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Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

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o

BIBLIOTECA LUSITANA

Jaime Cortesão

concioneinIP Antologia Precedida dum Estudo Critico

O õ

EDIÇÃO DA

RENASCENÇA PORTUGUESA

PORTO

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k*

Direitos reservados

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Cancioneiro Popular

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Do autor

:

A Morte da Águia, 1909.

A Arte e a Medicina, 1910.

Esta História é para os Anjos, 1912.

Sinfonia da Tarde, 1912.

. . . Daquem e Dalém Morte, 1913.

Glória Humilde, 1914.

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BIBLIOTECA LUSITANA

Jaime Cortesão

Cancioneiro PopularAntologia Precedida dum Estudo Crítico

V

Edição da

Renascença Portuguesa

Porto

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ESTUDO CRITICO

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Page 11: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

I

o FIM DESTA OBRA

PARA que todos os Portugueses possaminteirar-se da sua própria Alma, e fun-

damente sintam a prendê-los e a diri-

gi-los os laços Íntimos do Espírito, para queemfim se forme ou se torne clara a consciên-

cia nacional dando-nos a possível unidade

finalista, é indispensável o conhecimento doCancioneiro popular, porque nele se revela

toda a alma do Povo.

O estudo das canções populares, ramodum outro mais vasto estudo— as Tradições

populares— ha muito que preocupa todas as

nações da Europa, movidas mais pelo senti-

mento nacional, do que pela pura curiosi-

dade scientífica e tanto assim que as primeiras

a iniciar esse movimento foram exactamente

aquelas, como observa Gaston Paris, queprocuravam, em meio da sua hesitação, for-

mar uma consciência histórica.

Essa herdamos nós, e de tão elevada tradi-

ção, que nos deveria inspirar os actos da

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10 Cancioneiro Popular

mais pura nobreza e largo interesse huma-nitário.

Mas . . . perdemo-la ! Alguns séculos deabatimento e corrução, de jesuitismo e inépcia

real e embasbacaçâo estólida perante o estran-

geiro deram comnosco nesse ululante doidoda Pátria, que enche a noite de gritos, à

procura da própria Alma.

Bem de nós, que nos resolvemos emfim a

buscá-la na história, na literatura, nas tradi-

ções populares e, o que vale o mesmo, den-

tro daquele espírito que as criou!

•A esse alto fim visa também e principal-

mente este trabalho. Não nos move a pura

curiosidade scientífica, o desejo de alardear

uma estéril erudição, nem sequer o gosto de

serenamente, friamente exercitar faculdades

críticas. Nem esse propósito podia estar emnosso animo. .

É antes a fé nos destinos da Pátria e o

desejo de a comunicar à nova geração pelo

conhecimento das energias latentes no fundo

da Alma popular. Como poderia deixar de

ser assim, se nós vimos de conviver comele, com o Povo, nas mais espontâneas

e sinceras das suas manifestações, se, para

nós esses milhõis de bocas humildes e

sôfregas de amor, cheias de riso ou hir-

tas de angústia, se abriram e nos entre-

garam os hinos da sua esperança, os beijos

trémulos do seu carinho, os lamentos e

os gritos das suas espantosas afliçõis e os

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Estudo Critico 11

VOOS doidos da Alma nos arrebatamentos

da Paixão ?

!

Mas vamos devagar.

O estudo das tradiçõis populares entre

nós tem já acumulado um tesoiro riquíssimo

de materiais; faltam apenas por emquantoos bons trabalhos de sintese e interpreta-

ção. Quem quiser, porventura, conhecer a

história dessas investigaçõis, consulte os En-saios etnográficos de Leite de Vasconcelos,

onde o sábio filólogo e etnólogo reuniu as

noticias de muitíssimos desses trabalhos. Pelo

que mais nos importa, o cancioneiro popular,

diremos que é vastíssima a colecção de can-

tigas populares, hoje existentes, pois só os

Cantospopulares portugueses, de Tomaz Pi-

res, contam mais de onze mil cantigas

!

Teófilo Braga calcula em quarenta mil o

numero das que até hoje foram guardadas nas

nossas colecçõis. A selecção das centenas dequadras que constituem este pequeno can-'

cioneiro foi realisada em dezenas de milhares

delas, ainda que escrupulisamos em consultar

apenas as colecçõis, cujos coordenadores

oferecessem garantias de seriedade, tais como:Os cantos populares portugueses, de To-

maz Pires, o Cancioneiro popular e Cantospopulares do Arquipélago açoreano, de Teó-

filo Braga, a Poesia amorosa do povo por-

tuguês, de Leite de Vasconcelos, as Cançõispopulares da Beira e as Velhas cançõis e

Romances populares portugueses, de. Pedro

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12 Cancioneiro Popular

Fernandes Tomaz, o Romanceiro e Cancio-neiro do Algarve de Francisco Xavier de

Ataíde Oliveira e as vastas colecçõis disper-

sas pela Revista Lusitana, Revista de Gui-

marãis, Revista do Minho, etc. Algumas,mas poucas, foram por nós colhidas da boca

do Povo, mas, por constituírem excepção,

levarão nota especial.

Quanto aos trabalhos de síntese e inter-

pretação, os melhores, afigura-se-nos que se-

jam os estudos parciais de Leite de Vascon-

celos, como as Cançõis do berço na Revista

Lusitana, a Introdução ás Cançõis da Beira

e o estudo na Poesia amorosa do Povo por-

tuguês.

Esses constituíram para nós um subsídio

valioso, ainda que a índole deste trabalho

tenha de ser muito diferente, dada a feição

mais particularmente scientifica da obra da-

quele escritor.

E, na verdade, ha nos cancioneiros populares

elementos variadíssimos de estudo tanto para

a Etnologia, como para a Filologia, pela re-

velação de costumes, ideias e superstiçõis,

pela investigação de vestígios míticos e pelas

construçõís, particularidades múltiplas de lin-

guagem, que tudo as simples cantigas con-

teem.

O que seria então, se quizessemos fazer

entrar também o nosso cancioneiro na árvore

genealógica das cançõis populares, a enge-

nhosa criação de Gaston Paris!

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Estudo Critico 13

«Emfim, diz ele, virá um dia em que o tra-

çado geral da árvore genealógica das nossas

cançõis seja lançado aproximadamente assim,

indo sempre do mais vasto para o mais res-

trito; ir-se-ha da humanidade inteira para a

raça branca,— para os Árias,— para cada

grupo dos povos arianos (slavo, germânico,

greco-romanico, céltico, etc), para cada povo,

para cada província, para cada distrito. Por

outras palavras, sendo dada uma canção po-

pular qualquer, será necessário poder deter-

minar em que percentagem cada um desses

factores entrou na sua formação. Encontrar-

se-hão algumas que não tenham raizes e não

vão além da aldeia, onde se cantem; outras,

pelo contrário, que, durante séculos voaramsobre as bocas dos homens, e que resoavam

já talvez, num tempo anterior a toda a histo-

ria, sobre os planaltos da Ásia central, onde

os nossos primeiros pais guardavam os reba-

nhos.» (^)

Mais modestamente se poderia ainda fazer

aqui o estudo comparativo das cantigas por-

tuguesas, com o cancioneiro das outras na-

çõis, para, assim, fundamentar a originalidade

do espirito, que anima as nossas.

Esse estudo, tornaria demasiadamente eru-

dito este livro, o que o afastava do fim a que

o destinamos. Todavia, antes de chegar a

qualquer conclusão, estudamos também um

(^) Cit. na «Histoire du Lied», Schuré.

Page 16: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

14 Cancioneiro Popular

pouco os cancioneiros hespanhol, francês,

alemão e italiano em especial, e podemosafirmar desassombradamente a elevação e es-

pírito original da nossa poesia popular.

O presente trabalho, inédito entre nós, é

uma antologia em que reunimos o que de

melhor encontramos em dezenas de milhares

de cantigas. Pretendemos realisar obra vulga-

risadora e de educação, o que explica algumas

particularidades de plano, a que obedeceu.

O automatismo da linguagem, o incessante

trabalho de criação sofrido pelas cantigas, ao

passar de boca em boca e de época para

época, a sua adaptação intencional a casos

individuais fazem que um só tipo de cantiga

dê de si muitas variantes, quer na essência,

quer na forma, sucedendo até que do mo-delo primitivo se aproveita para muita va-

riante unicamente o fundo construtivo, geral-

mente pelo que de incisivo, espontâneo ou

perfeito ha no arranjo verbal.

O que procuramos aqui foi dar, dentre

muitas variantes, o modelo primitivo, quandoeste é de mais nitida intenção ou, porventura,

alguma daquelas, que durante as remodela-

çõis sucessivas alcançam maior pureza ou

elevação.

Damos apenas as variantes para o caso de

aparecerem dois ou mais sentimentos diver-

sos e egualmente reveladores, verbalisados

dentro do mesmo fundo construtivo.

Acontece também bastas vezes encontrar

Page 17: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Estudo Critico 15

nos cancioneiros algumas cantigas visivel-

mente deturpadas e escritas segundo a pro-

núncia estritamente popular, porque os cole-

cionadôres, em obediência ao dogma dainviolabilidade, na frase feliz da snr/ D.

Carolina Michaêlis de Vasconcelos, entendemdever guardá-las, segundo a exacta versão

colhida. Não procedemos assim nesta antolo-

gia: vamos pela opinião da sábia romanista

:

...«não pode haver lei intransigente que mandeperpetuar erros evidentes e falsificaçõis cons-

cientes ou inconscientes, nem ha necessidade

de o folklorista erudito se fazer escravo dumprincipio. Ninguém está obrigado a aceitar

e imprimir tiitto quanto! Quem emendar umverso visivelmente corrompido ou fragmen-

tário, em harmonia com a fala singela e po-

pular dos romances (e consequentemente dascantigas), cumpre simplesmente o seu dever.

Só quem modifica arbitrariamente e sem ne-

cessidade, falsifica e estraga.» (^)

Entende também a ilustre escritora queem obras destinadas a vulgarisar e educar

se deve imprimir unicamente «uma selecção

das produçõis mais puras e características daalma popular, em redacção limpa de todos

os defeitos.» Se rasõis pessoais não bastas-

sem a decidir-me a proceder assim na redac-

ção de algumas cantigas, essa opinião me

(') «Estudos sobre o romanceiro peninsular, na«Revista Lusitana», tomo ii, pag. 169.

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16 Cancioneiro Popular

autorisaria a fazê-lo, guardando, é certo, as

devidas reservas.

Com efeito procurei o mais possivel resti-

tuir aquelas cantigas, que deparei adulteradas

nos cancioneiros, à pureza do ritmo e da di-

ção popular, sem que isso fosse nunca alte-

rar-lhes o sentido. Devo dizer que poucas

vezes fui obrigado a isso, porque as mais

belas cantigas são as que menos estropiadas

aparecem nos cancioneiros, talvez por serem

cantadas também por criaturas de eleição en-

tre o Povo. E se é certo que ha nesses can-

cioneiros por outro lado, muita cantiga de

evidente origem culta, as popiilarisadas,

podendo esses colecionadores abonar a sua

escolha com a opinião da snr.^ Dona Caro-

lina Michaêlis de Vasconcelos, que define

por cantiga popular tudo o que o povo canta,

devo dizer que procurei quanto possivel evi-

tá-las, pois destoam por vezes horrivelmente

em meio daquelas formosissimas flores rústi-

cas e, por belas que sejam, não são tão re-

veladoras da alma popular.

Ao leitor menos dado a estes estudos,

àquele que menos de perto tenha vivido

com o Povo, como nós, e não tenha dadoatenção á beleza dos seus conceitos e viva

naturalidade da linguagem, hão de ainda as-

sim afigurar-se-lhe muitas destas cantigas de

tão rara beleza, que, em sua opinião, não po-

deriam ter sido criadas por essas almas sim-

ples e incultas. Ha, demais, eruditos, que

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Estudo Critico 17

professam egualmente essa opinião, prees-

tabelecendo, pelo dogma da imperfeição,

que tudo quanto sai do Povo é imperfeito

e vulgar em todo o sentido.

Contra a opinião desses dirá ainda a in-

signe escritora: «Embora o profanam vai-

gus, que repete boçalmente versos mal en-

tendidos, seja a maioria, ha ao lado dos

destruidores inconscientes uma valiosa mino-

ria, espíritos de excelente memória, de são

critério e senso artístico, que, contrabalan-

çando e detendo a influência dos primeiros,

conservam gostosamente e com verdadeiro

interesse entusiástico de artista, a herança dos

antepassados, posto que sem submissão servil.

Cantam— e contam—com correcção, semque o seu ouvido certeiro deixe escapar dos

tais versos errados, conservando aos textos

a sua pureza e o cunho de primordiais,

mesmo na recitação; teem inteligência sufi-

ciente para cortarem infiltraçõis postiças e

para preencherem habilmente lacunas, sem-pre que a sua aliás admirável memória lhes

falhe, e para modificarem, modernisando-as,

frases e incidentes arcaicos, cujo sentido lhes

escapa. Quando se canta em coro, são eles

que guiam os outros. São emfim verdadeiros

artistas, continuadores dos poetas, que cria-

ram o «Liederschatz» (^) da nação, improvisa-

dores e repentistas de ambos os sexos que

(^) Thesoiro das Canções.

Page 20: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

18 Cancioneiro Popular

estabelecem por meio das versõis por eles

escolhidas e adoptados os textos-tipos de

uma certa região, criando assim o Standart-

book (^) de uma aldeia.»

Nós acrescentaremos que muitos desses

improvisadores e repentistas, poetas popu-

lares, alguns duma elevadissima inspiração,

se teem conhecido nestes últimos tempos.

A Revista Lusitana tem dado noticias de

muitos e entre esses poetas humildes, deve-

mos citar o célebre Manuel Alves— o Poeta

Cavador, o Potra e o Cantador de Setúbal.

E' bem claro que todas essas cantigas são

na sua origem de criação pessoal, obra de

poetas anónimos, que um dia inteiro revol-

vem a terra com a enxada, ou lançam as

redes ao mar, ou afeiçoam a pedra e a ma-

deira, pobre gente abandonada, cuja única

educação lhes foi transmitida pela grande

Mãi Natureza, em grandeza, bondade, sin-

geleza e amor.

E porque essas cançõis brotam instintiva-

mente nas suas bocas, com a graça e a fres-

cura natural das flores silvestres, que são

também a canção da Terra, moldadas pelo

ritmo dos braços que cavam o chão ou pelo

ritmo dum peito, que desabafa em soluços,

límpidas, frescas, singelas, mas grandes na

sua humildade, é que todo o Povo as adopta

(^) Livro-modelo.

Page 21: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Estudo Critico 19

e de boca em boca, de aldeia em aldeia as

entrega a todos os seus pobres irmãos, comoa dádiva sagrada do seu amor, tesoiro, orgu-

lho da raça, para que se cantem em toda a

santa terra da Pátria.

Assim, da terra de Portugal, pelas tardes

portuguesas, em que as nossas almas tras-

bordam de sonho e paixão, nas noites emque o Luar, fluindo, arrasta os coraçõis pre-

sos nos límpidos raios, a iluminar tambémem relâmpagos de intuição o doloroso lusco-

fusco da vida, eleva-se para o ceu, repetido

por milhares de bocas trémulas, o mesmocanto eterno de amor, de dor e esperança,

nesta doce e clara lingua lusitana.

E tudo quanto, esses pobretõis, cavadores

e rudes artífices, pescadores e marinheiros,

podem sentir de carinhoso, alegre ou sofre-

dor, podem sonhar de grande ou fantasioso,

— emoçõis, conceitos morais, ironias, senti-

mentos religiosos, tudo nas suas cantigas,

chora, soluça, moteja, ri, afaga e increpa ouala o voo da vidência religiosa num ilimi-

tado espaço de fogo e bruma.Por isso me resolvi a dar neste livro ape-

nas o que é representativo do Povo pelo lado

afectivo, moral e filosófico, isolando as mais

belas cantigas, arrancando esses puros dia-

mantes à torrente de ganga que inunda os

nossos cancioneiros e limpando-as aqui e

acolá da jaca ocasional.

Aqueles que quiserem conhecer o Povo

Page 22: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

20 Cancioneiro Popular

português, teem-no aqui, em íntima e pro-

funda virtualidade.

O Povo é hoje o alicerce para todos os

grandes edificios que se queiram construir

nesta Pátria. Sem que se conheçam bem a

naturesa dos fundamentos, a sua fragilidade

ou a sua resistência, as suas afinidades e re-

pulseis, não pode haver edifício sólido, por

mais grandioso que se afigure.

Debruçem-se um pouco sobre o seu cora-

ção, auscultem-lhe os movimentos e o ritmo,

que hão de ganhar com isso a maior das

liçõis.

Page 23: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

II

o POEMA DO POVO

ESTE livro, porque o Povo o canta é umPoema, e porque nele está a sua vida,

que uma índole essencialmente afectiva

leva a encarar com seriedade e paixão e que,

mercê do abandono a que o lançaram, temprofundidades amargas, não falando já dolado trágico de toda a Vida, é também e es-

sencialmente um Drama—o Poema dramático

do Povo . . . Com efeito tratámos de coligir e

coordenar algumas centenas de quadras, de

sorte que pela sua disposição natural for-

massem uma obra com entranhas de vida e o

interesse dum drama, em cujo desfecho cola-

boram, conforme julgamos, o Destino im-

presso no sangue e a vontade contrária dos

homens.O homem do Povo aparece primeiro em

meio da Natureza, sobre a qual possui tam-

bém a sua filosofia; canta depois o elogio dotrabalho e revela-nos o sentimento da própria

força, que donde em onde o leva ao crime;

Page 24: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

22 Cancioneiro Popular

afirma a sua moralidade por meio de senten-

ças singelas, ironias e sarcasmos ; abre~nos o

seu coração de filho enternecido; e deixa-nos

perceber como um fundo religioso original

reagiu perante os preceitos artificiais duma re-

ligião imposta. Mas o sentimento essencial

em volta do qual gira toda a vida do Povoé o Amor. O desejo, o enleio, o arroubo es-

piritual, a exaltação apaixonada, a saudade, o

carinho e o anseio de eternisar o amor, tudo

a alma popular vai dizendo sucessivamente

em versos inexcediveis de beleza e revelação

íntima.

Depois ou vem o casamento com a felici-

dade conjugal e as alegrias e ternuras do

amor materno, ou a morte e a traição lançam

a vida do amoroso num trágico desespero.

Seguem-se ainda as queixas do homem que

se consome na fadiga dum trabalho mal pago

e essa imensa tristeza dum povo, entregue

aos impulsos naturais, a quem roubaram al-

guns dos mais nobres desejos e motivos de

vida e sobre quem pesa uma imensa desgraça

histórica. Por fim esse Povo vai buscar espe-

ranças à Morte, que encara com serena audá-

cia, na qual vê uma formula suprema da jus-

tiça e que para ele, constitui a possibilidade

e a certeza duma vida superior, dando ao

seu Amor, que é a própria essência de Deus,

em gritos proféticos, as garantias da eter-

nidade !

De canto a canto, o Poema sobe do

Page 25: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 23

mesmo passo em emoção, interesse, arrojo e

elevação de pensamento. É que os diferentes

cantos deste Poema não se relacionam comas cantigas em si, mas antes com o homemmoral, amoroso, trágico e religioso por todas

elas revelado.

Afastamo-nos assim do método seguido,

por exemplo, por Tomaz Pires, que classifica

as cantigas, por vezes, segundo uma palavra

—objectos, pedras, metais, vegetais—que aci-

dentalmente apareça neste ou naquele verso,

ou segundo aquele adoptado por Teófilo

Braga, separando as cantigas em grupos pro-

vinciais.

E porque nem só a pureza e correcção daforma nos interessa, mas também a beleza

intrínseca e a inteira documentação do queha de elevado no espírito popular, hão deaparecer ao lado de muitas quadras de tão

pura beleza, que nenhum poeta culto conse-

guiu atingi-la, outras de forma mais hesitante,

ainda que egualmente necessárias ao planodesta obra. Vamos provar agora, de canto

a canto, como ha sequência emotiva, en-

redo dramático e profunda unidade neste

Poema.

I—A Natureza e a Terra Natal. Homem

da beira-mar, em perpétua simpatia com omurmurado ritmo das ondas, o portuguêscanta

:

Page 26: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

24 Cancioneiro Popular

Sou gaivota, sou gaivota

E venho da beira-mar. . .

A imensidade e a beleza do Oceano ensi-

naram-lhe a poesia, que ele quer oferecer a

todos os que a não sabem, como uma dádiva

preciosa

:

Trago cantigas na bocaPra quem não souber cantar.

O mar, que banha a «praia ocidental» e

dá a esta pequena cantiga uma frescura sadia

de agua salina e a generosa larguesa dumvoo pela imensa planície oceânica, tinha de

ser uma razão essencial de poesia para o

povo português.

