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Camille Flammarion - O Fim do Mundo - …espiritismoativo.weebly.com/uploads/3/1/4/5/31457561/o... · Web viewMas ai das prenhas e das que criarem naqueles dias! Orai, porém, que

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Camille Flammarion - O Fim do Mundo

www.autoresespiritasclassicos.com

Camille Flammarion

O Fim do Mundo

Ttulo do original em francs

La Fin Du Monde

1893

Cometa Halley

Contedo resumido

Em um misto de fico, cincia e romance, Flammarion descreve a trajetria fsica e espiritual do nosso planeta, com as ocorrncias precursoras do chamado fim do mundo. Datas e eventos so hipotticos.

Sua pretensa autenticidade visa apenas dar corpo fico, onde um cometa se chocaria com a Terra, fato que a cincia atual (muito depois da feitura do livro) admite j ter ocorrido na antiguidade.

Descreve o planeta daqui a dez milhes de anos e fala simbolicamente dos ltimos dias de sua existncia fsica.

- - - - -

Vi depois um novo cu e uma terra nova, pois o primeiro cu e a primeira terra haviam passado.

Apocalipse, XXI, 1.

- - - - -

Sumrio

4Primeira Parte No sculo XXV As teorias

4I A ameaa celeste

11II O cometa

17III A sesso do Instituto

29IV Como acabar o mundo

47V O Conclio do Vaticano

53VI A crena no fim do mundo atravs dos tempos

66VII O choque

75Segunda Parte Dentro de dez milhes de anos

75I As etapas futuras

85II As metamorfoses

91III O apogeu

100IV Vanitas vanitatum

104V Omgar

109VI Eva

112VII O ltimo dia

119Eplogo Dissertao filosfica

Primeira Parte No sculo XXV As teorias

I A ameaa celeste

Implague ternam timuerunt scula noctem.

VERGILIO, Gergicas, I, 568.

A magnfica ponte de mrmore que liga as ruas de Rennes e Louvre e que, debruada de esttuas de sbios e filsofos clebres delineia monumental avenida conducente ao novo prtico do Instituto, estava literalmente apinhada. Multido inquieta parecia antes rolar que marchar, ao longo do cais, desbordando de todas as ruas transversais, em demanda do edifcio, j de h muito invadido pela onda tumulturia. Nunca, jamais, antes da constituio dos Estados Unidos da Europa, nas pocas da barbrie, quando a fora primava ao direito, o militarismo governava a Humanidade e a infmia da guerra, sem trguas, a estultcia humana; nunca, nas grandes revolues como nos dias tumultuosos das declaraes de guerra, as cercanias do Parlamento e a Praa da Concrdia apresentaram semelhante espetculo. No eram j agrupamentos fanticos em torno de uma bandeira, a buscarem uma arma, seguidos de curiosos e desocupados, vidos de emoes e novidades; era todo o povo inquieto, sfrego, terrificado; era o amlgama compacto de todas as classes sociais, atido deciso de um orculo, esperando febril o resultado do clculo de clebre astrnomo, prometido para esse dia de uma segunda-feira, s 3 da tarde, na Academia das Cincias. Atravs da transformao poltica e social dos homens e das coisas, o Instituto de Frana sobrevivia e detinha ainda, na Europa, a palma da cincia, das letras e das artes. Todavia, o eixo da civilizao deslocara-se para a Amrica do Norte, s margens do lago Michigan.

Estamos em pleno sculo vinte cinco.

O novo edifcio do Instituto, de altssimos zimbrios e terraos, havia sido reconstrudo em fins do vigsimo sculo, de entre os escombros da grande revoluo internacional-anarquista, que, em 1950, arrasara grande parte da metrpole francesa, como se das entranhas do solo lhe houvera rebentado a cratera de um vulco.

Ainda na vspera, domingo, espalhada pelas avenidas e praas pblicas, toda a populao parisiense teria visto a barquinha de um balo deslizando lentamente e como que desesperado e indiferente s coisas do mundo. Os aviadores alegres no mais sulcavam o espao com a vivacidade habitual. Aeroplanos, peixes areos, aves mecnicas, helicpteros eltricos, mquinas voadoras, tudo se retrara e imobilizara. As estaes areas, locadas na cimeira das torres e dos arranha-cus, permaneciam vazias e desertas. Dir-se-ia que toda a vida humana se estagnara em seu curso. Em todos os semblantes, preocupaes e angstias. Todos se interpelavam sem mesmo se conhecerem, e a mesma pergunta rebentava de lbios trmulos em semblantes desfigurados: ser verdade? A mais terrvel das epidemias no teria apavorado tanto, quanto quela predio astronmica, que andava agora em todas as bocas. Mais, ainda: no teria feito tantas vtimas, visto que a mortalidade j entrara a crescer, sem causa conhecida. A todo o momento, cada qual se via sacudido por um frmito de terror.

Alguns, querendo parecer mais fortes e menos alarmados, se arrimavam a hipteses vagas e mais ou menos aleatrias: pode ser que haja engano; ou ento: ele se desviar, no h de ser nada; havemos de recobrar do susto, etc.

Todavia, a incerteza , muitas vezes, mais terrvel que a prpria catstrofe. Um golpe brutal fere-nos de chofre e nos abate mais ou menos: dele despertamos, tomamos nosso partido, restabelecemo-nos e continuamos a viver. Aqui, porm, era o desconhecido, era a aproximao dum evento, inevitvel, misterioso, extramundano e formidvel. Era a morte fatal, sim, mas de que modo? Choque, arrasamento, combusto incendiria, envenenamento atmosfrico com asfixia pulmonar? Que suplcio esperar? Ameaa horripilante, mais que a morte em si mesma! O sofrimento espiritual tambm tem limites. Temer sem trguas, perguntar todas as noites pelo que nos reserva o amanh, vale por sofrer mil mortes. E que dizer do medo? O medo, que coagula o sangue nas artrias e aniquila as almas; o medo, espectro invisvel que ali rondava sobrepujando todas as mentes e todos os coraes?

Havia um ms que todo o comrcio paralisara. O Comissariado Administrativo (sucedneo do Parlamento de outrora) suspendera as sesses, pois ali, mais que alhures, as divagaes haviam chegado ao cmulo. Paralisadas de oito dias as Bolsas de Paris, Londres, Nova Iorque, Chicago, Melbourne, Pequim! De fato: que valia cogitar de negcios, de poltica, de planos e reformas quaisquer, se o mundo ia acabar? Ah, a poltica! Haveria quem se lembrasse de a ter praticado? Era como se tudo caminhasse no vcuo. Os prprios tribunais no tinham significao: ningum vai roubar, ou matar, quando tudo vai perecer. A Humanidade j no tinha o que a estimulasse, o corao lhe pulsava precipite e como que prestes a mobilizar-se. De todos os lados surgiam fisionomias alteradas, macilentas, insones, e s a faceirice feminina, ainda que mal disfarada, parecia resistir obsesso da catstrofe iminente.

que, de resto, a situao era mesmo gravssima, por no dizer desesperadora, at no conceito dos mais esticos.

Nunca, nos fastos da Humanidade, a raa de Ado se encontrara ameaada de semelhante perigo. As ameaas csmicas pairavam sobre ela sem remisso. Era um problema de vida ou de morte.

***

Trs meses mais ou menos, antes da data em que estamos, o Diretor do observatrio do monte Gaorisancar havia telefonado aos principais observatrios do planeta um recado nestes termos:

Descobrimos, s 21h., 16m., 42s., um cometa telescpico de ascenso retilnea a 49, 53, 45 de declinao boreal. um cometa esverdeado.

No se passava um ms que no fossem descobertos e anunciados cometas telescpicos por diversos observatrios, sobretudo depois que astrnomos intrpidos se instalaram nos altos cimos asiticos de Gaorisancar, Dapsang e Kintechindjinga; nos sul-americanos de Aconcgua, Illampon, Chimborazo; assim como no Kilima-N'djaro africano e no Elbrouz e Mont-Blanc, europeus. Destarte, aquele comunicado no havia, de comeo, impressionado mormente aos sbios, familiarizados com o seu contedo. Grande nmero de observadores procurara focalizar o cometa na posio assinalada, acompanhando-o atentos. Os Neuastronomischenachrichten publicaram suas observaes. Um matemtico alemo calculara uma primeira rbita provisria, com as efemrides do movimento. Logo que foi divulgada essa rbita com as suas efemrides, outro sbio japons fazia curiosssima notao, isto : que, segundo o clculo, o cometa deveria baixar das alturas do infinito para o Sol e cruzar o plano da eclptica aos 20 de Julho, num ponto pouco afastado do em que se encontraria a Terra naquela data. Pelo que, acrescentava, seria imprescindvel multiplicar as observaes e retomar o clculo, para fixar a distncia a que passaria o cometa e, s assim, prejulgar uma coliso com a Terra, ou com a Lua.

Uma senhorita, laureada do Instituto e candidata Diretoria do Observatrio, agarrara o pretexto para fincar-se na sala dos telefones, a fim de captar imediatamente todos os despachos. Em menos de 10 dias, obtivera ela mais de uma centena e, sem perder um instante, ei-la passando trs dias e trs noites a refazer o clculo, baseada na srie de todas as observaes. O resultado foi que o calculista alemo errara na distncia do perilio, e a concluso do astrnomo japons era inexata, no concernente passagem pelo plano da eclptica, que se adiantara de cinco ou seis dias. O interesse do problema tornava-se, porm, maior, visto que a distncia mnima entre o cometa e a Terra afigurava-se mais curta que a calculada pelo japons. Sem cogitar, no momento, da possibilidade de um choque, todos esperavam encontrar na perturbao enorme que o astro errante ia sofrer, da parte da Terra e da Lua, um novo meio de avaliar, com preciso rigorosa, a massa de uma e de outra, e, possivelmente, ndices preciosos do repartimento das densidades no interior do nosso orbe. A jovem calculista encarecia e justificava, destarte, a necessidade de observaes mais numerosas e minudentes. Na vspera da sesso, tinha ela j explicado a rbita, num comcio acadmico.

Contudo, era no Observatrio de Gaorisancar que se centralizavam todas as observaes. Montado no pico mais elevado do mundo, a 8.000 metros de altitude, entre neves eternas que os novos processos da qumica eltrica haviam rechaado a muitos quilmetros de em torno; sobranceando quase sempre, a centenas de metros, as nuvens mais altas; pairando numa atmosfera pura e rarefeita, a viso telescpica dir-se-ia ali centuplicada. Distinguiam-se a olho nu os crculos lunares, os satlites de Jpiter e as fases de Vnus. Nove ou dez geraes familiares haviam j habitado a montanha asitica, l se aclimando e identificando com a rarefao atmosfrica. certo que os primeiros haviam rapidamente perecido, mas a Cincia e a Indstria conseguiram atenuar os rigores do frio, graas ao armazenamento dos raios solares, e a aclimao se fizera gradualmente, to bem como nos tempos idos, em Quito e Bogot, onde se viam, desde os sculos XVIII e XIX, populaes felizes, em abastana, e mulheres que bailavam noites a fio, sem se fatigarem, numa altitude em que os excursionistas do Monte-Branco mal arriscariam alguns passos sem lhes faltar a respirao. Uma pequena colnia astronmica instalara-se, pouco a pouco, nos flancos do Himalaia e o Observatrio granjeara, por seus trabalhos e descobertas, o ttulo de primeiro do mundo. Seu principal instrumento era a famosa equatorial de 100 metros de foco, com auxlio da qual chegaram a decifrar os sinais hieroglficos que, de milnios, vinha Marte baldamente emitindo para a Terra. Enquanto os astrnomos europeus discutiam a rbita do novo cometa e constatavam que ela deveria efetivamente atravessar a do nosso planeta, de feio a com ele chocar-se no espao, o Observatrio asitico expedira um novo fonograma:

O cometa vai tornar-se visvel a olho nu. Sempre esverdeado, dirige-se para a Terra.

