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TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO CALÇANDO UM SAPATO APERTADO: OS CAMINHOS E O PERCURSO DE UMA EXPERIÊNCIA IMPROVISACIONAL Cristóvão de Oliveira; Professor Assistente; Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR – Universidade Estadual do Paraná Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato, qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar. Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto, do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar. Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em terrenos mais suaves ou menos acidentados. Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se livres. Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais diversos processos criativos. Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas cômicas. Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros. Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de 1 Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.

CALÇANDO UM SAPATO APERTADO

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OS CAMINHOS E O PERCURSO DE UMA EXPERIÊNCIA IMPROVISACIONALArtigo sobre o léxico e a prática do grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade, de Curitiba/PR

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TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

CALÇANDO UM SAPATO APERTADO: OS CAMINHOS E O PERCURSO DE UMA EXPERIÊNCIA IMPROVISACIONAL

Cristóvão de Oliveira; Professor Assistente; Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR – Universidade Estadual do Paraná

Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato, qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar.

Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto, do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar. Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em terrenos mais suaves ou menos acidentados.

Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se livres.

Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais diversos processos criativos.

Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas cômicas.

Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros.

Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de

                                                                                                               1 Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.

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corpo, estabelecendo um léxico – oral e também corporal, sintático mas também sinestésico – a partir do qual as atividades do grupo se apoiaram.

É para a experiência onde se funda este léxico que nos interessa olhar neste texto.

UM LÉXICO Faz parte de toda experiência artística a definição de um vocabulário a partir do qual

um entendimento direto se dê por via das noções vinculadas a este vocabulário. Quando a experiência acontece em grupo, mais importante ainda é possuir tais ferramentas a fim de potencializar a criação.

No Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade, há em voga um extenso vocabulário – teórico e prático, por assim dizer – que determina os encaminhamentos da experiência. Neste léxico, tomam parte desde noções próprias da improvisação até conceitos inerentes às elaborações poético-estéticas próprias do campo filosófico.

Desta feita, a apropriação que se faz de determinados conceitos faz valer os entendimentos e as noções que engendram critérios capazes de delimitar as leituras que emergem da experiência improvisacional.

Para citar um exemplo, é importante enfatizar que todo o desenvolvimento do trabalho do grupo parte do corpo do ator em dinâmicas as mais variadas. Um dos procedimentos mais comuns é iniciar a prática com um exercício intitulado “Mapa”. Neste, os atores se distribuem no espaço e, estabelecendo um vínculo perceptivo entre si, tem como “regra” mover-se passo a passo pelo espaço sem perder a conexão inicialmente estabelecida.

Podemos notar que este simples exercício é semelhante a vários outros muito básicos que costumamos [re]conhecer com facilidade. Contudo, aqui este procedimento expande as fronteiras do simples “passo a passo no espaço” para desencadear, no ator, as mais complexas estratégias criativas. Primeiro, por determinar um caráter de “contaminação” em que um simples movimento ou gesto de um ator pode atravessar o espaço criativo de outro[s], influenciando seu modo de [re]agir em sua própria busca criativa. Segundo, porque esta estratégia de contaminação dispara com a subjetividade, gerando imagens que se reconhecem como um universo narrativo que determina o que se tornará [ou não] a cena improvisada.

O conceito de “mapa” não é novo. Encontramos uma transversalidade em Deleuze quando consideramos o rizoma naquilo que corresponde à cadeia, aos pontos singulares, à multiplicidade, à cartografia.

A ideia própria de mapa está vinculada ao princípio de que é uma experiência ancorada no real, de modo que ultrapassa a possibilidade de reprodução no sentido da réplica, mas que se estabelece pela disseminação, pela percepção dos deslocamentos, pela disposição intersubjetiva dos corpos já que “o mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói” (DELEUZE, 2011, p. 30).

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um individuo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como uma obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação.” (DELEUZE, 2011, p. 30).

Portanto, percebemos no discurso do Grupo Tosco, uma conjunção de ideias práticas

(a distribuição no espaço, o mapa como ferramenta de um exercício corporal) e fundamentos teóricos (a dimensão processual do exercício, o mapa como conceito para entender a prática e fundamentar as elaborações poéticas do grupo).