É que ele bem sabe que o destino do

homem é ligado ao da Terra, a qual, em seu

pensamento, tem obrigações morais para como género humano (2) (^) ; sabe que o Sol, por

ser a fonte da vida terrestre é o senhor de

toda a alegria (3); e, em horas de scisma ou

tristeza, comunga a beleza da noite, concava

de escuridão

:

Oh ! noite que vais crescendo,

Tão cheia de escuridão,

Tu és a flor mais bela

Dentro do meu coração

!

(^) Estes algarismos indicam as quadras, se-

gundo a numeração por que se encontram nas

diferentes secçõis da antologia.

Page 27: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 25

Não admira, assim, que, num lampejo de

intuição genial, o homem do povo adivinhe

o seu parentesco com todo o Universo e te-

nha um momento de atónita confusão perante

a sua prodigiosa imensidade, para logo adqui-

rir uma tranquila certeza, ao descobrir-lhe umalei íntima— o Amor

:

Eu sou filho das estrelas,

Junto do Céu fui criado,

Perdi-me na noite escura,

Fui em teu peito encontrado

!

Esta pequena cantiga, pela sua puresa cris-

talina, profundeza e plenitude de sentido, é

já de si um poema inteiro.

Desta primeira e notável concepção da

vida derivou logicamente toda uma série de

sentimentos e pensamentos filosóficos : a ad-

miração pela Natureza, que manifesta por

várias formas a alegria de viver (6) ; a com-preensão simplista, mas verdadeira, de queuma lei cósmica geral regula todos os astros

e por consequência toda a vida (10); e a cer-

teza de que uma onda de amor inunda toda

a Terra: amam as aves, os peixes, as flo-

res e até as pedras são susceptíveis de sofrer

(12, 13, 14, 15, 17). O homem reconhece

egualmente a bondade na Natureza e elogia

a árvore— a oliveira, que dá o fruto quealumia, a amoreira, que dá o sirgo para nos

vestirmos, a cheirosa laranjeira, quando se

Page 28: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

26 Cancioneiro Popular

cobre de flor, e até a humana tristeza do ci-

preste (19, 20, 21, 22).

Mas em todo o mundo o logar eleito e

mais amado é a terra natal. Essa, ainda queseja uma pobre e ignorada aldeola, é sempre« a mais linda em Portugal » (23) e mais que

isso é o próprio « centro da natureza » (24), à

volta do qual tudo são flores (25). Que prazer

andar ao ar livre, à luz do Sol, correndo os

atalhos das vinhas na terra natal! (26, 27).

Longe dela o português sente-se morrer,

porque lhe falta alguma coisa de essencial à

vida que é « o ceu natural » ; e tão entranhada-

mente ama a sua pátria, que, fiel á tradição

histórica, porque o Sol nasce das bandas de

Castela, queria, ingenuamente, roubá-lo aos

castelhanos! (29,30,32).

II— O Elogio do Trabalho e o Valor He-róico, Junto do Universo, no seio duma Natu-

reza, onde palpita um coração semelhante ao

seu e na terra natal, que lhe deu as primei-

ras lições de beleza, o homem vive e trabalha,

porque o trabalho é uma condição de vida

moral, que a própria mulher lhe exige emnome do seu elevado amor, e que aos olhos

dela, por mais rude que seja o mister, não

faz^senão exaltá-lo (33, 34, 41, 46).

É atentar na rasgada altivez com que

ela proclama a esforçada virtude do na-

morado :

Page 29: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 27

Todas me lavam a cara

Do meu amor ser ganhão

;

É bonito, gosto dele,

É honrado e ganha pão.

O homem chega a louvar a mesma po-

breza, num desinteresse de todos os tesou-

ros, porque a fadiga, que todos os dias lhe

verga o corpo, alagado em suor, hade permi-

tir que a morte não tenha contas a pedir-lhe

;

e a mulher afirma-se orgulhosa da rusticidade

do seu trajo, indício duma humilde masnobre condição (35, 47). E perante o esforço

do seu companheiro tem exclamaçõis dumaingénua admiração:

Não sei como os homens podemAs ondas do mar vencer

!

E é por isso que o marinheiro

Anda sempre a trabalhar

Em cima da sepultura!

Mas também.

Se ele não fora do mar.

Não vinha aqui a sardinha.

Noutras profissões ainda a mulher mede a

beleza pela quantidade de perigo, que se

corre (36, 37, 38, 42).

Mas o esforço tempera rijamente o espírito

Page 30: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

28 Cancioneiro Popular

do homem e eis que, pelo poder do trabalho,

nele acorda o ímpeto heróico, como no la-

vrador, por cuja virtude, o seio da terra é

fundamente rasgado ou para o contraban-

dista, que luta com os guardas frente a frente,

afrontando pistolas e punhais (39, 40, 45);

ou logo a consciência pura do valor próprio

ergue-o audaciosamente, numa sede de domí-

nio sobre a terra.

E ora se compara a um gavião, ave de luta

e sangue, que.

Quando abaixa até ao chão,

Nunca alevanta sem presa,

ora, na consciência do seu misterioso poder,

desafia os astros a que lhe venham habitar o

peito (49, 50, 51) ou (52) se compara a umaonda de tempestade tão alta e violenta que

Três dias choveu areia.

Toda a praia se arrasou!

III. Ameaça e crime. Neste povo inculto a

afectividade violenta transforma por vezes os

mais belos sentimentos, pelos excessos pas-

sionais, em tragédias de sangue e perdição.

Quem leu os romances de Camilo Castelo

Branco, em cuja obra se agita uma tão

completa série de tipos nacionais e cujo

enredo passional parte frequentemente daque-

les desvios de sentimento, observará como as

suas criaçõis se justificam perante esta som-

Page 31: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 29

bria face da alma popular. A nuvem pacifica,

que ainda ha pouco amamentava a terra em-

bebendo-a generosamente em sadia frescura,

carregou-se de negrumes minazes e súbita e

cegamente descarrega o raio impetuoso.

O que era esforço criador e Ímpeto heróico

transformou-se em ameaça sanguinária (53,

55, 56, 58), em visão fatalista de crime e so-

berbo despreso pela morte (59, 60).

Esse fundo passional da alma popular,

criando os destinos trágicos, aparece bemclaro nesta expressiva quadra em que o amorse compara ao crime, tornado fatal, perse-

guidor e irremediável como um remorso:

O meu coração, por artes,

Entrou no teu pensamento; (OÉ como o crime de faca

Que nunca tem livramento.

IV. Máximas e pensamentos. Mas o crime

é a excepção e existe apenas como um des-

vio afectivo. O Povo tem a sua moral, que

transparece nesta ou naquela cantiga e é,

quantas vezes, mais humana e elevada que a

das classes cultas a quem o egoismo ou os

artificialismos da educação perverteram o

senso ético. Também as cantigas revelam ele-

vaçõis de pensamento assombrosas. A musapopular chega a ter a intuição da liberdade e

da inviolabilidade do pensamento (63):

(í) Entrou, no teu pensamento, aqui deve significar en-

trou a pensar em ti.

Page 32: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

30 Cancioneiro Popular

Não ha machado que corte

A raiz ao pensamento

proclama ela ; assim como sabe descrever por

uma intuição e forma superior esse encantado

segredo em que vive a Alma e a traz não só

exilada de toda a vida exterior, inas até emdesharmonia com as aparências dum rosto

alegre ou triste (64):

Eu, cantando, estou calada,

Chorando me estou a rir.

Andando fico parada,

Desperta estou a dormir.

E porque tem essa intuição, atinge o me-

lindroso pudor de revelar o seu peito, que

sofre e ama, pois que (65)

Quem o seu peito descobre

É a si mesmo traidor.

Depois o homem pobre exalta a pobreza,

que é amada de Deus (67), pois a fortuna é

vária (68) e a verdadeira riqueza é a felici-

dade moral (69) e condena com um rigor de

Eclesiastes as vaidades e a ostentação (70, 71).

Castiga as murmuraçõis (72); reflecte sobre

o poder que o tempo possui de curar as fe-

ridas do coração (73); nota como à volta da

mulher formosa se acende o coro unanimedos desejos, e proclama até, perante a Natu-

reza, os direitos do Amor, fora de toda a

sanção, pois que a mulher que morre don-

Page 33: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 31

zela tem uma morte inglória (74, 75). A pró-

pria mulher deseja casar emquanto é rapa-

riga, para que se não perca a sua fecundidade

(76) obedecendo assim á Natureza, cujas leis

são invioláveis (77).

Ele bem sabe que entra, como parte noAmor, a exaltação dos sentidos (78), assim

como reconhece a sua cegueira desatinada

(79) e adivinha esse estado da alma amorosaa quem incomoda o bulicio da vida exterior

e se compraz com o silêncio e a escuridão da

noite, que mais lhe consente a interiorisa-

ção(80):

Toda a moça que namoraPelos olhos se conhece:São tristes pela manhã,Alegres, quando anoitece.

O amor veemente e sincero funda-se na

livre escolha, (84), porque acima da lei da obe-

diência filial está a lei do próprio amor (85),

o qual deve procurar sempre a mocidadeainda que pobre e a formosura com a condi-

ção de ser aureolada pelo esplendor da sim-

patia (81, 83).

E é tão poderoso o amor, que um pai

comete uma criminosa crueldade, sempre que

abandona uma filha, que se deixou seduzir:

maior que o erro da filha é o crime do pai

que a entrega às tentaçõis e às férreas leis

do mundo (86).

A queda da mulher pode obedecer á con-

Page 34: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

32 Cancioneiro Popular

dição da sua própria inocência, que a redimeda culpa, em detrimento do sedutor, cuja almafica para sempre perdida. É o sentimento dadignidade intacta, que arranca à mulher se-

duzida e traída este belo grito de indignação

:

Não cuides, por me deixares,

Que no Céu ganhaste palma;Eu caí por inocente:

Desgraçada da tu'alma!

É talvez, pensando na infidelidade e trai-

ção dos homens, que ela é capaz de chegar

ao curioso caso de narcisismo moral e in-

sensibilidade amorosa, expressa nesta qua-

dra (91):

Vai-se o dia, vem a noite,

Vai-se a noite, o dia vem,S'tou gostosa de mim mesmo.Não quero bem a ninguém.

V. Ironias e gracejos, O prolóquio latino

— « Ridendo csatigat mores», forma superior

de ironia pela intenção moral, seria a melhor

das epígrafes a este capitulo. Nós não temosno génio nacional nada que se pareça com o

humor francês, exercício do espírito pelo es-

pírito, espécie de ironia intelectual, a que o

nosso povo é avesso pela profundidade e até

pelas demasias de sentimento. A nossa ironia

tem geralmente antecedentes morais; não ri-

dicularisa apenas, castiga quasi sempre, e

quando a paixão amorosa, o orgulho ou o

Page 35: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 33

desprezo a dita, torna-se invectiva sarcástica,

como havemos de vêr num capítulo à parte.

Aqui o Povo chasqueia o egoísmo dos

ricos, capaz das mais absurdas exigências

(92), a irreflexão dos que repreendem os ví-

cios alheios sem curar dos próprios, e, comoo seu espírito é humilde, chão e natural, mo-teja a vaidade feminina com imagens dumagraça e precisão admiráveis (94, 95, 96), sa-

tirisando com gargalhadas francas a vaidade

das senhoras, 3. quem a moda transforma

em seres de artificio e monstruosidade (98,

99, 100).

Seguem-se alguns gracejos em cantigas de

desafio com expedientes ingénuos e até in-

fantis, a provar a prímitividade dos seus pen-

samentos (101, 102, 103, 104), e outras quedenunciam o poético arrojo da imaginação

popular (105, 106).

VI. Amor filial. Se o Povo, em geral, nãori desintencionadamente, é porque o primeiro

e quasi exclusivo móbil de todas as suas acçõis

é o Amor. Não só o enlevado e estático amorentre indivíduos de sexo diferente, mas tam-

bém o amor filial, de gratidão e respeito pelo

pai (107) mas, mais que isso, de carinho e

exaltado enternecimento pelas Mais, as san-

tas, as sagradas, as puríssimas Mais, cujo co-

ração como uma fonte de amor, se desentra-

nha em ternura, e sacrifícios perenes (108 a

114). Todo este pequeno canto é um formo-

síssimo indicio da riqueza amorosa da alma

Page 36: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

34 Cancioneiro Popular

popular, tanta é a singela e pura fragrância

que respira e o religioso enlevo de oração,

em que se exalta.

VIL Religiosidade popular, É este umdos aspectos, sob que o cancioneiro popular

é mais afirmativo de verdades originais. Umpovo que ama a Natureza e a representa

intrinsecamente movida de espírito amoroso,

para se guiar pelos seus ensinamentos, tinha

que reagir contra as hirtas e severas fórmulas

do catolicismo e transformar todas as ascéti-

cas representaçõis da divindade, que lhe pre-

garam,—o Cristo, a Virgem, os Santos,—moldando-as, segundo o seu génio e comarte irreverente, no tosco barro das cantigas,

O povo, sabedor das verdades eternas,

leva todas essas contritas e dolorosas divin-

dades a fazer as pazes com a boa Natureza,

reintegra-as no convívio do homem e.no gososereno das doces alegrias humanas, santifi-

cando apenas a pobreza, a humildade, o ino-

cente desejo, a fecundidade materna e todas

as virtudes do Amor.Já Unamuno, observador do espírito por-

tuguês, proclamou o paganismo e o panteísmo

da nossa religiosidade, contraposto ao cató-

lico espírito castelhano. Essa afirmação docu-

menta-se claramente no nosso cancioneiro.

Até o culto do Sol, comum a todos os po-

vos arianos, cujos vestígios alguns mitólogos

vão buscar às festas de S. João e do Natal,

que coincidem com o Solstício do Verão e o

Page 37: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 35

Solsticio do Inverno, existe bem evidente

no cancioneiro, quer isolado, quer fundido

com os símbolos cristãos. Haja em vista esta

curiosíssima cantiga, que nós deparamos na

Revista de Guimarães:

ORAÇÃO AO SOL

Vou-me despedir de vós,

Adeus, oh! Sol que te vais,

Deixais-me ficar sósinha

No meio dos pinheirais.

Oh! Sol, torna amanhã,Eu quero-te ver nascer,

Só a vós é que eu adoro,

Só por vós quero morrer.

A seguir ha esta nota: «Esta oração só

deve ser dita ao pôr do Sol; a qualquer ou-

tra hora é pecado».

Perante este precioso documento não po-

dem restar dúvidas de que existam entre nós

restos daquele culto. Demais, em muitas can-

tigas aparece a expressão Sol divino, comoteremos ainda ocasião de ver. Outro curioso

documento mas este da fusão do mito solar

com o cristianismo ou do reaparecimento da-

quele sob as representaçõis cristãs, posterior-

mente recebidas, é o Terço da Aurora, coli-

gido nas Tradiçõis de Serpa, na Revista

Lusitana, por M. Dias Nunes e cuja notícia

queremos dar tal e qual ali aparece, por ser

muito significativa:

Page 38: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

36 Cancioneiro Popular

O TERÇO DA AURORA

<íEsta cerimónia religiosa realiza-se por

ocasião das festas em louvor da Senhora dos

Remédios, Conceição, Prazeres, e tambémpela Páscoa e Quinta-feira de Ascensão. Namadrugada do dia em que a festividade se

celebra, os devotos que prim.eiro chegam á

respectiva igreja, saem em grupo, e vão deporta em porta a procurar os seus confrades

retardatários, cantando

:

A ADORAÇÃO .

Os devotos que hão de vir a rezar o sa-

cratíssimo rosário de Maria Aurora—podemvir que é tempo—para que esta soberana

não diga— que nos entregamos— ao esque-

cimento.—Podem vir que é tempo.

Depois de todos reunidos—todos os ir-

mãos particularmente convidados para toma-

rem parte no terço— percorrem as principaes

ruas da vila entoando repetidas vezes em coro

e num ritmo extremamente arrastado e mo-nótono o padre-nosso, â ave-maria e a gloria-

patri; tendo o cuidado de sempre que se

aproximam de qualquer igreja du de qual-

quer passo fazer um poiso e recitar o

OFERECIMENTO

Soberana, divina AuroraMãe do eterno Sole,

Quem como vós pudera,

Soccorrer-nos melhore!

Page 39: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 37

Quando o sol é nado, recolhem á igreja

donde saíram, e ahi pronunciam em altas vo-

zes:

(Voz), Gloria patri, é filho, é desprito

santo,

(Coro). Secundire de príncipe, é de nuncaé semper, é de sedo sécloro. Amei; (^)

É de notar que a cerimónia se realisa de

madrugada até que o Sol é nado e a clara

substituição ou fusão da Virgem com a di-

vina Aurora e de Cristo com o eterno

Sol,

E essa Oração ao Sol nascente, conjura-

ção de bruxa ciumenta, exortando o Sol,

numa rajada de ardorosa paixão, a que lhe

sirva de intermediário e realise, com o divino

poder, os seus desatinados e raivosos dese-

jos!

Vejamos agora como a Virgem é repre-

sentada: atribuem-se-!he todos os encantos

físicos— a beleza carnal, a graciosidade, a

frescura apetitosa (119, 120) e ora aparece

cortando o mar, num barco de flores, comoVénus, ou, pelo Douro acima, como uma Ce-

res, de cestinha no braço, para fazer a vin-

dima (122, 121). Celebra-se-lhe a feminina

condição, que a obriga ás dores do parto, o

seu carinho protector pelo amor das aves, en-

volve-se em disvelos e exalta-se a sua mater-

(^) Tradições de Serpa, «Revista Lusitana»,

volume 4.0 pag. 105 e 106.

Page 40: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

38 Cancioneiro Popular

nidade tanto mais santa, quanto é tão pobre

e humilde, que a doce Virgem para lavar o

Menino só tem as lagrimas dos olhos, para o

limpar a manguinha da camisa, e as manti-

lhas do rosto para lhe envolver o corpo pe-

quenino! (125 a 129).

O Cristo raras vezes se evoca na sangrenta

e dramática figura do crucificado, a expiar os

crimes duma raça maldita, e quando isso

acontece, nunca na cantiga solta, mas nalgu-

mas cantilenas de egreja, percebe-se a origem

culta da obra ou a sua restrita aceitação den-

tro dum publico devoto ou fanatisado.

O que o Povo canta carinhosamente é o

menino Jesus e frisando frequentemente (130,

132, 135 e 136) o motivo da sua predileção

-—a humildade do seu nascimento,

Num tempo de tanto frio

Desprezado e pobresinho.

Mas é tão humano esse deus, que tem «bo-

quinha de sangue e leite», «boquinha de re-

queijão», que apetece comer e num dia que

foi á fonte as heréticas moças deram-lhe açoi-

tes e obrigaram-no a chorar (133, 134, 137).

Noutra cantiga ainda (139) que ora se

aplica ao Anjo da Guarda, ora ao Senhor da

Serra, a divindade aparece unicamente comoum pobre deus das selvas, dando aos seus

Page 41: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 39

devotos a agua da fonte e a sombra dos cas-

tanheiros.

Os santos mais queridos do Povo, toda-

via, a avaliar pela profusão de cantigas, que

os celebram, são S. João e S. António. Oconflito entre a tradição católica e a po-

pular aparece mesmo numa cantiga, em que

S. João é representado tendo, a custódia

numa das mãos, como convinha ao Precursor,

mas empunhando na outra um ramalhete,

mais próprio duma divindade pagã (142).

Mas é sob este último aspecto, que ele vive

na alma popular, moço e rústico pastor, de

figura e alma tão paganisada, que se permite

todas as aventuras duma divindade do Olim-

po, e partilhando a vida dos mortais, vai aos

montes colher braçadas de giesta para as suas

fogueiras, beija as raparigas, faz uma fonte de

prata para as ver, mistura-se nos seus diver-

timentos e desmanda-se a ponto, o bom dosanto, que lhe chamam velhaco (143 a 151)!

Emfim, o homem fez a divindade á sua

imagem e semelhança e agora, espelho dos

seus devotos, já pode escutar a súplica dumdos fieis que lhe pede para fazer as raparigas

bem doidas (145).

Santo António, no mesmo altar, perde

toda a compostura, para acenar ás raparigas,

quando não vai até ao mato esperá-las (140,

141); e o nosso povo, tal qual o povo romano,

que ha dezenas de séculos maltratava os deu-

ses, quando estes o não atendiam, assim es-

Page 42: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

40 Cancioneiro Popular

pança também o santinho, porque ele nãoquer favorecer todas as exigências dos amo-rosos (152).

E desde que os Santos são os intermediá-

rios entre os amores dos homens e eles pró-

prios também amam, desejam e sofrem de

amor, como poderia o Povo deixar de olhar

irreverentemente para os sacerdotes católicos,

a quem a religião impõi preceitos tais, quenern os santos acatam?!

É exactamente, por causa dessa imposição,

observa o Povo, que o padre é o que mais

namora e, vivendo em continua mentira, me-

rece da sua musa os mais acerbos e virulen-

tos sarcasmos (153, 154, 155, 156, 157, 159).

Mas esse protesto contra as falsidades

duma religião, que pretende desmentir a Na-

tureza, pode atingir a veemência lancinante

dum coração dilacerado pelo sofrimento.