Viessem da Europa, sia ou Amrica, os clculos astronmicos j no ofereciam dvida sobre a sua exatido. Os jornais cotidianos bolsaram a notcia alarmante, ilustrada de comentrios trgicos e inmeras entrevistas, que atribuam aos sbios as mais esdrxulas opinies. No faltava quem exagerasse os clculos, gravando-os com dissertaes mais ou menos fantasistas. Mas, a verdade que a imprensa peridica de todo o mundo, sem exceo, transformara-se de h muito em mero agente de mercantilismo. Essa imprensa que, noutros tempos, tantos servios prestara causa do livre pensamento e, portanto, ao progresso humano, estava agora a soldo dos governos e do capitalismo, aviltada e manietada por compromissos de toda a espcie. No havia jornal que se no reduzisse a objeto de comrcio. A questo, o problema de cada qual, resumia-se no aumento da tiragem e na receita dos anncios mais ou menos estrambticos. Fazer dinheiro, eis tudo. Por isso e para isso, maquinavam falsas notcias, que desmentiam logo tranqila e imediatamente; minavam a todo o instante a segurana do Espao, mascaravam a verdade, atribuam aos sbios falsos conceitos, caluniavam atrevidamente, semeavam escndalos, mentiam, arrazoavam assassnios e ladroeiras, multiplicavam os crimes por sugesto, davam as frmulas de explosivos recentemente imaginados, envenenavam seus prprios leitores e traam todas as classes sociais no s intuito de sobreexcitar a curiosidade pblica e vender a folha. Nada mais que negcios e reclames. Cincias, arte, literatura, filosofia, estudos e pesquisas, nada interessava. Um ator de segunda ordem, uma atriz obscura, um tenor, uma cantora, um ginasta, um corredor, um andarilho, um atleta, sobretudo um bandido da pior espcie podiam, de um dia para outro, tornar-se mais clebre que o mais eminente dos sbios, ou o mais benemrito dos inventores. Publicavam-se retratos dos mais fortes corredores, como dos mais ilustres patifes e assassinos. s vezes, davam-se ao trabalho de mascarar essa bestice com floreios patriticos, que os valorizassem um tantinho mais. Contudo, o que predominava era a economia da folha. Por muito tempo deixara-se o pblico mistificar. Todavia, na poca em que nos achamos, ele havia despertado e j no dava crdito a balelas impressas, de sorte que no existiam jornais propriamente ditos, mas apenas folhas de anncios e reclames de utilidade comercial. A primeira notcia lanada por todas as publicaes cotidianas era a de que um cometa se aproximava com incrvel velocidade e ia chocar-se com a Terra na data prefixada. A segunda notcia acrescentava que o astro vagabundo poderia ocasionar uma catstrofe universal, pelo envenenamento do ar respirvel. Esta dupla predio fora, alis, acolhida por toda a gente, com displicente incredulidade, no produzira maior efeito que o da descoberta da fonte de Juventa ao poro do Palcio das Fadas, em Montmartre, (surgido das runas do Sagrado-Corao) e que tambm se anunciava como coisa sensacional.

Literatos, poetas e artistas valeram-se do pretexto para celebrar em prosa, em verso e ilustraes de toda espcie, as viagens cometrias atravs das regies celestes. Aqui, era o cometa afrontando um enxame de estrelas aterradas; ali, precipitando-se, cambalhotando, ameaando a Terra adormecida. Tais personificaes simblicas entretinham a credulidade pblica, sem acrscimo dos primeiros terrores. Dir-se-ia que se familiarizavam com a idia de um encontro, sem maiores temores. que a mar das impresses populares oscila como os barmetros.

Ao demais, os prprios astrnomos, de comeo, no se tinham inquietado com a probabilidade do encontro, sob o ponto de vista das conseqncias atinentes aos destinos humanos, tanto que as revistas de Astronomia (as nicas que ainda mereciam conceito) nada haviam dito nesse particular, mesmo a ttulo conjetural. Encararam o problema pelo prisma das matemticas puras, considerando-o apenas corno um caso interessante da mecnica celeste. Nas entrevistas que deram, limitou-se a responder que o encontro era possvel, provvel mesmo, mas destitudo de interesse para o pblico.

De sbito, novo fonograma, desta vez emitido do Monte Hamilton, na Califrnia, vinha alertar fisiologistas e qumicos:

As observaes espectroscpicas atestam que o cometa constitudo de massa assaz condensada, composta de vrios gases, nos quais predomina o xido de carbono.

O negcio complicava-se. O encontro era coisa certa. Se os astrnomos at ento no se preocupavam mormente, acostumados a considerar inofensivas essas conjunes celestes, a ponto de se esquivarem, e alguns, de entre eles, despedirem a reportagem abelhuda, declarando que o assunto, de pura alada astronmica, no interessava ao vulgo, agora tocava aos mdicos o alarme e o debate, agitado quanto s hipteses de asfixia ou envenenamento. Menos indiferentes opinio pblica, eles, os mdicos, no escorraavam os publicistas e, muito ao invs, concorriam para que em poucos dias a questo tomasse outro aspecto. De astronmico, tornou-se fisiolgico; e os expoentes mais clebres da medicina comearam a retratar-se nas revistas ilustradas, com legendas deste teor: do-se consultas sobre o cometa. A variedade, a diversidade e o antagonismo das apreciaes foram a ponto de originar controvrsias e polmicas apaixonadas, atravs das quais eram os mdicos averbados de charlates.

Contudo, cioso dos interesses da cincia, o Diretor do Observatrio de Paris mantinha-se mudo em face da controvrsia que, por mais de uma feita, desvirtuara a verdade astronmica. O Diretor era um ancio respeitvel, cujos cabelos haviam encanecido no estudo dos grandes problemas da cosmologia. Sua palavra era universalmente acatada e ele decidiu, finalmente, transmiti-la imprensa, notificando-lhe a prematuridade de quaisquer conjeturas, enquanto a assemblia dos tcnicos, reunida no Instituto, no chegasse a uma concluso.

J dissemos que o Observatrio de Paris sempre se mantivera testa do movimento cientfico, graas operosidade de seus membros. Sobretudo, pela transformao dos seus mtodos de observao, tornara-se simultaneamente santurio de estudos tericos e ncleo telefnico dos seus congneres, situados longe e mais favorecidos pela altitude e condies atmosfricas. Era, enfim, um asilo de paz no qual imperava a mais completa harmonia. Os astrnomos ali se consagravam, uma vida inteira, aos progressos da cincia, estimando-se e respeitando-se, indenes de inveja e cimes, e esquecendo mritos pessoais para s exaltarem os alheios. O Diretor era o primeiro a exemplificar e, assim, quando falava, fazia-o em nome de todos os colegas. A dissertao tcnica, por ele publicada, teve o seu momento de ateno, mas, a verdade que o problema astronmico j estava fora do cartaz. Ningum contestava nem discutia o encontro do cometa com a Terra, que granjeara foros de matemtica certeza. O que preocupava os espritos era a constituio qumica do cometa. Se a sua passagem pela Terra viesse absorver o oxignio da atmosfera, no haveria como evitar a asfixia imediata. Fosse o azoto combinar com os gases cometrios e seria, ainda, a morte precedida de enorme delrio e de uma como alegria universal, um exaltamento de todos os sentidos, decorrentes da subtrao do azoto e do acrscimo proporcional do oxignio em funo pulmonar. A anlise espectral assinalava, sobretudo, o xido de carbono. O que as revistas cientficas discutiam, primordialmente, visava a saber se a mistura deste gs deletrio com o ar respirvel envenenaria a populao em bloco, homens e animais, conforme afirmava o Presidente da Academia de Medicina.

Oxido de carbono! No se falava de outra coisa. A anlise espectral no poderia enganar-se, os mtodos eram seguros, rigorosos os processos. Toda gente sabia que a mnima partcula desse gs, aspirado, era morte a termo breve. A essa altura, novo despacho do Gaorisancar vinha confirmar e agravar o do Monte-Hamilton, dizendo:

O cometa, cujo volume aumenta dia a dia e j excede ao da Terra trinta vezes, acabar envolvendo-a totalmente.

Trinta vezes o dimetro do nosso globo?! Mas, ento, mesmo que ele passasse entre a Terra e a Lua, afetaria ambas, visto que uma ponte dessa extenso bastaria para ligar-nos ao satlite. Depois, a verdade que, nesses trs meses, cujo histrico sumariamos, o cometa deslocara-se dos planos telescpicos, tornara-se visvel a olho nu e agora a estava pairando todas as noites, gigantesco, ameaador, face das estrelas. A crescer de noite para noite, dir-se-ia fosse o prprio Terror materializado e impendente de todas as cabeas, caminhando lenta e gradualmente, qual espada formidanda e inexorvel. Um ltimo ensaio fora tentado, no para desvi-lo do seu roteiro idia aventada por certa classe de utopistas, que de nada duvidam e ousaram imaginar o recurso de um poderoso ciclone eltrico, produzido por baterias dispostas na regio passvel de ser atingida mas para reconsiderar o problema em todos os seus aspectos e tranqilizar, possivelmente, os espritos, reanimar-lhes a esperana com alguma falha das previses j emitidas, ou qualquer nesga nos clculos e observaes consumadas. Quem diria no ser o encontro to funesto como pretendiam os pessimistas? Uma discusso geral devia travar-se naquela noite de segunda-feira, no Instituto, isto , quatro dias antes do fatdico encontro, previsto para o dia 13 de Julho. O mais clebre astrnomo da Frana, ento Diretor do Observatrio; o Presidente da Academia de Medicina, fisiologista e qumico eminente; o Presidente da Sociedade Astronmica, hbil matemtico, e oradores outros, entre os quais notabilssima dama justamente afamada por suas descobertas no campo das cincias fsicas, iam ilustrar os debates. Sim, a ltima palavra no fora ainda pronunciada e ns vamos, portanto, franquear o velho domo do vigsimo sculo para assistir discusso.

Antes de o fazer, porm, examinemos ns mesmo esse famigerado cometa, que a est desvairando todas as mentes.

II O cometa

Vapores qui ex caudis cometarum oriuntur ncidere possunt in atmospheras planetarum, et ibi condensari et corverti in aquam, et sales, et sulphura, et limum, et lutum, et lapides, et substantias alias terrestres migrare.

NEWTON, Principia, 111, 671.

O estranho visitante descera lentamente dos pramos siderais. Em vez de surgir de sbito, como si acontecer e tem-se observado com os grandes cometas, quer quando aparecem aps a transposio do perilio, quer quando longa srie de noites nubladas ou luarentas, interditou a observao dos investigadores, desta feita os flutuantes vapores siderais haviam ficado nos espaos telescpicos, s observados pelos astrnomos.

Nos primeiros dias, seqentes descoberta, ele s seria acessvel atravs de poderosas lentes. O pblico instrudo no deixara, contudo, de procurar por si mesmo. Todo edifcio moderno tinha, ao demais, o seu terrao destinado ao trfego areo, e muitos deles providos de cpulas giratrias. No havia famlia remediada que no dispusesse de uma luneta astronmica, nem apartamento de certa ordem desprovido de biblioteca bem fornida de obras cientficas. que, no sculo XXV, os terrcolas comeavam efetivamente a pensar.

