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Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicao ISSN 1981-9943 Blumenau, v. 5, n. 1, p. 02-20, jan./abr. 2011
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CAMPO GERAL VERSUS MUTUM: ALGUMAS LEITURAS
CAMPO GERAL VERSUS MUTUM: SOME READINGS
Salete Paulina Machado Sirino
Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE)
Mestre em Educao pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
Professora Assistente do Curso de Cinema e Vdeo e Coordenadora do Curso de Ps-graduao Lato Sensu
em Cinema, com nfase em Produo, da Faculdade de Artes do Paran (UNESPAR/FAP).
Linha de Pesquisa: Literatura Brasileira: sociedade e mito.
Rita das Graas Felix Fortes
Ps-Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS)
Doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS)
Professora do Curso de Letras e do Programa de Ps-Graduao Mestrado em Letras da Universidade
Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE).
Linhas de Pesquisa: Linguagem Literria e Interfaces Sociais: Estudos Comparados e
Literatura Brasileira: sociedade e mito.
RESUMO
Este estudo aponta algumas leituras comparativas da novela Campo Geral, que integra a obra
Corpo de Baile (1956), de Joo Guimares Rosa, bem como da transposio flmica de
Campo Geral, aps cinco dcadas, para o filme Mutum (2007), de Sandra Kogut. Para tanto,
promove-se a prxis da leitura literria e flmica de Campo Geral e Mutum , por meio da
articulao destes textos teoria de leitor de Umberto Eco. E, ainda, na anlise flmica de
Mutum, atuando como um leitor-modelo de segundo nvel de Eco, alia-se as teorias sobre
leitor deste autor leitura da tcnica da narrativa cinematogrfica desenvolvida pelo
estadunidense David Wark Griffith, tendo em vista que a escolha de cada um dos elementos
flmicos est diretamente relacionada intencionalidade que o diretor autor-emprico
pretende em relao interpretao do espectador leitor-modelo. E, ainda, a anlise
proposta no presente texto, centrada na relao autor-texto-leitor, pode propiciar aos
interessados em estudar Literatura e Cinema, cotejaram como a linguagem literria
captada/reconfigurada pelo cinema. Ou seja, os efeitos estticos da obra de Guimares Rosa
inspiraram Kogut a reescrever este texto literrio em outra linguagem, a do cinema, cuja
linguagem tambm provocar efeitos estticos em seu receptor, no caso o espectador do filme
Mutum.
Palavras-chave: Campo Geral e Mutum. Literatura e Cinema. Leitura Comparativa.
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ABSTRACT
This study points out some comparative readings of the soap opera General Field, part of the
work Body of Ball (1956) by Joo Guimares Rosa, and the film transposition of General
Field(1956), after five decades, to the film Mutum (2007), by Sandra Kogut. To this end, we
promote the practice of the literary and filmic reading of General Field and Mutum
through the articulation of these texts to the theory of the reader by Umberto Eco and
yet, the film analysis of Mutum, acting as a model-reader of second level -by Eco, and we
put together the theories about reader to the reading of the filmic narratives technique
developed by the American David Wark Griffith, assuming that the choice of each of the film
elements is directly related to the intentionality that the director empirical-writer intends
in relation to the interpretation of the viewer model reader. And yet, the analysis
proposed in this text based on the author-text-reader, can provide to those who are interested
in studying Literature and Cinema. This all collates how literary language is captured
/ reconfigured to the theater. Therefore, the aesthetic effects of Guimares Rosas
work inspired Kogut to rewrite this literary text into another language the cinemas
whose language will also cause aesthetic effects on its receiver, in this case, the viewer of the
film Mutum.
Key-words: General Field and Mutum. Literature and Cinema. Comparative Reading.
1 INTRODUO
Em Seis passeios pelos bosques da fico (2002), Umberto Eco define o bosque
como o texto literrio, caracteriza o autor-modelo e o leitor-modelo, sendo que este se
diferenciaria do leitor-emprico, definido como aquele que realiza uma leitura. Assim, no
existiria uma lei que defina como um texto deva ser lido, j que um mesmo texto tende a
provocar sentidos distintos em seus receptores, tendo em vista as reaes de cada um em
relao a esse mesmo texto.
Eco exemplifica o caso de uma pessoa que assiste a um filme cmico em um
momento de profunda tristeza. Esta, certamente, teria dificuldades em sorrir ou divertir-se e,
se essa mesma pessoa, tempos depois, assistisse novamente ao filme, ainda assim no
conseguira rir, porque em sua mente estariam as memrias daquele momento infeliz, o qual
seria associado quele em que viu o filme pela primeira vez. Portanto, no se pode dizer que a
leitura que tal espectador teve desse filme foi errnea, que ele no reagiu de acordo com o que
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um gnero cmico prev diverso e risos , j que o que prevaleceu foi o seu estado de
esprito naquele momento, ou os vestgios, mesmo que inconscientes, que perduraram em sua
memria, dado seu estado emocional ao ver o filme pela primeira vez.
Eco utiliza esse exemplo para diferenciar o leitor-emprico do leitor-modelo, sendo
que aquele reage ao filme ou ao livro de acordo com as suas emoes e este uma espcie de
tipo ideal, previsto e criado pelo texto como colaborador, como no caso de um texto que
comea com a frase "Era uma vez", que prev um leitor-modelo, no caso uma criana ou uma
pessoa disposta a entrar no bosque da fico ldica.
Para este autor, o leitor-modelo de primeiro nvel se interessa, apenas, por como o
texto termina e para este uma nica leitura seria suficiente. J no segundo nvel dependeria
das condies de sucesso que o texto dispe, a fim de que o potencial de sentido seja
alcanado. Esse destinatrio seria capaz de ir um nvel alm do proposto por Wolfgang Iser1,
pois ele no apenas compreenderia a superfcie comum a todos, mas tambm dialogaria com
as ideologias do autor, alcanando as inferncias mais intrnsecas.
Segundo Eco existe uma relao muito estreita entre o leitor e a obra de fico, a
qual realizada por meio de um acordo ficcional entre o leitor e o autor aquele est disposto
a aceitar o mundo criado por este.