É o caso da mulher, a quem roubaram to-

das as alegrias do amor e da maternidade,

para a enclausurar num convento e, que,

louca de dôr e saudade e ansiosa de vida li-

vre, canta essa dolorosissima elegia (160),

composta com o estalar das fibras dum cora-

ção despedaçado pelo desespero e onde de

quando em quando soam gritos sublimes,

como este:

Agora que aqui me achoMetida nesta clausura,

Parece-me noite escura

Page 43: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 41

O meio dia,

O meio dia!

Este cântico evidentemente arcaico, ainda

hoje se canta com uma toada tristíssima emtodo o Portugal (^), e Teófilo Braga regista

no seu Cancioneiro popular {edição de 1867)

um outro muito semelhante, em que o mo-tivo elegíaco é a vida do frade. Ainda que

nâo mantenha a unidade daquele, possui noentanto este belíssimo passo:

Eu á força professei

Por meu pai assim querer;

Ser defunto, sem morrerAmortalhado!

VIÍI. A criatura amada. Vamos assistir

agora a uma transformação maravilhosa. Ohomem, que nos seus humildes cantos nós

temos escutado até aqui de entusiasmo sa-

grado perante a Natureza, de louvor ao tra-

balho, de bravura heróica, ternura filial e vaga

religiosidade panteista ou cristã, pode ter

nesta ou naquela estrofe do seu poema he-

sitaçõis de forma e imagem, sempre que a

(^) Na minha terra adoptiva, S. João do Cam-po, junto de Coimbra, o ouvi eu a mais que umapessoa.

Page 44: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

42 Cancioneiro Popular

nebulosa criadora não prenda de todo nas

suas espirais o espírito do poeta.

Aqui não. Desde que o homem ama, pre-

sente-se que uma força prodigiosa o anima e

o seu cântico sai numa espontaneidade, fres-

cura, singeleza e rapto líricos duma elevação

sem mácula.

O Amor— eis o primeiro, o maior e talvez

o exclusivo principio de inspiração para o

Povo:

Todas as águas que corremTodas ao mar vão parar;

Todas as minhas cantigas

Ao meu amor vão a dar.

Assim se explica a superioridade lirica da

sua musa. Coligindo e coordenando as can-

tigas em que se pintam as perfeiçõis da pes-

soa amada, conseguimos formar esse exta-

siado retrato, em que a justeza e combinaçãoperfeita das cores se junta a um íntimo e pu-

ríssimo enlevo e que atinge a frescura de

imagens do Cântico dos cânticos, como nes-

tas duas límpidas cantigas

:

És como a prata lavrada,

Como o leite sem a espuma;És perfeita, oh! minha amada,Sem teres falta nenhuma.

Page 45: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 43

Os vossos peitos, menina,

Ambos de dois são eguais:

Não são altos, nem são baixos,

São como vós precisais.

IX. Confissão d'amôr. Vem após, pri-

meiro como uma névoa de ante-manhã, ru-

borisada de longínquos clarõis, a revelação

do amor. Que subtil delicadeza aliada ao sen-

timento da grandeza infinita do amor, que ha

neste alvorescente canto dum coração que se

oferta:

Quem embarca, quem embarca,Quem vem para o Mar, quem vem?Quem embarca nos meus olhos,

Que linda maré que tem?! . .

.

Por vezes num peito (e deve ser de mu-lher) o amor e o pudor, a paixão e o respeito

combatem-se (189); até que o amor, comomais forte, vence e afirma-se subitamente coma jurada violência semítica dalguns trechos daBíblia (190), ou então com o clangôr épico

dum clarim, cuja harmonia se espalha por

todo o mundo e se ouve por toda a vida (192)!

O amor do português é essencialmente da-

divoso, define-se claramente como uma oferta

absoluta e constante de toda a vida (195, 203,

206); chega a dar-se no amor correspondido

Page 46: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

44 Cancioneiro Popular

uma transfusão de vida, que o génio popular

traduz por imagens como estas

:

O sangue das minhas veias

Gira no teu coração;

Os teus braços são cadeias

E eu entrego-me á prisão.

Amor religioso, que vê o próprio Deus na

pessoa amada (207) e que torna o amantejuntamente, criatura e Criador, não só a es-

cravisada, absoluta pertença de outrem, emcorpo e alma (208), mas também a sua exal-

tação e condição única de vida (196).

X. Desejo e posse. Esse elevadíssimo

amor não é isento de desejo, antes por esse

motivo arranca da alma popular pequenoscantos líricos, em que ele se afirma em ansie-

dade ideal (209) ou em suavíssimas queixas,

em que o amoroso inveja o linho que passa

pela boca da sua amada ou as contas do colar

que lhe descançam no seio, (212, 213) para

logo, em arrojos de imaginação, se julgar, nodesejo da amada, como a verdizela «que se

enleia pelo trigo» (211).

Vêem depois os sonhos, as ternas con-

fidências, os doces pedidos e propostas de

amor (226, 219, 227, 230), as súplicas auda-

ciosas, como nesta cantiga em que a delica-

deza e a malícia se dão as mãos com inexce-

divel perfeição (229):

Page 47: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o PoEM.v DO Povo 45

Deixai-me ir com as mãos ambasAo talho do teu colete,

Á parte mais delicada,

Onde pois o ramalhete.

Por vezes o desejo é duma violência quasi

brutal (233), até que a ideia da posse apa-

rece, como sanção moral do amor (234) e a

seguir a mulher exprime a profunda pertur-

bação dos sentidos causada pelos beijos doamado e este a doçura dum beijo que lhe fica

perenemente a saber nos lábios (235 e 236),

ou a arrebatadora alegria sensual da posse

(238, 240, 244).

XI. Ironias, sarcasmos e pragas de

amor. Do amor, dos ciúmes, das desilusões,

enredos e ingratidõis nascem tanto as iro-

nias de puro gracejo, como a invectiva de in-

dignada veemência. Assim, esta parte é umacontinuação das máximas morais. Atravez dos

sarcasmos e das pragas, entrevê-se o princí-

pio moral— lealdade, constância, fidelidade,

—ditando os seus protestos ou lançando a

maldição sobre os que transgrediram as leis

sagradas do Amor.É de notar aqui a felicidade e riqueza de

imagens (245, 262, 264, etc.) e a violência

da linguagem, que sob a forma popular de

jura ou praga, se pode comparar às desespe-

radas expressõis de génio do Livro de Job

(268, 272, 273).

XII. O Amor, Eis-nos na região das altu-

Page 48: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

46 Cancioneiro Popular

ras, e subindo sempre . . . Do alto a paisagem

contemplada vai-se alargando ilimitadamente

e, para alem das últimas fugidias cristas dos

montes, o olhar embebe-se na imensidade

azul. É que o homem, quando espontanea-

mente se revelou a essência do Amor, reco-

nheceu que era dentro de si a divindade.

O amor é uma lei natural: e pelo mesmomotivo que o campo se recama de flores e oCéu é cheio d'astros é que o amor nasce nocoração da mulher (274, 275). Mais: a pró-

pria essência da vida e o Amor (280):

Só amando é que se vive

e quem não ama, triste dele,

Vivo está na sepultura,

E, porque ele é o único valor da vida, an-

tes a morte do que viver sem amar (281):

Mais vale morrer d'amôres,

Do que sem eles viver.

Por via do amor e da pessoa amada é que

os astros gravitam (278):

Nasce o Sol para adorar-te,

Dá volta ao mundo por ver-te,

Page 49: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 47

e é pelo amor, e só por ele, também que o

tempo adquire realidade (279):

O dia tem duas horas,

Duas horas, não tem mais:

Uma é quando eu vos vejo,

Outra, quando me lembrais.

Uma força misteriosa regula os movimen-tos ocultos dos coraçõis, que se aproximam e

nas mãos do poderoso Destino o coração dohomem vai, arrastado, como um pedaço de

madeira sobre as aguas impetuosas (283).

E então, sob essa omnipotente força, as duas

vidas fundem-se : unem-se os coraçõis, o san-

gue vasa-se na mesma onda, os próprios

olhos se desconhecem de se misturarem na

contemplação (285, 287, 288, 289) e quandoa solicitude do amor é sequiosa de se entre-

gar em carinhos, que arte subtilima! hesita,

porque não sabe a qual dos dois coraçõis se

dirigir (286):

Dois coraçõis, que se amam,Unidos fazem um só;

Ambos eles estão feridos:

De qual dos dois terei dó?!

Fusão de vida, multiplicação de energias,

potenciação súbita do espirito! ... e eis que

o Amor atinge a divindade, com todas as

suas miraculosas virtudes (293):

Page 50: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

48 Cancioneiro Popular

Quando António vai à missaA egreja resplandece,

A herva que António pisa,

Se está seca reverdece!

Qual o poeta culto que jamais excedeu a

profundidade lírica deste pequenino poema,latejante dos poderes ocultos do Amor?!Simí ! o Ámôr investe a pessoa amada com as

supremas virtudes de Deus; por ela «se sal-

vam as almas» (296) e ela também, comoCristo, pode dizer a Lázaro (294):

Resuscita que aqui estou

!

E eis que as Almas, na consciência da sua

divindade, partem unidas para o Ceu (292),

voam arrebatadas e pelo esforço das suas

misteriosas energias, o Amor torna-se eleva-

ção épica, levitação deslumbrada pelo éter

azul (298):

Subi com a minha amadaTé onde ninguém se viu;

As nuvens diziam: basta.

Até qui ninguém subiu!

E, atingida a consciência sublime, épica,

divina, o Amor revela-se em violência apai-

xonada, com a presença directa das grandes

forças da Natureza (300) e, trasbordante de

si mesmo, define-se como de essência dadi-

Page 51: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 49

vosa (302) e, encapelado e tumultuoso, emseu poder de exaltar a pessoa amada, com-

para-se às temerosas torrentes que alagam de

vida as florestas (303):

Meu coração é um rio,

Cheio d'água, mete medo;Seca-se o meu coração,

Rega-se o teu arvoredo!

Na sede de se dar, o amante quer realisar

os supremos sacrifícios: dar a vida pelo

objecto amado (304, 305); tecer-lhe as ale-

grias com tormentos e lágrimas de sangue

(306); esquecer-se de si a ponto de amar as

mesmas ingratidõis de seu amor ; chorar tris-

tissimamente, quando mulher abandonada,

pela certeza de que o amante não encontrará

nenhuma outra, que lhe queira tanto bem(309); ou oferecer-se, enlouquecida pelo an-

seio de sacrifício, para dilacerar a carne, numgrito lancinante de paixão dolorosa (310):

Se os meus olhos te dão pena,

Tira-os e deita-os ao chão;Não quero ter no meu corpoCoisa que te dê paixão

!

Amor ínexgotavel, sempre inédito e egual-

mente poderoso, florido como uma eterna

primavera (316) e capaz também de en-

cher de flores o coração alheio (311). . .

Este amor exalta a vida interior de modo

Page 52: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

50 Cancioneiro Popular

que o amante tem diálogos com o próprio

coração, forma de se dirigir à criatura amada

(318), interiorisa-se, a ponto que deseja viver

a sonhar, encerrado em si mesmo, vendo, de

olhos fechados (319):

Olhos, que sonhando vedes,

Olhos para que acordais?

Se vós, sonhando, estais vendoTudo quanto desejais?!

ou sente, em noites de misteriosa emoção,

um desabrochar de todas as rosas dentro da

Alma extasiada (320)!

A vida íntima do Amor decorre em regiõis

inacessíveis à palavra e daí toda uma lingua-

gem amorosa, que se escuta por adivinhação

ou se lê na Alma, atravez as confissõis trans-

parentes do olhar (321, 322, 323, 324, 325,

etc), quando não é a amaviosa linguagem

das ternuras e carinhos, ora velados e pro-

fundos numa linguagem de mistério e eleva-

ção (348), ora claros e doces como um afago

duma pureza lírica de veio d'água refrige-

rante (346, 347, 349):

Oh! que calma está caindo

Por cima dos ceifadores!

Quem fora ramo de palma,

Que cobrira os meus amores!

XIII. Fidelidade e constância, A firmeza

de sentimentos, condição essencial do cara-

Page 53: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 51

cter, foi, ao menos outrora, característica doespírito português. No amor, o que não é de

forma nenhuma menos representativo, vem o

nosso cancioneiro afirmar exuberantemente

essa rijeza austera do caracter popular, tra-

duzindo-se em fidelidade e constância, ca-

paz de afrontar desgraças, perigos, maldiçõis,

a própria morte. Quisemos, assim, formar umcântico à parte,, quanto mais que não des-

merece em beleza dos cantos anteriores. A fi-

delidade no amor encontra por vezes a

sua suprema expressão, oferecendo-se, por

alternativa única, a Morte, como naquela

cantiga (366) em que uma donzela exclama:

Eu fui aquela que disse:

«Ou contigo òu com \a terra!»

Sé não cazasse contigo •

Queria morrer donzda.

Na própria maneira de separar a frase mais

expressiva, ha uma admirável intenção ar-

tística. E a ligação inquebrantável de duasAlmas ligadas pelo Amor, dranaâtisa-sè. pela

ameaça da separação e buscã;''paíá se definir,

a imagem fúnebre da agonia, árripi^nte desagrado pavor (383):

P meu coração dò tçu

É mui ruim de apartar;

É como a alma do corpo,

Quando Deus a quer levar.

Page 54: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

52 Cancioneiro Popular

XIV. A felicidade do lar e a ternura

maternal A felicidade do lar, quando alegria

conjugal, raras vezes inspira o Povo, como é

fácil de calcular pelo reduzido numero decantigas, que neste cancioneiro se lhe refe-

rem. A Alegria não é a musa predilecta donosso Povo, muito mais quando, como nocaso presente, se traduz em serenidade e paz

fecunda do casal.

O amor materno, esse, mais dado a trans-

portes e carinhosos delírios, ele, que é umafonte inexgotavel de inspiração moral, tor-

na-se também inspiração poética, trémula,

embaladora, receiosa, na boca das Mais. Can-

tigas de adormecer, beijadas, resadas, cicia-

das. . . tão santas, que as Mais, ao canta-las so-

bre o berço dos filhos, estancam as lágrimas

para não cortarem a voz de soluços (389) e

em seu extasis. maternal, para que alguém as

entenda, falam com os anjos e as aves, suas

irmãs em pureza e amor! (386, 391, 392,

394, 396) (^).

XV. A Saudade, Dizíamos ainda ha mo-mentos que este poema era uma continua

ascenção: mais alto, sempre mais alto...

(') É fértil em cantigas de berço o nosso can-

cioneiro. Nós escolhemos apenas para aqui algu-

mas das mais belas. Se algum dos nossos leitores

desejar mais desenvolvidamente conhecer este ca-

pítulo do cancioneiro, queira ler as Cançõís doBerço de Leite de Vasconcelos, Revista Lusitana,

vol. X.

Page 55: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 53

Contemplámos a alma popular em altura;

vel-la-hemos agora em profundidade.

As saudades são raizes,

Que alcançam grande fundura,

diz uma cantiga: são as raizes do amor, cuja

flor de mistério exala o perfume pelas alturas.

A ausência é a tentação da montanha: foi

ao alto e quiz descer o Amor. Com as mãosenclavinhadas esforçou-se demoniacamente

por arranca-lo das puríssimas culminâncias,

mas tão arraigado ele está, que a cada novoempuchão, mais vitoriosamente se lhe ergue

o corpo lacerado (408):

Como o vento é para o fogo

É a ausência pro amor:Se é pequeno apaga-o logo,

Se é grande torna-o maior.

O verdadeiro, o mais alto amor revela-se

pela ausência: é a Saudade; e a musa popular

vai até à afirmação de que (397)

Aonde não ha saudadeNão pode haver bem querer.

E, se o Amor é de essência divina, a sua

divindade tanto pode revelar-se pela presença

corpórea da pessoa amada, como pela Saíi-

dade, que é a sua presença espiritual:

Page 56: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

54 Cancioneiro Popular

De qualquer forma que existas

És a mesma Divindade:

Ventura, quando te vejo,

Se te não vejo, Saudade.

As almas conhecem-se, ha laços invisíveis

que as prendem (399) e só se podem revelar

pela Saudade, que é a sua visão directa embeleza e perfeição ideal (404).

A Saudade é definida até como a luta do-

lorosa e feliz pelo ideal (400):

Quem adora o impossível

Que esperança pode ter?

Vive numa saudade,

Gosa pena até morrer.

A sua angustiosa aflição volve-se num es-

tado de visão telepática ; o seu misterioso po-

der destruiu o espaço e a mulher que amapode ver ao longe o seu amado (409) e até,

pelo esforço da vontade, partir, atravessar o

mar e socorrê4o no momento do perigo (410,

414): a Saudade tornou-se o drama épico doAmor!

Fundiu-se a ausência e a presença, a dor e

a esperança (401) e a Saudade é um clarão

de sol-posto (406), é a escuridão aflitiva, nim-

bada dum esplendor ideal (407):

Passei pela tua porta,

Não te vi, oh! alma minha;Fiquei comiO a noite escura,

Metida na nevoinha!

Page 57: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 55

Assim como o Povo personifica o Amor,assim personifica a Saudade e dirigindo-se à

criatura amada, chama-llie «minha saudade»tal qual, como diria «meu amor», o que

exemplificamos neste cancioneiro com três

cantigas, que não sendo da mais elevada

inspiração, são, todavia, necessárias para do-

cumentar este facto.

É riquíssimo o cancioneiro da Saudade, já

quando traduz o momento lancinante da des-

pedida nalgumas cantigas, que são puros gri-

tos de agudíssima aflição (427, 430, 432,

etc), ora, tornada solicitude que acompanhaa pessoa amada, em extremos de carinho

(446, 447) ou nos ternos expedientes, queimagina para lhe comunicar os seus cuidados

e pensamentos de amor (448, 449, 450, 451,

452, etc).

A Saudade, expressão suprema do Amor,não se rende às violências do Destino, e ar-

dendo na pura chama do sentimento, a alma

popular prefere a morte— morrer de sau-

dade— a ter que negar o divino Amor. Mor-rer de amor e morrer de saudade são casos

passionaes quasi vulgares nas nossas cantigas

(417, 418, 419, 420, 421, 422, 424, 425,

426).

É que a Saudade, não é, como vimos, umsentimento acidental, mas sim o esplendor

ideal do Amor, a sua face religiosa que só

por si constitui para a metafísica popular umafonte de imortalidade (560).

Page 58: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

56 Cancioneiro Popular

Que admira, assim, que nos seus anseios

atinja imagens poéticas sublimes e, inebreada

da sua deliciosa tortura, crie o desejo de

poisar nos altos, e exalar o melindroso per-

fume, como a flor agreste da esteveira, ao

vento da imensidade (467)

:

Quem me dera estar tão alto,

Como a esteveira na serra,

Que avistara o meu amor,

Onde quer que ele estivera.

XVI. Desgraça de amor, Á elevada e

aguda sensibilidade, à melindrosa delicadeza

de Alma corresponde, como era de razão,

o amor desgraçado, ensombrando a poesia

popular dum tom elegíaco dominante. Adesgraça do amor traído, maltratado ou fe-

rido de morte, vasa a sua dor nos moldes da

elegia. São queixas duma infinita plangência

revestindo as formas delicadíssimas (469,

473, 485) dum coração que se lamenta, mas

não acusa, ou adoçando-se na resignação ex-

trema de quem se entrega nas mãos de Deus

(490), ou subindo até à piedade pelos males

do coração que nos agravou (475), logo ve-

lado de humildade e receio de maguar, quei-

xando-se (478)

:

Já os atalhos tem herva

Depois que aqui não vieste;

Dize-me, amor da minh'alma,

Que agravo de mim tiveste?

Page 59: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 57

enfim, turvo de tão maguado abandono, que

nos sentimos invencivelmente tomados da

mesma pungente agonia, pelo poder do seu

doloroso queixume, cuja sublime inspiração

é tão molhada de lágrimas (495)

:

A minha amada morreu,

Eu já não a torno a ver

;

A flor no campo renasce,

Ela não torna a nascer!

XVIL Tristeza, A delicadíssima impressio-

nabilidade, gerando os amores desgraçados,

pode também por infortúnios de toda a na-

tureza lançar as almas na tristeza. Somos de

opinião que as grandes desgraças nacionais

que desde o fim do XVI século tem afligido

a Pátria, roubando-nos as grandes alegrias

colectivas dos Povos que de facto vivem,

teem contribuído profundamente para criar

esse fundo de tristeza, que entenebrece a

poesia do Povo.

É bem verdade que essa tristeza pode ser

mui diversamente motivada. É algumas vezes

o sentimento da inferioridade a que um fadi-

goso e mal recompensado trabalho condenatanto o homem como a mulher (518, 519);

outras vezes a fealdade e a pobreza reunidas,

que inspiram a uma rapariga este sentido

queixume contra o Destino (522):

Page 60: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

58 Cancioneiro Popular

Sou feia, não tenho graça,

É disforme o corpo meu,Não tenho bens de fortuna:

Mas que culpa tenho eu?!

ou o abandono da engeitada, que nunca co-

nheceu carinhos de Mãe e cuja alma, infinita-

mente deserta, grita a sua sede de morte (533):

Oh! quem me dera ter mãi,

Embora fosse uma silva,

Inda que ela me arranhasse.