O cometa fora, por assim dizer, observado por toda a gente, desde que se tornou acessvel aos aparelhos de mediana potncia. Quanto s classes laboriosas, que tm as horas sempre contadas, tinham ao seu dispor as lunetas assestadas nas praas pblicas, sempre ocupadas pela turba impaciente. No faltaram, ento, a partir da primeira noite de visibilidade, astrnomos do ar livre, ou do sereno, com as suas receitas e predies fantsticas. Grande nmero de operrios dispunham, todavia, de lunetas domsticas, sobretudo na provncia, e, manda a justia e a verdade se diga que, em Frana, o primeiro a descobrir o cometa (fora dos Observatrios oficiais, claro) no foi nenhum acadmico nem figuro social, mas um modesto alfaiate do arrabalde de Soissons, que vigilava todas as noites e, munido de excelente luneta adquirida com penoso esforo, no cessava de estudar as curiosidades do firmamento.

Uma nota digna de registro a de que at o sculo XXIV quase todos os habitantes da Terra viveram sem saber onde estavam e sem mesmo ter a curiosidade de o indagar, mais ou menos como o cego apenas preocupado com o seu apetite. Mas, de cem anos a essa parte, a raa humana entrara a observar o Universo e a meditar. Para fazermos uma idia da trajetria do cometa, basta examinar com ateno o grfico. Ele representa o plano da rbita do cometa e a sua interseco na rbita terrestre, com o cometa chegando do infinito, dirigindo-se obliquamente para a Terra e prosseguindo em seu curso, a aproximar-se do Sol, que o no retm nem absorve em sua passagem ao perilio.

No se levou em conta a perturbao acarretada pela atrao terrestre influncia que teria por efeito reconduzir o cometa para a rbita terrestre, aps uma revoluo em torno do astro solar, transformando-se-lhe a rbita de parablica em elipsoidal. Todos os cometas que gravitam em torno do Sol descrevem rbitas anlogas, mais ou menos alongadas, das quais o astro radioso ocupa um dos focos.

Numerosos, esses cometas. O desenho d uma idia das interseces que eles apresentam com a rbita terrestre, em torno do Sol, e com as outras rbitas planetrias. Examinando essas interseces, v-se que um encontro nada tem de impossvel, nem mesmo de anormal.

Agora, ele poderia ver-se da Terra. Uma noite de novilnio, com um cu admiravelmente limpo, alguns olhares mais penetrantes tinham conseguido distinguir a olho nu, no longe do znite, nas bordas da Via-lctea e ao sul da estrela micron de Andrmeda, uma como plida nebulosidade, tenussima nuvenzinha esfumada e apenas alongada em direo oposta ao Sol, como um prolongamento gasoso, um esboo de cauda rudimentar. Alis, era sob este mesmo aspecto que o fixavam os telescpios, desde que fora descoberto. Ningum poderia atribuir a esse aspecto inofensivo o papel trgico que o novo astro iria representar na histria da Humanidade. O clculo to somente indicava, at ento, a sua marcha para a Terra. O astro misterioso prosseguia, entretanto, rapidssimo na sua trajetria. No dia seguinte, j metade dos curiosos conseguiam perceb-lo; e, no imediato, no havia binculos que o no apanhassem. Dentro de uma semana, todos o conheciam. Nas praas pblicas, em todas as vilas e aldeias, s se viam grupos a procurar, assinalar e discutir o intruso.

E o intruso avultava de dia para dia. As lentes j revelavam, no seu corpo, um ncleo assaz luminoso, que suscitava dissertaes apaixonadas. Depois, a cauda fendeu-se lentamente em raios divergentes do referido ncleo e tomou, pouco a pouco, a forma de leque. A emoo chegava ao auge quando, aps o primeiro quarto de lua e durante a lua cheia, o cometa como que estacionara e at esmaecera. Tendo-o visto engrandecer progressivamente at ento, conjeturou qualquer descuido no clculo, o que ensejou uma fase de relativo desafogo e tranqilidade. Depois do plenilnio, o barmetro caiu rpida e consideravelmente: o centro de depresso de fortssima tempestade chegava do Atlntico e passava ao norte das ilhas Britnicas. O cu ficou totalmente encoberto durante doze dias, para quase todo o continente europeu. Mas, as nuvens se esvaeceram, enfim, e o Sol voltou a fulgir num cu azul, purssimo. De ver-se, a emoo com que aguardavam o ocaso desse dia radioso, emoo tanto maior quanto alguns aviadores tinham conseguido, antes, atravessar a camada nebulosa e asseguravam que o cometa havia aumentado consideravelmente. As mensagens recebidas dos pncaros asiticos e americanos anunciavam, por outro lado, a chegada mais breve. Mas, quanta decepo! Ao cair da noite, quando todos mergulhavam o olhar no firmamento, na expectativa de contemplar um astro coruscante, j no era um cometa clssico o que se lhes deparava e sim uma aurora boreal de nova espcie, um como prodigioso leque de sete varas, a projetar no espao outros tantos raios esverdeados, que pareciam provir de um foco oculto abaixo do horizonte. No restava dvidas de que essa aurora boreal, fantstica, fosse o prprio cometa, ainda porque, do anteriormente observado, ningum lobrigava vestgios no manto estrelado. A apario diferia singularmente, na verdade, das formas cometrias conhecidas, e o aspecto radioso do inslito visitante poderia dizer-se o que de mais inesperado pudesse haver no mundo. Essas formaes gasosas so, contudo, to bizarras, to caprichosas e multifrias, que ningum as poderia descrever. Depois, no era a primeira vez que um cometa apresentava tal aspecto. Os anais da astronomia mencionavam, entre outros, um enorme cometa de seis caudas, observado em 1744, e que fora, ento, objeto de inmeras dissertaes. Havia mesmo, dele, um assaz pitoresco desenho de visu, feito pelo astrnomo Chesaux, de Lausanne, que o popularizara ao seu tempo. O cometa de 1861, com a sua cauda em leque, era outro exemplo desse gnero de peregrinos interplanetrios, e havia quem lembrasse que, a 30 de Junho daquele ano, ocorrera um encontro, por sinal que bem inofensivo, da sua cauda com a Terra. Mas, ainda que no houvera precedentes, no havia como iludir a evidncia.

Entrementes, as discusses prosseguiam e verdadeira justa astronmica se travara atravs das revistas cientficas de todo o mundo, nicas que mantiveram alguns crditos, como vimos, no turbilho do mercantilismo que de h muito empolgara a Humanidade. A questo principal, uma vez sabido que o astro caminhava para a Terra, era a distncia que se encurtava dia a dia, relacionada, portanto, com a sua velocidade. A jovem laureada do Instituto, recm-nomeada para a chefia da seco de clculos, no deixava de expedir o boletim dirio ao rgo oficial dos Estados Unidos da Europa.

Uma relao matemtica, bem simples, conjuga toda a velocidade cometria sua distncia solar, e vice-versa. Conhecida uma, pode-se imediatamente encontrar a outra. De fato, a velocidade de um cometa pura e simplesmente igual de um planeta, multiplicada pela raiz quadrada de 2. Ora, a velocidade de um planeta, a qualquer distncia do Sol, est regulada pela terceira lei de Kepler, em virtude da qual os quadrados de tempo das revolues esto entre si como os cubos das distncias. Nada mais simples, portanto.

Assim, pois, distncia de Jpiter, o magnfico planeta que gravita em torno do Sol com uma velocidade de 13.000 metros por segundo, um cometa nessa mesma distncia deslocar-se-, portanto, com a velocidade que acabamos de assinalar, multiplicada pela raiz quadrada de 2, ou seja, pelo nmero 1,4142. Teremos, ento, uma velocidade de 18.380 metros por segundo.

Marte circula o Sol com a velocidade de 24.000 metros por segundo. A essa distncia, a velocidade cometria ser de 34.000 metros.

A velocidade mdia da Terra em sua rbita de 29.460 metros por segundo, um tanto mais lenta em Junho e mais rpida em Dezembro. Na vizinhana da Terra, a velocidade do cometa seria, portanto, de 41.660 metros, independentemente da acelerao que a atrao da Terra lhe pudesse acarretar. Eis o que a laureada do Instituto incumbiu-se de transmitir ao pblico, alis j elementarmente iniciado nas teorias da mecnica celeste.

Quando o astro ameaador atingiu a distncia de Marte, os temores populares deixaram de ser vagos, tomando formas definidas, baseadas na apreciao exata, quo fcil, da sua velocidade a 34.000 metros por segundo, ou sejam 2.040 quilmetros por minuto, equivalentes a 122.400 quilmetros hora!

Sendo a distncia entre as rbitas de Marte e da Terra no excedente a 76 milhes de quilmetros, temos que, razo de 122.400 quilmetros horrios, essa distncia seria vencida em 621 horas, ou 26 dias mais ou menos. Contudo, medida que se aproxima do Sol, o cometa acelera a sua marcha, visto que, distncia da Terra, sua velocidade de 4.166 metros por segundo. Dado este acrscimo de velocidade, a distncia entre as duas rbitas seria coberta em 558 horas, ou 23 dias e 6 horas.

Mas, no devendo a Terra achar-se, no momento justo do encontro, precisamente no ponto de sua rbita atravessado por uma linha entre o Sol e o cometa, pois que este no se precipitava para aquele, o encontro s poderia dar-se uma semana mais tarde, pouco mais ou menos, ou fosse na sexta-feira 13 de Julho, meia-noite. Desnecessrio acrescentar, que, em tais circunstncias, todos os preparativos da festa nacional do 14 de Julho foram esquecidos. Ningum pensava nisso. Pois o 14 de Julho no auspiciava, antes de tudo, um luto universal? De resto, havia j cinco sculos que a famosa efemride vinha sendo se bem que intermitentemente comemorada pelos franceses. Entre os prprios romanos, a tradio das festas circenses no durara tanto tempo. Ouvia-se geralmente dizer que o 14 de Julho j tinha vivido bastante; que tinha morrido quinze vezes e no deveria ressuscitar.

Encontramo-nos aqui, precisamente, aos 9 de Julho, segunda-feira. Havia cinco dias que o cu se ostentava belssimo e em toda noite o leque cometrio esplendia na imensidade com o seu ncleo bem visvel, palhetado de pontos luminosos, que poderiam representar corpos slidos, de dimetros quilomtricos e que asseguravam alguns calculistas deveriam ser os primeiros a precipitarem-se sobre a Terra, pois que a cauda se mantinha voltada para o Sol e, no caso vertente, precedida do movimento e sensivelmente oblqua. O astro flutuava na constelao dos Peixes; a observao da vspera dava a sua posio exata; ascenso retilnea = 23h. 10m., 32s. declinao boreal = 7 36 4. A cauda atravessava todo o quadrado de Pgaso. O cometa surgiu s 9h. 49m. e planava no cu por toda a noite.

