me confirmando as horas, é tempo de dançar!

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MONÓLOGO 3 (SEM TÍTULO)

MULHER 2:Preciso me arrumar! (Pausa). Ah, sim, não posso me

esquecer... (Pausa). Bom, mas ele era assim mesmo. (Ri). Pegou em minhas coxas e tudo. (Pausa). Meus pais me adoravam, lembro bem que eu era a alegria da casa, ele só não quis ficar comigo, mas tudo bem, um dia ele ficaria... (Ri). Quando eu fui morar com minha tia em outra cidade, não precisei me despedir, pois foram todos juntos, minha mãe, meu pai.... meu primo não foi, bom, mas ele era assim mesmo. (Pausa). Não posso esquecer de fechar a porta do armário, minha mãe sempre odiou que eu deixasse aberta. Meu pai não ligava, e ele - meu primo - podia passar as mãos nas coxas de todo mundo. Não posso esquecer de fechar a porta do armário e a janela da sala. Cidade pequena não tinha mais sossego, e buzina de carro me lembrava praia. Todo domingo. Ele chegava e... ah, sim, tinha sua irmã. Era bom ser filha única porque só tinha irmã quando queria. Tinha feito um trato com ela de sermos irmãs até a morte. (Pausa). Preciso organizar melhor meu pensamento, não é? Vou falar dela agora. Vou falar a verdade mesmo, pois pode parecer mentira pra alguns tudo o que eu contarei. Mas antes, um pouco de café. (Pega uma térmica, depois joga no chão). Tá frio. Odeio café frio, era sempre o que ele dizia, mas sim, minha prima... (Pausa). Não vou falar de meus pais não, já falei um bocado. (Pausa). Ah! Não falei não? Meus pais mereceriam dias de lembrança, só que eu não os conheci. Tinha ido cedo pra casa de minha tia. Só os reconheci depois que a porta se abriu. Ele, não. Eu reconhecia pelo cheiro. Adoro cheiro de flores! Lembrava o quintal de minha mãe. O quintal de minha mãe tinha um... ah, lembrei do cachorro, o nome dele era... (Pausa). Que saco, não aguento mais esperar, vou aproveitar e contar a história de minha prima. Já falei dela? A do pacto de sangue!? Ô coisa nojenta é sangue. Minha prima era, até aquele dia, e o aniversário dele, quando minha mãe comprou o presente, que eu escolhi. O cachorro latiu bastante naquele domingo. A praia seria boa. (Pausa). Lembro que eu caí. Ô coisa nojenta era sangue. Não pude ir

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pro seu aniversário. Minha prima lembrou do pacto. Ele poderia ser irmão de todas as minhas primas. “Seu primo te leva na escola”, e eu adorava o cheiro das flores. Quando minha mãe voltou do aniversário eu tinha comido todas. Não todas do quintal, mas quantas eu podia. Só fazia cocô, no outro dia, mas pior foi neste. Me escondi atrás do armário, depois dentro dele, depois de todo mundo. Apanhei e vi que minha mãe não era santa. (Ri). O pior foi meu pai, que assistiu como santo. Eu, era o demônio. “Bom nome pro cachorro”! Meu primo dava o cão e o nome, me levava pra escola e eu nunca tinha visto ele com a camisa que eu tinha dado. Ufa, falei demais. Por isso tomei outro tapa na boca. Só por isso. “Quem fala demais morde a língua”. `Meu primo gostava mais de conversar com minha mãe do que comigo, “mas é claro, ele já é um rapaz”. (Pausa). Não sei porquê meu pai era velho. Babava, arrotava na mesa e batia em minha mãe. Bem feito, era minha vingança. Não que eu não gostasse de minha mãe, mas odiava apanhar. (Pausa). Estava chegando minha festa de quinze anos, e meu primo estrearia a camisa. Quem me disse? Eu estou dizendo. (Pausa). Lembro que no dia de praia todos bebiam. Menos as crianças, é claro. Mas eu não era mais criança. Minha mãe não tinha entendido isso ainda, e só quem percebia era meu primo. Não sei bem se percebia ou eu me fazia perceber, só sei que na praia ele me olhava, pelo menos na praia, com os olhos de desejo que olhava pra todas as primas. Ele só parou de olhar quando começou o namoro com Ritinha - minha prima. Foi só uma semana. Ninguém gostou na família, mas o cachorro era lindo! Meu pai confundia demônio com diabo, mas na hora de chamar minha mãe, pra qualquer coisa que fosse, eu era a reserva e não podia brincar. Tudo bem, adorava meu velho pai. Minha mãe, não. Só sentava na mesa depois de tudo posto. E não queria minha ajuda. Eu era muito nova pra tudo, menos pra cuidar de meu pai quando ela não estava. (Pausa). Todas as minhas primas tinham feito quinze anos, meu pai estava doente e na última festa eu tinha apanhado só por vestir uma roupa de minha mãe que não dava mais nela. (Pausa). Quanto mais perto dos quinze anos eu ficava, menos eu podia ficar com meu primo, e mais com minha prima. Lembro bem que meu peito já tinha nascido, e tinha vergonha dos cabelinhos que nasciam na xereca. Me sentia