Sempre eu era sua filha!

Mas, em geral, não é esta a tristeza das can-

tigas do Povo: é, sim, uma tristeza, que des-

conhece a sua origem, profunda e brumosa,

subindo do coração e abafando a voz, comoa névoa dos rios que empana a luz da manhã.

Ainda assim, não é aqui, na alma do Povo,

que se deve procurar a «apagada e vil tris-

teza», porque a sua é nobre e alevantada.

Nalgumas dessas cantigas (527, 528), comoesta, mistura de desafio e revolta (529):

Oh! triste sombra acompanha-me,Desgraçados dai-me a mão;Venha tudo o que for triste

Afligir meu coração!

a alma afronta a Desgraça e compraz-se coma imensidade da Dor porque lhe admira a

grandeza.

Page 61: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 59

Mas um Povo, que criou este canto do seu

Poema, sente-se que tem grandes e seculares

feridas no coração e que essa brava energia

com que afronta as próprias dores, bem esti-

mulada e dirigida, seria o melhor remédio

para as cicatrizar de vez.

XVIII. A Morte e a Eternidade do Amor,Eis-nos chegados ao último, ao supremocanto deste Poema. Aqui, a alma do Povovence as mais elevadas culminâncias e junta-

mente abisma-se nas derradeiras profundida-

des; aqui, a Morte representa-se como a

suprema Justiça; aqui, perante esse mal irre-

mediável, afrontando o inimigo invencível, o

coração do homem, pelo poder épico da

Saudade, ergue o Amor vitoriosamente para

além da própria Morte; aqui, o homem, no

rapto da inspiração dramática, fantasmisa-se

e na figura pávida dos desenterrados, vem,

já de Alem-Mundo, afirmar a eternidade, a

essência religiosa do Amor!•Tal como o Amor, a Morte é uma lei na-

tural, perante a qual o ser corpóreo tem de

se curvar com resignação (538), mas essa lei

inspira-se num pensamento de elevada justiça,

e todas as ostentações, vaidades, diferenças

sociais, desaparecem, misérrimamente eguala-

das pela Morte (544, 545, 548):

Debaixo da terra fria

Todos nós somos eguais.

Page 62: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

60 Cancioneiro Popular

de sorte que dos restos do homem, tornados

cinza, fundidos no pó comum, não resta o

mais humilde sinal sobre a face da Terra

(539, 546)!

Por um momento, ao lembrar-se que a

terra vai comer a carne formosa da amada,

que foi o gostoso alimento dos seus desejos,

o homem tem um assomo de revolta (541);

e se atenta, porventura, em que essa mesmaterra irá devorar a tenra e mimosa delicadeza

dum corpo de criança, dum anjinho, a sua

alma desata-se numa queixa, que é um fio

puríssimo de lágrimas, de piedade, carinho e

amargura (542):

Oh! adro, terra de egreja.

Onde se enterram anjinhos,

Oh! terra, que estás comendoCorpos tão delicadinhos!

Mas quê! que importa a piedade humanaà terrível e impiedosa Morte, se a sua foice

pode também ceifar na ceara dos mundos e

a nossa Terra, sob a infinita lamina, é como a

chama, que mal bruxuleou, já vasqueja para

morrer (549):

Nós cuidamos que este mundoQue nos dura para sempre;É uma luz que se acendeE se apaga de repente!

Page 63: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 61

Sim! tudo é vão, efémero, transitório pe-

rante a Morte; mas, esperança suprema! oPovo afirma numa iluminação íntima, tradu-

zindo-se em formas riquíssimas, que o Amorvencerá a Morte, dilatando-se para alem daTerra e do Tempo, por toda a Eternidade.

Toda a Eternidade . . . repare-se, porque

Antes da noite ser noite,

Antes do dia ser dia.

(552) na caótica indecisão do Cosmos, ou noseio de Deus, já os coraçõis dos amantes an-

siosamente se buscavam e morriam um pelo

outro

!

Essa sublime cantiga é o complemento daoutra célebre quadra, traduzida por Byron e

Musset, uma das mais belas do nosso Can-cioneiro:

Chamaste-me tua vida,

E eu tu'alma quero ser;

A vida acaba co*a morte,A alma eterna ha de ser!

Mas como estas, ha um feixe de formosís-

simas cantigas, com que este Poema termina,

egualmente repassadas dessa insaciabilidade

amorosa, pequeninas epopeias, batidas dumsopro religioso e rimadas com o próprio vôo

Page 64: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

62 Cancioneiro Popular

arrebatado de duas asas, que escalam vitorio-

samente o Ceu.

Pela essência e sublimidade emotiva nãosão inferiores àquela e nem pela essência, nempela pureza da forma lhe cedem essas, em queo homem, já afirmada a eternidade do Amor,se queixa, na sepultura, dos males que os vi-

vos lhe causam (562) ou surge d'alêm túmulo,

espectro, transido d'Amôr, para dar o último

adeus à pessoa amada (563):

Já morri, já me enterrei,

E agora já estou aqui;

Nem a terra me comiaSem me despedir de ti!

O drama tornou-se epopeia; mas os actos

do herói, transcendendo a Vida, realisam-se

no Mistério. É a victoria definitiva do Espí-

rito, o triunfo do Amor invencivel. A alma

despiu-se de todas as aparências, desfez-se

o corpo em cinza, sumiram-se as riquezas, tom-

baram de rastos no pó as ambições e as

vaidades e sobre a destruição de todas as

coisas efémeras o Amor ergue a voz e canta

a sua eternidade.

Ah! mas nós podemos ainda, acompa-

nhando os voos dessa imaginação arrebatada,

assistir ao desaparecimento da própria Terra,

que aliínentou os nossos sonhos, e, chama de

luz passageira, tão depressa se ergueu, logo

Page 65: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Poema do Povo 63

se extinguiu, e, quando, como um deus es-

tranho à sorte dos astros, contemplamos as

cinzas do Mundo, vemos que ha uma braza

ainda, que lampeja, entre os destroços fume-

gantes, clarões de relâmpago:— é o coração

dos portugueses, que ha de ficar por toda a

Eternidade ardendo em puro Amor!

Page 66: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 67: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

III

CONCLUSÃO

CHEGADOS que somos ao fim do nosso

estudo,— a que chamamos crítico, à

falta de palavra melhor, e que, a

não ser a demasia das palavras, melhor-

mente seria chamado estudo de interpretação

e análise estética,— escarvoado a largos tra-

ços, podemos resumir ainda algumas obser-

vaçõis gerais sobre o Cancioneiro do Povo.

Certas conclusõis a que chegamos deviamser conjugadas com os elementos epo-histó-

ricos fornecidos pelo Romanceiro e com os

elementos musicais, que o estudo das melo-

dias populares nos ha de certamente trazer

a confirmar as afirmaçõis do Cancioneiro.

Infelizmente quanto ao Romanceiro, ha

ainda muitos problemas a resolver, sem o que

se não devem inferir conclusõis fáceis da sua

leitura, e quanto às melodias populares, reco-

lhidas apenas numa pequeníssima parte, estão

quasi inteiramente por estudar. Para o com-pleto estudo da poesia épica do nosso Povo, é

Page 68: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

66 Cancioneiro Popular

indispensável o estudo dalguns romances, cuja

originalidade é em parte ainda muito debatida.

Uma primeira conclusão nos dá a leitura

deste cancioneiro: a extrema simplicidade

morfológica das nossas cantigas. Quasi po-

deríamos dizer que o tipo único de versos é

a redondilha maior e da estrofe, a quadra.

Originalidade? Não, porque a quadra emredondilha maior é comum, a quasi todas as

naçõis da Europa. Pobreza? também não,

porque, se é certo que ha no Cancioneiro

dos outros povos maior variedade morfoló-

gica, talvez em nenhum outro a quadra atin-

gisse a perfeição do nosso. No hespanhol,

por exemplo, em que ha maior variedade de

formas poéticas, a quadra não atinge a per-

feição do nosso Cancioneiro : as rimas toantes

são em muito maior número que nas nossas,

chegando quasi a egualar o numero das rimas

consoantes e até as próprias toantes são

muito mais imperfeitas. Também o nosso

Povo, quasi reduzido unicamente a esse tipo

de verso e estrofe, conseguiu o máximo de

emoção e pensamento no mínimo de frases

poéticas. Ora na mesma quadra se formula a

pergunta e se dá a resposta, num começo de

realisação teatral, como por exemplo:

Oh! meu amor, meu amor.Quando me has de tu esquecer?— Quando Deus me não der vida

Nem olhos para te ver.

Page 69: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Conclusão 67

ora se exprime um pedido, seguido da sua

imediata realisação:

Deita-te daí abaixo,

Meu sol, minha luz, meu bem.Eu te apararei nos braços.

— Ai! Jesus, que ela lá vem!

ou todo um pequenino drama se resume

numa cantiga:

Abre-me a porta que eu morro;

Não abras que eu já morri:

Já que foste assim ingrata,

Fica-te agora sem mim!

Já morri, já me enterrei

E agora já estou aqui . . .

Quanto à essência, as maiores conclusõis

a tirar são as que dizem respeito ao senti-

mento religioso e ao Amor. Existem nonosso Cancioneiro elementos vários para o

estudo do religiosismo popular lusitano. Oque desde já podemos afirmar é que esse

religiosismo está em oposição ao catolicismo,

pois é antes, nas suas mais elevadas manifes-

taçõis, de forma panteísta. Para o português

o Amor é de essência divina e manifesta-se

em toda a Natureza; e o próprio Amor ou a

Saiidade é a origem da imortalidade da Alma,que se eternisa para amar eternamente dum

Page 70: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

68 Cancioneiro Popular

Amor, divino na sua humanidade, e nuncapara os perpétuos castigos do Inferno ou as

perenes glórias do Ceu.

Se é certo que o cancioneiro do Povo re-

vela egualmente o amor à Natureza e ao tra-

balho e virtudes de esforço sofredor e heróico

aliadas a um superior sentido moral, a

verdade é que o tema predilecto da sua

poesia é o Amor e um amor único, ja-

mais sentido ou cantado pelos outros povos.

De velha data que estrangeiros e nacionais

observaram o natural amoroso, o tempera-

mento amaviôso, o exclusivo ou predomi-

nante sentir da saiidade e o «morrer d'amor»

dos portugueses. Seriam demoradas e quiçá

fastidiosas as citaçõis duns e outros, desde

Cervantes a Edgar Quinet e de D. Duarte ou

D. Francisco Manuel de Melo á Senhora

D. Carolina Michaêlis de Vasconcelos. A umcaso único não fugiremos.

Pela leitura deste cancioneiro conclui-se

que o amor dos portugueses é sentimento

religioso e de essência divina, e em conse-

quência de caracter absoluto. O Amor tem

em si mesmo a sua causa e fim: amar por

Amor e para o Amor, sem que outro fim seja

necessário invocar a legitimá-lo. Ha ainda no

nosso amor uma ternura bem nossa, em que

um delicadíssimo desejo dos sentidos se alia

a uma profunda ansiedade ideal, traduzin-

do-se em tímido encantamento, em volúpia

sagrada e extática adoração. Em certas canti-

Page 71: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Conclusão 69

gas d'amôr o desejo ergue-se como umanuvem de místico incenso e os versos can-

tam, arrulham, ciciam com o murmúrio com-binado das orações e dos beijos.

A Saudade, «sentido do coração», no ilu-

minado dizer de D. Duarte, é o mais alto

amor, porque vê em espírito e perfeição e o

seu drama épico, por ser a contínua vitória,

continuamente dolorosa, porque, iludindo o

espaço, vence na Vida e, transcendendo o

tempo, vence na Eternidade. E como é abso-

luto, o Amor não tem princípio nem fim: en-

volve-se abismalmente num círculo eterno.

Jamais esse profundo anseio de eternisar

o Amor se nos revelou com tamanha agu-

duza e profundidade, como na poesia portu-

guesa e designadamente na popular: apenas

uma vez esse mesmo alto pensamento nos

surgiu animando versos sublimes em obra

estrangeira: foi nalguns sonetos de Mrs.

Elisabeth Barret-Browning, a maior de quan-

tas Poetisas conhecemos. Um deles termina

assim

:

I love thee with breath,

Smiles, tears, of ali my life! and, if God choose,I shall but love thee better after death.

SON. XLII

Amo-te com o sopro da respiração, com ossorrisos e as lágrimas, com toda a minha vida! E,se Deus o permitir, amar-te-hei ainda mais depoisda morte.

Page 72: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

70 Cancioneiro Popular

E outro:

But love me for love's sake, that evermoreThou may'st love on trough Iove's eternity.

SON. XIV

Antes me ames pelo amor de amar, para quepossas amar-me eternamente, na eternidade doamor.

Mas a esses sonetos, a autora do poemetoCatarina to Camoens, adeus de Saudade,

dirigido por Catarina ao poeta exilado, deu o

título de Sonnets from the Portuguese, so-

netos portugueses, indicando assim clara-

mente a origem do profundo espirito que os

animou.

Que seja este o núcleo mais resistente e o

rosto original e inconfundível do espírito por-

tuguês é para nós induvídavel verdade. Aarte popular, primeiramente é a mais original

por menos influenciavel; nem escolas, nemcorrentes, nem ideais literários e até, desgra-

çadamente, uma isoladora ignorância secular

tem furtado o nosso Povo à mínima parcela

de cultura do espírito. Se alguma influência

houvéssemos de buscar-lhe teríamos que se-

guir-lhe a memoria ancestral, atravez do san-

gue, até às remotas origens étnicas. Essa

influência deve existir, mas não virá provar,

assim o julgamos, nada contra os assertos

da nossa originalidade espiritual. A arte po-

Page 73: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Conclusão 71

pular é, pois, por mais original, a mais ver-

dadeira.

E, como tal, a virtualidade íntima e aparte,

que surge do nosso cancioneiro popular está

confirmada na literatura e realisada na histo-

ria. Quanto á história, considerai: o mesmoanseio de eternisar o amor que alarga e bate

as azas na cantiga popular é que leva o alu-

cinado D. Pedro a escrever sobre o túmulo

de Inês, na pedra, religiosamente lavrada pela

sua paixão aquele trágico adeus: «Até ao fim

do mundo » ; mais tarde o Conde de Avran-

ches a exclamar para o infortunado amigo e

Infante D. Pedro : «... Se as almas no outro

mundo podem receber serviço uma das ou-

tras; no dia da vossa morte, a minha irá

acompanhar e servir para sempre a vossa!»

e ha de um dia fazer com que esse Povo,

porque lhe roubam a glória, durante séculos

fique sonambulamente fiel ao último rei quea representou!

Trabalho, virtude, amor, heroísmo e reli-

gião, tudo aqui está.

Poetas, navegadores, heróis e santos, todos

eles, os lusíadas, vieram aqui beber o san-

gue no coração do Povo.

Estes são os Lusíadas do Povo, os Lusía-

das eternos, porque daqui nascem e nasce-

rão os fastos de todas as nossas epopeias.

Vejam que o sentido épico existe latente noespírito do Povo: quando ao seu esforço

arrancaram a epopeia nacional, fez do último

Page 74: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

72 Cancioneiro Popular

herói um culto religioso de Saudade e por-

que lhe deixaram para a actividade supremado espírito unicamente o Amor, fez desse

sentimento uma epopeia!

Venham aqui os heróis e os poetas d'hoje:

leiam, decorem este Poema.Sente-se por vezes que estamos nos cumes

duma montanha: elevação, pureza d'ambien-

te, o largo sopro que toca as alturas, a verti-

gem e o frémito dos sublimes entusiasmos,

tudo nos afirma que nos acercámos dalgumagrande verdade eterna e entra comnosco á

orgulhosa convicção da própria grandeza.

Tudo quanto pode tornar excelso um poeta

aí está: é o relevo da imagem directa, a vio-

lência aguda da expressão, a verbalisação de

estados d'alma indefenidos, a exactidão doconceito, a leveza na ironia e a largueza no

voo, enfim o que torna a forma clara, concisa,

própria, a única capaz de definir certa emo-

ção ou pensamento. Esse mesmo poder se

revela na excelência dos afectos e elevação

dos pensamentos;ique profundidade e fir-

meza no sentir, que intima e melindrosa deli-

cadeza nos impulsos da alma, que extra-

nha consciência das mais ocultas forças doespirito, que instinto directo da grandeza doUniverso, da imensidade da Vida que passa e

que sublime intuição do mistério divino que

nos rodeia!

Não! Não é decerto a bárbara e dramática

violência do hespanhol, não é também a ele-

Page 75: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Conclusão 73

vação metafísica, que, a espaços, ilumina al-

guns cantos franceses ou o instincto da li-

berdade, a comunicação com a Natureza, o

poder imaginoso da Germânia ou o alado

arrojo de certos cantos italianos.

Mas nós temos uma segurança e energia

tão funda de Amor, de tão carinhoso e timido

enleio, e um tão alado [anseio de o eternisar,

como nenhum outro. Criámos também umfundo sombrio ao nosso espírito em que entra

o receio de quem aperta ao coração o objecto

amado, a defendê-lo da morte, e a elevada me-lancolia da Alma que comunica secretamente

com o Mistério.

.Dissemos, a principio, que este livro daria

aos que atentamente o lessem, uma grandelição. Voltamos a afirma-lo: este livro é umabela lição de Esperança : quando surgirá en-

fim a geração, que reconhecendo a seriedade

e arraigada profundidade afectiva deste povolha saiba encaminhar para os nobres desti-

nos?!

Page 76: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 77: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

ANTOLOGIA

Page 78: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 79: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A NATUREZA E A TERRA NATAL

1

Sou gaivota, sou gaivota

E venho da beira-mar;

Trago cantigas na bocaPra quem não souber cantar.

Oh! terra, que tudo crias,

Oh! terra, que tudo comes,Oh! terra que has-de dar conta

Das mulheres mais dos homens.

Quem disser que o sol que chora.

Digam todos que é mentira;

Como pode o sol chorar.

Se ele é o rei da alegria?!

Oh! noite que vaes crescendo.

Tão cheia de escuridão.

Tu és a flor mais bela

Dentro do meu coração!

Page 80: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

78 Cancioneiro Popular

Eu sou filho das estrelas,

Junto do Ceu fui criado,

Perdi-me na noite escura,

Fui em teu peito encontrado.

Já chove água das nascentes

Já correm os regatinhos;

Já os campos são contentes,

Já cantam os passarinhos.

Desceram do ceu á terra

Dois anjos embaixadoresA buscar a Primavera,

Que lá no ceu não há flores.

8

Embarquei-me no mar largo,

Já perdi vistas á terra,

Já não vejo senão CéoAgua e vento que me leva!

9

Minha mãe é uma ribeira.

Meu pai um rio corrente;

Sou filho das aguas claras,

Não tenho nenhum parente.

10

Oh! linda estrela do norte

Para onde caminhais?

Caminho para o nascente

Pra onde correm as mais.

Page 81: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Natureza e a Tei^ra Natal ?§

11

Muito lindo é o Ceu,Todo cheio d'alegria;

Lá não ha noite, nem sombra,Tudo é um claro dia!

12

O passarinho no bosqueBusca algum da sua cor;

Mostra em tudo a NaturezaA doce união do amor.

13

O rouxinol canta alegre

Por ter a dama no ninho;

Olhem como é constante

O amor dum passarinho.

14

Até os peixes no mar,

Aqueles lá mais no fundo,

Também têm os seus amores,Como nós cá neste mundo.

15

A flor do manjaricãoNão abre senão de noite,

Para não dar a saberOs seus amores a outrem.

16

Até o milho miúdoTem sua velhacaria

Conserva a água no bico

Para beber todo o dia.

Page 82: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

80 Cangioneii^o Popular

17

As pedras, com serem pedras,

Senfos golpes que lhe dáo;

Como não hei-de eu sentir

Essa tua ingratidão.

18

É o Sol um lavrador

O Sete-estrelo abegãoA Lua é o celeiro

Onde o sol recolhe o pão.

19

Não cortes a oliveira,

Não lhe metas o machado,Que dá fruto que alumia

A Jesus crucificado.

20

Chamais á amoreira triste: ,

Mas que tristeza lhe achais?!

A amoreira cria o sirgo

Com que vós vos enfeitais.

21

Deitei-me e adormeci

Debaixo da laranjeira,

Caiu-me uma flor no rosto:

Ai! Jesus, que também cheira!

22

Oh! ciprestre, verde-triste.

Cofre cia minha figura.

Verde qual minha esperança,

Triste qual minha ventura.

Page 83: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Natureza e a Terra Natal 8^1

23

Lisboa por ser Lisboa

E ter navios no mar,

Não é como a minha terra,

A mais linda em Portugal

24

Adeus bairro de Silvalde,

Em te deixar bem me peza;

Inda espero de tornar

Ao centro da natureza.