Durante o perodo de calma retro-assinalado, houvera uma reviravolta na opinio pblica. Aps uma srie de clculos, certo astrnomo estabelecera que, por vrias vezes, a Terra tinha encontrado cometas e sempre tais encontros resultaram em inofensiva chuva de estrelas cadentes. Um colega, porm, lhe replica que o cometa atual longe estava de poder equiparar-se a um enxame de meteoros, por isso que gasoso, com um ncleo de concrees slidas; e lembrava, a propsito, as observaes relativas ao histrico e famoso cometa de 1811. Tal cometa no deixa de justificar, efetivamente, de certa maneira, temores nada quimricos. Tiveram o cuidado de lembrar as suas dimenses. Comprimento de 180 milhes de quilmetros, ou seja, maior que a distncia da Terra ao Sol. A extremidade da cauda oferecia 25 milhes de quilmetros de largura. O dimetro da cabea era de 1.800.000 quilmetros, isto , cento e quarenta vezes maior que o da Terra. Nessa cabea nebulosa, elptica e notoriamente regular, via-se um ncleo brilhante, qual estrela, cujo dimetro, por si s, media 200.000 quilmetros. Esse cometa afigurava-se muitssimo denso e foi observado durante 6 meses e 22 dias. Entretanto, o que de mais notvel, talvez, se pode assinalar a seu respeito, que o seu enorme desenvolvimento foi atingido sem aproximar-se do Sol, distncia de 150 milhes de quilmetros. Assim que, permaneceu sempre a mais de 170 milhes de quilmetros da Terra. Se mais se houvera aproximado do Sol, dado que a dimenso dos cometas aumenta proporo que experimentam maiormente a ao solar, seu aspecto deveria ter sido ainda mais prodigioso e terrificante para toda gente. E, como a sua massa longe estava de ser insignificante, se o seu vo o tivesse levado diretamente ao Sol, a velocidade acelerada razo de 500 e 600 quilmetros por segundo no momento do choque com o astro radioso, teria logrado, pela s transformao do movimento em calor, elevar a radiao solar a tal grau que toda a vida animal e vegetal na Terra se extinguiria em poucos dias... Um fsico houve que chegou curiosa ponderao de que um cometa, igual ou maior que o de 1811, poderia destarte acarretar o fim do mundo, sem tocar a Terra, por uma tal ou qual exploso de luz e calor solares, anloga s observadas com as estrelas temporrias. O choque, nesse caso, engendraria uma quantidade de calor igual a seis mil vezes a de um volume de hulha igual ao cometa.

Havia-se ressaltado que, em seu vo, tal cometa, ao invs de precipitar-se para o Sol, chocar-se-ia conosco e seria, ento, a consumao pelo fogo. Se ele, o cometa, colidisse com Jpiter, lev-lo-ia a uma temperatura capaz de lhe restituir a perdida luminosidade, com prerrogativas de sol temporrio, de modo que a Terra seria aclarada por dois sis. Jpiter ficaria sendo, assim, um como pequeno sol noturno, muito mais luminoso que a Lua e emitindo luz prpria... vermelha, rubi ou gren celeste, e circulando em doze anos em torno de ns... Sol noturno! Vale dizer que no haveria mais noites para o globo terrestre.

Consultaram-se os mais clssicos tratados astronmicos, releram os captulos comentrios escritos por Newton, Halley, Maupertius, Lalande, Laplace, Arago; as Memrias cientficas de Faye, Tisserand, Bouquet de la Grye, H. Poincar e sucessores. Era, contudo, a opinio de Laplace que mais impressionava, e cujo texto fora assim divulgado:

Eixo e movimento rotativo alterados, mares abandonando seus leitos em demanda novo equador, grande nmero de homens e animais afogados nesse dilvio universal; ou destrudos pelo violento abalo dos elementos; espcies inteiras aniquiladas, arrasados todos os padres da indstria humana; tais as conseqncias que a coliso de um cometa pode produzir.

A constituio fsica dos ncleos cometrios era, sobretudo, o objeto das mais srias controvrsias. Tinham escavado nos anais da astronomia os desenhos indicativos da variedade desses ncleos, sua atividade luminosa, a evoluo das cabeleiras.

Recordaram-se, entre outros, os pontos luminosos observados em 1868 no cometa de Brorsen e as radiaes movimentadas da curiosssima cabea do cometa de 1861... Revisavam-se as hipteses concernentes a condensaes gasosas, pulverulentas ou mesmo slidas; as peculiares s descargas eltricas prodigiosas, que transformam de um dia para outro a cabeleira desses estranhos viajores do infinito.

Assim corriam as discusses, as investigaes retrospectivas, os clculos, as conjeturas. O que, porm, em definitiva no deixava de impressionar a toda gente era o duplo fato da observao j constatada, daquele ncleo, de uma densidade considervel, em cuja constituio qumica predominava o xido de carbono. Intensificaram os terrores, no se pensava, no se falava seno do cometa.

J os espritos engenhosos tinham procurado meios prticos, mais ou menos viveis, para lhe fugir influncia. Qumicos que pretendiam salvar uma parte do oxignio atmosfrico, imaginavam mtodos para isol-lo do azoto e armazen-lo em grandes redomas de vidro hermeticamente fechadas.

Hbil farmacutico reclamista afirmava t-lo j condensado em pastilhas e despendera 8 milhes de anncios em 15 dias.

O esprito mercantilista sabe de tudo tirar partido, mesmo do aniquilamento universal. At companhias de seguro se haviam improvisado, comprometendo-se a tapar hermeticamente todas as cavas e galerias do subsolo, comprometendo-se a fornecer oxignio puro (e mesmo antissepticamente perfumado) a determinado nmero de pulmes, por quatro dias e quatro noites.

Nem tudo estava perdido, ao menos para os ricos. Tambm se falava em perfurar tneis para o povo. Discutia-se, tremia-se, morria-se mesmo e, contudo, esperava-se ainda. Enfim, as ltimas novas diziam que o cometa, desenvolvendo-se medida que se aproximava do calor e da eletrizao solares, teria no momento do encontro, um dimetro sessenta e cinco vezes maior que o da Terra, ou fosse 825.000 quilmetros.

Foi no auge dessa agitao que se abriu a sesso do Instituto, esperada como oracular e decisiva. Por fora mesmo do cargo, o Diretor do Observatrio de Paris foi inscrito testa dos oradores. Mas, o que parecia despertar maior interesse pblico era o prognstico do Presidente da Academia de Medicina, quanto aos provveis efeitos do xido de carbono. Por outro lado, o Presidente da Sociedade de Geologia tambm deveria tomar a palavra. O objetivo da sesso era passar em revista todas as teorias cientficas das modalidades que deveriam aniquilar fatalmente o nosso globo.

Evidente, pois, que o debate sobre o encontro do cometa estaria em primeiro lugar. De resto, como acabamos de ver, o astro ameaador l estava suspenso sobre todas as cabeas. Toda a gente o via aumentar dia a dia, em velocidade crescente. Sabia-se que no estava a mais de 17.992.000 quilmetros e que essa distncia seria coberta em cinco dias. Cada hora representava uma aproximao de 149.000 quilmetros. Dentro de cinco dias a Humanidade assustada respiraria tranqila ou desapareceria de todo.

III A sesso do Instituto

Facevano um tumulto, ti qual s'aggira

Sempre in quell'aria senza tempo tinta,

Come 1'orena quando il turbo spira.

DANTE, l'Inferno, III, 10.

Nunca, desde que fora construdo em fins do sculo XX, o grandioso hemiciclo se enchera de multido mais compacta.

Impossvel, mecanicamente, adicionar-lhe uma s pessoa, que fosse. Anfiteatro, balces, tribunas, galerias, corredores, tudo, at os degraus das escadas, estava literalmente ocupado. Notavam-se presentes o Presidente dos Estados Unidos da Europa, o diretor da Repblica francesa, das Repblicas italianas e ibrica, a embaixatriz das ndias, os embaixadores das Repblicas britnica, alem, hngara e moscovita; o rei do Congo, a Comisso de Administradores, todos os ministros, o prefeito da Bolsa internacional, o cardeal arcebispo de Paris, a Diretora geral de Telefonoscopia, o presidente do Conselho de vias areas e eltricas, o Diretor da Repartio de Aerologia, os principais astrnomos, qumicos, fisiologistas e mdicos vindos de toda parte, grande nmero de funcionrios oficiais (que outrora se denominavam senadores c deputados), vrios escritores clebres, um conjunto, enfim, nunca visto, de representantes da cincia, da poltica, comrcio, indstria, artes, etc. Cenculo repleto cunha: presidente, vices, secretrios perptuos, oradores inscritos. J se no trajavam, porm, moda antiga. Nada de togas, capelos, espadages: um simples traje civil. Havia mais de dois sculos que as insgnias estavam prescritas na Europa. Em compensao, as da frica central eram das mais luxuosas.

Macacos educados de h muito substituam os criados domsticos, que no mais se encontravam em parte alguma. Eles l estavam s portas, mais por obedecer ao protocolo que para verificar os ingressos, de vez que, uma hora antes da marcada, j o recinto fora tomado de assalto.

Eis em que termos o Presidente abriu a sesso.

Senhoras, senhores:

Todos vs conheceis a finalidade deste conclave. Nunca, jamais, a Humanidade atravessou uma fase como esta. Nunca, em particular, esta velha sala do sculo XX congregou tal auditrio. O grande problema do fim do mundo , de 15 dias a esta parte, sobretudo, a nica preocupao de todos os sbios. Essas discusses e estudos vo ser aqui expostos e eu dou desde logo a palavra ao Sr. Diretor do Observatrio.

O astrnomo levantou-se logo, empunhando algumas notas. Tinha a palavra fcil, voz agradvel, figura jovial, o gesto sbrio e pacificado o olhar.

A testa larga e magnfica cabeleira branca e crespa ornavam-lhe a fronte. Tinha tanto de erudio literria quanto de cientfica, e toda a sua pessoa inspirava respeito e simpatia. Otimista tambm, ainda nas mais graves circunstncias. Bastou dissesse algumas palavras para que os semblantes se transformassem de lgubres e ansiosos em calmos e serenos.

Senhoras comeou dizendo a vs que primeiro me dirijo, pedindo no vos atemorizardes diante de uma ameaa que poder, talvez, no ser to horrvel quanto se presume. Espero convencer-vos, dentro em pouco, com argumentos que terei a honra de expor, que o esperado cometa no acarretar a runa total da nossa Humanidade. Sem dvida podemos, devemos mesmo esperar qualquer catstrofe; mas, com relao ao fim do mundo, tudo nos leva a coligir que no sobrevir. Os mundos morrem de velhice e no de acidentes. E vs sabeis, melhor do que eu, que o nosso mundo est muito longe de ser velho.

Senhores, vejo aqui representantes de todas as camadas sociais, das mais humildes s mais elevadas. Explica-se que, da ameaa assim ostensiva de uma destruio terrestre, tenha resultado a paralisao geral de todas as atividades. Entretanto, pessoalmente, vos confesso que, se a Bolsa no houvesse fechado e tivesse eu a infelicidade de ali jogar, no hesitaria em comprar ainda hoje os ttulos de renda to subitamente desvalorizados.

Bem no acabara de o dizer e j um famoso judeu americano, prncipe das finanas, diretor do peridico Sculo XXV e que ocupava um balco superior do anfiteatro, abriu caminho a torto e a direito, entre a massa, e precipitou-se como um blido, desaparecendo numa das portas de sada.

Interrompido um instante pelo inesperado efeito de uma reflexo puramente cientfica, o orador prosseguiu:

Nosso tema pode dividir-se em trs partes: 1- Colidir o cometa, fatalmente, com a Terra? 2- Qual a sua constituio? 3- Quais podero ser, possivelmente, os efeitos do choque? No preciso advertir ao culto auditrio que as fatdicas palavras tantas vezes pronunciadas de algum tempo a esta parte: Fim do mundo significam unicamente Fim da Terra, que , alis, seja dito, o mundo que mais nos interessa.

Se pudssemos responder negativamente ao primeiro quesito, seria mais ou menos ocioso ocupar-nos dos dois outros, cuja importncia se tornaria desde logo secundria.

Desgraadamente, devo reconhecer que os nossos clculos astronmicos se apresentam aqui, como si acontecer, de rigorosa exatido. Sim, o cometa deve atingir a Terra com uma velocidade considervel. A velocidade do nosso globo de 29.460 metros por segundo e a do cometa de 41.660 metros, e mais a acelerao resultante da atrao do nosso planeta. Portanto, temos que o choque se daria com a velocidade de 72.000 no primeiro segundo, se o cometa nos chegasse justo de frente. Mas, a verdade que chegar um tanto obliquamente.