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culpada pelo olhar de minha mãe na minha primeira menstruação. Foi cedo... (Pausa). Foi bastante cedo que minha mãe me levantou pra ir à praia. Era moda os biquínis asa delta, só que eu não podia ter pois era criança ainda. Minhas primas todas lindas de biquíni, meu primo olhando pra elas e um mal-estar de minha mãe encurtava a praia. Aquele dia foi chato. Todo mundo passou mal. Eu era a melhor no vôlei, apesar de ser pequena. “Brincadeira de moleque!”. Com quem eu ficaria? Conversa de mocinha eu não podia entrar, a curiosidade foi pior. Lembro que um “mostra aí”, “pega aqui”, risos e já estava tarde, me deixaram dormir na casa de minha irmã. Lembra, a do sangue!? Sabe como foi o pacto? A porta bateu e meu primo tinha chegado tarde. Namoradinhas. O cão avisou, ele sempre avisa. Lá em casa ninguém ouvia. Só eu. Prometíamos ser irmãs até a morte. “A morte de quem?”. Foi a pergunta de meu pai quando minha mãe saiu de preto. Amiga de minha mãe morria sempre, e seus vestidos pretos eram lindos. Como o da festa, que eu apanhei. Doeu, mas tinha sido boa a noite. Ouvi meu primo chegando e deu pra ver seu último beijo na namorada. Se é que aquilo era um beijo, e não sabia com quem brincar, as conversas de mocinha eu tinha com minha irmã, minha prima, meu primo entrou em casa e o cachorro parou de latir. Que coisa nojenta era sangue, e tinha ficado menstruada na casa de minha prima. De noite. “Podia ter ligado de noite e avisado a gente”. Meu pai dizia que eu já era uma mocinha e irritava mais minha mãe. Meu pai tinha ficado doente e triste, mais de repente do que velho. (Pausa). Eu também entristeci. Não fui pra praia, fiquei com meu pai e não tinha o que fazer. Fui tomar banho de mangueira e meu biquíni ficou molhado, praia só na semana que vem, e minha mãe chegava alegre. (Pausa). Bom mesmo era quando minha tia viajava e eu podia ficar sozinha com minha prima. “Deixou a porta do armário aberta!” Não! “Não me responda!”, e eu não podia curtir aquele final de semana na casa de minha prima. Lembro que a cama de meu pai era enorme, mas só cabia ele na minha cabeça. Nunca tinha visto minha mãe deitada nela, até que... (Pausa). No primeiro dia que eu roubei o batom de minha mãe, aproveitei e abri a “nunca abra” gaveta de meu pai. Não tinha nada a ver o batom com aquela arma. Ainda bem que eu fechei a gaveta, pois o

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armário era mais uma vez motivo pra eu apanhar. (Pausa). Foi burrice colocar o batom de minha mãe pra ir à praia. Meu primo achou lindo e eu apanhei de novo. Tinha que ficar mais uma vez com meu pai, doente e velho, um ex-militar aposentado, nada a ver a arma e o batom, mas os dois apontaram pra mim algum desejo. Queria ir à praia. (Pausa). Mais um ano de vida, muitas felicidades, “é big” e meu primo sem a camisa, meu pai mais velho e mais triste e meu primo sem a camisa. Tudo bem, a gente combina depois, e mais uma vez dormia, ficava até tarde e via os beijos, as mãos de meu primo e o cão avisando. Bronca já era costume, e eu queria mais que um beijo, meu pai chamava minha mãe de amor e ela saía de casa. Meu pai podia até ficar triste, mas a volta de minha mãe todo dia lhe alegrava. O pacto de sangue funcionava agora, e roubávamos, eu e minha prima, o batom de minha mãe. Conversávamos na cama de meu pai e ele quietinho só despertava do cochilo com o latido do cão e “Sua mãe já chegou”, não, íamos até a sala sem ter o que fazer e voltávamos felizes, ficávamos com meu pai, e não mais cuidava dele sozinha. (Pausa). Minha tia nunca mais tinha viajado. Lembro que quando eu ia na casa dela brincava de me esconder. Quase sempre nos armários. A casa dela era cheia de armários, e era sempre a casa dos esconderijos. Lembro também que escondemos o batom de minha mãe em cima de um deles, até o dia que ela ia sair, procurou justamente este, apanhei e não resolvi nada, não estava comigo, e um pacto de sangue era mais que um respeito por tia, minha prima rindo na grande cama de meu pai, e minha irmã era o pacto até a morte. (Pausa). Mais uma festa e ele sem a camisa que eu tinha escolhido. Foi tratado super bem por minha mãe e desprezado por mim. Só eu e minha prima, e ela engessada ao tentar pegar o batom em cima do armário. O médico disse que ela teve sorte. Eu não, fiquei sozinha, eu e meu pai, sozinhos, um olhando a solidão do outro. (Pausa). Isso nunca mais ia acontecer, jurei, e na sorte de uma praia, voltei cedo, eu e todos, minha prima no mar, água no pulmão, “sapeca”, o médico coçava a cabeça dela e eu lembrava de meu pai. Meu primo tinha salvado sua irmã e a minha, e o cachorro latiu. (Pausa). Minha tia ia viajar, passar bom tempo fora. Eu doida pra ficar em sua casa, meu pai doente, mais uma vez minha prima comigo na