25

D'aqui para a minha terra

Tudo é caminho é chão;

Só ha rosas só ha cravos

Que eu puz pela minha mão.

26

Chamaste-me trigueirinha,

Isto é de andar ao sol;

Toda a fruta, que é sombria,

Nem por isso é da melhor.

27

Oh! que vida regalada

Hei-de eu levar este verão

Pelos atalhos das vinhas

Com meu amor pela mão!

28

Adeus campos, adeus vales.

Adeus amor que eu amei;Inda hoje adoro o sitio.

Onde comtigo falei.

Page 84: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

82 Cancioneiro Popular

29

Pena triste, pena triste,

Oh! quem não ha-de chorar!

Ver-me assim em terra alheia,

Fora do céo natural

30

Oh! ares da minha terra

Vinde por aqui, levai-me.

Que os ares da terra alheia

Nâo fazem senão matar-me.

31

Oh! Brazil, terra de enganos,

Quantos lá vão enganados;Tantos lá vão por três anos

E lá ficam sepultados.

32

O sol nasce de Castelã:

Queres amor que nós lá vanios?

Não quero que o sol esteja

Em poder dos castelhanos.

Page 85: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

II

o ELOGIO DO TRABALHO E O VALORHERÓICO

33

Trabalhai, dobrai o corpo,

Se quereis ter algum bem

;

Olhai que nas eras de hoje

Quem não trabalha não tem.

34

Toda a moça que não temSeu amor trabalhador

Não é moça, não é nada,

Não tem prenda de valor.

35

Eu quero bem à pobreza,

A riqueza não me importa;

Trabalho, mato o meu corpo.

Não devo contas à morte.

36

Oh! Mar, tu és um leão,

Que a todos queres comer;Não sei como os homens podemAs ondas do Mar vencer.

Page 86: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

84 Cancioneiro Popular

37

A sorte do marinheiro

É uma verdade pura:

Anda sempre a trabalhar

Em cima da sepultura.

38

Meu amor é marinheiro

E' do Mar, por vida minha,

Se elle não fora do Mar,

Não vinha aqui a sardinha.

39

Eu sou ganhão de manzeira,

E lavro em terras de barro,

Trago junta carreteira,

Onde passo tudo esgarro.

40

Eu sou ganhão de manzeimE não no posso negar,

Trago junto carreteira

Que faço a terra estalar.

41

Todos me lavam a cara

Do meu amor ser ganhão;É bonito, gosto dele,

É honrado e ganha pão.

42

O meu amor é carreiro,

Tem uma vida arriscada,

Ao descer uma ladeira,

Ao cerrar duma carrada.

Page 87: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

o Elogio do Trabalho e o Valor Heróico 85

43

Alfaiate ou sapateiro,

Isso sim que é bom artista

Trabalha ganha dinheiro,

Sempre está à nossa vista.

44

Eu hei de abalar pr'à eira

Só p'ra casar c'um ratinho Q),

Só pr'a andar de feira em feira:

«Quem merca pano de linho!»

45

Contrabandista valente,

Corri campinas e vais

Com guardas na minha frente.

Com pistolas e punhais.

46

Trigueirinha e engraçada,

Sou filha dum lavrador.

Vou ao mato vou à lenha,

Assim me quer meu amor.

47

Não quero saia de chita,

Que me hão de chamar senhora,

Quero saia de estamenha.Que é traje de lavradora.

C) Ratinho é o nome que no Alentejo se dá aos jorna-

leiros, que do Minho ou da Beira para ali vão trabalhar.

Page 88: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

86 Cancioneiro Popular

48

O meu amor foi à lenha

De sapatos e de meias,

Tamanho foi o carrego,

Arrebentaram-lhe as veias!

49

Viva a malta e trema a terra,

Daqui ninguém arredou;

Quem ha-de temer a guerra,

Sendo homem como eu sou?

50

Eu sou como o gavião.

Que no ar faço firmeza.

Quando abaixo até ao chão,

Nunca alevanto sem presa.

51

Oh! sol! oh! lua! oh! estrelas!

Andae dae luz em meu peito.

Vinde achar morada firme

Em palácio tão estreito.

52

Eu fui a primeira onda,

Que no mar se levantou

Trez dias choveu areia.

Toda a praia se arrazou!

Page 89: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

III

AMEAÇA E CRIME DE MORTE

53

Se ha por ahi alguém,

Que na estrada se atravesse,

Traga mortalha a vestir

E confessor que o confesse.

54

Olha como ficam bemNa minha mão cinco dedos

Para jogar bofetadas

A quem andar com enredos.

55

Oh! cantador corta as barbas

E semeia-as numa leira;

Inda hoje has-de ficar

Aos pés desta cantadeira.

56

Canta, camarada, canta,

Canta que ninguém te afronta.

Que esta minha espada corta

Dos copos até à ponta.

Page 90: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Cancioneiro Popular

57

Oh! rapaz enrola a esteira,

Mete a espada na bainha;

Não has-de fazer poeira

Em casa de gente minha.

58

Oh ! quem me dera encontrar-te

No caminho mais estreito

Para eu brigar comtigo

Com faca de peito a peito.

59

Tenho sina de morrer

Na ponta d'uma navalha;

Tod'á vida ouvi dizer

Morra o homem na batalha.

60

Eu hei-de morrer d'um tiro

Ou d'uma faca de ponta,

Se hei-de morrer amanhã,Morra hoje, tanto monta.

61

Oh ! meu amor quem me dera

Uma faca bem agudaPara dar uma facada

Na minha triste ventura!

62

O meu coração por artes

Entrou no teu pensamento;

E' como o crime de faca

Que nunca tem livramento.

Page 91: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

IV

MÁXIMAS E PENSAMENTOS

63

Não ha machado que corte

A raiz ao pensamento,Não ha letrado que diga

O que tenho no intento.

64

Eu cantando, estou calada,

Chorando me estou a rir,

Andando, fico parada,

Desperta, estou a dormir.

65

Ninguém descubra o seu peito

Por maior que seja a dor.

Quem o seu peito descobreÉ a si^^mesmo traidor.

66

Oh! mar largo, oh! mar largo,

Oh ! mar largo sem ter fundo.Mais vale andar no mar largo

Que andar nas bocas do mundo.

Page 92: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

90 Cancioneiro Popular

67

Desprezaste-me por pobre,

A pobreza Deus a amou

;

Não me penteio por ti,

Assim pobre como sou.

68

Oh! meu amor não desprezes

O pobre por nada ter,

Pode a riqueza faltar-te

E o pobre não te querer.

69

Oh ! alta serra da neve.

Onde se pinta a lindeza

;

Quem tem a alma no CéoPara que quer mais riqueza?

70

Como alcatruzes da nora.

São as vaidades do mundo;Os que enchem vão acima,

Os que vasam vão ao fundo.

71

Valha-me Deus tanto luxo

Com tanta ostentação!

Tanto calote no povo;

Quem ganha é o esrivão.

72

Oh! meu amor, se tu queres

Toda a vida viver bem,Has-de ouvir, has-de calar,

Não dizer mal de ninguém.

Page 93: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

MÁXJMAs E Pensamentos 91

73

Fui chorar ao pé da águaLágrimas de sentimento,

A água me respondeu

:

Nada cura como o tempo.

74

Tod'a moça que é bonita

Mais valera não o ser,

É como a pêra madura,Todos a querem comer.

75

Rapariga dá-te ao mundo,Não queiras morrer donzela,

Não queiras levar teu brio

Para debaixo da terra.

76

Minha mãe case-me cedo.

Enquanto sou rapariga.

Que o milho sachado tarde,

Não dá palha nem dá espiga,

77

A rosa quer-se apanhada,Antes de sair o sol,

O cravo ao meio dia

P'ra seu cheiro ser melhor.

78

Quem pintou o amor cegoNão o soube bem pintar,

O amor nasce dos olhos.

Quem não vê não pode amar.

Page 94: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

92 Cancioneiro Popular

79

Quem pintou o amor cegoSoube bem o que pintou

;

Amor firme a nada atende,

É pr'a onde se inclinou.

80

Toda a moça que namoraPelos olhos se conhece

:

São tristes pela manhã,Alegres quando anoitece.

81

Rapariga se casares

Toma conselho primeiro;

Mais vale um rapaz sem nadaDe que um velho com dinheiro.

82

Namorados falai baixo

Que as paredes tem ouvidos, •

Os segredos mais secretos

Esses são os mais sabidos.

83

Oh! amor procura agrado,

Não procures formosura.

Formosura sem agrado

É peor que a noite escura.

84

Foste pedir-me a meu pai,

Sem saberes o querer meu;Em tudo meu pai governa,

Mas nisso governo eu.

Page 95: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Máximas E Pensamentos 93

85

Como pode um pai p^ribir

Que uma filha queira bem ?

Se a lei do pai é sagrada,

O amor mais força tem.

86

Ó pais bárbaros, cruéis,

Que uma filha abandonais;

Por ela cair num erro

Já ao mundo a entregais.

87

Quem tiver filhas no mundo,Não fale das malfadadas,

Pois as filhas da desgraça

Também nasceram honradas.

88

Não se riam de quem chora,

Que podeis chorar também;* Quem chora também se ria

Dos males que agora tem.ÍN

i'

Não cuides, j>Qgpre deixares.

Que no céâá|IWbaste palma.Eu caí pllrífíocente

:

;graçada da tu'alma!

90

Quem nasce no triste fado

Nunca pode ter bom fim;

Quem mal anda mal acaba,

Ponham os olhos em mim.

Page 96: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

94 Cancioneiro Popular

91

Vai-se dia, vem a noite,

Vai-se a noite, o dia vem,S'tou gostosa de mim mesmo.Não quero bem a ninguém.

Page 97: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

V

IRONIAS E GRACEJOS

92

Quatro coisas quer um amoDum criado que o serve,

Erguer cedo, deitar tarde,

Comer pouco, andar alegre.

93

Minhas faltas me nomeias,

Só para ás tuas não olhas;

Oh! Hngua, que não semeias

Semente, que não recolhas!

94

Aquela menina cuida

Que não ha outra no mundo!Não é o poço tão alto

Que se lhe não veja o fundo.

95

Além vem a presunçosa

Rua cheia, sem ninguém.Ela cuida que é bonita,

Ela nada disso tem.

Page 98: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

96 Cancioneiro Popular

96

Além vem a presunçosa,Até no andar tem brio,

Lá vem o assucar em ponto,De doce mete fastio.

97

Entendo que na mulherA pequenez é um dom;Uns dizem do mal o menos,Outros dizem pouco e bom.

98

As senhoras da cidadeTeem grande opinião;

Não sabem como hão-de andar,Nem poisar os pés no chão.

99

Coitadinhas das mulheres.Já vivem tão desgraçadas!Pra passearem nas ruas.

Vão com as pernas atadas.

100

As senhoras com as modasParecem umas serpentes;

Andam metidas em sacos,

Metem medo aos inocentes.

101

Diz-me lá tu cantador

Quantas penas tem um pato,

Quantos picos um ouriço.

Quantos cabelos um gato.

Page 99: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Ironias e Gracejos 97

102

Está bem feita a pergunta,

Agora respondo eu:

Penas, picos e cabelos

Só tem os que Deus lhe deu.

103

Tu dizes que és poetaNa matéria do cantar;

Pois diz-me lá, por cantigas,

Quantos peixes ha no mar?

104

Quantos peixes ha no marEu to vou já a dizer:

São metade e outros tantos,

Fora os que estão por nascer.

105

Eu já vi um valentão

A brigar c'uma cidade;

Logo ao primeiro encontrãoDerrubou mais de metade.

106

Chovam raios de toucinho,

Centelhas de queijo mole,Venham quartilhos de vinhoQue este maltez tudo engole.

Page 100: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

VI

AMOR FILIAL

107

Oh! minha mãi da minh'alma,

Oh! meu pai do coração,

Duzentos anos que eu viva

Não lhes pago a criação.

108

Minha mãi, minha mãisinha,

Minha mãisinha do Céo,

Que me trouxe nove mezesDebaixo do seu mantéo.

109

Minha mãi, minha mãisinha,

Oh! minha mãi, minha amiga,

Quem perde o amor de mãi

Perde tudo nesta vida.

110

Minha mãi que me criou

Ao peito com tanto mimo,Se um dia lhe pagar mal.

Não foi por falta de ensino.

Page 101: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor Filial 99

111

Não ha amor de mulher,

Por mais pura e virtuosa,

Não ha amor que eu compareAo duma mãi carinhosa.

112

Já me morreu minha mãi,

Minha doce companhia,Caixinha dos meus segredos.

Espelho aonde eu me via.

113

Minha mãi era uma santa.

Por quem sempre chorarei.

Porque amor egual ao dela

Nunca mais encontrarei.

114

Quando deixei minha aldeia,

Olhei para traz chorando:Minha mãi do coraçãoTão longe me vais ficando.

115

Oh! morte, tirana morte,Que mataste minha mãi!Deixaste-me ao desamparo,Sem abrigo de ninguém.

Page 102: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

VII

RELIGIOSIDADE POPULAR

116

ORAÇÃO AO SOL

Vou-me despedir de vós,

Adeus, oh ! Sol, que te vais,

Deixais-me ficar sósinha

No meio dos pinheirais.

Oh! Sol, torna amanhã,Eu quero-te ver nascer.

Só a vós é que eu adoro,

Só por vós quero morrer. Q)

117

DO TERÇO DA AURORA (2)

Sob'rana, divina Aurora,

Oh ! Mâi do eterno Sole,

Quem como vós poderá

Soccorrer-nos melhore.

(') Veja-se a pag. 34

(2) Veja a pag. 35, 36 e 37.

Page 103: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Popular 101

118

ORAÇÃO AO SOL NASCENTE

Deus te salve, Sol divino

!

Tu corres o mundo inteiro

;

Viste lá o rneu marido?Se tu o viste não mo negues,

Não mo negues, não negues, não.

Esses raios que vens deitando.

Ao teu nascimento,

Sejam dores e facadas.

Que atravessem o seu coração;

Que ele por mim endoudeçaQue ele não possa comer,

Nem beber, nem andar, nem amar,

Nem com outra mulher falar,

Nem em casa particular.

Todas as mulheres que ele veja

Lhe pareçam cabras negras,

E bichas feias.

Só eu lhe pareça bem no meio delas!

119

Nossa Senhora da VeigaÉ pequenina e airosa;

Vai a gente de tão longe

Só p'ra ver tão linda rosa.

120

Nossa Senhora da Póvoa,

Minha boquinha de riso,

Minha maçã vermelhinha,

Criada no Paraíso.

Page 104: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

102 Cancioneiro Popular

121

Nossa Senhora da VeigaEla lá vae Douro, acima,

Com a cestinha no braço

Fazer a sua vindima.

122

Além vem a barca nova,

Que fizeram os pastores,

Nossa Senhora vem dentro.

Toda coberta de flores.

123

Oh ! mar largo, oh ! mar largo

Cheirava que rescendia:

Era o manto da Senhora,

Que um marinheiro trazia.

124

A Senhora do SameiroDá um cheiro que rescende:

É o manto da Senhora,

Que pelo mundo se estende.

125

A rola que vai rolando,

Onde irá fazer o ninho?

Aos pés de Nossa Senhora

No mais alto do raminho.

126

Esta noite ç noite cheia,

Não é noite de dormir.

Das onze pra meia noite

Stá a virgem pra parir.

Page 105: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Popular 103

127

Pastor do gado branco,

Não arranques rosmaninho,Pois é onde a Virgem pura

Estende os seus cueirinhos.

128

Cantai anjos ao Menino,Emquanto a Virgem dorme.Mas cantai-lhe de mansinho,Com que a Virgem não acorde.

129

ORAÇÃO DE NATAL

A Virgem Nossa SenhoraStá no portal de BelémCo seu menino nos braços,

Jesus ! que está tanto bem

!

Cantou-lhe uma cantiguinha:

Filho meu, que te farei ?

Não tenho cama nem berço.

Em braços te embalarei.

Com as lágrimas dos olhos,

Filho meu, te lavarei.

Na manguinha da camisa.

Filho meu, te aUmparei.

Nas mantilhas do meu rosto.

Filho meu, te embrulharei. (^)

(1) Esta pequenina poesia lembra na forma os roman-ces populares. Teófilo Braga classifica-a até de romancesacro. Não a julgamos, todavia, descabida no Cancioneiro.

Page 106: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

104 Cancioneiro Popular

130

Eu hei-de ir para o presépio

Assentar-me a um cantinho,

Só p'ra ver o Deus meninoA nascer tão pobresinho.

131

No presepe de BelémQuiz nascer o Deus meninoNum tempo de tanto frio,

Desprezado e pobresinho.

132

Pastores do verde prado,

Deitai o gado á verdura

;

Vinde ver o Deus meninoNos braços da Virgem pura.

133

Oh! meu amado Menino,Boquinha de sangue e leite

;

Vossa mãi é uma rosa.

Vosso pai um ramalhete.

134

Oh! meu amado Menino,Boquinha de requeijão

;

Quem vo-la comera toda

C*um bocadinho de pão.

135

Oh! meu amado Menino,Oh! minha tão bela flor;

Quizestes ser pequenino.

Sendo tão alto senhor.

Page 107: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Populaí^ 105

136

O Menino está dormindoNas palhinhas despidinho

;

Os anjos lhe estão cantando

:

Pobre amor tão pobresiuho.

137

Eu hei de dar ao MeninoCinco pedras preciosas,

Cada pedra cinco quinas,

Cada quina cinco rosas.

138

Oh! meu menino Jesus,

Quem vos deu, porque chorais?

Deram-me as moças na fonte,

Não hei-de lá tornar mais.

139

Oh! Anjo da minha guarda,

Que dais aos vossos romeiros?

Dou-lhe água da minha fonte.

Sombra dos meus castanheiros. (^)

140

Santo António me acenouDe cima do seu altar;

Olha o maroto do santo.

Que também quer namorar

!

(í) Esta quadra canta-se na romaria anual do Anjo da

Guarda em Alpedrinha (Beira-Baixa).

Page 108: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

106 Cancioneiro Populaf^

141

Fui ao mato cortar lenha,

Santo António me chamou,Quando o santo chama a gente,

Que fará quem já pecou

!

142

Lá vem o Baptista abaixo,

Vestido de azul ferrete.

Numa mão traz a custódia

E na outra um ramalhete.

143

Além vem o barco novo,

Que fizeram os pastores,

Trazem dentro S. João,

Todo coberto de flores.

144

Para fazer as fogueiras

Na noite da sua festa,

S. João traz lá do monteUm braçado de giestas.

145

Ai! meu rico S. João,

Ouve as trovas dos festeiros

Faz as moças bem doidas

E os velhos bem gaiteiros.

146

S. João, quando era novo,

Tinha uns sapatinhos brancos,

Pra visitar as raparigas

Domingos e dias santos.

Page 109: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Popular 107

147

S. João era bom moço,Se não fora tão velhaco,

Foi com três moças á fonte,

Foi com três, veio com quatro.

148

S. João, por ver as moças,Fez uma fonte de prata;

As moças não vão à fonte

S. João todo se mata.

149

S. João se adormeceuNas escadinhas do coro,

Deram as freiras com ele

Depenicaram-no todo.

150

Lá vem o Baptista abaixo.

Comendo num cacho d'uvas,

Dando os bagos ás solteiras,

Os engaços ás viuvas.

151

Lá vem o Baptista abaixo,

Subindo aquellas ladeiras,

Dando abraços ás viuvas,

E beijinhos ás solteiras.

152

Minha avó tem lá em casa

Um Santo António velhinho;

Em as moças não me querendo.Dou pancadas no santinho.

Page 110: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

108 Cancioneiro Popular

153

Canta o pardal no loureiro,

O rouxinol na silveira;

Os padres cantam no coro,

Rogam a Deus por dinheiro.

154

Todos os padres de missa

Aos infernos são chamados;Inda eles tem mais filhos

Que os homens que são casados.

155

Não ha padre que não seja

Amigo de namorar:É desforra que lhe tiram

Prós não deixarem casar.

156

Menina se fores á missa

Põe-te para o pé do coro.

Que o padre é muito ratão,

Também busca o seu namoro.

157

O padre quando namoraLogo põe a mão na crôa,

Namora padre, namora.Que Roma tudo perdoa.

158

O meu amor é um padre.

Padre a quem eu quero tanto;

Inda hei-de ir a pé a RomaPedi-lo ao Padre Santo.

Page 111: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Popular 109

159

Tomei amores com um padre,

Nunca melhor coisa fiz:

Logo me fez uma saia

Da sua sobrepeliz.

160

ELEGIA DA VIDA DE FREIRA

Já não ha, não pode haverUma vida tão penosa

!

Sendo eu a mais formosa,

Me encerram, me encerram.

A meu pai aconselharamQue me não desse o meu dote,

Que era a minha melhor sorte

O ser freira, o ser freira.

Avisaram a Rodeira,

E juntamente a Abadessa,Que me metesse em cabeçaQue casaria, que casaria.