O choque mesmo inevitvel, com todas as suas conseqncias. Peo, porm, ao auditrio que no se perturbe dessa maneira! Esse choque nada significa em si mesmo. Se imaginarmos, por exemplo, que um trem de ferro deve encontrar uma nuvem de mosquitos, no haver motivo de inquietao para os respectivos viajantes. Pois a mesma coisa pode verificar-se com o encontro desse astro gasoso. Queiram permitir o exame tranqilo dos outros dois pontos.

Antes de tudo: qual a natureza do cometa? Aqui todos o sabem gasoso e principalmente composto de xido-carbnico. A temperatura do espao (273 graus abaixo de zero), esse gs, invisvel nas condies terrestres, permanece em estado de nevoeiro e mesmo de poeira slida. O cometa est como que saturado dele. Nisto, no contradirei, no quer que seja, as descobertas cientficas.

Tal declarao produziu um novo rito em todos os semblantes e ouviram-se muitos e prolongados suspiros.

Mas, senhores prossegue o astrnomo esperando que algum dos eminentes colegas da seo de fisiologia ou da Academia de Medicina nos demonstre que a densidade cometria bastante forte para penetrar em nossa atmosfera respirvel, penso eu que tudo se resolver em magnfica chuva de estrelas cadentes, sem quaisquer conseqncias fatais para a vida humana. No o digo com certeza; todavia, a probabilidade muito grande, talvez de um milho contra um. Nada obstante, todos os de pulmo fraco, seriam vitimados. E da, uma espcie de gripe, capaz de quintuplicar o obiturio cotidiano. Simples epidemia.

Nada obstante, se, como concordes o indicam as pesquisas telescpicas e fotogrficas, o ncleo cometrio contm massas minerais, metlicas sem dvida, especficas, uranlitos de dimetros quilomtricos pesando milhes de toneladas, no podemos recusar que os pontos atingidos por essas massas, com a velocidade j referida, sejam irremissivelmente arrasados. Mas, porque haveriam esses pontos de ser justamente os habitados? Lembremos que trs quartos do planeta esto cobertos de gua. Aquelas massas bem podem cair no mar, formarem talvez novas ilhas, trazendo consigo novos elementos de estudo, germes quem sabe de existncias desconhecidas. A geodsica, a forma e o movimento rotativo da Terra podem ser com isso afetados. Notemos, tambm, que no faltam extenses desrticas em nossa crosta. Perigo existe, certo, mas no o direi imenso.

Alm disso, essas massas e gases, mesmo os blidos de que falvamos, poderiam trazer em seus flancos causas de incndios, aqui e acol, sobre o continente. Dinamite, nitroglicerina, panclastite, etc., no passariam de brinquedo, infantil, ao lado do que poderia surpreender-nos. Ainda assim, no seria um cataclismo universal. Algumas cidades incineradas no bastam para interromper a histria da Humanidade. Vedes pois, todos vs, que, do exame metdico desses trs pontos, resulta evidente a existncia de um perigo e perigo iminente, mas no to desolador, to considervel e to absoluto quanto o pregoam. Direi, ainda mais, que esse curioso evento astronmico, que tanto vos perturba o crebro quanto o corao, aos olhos do filsofo apenas muda a face habitual das coisas. Todos ns estamos certos de ter de morrer um dia, e isso no nos impede de viver tranqilos. Porque, ento, a ameaa de morte mais pronta alarma todos os espritos? Ser o pesar de morrermos todos juntos? Mas, isso deveria ser antes um consolo para o egosmo humano. Ser por ver encurtada a vida de alguns dias, para uns, e de alguns anos para outros? A vida breve e cada qual recusa encar-la diminuda de um ceitil; e, diante do que estamos vendo e ouvindo, dir-se-ia que cada qual preferiria ver o mundo inteiro arrasado, sobrevivendo-lhe sozinho, antes que morrer s e saber que o resto lhe sobrevive. Puro egosmo! Mas, senhores, insisto em crer que no haja mais que uma catstrofe parcial, do mais alto interesse para a cincia, e que sempre nos deixar alguns historiadores para cont-la. Teremos choque, atrito, acidente local; mas, nada alm disso, provavelmente. Ser como a histria dum tremor de terra, duma erupo vulcnica, ou dum ciclone.

Assim falou o astrnomo ilustre. Sua calma filosfica, acuidade espiritual e aparente indiferentismo pelo perigo, contriburam para tranqilizar o auditrio, embora sem convenc-lo inteiramente. No se tratava j de um aniquilamento total, mas de catstrofe na qual, ultima ratio, sempre havia uma probabilidade de salvamento. Entrava-se a trocar impresses nesse sentido; comerciantes e polticos pareciam ter compreendido, a preceito, os argumentos da cincia, quando, a convite da Mesa, se dirigiu vagaroso para a tribuna o Presidente da Academia de Medicina.

Era um homem alto, esguio, plido, figura de asceta, fisionomia saturnina coroada de raros cabelos grisalhos, cortados rente. A voz tinha algo de cavernosa e o seu todo evocava, antes o tipo do empregado de empresa funerria, que o de um mdico confiante na cura dos clientes. Sua convico sobre os acontecimentos era muito diversa da do astrnomo, qual se viu desde que comeou a falar.

Senhores disse serei to lacnico quanto o sbio eminente que acabamos de ouvir, posto que tenha passado longas noites analisando em seus mnimos detalhes as propriedades do xido de carbono. a propsito desse gs que vou falar-vos, de vez admitida a sua predominncia no cometa e o inevitvel encontro deste com o nosso globo. Suas propriedades so desastrosas, no h neg-lo. Qualquer poro infinitesimal, no ar respirvel, basta para aniquilar em trs minutos a funo pulmonar e acarretar a morte. Todos sabemos que o xido de carbono (em qumica CO) um gs permanente, inodoro, incolor, inspido e mais ou menos insolvel na gua. Sua densidade, comparada ao ar, de 0,96. Incendiando-se no ar, produz o anidrido carbnico, com uma chama azul de pouca claridade. assim como um fogo ftuo. Ele possui, ao demais, uma tendncia permanente para absorver o oxignio (o orador frisa fortemente estas palavras). Nos altos fornos, por exemplo, o carvo se transforma em xido de carbono, ao contacto de uma quantidade de ar insuficiente, e este xido que a seguir reduz o ferro a estado metlico, apoderando-se do oxignio com o qual primeiramente se combinara. Ao Sol, o xido de carbono se combina com o cloro e d um oxiclorureto de odor desagradvel e sufocante em estado gasoso. O que, principalmente, deve despertar nossa ateno que este gs dos mais venenosos que se conhecem, muito mais txico que o cido carbnico. Em se fixando na hemoglobina, ele diminui a capacidade respiratria do sangue. Acumulando-se nos glbulos vermelhos, ainda que em dose minimssima, entrava, em grau aparentemente desproporcional com as causas, a aptido do sangue para oxigenar-se. Assim, o sangue, que absorve 23 a 25 centmetros cbicos de oxignio por 100 volumes, no absorveria mais de metade em atmosfera que contivesse menos de um milsimo de xido de carbono. Um decimilsimo j deletrio e diminui sensivelmente a capacidade do sangue, produzindo, no direi a asfixia, mas o envenenamento quase instantneo! O xido de carbono atua diretamente nos glbulos sanguneos e funde-se com eles, tornando-os inaptos para entreter a vida, sustando a hematose, a transformao do sangue venoso em sangue arterial. Trs minutos bastam para acarretar a morte. A circulao paralisa, o sangue venoso entope artrias e veias, os vasos venosos, principalmente os cerebrais, ingurgitam-se: lngua, garganta, traquia e brnquios se avermelham e todo o cadver apresenta desde logo uma colorao violcea, caracterstica da cessao da hematose.

Todavia, senhores, no so apenas as propriedades deletrias do xido de carbono que devemos temer, se bem que a s tendncia desse gs para absorver o oxignio baste, s por si, para desfechar funestas conseqncias. Suprimi que digo? diminu apenas o oxignio e tereis logo extinto o gnero humano. Aqui, conhecem todos uma das muitas histrias que ilustram as pocas do barbarismo, em que os homens se entrematavam legalmente, a pretexto de glrias patriticas. Simples episdios de uma das guerras inglesas na ndia, permiti-me vo-lo lembre aqui: cento e quarenta e seis prisioneiros haviam sido enclausurados num cubculo acanhado, sem outra abertura alm de duas janelinhas que davam para uma galeria. O primeiro sintoma que os pobres reclusos experimentaram foi um copioso suadouro, logo seguido de sede insuportvel, com grande dificuldade de respirao. Ensaiaram diversos meios de separarem-se o mais possvel, em busca de ar. Despiram-se, abanaram-se e tomaram finalmente o partido de se ajoelharem e levantarem, simultnea e repetidamente; mas, cada vez que o faziam, alguns, j baldos de foras, caam e ficavam estendidos aos ps dos companheiros... Morriam, asfixiados, em agonia. Antes da meia-noite, ou fosse quatro horas depois da recluso, todos os que ainda viviam sem haver aspirado junto das janelinhas um ar menos impuro, mantinham-se cados em estupor letrgico, quando no em acesso delirante. Quando, horas passadas, abriram a priso, apenas vinte trs criaturas saram com vida e, ainda assim, num estado deplorvel, qual foragidos de um tmulo. Poderia aqui juntar mil exemplos idnticos, mas, nada adiantaria, desde que no h dvidas a respeito. Declaro portanto, senhores, que, por um lado, a absoro do xido de carbono em maior ou menor dose de oxignio atmosfrico e que, por outro lado, a alta toxidade desse gs para os glbulos sanguneos, parecem-me emprestar ao encontro da imensa massa cometria com o nosso globo que dever mergulhar nela durante algumas horas uma gravidade excepcional e prenhe de conseqncias desastrosas. Havemos de ver pelas ruas desgraados mortais em busca de ar respirvel, a carem mortos de asfixia. Tambm no vejo, por mim, nenhum recurso escapatrio.

E ainda no falei da transformao do movimento em calor, nem to-pouco dos resultados qumicos e mecnicos do choque. Deixo esse aspecto da questo competncia do Secretrio da Academia de Cincias, tanto quanto ao sbio Presidente da Sociedade Astronmica de Frana, que fizeram importantes clculos nesse sentido. Para mim, repito, a Humanidade se encontra em perigo de morte e no vejo apenas uma, porm duas, trs ou quatro causas letferas, prestes a desabarem sobre ela. S um milagre poderia salv-la. Mas, a verdade que, de h muitos sculos, ningum h que acredite em milagres.

Esse discurso, pronunciado em tom convicto, com voz forte e calma, lanou o auditrio no mesmo estado de agitao que o primeiro discurso tivera a virtude de serenar. A certeza do prximo cataclismo desenhava-se em todos os semblantes. Havia-os amarelos, esverdeados, lvidos e avermelhados, e apoplticos. S pequeno nmero de auditores parecia guardar sangue-frio, como quem houvesse j tomado o seu partido.

Imenso burburinho enchia o salo e cada qual procurava comunicar ao vizinho as suas impresses, geralmente mais otimistas que sinceras. Ningum quer parecer medroso. Levantou-se o Presidente da Sociedade Astronmica e caminhou para a tribuna. O sussurro da multido cessou como por encanto. Eis como ele exordiou, tematizou e perorou:

Senhoras, senhores: pelo que acabais de ouvir, ningum mais poder duvidar da realidade do encontro cometrio e dos perigos conseqentes. Cumpre-nos, pois, esperar at sbado...

Alis, sexta interrompe uma voz partida da prpria mesa.