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cama, as duas de batom e no cochilo eu mostraria a arma. Minha mãe ia sair mais uma vez. Meu pai essa época dormia mais que tudo e não enxergava quase nada. Combinamos ir pra casa de minha prima, a casa vazia, e fazer o que quiséssemos. Lembro que tínhamos mais planos que armários e eu queria tirar o cheiro de mofo da camisa. Lembro também que íamos experimentar roupas pra nova mocinha da família, eu, quinze anos quase, peito, bunda, pentelho e repreensões de minha mãe. “Já está com corpo de mulher” me fez usar maiô, por ordem de minha mãe, e mostraria minha barriga branca pra minha prima naquele dia. Meu pai roncou e fomos. Meu único medo era encontrar com meu primo. (Pausa). Lembro que no primeiro ronco deixei meu pai, no segundo bati a porta e no terceiro devia estar com a chave na mão, a porta nunca fazia barulho, minha prima alisando o cachorro, eu correndo na ponta dos pés, “ninguém pode ver, nem ele” e entramos em casa. A namoradinha viajando deixava a grande possibilidade de meu primo estar em casa, mas os gemidos confundiram tudo. Não sabíamos o que fazer. Eu adorava os beijos e mãos de meu primo, mas o pacto não revelara isso à ela. Como dizer. Foi excitante? Minha prima me chamou e estávamos perto da porta. “Você já é uma mocinha” e apertou meu seio em sua mão. “Venha ver”. Sorri. “Já viu algum homem nu?”. O riso diminuiu. “Um pinto duro?... nem mole?”, no canto da boca deixei transparecer o que estava vendo, e as mãos de minha prima foram do meu seio pra sua boca. Um vestido preto na cadeira. O cão latiu. Meu pai deve ter acordado e fugimos de minha mãe, meu primo e da lembrança. Adiantaria pouco a fuga, e muito menos a mentira. Mas contar pra quem? As mãos de meu primo suadas, as costas de minha mãe mexendo e um sorriso em seus cabelos, que mexiam, mexiam, mexiam, mexiam... o vestido preto... só vesti uma vez um vestido preto e estava sujo, apertado, e meus seios nunca haviam balançado como os de minha mãe. (Pausa). Meu primo nunca mais tinha ido lá em casa. Festa agora só no meu aniversário. Minha tia voltava de viagem com a notícia de outra, o cão latiu, meu pai acordou de um pesadelo e minha mãe tinha acabado de chegar em casa, toda de preto, pra consolá-lo. “Morreu mais alguém?” perguntou ele, e minha mãe acariciava ele bem mansa. (Pausa). Nossos segredos eram agora parte do nosso