Eu como tolinha cria.

Cuidando que era verdade,Que qualquer freira ou frade

Casar podia, casar podia.

Cuidando que assim seria.

Que, depois de professar,

Inda podia casar.

Caí no laço, caí no laço.

Page 112: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

110 Cancioneiro Popular

Agora que aqui me achoMetida nesta clausura,

Parece-me noite escura

O meio-dia, o meio-dia!

Já não tenho alegria.

Que alegria posso ter?!

Lembrar-me eu que hei-de ir comerAo refeitório, ao refeitório!

Á sombra do dormitório.

Onde dormem outras madresSuspiram por seculares

Cá entre nós, cá entre nós.

Cuidar que dormimos sós

Nos causa grande agonia.

Sempre toda a noite fria

Me alevanto, me alevanto.

Acordo, faço o meu pranto

Toda me lavo em choro,

Em ouvir tocar ao coro

E às matinas, e às matinas.

Resando resas divinas

Lá por certos corredores.

Me lembram os meus amoresPor quem morro, por quem morro!

Toda a minha cela corro,

E vejo-me ao meu espelho

;

Vejo o meu rosto já velho ...

Malfadada! malfadada!

Page 113: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Religiosidade Popular IH

O regalo das casadas

É lograr os seus amores,

De contínuo os seus favores,

Mas eu nada, mas eu nada

!

Antes ser mulher casada,

De noite embalar meninos,

Do que ser freira professa

Tocar os sinos, tocar os sinos! (O

0} Ha outros cantos populares com esta mesma forma,

como a Elegia da Vida de frade, no Cancioneiro Popularde Teófilo Braga e a Paródia do Pelo Sinal, canto patriótico,

cheio de sarcasmo, que se refere ás invasõis dos franceses,

no Cancioneiro politico de Tomaz Pires. É até um dos raros

cantos patrióticos ou políticos, dignos de menção.

Page 114: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

VIU

A CRIATURA AMADA

161

Todas as águas que correm,Todas ao mar vão parar;

Todas as minhas cantigas

Ao meu amor vão a dar.

162

Toda a moça que é solteira

Pelo andar se conhece;Poisa o pé à miudinha,Todo o corpo lhe estremece.

163

Graças a Deus para sempre!Já vi a quem eu queria;

E já se defez a nuvem,Que o meu coração trazia.

164

Deus te salve rosa branca,

Já que foste aparecida!

Ha tanto tempo que andavasEntre as nuvens escondida.

Page 115: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Criatura Amada 113

165

Muito bonita é a chita,

Amor, do teu avental;

És a cara mais bonita,

Que passeia em Portugal!

166

O meu amor é mais lindo

Do que a rosa quando abre.

Todo o mundo mo cubica.

Nossa Senhora mo guarde!

167

És como a prata lavrada.

Como o leite sem a espuma;És perfeita, oh! minha amada.Sem teres falta nenhuma!

168

No dia em que tu nasceste

Todas as flores brotaram,

Té na pia do batismoLindos rouxinóis cantaram.

169

Uma estrela se perdeu,

Que no céo não aparece,

No teu peito se meteu,No teu rosto resplandece.

170

Vossos cabelos, menina,É que vos dão toda a graça

;

Parecem meadas de ouroAonde o sol se embaraça.

Page 116: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

114 . Cancioneiro Popular

171

Lindos cabelos que tendes,

Qúe vos dão pela cintura,

Á noite servem de cama,

De dia dé formosura.

172

Que o teu cabeio entrançado

Diz bem de toda a maneira,

Quem me dera te-lo breve

Sobre a minha travesseira.

173

Tens o rosto cor de rosa.

Os olhos da cor do Céo,

Tens o cabelo tão Hndo,

Não precisas de chapéu.

174

Tua boca me parece

Um botãosinho de rosa;

Tenho visto bocas lindas,

Mas nenhuma tão airosa..

175

Os olhos do meu amorSão dois navios de guerra;

. Quando vão para o mar largo.

Alumiam toda a terra.

176

Hei de te mandar dourar

Os arcos das sobrancelhas;

São laços de finas fitas,

Que prendem duas estrelas.

Page 117: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Criatura Amada 115

177

Quando abres os teus olhos,

Parece que nasce o dia;

Fui céguinho até agora,

Antes de os ver nada via.

178

Graças a Deus para sempreQue já ouvi tua fala:

Parece que vem do céo

E os anjos a acompanha-la.

179

Cantas bem, não cantas mal,

Garganta de pura neve,

Fonte d'agua cristaHna,

Onde o Sol divino bebe.

180

Tendes garganta de neve.

Nela se pode escrever;

Quem me fora estudantinho

Que nela aprendera a ler!

181

Vossos ombros engraçados,

(Engraçados que eles são!)

São apoio desses braços,

Firmeza das vossas mãos.

182

Tuas mãos são branca neve.

Teus dedos são lindas flores

Teus braços cadeia douro.Laços de prender amores.

Page 118: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

116 Cancioneiro Popular

183

A forma desse colete

E' o que mais me namoraRevela coisas bonitas,

Cá por dentro e lá por fora.

184

Esses vossos lindos peitos

Ambos de dois são eguais,

Não são altos, nem sáo baixos,

São como vós precisais.

185

Nunca vi cara mais linda,

Nem corpo mais delicado,

Nem andar com mais decência.

Nem falas com mais agrado.

186

Vossos pés são doiro fino.

São doiro puro e mais não,

Doiro toda sois formadaPrenda do meu coração.

187

Com fios doiro eu entrei

A notar vossos sinais.

Pois que menina sois doiro.

Oiro sois e assim ficais.

Page 119: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

IX

CONFISSÃO D'AMOR

188

Quem embarca, quem embarca,

Quem vem para o mar, quem vem?Quem embarca nos meus olhos?

Oh! que linda maré tem!

189

Entre o dizer e o calar

Ha guerra viva em meu peito,

O amor manda que fale,

Que cale diz o respeito.

190

Se eu te não amo deveras,

Deus do céo me não escute,

Estrelas não m'alumiem,A terra me não sepulte!

191

Eu amo-te sem mau fim

E' nobre a minha paixão

Sigo a lei da Natureza,

Oiço a voz no coração.

Page 120: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

118 Cancioneiro Popular

192

Nas partes que o sol descobre,

Nas que o sol não chega a ver,

Em toda a parte do mundoHei-de amar-te até morrer!

193

Tenho dentro do meu peito

Mil velas, mil castiçais,

No altar onde tu morasEstás tu e ninguém mais.

194

Olhei pró meu lado esquerdo,

Não achei meu coração;

De repente me lembrei

Que estava na tua mão.

195

Aqui tens meu coração

E a chave para o abrir;

Não tenho mais que te dar,

Nem tu mais que me pedir.

196

Aqui tens meu coração,

Se o queres matá-lo podes;Olha que estás dentro dele.

Se o matas também morres.

197

Oh! meu Deus dai-me juizo

E dai-me força e valor,

Que não posso resistir

Contra a força deste amor.

Page 121: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Confissão d'Amor 1 19

198»

Ribeirinha, ribeirinha

Ao largo é ribeirão,

Também tu és pequenina.

Mas chegas ao coração.

199

Quanto mais fundo é o poço,

Mais frescas lhe são as águas,

Quanto mais falo contigo,

Mais te aprecio as palavras.

200

Quem me dera a liberdade.

Que a restea do Luar tem

:

Entrava pela janela,

Ia falar ao meu bem.

201

Quem me dera ser pombinhoOu rolinho do sertão,

Que queria fazer o ninho

Dentro do teu coração.

202

Os meus olhos estão cegos

Mas não o sei confessar.

Se foi o Sol que deu neles,

Se será de te fitar.

203

Aqui tens a minha mão,Ajunta-a palma com palma.

Domina o meu coração,

Toma posse da minfi' alma.

Page 122: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

120 Cancioneiro Popular

204

O sangue das minhas veias

Gira no teu coração;

Os teus braços são cadeias,

Eu já me entrego à prisão.

205

Passei pela tua porta,

Meu coração se assustou

;

Poisei os olhos em terra,

Toda a gente reparou.

206

Que queres, meu bem, que queres

Que queres tu deste meu peito ?

Se queres o meu coração,

Mete a mão, tira-o com geito.

207

Em te ver eu vejo a DeusNão sei se peco ou se não

;

Trago a Deus na minh'alma,

A ti no meu coração.

208

O coração, alma e vida,

'

Tudo, tudo eu já te dei

;

Se tens tudo o que me anima.

Como sem ti viverei?

Page 123: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

DESEJO E POSSE

209

Oh! fonte, quem te chegara,

Oh! água, quem te bebera.

Oh! cravo, quem te cheirara,

Oh! rosa, quem te colhera!

210

Oh! mina, quem te minara.Toda por baixo do chão,

Oh! amor, quem te lograra

Sem haver murmuração

!

211

A verdizela é enleio,

Que se enleia pelo trigo

;

Ai! quem fora verdizela.

Que se enleara contigo.

212

Quem me dera ser o Hnho,Que vós menina fiais,

Que vos dera tanto beijo,

Como vós no linho dais.

Page 124: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

1 22 Cancioneiro Popular

213

Quem me dera ser as contas

Desse teu lindo colar

Para dormir em teu seio

E nunca m^ais acordar.

214

Tendes o cravo na bocaCom a raiz na garganta,

Quem vo-lo tirara a beijos

Á hora em que o galo canta.

215

Eu venho a esta função

Pra lograr os teus carinhos:

É chegado o gavião,

Fujam, fujam passarinhos.

216

Francisquinho, cacho d'uvas,

Oh! quem te depenicara,

De baguinho em baguinho,

Nem um bago te deixara. .

217

Quando eu te vi logo disse

Lindos olhos para amar,

Linda boca para beijos . .

.

Ai ! quem tos pudera dar

!

218

Oh minha pombinha branca,

Oh! minha branca pombinha.Quando ha-de chegar a hora

Em que te hei-de chamar minha ?

Page 125: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Desejo e Posse 123

219

Se o teu retrato falasse,

Se o teu retrato sentisse,

Ele mesmo te dizia

O que fiz e o que lhe disse.

220

Cravo roxo em teu peito,

Que sepultura tão rica

!

Quem morre nesses teus braços

Não morre, que ressuscita

!

221

O meu coração é terra,

Hei-de manda-lo lavrar

Para dispor os desejos,

Que eu tenho de te lograr.

222

Defronte de mim estão olhos,

Olhos que me estão matando,Que contas darão a DeusDas penas que m'estão dando ?

223

Eu aonde estou bem vejo

Olhos que me estão matando

;

Matai-me devagarinho,

Que estou morrendo, penando.

224

Os meus olhos mais os vossosDe longe se estão mirando

;

Os vossos dizem-me: sim;

Os meus perguntam-lhe: quando?

Page 126: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

1 24 Canconeiro Popular

225

Daqui onde estou bem vejo

Correr as bicas da fonte

;

Ai ! de mim que morro à sede,

Tendo o remédio defronte.

226

Esta noite sonhei eu

Que te estava dando beijos;

Acordei, achei~me só,

Tive dobrados desejos.

227

Dai-me uma gotinha d'água,

Da Hngua fazei a bica;

Quanto mais água me dais,

Tanto mais sede me fica.

228

A silva é prendediça

Prende na terra lavrada.

Também os meus olhos prendemNa parte mais delicada.

229

Deixa-me ir com as mãos ambasAo talho do teu colete,

Á parte mais delicada.

Onde pus o ramalhete.

230

Os pombinhos inocentes

Namoram-se e dão beijinhos:

Façamos amor, façamos.

Como fazem os pombinhos.

Page 127: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Desejo e Posse 125

231

Aperta-me esses meus dedosTé que eu diga: deixa, amor;Quem mais aperta m.ais quer,

Quem mais quer mais sente dor.

232

Amor com amor se pagaE não ha coisa mais justa;

Paga-me comtigo mesmo,Meu amor, pouco te custa.

233

Boa herva é o poejo,

Que se deita na açorda,

Racha-me a cara com beijos,

Tem cautela não me mordas.

234

António vem a meus braços

Unirmos peito com peito;

Ao depois dessa uniãoTer-te amor não é defeito.

235

Quando o meu amor me beija,

Não sei dizer o que sinto;

Fico parva, fico doida,

P^alo verdade, não minto.

236

O beijo, que tu me deste,

Nunca mais me ha-de esquecer:Inda tenho a boca doce,

Inda me está a saber.

Page 128: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

126 Cancioneiro Popular

237

Oh! madre-silva cheirosa,

Aonde deixaste o cheiro?

Nas ondas do mar, lá longe.

Nos lábios dum marinheiro.

238

Esta noite estive, estive,

Á conversa com o amor,

Co'a tua boca na minha,

Como o orvalho na flor.

239

Quem vive junto ao seu bemNão pode ter mais desejos;

Mata a fome com amor,

Apaga a sede com beijos.

240

Meu amor, dei-te os meus beijos.

Tu com beijos me pagaste.

Ai! Deus te pague a alegria.

Todo o bem que me causaste!

241

Não posso comer sem dar-te.

Nem beber sem dar a ti:

Nem fazer a minha camaSem dizer: deita-te aqui.

242

Vê lá meu bem se te lembras

Daquela noite de vento

Que te tive desmaiada

Nos meus braços tanto tempo.

Page 129: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Desejo e Posse 127

243

Lembras-te daquela noite,

Que contamos, ao Luar,

Eu as areias do chão,

Tu as estrelas do ar?

244

Dois amantes que se amam,Quando chegam a unir seu rosto.

Morrem de consolação;

Não pode haver melhor gosto.

Page 130: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XI

IRONIAS, SARCASMOS E PRAGAS DE AMOR

245

És água, náo matas sede,

És pimenta, não queimais;És uma, pareces outra,

Quando comigo falais.

246

Náo te quero bern nem mal.

Coração no mesmo ser,

Nem morro por te adorar,

Nem desgosto de te ver.

247

Perguntais-me como passo;

Obrigado passo bem.Ando com os pés pelo chão.

Como vós andais também.

248

Oh! senhor juiz de fora,

Faça justiça brincando;

Prenda-me aqueles dois olhos,

Que me estão desafiando.

Page 131: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 129

249

Já furtaram ao moleiro

A sua filha Isabel,

Cuidando que era o cortiço

Que estava cheio de mel.

250

O amor diz que é firme,

Que é firme no amar,Com'ó vento no bulir,

Com'ó vidro no estalar.

251

O amor do estudante

É como a pomba ferida;

Pelo ar derrama o sangue.

Chega à terra, acaba a vida.

252

São tantas as saudadesQue eu tenho de ti ás vezes;

Em sendo os dias pequenos,Não como senão trez vezes.

253

Dizes tu que tenho amores,Jesus! cruzes! anjo bento!Nem os tenho, ném espero,

Nem me vem ao pensamento.

254

O teu pai diz que não quer,

Porque eu não tenho fazenda;Nem o teu pai é tão rico.

Nem tu és tão boa prenda.

Page 132: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

130 Cancioneiro Popular

255

O meu amor, de polido,

Não assenta o pé no chão;Assenta, meu bem, assenta.

Não dês passadas em vão.

256

Menina, não te namores,De homem que já viuvou.

Uma fala, duas falas:

Mulher que Deus me levou!

257

Dois pobres a uma porta

Ambos co'a mesma tenção,

Qual será o desgraçado,

Que levará o perdão?

258

Toda a vida meu pai disse:

Filho não sejas maroto.

Foge sempre das mulheres.

Como a camisa do corpo.

259

Se pensas que eu por ti morro.

Eu nem por ti adoeço.

Já me teem oferecido

Panos de mais alto preço.

260

No domingo fui á missa.

Vi os teus olhos em praça;

Disse prás minhas amigas:

Lancem naquela fogaça.

Page 133: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 131

261

És bonita como a morte,

Alegre como um enterro,

Direita como um anzol,

Delicada como um cerro.

262

Chamaste pobre ao meu pai,

Tu és rico, és abonado.Tens uma terra no campo,Onde cabe um cão deitado. Q)

263

O meu amor me deixouPara amar outra mais rica;

Menos honra, mais fazenda,

Tudo em casa lhe fica.

264

Foste dizer mal de mimAo meu amor por desprezo.

Deitaste azeite no lume,

Inda ficou mais aceso.

265

Ingrato, que me vendeste.

Quanto te deram por mim?Que é das galas que comprasteCo dinheiro que eu rendi?

(^) Recolhida por mim em S. João do Campo.

Page 134: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

132 Cancioneiro Popular

266

Ès íalsa, trez vezes falsa,

Que assim te quero dizer;

Quanto te deram por mim,Quando me foste vender?

267

Murmurai, murmumdeims,Murmurai todas de mim,Deus vos dará o castigo,

Uma pena sem ter fim.

268

A sepultura se me abra,

A vida me caia dentro,

Se eu tenho outros amores.

Senão tu no pensamento.

269

Justiça de Deus te caia,

Do Céo te venha o castigo,

Pois se tens novos amores,

Para que falas comigo?

270

Olhos, que me querem mal.

Tirados os visse eu,

Apresentados num prato.

Pedindo perdão aos meus.

271

Apartada eu veja a vida

E o corpo do coração

A quem foi o causador

Da nossa separação.

Page 135: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 133

272

Meu amor abandonou-me,Não sei qual fosse a razão:

Ao beber lhe falte a água,

Ao comer lhe falte o pão.

273

Já que és ingrata comigo,Contra ti o tempo vejas,

A fortuna de ti fuja,

Não logres o que desejas.

Page 136: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XII

AMOR

274

O Mar pediu a Deus peixes,

O campo pediu-lhe flores,

O Céo pediu as estrelas

E a mulher pediu amores.

275

Não devia amar-te e amo-te,

Confesso a minha fraqueza

;

A culpa não é só minha,É também da Natureza.

276

O Céo se vista de galas,

As estrelas tenham véo,

Se já tenho amores novos,

É justo se alegre o Céo.

Page 137: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 135

277

Já fui cravo, já fui rosa,

Já stive num alegrete,

Agora stou no teu peito,

Servindo de ramalhete.

278

Nasce o Sol para adorar-te.

Dá volta ao mundo por ver-te,

Quando o sol deseja amar-te.

Como não hei-de eu querer-te.

279

O dia tem duas horas.

Duas horas não tem mais

;

Uma é, quando vos vejo.

Outra, quando me lembrais.

280

Quem não ama e não adoraVivo está na sepultura

;

Só amando é que se vive.

Sem amar não ha ventura.

281

Dizem que o amor é morteOh ! quem me dera morrer

!

Mais vale morrer de amores,Do que sem eles viver.

282

Para que quero eu os olhos.

Senhora Santa Luzia,

Se não hei de ver meu bemA toda hora do dia.

Page 138: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

136 Cancioneiro Popular

283

Eu sou cavaco do rio,

Veio a cheia e levou-me;A água fez um remanso,Á tua porta deixou-me. Q)

284

Cantae-me uma cantiguinha,

D'essas tantas que sabeis:

Espalhai folhas de rosa,

Que nessa boca trazeis.

285

O Sol posto vai doente

E se o sangram logo morre.

Pois o sangue é como o amor.

Por todas as veias corre.

286

Dois corações que se amam.Unidos fazem um só: .

Ambos eles estão feridos

De qual dos dois terei dó ?

287

Ai, que linda troca de olhos

Fizeram agora ali

!

Trocaram dois olhos pretos

Por dois azues, que eu bem vi.

(1) Recolhida por mim em S. João do Campo.

Page 139: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 137

288

Amor, se queres, façamos,

Uma troca sem lezão,

É trocar alma por alma.

Coração por coração.

289

Costumei tanto os meus olhos

A namorarem os teus.

Que de tanto confundi-los,

Nem já sei quais são os meus.

290

Oh! água tem-te nos vales

Não sejas tão corredia

;

Quem namora não se ausenta,

Quem quer bem não se desvia.

291

Dizes que amar é pecar . . .

Ai de mim que já pequei

!

Se em amar se perde o Céo,Ai ! não se salva ninguém.

292

Repara meu bem, repara,

Olha cá p'ró peito meu:Unamos as nossas almas.

Vamos ambos pró céo.

293

Quando António vai à missa

A igreja resplandece;

A terra que António pisa.

Se está seca reverdece.

Page 140: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

138 Cancioneiro Popular

294

Anda cá meu amor morto,

Dize lá quem te matou;Se te matou minha ausência,

Ressuscita que aqui estou.

295

Aqui tens meu coração.

Mete a mão tira-o com geito;

Lá verás que amor tão grande

Em palácio tão estreito.

296

Oh! bela rosa encarnada,

Como tu nenhuma cheira;

Por ti se salvam as almas

E a minha seja a primeira.

297

Oh! coração, toma azas,

Oh! azas, tomai valor,

Que havemos de ir esta noite

Ao resgate duma flor.

298

Subi com a minha amadaTé onde ninguém se viu;

As nuvens diziam: basta.

Até que ninguém subiu!

299

Oh ! mar, que andas tão bravo.

Que assim andas furioso

Oh! mar, se fosses casado.

Serias mais amoroso.