Sbado repete o orador um acontecimento extraordinrio e absolutamente novo na histria do mundo. Digo sbado, ainda que todos os jornais o tenham anunciado para sexta-feira, isto porque tal coisa no poder ocorrer seno no dia 14 de Julho. A ltima noite, passamo-la eu e meu sbio colega a comparar as observaes feitas na sia e na Amrica, e verificamos um erro de transmisso telefonogrfica.

Tal afirmativa produziu agradvel expectao no auditrio, foi como um raio luminoso no bojo de uma noite tenebrosa. A dilao de um dia tem sempre valor inestimvel para um sentenciado de morte; e tanto bastava para que em muitos crebros comeassem a germinar presunes fantasistas. Recuava-se a catstrofe? Era uma espcie de graa. No raciocinavam que aquela diverso, puramente cosmogrfica, s afetava uma data e no o fato concreto em si mesmo.

Convenha-se, porm, em que as mnimas facetas representam grande papel nas impresses populares. Enfim... j no era para sexta-feira 13.

Aqui tendes disse o orador encaminhando-se para o quadro-negro a rbita definitiva do cometa, decalcada em todas as observaes colhidas...

E gizou estas cifras:

Passagem ao perilio 11 Agosto s 0h 45m. 44s.

Longitude do perilio 52 43 25.

Distncia do perilio 0,76017

Inclinao 103 18 35.

Longitude no n ascendente 112 54 40.

O cometa prosseguiu dizendo cortar a eclptica a caminho do n descendente aos 13 de Julho, depois da meia-noite, ou seja, exatamente s 0h. 18m. 23s. de 14, pelo meridiano de Paris, ainda no momento justo da passagem da Terra no mesmo ponto. A atrao da Terra abreviar o encontro de 30 segundos, apenas. Ser um feito indubitavelmente extraordinrio, mas, ao meu ver, destitudo desse carter trgico que nos esboaram. No creio venhamos a perecer todos asfixiados por envenenamento do sangue. O choque nos oferecer antes, suponho, a perspectiva de um fogo de artifcio celestial, visto que a intermisso dessas massas slidas e gasosas, na camada atmosfrica, no poder efetivar-se sem que o seu movimento, assim paralisado, se transforme em calor. Um abrasamento grandioso das alturas ser, provavelmente, o primeiro fenmeno, enquanto milhes de estrelas cadentes iro surgindo como emitidas de um foco nico e radiante.

A quantidade de calor h de ser formidvel. Qualquer estrela cadente, por mnima que seja, ao chegar nossa atmosfera com a velocidade cometria, logo se esquenta a tal ponto que arde e se consome. Sabeis, senhores, que a nossa atmosfera se projeta muito longe, no espao, em torno do planeta. Ela no ilimitada, como sustentam algumas hipteses, de vez que a Terra gira sobre si mesma e em torno do Sol. O seu limite matemtico est na altitude em que a fora centrfuga, engendrada pelo movimento de rotao diurno, torna-se igual ao peso. Essa altitude ser de 6,64, se representarmos por 1 o meio dimetro equatorial do globo, de 6.378.310 metros. Teremos, ento, que o mximo da camada atmosfrica ser de 42.352 quilmetros.

No quero aqui entrar na matemtica. O auditrio que me ouve assaz instrudo para no desconhecer o equivalente mecnico do calor. Todo corpo, detido em seu movimento, produz uma quantidade de calor que se exprime em calorias, pela frmula:

( m V 2 ) / 8.338

na qual m a massa do corpo em quilogramas e V a sua velocidade em metros por segundo. Um corpo pesando 8.338 quilos, por exemplo, caminhando um metro por segundo, desenvolveria com a sua reteno precisamente uma caloria, ou seja a quantidade de calor suficiente para elevar de um grau a temperatura de um quilograma da gua.

Se a velocidade desse corpo fosse de 500 metros por segundo, sua parada produziria 250.000 vezes mais calor, ou tanto quanto o necessrio para elevar de 0 a 30 graus uma quantidade da gua igual ao seu prprio volume. Se, j no de 500, mas de 5.000 metros for a velocidade, o calor produzido ser 5 milhes de vezes maior.

Ora, senhores, sabeis que o encontro de um cometa com a Terra pode atingir a velocidade de 72.000 metros, e nesse caso a proporo se eleva a 5 milhes de graus!

A temos um mximo e direi uma cifra por assim dizer inconcebvel. Mas, tomemos um mnimo, se assim preferirdes. Admitamos se dem esses choques no diretamente, de face, porm, em sentido mais ou menos oblquo, e que a velocidade no ultrapasse 30.000 metros.

Cada quilograma de um blido desenvolve, neste caso, 107.946 unidades de calor, quando, pela resistncia do ar, a velocidade se reduz a zero. Por outros termos, ele desenvolveu calor suficiente para elevar de zero a 100 graus, isto , de congelado a fervente, um volume da gua de 1.079 quilogramas Um uranlito de 2.000 quilos, chegando Terra com uma velocidade anulada por essa resistncia de ar, teria desenvolvido calor suficiente para elevar a 3.000 graus uma coluna de ar de 30 metros quadrados de seco, em toda altura da nossa atmosfera, ou para elevar de 0 a 30 graus uma coluna de 3.000 metros quadrados.

Estes os clculos que, rogo me desculpeis, se faziam necessrios para mostrar que a conseqncia imediata do encontro ser um calor enorme, um aquecimento extraordinrio do ar. De resto, o que acontece com a queda dos blidos isolados. O uranlito fundido, vitrificado em toda a sua superfcie, como revestido de uma camada de verniz. A queda, porm, to rpida que lhe no d tempo de aquecer-se interiormente. Se o quebrarmos, v-lo-emos absolutamente gelado por dentro. O ar atravessado que se aqueceu.

Um dos efeitos mais curiosos da anlise que acabo de resumir que as massas slidas, mais ou menos volumosas, que presumimos distinguir ao telescpio em o ncleo cometrio, ho de experimentar tal resistncia ao atravessar nossa atmosfera, que, salvo casos excepcionais, no chegaro ntegras ao solo e, sim, mais ou menos fragmentadas. frente do blido opera-se a compresso do ar; atrs o vcuo. Aquecimento e incandescncia exterior do corpo em movimento, rudo violento devido precipitao do ar que vai preenchendo o vcuo, ribombos de trovo, exploses, desagregaes, queda de elementos metlicos mais densos e evaporao de outros. Um blido de enxofre, de fsforo, de estanho ou de zinco, flamejaria e se evaporaria muito antes de atingir as camadas inferiores da atmosfera.

Quanto s estrelas cadentes, se, como parece, constituem uma verdadeira nuvem, no produziro mais que um prodigioso fogo de artifcio.

Se, pois, algo tem a temer, no , na minha opinio, a penetrao da massa gasosa do xido de carbono em nossa atmosfera, seja ela qual for, e sim a forte elevao da temperatura, conseqente transformao do movimento em calor.

Neste caso, a salvao estaria, talvez, em refugiar-se no hemisfrio oposto ao que haja de receber em cheio o choque do cometa. O ar, sabemo-lo, o pior condutor do calor.

Levanta-se, a seu turno, o Secretrio perptuo da Academia. Digno sucessor dos Fontenelles e Aragos, aliava a uma vasta cultura cientfica as qualidades de orador fluente e escritor elegante, no raro atingindo os cimos da eloqncia.

A sbia teoria que acabastes de ouvir disse nada cumpre acrescentar, salvo a aplicao que pudssemos dela fazer a qualquer cometa j de ns conhecido. H dias, houve quem lembrasse, por exemplo, o cometa de Biela, de 1811. Pois bem: vamos supor que um cometa das mesmas dimenses nos esbarre literalmente em cheio, na rota do nosso curso solar. Nosso esferide penetraria a nebulosidade cometria sem experimentar, certo, qualquer resistncia mais forte. Admitindo-se mesmo que essa resistncia fosse fraqussima, e que a densidade do ncleo fosse negligencivel, o nosso globo precisaria de vinte e cinco mil segundos, ou sejam, 417 minutos para atravessar a massa cometria de 1.800.000 quilmetros de dimetro. Seria, portanto, sete horas de marcha com a velocidade de cento e vinte vezes a de uma bala de canho, sem deixar, por isso, de obedecer ao seu movimento rotativo.

Tal mergulho no oceano cometrio, por difano que seja, no poderia deixar de carrear como primeira e imediata conseqncia, atentos os princpios termodinmicos aqui lembrados, uma elevao de temperatura possivelmente capaz de incendiar a atmosfera! Neste caso, o perigo se me afigura dos mais graves.

E, contudo, seria um belo espetculo para os habitantes de Marte, mais ainda para os de Vnus. Um espetculo deveras admirvel, anlogo (mas, talvez mais maravilhoso para os nossos vizinhos) a essas curiosas conflagraes astrais temporrias, que j temos observado na profundeza dos cus. O oxignio do ar teria o seu melhor papel no alimentar do incndio. Mas, h outro gs que os fsicos pouco consideram, pela circunstncia de no o haverem encontrado jamais em suas anlises... o hidrognio. Que feito de toda a quantidade desse gs, emitida pelo solo terreno, desde que o mundo mundo? Pois que a sua densidade dezesseis vezes mais fraca que a do ar, todo ele deve ter subido para formar, em torno de nossa atmosfera, um como invlucro de hidrognio muito rarefeito. Em virtude da lei de difuso dos gases, grande parte desse hidrognio deve ter-se misturado intimamente com o ar, mas, ainda assim, no deixaro as camadas superiores de o conter em maior proporo. l que se acendem as estrelas cadentes e, sem dvida, as auroras boreais, a mais de cem quilmetros de altura. Notemos, a propsito, que o oxignio do ar, recebendo o choque cometrio, bastaria para alimentar o fogo celeste.

O fim do mundo dar-se-ia, portanto, pelo incndio da atmosfera. Durante sete horas, mais ou menos, ou melhor por tempo mais longo, visto que a resistncia cometria no pode ser nula haveria transformao constante de movimento em calor. Hidrognio e oxignio arderiam combinados com o carbono do cometa. A atmosfera elevar-se-ia a algumas centenas de graus e jardins, parques, florestas, casas, monumentos, cidades e campos, tudo ficaria em breve consumido. Mares, lagos e rios entrariam a ferver e os homens e os animais, em respirando esse ambiente, pereceriam asfixiados, antes mesmo de serem devorados pelo fogo.

Presto, depois, todos os cadveres estariam carbonizados, incinerados, e, no vasto incndio celeste, s o anjo incombustvel do Apocalipse poderia entoar, ao som lancinante da sua trombeta, o velho cntico morturio, como um dobre a finados:

Dies, irce, dies illa!Solvet, sculum in favilla!

A tendes o que poderia suceder se um cometa como o de 1811 se encontrasse com a Terra.

A essas palavras, o cardeal-arcebispo levantara-se e pedira a palavra. O Secretrio perptuo havia-lhe notado a presena e, depois de o saudar, por dever de cortesia meramente social, inclinava-se ligeiramente como que esperando a palavra.

No quero disse aquele interromper o discurso do nobre orador. Mas, se a Cincia anuncia, como preldio de um drama de fogo, o aniquilamento da nossa Humanidade, no posso nem devo calar que a crena universal da Igreja sempre foi precisamente essa. Os cus passaro, disse-o So Pedro. Os elementos combustos se dissolvero e a Terra se consumir com todo o seu contedo. Tambm So Paulo anuncia a mesma renovao pelo fogo. E ns, nas missas fnebres, sempre invocamos: Eum qui venturus est judicare vivos et mortuos et saeculum per ignem... Sim: Solvet scnclum in favilla. Deus reduzir o universo a cinzas.