Nas conferncias seguintes, retorno com frequncia a um dos maiores livros j
escritos, Sylvie, de Grard de Nerval. Eu o li pela primeira vez quando tinha vinte
anos e ainda continuo a rel-lo. Quando jovem, escrevi um trabalho lamentvel
sobre ele e, a partir de 1976, conduzi na Universidade de Bolonha uma srie de
seminrios sobre o assunto, dos quais resultaram trs teses de doutorado e uma
edio especial do Jornal VS em 1982. Em 1984, na Universidade Columbia,
dediquei um curso de ps-graduao a Sylvie, que suscitou alguns trabalhos bem
interessantes. Hoje conheo cada vrgula e cada mecanismo secreto dessa novela. A
experincia de reler um texto ao longo de quarenta anos me mostrou como so bobas
as pessoas que dizem dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa
equivale a matar sua magia. (ECO, 2002, p. 18).
Esta experincia de Eco evidencia a ineficcia de uma nica leitura. Em se tratando
de uma anlise literria ou flmica , h a necessidade de inmeras leituras, j que o texto
no perde a sua magia pelo fato deste ser lido inmeras vezes. Eco afirma que elaborou um
trabalho lamentvel, feito a partir da primeira leitura de Sylvie, de Grard de Nerval, mas que
teve um grande avano em relao compreenso deste, ao reler Sylvie ao longo de quarenta
anos. Fato que destoa da leitura fragmentada e efmera que parece ser a prtica nos tempos
atuais. Parece que preciso que se chegue compreenso de determinados textos j na
primeira leitura, que o hbito da releitura algo em desuso, principalmente em uma sociedade
na qual, muitas vezes, no se chega nem a uma primeira leitura completa de determinado
texto.
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2 CAMPO GERAL E MUTUM: UMA LEITURA COMPARATIVA
Assim como na literatura h a presena de um leitor como parte estruturante da obra,
tambm no cinema o espectador pode ser considerado como uma estrutura do prprio discurso
flmico, j que cada elemento do discurso cinematogrfico construdo tendo em vista a
inteno de expressar o seu significado/sentido. Partindo desta premissa, neste texto,
promove-se a leitura comparativa da novela Campo Geral/Miguilim, de Joo Guimares Rosa,
publicada em 1956, e de sua transposio, aps cinco dcadas, para o filme Mutum, em 2007,
sob a direo de Sandra Kogut.
No que concerne leitura do discurso flmico, acredita-se que fundamental que a
anlise seja feita por meio da decupagem clssica do cinema, de acordo com o conceito de
Griffith, pois, assim como a teoria literria norteia parmetros que evidenciam a questo da
forma e contedos literrios que possibilitam a leitura/crtica , o cinema tambm dispe de
teorias que pragmatizam a anlise de sua forma e de seu contedo.
Portanto, atuando como um leitor-modelo de segundo nvel de Umberto Eco, que se
pretende, aliar teoria sobre leitor deste, presente, especialmente, no livro Seis passeios pelos
bosques da fico, tcnica da narrativa cinematogrfica desenvolvida pelo estadunidense
David Wark Griffith enquadramentos2, foco narrativo
3, ponto de vista
4, angulao
5 e
movimentao6 de cmera, fotografia
7, espao
8 , tendo em vista que a escolha de cada um
desses elementos flmicos est diretamente relacionada intencionalidade que o diretor
autor-emprico pretende em relao interpretao do espectador leitor-modelo.
Salienta-se, contudo, que a construo flmica de Mutum pode ser lida e entendida
por si prpria, sem fazer qualquer aluso ao texto literrio, inclusive pode ser lida como uma
representao social do atual serto mineiro, tanto pela coerncia de sua histria quanto pela
verossimilhana que o filme evidencia.
Na novela: o leitor chega ao Mutum
Um certo Miguilim, morava com sua me, seu pai e seus irmos, longe, longe daqui,
muito depois da Vereda-do-Frango-d'gua e de outras veredas sem nome ou pouco
conhecidas, em ponto remoto, no Mutm. No meio dos Campos Gerais, mas num
covoo em trecho de matas, terra preta, p de serra. Miguilim tinha oito anos.
Quando completara sete, havia sado dali, pela primeira vez: o tio Terz levou-o a
cavalo, frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da
viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranas, embaraadas em sua
cabecinha. De uma, nunca pode esquecer: algum, que j estivera no Mutm, tinha
dito: ' um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato,
distante de qualquer parte; e l chove sempre...' (GUIMARES ROSA, 2001, p. 27).
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No filme: o leitor chega ao Mutum
No primeiro plano do filme cmera subjetiva o olhar de
Thiago/Miguilim sobre a crina do cavalo no qual esto
montados ele na cabeceira do arreio e seu tio Terz, que
conduz o cavalo. Tempo: 16 segundos de durao.
Apresentao do nome do filme. Off som de pssaros, dos
passos e da respirao do cavalo. Tempo: 10 segundos de
durao.
Enquadramento: GPG9,
de determinado espao do serto
mineiro onde est situada a casa de Thiago/Miguilim. H,
apenas, o som do vento e de pssaros. Movimento flmico
cmera fixa. Tempo: 15 segundos de durao.
Entram no quadro as patas do cavalo. Nesse momento ouve-se
o som dos passos e da respirao do cavalo. Movimento pr-
flmico cmera fixa so os personagens sobre o cavalo que
se movimentam em relao cmera.
CPG enquadra em primeiro plano os personagens, sabe-se que
so dois pelos ps sobre o cavalo em segundo plano o
Mutum, ao fundo a casa de Thiago/Miguilim. Continua o
movimento pr-flmico: CAM cmera fixa, personagens se
movimentam em relao CAM e o mesmo som.
No mesmo plano GPG, o mesmo movimento de CAM
visualizam-se as costas de um homem tio Terz e ouve-se o
mesmo som. Tempo da entrada das patas do cavalo no quadro
at o final desta sequncia: 19 segundos.
PG10,
dos cachorros recebendo Thiago/ Miguilim e tio Terz.
Esta sequncia tem funo de corte da anterior para a insero
da prxima: a chegada em casa de Thiago/Miguilim da viagem
que fez para o Crisma.