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Colada a esta conjunção de ideias, a “Arquitetura” vem como um conceito vinculado ao “Viewpoints” (técnica preconizada por Anne Bogart), muito utilizada pelo grupo para se referir ao uso do espaço cênico, à distribuição dos corpos neste espaço e sua disposição cênica. Deste modo, falar sobre a arquitetura da cena, considerando os entendimentos a ela vinculados, torna-se inerente à prática do grupo.

Percebemos, então, ao falar sobre a constituição de um léxico, que no caso do Grupo Tosco seu vocabulário estabelece parâmetros e padrões que constituem uma dinâmica capaz de alinhar diversos dos objetivos que o projeto de pesquisa pressupõe, especialmente no que diz respeito a investigar a Espetacularidade a partir de procedimentos improvisacionais. Ademais, é importante ressaltar que o léxico do grupo está vinculado a conceitos teóricos que sustentam as leituras que o grupo faz do próprio trabalho, da cena improvisada e, então, do espetáculo que experimenta construir a partir da improvisação.

A esta altura talvez seja importante falar sobre como se procedem as dinâmicas improvisacionais que culminam na Espetacularidade. Como dito anteriormente, o trabalho do Grupo Tosco inicia sempre com algum exercício físico que estabeleça alguma relação com o espaço. Além do exercício “Mapa”, o grupo dispõe de uma série de outros dispositivos de jogo que se pautam no corpo como pressuposto das dinâmicas que se estabelecem.

A DINÂMICA DOS CORPOS NO ESPAÇO Criar um movimento e repeti-lo. Fluir para outro movimento e mais outro até gerar

uma sequência que se repete. A partir daí, se relacionar com a sequência de movimentos de outra pessoa até se converter em uma quase-dança que, além de vincular os indivíduos no jogo também instaura núcleos e determina sua relação com o espaço.

Esta descrição refere-se a um exercício muito importante que costuma ser chamado de “Chacrinha”. A própria denominação joga com a ideia de brincadeira, em que o que conta é a possibilidade de se valer de um movimento livre para a elaboração de uma estrutura que vai se complexizando à medida em que avança.

Assim, uma quase-dança torna-se potente o suficiente para instaurar um ambiente criativo de múltiplas possibilidades. O pensamento torna-se não mais um reflexo da linguagem verbal – a despeito do léxico do grupo – mas das imagens que o corpo gera. A leitura que se estabelece a partir de exercícios com a “Chacrinha” funda um modo de pensar arraigado sobretudo no corpo e, deste modo, as elucubrações que daí surgem estão fundadas neste pensamento que é, antes de mais nada, corpóreo.

Trata-se de uma “atividade reflexiva” (SOMBRA, 2006) onde o pensar-em-ação estabelece contornos muito mais borrados e, portanto, difíceis de definir, para a experiência. Neste sentido, tais dinâmicas corporais remontam ao pensamento de Merleau-Ponty que preconizava a importância de se partir da experiência para, então, se chegar ao sentido das coisas.

José Carvalho Sombra (2006) faz uma bela abordagem desta conjunção ao destacar a percepção como meio através do qual o corpo desencadeia ocorrências subjetivas, partindo das singularidades: “o corpo próprio, tal como eu existo e o reconheço como meu corpo, o corpo que eu vivo, que eu sou e que eu tenho, o qual se conduz como sujeito de meus desejos, intenções e movimentos” (SOMBRA, 2006, p. 25).

Portanto, se consideramos que o corpo é condutor de leituras que estão para além da linguagem verbal, o que “lemos” deste corpo é o que ele conduz como mediador, como meio através do qual as percepções se comunicam, já que “o corpo é sempre o estado de um processo em andamento de percepções, cognições, ações” (SETENTA, 2008, p. 38).

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Ao concatenarmos o entendimento de percepção ao que o corpo comunica, estabelecemos uma possibilidade de leitura mais vinculada às imagens que lemos e, então, o sentido das coisas torna-se poroso. Acima de tudo, ao restituir às percepções o caráter hegemônico das práticas do Grupo Tosco, assumimos que a experiência improvisacional se concretiza enquanto uma atividade reflexiva, ou seja, no momento mesmo em que se faz, se pensa e, portanto, se diz.

