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Organizadores Candido Alberto Gomes Ivar César Oliveira de Vasconcelos Silvia Regina dos Santos Coelho ENSINO MÉDIO: impasses e dilemas Sociedade Brasileira de Educação Comparada

Candido Alberto Gomes Ivar César Oliveira de Vasconcelos ...unesdoc.unesco.org/images/0026/002629/262946por.pdf · Prof. Dr. Ricardo Chaves Martins Consultor Legislativo, na área

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  • Este livro rene extraordinrias contribui-es de reconhecidos especialistas, brasi-leiros e portugueses, sobre o ensino mdio. A etapa da educao bsica que, no Brasil, tem sido a mais contemplada (ou atingida) por sucessivas reformas, que espelham, ao longo do tempo, a busca permanente de sua identidade e de seu potencial em responder aos anseios e expectativas da juventude. A obra inicia por instigante discusso dos principais pontos da ltima reforma do ensino mdio, encetada em 2017, e de alguns dos grandes desaos a ser enfren-tados para sua implementao. A seguir, abre-se uma densa anlise de questes identitrias dessa etapa educacional, concepes curriculares e diculdades enfrentadas no seio da escola, entre outros fatores.Para iluminar a compreenso do presente, o livro oferece duas alentadas revises da evoluo histrica do ensino mdio brasi-leiro. A primeira enfoca a etapa de modo geral, por meio da evoluo da legislao e, mais ainda, desvelando as concepes que inspiraram as mudanas. A segunda reviso aborda a histria da educao prossional no Brasil, cuja articulao com o ensino mdio, em sua vertente tcnica, constitui um dos captulos mais desaa-dores da trajetria da educao escolar no Pas. Alm da anlise no nvel nacional, o leitor encontrar um interessante apro-fundamento dessa questo no mbito da realidade do Distrito Federal.

    Organizadores

    Candido Alberto GomesIvar Csar Oliveira de VasconcelosSilvia Regina dos Santos Coelho

    ENSINO MDIO:impasses e dilemas

    Sociedade Brasileira de Educao Comparada

    Finalmente, considerando que os dilemas do ensino mdio no so exclusivamente brasileiros e que h muito a aprender com a experincia de alm-mar, a obra apresenta, de modo sistematizado, os dilemas e transformaes do ensino secundrio em Portugal, bem como a concepo, a implementao e os resultados de inovao pedaggica no campo da aprendizagem por meio da resoluo de problemas.Trata-se, enm, de uma coletnea de trabalhos de importncia e utilidade para educadores, gestores de escolas e de redes de ensino, estudiosos e para o pblico em geral, interessado na melhor formao dos jovens.

    Prof. Dr. Ricardo Chaves MartinsConsultor Legislativo, na rea de Educao, e

    Professor do Programa de Ps-Graduao do

    CEFOR, da Cmara dos Deputados

  • Ensino mdio:impasses e dilemas

  • Candido Alberto GomesIvar Csar Oliveira de VasconcelosSilvia Regina dos Santos Coelho

    Organizadores

    Braslia, DF2018

    Ensino mdio:impasses e dilemas

    Sociedade Brasileira de Educao Comparada

  • proibida a reproduo total ou parcial desta publicao, por quaisquer meios, sem autorizao prvia, por escrito, da editora.

    Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito da parceria com a Sociedade Brasileira de Educao Comparada (SBEC), a qual tem como objetivo contribuir para a melhoria da qualidade da educao no Brasil em todos os nveis de ensino, comparando-os aos sistemas educacionais de outros pases. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da SBEC e da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.As ideias e opinies expressas nesta publicao so as do autor e no refletem obrigatoriamente as da SBEC e da UNESCO nem comprometem as Organizaes.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1999, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Reviso: Renato ThielCapa / Diagramao: Jheison HenriqueImpresso e acabamento: Cidade Grfica e Editora Ltda.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Ensino Mdio: impasses e dilemas / Candido Alberto Gomes, Ivar Csar Oliveira de Vasconcelos, Silvia Regina dos Santos Coelho (Orgs.) / Braslia: Cidade Grfica Editora, 2018.

    240 p. ; 24 cm.

    ISBN: 978-85-62258-24-4

    Sociedade Brasileira de Educao Comparada

    1. Educao Brasil. 2. Educao Profissional. 3. Ensino Mdio. 4. Ensino Secundrio. I. Gomes, Candido Alberto; Vasconcelos, Ivar Csar Oliveira de; Coelho, Silvia Regina dos Santos. II. Ttulo.