PG mostra o espao e situa neste, em primeiro plano, a
cachorra Rebeca e, em segundo plano, Thiago/Miguilim a
cavalo com o tio Terz.
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Guimares Rosa, no pargrafo inicial, sucinto. Em poucas palavras ele apresenta o
personagem-protagonista Miguilim e informa ao leitor que: ele vive com seu pai, sua me e
irmos; onde eles vivem um lugar longnquo no meio dos Campos Gerais; a idade de
Miguilim e a primeira viagem que ele fizera um ano antes, na companhia do tio para ser
crismado e que naquela viagem ele descobria que o Mutum era um lugar bonito. Na sequncia
o autor-emprico comunica sobre a viagem que Miguilim fez para ser crismado na companhia
do tio Terz, seu padrinho de crisma.
Portanto, como um narrador onisciente, o autor-modelo mostra o fluxo de
conscincia de Miguilim, as lembranas embaraadas em sua cabecinha, especialmente aquela
da qual ele nunca esqueceu: a fala de uma pessoa que diz que Mutum, embora situado entre
morros, com muita pedreira e com chuva constante, um lugar bonito.
Sandra Kogut comea o filme com a volta da viagem de Thiago/Miguilim para ser
crismado. Ela descreve o Mutum de forma similar narrada por Guimares Rosa, j que, pelo
enquadramento em GPG grande plano geral a diretora apresenta a casa de
Thiago/Miguilim entre morros. So planos longos, que objetivam situar espacialmente o
filme.
No segundo pargrafo da novela, Guimares Rosa caracteriza traos internos e
externos da me de Miguilim, uma mulher linda, de cabelos pretos e compridos, mas que no
gosta de viver no Mutum tanto pelas constantes chuvas quanto pela tristeza que lhe causa o
entardecer daquele lugar.
Na sequncia o autor expe a saudade que Miguilim sentiu do Mutum no perodo em
que ficou fora por ocasio da viagem do crisma e mescla esse sentimento com a relao deste
menino com tio Terz e com a gua, que ao invs de saciar sua sede, quando passada nas
narinas, acalmava sua intensa saudade.
No filme, aps a chegada de Thiago/Miguilim e tio Terz em casa, enquanto este
descarrega a bagagem do cavalo, aquele acolhido por seus irmos e lhes entrega alguns
presentinhos dizendo que tinha mais presentes, mas que caram no crrego e como l havia
uma cobra enorme, no os catou. Sua irm mais velha no acredita, o chama de mentiroso e
diz que, por mentir, ele vai para o inferno, Thiago/Miguilim diz que no est mentindo e que
no vai para o inferno, pois est crismado.
Na novela: Miguilim d a boa notcia me o Mutum um lugar bonito
Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notcia para dar
me: o que o homem tinha falado que o Mutm era lugar bonito... A me,
quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente;
e a ideia de poder traz-lo desse jeito de cor, como uma salvao, deixava-o febril
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at nas pernas. To grave, grande, que nem o quis dizer me na presena dos
outros, mas insofria por ter de esperar; e assim que pde estar com ela s, abraou-se
a seu pescoo e contou-lhe, estremecido, aquela revelao. A me no lhe deu valor
nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia 'Estou sempre pensando que l
por detrs dele acontecem outras coisas, que o morro est tapando de mim, e que eu
nunca hei de poder ver... 'Era a primeira vez que a me falava com ele um assunto
todo srio. No fundo de seu corao, ele no podia, porm, concordar, por mais que
gostasse dela: e achava que o moo que tinha falado aquilo era que estava com a
razo. No porque ele mesmo Miguilim visse beleza no Mutm nem ele sabia
distinguir o que era um lugar bonito e um lugar feio. Mas s pela maneira como o
moo tinha falado: de longe, de leve, sem interesse nenhum; e pelo modo contrrio
de sua me agradava de calund e espalhando suspiros, lastimosa. No comeo de
tudo, tinha um erro Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali
perto, quase preta, verde-escura, punha-lhe medo. (GUIMARES ROSA, 2001, p.
28-29).
No filme: Miguilim d a boa notcia me o Mutum um lugar bonito
PG de Thiago/Miguilim11,
pedindo bno ao seu pai.
Movimento flmico a cmera se movimenta em relao s
personagens.
PG Thiago/Miguilim, assim que recebe a bno de seu pai, sai
correndo em direo sua me.
PG do quintal da casa de Thiago/Miguilim, a me para de
estender a roupa no varal e pega o filho no colo abraa-o.
Detalhe do balano de corda a presena da infncia.
PP do abrao apertado de Nhanina no filho Thiago/Miguilim.
Primeiro Plano PP: Enquadra a personagem na altura do
busto. Possibilita a percepo da emoo da personagem. Tal
enquadramento tem uma funo mais psicolgica do que
narrativa.
PP de Nhanina prestando ateno fala do filho, que lhe conta
que um homem disse que o Mutum um lugar bonito.
PP de Nhanina que no responde nada ao filho e o olha
carinhosamente. Fora de campo: off de canto de pssaros,
como a confirmar que o Mutum um lugar bonito.
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PP de Thiago/Miguilim com o dedo no rosto de sua me, gesto
que faz com que ela sorria para o filho.
PP de Nhanhina sorrindo para o filho.
PP de Nhanina abraando e cheirando o filho.
CAM subjetiva olhar de Nhanina em PP no filho parece
olhar nos olhos do filho.
CAM subjetiva de Nhanina olhando o escapulrio pendurado
ao pescoo do filho.
A CAM subjetiva do olhar de Thiago/Miguilim em PP em
Nhanina, que tambm o olha carinhosamente e lhe pergunta se
ganhou o escapulrio de presente.
PP de Nhanina recebendo do filho um carinho no rosto a me
fecha os olhos, ao receber o carinho do filho, subjetividade da
me.
PP contra plano de Thiago/Miguilim acariciando o rosto de
sua me.
A CAM subjetiva do olhar da me de Thiago/Miguilim, que
retribui o carinho no rosto do filho em PP reciprocidade de
carinho. O filho fecha os olhos ao receber o carinho da me
subjetividade do filho. Tempo da sequncia do instante em que
Thiago/Miguilim corre para o encontro de sua me at esse
momento: 50 segundos.