Nas práticas deste grupo, entende-se desde logo que não é possível falar do que poderia ser feito senão daquilo que se experienciou, ou melhor, não somos capazes de elaborar um sentido para uma experiência se não a percepcionamos. Em outras palavras ainda, não é possível projetarmos o que gostaríamos de ter visto sem ter vivido aquela experiência. Então, é muito comum falarmos de algo que “pensávamos” ter “lido” no trabalhos dos atores que jogam acreditando que a cena improvisada teria sido melhor caso fosse da maneira como a estávamos lendo.

Contudo, há uma estratégia presente nestas dinâmicas do Grupo Tosco que aponta para a percepção como um princípio maior no(s) olhar(es) que estabelecem estas leituras todas: a proposição das imagens como dispositivo de jogo a partir do qual a cena é improvisada. Neste sentido, a profusão de imagens desencadeia um universo narrativo estabelece pequenas células poéticas que, por sua vez, engendram um discurso cuja cena se desenvolverá em seu entorno.

Como a geração de mapas está relacionada às percepções do ator em jogo/cena, as dinâmicas corporais adotadas pelo grupo se mostram mais potentes que a palavra, seja em sua formulação reflexiva – através das leituras que os integrantes fazem de suas experiências improvisacionais – seja em seu território de ação – através dos diálogos improvisados em si.

Ocorre que as imagens geradas a cada dinâmica corporal ou em cada cena improvisada são absolutamente porosas e colocam diante dos atores uma série de fissuras a serem preenchidas, por isso a importância de ancorar a experiência improvisacional nas percepções:

As imagens são extremamente maleáveis e transitórias, indicando o princípio subjacente a todas as percepções: os mecanismos de percepção estão envolvidos em negociações, acordos de correlações estatísticas com o ambiente, para que se compreenda porque cada imagem é uma imagem, ou seja, que existe um sentido transitório em cada imagem. (BITTENCOURT, 2012, p. 29).

As dinâmicas corporais, face ao repertório construído e experimentado pelo grupo, são sem dúvida mais potentes que a palavra. Em termos de discurso, geram possibilidades mais abrangentes, mais porosas, mais abertas pois permeiam um espaço criativo conformado por um sentido que não é lógico, mas perceptivo.

As metáforas corporais, por outra via, podem promover um outro lugar para a narrativa - quando a palavra se manifesta - já que aciona a percepção de si e do outro de um modo menos "interpretativo".

O andamento da experiência é pontuado pelas metáforas corporais; neste sentido, cada ator estabelece um território de ação que é permeado pelo espaço do outro, configurando uma topologia que não está claramente demarcada já que tais espaços são permeados pela contaminação. É claro, então, que o corpo propositor como elemento criativo que gera espaços de contaminação, permite que os territórios de ação se tornem espaços abertos, onde um preenche a fissura do outro.

A narrativa, portanto, se conforma em um tipo de discurso que não é do sentido, mas da percepção. Talvez esta seja a dificuldade em preservar a percepção já que o lugar da palavra é, culturalmente, o da lógica.

Então, se o corpo é a imagem em ação, em movimento, podemos afirmar que as imagens que o corpo gera são uma “conjunção sígnica de sentidos, percepções e ações”

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(BITTENCOURT, 2012, p. 34) onde os sentidos são determinados em sua elaboração poética – ou seja, a leitura discursivo-reflexiva – as percepções são determinadas pela relação de jogo que se estabelece na cena através das estratégias e dos procedimentos de criação e as ações são determinadas pelos espaços a serem preenchidos em seu fazer-dizer do corpo (Setenta, 2008).

Adriana Bittencourt (2012) afirma que as imagens que se manifestam são ideias do corpo. Neste sentido, tal afirmação conflui para os estudos de António Damásio (2011) quando ele diz que “as imagens representam as propriedades físicas das entidades e suas relações espaciais e temporais, bem como suas ações. Algumas imagens, que provavelmente resultam de um mapeamento que o cérebro faz dele próprio no ato de mapear, são muito abstratas” (DAMÁSIO, 2011, p. 96).

Se o corpo gera imagens, o cérebro gera mapas. Contudo, este mapeamento que o cérebro faz trata-se em primeira instância fisiológica já que o cérebro é um órgão dotado de tais capacidades. Mas se considerarmos a percepção deste mapeamento, o corpo inteiro age.