Page 141: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 139

300

Os meus olhos não são olhos,

Quando os teus estão defronte:

São dois rios de água turva,

Quando vão de monte a monte.

301

Amar e saber amarSão dois pontos dehcados.

Os que amam são sem conta,

Os que sabem são contados.

302

O amor nasce de dar,

Meu amor, que te darei?

O amor que não dispende,

É certo que não tem lei.

303

O meu coração é rio,

Cheio d'água mete medo:Seca-se o meu coração,

Rega-se o teu arvoredo

!

304

Eu, vivendo, por vós morro,Vós por mim viveis, morrendo,Quizera acabar a vida

Para ficares vivendo.

305

Tira-me a seta do peito,

Deixa o meu sangue correr;

Se tu por mim dás a vida.

Eu por ti quero morrer.

Page 142: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

140 Cancioneiro Popular

306

Choro lágrimas de sanguePara teu divertimento;

Quero que vivas alegre,

A custa do meu tormento.

307

Se os meus olhos te encomodamQuando estão na tua frente,

Eu prometo de arranca-los

Para te amar cegamente.

308

Eu quero tanto ao meu bem,Amo-o com tanta paixão,

Que até chego a adorar

Sua própria ingratidão.

309

Não choro por me deixares.

Que o jardim mais flores tem.

Choro que não has-de achar

Quem te queira tanto bem.

310

Se os meus olhos te dão pena,

Tira-os e deita-os ao chão;

Não quero ter no meu corpo

Coisa que te dê paixão.

311

Trago dentro do meu peito

Um botão de rosa a abrir:

São os olhos do meu bem,Que pra mim se estão a rir.

Page 143: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 141

312

Tenho dentro do meu peito

Uma capela de flores,

Rosas, cravos, violetas,

Martírios, chagas e amores.

313

Não ha flor como a perpétua,

Que nasce de madrugada.Nem amor como o primeiro.

Porque nasce dentro d'alma.

314

Oliveira arreda a rama.

Que eu quero passar além.

Trago o meu peito a arder,

Não quero queimar ninguém.

315

És espelho, onde me vejo

Cada vês que te visito.

És egual ao meu desejo.

Não ha nada mais bonito.

316

Tudo o que é verde se seca.

Em vindo o pino do v'rão.

Só meu amor reverdece

Dentro do meu coração.

317

Anoiteceu-me no campoNum sitio desconhecido

;

Abracei-me à própria terra.

Cuidando que era contigo.

Page 144: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

1 42 Cancioneiro Popular

318

Chamaste-me fala só,

Oh! que falsa opinião,

Estava a falar contigo,

Falando ao meu coração.

319

Olhos, que sonhando vedes.

Olhos, para que acordais?

Se vós, sonhando, estais vendoTudo quanto desejais!

320

Esta noite buliu ventoCom pontinhos de suão;Abriram-se as rosas todas

Dentro do meu coração. (O

321

Suspiro, que nasce d'alma,

Que à flor dos lábios morreu,

Coração, que o não entende,

Não o quero para meu.

322

Ontem era meia noite,

A meia noite seria.

Ouvi cantar um anjinho

No coração de Maria.

Q) Colhida por mim em Ançã.

Page 145: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 143

323

Cartas, cartas são papeis,

Os papeis falsos serão,

Mas as palavras dos olhos

São vozes do coração.

324

Amavas-me e não dizias,

Junto a mim ficavas mudo

;

Tua boca não falava,

Os olhos diziam tudo.

325

Tenho dentro do meu peito

Um frasquinho de licor.

Quando o coração tem sede

Diz o frasco bebe amor.

326

Os teus olhos, oh! menina,Quando se encontram co'os meus.Dizem coisas, dizem coisas . .

.

Ai ! Jesus ! valha-me Deus ! . .

.

327

Toma lá colchetes doiro,

Aperta o teu coletinho:

Coração, que é de nós dois.

Deve andar conchegadinho.

328

O amor, quando se encontra,

Causando pena, dá gosto,

Sobresalta o coração,

Faz subir a cor ao rosto.

Page 146: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

144 Cancioneiro Popular

329

Eu passei e bem te vi

Stavas à janela lendoAs cartinhas do amor ...

Tu a chorar e eu vendo.

330

Já que me chamaste estrela,

Dai-me Ceo, onde eu me ponha,Que as estrelas neste mundoPadecem muita vergonha.

331

No tronco da verde faia

O teu nome fui gravar;

A mesma faia chorou,

Só de me ver suspirar.

332

Como juntos e unidosOs teus cabelos estão,

Permita o Ceo que se unaO meu ao teu coração.

333

A sombra d'esse teu corpoQuando eu a vejo no chão . .

.

Aperto, pra não fugir,

O meu pobre coração.

334

Aqui tens meu coraçãoVinga nele os meus delitos,

Crava-lhe um punhal agudo.

Não te embaracem meus gritos.

Page 147: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 145

335

A roseira com a rosa

Toda se humilha ao chão,

Quando a rosa se humilha,

Que fala meu coração?!

336

Cada vês que vou á missaE no adro te não vejo,

Enchem-se-me os olhos d'água.

Fico cego, nada vejo.

337

Amar e não ter ciúmes.

Isso não é querer bem

;

Quem não zela o que bem amaMuito pouco amor lhe tem.

338

Pergunta a quem sabe amarQual é mais para sentir?

Se é amar, vivendo ausente.

Se é ver e não possuir.

339

Rosa, que estás em botão,

Deixa-te estar fechadinha.

Que eu vou para a minha terra.

Quando eu vier serás minha.

340

Olhos verdes, côr de esperança.Olhos verdes, côr da hera,

Quem espera sempre alcança.

Por isso minha alma espera.

10

Page 148: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

146 Cancioneiro Popular

341

Quatro coisas são precisas

Para saber namorar,Olho vivo e pé leve,

Cautela, saber falar.

342

O meu amor é tão lindo

!

Com quem o compararei?Com as estrelas não posso,

Com Jesus do Ceo não sei.

343

Eu não sei que simpatia

Minh'alma contigo tem

;

Quando te vejo a chorar,

Meto-me a chorar também.

344

Meu amor, se tu te vires

No deserto sem ninguém.Dá um ai com sentimento

Que eu sou contigo, meu bem.

345

Não se cance a Natureza

A criar coisas em vão

;

Se não é para te amar.

De que serve o coração ?

346

Oh! que calma está caindo,

Á sombra me estou queimando;Que será do meu amorLa na eira trabalhando.

Page 149: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Amor 147

347

Põe-te, põe-te Sol divino,

Mas não te ponhas parado,

Meu bem é trabalhador

E chega à noite enfadado.

348

Vem cá minha pequeninaQue o vento quer-te levar,

Pela manhã vento norte,

Á noite vento do mar.

349

Oh! que calma está caindo

Por cima dos ceifadores!

Quem fora ramo de palma,

Que cobrira os meus amores!

350

Menina tu és a tumba,Eu serei o corpo morto;Não se me dava morrer,

Sendo tumba o vosso corpo.

Page 150: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XIII

FIDELIDADE E CONSTÂNCIA

351

Oh ! meu amor, meu amor,Quando me has-de tu esquecer?— Quando Deus me não der vida,

Nem olhos para te ver.

352

Esta noite sonhei eu

Que me morria o meu bem

;

Sonhando, pedi a DeusQue me levasse também.

353

Jurei pelo junco verde.

Que é a jura dos pastores,

Que, enquanto tu me quizeres.

Serei firme aos meus amores.

354

A neve na serra alta.

Faz a maior assistência

;

O amor quanto mais firme.

Mais querido é na ausência.

Page 151: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Fidelidade e Constância 149

355

Bem pode a Terra mover-se,

Bem pode o Mundo acabar,

Tudo pode ter mudança,Menos eu em te adorar.

356

O meu coração é teu

Aqui e em toda a parte;

Antes cegar que não ver-te,

Antes morrer que deixar-te.

357

Já fui roseira caída,

Três anos stive no chão

;

De todos fui esquecida

E só do meu amor, não.

358

Se querer-te bem é delito,

Venha o juiz que me prenda.

Abra as portas da prisão,

Que eu não quero ter emenda.

359

No mais terrível deserto

Contigo q'ria viver,

E juro-te pela minh'almaDe ser firme até morrer.

360

Para amar-te eternamenteEu eterno q*ria ser;

Ja que eterno ser não posso,

Hei-de amar-te até morrer.

Page 152: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

150 Cancioneiro Popular

361

Se te aborrece eu querer-te,

E é forçoso desprezar-te,

Ensina-me a aborrecer-te,

Que eu não sei senão amar-te.

362

O amor que nasce d^alma

Nunca poderá ter fim;

Aí tens tu a razão

De me não 'squecer de ti.

363

Hei-de amar-te, que é meu gosto,

Ninguém nisso tem que ver;

Amar-te e casar com outro,

Mais me valera morrer!

364

Tenho o meu peito fechado,

Stâo as chaves no Brazil;

O meu peito não se abre,

Sem as chaves de lá vir.

365

Amar, emquanto atendido.

Não é fineza de amante:

Amar, depois de ofendido.

Só o faz quem é constante.

366

Eu fui aquela que disse

:

Ou contigo ou com a terra,

Senão cazasse contigo,

Queria morrer donzela.

Page 153: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Fidelidade e Constância 151

367

Firme, por firme, me assino

Firme, constante serei,

Firme, leal 'té à morte,

Por ti firme morrerei.

368

Se cuidas que eu amo outra

Perde essa desconfiança;

Antes sepultar-me em vida

Que eu em amor ter mudança.

369

Oh! olhos de amante firme.

Bem te entendo o teu olhar;

Podes viver-no seguroQue eu outro não sei amar.

370

Meu amor chorando disse.

Com lágrimas prometeu:Emquanto o mundo existir.

Não deixarei de ser teu.

371

O meu leal coraçãoAo teu falso obedece,Se o meu leal te não lembra,O teu falso não me esquece.

372

Inda que meu pae me mateMinha mãe me tire a vida

Minha palavra está dadaMinh'alma está promettida.

Page 154: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

152 Cancioneiro Popular

373

Teu pai, tua mãi, não queremCara linda que te logre;

Queira eu e queiras tu,

Contra o amor ninguém pode.

374

Nunca o amor se conheceSenão depois da tormenta;

Quanto mais se contraria.

Mais ele, o amor, aumenta.

375

Bem pode o norte ventar,

A nau fazer-se em pedaços,

Mas p'ra deixar de te amar,

Nem que haja mil embaraços.

376

Quando as pedras soltem gritos

E o sol deixe de girar

E o mar deixe de ter água,

Deixarei eu de te amar.

377

No prazer sinto tristeza,

Parece-me a noite o dia,

O mesmo dia é um pranto.

Sem a tua companhia.

378

Triste sorte foi eu ver-te,

Atrevimento falar-te,

Delito era pretender-te.

Pena de morte deixar-te.

Page 155: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Fidelidade e Constância 153

379

Eu, se te não amo, morro.

Se te adoro, ha quem me mate,

Se de toda a sorte morro,

Quero morrer e adorar-te.

380

Impossível, sem ser Deus,Haver quem de ti me aparte,

Se ele tem esse poder.

Antes venha a mim, me mate.

381

p meu coração do teu

É mui ruim de apartar,

É como a alma do corpo.

Quando Deus a quer levar.

Page 156: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XIV

A FELICIDADE DO LAR E A TERNURAMATERNAL

382

O casal que é bem unidoVive bem e com prazer;

Por pouco que o homem ganhe,

Sempre chega pra comer.

383

Minha sogra quer-me muito,

Minha cunhada também.Meu sogro muito me quer

E o filho mais que ninguém.

384

Eu casei-me e cativei-me,

Inda não me arrependi

;

Quanto mais vivo contigo,

Menos posso estar sem ti.

385

No tempo em que era solteira

Usava fitas e laços.

Agora que sou casada

Uso os meus filhos nos braços.

Page 157: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal 155

386

O meu amado meninoTem soninho e quer dormir,

Venham os anjos do CéoAjuda-lo a dormir.

387

Quando uma creança dorme,Estão os anjos a sorrir,

Abrem-se as portas do CéoPara Deus a ver dormir.

388

Lindo cantar é o dos anjos . .

.

Quem cantara como eles,

Quem estivera cantando,

Cantando no meio deles!

389

Quem tem meninos pequenosPor força lhe ha-de cantar

:

Quantas vezes as mais cantam.Com vontade de chorar

!

390

Quem tem meninos pequenosAlivia o coração

:

De dia tem-nos nos braços,

Á noite no coração.

391

O menino está no berço,

Coberto co'o cobertor.

Os anjos lhe estão cantando

:

— Bemdito seja o Senhor

!

Page 158: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

156 Cancioneiro Popular

392

O meu menino tem sono,

Tem soninho e quer dormir,

Venham os anjos do'CéoCom roupa para o cobrir.

393

Uma mãi que um filho embala.

Todo o seu fim é chorar,

Só por não saber a sorte,

Que Deus tem para lhe dar

!

394

O meu menino é um anjo,

E o teu é um passarinho,

O meu voa para o Céo,E o teu voa para o ninho.

395

Oh ! meu filho, dorme, dorme,Olha o papão que alem está . .

.

— OJi ! papão vae-te embora,Que o menino dorme já

!

396

Vae-te embora, passarinho.

Deixa a baga ao loureiro,

Deixa dormir o menino.Que está no sono primeiro.

Page 159: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XV

SAUDADE

397

Desgraçado malmequer,Onde vieste nascer!

Aonde não ha saudades,

Não pode haver bem querer.

398

De qualquer sorte que existas.

És a mesma divindade,

Ventura, quando te vejo.

Se te não vejo, Saudade.

399

Quero dar-te as despedidas,

Quero da-las e não posso;

Tenho o meu coração prezo

Por um fio d'oiro ao vosso.

400

Quanto se sente na morte,

Quanto se sente na ausência,

A morte é ausência eterna,

A ausência, morte aparente.

Page 160: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

158 Cancioneiro Popular

401

Uma saudade me mata,

Uma ausência me detém,

Uma esperança me anima:Sobre tempo tempo vem.

402

Quanto se sente na morte,

Quanto se sente na ausência,

A morte é ausência eterna,

A ausência, morte aparente.

403

Tudo quanto o mar encerra,

Tudo quanto a terra cria.

Tudo é nada no Mundo,Sem a tua companhia.

404

Oh! meu amor, meu amor.

Nada me alegra o sentido,

Ninguém sabe o bem que perde.

Senão depois de perdido.

405

Se fossem pedras as lágrimas.

Que eu por ti tenho chorado.

Já formavam um castelo

No centro do mar salgado.

406

Ausente dum bem que adoro.

Não posso viver com gosto

;

Nasce o Sol e põe-se o Sol,

Para mim sempre é Sol posto.

Page 161: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 159

407

Passei pela tua porta,

Não te vi, oh! alma minha,

Fiquei como a noite escura,

Metida na nevoinha.

408

Como o vento é para o fogo,

É a ausência pro amor.

Se é pequeno apaga-o logo.

Se é grande torna-o maior.

409

Vejo mar, não vejo terra.

Vejo espadas a luzir;

Vejo o meu amor em guerra

E não lhe posso acudir.

410

Oh ! meu amor, se te vires

Nas ondas do mar aflito.

Brada por mim que eu irei

Logo ao teu primeiro grito.

411

Atrevido pensamento,Onde me foste levar?

Além do mar outro tanto,

Como é daqui ao mar.

412

Se o meu coração tivera

Azas, que fora voando.Achavas tu quem stivera

Sempre contigo falando.

Page 162: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

160 Cancioneiro Popular

413

Nas azas do pensamentoVai beijinho, vai voando,Visitar o meu amor.Que por mim stá esperando.

414

Quando eu te chamar, acode,

Manda cá teu coração,

Não queiras tu que eu padeça.

Tendo o remédio na mão.

415

A pena do meu martírio

Mais cruel não pode ser:

Ter boca não te falar,

Ter olhos e não te ver.

416

Este meu coraçãosinho,

Tão pequenino que é;

É um mar de saudades,

Onde não entra a maré.

417

O meu amor me deixouSosinha neste deserto

;

Hei de me ir deitar ao mar,

Levam-me as ondas decerto.

418

Abra-se uma sepultura

Na terra forte e valente;

Var mais estar sepultado

Que viver de ti ausente.

Page 163: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 161

419

Se ouvires tocar os sinos,

Não perguntes quem morreu,Ausente do meu amor,

Ninguém morreu senão eu.

420

Abre este meu peito à lança

Verás meu coração morto,

E verás a tua ausência

O estado em que me tem posto.

421

Eu não quero viver maisQue o tempo que tu existes

;

Que me serve viver tanto,

Se os dias serão tão tristes ?

422

Se tu fores, eu hei-de ir

Se ficares, ficarei

;

Quando não, tira-me a vida,

Que eu apartar-me não sei.

423

Oh! olhos, preparem lenços.

Oh! lenços, preparem fios;

É chegada a ocasião

De os meus olhos serem rios.

424

Mal o haja o querer bem,A mim própria me praguejo!Não ha um Deus que me leve

Nas horas que te não vejo!

u

Page 164: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

162 Cancioneiro Popular

425

Quem disser que uma saudadeQue não leva à sepultura

Coma pouco, viva triste,

Verá o tempo que dura.

426

Ai! Jesus, arde-me o peito

Em labaredas de fogo;

Se eu não vejo um bem que adoro,

Ai! Jesus do Céo, que morro.

427

Nesta cruel despedida

Diz amor, que hei-de fazer

;

Levar-te não é possivel,

Deixar-te não pode ser.

428

Diz alguém que a despedida

Nada custa ao coração;

Quem tal diz que se despeça

E verá se custa ou não.

429

Amor, não digas adeusCom esse adeus me matais;

Parece que mé dizeis

Adeus para nunca mais.

430

Meu amor na despedida

Nem só um ai poude dar;

Apertou-me a mão ao peito

E depois pôz-se a chorar!

Page 165: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 163

431

Se os meus suspiros podessemTua jornada impedir,

As lágrimas dos meus olhos

Não te deixavam lá ir.

432

Vai-te que o teu bem cá fica,

Suspirando, amor, por ti

;

Vai tu a ver outros climas.

Mas não te esqueças de mim.

433

Oh ! triste segunda-feira

Da semana que ha-de vir?

O meu amor diz que embarca:Quem o ha-de ver sair

!

434

Meu amor diz que me deixa,

Digam-me o que hei-de eu fazer?

Deixa-me, vai para* longe.

Não o torno mais a ver

!

435

Estes campos por aqui

Talvez já os não aviste

;

Adeus amor da minh'alma.Que despedida tão triste!

436

Quem me dera ver agoraQuem a minh'alma deseja;Quem os meus braços apertam,Quem a minha boca beija.

Page 166: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

164 Cancioneiro Popular

437

Já lá vai de barra fora

Quem no meu colo dormia!Deus te leve, Deus te traga

Para a minha companhia.

438

Ausente dum bem que adoro,'

Não tenho gosto de nada.

Na solidão em que vivo

Somente o chorar me agrada."^

439

Adeus, meu pai, minha mãiAdeus, oh ! minha saudade.

Eu vou a servir o rei.

Cativar a liberdade.

440

Adeus, oh ! minha saudade.

Espelho do meu sentido;,

Por ver vossa magestadeEu ando cego e perdido.

441

Adeus, oh ! minha saudade,

Já você por cá não vem?Venha como vinha dantes.

Não lhe importe de ninguém.

442

Cada vez que considero

Que de ti me hei-de apartar.

Meus olhos se arrazam d'água,

Não faço senão chorar.

Page 167: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 165

443

Vistam-se os campos de luto,

Toquem os clarins de prata,

Saiba-o quem o não souber:

Meu amor de mim se aparta.

444

Dei um ai entre dois montes,Responderam-me as montanhas;Ai! Jesus, que eu já não possoSofrer ausências tamanhas.

445

Abre-te centro da terra

Que me quero meter dentro,

Na ausência do meu amorQuero mostrar sentimento.

446

Amor, Deus te dê saúdePrás terras aonde fores,

A água, que tu beberes.

Ela se cubra de flores.

447

O meu amor foi-se embora,Sem se despedir de mim,O mar se lhe torne em rosas,

O navio num jardim.

448

Oh! Sol, que te vais cair

Lá para as bandas de Chaves,Dize ao meu amor que venha,Porque eu morro de saudades.

Page 168: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

166 Cancioneiro Popular

449

Oh! rio, que vais correndo,

Passa a ver o bem que adoro;

Se te faltarem as águasLeva as lágrimas que eu choro.

450

Carta, vae onde te eu mando,Lindos olhos vais a ver;

Carta pôi-te de joelhos.

Quando te quiserem ler.

451

Vai-te carta, vai-te carta,

Entra na primeira sala.

Se te não quiserem ler,

Abre-te carta e fala.

452

Vai-te carta venturosa,

Olha se sabes falar.

Os olhos que te escreveram

Cá ficaram a chorar.

453

Vai-te embora dia de hoje

Não queiras mais dia ser.