    CDU: 377

    ndices para catlogo sistemtico:1. Educao: Ensino Secundrio 3772. Ensino Mdio no Brasil 377 (81)

  • SUMRIO

    PREFCIO ................................................................................................ 7

    INTRODUO ....................................................................................... 11

    O NOVO ENSINO MDIO: O DIFCIL CAMINHO FRENTE ........ 15Simon Schwartzman

    ENSINO MDIO: NEM PATINHO FEIO NEM CISNE ? ....................... 37Candido Alberto Gomes Ivar Csar Oliveira de Vasconcelos Silvia Regina S. Coelho

    ENSINO MDIO NO BRASIL: evoluo de ideias, propostas e perspectivas .............................................. 79Clio da Cunha

    CEM ANOS DE EDUCAO PROFISSIONAL NO BRASIL: SNTESE HISTRICA E PERSPECTIVAS .......................................... 115Francisco Aparecido Cordo

    UMA NOVA CONCEPO DE ENSINO MDIO E TCNICO: O olhar do Distrito Federal .................................................................... 155Fernanda Marsaro dos Santos Daniel Louzada-Silva Ranilce Mascarenhas Guimares-Iosif

  • ENSINO SECUNDRIO EM PORTUGAL VELHOS DILEMAS E A NECESSRIA METAMORFOSE ................ 187Jos Matias Alves

    CONCEPO, IMPLEMENTAO E EFICCIA DO PROGRAMA DE RESOLUO DE PROBLEMAS NO ENSINO SECUNDRIO ...................................................................... 217Cristina Costa-Lobo Brbara QuintelaAna Cristina Almeida

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    PREFCIO

    O ensino mdio tem sido, na histria da educao, alvo de pesquisas e de debates. Se a escola comum obrigatria despertou discusses esquecidas por muitos, que hoje parecem pueris, levou-se muito tempo para passar da escola primria para a escola secundria compulsria. Isso ocorreu primeiro nos pases mais desenvolvidos, porm, j na Declarao Mundial sobre Educao para Todos (Jomtien, 1990) se trata da educao bsica ou ensino fundamental, na traduo para o portugus. Um decnio depois, em Dacar, a Declarao de Educao para Todos mencionava o acesso educao primria, s se referindo educao secundria quanto paridade de gneros. A realidade, entretanto, avanava diversos passos frente, com a expanso e a busca de fontes de financiamento para o nvel secundrio. O aquecimento dos debates tem como um dos seus fatores a diferenciao de trajetrias educacionais e sociais, com forte influncia sobre o futuro de pessoas e grupos, em outras palavras, pelas suas relaes com a estrutura ocupacional e com a estratificao social.

    Acompanhando a elevao global dos requisitos de escolaridade, em 2015 a Declarao de Incheon desenhou novos horizontes, com as tnicas da incluso, da qualidade, da igualdade, e da aprendizagem ao longo da vida. Se podemos afirmar que a principal nfase de Jomtien foi a qualidade, entendida como o atendimento s necessidades bsicas de aprendizagem; se Dacar sublinhou o acesso com qualidade e a educao infantil, Incheon favoreceu as quatro dimenses acima e acrescentou a educao secundria. Mais ainda, no mbito das Naes Unidas, a

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    Agenda Educao 2030 refora a importncia da Educao para a realizao de todos os outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentvel da Naes Unidas, visando, entre outros, erradicao da pobreza, fome zero e agricultura sustentvel, ao trabalho decente e ao crescimento econmico, ao contra a mudana global do clima e a outros, no total de 17 objetivos, desdobrados em metas e previso de estratgias para a sua implementao e monitoramento. deste modo que a Declarao Universal dos Direitos Humanos, com os direitos educao, sade, trabalho e outros, se corporifica nos pactos em torno de objetivos explcitos e respectivas metas.

    No que concerne educao, vale destacar pelo menos duas metas, dentre as sete metas do ODS 4. A primeira garante que todas as meninas e meninos completem a educao primria e secundria, gratuita, equitativa e de qualidade, conduzindo a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes. Em outras palavras, reitera o acesso igualitrio com qualidade. A terceira meta refere-se igualdade de acesso a todos (homens e mulheres) educao tcnica, profissional e superior de qualidade, com preos acessveis, inclusive educao superior.

    Destas duas metas, relacionando os direitos educao e ao trabalho, a meta 4.4 prev aumentar significativamente o nmero de jovens e adultos que tenham habilidades relevantes para o emprego, o trabalho decente e o empreendedorismo. Trata-se de um avano indispensvel para o sculo XXI.