Os mapas cerebrais não são estáticos como os da cartografia clássica. São instáveis, mudam a todo momento para refletir as mudanças que estão ocorrendo nos neurônios que lhes fornecem informações, os quais, por sua vez, refletem mudanças no interior de nosso corpo e no mundo à nossa volta. As mudanças nos mapas cerebrais também refletem o fato de que nós mesmos estamos constantemente em movimento. Vamos para perto de objetos, nos afastamos deles, podemos tocá-los, não podemos mais, podemos provar um vinho, depois o gosto desaparece, ouvimos uma música, logo ela termina; nosso corpo muda conforme as diferentes emoções, e diferentes sentimentos sobrevêm. Todo o ambiente oferecido ao cérebro é perpetuamente modificado, de modo espontâneo ou sob o controle de nossas atividades. (DAMÁSIO, 2011. pp. 91-92).

Portanto, se o corpo é o espaço físico das ideias e perceber já é agir, as imagens são geradas através de nossos mapeamentos cerebrais. Trata-se de um fenômeno convergente entre objetividade e subjetividade, de definição das atividades reflexivas e das elaborações poéticas que fazemos a partir do vocabulário que define nosso léxico (teórico e prático).

DO AQUECIMENTO CRIATIVO À ESPETACULARIDADE Como sabemos, um dos principais objetivos do Grupo Tosco é investigar a

Espetacularidade a partir de experiências improvisacionais. Para tanto, vale-se de um amálgama de procedimentos e estratégias que lhe dá suporte para a criação. Igualmente, há a conjunção de elementos constituintes do espetáculo, especialmente a estreita relação com sonoplastia e iluminação – elementos primordiais da cena improvisada e fundamentais para a definição do que convencionamos entender como “espetáculo”. Sobretudo, o que mais se enseja nesta busca do grupo é a relação com o público e suas possibilidades de leitura desta experiência.

É aí que o sapato aperta! Antes de se chegar ao espetáculo, é importante falar sobre o trabalho do grupo sob a

perspectiva do aquecimento, que já é criativo desde o momento em que os atores se colocam em atividade. Então, disto a que chamamos no grupo de “Aquecimento Criativo”2, surgem

                                                                                                               2 O “Aquecimento Criativo” é uma formulação que o autor utiliza para investigar a não separação entre preparação e criação, considerando as singularidades do ator. Assim, parte-se do aquecimento funcional (alongamentos, espreguiçamentos, etc) como disparador para ocorrências já criativas, potencializando o movimento, gerando imagens e criando possibilidades cênicas. Este procedimento é desenvolvido na disciplina “Projeto de Investigação da Cena II – Dramaturgia do Corpo.

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potencialidades que se convertem em intensidades para uma possível cena; destas possibilidades criativas que se manifestam desde o trabalho coletivo, emergem as células poéticas que se encaminham para o desenvolvimento da cena em um contexto narrativo ou universo dramatúrgico, revelando a Espetacularidade a partir da improvisação não-verbal.

Trata-se de um panorama de intensa potência, uma vez que o corpo-imagem gera um discurso para a cena e, portanto, os atores devem alimentar suas percepções para que, quando vem a palavra, o texto preencha e não redunde a cena. Nesta circunstância podemos observar que, quando vem a palavra, o corpo tende a ir para outro lugar como se pudesse se anular em função da palavra. O corpo, sempre presentificado pela experiência em curso, mantém-se potente, mas como se estivesse em stand-by por conta do texto verbalizado.

Um outro fator valioso nas experiências improvisacionais do Grupo Tosco é que, no escopo de suas atividades, são utilizados termos como “Contaminação” e “Atualização” para o desenvolvimento da cena.

De forma superficial, podemos dizer que a “Contaminação” é entendida não como a reprodução de movimentos que se experimentam de um ator para outro mas sim a réplica, ou seja, jogar o mesmo jogo, pulsar da mesma maneira, fluindo para uma relação de afecção. Quando o trabalho está na contaminação, existem atravessamentos e imagens muito potentes se manifestam e podem ser plenamente investigadas pelos atores.