Mais de uma vez interdiz o Secretrio a Cincia se tem identificado com a intuio dos antepassados. O incndio devoraria em primeiro lugar as regies diretamente atingidas. Todo o lado atingido pela gigantesca massa cometria seria queimado, antes que os habitantes do outro hemisfrio pudessem perceber o cataclismo. O ar mal condutor e, neste caso, o calor no se propagaria imediatamente aos pontos opostos.

Se o nosso hemisfrio estivesse precisamente voltado para o cometa nos primeiros minutos do encontro, seria o trpico de Cncer, os habitantes de Marrocos, Arglia, Tunis, Itlia, Grcia, Egito que haveriam de constituir a vanguarda da batalha celeste; ao passo que os da Austrlia, Nova-Calednia, Oceania e dos nossos antpodas seriam os mais favorecidos. Mas, a absoro do ar produzida pela imensa fornalha seria de tal monta, que desencadearia uma tempestade incomparvel, em sua violncia, aos mais violentos furaces conhecidos; mais impetuosa, digamos, que a corrente de 400 quilmetros horrios, qual a vigorante e constante no equador de Jpiter, soprando dos antpodas para a Europa e tudo arrasando sua passagem. Em seu movimento de rotao, a Terra arrastaria sucessivamente para o eixo do choque os pases situados a oeste do meridiano primeiramente atingido. Uma hora depois a ustria, a Alemanha, a Frana; depois o Atlntico e a Amrica do Norte, que no entraria no mesmo eixo um tanto oblquo, dada a marcha do cometa para o seu perilio, a cinco ou seis horas da Frana, ou seja, no fim da sua travessia.

Apesar da inaudita velocidade do cometa e da Terra, a presso cometria no seria descomunal, em virtude da extrema tenuidade da substncia atravessada. Essa substncia, porm, encerrando carbono, torna-se combustvel e, na exaltao de seus ardores perilios, vemos que esses astros juntam, muitas vezes, sua prpria, a luz que do Sol recebem. Assim, os cometas tornam-se incandescentes. Que seria, ento, no choque terrestre? O incndio das estrelas cadentes e dos blidos, a fuso superficial dos uranlitos, que chegam ardentes nossa crosta, tudo isso induz a crer que o mais intenso calor deva ser o primeiro e o mais considervel dos efeitos, o que no impediria, claro, os elementos macios do ncleo de arrasarem os pontos de sua passagem, e mesmo deslocar, talvez, um continente inteiro.

Permanecendo o globo terrestre inteiramente envolvido pela massa cometria durante sete horas, mais ou menos, a girar nesse gs incandescente, o afluxo do ar, precipitando-se para o incndio; o mar em ebulio, sobrecarregando a atmosfera de novos vapores; uma chuva torrencial esfervilhante, a precipitar-se em cataratas; o furaco esfuziando de todos os quadrantes; estalidar de raios, ribombar de troves; a tonalidade dos belos dias substituda por um luar lgubre, difuso, num ambiente abafadio, e j o globo inteiro no tardaria a sucumbir no pandemnio, ainda que a morte dos antpodas viesse a diferir daquela das populaes atingidas.

Ao invs de serem imediatamente consumidos pelo fogo celeste, eles morreriam abafados pelo vapor ou pela predominncia do azoto uma vez diminudo o oxignio ou envenenados pelo xido de carbono. O incndio no fazia mais que incinerar depois os cadveres, enquanto que os africanos e europeus seriam queimados vivos.

Tomei como exemplo o cometa de 1811, mas, apresso-me a acrescentar, concluindo, que este nosso cometa me parece muito menos denso. E vs pudestes ver que encarei o problema de modo assaz despreocupado e persuadido de que, ameaados fatalmente de um choque, nem por isso morreremos.

H certeza exclama uma voz bem conhecida (era um membro ilustre da Academia Cirrgica) de que o cometa seja essencialmente composto de xido carbnico? As observaes espectroscpicas lhe teriam encontrado traos de azoto? Fosse o protxido de azoto e teramos, ento, na transfuso das atmosferas, terrena e cometria, a anestesia dos terrcolas. Todo o mundo dormiria, talvez, para no mais acordar, se as funes vitais ficassem suspensas por tempo apenas um pouco mais longo que o necessrio s anestesias cirrgicas. A mesma coisa sucederia se o cometa se compusesse de ter ou clorofrmio. Ter-se-ia, ento, um fim tranqilo. Menos o seria, contudo, se em vez de oxignio o cometa absorvesse azoto, visto que a extrao, gradual ou total, deste produziria, dentro de poucas horas, em todas as criaturas, homens, mulheres, crianas, velhos, uma transformao de carter nada incomodativa, a saber: primeiro, uma serenidade deliciosa: depois, uma alegria contagiosa, expansiva, trepidante uma exaltao febril , um delrio, loucura enfim, e, provavelmente, uma coreografia fantstica culminando na morte de todos os seres. Apoteose, dir-se-ia, de uma sarabanda louca, pela superexcitao de todos os sentidos. Toda a gente estouraria de riso... Fim trgico?

A discusso continua aberta replicou o Secretrio . O que eu disse das possveis conseqncias do incndio aplicvel ao encontro direto de um cometa anlogo ao de 1811. Este que ora nos ameaa menor e o seu choque no ser em linha reta, mas oblqua. Tal como os astrnomos que me precederam nesta tribuna, eu quero crer que no tenhamos mais que um simples fogo de artifcio.

Aditarei que fenmenos qumicos, imprevistos, podero verificar-se. Assim, por exemplo, ningum aqui ignora que a gua e o fogo se assemelham: hidrognio que arde em combinao com oxignio, ou hidrognio combinado com oxignio, so coisas afins. A gua dos mares, dos lagos, dos rios, composta de dois volumes de hidrognio e um de oxignio. Na origem do nosso planeta essa gua era fogo e poderia volver ao seu primitivo estado se, mediante uns tantos fenmenos de eletrlise, os ferros magnticos do ncleo cometrio viessem a decompor-se, dissociando suas molculas de hidrognio e queimando-as. Todos os mares poderiam incendiar-se bem depressa.

Falava ainda o orador, quando uma jovem funcionria da central-telefnica entrou por uma porta baixa, guiada por um smio domesticado, precipitando-se para a cadeira do Presidente, a fim de lhe entregar um grande envelope quadrado, que foi imediatamente aberto. Era um despacho do Observatrio do Gaorisancar com estas nicas palavras:

Habitantes de Marte mandaram mensagem fotofnica. Decifraremos dentro de poucas horas.

Senhores disse o Presidente acabo de ver que muitos de vs consultastes o relgio e penso convosco ser impossvel esgotar o assunto nesta reunio, ainda porque, resta-nos ouvir outros eminentes representantes da geologia, da histria e da geonomia. De resto, o despacho que acabo de ler nos trar novo elemento para a soluo do problema. So quase 18 horas e eu vos proponho uma sesso complementar para esta mesma noite, s 21 horas. provvel que at l tenhamos recebido a decifrao da mensagem marciana. Pedirei ao Sr. Diretor do Observatrio que se mantenha em comunicao telefonoscpica permanente com a estao de Gaorisancar. Caso a mensagem no esteja ainda decifrada s 21 horas, o Sr. Presidente da Sociedade Geolgica de Frana poder abrir a sesso para expor o estudo que acabo de completar sobre o fim natural do orbe terrestre. No h quem neste momento no se interesse apaixonadamente por esta questo capital, seja por saber se o nosso mundo est verdadeiramente fadado a perecer nesta contingncia, ou seja a qualquer tempo, por causas outras suscetveis de clculo e previso.

IV Como acabar o mundo

L'heure de la fin viendra, il n'y a point de doute l-dessus et cependant la plupart des hommes n'y croient pas.

MAHOMET, le Ooran, XI, 61.

A multido, imobilizada s portas do Instituto, afastara-se para dar passagem ao auditrio e cada qual procurava inteirar-se do resultado da sesso. Porm, sem que se soubesse como j havia transpirado logo aps o discurso do Diretor do Observatrio, diziam que o encontro no seria provavelmente to fatal quanto se prenunciara e presumira. Demais, enormes cartazes acabavam de ser afixados por toda a cidade, anunciando a reabertura da Bolsa de Chicago. Era um incitamento imprevisto ao reatamento das atividades normais, pblicas e privadas. Eis o que ocorrera: Depois que se despencou das alturas da arquibancada, o prncipe das finanas voou pelo aerocabo aos seus escritrios de Saint-Cloud e telefonou ao scio em Chicago, comunicando-lhe que novos clculos foram apresentados ao Instituto de Frana e o evento astronmico no tinha a suposta gravidade; que o ritmo dos negcios deveria ser retomado e urgia, a qualquer preo, reabrir a Bolsa americana e comprar todos os ttulos que se apresentassem, fossem quais fossem. Ora, 4 da tarde, em Paris, corresponde a 10 da manh em Chicago. Estava, pois, o financista almoando, quando lhe chegou o fonograma do scio. No lhe foi difcil promover logo a reabertura da Bolsa e comprar de pancada algumas centenas de milhes de ttulos. A notcia de Chicago logo se divulgou em Paris, onde j no era possvel dar o mesmo golpe, mas podiam preparar-se novas combinaes para o dia seguinte. O povo, otimista, acreditara na espontaneidade da iniciativa americana e, associando-a impresso calmante da assemblia acadmica, encheu-se de esperana.

Mas, nem por isso deixou de acorrer menos sfrego sesso noturna. No fosse o servio especial da Guarda Civil e impossvel seria aos convidados privilegiados penetrar no recinto. A noite cara e o cometa se tornava maior, mais flamejante e ameaador. Se uma parte das criaturas mostrava-se mais ou menos tranqilizada, a outra porventura a maior continuava exaltada, nervosa, febricitante. O auditrio era evidentemente o mesmo, cada qual interessado em conhecer de pronto as concluses do debate entre os mais eminentes e autorizados cientistas, no concernente sorte do planeta e espcie de morte que a todos aguardava. Todavia, no passou despercebida a ausncia do cardeal, inesperadamente chamado a Roma para tomar parte num conclio ecumnico, e que para l seguira pelo tubo Paris-Roma-Palermo-Tnis.

Senhoras disse o Presidente ainda no recebemos o despacho de Marte, assinalado pelo Observatrio de Gaorisancar, mas podemos abrir desde j a sesso, a fim de ouvirmos as valiosas comunicaes anunciadas pelo Sr. Presidente do sociedade Geolgica e pelo Sr. Secretrio geral da Academia de Meteorologia. Dou, portanto, a palavra ao primeiro.

J o orador estava na tribuna. Eis o seu discurso estenografado por um aluno da nova escola.

O auditrio vultoso que aqui se comprime, a emoo transparente de todos os semblantes, a impacincia com que aguardais os debates que ainda aqui se devem travar, tudo me levaria, senhores, a abster-me de vos expor as concluses do estudo que fiz, concernente ao problema em foco, para ceder a palavra a espritos mais imaginativos, ou mais audaciosos do que eu. que, a meu ver, o fim do mundo no est prximo e a Humanidade, antes de o ver chegar esta semana, deve esper-lo ainda por muito tempo... Milhares de anos, provavelmente... Mas, que digo? milhares, no; milhes, ou melhor: milhares de milhes.

Vede-me perfeitamente tranqilo neste momento e considerai que no tenho o mrito de Arquimedes, quando, absorto em seus clculos geomtricos, foi estrangulado pelo soldado romano, no cerco de Siracusa. Arquimedes conhecia e esquecia o perigo. Eu no creio no perigo.