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pacto. Até a morte. Só conversávamos dentro dos armários e meu pai na cama, roncando. O barulho da chave na porta fez a gente sair correndo do armário, deixando a porta aberta e o joelho de minha prima sangrando. Que coisa nojenta era sangue. Minha mãe brigou com nós duas, contou pra minha tia e ela ia viajar de novo. Ficava cada vez mais longe meu aniversário e eu não poderia brincar mais com minha prima, naquela viagem que meu pai, cada vez mais velho, doente e triste, quando não via minha mãe, ficava cada vez mais longe de mim em sua imensa cama. Eu esperei minha mãe sair. Era uma dificuldade cada ronco de meu pai. O cão latiu na saída de minha mãe. Não queria que minha prima visse o meu pai e nem eu queria ver as mãos de meu primo. Mas alguma coisa eu iria fazer. Lembra do pacto de minha irmã? Ela mesmo! Não falei dela não? A do pacto de sangue!? Ela deixou, naquele dia, a chave da porta comigo, e levou o cachorro pra passear. Deixei meu pai indo tão distante na cama, que tive a impressão que nunca mais ia ouvir ele roncando. Ao sair de casa, o cão latiu e ele nunca mais roncou. Corri na ponta dos pés, que nem naquele dia, deixei em casa tudo aberto. Minha prima devia ter ido pra bem longe com o cachorro, só via a chave rodando, a porta nunca fazia barulho, e entrei. Os mesmos gemidos de antes, lembrei das mãos, minha mãe batendo, o carinho de minha prima, as mãos suadas de meu primo, e deixei minha mãe num daqueles armários. Meu primo não, tratei dele como devia. Encostei ele na cama, vesti a camisa que minha prima tinha lavado, passado e o pacto era pra sempre, até a morte. Sem cheiro de mofo, adorava o cheiro das flores, o quintal de minha mãe e o nome do cachorro era.... Ele já deve estar chegando. Preciso me arrumar!

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MONÓLOGO 4 (SEM TÍTULO)

HOMEM 2:(Homem sentado em uma mesa com um papel à sua

frente. Ele lê atenciosamente este papel) “...Até algum dia”. (Ri). Algum dia, essa é boa. Ficaria muito melhor um até nunca mais. Soaria mais verdadeiro. Como nossa música, lembra? Sei que você odeia música, mas não custava nada uma dose de romantismo. (Pausa). Lembro que naquele dia minha mãe me obrigou a tomar sopa. Usou o mesmo argumento de sempre; “É só porquê seu pai morreu...”, e eu não suportava futebol, meus colegas marcavam pra assistir e eu nunca ia. Na casa de Pedro era diferente. Tinha sua mãe e sua irmã que me tratavam muito bem, e Pedro era gente-fina. Era então São João, e minha família ia viajar em peso para o interior. Eu tinha prova e a sopa tinha esfriado, a última colher de xarope e um “Fique direito com sua tia” me faziam voltar a casa de Pedro. (Pausa). Ficava a maior parte do tempo com ele. Minha tia era velha e chata, só que me adorava. Não tinha filhos, e Pedro era motivo de inveja. (Pausa). “Não dá mais pra continuar” era o pior adeus que se podia dar a uma pessoa; acho eu, pelo menos, pois foi também o único verdadeiro adeus de minha vida. Até agora, pelo menos. (Pausa). Pedro era mais velho que eu e a gripe também fazia com que minha tia proibisse o que eu acabara de fazer. Fugir de sua casa era simples, a chave ficava atrás do jarro, e minha mãe era irmã dela. (Pausa). Pedro era alto, bonito e forte; pelo menos pra mim, e me chamava pra olhar a lua, pelo menos pra mim. Era impressionante a confiança que minha mãe tinha em mim, e Pedro me deu um beijo. Era tarde quando minha tia me acordou, minha mãe vinha me buscar e conheci você. Era fácil não lembrar que minha mãe me apresentou você, eu já tinha me apresentado com os olhos. Adorava xingar a bichinha do sétimo andar e minhas mãos suavam ao apertar a sua. Estranho mesmo era não gostar da irmã de Pedro. Estranho era, pois depois da lua não vi nem ela nem minha tia velha e morta desde então. Outra morte sem despedida e só você me dizendo “...Até algum dia”. (Ri). Algum dia, essa é boa. Ficaria muito melhor um até nunca mais. Soaria mais verdadeiro. “Mais

