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CAMINHOS GEOLITERÁRIOS: ANTIGOS E NOVOS OLHARES QUE SE ENCONTRAM Adriana Carvalho Silva UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Elizabeth Martins Garcia Fontes Colégio Estadual Amaro Cavalcanti Raíza Carolina Diniz Silva UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro RESUMO O texto aborda a produção de conhecimento escolar através de uma proposta educacional inovadora que se traduz em uma ação didático-pedagógica integradora, promovida pelo projeto de extensão que reúne duas instituições voltadas para a atividade do Ensino, a UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - e o Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, situado no bairro do Largo do Machado, Rio de Janeiro. Por iniciativa das professoras Adriana Carvalho Silva, Isa Ferreira Martins e Elizabeth Martins Garcia Fontes, buscou-se refletir com os alunos de Ensino Médio as representações da cidade do Rio de Janeiro pelos autores literários e por eles próprios a partir do resgate de romances, contos e crônicas em sala de aula e de trabalhos de campo nos percursos geoliterários inspirados na produção dos autores, ou seja, nos espaços ficcionais abordados nas obras selecionadas. Pelo momento nossos autores são Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto. Os alunos do Ensino Médio nem sempre desenvolvem a capacidade de analisar de modo crítico a produção do espaço em sua própria cidade e as forças que atuam nesse processo. Inseridos em um modelo educacional que comporta um programa de conteúdos extenso, esses alunos têm poucas possibilidades de investigar e analisar com seus professores de modo mais aprofundado a dinâmica do espaço urbano e a atuação dos sujeitos que nele vivem. Esse projeto privilegia o olhar da literatura sobre o urbano, tomando-a como representação do espaço vivido do autor e valoriza a prática interdisciplinar na produção de conhecimento. A análise das obras literárias enquanto representação do espaço e a ressignificação desse olhar junto aos alunos da escola contribuem para a formação crítica e estimulam novas práticas educacionais. Espera-se que, ao final do projeto, o trabalho desenvolvido seja capaz de colaborar com a formação de alunos e professores mais conscientes acerca dos processos de transformação do ambiente em que vivem. Palavras-chave: cidade, literatura, representação XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 848 ISSN 2177-336X

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CAMINHOS GEOLITERÁRIOS: ANTIGOS E NOVOS OLHARES QUE SE

ENCONTRAM

Adriana Carvalho Silva

UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Elizabeth Martins Garcia Fontes

Colégio Estadual Amaro Cavalcanti

Raíza Carolina Diniz Silva

UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

RESUMO

O texto aborda a produção de conhecimento escolar através de uma proposta educacional

inovadora que se traduz em uma ação didático-pedagógica integradora, promovida pelo

projeto de extensão que reúne duas instituições voltadas para a atividade do Ensino, a UFRRJ

- Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - e o Colégio Estadual Amaro Cavalcanti,

situado no bairro do Largo do Machado, Rio de Janeiro. Por iniciativa das professoras

Adriana Carvalho Silva, Isa Ferreira Martins e Elizabeth Martins Garcia Fontes, buscou-se

refletir com os alunos de Ensino Médio as representações da cidade do Rio de Janeiro pelos

autores literários e por eles próprios a partir do resgate de romances, contos e crônicas em sala

de aula e de trabalhos de campo nos percursos geoliterários inspirados na produção dos

autores, ou seja, nos espaços ficcionais abordados nas obras selecionadas. Pelo momento

nossos autores são Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto.

Os alunos do Ensino Médio nem sempre desenvolvem a capacidade de analisar de modo

crítico a produção do espaço em sua própria cidade e as forças que atuam nesse processo.

Inseridos em um modelo educacional que comporta um programa de conteúdos extenso, esses

alunos têm poucas possibilidades de investigar e analisar com seus professores de modo mais

aprofundado a dinâmica do espaço urbano e a atuação dos sujeitos que nele vivem. Esse

projeto privilegia o olhar da literatura sobre o urbano, tomando-a como representação do

espaço vivido do autor e valoriza a prática interdisciplinar na produção de conhecimento.