Já a “Atualização” é um termo utilizado pelo grupo como princípio fundamental da improvisação propriamente dita mas, sobretudo, na construção da cena improvisada. Atualizar significa receber todas as proposições, não desperdiçando nenhum impulso ou nenhuma informação nova que se manifeste no momento mesmo em que a experiência acontece.

Então, ao considerar que as dinâmicas corporais se constituem como o elo principal que mantém vinculadas preparação e criação, surge uma questão ainda a ser respondida: qual o real tempo do acionamento dos códigos criativos? Quando tem sonoplastia, por exemplo, o ator tende a se deixar fluir na experimentação até que o desejo de falar ou a cena se manifestem como uma pulsão maior que o puro exercício do corpo. Ao tirar a música desse processo perceptivo, parece que a subjetividade vai encontrando novas estratégias de “manifestação”.

Aí vemos o quanto o léxico do grupo vai “apertando o pé” na medida em que seu próprio vocabulário engendra estratégias e procedimentos de criação nem sempre claros, pois os dispositivos – recursos que são usados na experiência improvisacional – não se organizam estaticamente senão pela organicidade com a qual os atores os manipulam.

Desestabilizar os dispositivos que estão se engessando, porém, começa a ser um dos desafios do Grupo Tosco, já que estes requisitam permanecer vivos e pulsantes para que sejam utilizados de forma orgânica e não impositiva. Dentre tantos aspectos inerentes às experimentações aqui apresentadas, o ponto de maior fragilidade é, justamente, a culminância na Espetacularidade.

Se de um lado vemos a dimensão processual do espetáculo absolutamente aberta – desde o aquecimento criativo, passando pelas dinâmicas corporais, o emprego da linguagem verbal e a definição do universo narrativo – de outro lado nem sempre a experiência se converte em uma cena improvisada com contornos espetaculares.

Ciosos de tal fragilidade, os integrantes do grupo investem no aprofundamento do que chamam “Dispositivos de Transição” a fim de estabelecer novos parâmetros para a concretização da Espetacularidade a partir da improvisação.

Investigar a transição das ações na conjuntura do grupo é importante já que tais dispositivos já estão arraigados. Isso significa que há uma percepção ampliada com relação a eles: quando acionados, há um trânsito entre o que estava acontecendo e uma ação nova. Portanto, os saltos não são claros, as rupturas não são definidas ou definitivas.

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É neste ponto que o sapato apertado pode causar um calo. É neste ponto que a(s) noção(ões) de “Escuta” do grupo – enquanto percepção

ampliada – ganha importante status na conformação da cena. Ecoando a pergunta de Tatiana Mota Lima (2012), perguntamos se os códigos estabelecidos pelo Grupo Tosco não estariam muito objetivados, impedindo que outros fluxos circulem na experiência improvisacional. Isto quer dizer que, talvez, o que ocorre é que há o acesso a uma “escuta objetivante, ou seja, que mantem/constrói um espaço exterior que deverá ser rapidamente lido pelos atores, e ao qual eles devem estar atentos e com o qual devem estar sintonizados para que possam produzir uma resposta corporal condizente” (LIMA, 2012, p. 4).

Aqui surge uma questão difícil de ser esgotada, posto que não é possível chegar a uma composição cênica, ou à Espetacularidade, sem certa objetivação. Contudo, uma das dificuldades observadas no escopo das pesquisas desenvolvidas por este grupo é que as singularidades agem por vezes fora das intensidades, isto é, certas ocorrências subjetivas dos atores – que se apresentam como necessidades – são deixadas de lado em detrimento da relação coletiva estabelecida pelas noções de escuta em voga. A isto, Lima (2012) chama de “volúpia pela produção de acontecimentos” no sentido de que, em geral, se estabelece uma excitação ou prontidão que impele o ator a já criar uma cena – dialogada ou não – ou a estar sempre conectado, sempre “ligado” ao que acontece em seu entorno quando outras pulsações [individuais] estão sendo desprezadas em função da composição da cena e/ou do trabalho coletivo.