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verdadeiro e mais verdadeiro”, minha mãe me dava um tapa e eu prometia não mais mentir. Parei assim como você, (ri), não é? Aliás, mentir nunca foi do seu feitio, dizia verdades demais. Talvez por isso não tenha dito um reconfortante eu te amo. Era o que eu precisava dizer pra Pedro ou pra lua, por aquele momento. (Pega o papel e volta a ler). “Sua mãe nunca gostou de mim....”, mas é claro! Como ela iria gostar do homem que me fez filho, pai, mãe e mulher, principalmente mulher, pois mãe ela deixaria de ser algum dia, mas pra ela, a mulher ficaria na minha cabeça como única e perfeita. Respeite seu pai eu não ouvia mais, era pior agora. “Se seu pai estivesse aqui você não faria isso”, ela me dominava com chantagem, vivíamos a perfeita relação mãe e filho. Vivíamos até que ela descobriu que ia me perder pra outro homem. Ela nunca soube de Pedro,minha tia estava morta e eu não veria ele. Tentei um dia, de ônibus, ir até sua casa, mas as pernas me tremeram e eu já te conhecia. O resto da noite foi a vontade de olhar a lua, seus olhos e a boca de Pedro. (Pausa). Minha mãe tinha acabado de me acordar, olhei o sol, a certeza do dia e fui ao seu encontro. Lembrei de ter sido apresentado à uma pessoa que eu não sabia de onde vinha. Voltei pra casa com o pão e uma bronca de minha mãe. No meio do café a campainha tocou, você já estava interessado em mim... minha mãe outra vez me apresentou à você, só que agora era o vizinho do 29. Tinha ficado mais fácil a distância e mais difícil o começo. Era pra ser difícil, pois você me convidou pra ir em sua casa e minha mãe adorou a idéia, disse que eu não me enturmava, não gostava de futebol, e, ha! Lembro bem que você disse: “Também detesto”, esporte bruto, não foi? Bem, só me importava a sua delicadeza, “como é que foi com seu amigo”, nada tinha acontecido, o maior respeito, foi legal, ele me mostrou uns livros de informática. Saía do futebol para o computador. Merda! (Pausa). Mas tudo bem, ser exigente era fácil quando se é sozinho e não se precisa de alguém. (Pausa). Fui dormir pensando no que poderia ter acontecido se eu beijasse ele, ele caiu no sofá, eu por cima dele, e no terceiro dia deixava pra trás todas as dúvidas à respeito de mim. Se fui bem, não sei, mas que foi bom, foi... minha mãe então estranhava eu sempre indo pra sua casa e me perguntou certo dia: “Drogas”, eu ri, dei um beijo nela e disse, pra você talvez.

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Ela não entendeu, e fiquei sem entender as lições de computador enquanto você me beijava com os olhos. (Pausa). Seus olhos, sempre falo neles sem nunca olhá-los direito. Sempre fui assim, aprendi com minha mãe. Ela descobria logo o que eu estava sentindo, e não queira que você soubesse o quanto estava apaixonado, palavra forte, dizia minha mãe ao ver a novela, e completava perguntando quando eu ficaria. O que ela mais queria era ter netos e eu querendo o neto dos outros... (Pausa). Ter humor é um dom, dizia minha mãe, dom esse que eu tinha perdido, sorumbático pela casa. Que palavra feia, não é? (Pausa). Minha mãe perguntava sobre progressos nas aulas de computação e eu dizia, não era aula, só aprendia bobagens, jogos, brincadeiras que você fazia por entre minhas pernas e que me deixava todo suado, lembra!? Ser tímido tem suas vantagens, mas fui eu quem te agarrei. Você sabia tanto de minha pessoa, e quando eu estava com você nem eu sabia de mim. Isso é piegas mas é verdade. (Pega o papel e lê). “Estou me mudando”. Lembra que você mentiu pra mim, pelo menos por três horas, tempo do caminhão chegar. Tão pouco tempo e já ia embora. Minhas noites voltavam a ser lua, quando tinha, e sua o tempo todo. Você ainda não sabia de Pedro e tinha ido embora. (Pausa). Minha mãe me deu um beijo desejando boa sorte. Servir ao exército era estranho até chegar no quartel. Caso foi o que não faltou, quando não estava na solitária. Tinha me tornado homem e não podia voltar pra minha mãe. Servi ao exército e me mudei de casa, com economias minhas e um emprego qualquer, arranjado por minha mãe, e veja, recriminado por ela. Minha mãe passaria a viver sozinha quando a campainha tocou, era você com flores. Sacanagem, a estabilidade me servia de perdição, minha vida se arrumava pra você entrar nela e se aproveitar de mim. Foi só o que você fez. Quando então descobri o que você fazia da vida, já não tinha mais sentido me afastar, bem verdade não conseguiria. “Nosso ex-vizinho morando com você”, minha mãe não era besta e se fazia de desentendida. Desaprovou e veio cumprimentá-lo, visitando pela primeira vez essa casa. (Pausa, lê o papel). “Não sabia de Pedro”. Confiança? Isso não era questão de confiança, era intimidade. (Lê o papel). “Mais intimidade que a gente tinha?!” Ah, por favor, você já sabia de tudo e não precisava drama. Só me arrependo de