A análise das obras literárias enquanto representação do espaço e a ressignificação desse olhar

junto aos alunos da escola contribuem para a formação crítica e estimulam novas práticas

educacionais. Espera-se que, ao final do projeto, o trabalho desenvolvido seja capaz de

colaborar com a formação de alunos e professores mais conscientes acerca dos processos de

transformação do ambiente em que vivem.

Palavras-chave: cidade, literatura, representação

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Introdução

A política educacional brasileira tem assumido desde a década de 1990 um caráter de

flexibilidade e descentralização cuja meta, reafirmada em sucessivas reformas, diretrizes e

orientações curriculares em todos os níveis de ensino, parece ser reverter a situação de

exclusão escolar e melhorar a tão questionada qualidade da educação oferecida nas escolas

públicas. Privilegiamos hoje a discussão da educação popular no âmbito da escola pública e a

implantação de projetos pedagógicos que reconheçam o compromisso desta instituição com as

classes populares e com a valorização de ações didático-pedagógicas integradoras que

promovam uma consciência crítica.

A ação pedagógica que acredita na possibilidade da educação como base na

construção da consciência crítica para impulsionar as ações humanas em busca de um mundo

melhor há de estar atenta às orientações curriculares voltadas à educação básica, bem como às

necessárias ações e metodologias voltadas para organização e desenvolvimento dos conteúdos

de ensino em sintonia com ações interdisciplinares.

Sendo assim, esse artigo trata do projeto de extensão que procura atender a

necessidade de pensarmos em práticas interdisciplinares na escola e em novas metodologias

que procuram interagir com diferentes áreas de ensino (ou integrar as diferentes áreas de

ensino). Através desse projeto, que representa uma aproximação entre duas instituições

voltadas para a atividade do Ensino, a UFRRJ, representada no Departamento de Teoria e

Pesquisa de Ensino, e o Colégio Estadual Amaro Cavalcanti, buscamos a reflexão junto aos

alunos de Ensino Médio sobre as representações da cidade do Rio de Janeiro pelos autores

literários e por eles próprios a partir do resgate de romances, contos e crônicas em sala de aula

e de trabalhos de campo nos espaços ficcionais abordados nas obras selecionadas.

Ao aproximarmos Geografia e Literatura, atendemos a demanda de pensarmos o

currículo escolar de modo integrado, sem, no entanto, desprezar a arte em sua essência, ou

trazê-la para a geografia como mero instrumento estético. Ao investigarmos metodologias

próprias e singulares para lidar com a análise geográfica de textos literários, temos o desafio

de trabalharmos com campos de saberes diferentes que se conjugam na escola mantendo o

respeito às especificidades das manifestações artísticas.

Em sintonia com o educador Paulo Freire, que acreditava numa educação

transformadora, associada a um projeto social e político, concordamos que a escola e suas

disciplinas estão em função de possibilitar ao aluno uma leitura de mundo libertadora e

capacitante: " É o saber do futuro como um problema e não como inexorabilidade. É o saber

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da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está

sendo" (FREIRE, 1996, p. 85).

Os alunos do Ensino Médio nem sempre desenvolvem a capacidade de analisar de

modo crítico a produção do espaço em sua cidade ou de identificar as forças atuantes nesse

processo e os atores sociais envolvidos. Inseridos em um modelo educacional que comporta

um programa de conteúdos extensos, os alunos têm poucas possibilidades de investigar e

analisar com seus professores, de modo mais aprofundado, o processo de transformação e as

representações de seus espaços vividos, nem tampouco possuem espaço na escola para

refletirem e representarem suas próprias vivências no ambiente urbano.