A própria noção de “Contaminação” – no que diz respeito a afetar-se pelo outro e “jogar o seu jogo” – mostra-se objetivante: de repente não está sendo uma contaminação de fato, mas uma necessidade de contaminar que se antecipa ao contaminar-se. O senso de contaminação mostra-se prosaico pois já está se encaminhando para o lugar-comum. Em termos de dinâmicas corporais, por exemplo, poderíamos novamente citar o exercício “Mapa” para argumentar que em muitos casos os atores apenas se deslocam no espaço conectados um aos outros mas não necessariamente estão afetados; absorvem os movimentos que são propostos mas não estão precisamente atravessados pelas pulsões que circulam, partem para certos universos narrativos sem que antes o discurso dramatúrgico se apresente com clareza e/ou potência necessária(s) para se tornar espetacular.

A própria prática engendrou um hábito que, talvez inesperadamente ou contra a vontade, opera certo tipo de autoridade ou hierarquia que, por vezes, domina a experiência improvisacional, tirando-a das ocorrências subjetivas para a objetividade pura e simples da cena.

Podemos dizer que uma das estratégias de desestabilização deste tipo de controle seja a importância em se trabalhar a sensibilidade para perceber quando há um desejo particular do ator por investigar suas singularidades para que o movimento não esteja pelo movimento, mas que se torne afetação, antes da contaminação. Contaminar não é afetar, necessariamente.

Percebe-se que, às vezes, o ator está manifestando o desejo de investigar determinada corporeidade em detrimento da contaminação, mas como contaminar tem se exercitado como uma necessidade, o investigar as necessidades não está gerando intensidades.

E como a Espetacularidade é um dos objetivos fundantes da pesquisa a partir das experiências improvisacionais, às vezes é realmente necessário saltar algumas etapas para que a busca individual não fique ensimesmada.

Mas é certo que, em dado momento, há que se abandonar determinados pressupostos... Para que a cena se crie e seja potencializada enquanto Espetacularidade, não é preciso estar junto o tempo todo com o corpo do outro, trabalhar sempre em conjunto, estar sempre “em cena”, etc. O exercício da criação de um espetáculo a partir da improvisação cria este falso entendimento de que todos os atores devem estar na cena sempre.

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Naturalmente, surgem diversas cenas paralelas que, tal qual a maioria dos jogos de improvisação, acabam por poluir ou dificultar a elaboração espetacular. Apesar disso, há um constante olhar para tais ocorrências de modo a possibilitar que os atores criem estratégias não-convencionais de desencadeamento da cena, aproveitando e potencializando as dinâmicas corporais, os discursos (verbais ou não) e as relações que vão se construindo na conformação da cena enquanto espetáculo.

Certamente, por fim, tais estratégias valem-se de uma subjetividade muito grande dos atores e, em termos de acabamento, deixam a desejar certa fluência na leitura do espectador por se tornar, geralmente, muito abstratas, posto que as experiências improvisacionais vividas pelo Grupo Tosco são singulares e irrepetíveis.

Costumamos acreditar que não é possível calçar um sapato apertado depois de ter feito uma longa caminhada com ele. Surgem calos, os pés doem, os dedos se dobram... Faz parte, também, desta figura de linguagem a ideia de que só calçando um sapato apertado é que temos consciência dos pés, para cuidar onde se pisa.

No caso do Tosco – Grupo de Improvisação e Espetacularidade, não trata-se de uma metáfora pejorativa. É mais como uma “nota mental” que nos dá suporte para seguir com a busca, apesar das dificuldades ou das complexidades [que são muitas].

Não é um sapato apertado no mau sentido. É um sapato apertado pois já não cabem nele tantos pressupostos. É um sapato apertado pois já não cabe ali tanta experiência. É um sapato apertado pois queremos muito calçá-lo – e tanto o queremos, que nos

esprememos nele para seguir caminhando. Mas calçamos este sapato. E propositalmente apertado para que possamos lembrar, a

cada passo, que ele está ali. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITTENCOURT, Adriana. Imagens como acontecimento: dispositivos do corpo, dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA, 2012. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. 2ª Edição. São Paulo: Ed. 34, 2011. LIMA, Tatiana Mota. A noção de escuta: afetos, exemplos e reflexões. In: Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, n. 2, nov. 2012. Disponível em: http://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/viewFile/149/148. Acessado em: 07/07/2014. SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008. SOMBRA, José de Carvalho. A subjetividade corpórea: a naturalização da subjetividade na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.