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Na novela, a me de Miguilim, aps ouvir do filho que um estranho havia falado que
o Mutum era um lugar bonito, no d importncia informao do filho. Ela se limita a olhar
com tristeza para os morros frente da casa e diz que eles a separam das coisas que
acontecem, ou seja, metaforicamente, como se Nhanina dissesse que esses morros a separam
da vida que ela gostaria de ter.
No filme, at a sequncia supracitada, no est ainda claro que a me no gosta de
viver naquele lugar e nesta cena ela extremamente carinhosa com o filho, carinho
explicitado pela opo da diretora em filmar quase toda essa sequncia enquadrando as
personagens Nhanina e Thiago/Miguilim em primeiro plano.
Diferentemente da novela, na qual a me de Miguilim no se preocupa em
demonstrar ao filho sua insatisfao em relao sua vida no Mutum, o filme mostra uma
me preocupada com os sentimentos do filho Nhanina no diz a Thiago/Miguilim que no
gosta de viver no Mutum. Tal preocupao e carinho remetem concepo contempornea
dos filhos como centro da famlia, e no daquelas concepes da infncia do contexto do
sistema patriarcal que podem ser claramente identificadas na novela Campo Geral.
Na novela, no pargrafo seguinte ao fragmento acima especificado, Guimares Rosa
expe o fluxo de conscincia de Miguilim sua preocupao com os sentimentos do pai, ao
v-lo dando mais ateno me do que a ele , e tambm a demonstrao de insatisfao do
pai para com o filho, por no ter-lhe dado a mesma ateno que dispensou me. Ou seja,
embora haja um narrador onisciente em relao a Miguilim em terceira pessoa , que sabe o
que Miguilim pensa e sente, esse narrador tambm d voz s personagens e deixa que o
prprio Bero diga: 'Este menino um mal-agradecido. Passeou, passeou, todos os dias
esteve fora de c, foi no Sucurij, e, quando retorna, parece que nem tem estima por mim, no
quer saber da gente...' (GUIMARES ROSA, 2001, p.29).
No filme, a prxima sequncia representa, exatamente o que est na novela: a reao
de Bero em relao ao carinho maior do filho pela me e o pedido desta para que o marido
deixe de cisma. Contudo, no h no filme, anterior fala de Bero, o fluxo de conscincia de
Thiago/Miguilim que evidencie a sua preocupao em relao aos sentimentos do pai. H,
aps essa reprimenda do pai, uma reao de tristeza que captada em primeiro plano; tristeza
que parece ambgua, visto que o menino tanto pode ter ficado chateado por magoar seu pai,
quanto por ter ficado triste pela reao violenta do mesmo.
Ainda no mesmo pargrafo, o narrador autor-modelo (Eco) conta que a brabeza
do pai era tanta, que no dia seguinte domingo Bero leva os irmozinhos de Miguilim
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pescar no crrego e o deixa de castigo, at que tio Terz o tira do castigo e o ensina a fazer
arapuca para pegarem passarinhos. Nesse trecho da novela Guimares Rosa, assim como o
fizera no pargrafo inicial da mesma, evidencia a relao recproca de companheirismo entre
Miguilim e tio Terz.
No filme, no h a situao em que Bero deixa Miguilim de castigo, aps a
reprimenda. A sequncia cortada para Thiago/Miguilim na rea prxima cozinha da casa,
sentado em um banco, cabisbaixo, entristecido, quando tio Terz aproxima-se dele. A partir
da, o filme representa o que est no livro tio Terz leva Thiago na mata buscar galhos para
construo de uma arapuca de pegar passarinho. Nessa sequncia, a cineasta mostra o carinho
entre tio Terz e Thiago/Miguilim quando os dois brincam de pega-pega, como se tivessem a
mesma idade.
Salienta-se que, no mesmo pargrafo, mesclado aventura de pegar pssaros de tio
Terz e Miguilim, o narrador transcreve o pensamento de Miguilim o que sentiriam os
pssaros aos serem capturados e isolados de seus companheiros , em seguida, esse narrador
informa ao leitor que esses pssaros, depois de presos, eram soltos. Na frase seguinte h uma
descrio dos trajes do Bispo, que o caracterizam como um homem rico. Momento em que a
voz do narrador substituda pala de Miguilim: Tio Terz, o senhor acha que o Mutm
um lugar bonito ou feioso? (GUIMARES ROSA, 2001, p. 31). O tio Terz diz ao sobrinho
que no s o Mutum um lugar bonito como gosta de nele viver. Percebe-se, ento, a
preocupao desse menino para com os pssaros e em relao ao desejo de saber se o lugar
onde vivem bonito. A expresso bonito nesse fragmento pode ser lida como sinnimo de
bom um lugar aprazvel para se viver. Essa parte do texto no transcrita para o filme, no
h a evidncia dos pensamentos e preocupaes de Thiago/Miguilim em relao aos pssaros
e nem suas indagaes sobre o Mutum.
No prximo pargrafo, que se estende por quase uma pgina, num flashback, o autor-
modelo narrador conta ao leitor-modelo que Miguilim nasceu em Pau-Rxo, um lugar
ainda mais distante que Mutum. Alm de situar geograficamente o lugar, o narrador
onisciente mostra o fluxo de conscincia de Miguilim e descreve algumas reminiscncias de
suas primeiras lembranas. Considerando que Miguilim est com sete anos, esses flashbacks
remetem poca em que ele ainda era um beb, que engatinhava e sentia o frescor das folhas.
Ao falar dessas primeiras lembranas para a me, ela lhe diz que isso no se passara no Pau-
Roxo, mas so lembranas de um passeio que fizeram na fazenda dos Barbza, que ficava nas
Pindabas-de-Baixo-e-de-Cima.
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No pargrafo seguinte, o escritor continua a rememorao de Miguilim, agora sobre
a viagem de mudana do Pau-Rxo para o Mutum. Vinham num carro-de-bois, alm da
mudana traziam, tambm, uma cabrita e os cabritinhos. Desses flashbacks o narrador retoma
a situao em que Miguilim chegou da viagem que fez com tio Terz para ser crismado.