Aliando a dimensão de pesquisa e ensino, estão envolvidos no projeto apresentado

nesse texto, uma professora na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, uma aluna

bolsista do curso de licenciatura em geografia desta universidade, alunos e duas professoras

de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Estadual Amaro Cavalcanti. Sendo o projeto de

natureza interdisciplinar, abrange uma metodologia que considere as áreas envolvidas,

respeitando suas especificidades e promovendo uma relação dialógica entre elas. As

atividades desenvolvidas constituem-se de pesquisas em campo, vivência do cotidiano e

reconhecimento da estrutura de uma escola, percursos geoliterários nos lugares ficcionais

abordados nas obras literárias, debates e análises dessses espaços com alunos e professores.

O que temos privilegiado nessa parceria é promover a produção de conhecimento

escolar através de um trabalho interdisciplinar e uma prática educacional inovadora. Ao

articular os campos da Geografia e Literatura no ambiente escolar, o objetivo maior é que a

análise dos caminhos geoliterários possa contribuir para que os alunos se reconheçam

enquanto sujeito sociais, envolvidos no processo de produção do espaço, identifiquem outros

sujeitos e suas representações artísticas, em destaque os autores literários enquanto sujeitos

sociais e a sua produção literária nas representações do passado e contemporâneas no

processo de transformação do ambiente urbano.

O espaço na Geografia e na Literatura

Nesse cenário de referências e mediações entre Geografia e Literatura, vemos o espaço

geográfico pensado não somente a partir da evolução epistemológica da geografia. O espaço

no texto vem sendo refletido enquanto categoria geográfica também pelos estudiosos da

literatura. O interesse pelas questões geográfico-literárias não é recente e representa as

mudanças epistemológicas nas duas disciplinas, como bem atestam os geógrafos Marc

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Brosseau (1996) e Geraldine Molina (2010): ele, desenvolvendo um método de análise

geográfica dos romances baseado em elementos da crítica literária; ela, tomando consciência

de como as representações espaciais dos romances na Europa influenciaram o imaginário de

urbanistas e arquitetos na composição de seus projetos.

Foi especialmente nos campos da geografia humanista e da geografia cultural onde

mais avançou o que estamos considerando nessa pesquisa como geografia literária, ou seja, a

análise geográfica de um texto literário. O caráter híbrido dessa geografia é fruto das

interseções que marcam a própria evolução da disciplina. A instrumentalização da literatura

pela geografia atravessou as fronteiras da geografia regional clássica e foi incorporando novos

elementos, alguns concretos e objetivos, outros subjetivos e imaginários; a geografia foi se

entrecruzando com a fenomenologia, se aproximando da crítica literária e privilegiando

aspectos da linguagem e da retórica, como bem nos mostra Brosseau (1996), e seguiu também

trocando com a sociologia, como bem representa Molina (2010).

Nosso olhar analítico na busca pela relação entre Geografia e Literatura no ambiente

escolar tem o caráter híbrido dessa geografia literária que se desenhou ao longo do século XX.

Entendemos que os autores literários exercem sua condição de sujeito, escolhendo o romance,

a crônica ou conto como discurso e valendo-se de recursos linguísticos elaborados para se

comunicar. Nosso caminho metodológico parte da proposta de analisar o espaço nas obras

selecionadas considerando a representação literária como produto da experiência do autor, o

que nos aproxima dos estudos de geografia humanista na sua base (TUAN, 1980 [1976], 1983

[1978]; MONBEIG; MONTEIRO, 2002, 2006;) e na sua evolução (BROSSEAU, 1996,

LEVY, 1974, 1984, 1987, 1994; TUAN, 1982, 2006; CLAVAL, 1974, 1978, 1987, 1994).

Essa perspectiva híbrida de análise de obras literárias permite-nos reconhecer os elementos da

narrativa como estruturantes na compreensão da dimensão espacial da trama e, ainda, explorar

a representação espacial da obra considerando a condição de sujeito do autor, ou seja, de

indivíduo que se comunica com o mundo por meio da obra literária.