    Neste quadro histrico, o presente livro apresenta subsdios e propostas para fazer uma reflexo sobre o ensino mdio e a educao tcnica no Brasil. Trata-se de mais uma obra a focalizar o nvel formativo mdio, no tom da diversidade e da liberdade de apresentao de pontos de vista. No , porm, um fato isolado e, sim, parte de uma longa trajetria de debates, pesquisas, publicaes. Quando o ensino mdio era to restrito que se tratava primeiro do ensino fundamental como mais alta prioridade, a UNESCO j promovia reflexes. O mesmo sucedeu quando eclodiram as matrculas do ensino mdio e, depois, quando o ritmo arrefeceu. Seu angustiante declnio e provvel ociosidade de vagas, inclusive na educao de jovens e adultos, tambm tematizado aqui com base na resenha de pesquisas, ao lado de outros ns a desatar. H tambm propostas a discutir e perspectivas histricas altamente explicativas. Como a questo globalizada, aborda tambm a educao secundria em Portugal, para aquilatarmos o que nos

  • Prefcio | 9

    revelam similaridades e diferenas. Assim, acreditamos que a presente obra ser um subsdio importante para

    intensificar dilogos, no processo em curso de reforma do ensino mdio no Brasil. Dessa forma, une-se aos esforos que esto sendo realizados para concretizao das metas da agenda 2030. Agradecemos aos autores e organizadores por suas contribuies, esperando que a diversidade das sementes caia em solo frtil. Se emergem problemas, temos tambm a capacidade de lhes formular solues.

    Maria Rebeca Otero GomesCoordenadora de Educao da UNESCO-Brasil

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    INTRODUO

    O ensino mdio, por ser aquele que est no meio, entre o fundamental e o superior, o terreno onde se cruzam caminhos e em parte se definem trajetrias educacionais e sociais para pessoas e grupos. Ao longo do tempo, edificou-se relativa concordncia quanto ampliao do acesso e ao prolongamento dos estudos, conduzindo-os como escolaridade obrigatria at ao trmino ou quase da educao mdia ou secundria. Contudo, ao se abrir um leque de escolhas e selees, na verdade, mais selees que escolhas, o terreno se torna delicado, instvel mesmo. Diferenciados interesses advogam posies e disputam poderes, ora preservando entre muros certos territrios, ora se abrindo a propostas emergentes. Este movimentado labirinto dificulta o consenso, coisa que acontece no s no Brasil, mas em muitos outros pases, ainda mais com os horizontes do desenvolvimento sustentvel para 2030. Na Declarao de Incheon (2018) ponto fundamental a continuidade dos esforos para ampliar o acesso educao secundria, tendo como tnicas em todo o sistema educativo a inclusividade, a igualdade e a qualidade.

    Ainda sob estes aspectos transcendentes a realidades nacionais, faz parte da paisagem o mal-estar da ps-modernidade, hipermodernidade, modernidade lquida ou ainda da civilizao, comum pelo menos ao Ocidente. A educao uma das mltiplas faces desse mal-estar, com as perdas de sentido da instituio escolar, as redefinies das autoridades, o distanciamento cultural entre geraes, as mudanas do conhecimento, enfim, expresses do estilhaamento da

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    modernidade em crise. No raro a escola parece um marisco sem corpo, reduzido s suas conchas, a anunciar a necessidade de mudana de paradigmas. Por ora em parte se concretizam as promessas do elevador social pelo diploma, contudo inegvel o declnio do seu valor relativo, em face da sua multiplicao inflacionria. Ento, no mais to fcil convencer numerosos jovens a permanecer por crescente tempo dirio e tantos anos na escola, o que j implica filtros socioculturais. O saber acadmico enciclopdico j , para muitos alunos, inclusive os herdeiros do capital cultural, enorme plula dourada, difcil de engolir.

    Esta obra, escrita a muitas mos, no nem pode ser exaustiva. Por isso, chamamos tambm mos portuguesas para nos ajudarem com um fio no labirinto. Certa vez, verificamos que o roteiro do drama bem semelhante tanto l quanto c, como no poderia deixar de ser numa crise transcendente aos pases.

    Assim, comeamos propositivamente com a participao de Simon Schwartzman. Em prosseguimento, Candido Gomes, Ivar Vasconcelos e Silvia Coelho, estes organizadores, analisamos a pesquisa no Brasil, para verificar o ensino mdio, cujas transformaes poderiam lev-lo de patinho feio a cisne. Entretanto, para discutir tanto as propostas de Schwartzman como o balano da situao brasileira, preciso ler a histria, para atar as pontas do passado e do presente, a anunciar o futuro. Por isso, registremos bem a trajetria do ensino mdio e a da educao profissional, respectivamente analisadas por Clio da Cunha e Francisco Cordo. Segue-se o captulo de Fernanda Santos, Daniel L. Silva e Ranilce Guimares-Iosif, com foco no Distrito Federal. Ele nos remete s questes de uma Unidade Federativa, constitucionalmente responsvel pelo ensino mdio e ensino tcnico. Esta , pois, uma ordem de captulos mais psicolgica do que lgica, podendo-se at percorr-la do fim para o princpio.

    Ento, abrimos os horizontes para Portugal como parte da globalidade e da proximidade dos laos histrico-culturais. Jos Matias Alves trata dos velhos dilemas e das necessrias mudanas (l como c? uma das perguntas perplexas). E, abordando preocupaes comuns, Cristina Costa-Lobo, Brbara Quintela e Ana Cristina Almeida testam e avaliam a resoluo de problemas em escolas secundrias portuguesas.