Parece que, para o leitor, a situao j estava delineada, j houve o encontro do
menino com sua me e com seu pai, que j o deixou de castigo porque deu mais ateno
me do que a ele, o tio Terz j o tirou do castigo e o levou para armar arapuca para pegarem
passarinhos e ele perguntou se tio Terz achava Mutum um lugar bonito. Contudo, a partir da
resposta de tio Terz, houve uma digresso o autor-modelo contou ao leitor-modelo onde
Miguilim nasceu, suas lembranas e, inclusive, deu voz ao prprio personagem-protagonista
para falar de suas memrias alegres e assombrosas. De repente, sem nenhuma ligao entre
esse fato e a chegada da viagem, ocorre um dilogo entre Miguilim e seus irmos, quando da
chegada da viagem do crisma. Por vezes, parece que as situaes narradas tm um desfecho e,
pginas depois, voltam cena, como nesse exemplo.
Salienta-se que, no filme, a cineasta desconsiderou todo esse flashback e inseriu logo
a tomada na qual Thiago/Miguilim chega ao Mutum e a essncia do dilogo entre ele e seus
irmos. O fato de Sandra Kogut no considerar as informaes dos flashbacks rosianos ocorre
em todo o discurso flmico de Mutum.
Constata-se, ento, que, em Campo Geral, no h linearidade. O narrador em terceira
pessoa narra determinada situao, permitindo que a voz das personagens se mescle
narrativa. H uma presena constante de flashbacks com a inteno de explicar o presente ,
poucos, contudo, do conta de um passado distante como no que Miguilim volta condio
de um beb que ainda engatinha, na maior parte do tempo esses flashbacks referem-se um
passado prximo dias, semanas, meses.
Nas prximas trs pginas 33 a 35 h a caracterizao dos irmos de Miguilim,
Drelina, Dito, Tomezinho, Chica, Liovaldo que mora na cidade e do qual ele pouco se
lembra. H a descrio da me fazendo creme de buriti, da Rosa preparando porco para assar
e quando o narrador volta ao dilogo da chegada de Miguilim da viagem do crisma e do
presente imaginrio, que teria cado no rio, e do recorte de jornal, que causou rebulio entre os
irmos.
Na sequncia, parte para a caracterizao dos cachorros, entre eles Gigo o maior
de todos e da cachorra Pingo-de-Ouro, cuja descrio se estende por quase duas pginas
dada sua importncia na vida de Miguilim. Dessa lembrana passa-se para o dilogo em que
Dito avisa ao irmo de que o pai est brigando com a me.
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Enquanto no livro o leitor dispe previamente de uma srie de informaes a respeito
da agresso de Bero, no filme, aps a sequncia do tio Terz ensinando Thiago/Miguilim
fazer arapuca para pegar passarinho e, com isso, aprender a caar a prpria comida e assim
nunca passar fome, corta-se para um plano geral das duas irms e o irmo mais novo de
Miguilim sentados no cho em um canto externo da casa, escovando os dentes, e parte-se para
a sequncia de Felipe/Dito avisando o irmo sobre a briga dos pais.
Na novela: a chuva
No mundo ficcional de Campo Geral/Miguilim, Guimares Rosa representa a chuva
objetiva e subjetivamente. Mimetiza, portanto, o medo que as crianas sentiam em momentos
de temporais tapavam os ouvidos ao ouvirem os troves como tambm a viso que estas
tinham dessas mudanas climticas. Dito v o temporal como um castigo do Papai-do-Cu
pelo ocorrido entre o pai, a me e tio Terz. Nesses momentos h uma grande proximidade
entre os irmos, os quais filosofam sobre a vida e a morte. Ou seja, a tempestade serve de
pretexto para que seja abordado o temor que as crianas sentem em relao morte. Da
exposio dessa subjetividade, o narrador passa para a materializao dos estragos que a
chuva provoca na casa envelhecida.
Dessa materializao, a narrativa mostra a crena da famlia como forma de proteo
contra o temporal. Drelina chama Miguilim e Dito, a mando de Vov Izidra, para rezarem
juntos e todos ajoelhados em frente a um oratrio, com vela benta uma representao da
cultura da crena na vela benta e em Santa Brbara e So Jernimo. Esse momento espiritual
quebrado pela ao de Miguilim, que sopra um cisco na roupa de Rosa. Essa ao
mesclada a uma aluso aos vaqueiros que chegam de suas viagens com suas roupas cheias de
espinhos e carrapichos. O texto volta para a orao aluso fora da orao coletiva capaz
de acabar com a tempestade. Da descrio da f do momento presente da narrativa, h um
flashbacks que descreve a f vivencidada por Miguilim quando ele era bem mais novo e
engasgou-se com um osso de galinha simbologia da simpatia de benzimento e que pela f
conseguiu se salvar.
Nesse momento, a narrativa representa a f e a orao da famlia, respaldada nos valores
catlicos como a orao e a implicncia de Vov Izidra, dizendo que Mitina est embolando
as oraes. Na sequncia da narrativa, aps a insero do tipo de reza que Mtina faz com
suas danas e cantos, o narrador faz uma aluso ao teatro, ao circo. Ento, o narrador volta
chuva.
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Posteriormente, tem-se a caracterizao de V Benvinda av materna, j falecida , que,
quando velha, rezava noite e dia, ralhava com os meninos, mas que, quando jovem tinha sido
mulher prostituta, tal episdio foi contado ao Dito por um vaqueiro. Mulher- ata que os
homens vo em casa dela e quando morrem vo pro inferno. (C.G., 2001,. 48). O narrador
justifica que vov Izidra, sogra e tia de Nhanina, no gosta do comportamento da sobrinha
Nhanina, cujas inconsequncias talvez por uma espcie de herana atvica colocam a
segurana do casamento e da famlia em risco, temor esse que se confirma, com o episdio
em que Bero mata Luizaltino e depois se suicida. Contudo, a narrativa evidencia que, mesmo
com as atitudes inconsequentes de Nhanina, h sentimento de carinho de Miguilim em relao
me tem vontade de abra-la. A narrativa volta, ento, para orao e mesclado a ela, tem-
se a fora da chuva e os pensamentos preocupados de Miguilim para com os cachorros fora de
casa em meio a tanta chuva.