Para nós, cabe investigar como a espacialidade é construída, ou se apresenta em um

texto construído por recursos linguísticos como, por exemplo, o da intertextualidade. Como

realizar uma análise geográfica de um texto construído a partir do diálogo com outros textos,

remontando outras escalas temporais e espaciais? Como vemos esses espaços ficcionais hoje?

Como os jovens estudantes os veem e os representam hoje?

Investigamos novas possibilidades de metodologias que buscam interagir os saberes

escolares de Geografia e Literatura desenvolvendo práticas mais dialógicas e para além

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daquelas que guardam o aspecto de "instrumentalizar" a literatura e demais manifestações

artísticas para o ensino na escola básica.

Promover os percursos geoliterários nos tem permitido desenvolver junto aos

professores práticas escolares que estimulam os alunos a desenvolverem um olhar crítico e

reflexivo acerca do espaço geográfico e suas interações. Essa prática nos permite analisar de

forma crítica a produção de autores literários dentro do contexto histórico social em que

produziram suas obras, reconhecer as diversas reformas urbanísticas que foram

implementadas na cidade do Rio de Janeiro e perceber os impactos sociais que essas

transformações tiveram no cotidiano, além dos impactos na habitação, nos costumes e na

cultura.

Em nosso trabalho, temos explorado escritores literários que vivenciaram e

representaram o ambiente urbano, em especial aqueles no entorno e adjacências da escola

Estadual Amaro Cavalcanti, a exemplo dos escritores Machado de Assis, João do Rio e Lima

Barreto, que foram capazes traduzir suas vivências e impressões acerca, por exemplo, da

Reforma Passos e das ações públicas que caracterizaram um forte projeto de gentrificação em

nossa cidade.

De olho na rua

Ao tomarmos os autores literários como sujeitos sociais e valorizarmos sua produção

como representativas de um tempo espaço e de uma vivência urbana, valemo-nos dos estudos

de Bakhtin que apontam a natureza social daquele que fala no romance.

Segundo Bakhtin, nos fins do século XIX, houve um renascimento do interesse pelas

questões concretas da prosa na arte literária e, especialmente, pelos problemas técnicos do

romance. Sobre esse gênero literário, Bakhtin (1993) defende que o sujeito que fala no

romance “é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido, sendo o seu

discurso uma linguagem social (ainda que em embrião) e não um dialeto individual”

(BAKHTIN, 1993, p.135). Para Bakhtin, é graças a um plurilinguismo social que o romance

orquestra todos os seus temas, todo seu mundo de objetos, semântico, figurativo e expressivo.

O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos

das personagens não passam de unidades básicas de composição. Cada um deles admite uma

variedade de vozes sociais e de diferentes ligações e correlações, sempre dialogizadas em

maior ou menor grau:

O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas

artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. A

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estratificação interna nacional única em dialetos sociais, maneirismos

de grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala das

gerações, das idades, das tendências, das autoridades, dos círculos e

das modas passageiras, das linguagens de certos dias e de certas horas,

enfim, toda essa estratificação interna de cada língua em cada

momento dado de sua existência histórica constitui premissa

indispensável do gênero romanesco. (BAKHTIN, 1993, p.74)

Os conceitos desenvolvidos por Bakhtin e seus desdobramentos podem, por exemplo,

nos indicar pistas para a análise geográfica da obra Esaú e Jacó, ambientada nos arredores da

nossa escola em questão. A dimensão espacial desse romance machadiano revela-nos a

centralidade que a região do entorno da escola possuía no final do século XIX, ponto final das

linhas de bonde que vinham do centro da cidade, entrando na Rua do Catete, passando em

frente ao Palácio Nova Friburgo, hoje Palácio do Catete, imóvel que abrigaria mais tarde a

sede da República (hoje Museu da República) e que lá faziam o entroncamento para a zona

sul.