Que estou à espera do amor.

Que à noite me ha-de vir ver.

454

Triste sou, triste me vejo,

Sem a tua companhia.Tanto é que nem me lembro

Se fui alegre algum dia!

Page 169: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 167

455

Tanto ai, tanto suspiro,

Do fundo d'alma me vem!Não são ais nem são suspiros,

São ausências do meu bem.

456

A ausência tem uma filha,

Que se chama saudadeEu sustento mãi e filha.

Bem contra minha vontade.

457

O meu amor foi à ceifa

P'ra lá de Campo Maior,Mandei-lhe um lenço encarnadoPara ahmpar o suor.

458

Oh ! meu amor, se tu fores,

Leva-me na tua alminha;Eu sou como a primavera,

Onde quer vou metidinha.

459

Eu ausente e tu ausente.

Qual de nós mais penas tem?Se o que vae para voltar,

Se o que espera por quem vem?

460

Eu hei-de mandar fazer

Torres com altas varandas,Já que te não vejo amor.Vejo as terras por onde andas.

Page 170: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

168 Cancioneiro Popular

461

Puz-me a chorar saudadesAo pé d'uma fonte fria;

Mais choravam os meus olhos

Que a triste fonte corria.

462

O meu amor foi-se, foi-se,

Foi-se para não voltar;

Deus lhe deparasse um rio,

Que o não pudesse passar.

463

Não chores amor, não chores

Eu inda aqui stou contigo,

Chorarás, quando me vires

No mar largo e em perigo.

464

Coitadinho de quem temSeu amor pra lá do rio,

Vai pra falar e não pode,

Faz do coração navio.

465

O cego, que nascer cego,

A sua vida é cantar;

Eu que te via e não vejo,

A minha vida é chorar.

466

Meu amor, que estás tão longe,

Chega-te cá para o perto;

Já me doi o coração

De te ver nesse deserto.

Page 171: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Saudade 169

467

Quem me dera estar tão alto,

Como a esteveira na serra,

Que avistara o meu amor.Onde quer que ele estivera.

Page 172: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XVI

DESGRAÇA DE AMOR

468

Os nossos dois corações,

Uni-los o Céo não quiz,

É forçoso separa-los,

Pouco tempo fui feliz.

469

Deixaste-me, amor, por pobre

Outra falta não na tinha

;

Como hade o Sol romperUma manhã de neblina?

470

Á entrada desta rua

Levantei meus olhos, vi

Meu amor nos braços doutro,

Não sei como não morri!

471

Eu me queixo, tu te queixas.

Qual de nós terá razão?

Tu te queixas dos meus erros,

Eu da tua ingratidão.

Page 173: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Desgraça de Amor 171

472

Oh! que ai tão dolorido

Que o meu bem agora deu!Meu coração estava mortoDeu um gemido, tremeu.

473

Já não tenho coração,

Já o dei ao meu amor,E ele foi da-lo a outro!

No seu logar fica a dor!

474

Amar a quem me não amaNão ha caso mais tirano:

Conhecer o próprio erro

E viver do mesmo engano.

475

Se eu te via bem casada,

Que gosto seria o meu!Vejo-te mal empregadaChoro o meu mal e o teu.

476

Oh! rio dos desenganos.Engrossa, faze-te mar;Que eu desejo em tuas águasO meu amor afogar.

477

Eu sofro, se te não vejo,

E se te vejo também;Primeiro sofro da ausência

E depois do teu desdém.

Page 174: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

172 Cancioneiro Popular

478

Já os atalhos tem herva

Depois que cá não vieste;

Dize-me, amor da minh'alma,Que agravo de mim tiveste?

479

Nem contigo, nem sem ti

Tem remédio o pesar meu;Contigo porque me matas,

Sem ti porque morro eu.

480

Oh! ingrato quem poderáViver sem ter coração

!

Eu arrancaria o meuP'ra não sentir a paixão!

481

Aqui tens meu coração.

Todo ensanguentado;Ingrato, pelos teus erros,

É que ele anda maltratado.

482

Coitadinho do meu peito,

Que deita sangue pisado;

A culpa tive-a eu

Em te amar demasiado.

483

Eu sou sombra e tu és Sol,

Qual de nós será mais firme?

Eu, como sombra a buscar-te,

Tu, como o Sol a fugir-me?

Page 175: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Desgraça de Amor 173

484

Por te amar perdi a Deus,Por teu amor me perdi

;

Agora vejo-me só,

Sem Deus, sem amor, sem ti.

485

Oh! meu amor não maltrates

Uma mulher que foi tua;

Para castigo já basta;

Se é teu gosto continua.

486

Eu puz-me a chorar, chorei.

Este rio fiz correr.

Em me pôr a imaginar

Onde o meu brio foi ter.

487

Perdi-me, fiquei perdida.

Mal haja quem me perdeu!

Venceu-me, fiquei vencida

Dum amor, que era só meu.

488

Minha mãi chamou-me RosaPara eu ser mais desgraçada,

Que não ha rosa no Mundo,Que não seja desfolhada.

489

Sou casada, vivo triste,

Casara eu a meu gosto,

Mais vale pobre e alegre

Que rico e viver sem gosto.

Page 176: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

174 Cancioneiro Popular

490

Qrido filho, porque choras?Por tua mãe ser errante?

Se teu pai te desprezar

O Deus do Céo é bastante.

491

Inda que o lume se apague,Na cinza fica o calor;

Inda que o amor se ausente,No coração fica a dor.

492

O Céo se cobriu de luto,

A mesma Terra tremeu;Os ares se escureceram,

A minha jóia morreu

!

493

Abre-te, porta, que eu morro;Não abras que eu já morri;

Jâ que és assim tão ingrata

Fica-te agora sem mim.

494

Sepultura, sepultura.

Quantos corpos tens em ti?

Já lá tens o meu amor.Quando me levas a mim?

495 ^

Minha amada já morreu.Eu já não a torno a ver;

A flor no campo renasce.

Ela não torna a nascer.

Page 177: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XVII

TRISTEZA

496

Nem só de alegre se canta,

Nem só de triste se chora,

De alegre tenho eu chorado,

E de triste canto agora.

497

Oh! penas não venhais tantas.

Vinde mais poucas e poucas;

Vinde mais bem repartidas,

Dai logar umas às outras.

498

Passarinhos meus amigos,

Eu também sou vosso irmão:

Vós tendes penas nas azas,

Eu tenho-as no coração.

499

Passarinhos, que cantais

Nas manhãsinhas serenas,

A todos aliviais.

Só a mim dobrais as penas.

Page 178: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

176 Cancioneiro Popular

500

As nuvens no Céo se tingemNum arco de sete cores;

São sete as dores de Maria,

São setenta as minhas dores.

501

Oh ! fonte, que estás correndo.

Não tardarás a secar;

Também meus olhos são fontes,

Que não param de chorar.

502

As ondas do Mar coalhamEm perlas todos os dias,

E, se o meu pranto coalhasse,

Que lindo colar fazias.

503

Oh ! meu amor, pede a DeusTerra para um pomar,Os meus olhos são dois rios.

Dão água para o regar.

504

Abre-te penha constante.

Serás minha sepultura

E se os meus. ais não te abrandam,Fecha-te penha, que és dura.

505

Oliveiras, oliveiras.

Ao longe são olivais,

Trago o coração mais negro

Que a azeitona que vós dais.

Page 179: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Tristeza 177

506

A serpente larga a pele,

Também larga a lá o gado,

Só a mim nunca me largam

Os meus dias desgraçados.

507

Oh! olhos da minha cara

Não olheis para ninguém;Já que perdestes a graça,

Perdei o olhar também.

508

Hei-de embarcar os meus olhos

Para o Rio de Janeiro,

Olhos mal afortunados

Que váo pra reino estrangeiro.

509

A alegria dos meus olhos,

Nem eu sei quem ma levou,

Táo alegre que era dantes,

Tão triste que agora sou!

510

Penas, que eu tenho no peito.

Não as dou a conhecer;

Eu as fiz, eu as causei.

Eu as quero padecer.

511

O coração mais os olhos

São dois amantes leais.

Quando o coração tem penas.

Logo os olhos dão sinais.

12

Page 180: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

178 Cancioneiro Popular

512

Oh! coração, coração,

Oh! coração, coitadinho!

Andas coberto de penas.

Pareces um passarinho.

513

Quando eu nasci, nasceram,

Nascemos quatro num dia:

Nasci eu, nasceu desgraça.

Tristeza, melancoHa.

514

Hei-de subir a um outeiro,

Onde a terra for mais dura.

Para enterrar os meus olhos.

Olhos de pouca ventura.

515

Ternas aves, que me escutam.

Chorosas me vem cantar;

Não ha mortais que não chorem.

Depois de me ver chorar.

51-6

O Sol para todos nasce.

Só para mim escurece;

Desgraçada criatura.

Que até o sol me aborrece.

517

É tal a minha desgraça

Que nem a esperança me resta

De ver um dia acabar

A minha sorte funesta,

Page 181: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Tristeza 179

518

Se queres saber a glória

Que alcança um pobre ganhão,

É a mão cheia de cabos

Do cabo do enxadão.

519

Ando desde pequeninoPelas casas a servir,

Não tenho nada de meuMais que a roupa de vestir.

520

Quem me dera dar um ai,

Que chegasse à minha terra,

Que dissesse a minha mãi

Que tal filho não tivera.

521

Órfã, sósinha no mundo,Vida assim será viver?

Para quem é desgraçada

Mais lhe valera morrer.

522

Sou feia, não tenho graça,

É disforme o corpo meu.Não tenho bens de fortuna

Mas que culpa tenho eu?!

523

Oh! quem me dera ter mâiEmbora fosse uma siíva,

Inda que ella me arranhasse.

Sempre eu era sua filha!

Page 182: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

180 Cancioneiro Popular

524

Tudo o que é triste no Mundo,Tomara que fosse meu,Para ver se tudo junto

Era mais triste do que eu.

525

Das lágrimas faço contas,

Por onde rezo às escuras;

Oh! morte, que tanto tardas,

Oh! vida, quo tanto duras!

526

Alegria não a tenho.

Sou um poço de paixão;

Toda a tristeza tem fim.

Só a minha, essa, não.

527

Eu quero bem à desgraça

Que sempre me acompanhou,E tenho ódio à ventura,

Que no melhor me deixou.

528

Mas que me quer a desgraça.

Que atraz de mim corre tanto?!

Hei de parar e mostrar-lhe

Que de vê-la não me espanto.

529

Oh! triste sombra, acompanha-me,Desgraçados dai-me a mão;Venha tudo o que for triste

Afligir meu coração.

Page 183: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

Tristeza 181

530

Meus males, minhas desditas

Remédio não podem ter;

Só deixarei de ser triste,

Quando acabar de viver.

531

Oh! alcachofra, tu ardes,

Ardes para florescer.

Eu sou diversa de ti

Ardo só para morrer.

532

É de noite, é de noite. .

.

Quer seja noite, quer não,Para mim sempre é de noite

Dentro do meu coração.

533

Desgraça e pouca venturaSó em mim caiu a sorte!

Haja quem me tire a vidaQue eu lhe perdoarei a morte.

534

Quem era, como eu era,

E se vê como eu me vejo!

Da vida não faço caso,

A morte já a desejo.

535

Se pensas que, por cantar,A vida alegre me corre,

Eu sou como o passarinho.Que até canta, quando morre.

Page 184: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

XVIII

A MORTE E A ETERNIDADE DO AMOR

536

Já fui alegre, cantei,

Agora sou desta sorte :

Já fui retrato da vida

Agora o serei da morte.

537

Meu coração já não bate

Não sei o que quer dizer,

Devem ser sinais de morte:

Amor, vem-me ver morrer.

538

Devo a minha vida à morte,

A alma a Deus que me criou,

O meu corpo à terra forte:

Ai! Jesus que nada sou!

539

Debaixo do frio chão,

Onde o Sol não tem entrada,

Abre-se uma sepultura,

Mete-se uma desgraçada.

Page 185: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Morte e a Eternidade do Aíwor 183

540

Oh ! morte, traidora morte,

Contra ti tenho mil queixas

;

Quem has-de levar, não levas.

Quem has-de deixar, não deixas.

541

Com o bálsamo cheiroso

Hei-de embalsamar meu bem

;

Não quero que a terra comaTão lindos sinais que tem.

542

Oh ! adro, terra de egreja,

Onde se enterram anjinhos.

Oh ! terra, que estás comendoCorpos tão delicadinhos.

543

Quando eu morrer enterrai-me

Ao pé dum vale sombrio.

Onde não chova, nem vente

Não dê sol, nem faça frio.

544

O dinheiro e mais dinheiro

Faz a paz e mais a guerra

;

Belos condes e marquezes,Em morrendo, tudo é terra.

545

Não ha nada como a mortePr'ácabar a presunção,Com quatro varas de chita

E sete palmos de chão.

Page 186: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

184 Cancioneiro Popular

546

Abre-se uma sepultura

Na terra mais recalcada,

Enterra-se a criatura,

Fica a terra como estava.

547

Oh ! morte, para que levas

Desejosos de viver?

Oh ! morte, leva-me a mimQue bem desejo morrer.

548

Não te faças mais do que eu

Que não és menos nem mais

;

Debaixo da terra fria

Todos nós somos eguaes.

549

Nós cuidamos que este mundoQue nos dura para sempre,

É uma luz que se acende

Que se apaga de repente.

550

Se Deus me agora levava.

Depois da palavra dada.

Nem a terra me comiaQue o amor cá me ficava.

551

Quando eu era pequeninaQue minha mãi me embalava.

Já uma voz me dizia

Que eu para ti me criava.

Page 187: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

A Morte e a Eternidade do Amor 185

552

Antes da noite ser noite,

Antes do dia ser dia,

Já meu coração te amava,Minli'alma por ti morreria.

553

Eu não amo como os mais,

Que eu no amar sou diferente;

Todos amam por emquanto,Eu amo eternamente.

554

Ferros d'El-rei são grilhõis,

Inda o amor é mais forte;

Para os ferros inda ha lima,

Para o amor nem a morte.

555

Quanto mais estou contigo,

Menos posso estar sem ti.

Que a paixão, que nasce d'alma,

Tem principio e não tem fim.

556

Hei de amar-te até à morte,

Até depois de morrer.

Até lá, na outra vida.

Te hei-de amar, podendo ser.

557

Amar-te na sepultura,

Oh ! meu amor, quem poderá

!

Seria a última coisa,

Que por teu amor fizera.

Page 188: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

186 Cancioneiro Popular

558

Hei-de deixar que me enterrem

Aonde tu fores à missa,

Que inda depois de enterrado

Quero estar à tua vista.

559

Puz um pé na sepultura,

Uma voz me respondeu

;

Tira o pé que estás pisando

Um amor, que já foi teu.

560

Quem disser que a vida acaba,

Digo-lhe eu que nunca amou:Quem morre e deixa saudadesNunca a vida abandonou.

561

Chamaste-me tua vida

E eu tua alma quero ser,

A vida acaba co'a morte,

A alma não pode morrer!

562

Pelo amor de Deus te peço:

Move de vagar teus passos

;

Debaixo desses teus pés

Anda meu corpo em pedaços.

563

Já morri, já me enterrei

E agora já estou aqui:

Nem a terra me comia,

Sem me despedir de ti!

Page 189: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

ERRATAS PRINCIPAIS: -

a pag. 58, linha 8 (533) em vez de (523)

a pag. 137, quadra 292,

Vamos ambos pró ceií.

em vez de

Voemos ambos pró ceu.

a pag. 142, quadra 320,

Com pontinhos de suão

:

em vez de

Com pontinhas de suão

;

a pag. 145, quadra 335,

Que fala meu coração?!

em vez de

Que fará meu corav;áo ? !

Page 190: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 191: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

índice

Estudo Critico

I—O Fim desta Obra 8

II—O Poema do Povo . . . . ^ 21

III— Conclusão 65

Antologia

I—A Natureza e a Terra Natal 77

II— O Elogio do Trabalho e o Valor Heróico ... 83

III—Ameaça e crime de Morte 87

IV—Máximas e Pensamentos 89

V— Ironias e Gracejos 95

VI—Amor filial 98

VII— Religiosidade Popular 100

VIII—A Criatura Amada 112

IX— Confissão d'Amôr 117

X— Desejo e Posse 121

XI— Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor .... 128

XII—Amor 134

XIII— Fidelidade e Constância 148

XIV—A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal . . 154

XV— Saudade 157

XVI— Desgraça de amor 170

XVII— Tristeza 175

XVIII—A Morte e a Eternidade do Amor 182

Page 192: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 193: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

BIBLIOTECA

RENASCENÇA PORTUGUESA

A Águia (2/ série) — Revista mensal — 10 centavos.

A Vida Portuguesa— Boletim— l.** volume de 162 páginas, 40 centavos.

Regresso ao Paraíso— Teixeira de Pascoaes~\ yol., 50 centavos.

A Evocação da Viási— Augusto Casimiro— \ vol., 40 centavos.

Esta Historia é para os kn]Os-- Jaime Cortesão— ^ vol., 10 centavos.

O Espírito Lusitano

Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 10 centavos.

A Sinfonia da l^iráo.—Jaime Cortesão— \ vol., 10 centavos.

O Criacionismo— Leonardo Coimbra— 1 vol., 80 centavos.

Romarias— /4. Correia d'Oliveira—\ vol., 10 centavos.

A Educação dos povos peninsulares— Ribera y Rovira— 1 vol., 10 centavos.

A Primeira ^2in— Augusto Casimiro— 1 vol., 10 centavos.

Cinixdi- Mário Beirão— \ vol., 10 centavos.

O Doido e a Morte — Teixeira de Pascoaes— \ vol., 20 centavos.

. . . Daquem e dalém Morte— (Contos com ilustrações de Cervantes de Haro e

Cristiano de Carvalho)— Jaime Cortesão— \ vol., 60 centavos.

O Último Lusíada— Mário Beirão— l vol., 50 centavos.

O Génio português na sua expressão poética, filosófica e religiosa — Teixeira de

Pascoaes— 1 vol., 20 centavos.

Elegias

Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 30 centavos.

Camilo Inédito — Prefácio e notações de Vila-Moura—l vol., 50 centavos.

Só — António Nobre {3.^ edição, esgotada).

A Morie— Leonardo Coimbra—] vol., 40 centavos.

A Teoria da lAutaç^o —Armando Cortesão—] vol., 70 centavos.

Doentes da Beleza — Vila-Moura—l vol. de 160 páginas, 50 centavos.

Glória Humilde — Tíz/m^ Cortesão— ^ vol. de 192 páginas, 50 centavos.

Verbo Escuro— r^/.v^/ra: de Pascoaes— l vol., 50 centavos.

Á Catalunha— ^«^«5/0 Casimiro— l vol., 20 centavos.

Miss DoWy — Costa Macedo— ] vol,, 10 centavos.

O Problema da Cultura— ^/z^dmo Sérgio — l vol., 20 centavos.

A Era Lusíada— Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 20 centavos.

Cancioneiro Popular

Jaime Cortesão— 1 vol. 40 centavos.

O Génio PeuhisiúdT - Ribera y Rovira (No prelo).

A Saudade Portuguesa — Cíi/'o////a Micaclis de Vasconcelos (No prelo).

Humor e VúosoWa— Vila-Moura (No prelo).

Nova Teoria do Sacrifício— José Teixeira Rego (No prelo).

^oh(òmio<à— Visconde de Vila-Moura—i^o prelo).

Crónica de D. Duarte, de Rui de Phm—Alfredo Coellio de Magalhães —{^o prelo).

Page 194: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

ACABOU DE SE IMPRIMIRNA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA

>

PRAÇA DA REPUBLICA, 160, 161, 162. PORTO.AOS 6 DE JUNHO DE 1914,

TÍRANDO-SE DEZ EXEMPLARESEM PAPEL DE LINHO

NUMERADOS E RUBRICADOS PELO AUTOR.

Page 195: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
Page 196: Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão

SOB A DIRECÇÃODE

]RIME CORTESnO e ALFREDOCOELHO DE MRQRLHHES

COM A COLABORAÇÃODE

CD C3 CD CD C3 CD CD CDTeófilo Braga

D. Carolina Micaelis de VasconcelosCD CD CD CD CD CD CD CD

CD CD CD CD

CD CD CD

Ricardo JorgeCD CD Leite de Vasconcelos c^ cd

]osé Pereira de Sampaio (Bruno)a CD Joaquim de Vasconcelos ^ cd

CD CD Teir^eira de Pascoaes a cd

fintónio 5érgio

Plfonso Lopes Vieira

Virgílio Correia cd cd a cd

José Teijceíra Rego a cd cd

Francisco Torrinha o a cd

CrZD t=D C=D CD etC.| etC. CD C=D C=D C=»

A SEGUIR

CROífICâOEO. DUARTE dei DE P!lCOM ESTUDO CRÍTICO, NOTAS E GLOSSÁRIO

POR

fliíredo Coelho de Haíalliães

CD CD CD CD

CD CD CD

CD CD CD

CD CD CD