Nessa sntese percebe-se que a chuva o pano de fundo das aes das personagens. H o
prenncio da chuva na pgina 38: Vai chover. O vaqueiro J est dizendo que j vai chover
chuva brava, porque o tesoureiro, no curral, est dando cada avano, em cima das
mariposas!... (C.G., 2001, p. 38). A chuva, vinculada ao drama entre Nhanina, o marido e o
cunhado, segue sendo o elo dramatrgico por mais de dez pginas, tanto que na pgina 51,
ainda h chuva: Chovera pela noite a fora, o vento arrancou as telhas da casa. Ainda chovia,
nem se podia pr para secar o colcho de Tomezinho, que tinha urinado na cama. (C.G.,
p.51).
A chuva constante no Mutum, fato evidenciado pelo narrador tanto no primeiro
pargrafo do livro: e l chove sempre. (C.G., 2001, p. 27), quanto pela afirmao de que um
dos motivos de Nhanhina no gostar do Mutum pelas demoradas chuvas que se precipitam
por longos perodos sobre aquela regio serrana. Entre as pginas 38 e 51, toda a perspectiva
da narrativa construda em relao descrio da chuva como pelos sentimentos que esta
suscita nas personagens. Contudo, nesse trecho, prevalece o estilo de uma narrativa em
terceira pessoa, que d voz aos personagens, que insere flashbacks e aes paralelsticas que
retardam o desfecho de determinadas aes. Estilo presente do incio ao fim da novela Campo
Geral/Miguilim.
No filme: a chuva
Diferentemente de Campo geral, onde Guimares Rosa representa detalhadamente a
importncia da tempestade no Mutum e a subjetividade que esta suscita em suas personagens,
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no filme, Sandra Kogut constri esta relao imemorial entre o homem e esta fora da
natureza de forma pontual, sem intercalar outras aes paralelsticas e flashbacks como
ocorre no texto rosiano.
O incio da sequncia da chuva no filme ocorre aps o enquadramento em primeiro
plano, no qual Miguilim escuta fora de campo em off vov Izidra mandando o tio Terz
embora do Mutum, o tio tenta se despedir de Nhanina, mas vov Izidra no permite. Nesse
mesmo enquadramento, aps a fala de vov Izidra, tem-se outro som fora de campo, agora um
off de choro no identificado. De quem a diretora autora-modelo pretende que seu
espectador leitor-modelo identifique que esse choro? Para quem leu a novela, est
clarificado que de Nhanina, mas, neste momento do filme, ser que o espectador teria
informaes suficientes para a partir do off desse choro sutil , saber de quem se trata?
No prximo enquadramento tem-se um plano geral do quintal da casa e um pouco da
mata, com efeitos de imagem e som do vento. Esse take tem seis segundos e, na sequncia, h
outro plano geral, tambm em torno de seis segundos, de uma espcie de um pequeno curral
que fica no quintal da casa e continua o efeito de imagem e som de vento. Esses dois
enquadramentos prenunciam a chuva.
Num movimento pr-flmico a cmera fixa em plano geral de uma espcie de
corredor que d acesso ao quarto de Nhaninha Thiago/Miguilim entra no quadro, se
aproxima e abaixa-se prximo da porta, tentando escutar alguma reao da me. Aps esse
plano, h um corte para Thiago/Miguilim na cozinha, perguntando para Rosa: a me vai janta
hoje, Rosa? Como esta no lhe responde, em seguida pergunta: e o Felipe?. Ento Rosa o
responde de forma rspida: eh menino larga mo de ser curioso. Esta sequncia tem cerca de
vinte e seis segundos, apenas trs curtas frases, poucas palavras, estilo que predomina em
grande parte do cinema contemporneo. Especificamente sobre essa cena, aps aquela
situao de violncia a que o menino foi submetido, surra e castigo, a forma como Rosa
uma pessoa adulta responde para Miguilim, para o leitor, pode parecer como se ela no
tivesse sentimentos, entretanto, tal atitude da Rosa compreensvel, j que ela no d espao
para que a situao de conflito se amplie. Ou seja, ela corta a curiosidade do menino em
relao a um assunto srio um complexo tringulo amoroso , que no deve ser discutido
com criana, alm do fato, que naquele contexto, criana que especulava demais era mal vista.
Contudo, ressalta-se que a Rosa de Sandra Kogut construda em dissonncia de Guimares
Rosa, j que no texto literrio h uma relao afetuosa entre ela e Miguilim, em especial, no
apoio que esta lhe d quando da morte de Dito alm de ser a Rosa quem coloca dces-de-
leite nas algibeiras, para a viagem que Miguilim far com o doutor.
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O prximo enquadramento flmico de dez segundos de uma rvore, de suas folhas
balanando com o vento efeitos de som vento e trovoadas. Corta para uma sequncia de dez
segundos, de um plano geral de uma das irms de Thiago/Miguilim em frente a casa,
apanhando algo levado pelo vento efeito de vento levantando a poeira do cho. Tem-se,
ento, um plano geral de dez segundos, novamente um movimento pr-flmico a cmera
est fixa , Felipe/Dito e Thiago/Miguilim se aproximam de uma rvore e olham para o cu
como a visualizar a tempestade que se forma , com nfase no som do vento e dos troves que
se acentuam fora de campo, off de vov Izidra o menino!. Corta para um plano de cinco
segundos de uma pequena rea que d acesso entrada da casa efeito de adereos voando
continua o off de vov Izidra vai fecha a janela! Tem-se um plano geral de sete segundos de
Juliana/Drelina recolhendo a roupa do varal em meio ao vento, poeira que se levanta do cho,
efeitos sonoros de vento e troves. Numa sequncia de dez segundos, num plano geral em
frente a casa, tem-se Rosa correndo apanhar algumas bacias levadas pelo vento. Em torno de
dez segundos a cmera sai de primeiro plano do rosto e abre em plano geral mostrando
Juliana/Drelina terminando de recolher a roupa e correndo em direo a casa quando Rosa
vem ajud-la e ambas l entram efeitos imagem e som de vento, poeira e som de troves.