Ah, a Rua do Catete! Famosa pelo episódio da troca das tabuletas da Confeitaria de

Custódio (confeiteiro que manda reformar a tabuleta fixada à porta de seu estabelecimento, a

Confeitaria do Império, e que a recebe com a pintura nova no dia 15 de novembro, dia do

golpe da proclamação da República), um trocadilho engenhoso elaborado por Machado de

Assis em Esaú e Jacó para criticar a Proclamação da República:

Venha em meu socorro. Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste

embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. —

"Confeitaria do Império", a tinta é viva e bonita. O pintor teima em

que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não

estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas

hei de perder o dinheiro que gastei? V. Exª crê que, se ficar "Império",

venham quebrar-me as vidraças? — Isso não sei. — Realmente, não

há motivo, é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece

de outro modo. — Mas pode pôr "Confeitaria da República"... —

Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se

daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em

que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro. — Tem razão... Sente-se.

— Estou bem. — Sente-se e fume um charuto. Custódio recusou o

charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de

trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se

não fosse o atordoamento do espírito. (MACHADO DE ASSIS, 2008,

p.1158)

No mesmo romance, ambientado nos arredores da escola Estadual Amaro Cavalcanti,

percebemos a centralidade da Rua do Catete percorrida pela personagem Santos, o novo rico

investidor que cobiçava o palácio Nova Friburgo que abrigaria mais tarde a sede da

República. A cobiça não representa aqui um sentimento individual ou isolado, ela é a cobiça

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pelo palácio símbolo do poder do novo Regime. Lembremos que, quando Isaú e Jacó foi

escrito, o Brasil já era uma República:

No Catete, o coupé e uma vitória cruzaram-se e pararam a um tempo.

Um homem saltou da vitória e caminhou para o coupé. Era o marido

de Natividade, que ia agora para o escritório (...) Ao passar pelo

Palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para ele com o desejo do

costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o

palácio viria a ter na República; mas quem então previa nada? Quem

prevê coisa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali

grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre

amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja (...) Já

lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que bela, não era

um palácio, e depois, não estava tão exposta como aqui no Catete,

passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes

janelas, as grandes portas, as grandes águias no alto, de asas abertas.

Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e

os lagos... Oh! gozo infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores,

luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias... (MACHADO DE

ASSIS, 2008, p.1088)

As visitas à escola e os encontros promovem discussões em grupo, quando os

alunos opinam, apresentam hipóteses, classificam, estabelecem comparações e fazem

observações. Durante essas aulas, o que valorizamos é um "clima" de sala de aula amigável,

para que haja respeito por posições contrárias. São valorizados os conhecimentos prévios

porque são o fator mais importante que influi na aprendizagem, levando-se em consideração

que estes conhecimentos abrangem tanto informações sobre os conteúdos a serem aprendidos

como conhecimentos que, de maneira direta ou indireta, estão relacionados ou podem

relacionar-se com ele. Considera-se que a aprendizagem de um novo conteúdo é produto de

uma atividade mental construtivista realizada pelo aluno e essencial para o processo de

aprendizagem significativa.

O cotidiano do projeto tem envolvido as visitas ao Colégio Estadual Amaro

Cavalcante, as visitas a campo nos espaços ficionais das obras lidas para o preparo dos

percursos com os alunos; trabalhos de campo que constituem os percursos geoliterários,

visitas a bibliotecas e museus, estudos e debates sobre as transformações urbanas no tempo-

espaço que envolvem o projeto; reuniões com professores, bolsista e alunos para seleção das

obras literárias que atendem ao interesse do projeto; reconhecimento desse material pelo

grupo, leitura e aproximação com a biografia e obra dos autores literários escolhidos;

palestras e debate sobre as principais modificações implementadas pelos projetos de

remodelação do espaço urbano na cidade do Rio de Janeiro, em especial, aquelas entre o final

do século XIX e início do século XX, uma vez que foram vivenciadas pelos autores literários

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selecionados; debates e troca de saberes e experiências, fase em que alunos e demais

enolvidos no projetos colocam suas experiências e vivências espaciais, avaliam a trajetória do

projeto, buscam a história oral dos moradores dos locais atingidos, por exemplo, pelo projeto

Porto Maravilha.

