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Revista do Lume – Pág. 89 Caiu na Rede é Riso Ricardo Puccetti Lume Teatro lotado. A multidão espera pelo início do espetáculo. A música começa a tocar. De repente um clown aparece andando acelerado no ritmo da melodia. Ele vem pelo meio do público trazendo na mão um rolo de fita de isolamento, daquelas que a polícia usa para isolar acidentes. Com a fita ele vai unindo uma a uma as pessoas da platéia. Em pouco tempo, todos estão atados aos vizinhos e é como se cada um fosse, agora, parte de um mesmo corpo. A platéia já não é mais a mesma. A euforia e o sentido de comunhão extrapolaram os limites do que o "teatro normal" provoca. O clown sobe ao palco e começa seu espetáculo. Esta entrada contém em si todos os elementos que um espetáculo de clown, no meu modo de ver, deve possuir: a apresentação do clown; a relação direta e verdadeira com cada pessoa do público; e a transformação deste mesmo público pelo riso e pelo saborear dos mais distintos sentimentos. Tenho a impressão, talvez mesmo a certeza, de que o "diálogo" do clown com as pessoas do público, nas suas mais diversas possibilidades, é fundamental para que o espetáculo possa acontecer em sua plenitude. E diálogo existe quando pelo menos dois indivíduos estão frente a frente dispostos a falar e também a ouvir. Quando o clown atua, o público deixa de ser apenas aquele que vê; ele participa e é parte integrante do que acontece em cena. O clown não ignora o público, ao contrário, atua para ele e espera que ele reaja. Por sua vez, a platéia entende esta dinâmica e percebe a postura disponível do clown: ele está lá para trabalhar para ela. É claro que cada clown tem sua maneira de estabelecer esta "conversa"; cada um tem uma técnica própria de prender a atenção, instigar e provocar reações ativas na platéia. Podemos citar como exemplos Xuxu, que sempre pergunta para alguém "Eu tô bonito?" ou que ordena histericamente "Silêncio

Caiu Na Rede é Riso - PUCCETTI, Ricardo

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Page 1: Caiu Na Rede é Riso - PUCCETTI, Ricardo

Revista do Lume – Pág. 89

Caiu na Rede é Riso

Ricardo Puccetti Lume

Teatro lotado. A multidão espera pelo início do espetáculo. A música começa a tocar. De repente um clown aparece andando acelerado no ritmo da melodia. Ele vem pelo meio do público trazendo na mão um rolo de fita de isolamento, daquelas que a polícia usa para isolar acidentes. Com a fita ele vai unindo uma a uma as pessoas da platéia. Em pouco tempo, todos estão atados aos vizinhos e é como se cada um fosse, agora, parte de um mesmo corpo.

A platéia já não é mais a mesma. A euforia e o sentido de comunhão extrapolaram os limites do que o "teatro normal" provoca.

O clown sobe ao palco e começa seu espetáculo.

Esta entrada contém em si todos os elementos que um espetáculo de clown, no meu modo de ver, deve possuir: a apresentação do clown; a relação direta e verdadeira com cada pessoa do público; e a transformação deste mesmo público pelo riso e pelo saborear dos mais distintos sentimentos.

Tenho a impressão, talvez mesmo a certeza, de que o "diálogo" do clown com as pessoas do público, nas suas mais diversas possibilidades, é fundamental para que o espetáculo possa acontecer em sua plenitude. E diálogo existe quando pelo menos dois indivíduos estão frente a frente dispostos a falar e também a ouvir.

Quando o clown atua, o público deixa de ser apenas aquele que vê; ele participa e é parte integrante do que acontece em cena. O clown não ignora o público, ao contrário, atua para ele e espera que ele reaja. Por sua vez, a platéia entende esta dinâmica e percebe a postura disponível do clown: ele está lá para trabalhar para ela.

É claro que cada clown tem sua maneira de estabelecer esta "conversa"; cada um tem uma técnica própria de prender a atenção, instigar e provocar reações ativas na platéia.

Podemos citar como exemplos Xuxu, que sempre pergunta para alguém "Eu tô bonito?" ou que ordena histericamente "Silêncio

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total !!"; ou Nani Colombaioni que em muitos momentos atua como se ignorasse o público, mas tendo seu foco totalmente voltado para ele; ou ainda o próprio Tortell Poltrona, cuja entrada descrevi no início do artigo.

As três táticas têm o mesmo efeito: quando estes clowns aparecem o público gosta deles e quer que eles continuem em cena. Entretanto, apesar dos diferentes modos, basicamente todos obedecem a uma mesma estrutura: entram, e é como se jogassem uma isca, com a qual vão fisgar alguém da platéia e, através deste primeiro contato, vão ampliando sua relação, estendendo-a para as demais pessoas, como se as envolvessem numa rede. A imagem da isca e da rede de pesca ilustra muito bem a situação.

Agora, estabelecida esta ligação, o que o clown tem a dizer? O clown, enquanto artista, vem revelar ao público sua lógica pessoal de compreender o mundo. A complexa técnica da arte do clown é um instrumento pelo qual seu trabalho pode ser a expressão de sua compreensão da vida, dos homens e de suas relações.

Um problema vivido por um clown transcende seu caráter individual, porque ele é cada um e todos nós ao mesmo tempo. Ele nos põe no mesmo nível, acabando com as diferenças e desestruturando tudo o que é excessivamente cristalizado. Ele nos olha dentro dos olhos e diz: "sou um ser humano como você, ridículo, frágil e belo". E o seu prazer de existir nos contagia e nos relembra que também estamos vivos.

Frente a um espetáculo de clown a contemplação estética é quase impossível, pois nossos instintos, nossas emoções, nossos corpos, são sacudidos pela gargalhada e acariciados pelo sorriso e pelo choro. Então, abre-se caminho para a festa e a comunhão.

E foi esta espécie de comunhão, este ritual profano que escancara tantas portas dentro de nós, e cujo sacerdote é o clown, que todos experimentamos no Anjos do Picadeiro 21.

Também, com tanto clown junto!

1 O Anjos do Picadeiro 2 foi um Encontro Internacional de Clowns realizado nas cidades de São José do Rio Preto (SP) e São Paulo, em dezembro de 1998. Contou com a participação de diversos clowns do Brasil e do exterior. O Lume esteve presente com os espetáculos “La Scarpetta”e “Parada de Rua”.