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não ter contado antes pois a partir daquele dia tudo era motivo pra Pedro e conte mais e não foi só aquilo, de vez em quando. (Pausa). Minha mãe deixou de me visitar depois que você veio. Reclamava de solidão e só eu fiquei, naquele dia em que você me deixou esperando e só voltou depois de uma semana sem trabalho e saudade. Foi o primeiro aviso. Aquele infarto me mostrava muita coisa. Fiquei na sala de espera sozinho, olhando uma foto de minha mãe na carteira, você longe e um “Ela é bastante forte, foi só um susto”. O maior susto foi ver Pedro e sua irmã no hospital, ambos desconsolados com a morte da mãe. Outra despedida sem adeus. Pelo menos minha mãe não tinha ido, pensei no bar em frente ao hospital, já relaxado e frente à duas pessoas que me marcaram profundamente, me apaixonei, uma recaída, e acordei no outro dia numa cama larga, a irmã de Pedro ao meu lado e a foto de minha mãe na mão. Me vesti apressado, preocupado com aquele que pouco ligava pra mim... talvez por isso! Bem, a irmã de Pedro acordou a tempo de se despedir e me dar outro beijo. Fiquei mais um pouco, minha mãe já estava em casa e você não dormira na minha. Nossa? Já não lhe bastava eu ser totalmente seu? (Pausa). Durante uma semana saímos separados, eu encontrando a irmã de Pedro e você se perdendo na vida. (Pausa). Você ia viajar, mais uma de suas sumidas, e aproveitei pra ficar na casa de minha mãe. Reparei no quadro de meu pai como nunca havia reparado. Ele parecia me repreender com aquela cara de sério que sempre teve. “Isso é que era homem”, minha mãe batia no meu peito, já totalmente recuperada, “Como está seu amigo”, acho que até demais. Foi estranho a campainha tocar. Fui atender achando que a viagem tinha se encurtado, e me surgiu um senhor de boa aparência, perguntei o que ele queria e um beijo de minha mãe respondeu. Sentia agora o mesmo que ela, ao me perder pra outro homem. Seria uma relação maravilhosa, a nossa, se não houvessem homens, desde meu pai, atrapalhando. Agüentei o intruso uma semana até o outro, você, vir me buscar. Confesso que foi romântico, apesar de não ser costume. Botou uma música no carro que eu não sabia como tinha comprado e bem, também não queria saber, só me restava algumas horas antes do sono. (Pausa). Foi uma retomada na minha vida, essa semana que eu passei com minha mãe. Fui tratado bem pelo seu

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namorado, apesar de sua aparente falsidade, e minha mãe tinha tratado você bem. Ela só errou quando falou de Pedro. De novo a mesma crise, gritos, ciúmes idiotas e o telefone tocando. Atendi, era Pedro. O “liga depois” não deu pra disfarçar, foram mais gritos e um “não sei quando volto” e a porta batendo. Pensei em ligar pra minha mãe, mas ele tinha quebrado o telefone de raiva. O jeito era olhar a lua. Nova. O céu escuro. Somente a luz do abajur me iluminava. (Lê). “Parto. Pensei em ficar mas não podia”. Parto, parto... parto... lembrei de minha mãe e peguei um táxi até sua casa. Ninguém. Deve ter ido jantar fora, um infarto fulminante, eu de novo no hospital, sem Pedro, sua irmã, sozinho chorando e você na rua. Perdi a única pessoa que me respeitava. Era o suficiente. Alguns dias depois tudo voltaria ao normal. Pensava eu, pelo menos. Você voltou, como sempre, ou como sempre deveria ter voltado. Acho que meu ódio era tão grande que beirava o amor, vendo você ali, indefeso do outro dia, pálido de todo dia, triste de toda a vida. Sempre quis saber o porquê de você ser assim triste. Não conhecia sua família. Era sozinho. Talvez a homossexualidade o perturbasse. O dia mais triste da minha vida, passei curando a sua depressão. Isso era amor? Você nem sabia de minha mãe e sorriu no segundo carinho. Deixei tudo pra lá, ou tentei, e fomos dormir. Chorei a noite, sozinho, chorei a lua, sozinho, e me vi cercado de solidão com você ao meu lado. Acordamos com o telefone, não podia ser Pedro e era. Resolvi não disfarçar. Meu coração bateu mais rápido, sem no entanto imaginar porquê ele continuaria assim depois. A irmã de Pedro estava grávida e o filho era meu. Engraçado que nesse dia você nem reagiu, foi na cozinha pegar um copo de água e trouxe outro pra mim. Não conseguia entender; uma mulher, um filho, uma traição e um copo de água?! (Pausa). Nesse dia você estava tranqüilo. Mesmo depois da notícia, continuou calmo e tomou café da manhã comigo. Disse-me então que ia sair e voltava logo. Estava calmo mas também triste, cabisbaixo. Realmente você não demorou. (Pausa, lê). “Gostava à minha maneira, se era boa ou ruim, eu gostava”. Nem um amavazinho!? Lembro como você olhou disfarçadamente pros meus olhos... minha timidez às vezes ajudava. Sempre dizia isso. Pena que eu perdi o meu humor. “Ter humor é um dom”. E você, mãe, que teve o dom de amar!? As coisas