Comea a chuva, um plano geral de cerca de vinte e cinco segundos, com Terz cabisbaixo,
deixando a casa a p, puxando o cavalo pela rdea. Corta para um primeiro plano de doze
segundos do olhar de Thiago/Miguilim entristecido, vendo pela janela de seu quarto o tio ir
embora sob a tempestade.
Na prxima cena, a cmera subjetiva mostra Thiago/Miguilim olhando em plano
geral, pelas costas, tio Terz e o cavalo saindo do Mutum sob de chuva e o foco da lente
desloca-se para uma sequncia interior de vinte e cinco segundos, ao longo da qual
Thiago/Miguilim est deitado no cho em frente porta que d acesso ao quarto de sua me
desolamento, solido.
Desloca-se para a cena do quarto, com dez segundos, na qual Nhanina est com o
filho Thiago/Miguilim no colo, acariciando seu brao e a tristeza de ambos permeia toda a
cena, enquanto fora de campo tem se o off do relinchar de um cavalo ser que a autora-
modelo, Sandra Kogut, pretende que seu leitor-modelo espectador vincule os olhos
lagrimados e o suspiro de Nhanhina com esse off do cavalo, como se esta personagem
estivesse to triste pela partida do cunhado, Terz? A seguir, aparece Rosa colocando uma
bacia para aparar as goteiras. Enquadra-se em primeiro plano, Felipe/Dito e Thiago/Miguilim
agachados e encostados em uma parede, com uma vela acesa nas mos de Felipe/Dito que diz
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ao irmo Thiago, por causa do pai, da me e do tio, Deus t com raiva da gente! Intercala-
se a esta sequncia a vov Izidra ascendo uma vela na cozinha, volta para a cena dos meninos
e Felipe/Dito diz Thiago voc tem medo de morrer?, e Thiago/Miguilim responde: eu tenho,
mas s se for sozinho, todo mundo junto no tenho no. No prximo enquadramento, esto
vov Izidra, Rosa e Juliana/Drelina colocando bacias e baldes nas goteiras da chuva. Volta
para os irmos e Thiago/Miguilim diz: Felipe, fiz uma promessa que se o pai e o tio volta
pra casa e no briga nunca mais! eu no tenho medo nunca mais. Felipe/Dito responde: o
pai volta, o tio, no. Thiago/Miguilim questiona o irmo como que c sabe? Entra um fora
de campo, off de vov Izidra: vamo rezar, menino. Volta para Rosa e Juliana/Drelina,
aparando a chuva que cai dentro da casa, com o off de vov Izidra: Rosa, olha esses menino,
pe eles pra reza ao invs de ficar cochichando. No quartinho que compartilha com o irmo
Felipe/Dito, Thiago/Miguilim diz: a cama t molhada, vou dormi com oc. Felipe/Dito
comenta: Thiago/Miguilim eu no gosto muito do tio, no. Ser que isso errado? O
cachorro entra no quarto; Thiago/Miguilim, afirma: eu tambm no gosto da v, no. Ser
que a gente devia fazer uma promessa pra fica gostando dos parente? Felipe/Dito argumenta:
quando a gente cresce, a gente gosta de todos. Na sequncia, Thiago/Miguilim indaga se
quando eles tambm crescerem haver quem no goste deles e se eles no vo nem ficar
sabendo. Mostra, ainda, o medo que Thiago/Miguilim tem do pai no gostar dele e mand-lo
embora, no escuro, debaixo da chuva assim como aconteceu com tio Terz , sem saber
para onde ir. Nesse momento, entra o som off de animais, pssaros e cachorros ento
Thiago/Miguilim pede ao irmo se vo ficar juntos at quando forem adultos, mas no recebe
resposta do irmo que j est dormindo. A cena seguinte, em plano geral, apresenta um novo
dia ensolarado e sem chuva.
Assim, toda a sequncia da chuva no filme, desde seu prenncio, dura
aproximadamente uns oito minutos. Um belo trabalho de produo de efeitos de ventanias, de
som de trovoadas, ventos e relmpagos, mesclados tristeza de Nhanina e Thiago/Miguilim
pela partida de tio Terz e conversa deste com o irmo Felipe/Dito. Novamente, percebe-
se que Sandra Kogut prima por poucos dilogos, pela excluso das aes paralelsticas e
flashbacks presentes no texto rosiano, optando pela linearidade da narrativa. A diretora decide
por fazer apenas uma aluso reza durante a chuva, como se o motivo da vov Izidra chamar
Thiago/Miguilim e Felipe/Dito para rezar fosse melhor do que eles ficarem cochichando. Ao
contrrio da fora da reza e da f catlica que Guimares Rosa representa em seu texto, ou
seja, parece que no filme no h, assim como o h no texto rosiano, a representao da fora
da cultura popular na crena nas rezas durante as tempestades.
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Embora o dilogo entre Thiago/Miguilim e Felipe/Dito seja praticamente o que est
no texto de Guimares Rosa, estes so apenas uma parte do que ambos falaram no texto
literrio, o que confirma a opo da diretora em querer que o filme fale mais com as imagens
do que com as palavras. Embora haja a opo de sequncias longas e de primeiros planos
que enquadram a personagem na altura do busto que buscam evidenciar a subjetividade das
personagens , partindo do que dado pela cineasta, certamente h como perceber o eu desses
meninos por ela construdos, mas um eu diferente do construdo por Guimares Rosa, tendo
em vista que, o texto literrio, em muitos momentos, mostra com mais profundidade a
subjetividade dessas crianas do que o texto flmico.
CONCLUSO
Sabe-se que raro um discurso literrio ser totalmente transposto para um discurso
flmico, especialmente, pela quantidade de pginas e detalhes de um livro, em oposio
limitao da durao de um filme. Mas, esta no a nica razo das diferenas entre um texto
literrio e sua adaptao para o cinema textos literrios e flmicos so linguagens diferentes,
este o principal aspecto que, a priori, deve ser destacado quando se comparam obras cujas
composies e linguagens so distintas entre si.
Na novela Campo Geral/Miguilim prevalece a opo estilstica de Guimares Rosa
por narrar as aes detalhadamente, dando ao leitor o maior nmero de informao possvel,
tanto da objetividade quanto da subjetividade das personagens, bem como o trao
caracterstico em todo seu texto de intercalar a ao presente aos flashbacks que no s
explicam o presente quanto retardam o desfecho da ao.