Os nossos percursos geoliterários

Dois roteiros geoliterários foram experienciados pelos alunos da Escola Estadual

Amaro Cavalcanti promovendo cinco trabalhos de campo com grupos de séries distintas no

segundo semestre de 2015. Um roteiro abarcou o centro da cidade e zona portuária, outro foi

direcionado aos arredores da Escola, envolvendo os bairros do Largo do Machado, Catete e

Glória e foi inspirado no romance Esaú e Jacó, do escritor Machado de Assis.

O primeiro percurso abrangeu a região do centro da cidade do Rio de Janeiro com o

objetivo de visualizarmos in loco as transformações promovidas pela grande reforma urbana

no início do século XX, a Reforma Passos, que tanto motivou os autores literários

selecionados por nós nesse momento, Machado de Assis, João do Rio e Lima Barreto, a

relatarem em crônicas e romances suas vivências nesse espaço em mutação. O primeiro

percurso incluiu visita à Avenida Rio Branco, antiga Avenida Central, visita à região

portuária, pois houve grande a reformulação do porto no início do século XX, a visualização

de antigas vielas que constituem rugosidades ou resquícios do que foram as ruas arrasadas

pelos alargamentos promovidos à época da Reforma Passos. Nesse primeiro percurso,

incluímos também visita ao Morro da Conceição, lugar que conserva ainda diversas formas

arquitetônicas do início do século XX e visita ao bairro da Gamboa, onde privilegiamos a área

do antigo Cais da Imperatriz, local aonde chegavam os escravos vindos do continente africano

e ao Museu do Cemitério dos Pretos Novos, sítio arqueológico situado em região que recebeu

durante anos os restos mortais de negros que não resistiam a viagem ao Brasil, muitos que

nem chegaram a ser negociados ou registrados, além de toda sorte de dejetos que a cidade

queria se desfazer.

Durante o percurso, privilegiamos os olhares para o passado e para o presente. Os

alunos puderam experienciar que esses mesmos espaços hoje ganham novas formas e muitas

das vezes novas funções. É o que ocorre hoje com a Praça Mauá, que passa por um processo

de remodelação inserido num projeto de Reforma urbana conhecido pelo nome de Porto

Maravilha, que dinamiza também todas as outras áreas que visitamos no Morro da Conceição

e no bairro da Gamboa. Presenciamos a alteração da dinâmica habitacional com a valorização

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do solo urbano nas proximidades das reformas, mudança tanto nas formas como nas funções

dos imóveis da região.

Foto: Praça Mauá, Rio de Janeiro. Vista do terraço do Museu de Arte do Rio. Nela vemos o

Museu do Amanhã meses antes da inauguração e a praça já reformada.

Fonte: acervo pessoal de Elizabeth Martins Garcia Fontes produzida no percurso geoliterário

em setembro de 2015.

O segundo percurso geoliterário envolveu os arredores da escola e foi inspirado no

romance Esaú e Jacó, do escritor Machado de Assis. Nesse percurso, privilegiamos visitar os

lugares ficcionais que o romance nos trazia. Desse modo, percorremos toda a Rua do Catete,

observamos os casarios antigos que ainda guardam as mesmas formas à época do romance,

com suas datas nas fachadas denunciando que estão ali desde o século XIX, apesar de

possuírem hoje novas funções (são bancos, lojas de departamento, lanchonetes...), passamos

em frente ao imóvel em que morou Machado de Assis antes de se mudar para o endereço que

seria o mais conhecido do escritor, o casarão do Cosme Velho. Entramos nos jardins do

Palácio do Catete, observamos o casarão que pertenceu ao Barão de Nova Friburgo e que

abrigou a sede do governo republicano durante tantos anos, subimos o outeiro da Glória e

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observamos a baía de Guanabara e o centro da cidade. Lá de cima, pudemos visualisar a

extensão da cidade antes dos inúmeros aterros que foram sendo feitos ao longo dos anos e,

ainda, o caminho que o bonde percorria ao vir da cidade e tomar a Rua do Catete.