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aconteciam comigo numa avalanche. Aquele pouco tempo que eu passei te esperando, fez-me rever muita coisa. De repente eu era pai, órfão, e de repente eu não era nada. O que eu tinha construído? Uma gravidez? Eu morava no meu apartamentozinho, com outro homem, meu namorado, minha mãe tinha tido um ataque fulminante e eu era pai. Como eu seria pai? Ser pai era ter autoridade e a porta batendo revelava sua chegada. Me entregou um envelope e sumiu não sei pra onde. (Lê). “...Até algum dia”. “Não dá mais pra continuar”. “Sua mãe nunca gostou de mim....”. “Não sabia de Pedro”. “Mais intimidade que a gente tinha?! Parto. Pensei em ficar mas não podia. Gostava à minha maneira, se era boa ou ruim, eu gostava”. Nada original suas palavras. Pensa que eu não vou te esquecer por elas? De jeito nenhum. Outras lembranças virão, melhores ou piores que elas, e talvez menos verdadeiras. Eu tinha mentido pra minha mãe. Eu era gay. Meu primeiro relacionamento foi um beijo em Pedro, vizinho da minha tia. O traí com sua irmã, anos depois. Quem eu fui? Quem sou eu agora? Um mentiroso? Você não sabia de Pedro porque eu tinha medo de contar. Sempre invejei sua coragem. As noites de lua eu olhava pro céu e lembrava de Pedro, um amor inocente, se é que eu posso dizer que amei. Agora que você não está aqui eu posso dizer. Eu não soube amar talvez quem merecesse. Mas agora eu seria pai. (Ri). Posso ter sido fraco, mesmo em sua despedida, a única despedida que eu tive. Um adeus. Mas eu poderia ficar forte. Você foi fraco. Cortar os pulsos na banheira. Sem originalidade nenhuma. Dizer adeus e cortar os pulsos. Os outros não me disseram adeus. Acho que nem eu direi. Foi pouco nosso tempo, e eu não sei como será o meu. Eram dois envelopes. Um aberto, como seus pulsos, o outro, fechado, você me deu. Deixar uma semente estragada na terra. Nessas horas a gente até vira poeta, e essa merda que deu positivo... (Pega o papel e rasga).

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PARTE 2 - Cláudia Barral

A Conversa de Lucila

(No escuro ouve-se o bater de asas. A luz vai lentamente iluminando o quarto de Lucila, o anjo está pousado em uma mesa.) O anjo – Lucila, quer montar nas minhas costas?Lucila – Você já não me aguenta.O anjo – Aguento sim!Lucila – Eu não quero.(O anjo começa a sacudir as suas asas.) Lucila – Você está fazendo vento. O anjo – Incomoda?Lucila – O suficiente. (O anjo fecha a asas. Permanece silêncio) Lucila - Eu queria lhe fazer um pedido. Não me diga

as coisas.O anjo – Mas eu estava calado. Lucila – Eu sei. Mas não quero que me diga nunca

mais. O anjo – Por que?Lucila – Por que enquanto você fala eu, sem perceber,

aprendo a ouvir. O anjo - E se souber ouvir? Lucila - Toda palavra será perigosa.. O anjo - Ninguém lhe fará mal sem que você permita.

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Lucila - Mas se eu ouvir as pessoas e as suas frases que outra coisa estarei fazendo senão permitindo?

(Pequena pausa) O anjo - As pessoas nem sempre são ruins, Lucila.Lucila - Mas as pessoas sempre têm medo.O anjo - E isso as torna ruins?Lucila - Isso pode torná-las qualquer coisa. O anjo - E você? Não tem medo?Lucila - Muito medo de muitas coisas. O anjo - Isso quer dizer que eu não devo confiar em

você?Lucila - Você pode confiar em mim, contanto que não

seja absolutamente. O anjo - Por que?Lucila - Porque confiar absolutamente em alguém é

tirar-lhe o direito de errar.O anjo - Você confia em mim?Lucila - Eu jamais confiaria em um anjo. O anjo - Um anjo não tem erros, não tem medos, não

poderia traí-la! Lucila - Um anjo não tem erros, não tem medos, como

poderia me compreender? O anjo - Então prefere ser salva pelas mãos das

pessoas? Lucila - As pessoas não se salvam, se aliviam.O anjo - Então admite que são boas?Lucila - (Sorri) Ninguém me fará bem sem que eu

permita!