No ficareis, pois, surpreendidos de me ouvir expor com a maior calma a teoria da extino de nosso mundo, pelo nivelamento assaz lento dos continentes e a submerso gradual da sua crosta invadida pelas guas... Seria talvez prefervel adiar esta dissertao para a prxima semana, pois no tenho a mnima dvida de que aqui possamos todos, ou quase todos voltar, a fim de nos entretermos com as grandes fases da natureza.

Nesta altura, fez uma pausa. O Presidente levantara-se:

Caro e ilustre colega disse , todos aqui estamos para vos ouvir. Felizmente, o pnico destes ltimos dias est em parte acalmado e esperamos que o prximo 14 de Julho transcorra como os precedentes. Todavia, interessamo-nos mais que nunca pelo grande problema, e nenhuma palavra poder ser mais acatada que a do autor do clssico Tratado de Geologia.

Pois bem continuou o gelogo eis como acabar o mundo, de morte natural, se nada vier alterar a ordem natural das coisas, o que provvel, visto serem raros os acidentes no ritmo csmico. A Natureza no d saltos. Os gelogos j no acreditam mais em revolues sbitas, em subverses do globo, pois sabem que tudo se processa por evoluo lenta e gradual.

Se dramtico prefigurar-se o novo esferide arrastado a uma catstrofe universal, menos o ser v-lo, to s pelas foras ativas que ora o ameaam de destruio. No nos parece indefinida a estabilidade dos continentes? Como duvidar da continuidade indefinida deste solo, que tem comportado tantas geraes pregressas e sobre o qual os monumentos antiqssimos atestam que, se hoje os vemos em runas, no porque o solo lhes tenha negado apoio, mas, por sofrerem as injrias do tempo e, sobretudo, do homem? Tempus edax, homo edacior! To longe quanto possamos remontar s nossas tradies, elas nos falam de rios correndo nos mesmos leitos atuais; montanhas da mesma altura e, por quaisquer esturios obstrudos, desmoronamentos ali e acol, isso pouco significa relativamente massa dos continentes, para que possamos prognosticar uma destruio final.

Destarte, poder raciocinar quem no lance ao mundo exterior mais que olhar superficial e indiferente. Outra, porm, a concluso do observador afeito a escrutar, atento, as modificaes mais insignificantes que se verificam em torno dele. A cada passo, por pouco que ele saiba ver, apreender as linhas de uma luta incessante, empenhada pelas foras exteriores da natureza contra tudo o que ultrapassa o nvel deste oceano, sob o qual reinam o silncio e o repouso. A chuva, o gelo, a neve, o vento, as fontes, as praias, os rios; todos os agentes metericos concorrem para modificar perpetuamente a superfcie do globo. Os vales so escavados pelos cursos da gua e a seguir entulhados com as terras de enxurro. Tudo muda sem cessar. Aqui o mar que, furioso, bate as praias e as leva de recuo, de sculo em sculo. Alm, so talhes de montes que se esboroam, engolindo cidades e povoados, em poucos minutos, semeando a desolao entre vales risonhos. Avalanchas e torrentes desagregam montanhas. Ou, ento, temos esses cones vulcnicos, contra os quais se encarniam as chuvas tropicais, recortando profundas ravinas, e cujas paredes se fendem e mostram a ruinaria, o destroo desses gigantes. Alpes e Pirineus j perderam mais de metade da sua altura.

Mais silenciosa, porm no menos eficaz, a ao dos grandes rios quais o Ganges e o Mississipi, cujas guas carreiam grande massa de resduos. Cada gro de areia que turva a limpidez dessas guas representa um fragmento arrancado terra firme. Lenta, mas seguramente, as ondas conduzem ao imenso reservatrio ocenico tudo o que perde o solo, e os resduos que diariamente se depositam nos deltas nada representam, comparados aos depsitos que o mar recebe para dispersar em suas profundezas. Como pode o filsofo, testemunha de um trabalho tal e sabendo que ele se opera por sculos de sculos, como pode, repito, duvidar que os rios e as vagas ocenicas acarretem o luto permanente terra firme?

uma concluso que a geologia confirma em todos os sentidos. De fato, ela nos mostra, em todos os continentes, a superfcie do solo constantemente atacada, seja por alteraes trmicas, seja por alternativas de aridez e umidade atmosfrica, gelo ou degelo, ou seja ainda pela ao ininterrupta dos vermes e dos vegetais. Da, um processo de desagregao que acaba surribando at as rochas mais compactas. Os destroos comeam rolando pelas encostas e no lveo das correntes, onde se desgastam e transformam em cascalho, areia, lodo, espera de qualquer enchente com potencial bastante que os conduza ao mar.

fcil provar qual seja o resultado final desse trabalho. O pensador, sempre operoso, no se satisfaz seno quando os materiais submetidos ao seu domnio tiverem conquistado condio mais estvel. Ora, tal estabilidade no se conquistaria seno no dia em que esses materiais no mais russem... Importaria, portanto, suprimir todo e qualquer declive at o mar, reservatrio comum,. onde se consumam todas as potncias carreadoras; e bem assim, que todos os fragmentos carreados dos continentes se tenham disseminado no fundo dos mares. Em resumo: ou aplanamento completo da terra firme, ou, por melhor dizer, a destruio de qualquer relevo continental.

O resultado da eroso produzida pelas guas correntes deve originar sobre as linhas de partilha regional, pontudas arestas, passando bem depressa s plancies quase absolutamente rasas, entre as quais no restaria, em ltima anlise, nenhum relevo com mais de 50 metros de altura.

Entretanto, em parte alguma essas arestas agudas se manteriam por muito tempo, de vez que o peso, a ao dos ventos, das infiltraes e das variaes de temperatura seriam suficientes para provocar o arrasamento. Lcito tambm dizer que o termo final desse trabalho de eroso continental h de ser o nivelamento completo da terra firme, assim reconduzida a nvel mais ou menos equivalente ao da embocadura dos rios.

O coadjutor do Arcebispo de Paris, que ocupava o lugar de sua Eminncia, levantou-se e interrompeu o orador:

Eis a como se confirmaro literalmente as escrituras, quando dizem: Todo vale ser aterrado, colinas e montanhas sero arrasadas.

A Bblia tudo prenunciou replica o gelogo , a gua como o fogo, o frio como o calor, e os espritos engenhosos podem l encontrar tudo o que desejarem. Mas, o que podemos haver por certo que, se nada modifica as condies da terra firme e dos oceanos, o relevo continental, esse est fatalmente destinado a desaparecer.

Quanto tempo transcorrer at que isso se verifique?

Se espalhssemos todas as montanhas da Terra, ela se apresentaria como uma plancie dominando em toda parte o mar, por penedias de 700 metros de altura, mais ou menos.

Admitido que a superfcie total dos continentes seja de 145 milhes de quilmetros quadrados, teramos que o volume da massa continental emergida pode estimar-se em 145.000.000 x 0,7, ou 101.500.000, ou ainda, em nmeros redondos, cem milhes de quilmetros, cbicos. Tal a previso, indubitavelmente respeitvel, mas no indefinida, contra a qual atuam potncias destruidoras.

Todos os rios, de conjunto, podem estimar-se como despejando anualmente no mar 23.000 quilmetros cbicos da gua (ou por outra, 23.000 vezes um milho de metros cbicos); tal dbito, pela relao estabelecida de 38 partes sobre 100.000, daria um volume igual a 10 quilmetros e 34 centmetros de matrias slidas. Esta cifra est, para a do volume total dos continentes, na proporo de 1 para 9.730.000; se a terra firme fosse um altiplano uniforme de 700 metros, perderia cada ano uma faixa de sete centsimos de milmetro, ou um milmetro em catorze anos, ou, ainda, sete milmetros cada sculo.

A temos uma cifra positiva, que exprime o valor atual da eroso dos continentes. Aplicando-a ao conjunto dos mesmos, v-se que essa eroso s por si destruiria em menos de dez milhes de anos toda a massa de terras emergidas.

No so, entretanto, as chuvas e os rios os nicos fatores dessa obra de destruio progressiva. O primeiro a eroso marinha. Para avali-la, dificilmente encontraremos melhor estalo que o das costas britnicas, cuja situao as expe ao assalto das guas atlnticas, levadas pelos ventos preponderantes do sudoeste, sem interposio de obstculos quaisquer. Ora, o recuo mdio do conjunto das costas inglesas , seguramente, inferior a trs metros em cada sculo.

Podemos, por duas maneiras, proceder nessa investigao. A primeira consiste em avaliar a perda de volume que representa, para a totalidade das costas, um recuo anual de 3 centmetros. Para isso, importa conhecer-lhes a extenso e altura mdia. A extenso das plagas em todo o globo pode estimar-se em 200.000 quilmetros, mais ou menos, e, quanto ao nvel sobre o mar, talvez exageremos calculando-o em mdia de cem metros. Logo, um recuo de 3 centmetros corresponde a uma perda de 3 metros cbicos por metro corrente, ou, seja, para 200.000 quilmetros de costa, 600 milhes de metros cbicos, que perfazem apenas seis dcimos de quilmetro cbico. Noutros termos: a eroso marinha no representaria mais que a dcima stima parte do trabalho das guas metericas!

Objetar-se-, talvez, a esse processo, que, dada a altitude crescente das costas para o interior, o mesmo recuo deveria, com o tempo, corresponder a maior perda de volume. E teria fundamento essa objeo? No, porque, tendendo a ao das chuvas e dos rios para o aplanamento completo das superfcies, prosseguiria em paralelo com a ao das vagas.

Por outro lado, sendo a superfcie da terra firme de 145 milhes de quilmetros quadrados, um crculo de igual superfcie deveria ter 6.800 quilmetros de raio. Mas, a circunferncia desse crculo no ultrapassaria 40.000 quilmetros, o que vale dizer que o mar teria, de contorno, diminuda de um quinto a carga que atualmente no tem, graas aos recortes que atingem a 200.000 quilmetros ao longo de suas plagas. Pode-se admitir, pois, que o trabalho de eroso marinha marcha cinco vezes mais rpido que sobre um crculo equivalente. Certo, esta estimativa representa um mximo, pois as pennsulas estreitas, uma vez corrodas pelo mar, diminuiriam cada vez mais a correlao de permetro e superfcie, tornando menos eficaz a ao das guas. Em todo caso, desde que razo de 3 centmetros por ano, um raio de 6.800 quilmetros est condenado a desaparecer dentro de 226.600.000 anos, um quinto desta cifra, ou seja 45.000.000 de anos representaria o mnimo do tempo necessrio destruio da terra firme pelas vagas marinhas. Isso, como intensidade, apenas corresponderia quinta parte da ao continental.

O conjunto das aes mecnicas parece, pois, arrebatar terra firme, cada ano, um volume de 12 quilmetros cbicos, que, para um total de 100 milhes, culminaria na destruio completa em oito milhes de anos, mais ou menos. No se pense, porm, que tenhamos esgotado a anlise dos fenmenos destrutivos da massa continental. A gua no somente um agente mecnico, mas tambm um elemento de dissoluo, muito mais ativo do que geralmente se imagina, dada a proporo assaz notvel de cido carbnico que contm, quer o absorvido na atmosfera, quer o originado da decomposio das matrias orgnicas do solo. Circulando atravs de todos os terrenos, ela a se satura das substncias que carreia, mediante um verdadeiro ataque qumico aos minerais das rochas atravessadas.

A gua dos rios contm cerca de 182 toneladas de substncias dissolvidas, por quilmetro cbico. O conjunto dos rios carrega para o mar, anualmente, cerca de cinco mil metros cbicos de substncias dissolvidas. J no seriam, portanto, mais doze, e sim dezessete mil metros cbicos que a terra firme perderia todos os anos, sob as diversas influncias que operam a sua destruio. Temos ento, desd