Enquanto na novela Guimares Rosa, atravs dos flashbacks, prima por dar ao leitor
informaes que caracterizem interna e externamente suas personagens, retardando o
desfecho da ao, no filme, Sandra Kogut faz o contrrio, d poucas informaes ao
espectador e prevalecem os dilogos compostos por frases curtas, o que indica que a diretora
parte da premissa de que as imagens desvelam as aes das personagens, o que est em
sintonia com a linguagem flmica.
O discurso flmico de Mutum construdo, essencialmente, por enquadramentos em
planos gerais PG com a inteno de descrever o espao e situar as personagens no mesmo,
e por primeiros planos PP com a inteno de mostrar a subjetividade das personagens.
Uma das caractersticas marcantes do filme o fato de que os planos so longos, no se corta
de um plano a outro com rapidez, pelo contrrio, no h a inteno de dar velocidade ao
filme, seu ritmo parece ser definido pela subjetividade, pelo verossmil.
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Afastando-se da leitura de Campo Geral e centrando-se a perspectiva no filme
Mutum, percebe-se que, embora haja lacunas entre o texto literrio e o texto flmico, este pode
ser lido por si mesmo Sua histria construda com coerncia e veracidade. H, ento, um
Thiago/Miguilim protagonista , que conduz a histria. A cmera conduzida pelo olhar e
pelo sentimento deste menino, que no depende do irmo Felipe/Dito para ver e entender o
mundo, mas que sofre com a morte dele. Trata-se de um menino que no tem grandes
manifestaes de carinhos para com os animais nem de apego aos seus brinquedos, entretanto,
fica evidente a presena destes em sua vida quando, em face de alguma situao conflitante: o
sumio da cachorra Rebeca; os brinquedos quebrados quando da surra dada por seu pai. Um
menino que tem uma forte relao recproca de amor e carinho com sua me, admirao pelo
tio Terz e, simultaneamente, amor e receio pelo pai Bero. Assim como Miguilim, Thiago, ao
acompanhar este no trabalho na roa, o faz de forma natural, remontando cultura do trabalho
infantil, segundo a qual, a nica condio para se iniciar a criana no trabalho era um mnimo
de fora fsica, mesmo que essa iniciao implicasse riscos, como vaquejar, que lhe parece
mais uma brincadeira do que um trabalho penoso.
Todas as etapas acima so, de fato, preparatrias para a cena final, na qual Miguilim,
seguindo os conselhos da me a despeito do sofrimento por ter que deixar a famlia e o
Mutum ir embora com o doutor que lhe colocara os culos, com os quais,
metaforicamente, no s lhe mostra o mundo, mas lhe propicia, finalmente, a compreenso do
mundo, gestada atravs de todos os sofrimentos vividos. Finalmente, est pronto para ir a
busca da luz de seus olhos, mas tambm de melhores condies de vida.
Essa sntese, clarifica-se que o filme tem Thiago/Miguilim como condutor da
histria, e, embora em alguns aspectos seja a representao fidedigna da novela, noutros h a
licena potica da diretora que opta por nuances distintas e excluses integrais de situaes e
personagens do texto original, seja pela dificuldade de transpor cento e trinta e cinco pginas
e inmeros personagens em torno de noventa minutos de filme, seja pela prpria conduo do
eixo dramtico escolhido para o filme.
NOTAS
1 A Teoria do Efeito Esttico de Iser privilegia o ato da recepo, especificamente, o receptor, e considera que a leitura
resultado de um dilogo entre o texto e a bagagem cultural do leitor. Contudo, tal autor evidencia que, embora a obra
literria se concretize na interao com o leitor, nem toda leitura vlida, nem h o livre arbtrio do leitor, j que sua
interpretao est prevista pelo texto.
2 Os enquadramentos so compostos por planos, sendo que o referencial para a classificao dos planos cinematogrficos
o tamanho da figura humana dentro do quadro, podendo ser: Grande Plano Geral (GPG), Plano Geral (PG), Plano
Conjunto (PC), Plano Mdio (PM), Plano Americano (PA), Primeiro Plano (PP), Primeirssimo Plano (PPP), Plano
Detalhe (PD) a escolha de cada um desses planos, assim como dos demais elementos do discurso flmico, depende do
sentido que se pretende para cada cena.
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3 Subjetivo, intersubjetivo e objetivo.
4 Objetivo e subjetivo.
5 Trs ngulos diferentes, associados altura da cmera: normal, alta ou plonge, baixa ou contre-plonge.
6 Movimento flmico e movimento pr-flmico.
7 A Fotografia parte constitutiva da construo do discurso flmico, tanto pelo enquadramento dos personagens, cenrio,
cenografia, adereos, etc., quanto pela luz sobre estes elementos natural, difusa ou contrastada.
8 O espao a materializao do mundo diegtico, podendo ser: interior e exterior, naturais ou construdos em estdios.
9 Grande Plano Geral GPG: Tem como funo principal descrever o cenrio. ngulo de viso muito aberto, praticamente
sem percepo da ao das personagens. Tem funo descritiva.
10 Plano Geral PG: ngulo de viso menor que o GPG. Privilegia o cenrio no qual possvel ver a figura das
personagens, mas difcil de reconhecer suas aes.
11 A personagem Miguilim de Campo Geral no filme de Sandra Kogut recebe o nome de Thiago. Esta cineasta optou por
atribuir s personagens do filme o nome das crianas que fizeram os papeis infantis no filme, tal opo foi em prol de
uma confiana maior entre ela e os atores, bem como de extrair um maior realismo as cenas.
REFERNCIAS
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Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
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MUTUM. Direo: Sandra Kogut. Produo: Flvio R. Tambellini e Slvia Costa. Intrpretes:
Thiago da Silva Mariz, Wallis Felipe Leal Barroso, Joo Miguel, Izadora Fernandes, Rmulo
Braga e outros. Roteiro: Ana Luiza Martins Costa, Sandra Kogut baseado no livro Campo
Geral de Joo Guimares Rosa. Brasil: Distribuidora Vdeo Filmes, 2007.