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O anjo - E você permite?Lucila - Às vezes.O anjo - Como?Lucila - Falando, apenas falando. Primeiro é

necessário trair o meu próprio silêncio, porque essa traição é a minha voz, e, enquanto eu lhe entrego as minhas palavras, a outra pessoa me dedica o seu silêncio e isso é o máximo que um ser humano pode fazer pelo outro e é esse o milagre.

O anjo - Então lhe faço bem porque você fala e eu ouço.

Lucila – Não, você é apenas um anjo. Se houvesse em você a capacidade de me fazer o mal e, ainda assim, me fizesse o bem, então seria bom. Mas você não tem essa escolha. Um anjo só pode ser bom e por isso não é!

O anjo – Então eu não sou bom??Lucila – (Irritada) Ah, quantas perguntas!!(Pequena pausa)O anjo - Por que você tem medo de aprender a ouvir?Lucila – Porque existem as palavras cruéis. O anjo - Há o reverso do milagre, então?Lucila - Teria que haver, não é mesmo? O anjo - Mas as pessoas só a ouvirão se você ouvi-las!

É sempre uma troca.Lucila – E é isso o que eu não quero! Essa troca. As

conversas.

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O anjo – Mas eu pensei que você gostasse. Lucila – Eu gosto, ainda.O anjo – Pela primeira vez eu não te entendo.Lucila – É tudo e sempre um arrependimento. Ou me

arrependo das coisas que não disse quando precisava, ou me arrependo de ter dito o que não mereciam ouvir e as duas coisas são vazias.

O anjo – Mas não pode ser sempre assim. E quando conversam e riem? E quando contam piadas? E os segredos?

Lucila – É maravilhoso, eu sei.O anjo – Pois então.Lucila – Mas nada disso impede que as pessoas se

afastem. Às vezes é ainda mais fácil acontecer com alguém a quem já dissemos tudo. As pessoas se abandonam, tão facilmente! E aí acontecem as conversas cruéis, as que eu não quero ter!

O anjo – Eu sei.Lucila – Sabe?O anjo - Quando você era menina e eu chegava era

uma alegria, Lucila, era a sua maior alegria. Hoje eu cheguei aqui e você sequer sorriu, percebe? Você pode pensar que não mas eu, apesar de ser um anjo, sei muito bem o que pode significar a falta de um sorriso. Além disso, posso não conhecer bem a forma como as pessoas se entendem, mas eu sei perceber quando alguém já se cansou dos mesmos assuntos. Eu te escuto, Lucila...

Lucila – E me ouve dizendo que não confio em você.

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O anjo – Ouço-lhe dizendo que não posso ser bom.Lucila - E, se algum dia eu te amei, hoje lhe diria que

não te amo mais.O anjo - E, se tivesse coragem, me pediria para ir

embora. São assim as conversas cruéis?Lucila - Compreende agora? O anjo - Lucila, eu nunca desejei que fosse eterno. Se

a menina que eu visitava antes de você nascer não tivesse crescido e me mandado embora, eu jamais lhe conheceria! Se você não me mandar embora, como conhecerei a próxima menina? Compreende agora?

Lucila – E como você sabe que haverá uma próxima menina?

O anjo – Alguma vez já deixou de haver um dia após uma noite?

(Lucila sorri)O anjo – Pois então! Eu já espero a manhã seguinte! (Ficam um tempo em silêncio, o anjo se empoleira na

cadeira de Lucila) Lucila – Já reparou que, às vezes, as pessoas estão

conversando e, de repente, ficam caladas?O anjo – Dizem que quando isso acontece é sinal de

que um anjo caiu.Lucila – Isso acontece quando já não há mais nada a

dizer. (Ficam novamente em silêncio. Lucila olha para o anjo) Lucila – Quando você fica empoleirado, exatamente

assim como você está, parece uma galinha gigante.

O anjo – Eu vou embora, Lucila.

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Lucila – As coisas têm que ser assim?O anjo – As coisas acontecem como precisam

acontecer.Lucila – Você vai voltar?O anjo – Se algum dia você quiser que eu volte.Lucila – Terá raiva de mim?O anjo – (Sorrindo) Nem que eu quisesse. Eu sou um

anjo, esqueceu?Lucila – Quer dizer que, depois de tudo que eu lhe

disse, você ainda gosta de mim?O anjo – O amor de um anjo é eterno..... Lucila – E existem as coisas eternas?O anjo – Lucila, são os anjos que não existem. Adeus.

(O ANJO SOBE NO PEITORIL DA JANELA, ENDIREITA AS SUAS ASAS E SAI VOANDO.)

Cadernos do GIPE-CIT. Salvador, n. 3, p. 78-82, fev. 1999

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