Esse percurso foi bastante apreciado pelos alunos, uma vez que eles puderam

desenvolver um outro olhar sobre os espaços cotidianos, além de sentirem-se estimulados a

desenvolverem uma percepção crítica acerca dos seus espaços vividos e considerarem a

literatura como representação dessa experiência.

Foto: Do alto do Outeiro da Glória no segundo percurso. Temos ao fundo a baía de

Guanabara.

Fonte: acervo pessoal de Elizabeth Martins Garcia Fontes produzida no percurso geoliterário

em novembro de 2015.

O que esperamos desses percursos é que os alunos consideram-se como sujeitos

sociais envolvidos no processo de expansão da malha urbana e percebam as forças atuantes na

transformação da cidade e em processos como o de gentrificação, que estiveram atuantes no

Rio de Janeiro do passado e estão na cidade hoje.

Esperamos que nossa equipe possa representar suas experiências vividas no projeto

através da produção de textos, manifestações artísticas e culturais, produção de entrevistas e

imagens que possam compor um material analítico sensível ao público alvo do projeto.

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Considerações finais

A cidade, como conteúdo escolar no ensino médio, precisa de metodologias

inovadoras, que a considerem como lugar de aprendizagens significativas. A cidade do Rio de

Janeiro é estudada sob muitos aspectos. No entanto, os trabalhos que investigam o espaço

urbano e suas representações pelo viés simbólico, cultural e artístico ainda são em menor

número. Todavia, é inegável a valorização da dimensão cultural dessa cidade e a necessidade

de reconhecimento das suas formas de expressão. Ao longo do tempo, a cidade do Rio de

Janeiro tornou-se palco dos mais importantes momentos políticos da formação do país: capital

do Vice-Reinado, da Corte Imperial, e a República. Desta forma, a história da cidade se

confunde com a história política e social do Brasil. Além de ser reconhecida por seu

patrimônio arquitetônico e artístico, o Rio de Janeiro é a primeira área urbana, no mundo, a ter

reconhecido o valor universal da sua paisagem (a cidade recebeu o título de Patrimônio

Mundial como Paisagem Cultural Urbana, concedido pela Unesco, em 2012).

As possibilidades de leitura da cidade dependem da formação do cidadão e é inegável

que a escola hoje é uma das instâncias de produção da cidadania, que permite o encontro e os

confrontos entre as diferentes formas de conceber a cidade. Para Lana Cavalcanti, "a prática

da cidadania inclui a competência para se fazer a leitura da cidade. Ser cidadão é exercer seus

direitos a criar seu direito à cidade" (2001, p.22)

A formação do cidadão crítico exige a reflexão sobre o mundo vivido e sua

complexidade em termos de organização socioespacial, que hoje se pautam também pelo viés

simbólico. Portanto, existe a necessidade de pensarmos em práticas que conjuguem Ciência e

Arte e esse projeto procura atender essa demanda, pois reflete novas metodologias que

procuram integrar os campos da Geografia e da Literatura, privilegiando o olhar da literatura

sobre o urbano, tomando-a como representação do espaço vivido do autor.

Referências

BAKHTIN, M. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Hucitec, 1993.

BROSSEAU, M. Des romans-geographes. Paris: L’Harmattan, 1996.

____________.It isn’t does the writing: Lieux et écriture chez Bukowski. In: Géographie et

Cultures, n.44, p 5-32, 2002.

____________.L’espace littéraire en l’absence de description: um défi pour l’interpretation

géographique de la littérature. In: Cahiers de géographie du Québec, volume 52, n.147, dez

2008.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

858ISSN 2177-336X

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