    Num momento em que se buscam mtodos ativos como a ltima e vibrante novidade, com frequncia associada venda de equipamentos e anexos, cabe

  • Introduo | 13

    lembrar que a Educao Nova, j um movimento global, gestou tais mtodos ao fim do sculo XIX, sendo difundido no Brasil e em Portugal no incio do sculo seguinte.

    O leitor, nosso destinatrio, poder concordar e discordar, encontrar virtudes e limitaes, excessos a desbastar e lacunas a preencher. Com efeito, toda a literatura discutvel e precisa ser debatida. Entretanto, depois de dcadas de discusses sobre o ensino mdio, no construtivo lanar pedras para um lado e outro, importando reuni-las. Nem ajuda ser maniquesta, declarando que deste lado dia e do outro noite, porque ambos mudam no compasso de contnuas mudanas. De igual modo, ao reunir pedras e construir com elas, cabe faz-lo muito bem para oferecer respostas concretas. Esta, esperamos, a finalidade desta obra.

    Os Organizadores

    REFERNCIA

    UNESCO. Educao 2030: Declarao de Incheon e Marco de Ao. S/l., s/d. Disponvel em: . Acesso em: 13 fev. 2018.

    http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002432/243278POR.pdfhttp://unesdoc.unesco.org/images/0024/002432/243278POR.pdf

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    O NOVO ENSINO MDIO: O DIFCIL CAMINHO FRENTE

    Simon Schwartzman1

    A Nova Lei do Ensino Mdio

    O ensino mdio brasileiro foi redefinido pela Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (BRASIL, 2017), que teve origem na Medida Provisria (MP) n. 746 de setembro do ano anterior (BRASIL, 2016), e tem como pontos principais a diversificao do currculo escolar, que inclui o ensino tcnico como uma das opes de formao, e o financiamento ao ensino mdio de tempo integral. A inteno foi tentar resolver, ou pelo menos atenuar, os graves problemas do ensino mdio brasileiro, caracterizado pelas altas taxas de abandono e um currculo nico pretencioso, superficial e invivel, e totalmente orientado para a preparao para o Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem), estreita porta de acesso ao ensino superior pblico.2 A expectativa que, no novo formato, os estudantes possam escolher suas reas de formao, e que a preparao tcnica deixe de ser uma atividade complementar e se integre de forma mais plena educao mdia.

    1 Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, Rio de Janeiro.2 Para um panorama geral do ensino mdio brasileiro, e especialmente do ensino tcnico profissional, ver

    Schwartzman, 2016.

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    A lei especifica vrios aspectos do novo formato, como a distino entre a parte comum de formao e os chamados itinerrios formativos e o tempo dedicado a cada uma delas. Ela prev que a Base Nacional Curricular Comum para o ensino mdio, ainda por ser elaborada, deve definir os direitos e objetivos da aprendizagem em quatro grandes reas, linguagens, matemtica, cincias da natureza e cincias humanas, cada qual acrescida da frase e suas tecnologias. E tambm define estas quatro reas como os possveis itinerrios formativos entre os quais os estudantes podero optar, s quais acrescenta a opo de formao tcnica e profissional. Na parte comum, ficam como obrigatrios a matemtica, portugus, ingls, educao fsica, arte, sociologia e filosofia, ocupando um total mximo de 1.800 horas em trs anos, ou seja, 75% da atual carga horria de 2.400 horas que a que predomina ainda no pas.

    A lei d um prazo de cinco anos para que a carga horria de todo o ensino mdio chegue a trs mil horas, mas sem indicar de onde viro os recursos para isto, e sem fazer nenhuma referncia nem prever nenhuma medida para lidar com o grave problema do ensino mdio noturno, que em 2016 era atendido por 23% dos alunos dos cursos regulares e mais de 60% dos alunos de cursos tcnicos, pelos dados do Censo Escolar. Por outro lado, aloca recursos federais para complementar os custos de escolas pblicas que pretendam implantar regime de tempo integral. A previso em setembro de 2016 era que o governo investiria nisto 1,5 bilhes de reais em dois anos, elevando o nmero de estudantes em tempo integral para 500 mil, ou aproximadamente 6% das matrculas. Neste texto deixaremos de lado a questo do tempo integral, que s beneficia uma pequena parcela dos alunos, e por isto no tem maior significado a curto e mdio prazo como poltica educacional.

    A forma pela qual a nova legislao foi introduzida, como Medida Provisria, foi criticada por muitos como autoritria, e defendida pelo governo como uma maneira de levar concluso uma discusso que j vinha tramitando h anos no Congresso Nacional, e que dificilmente seria aprovada com presteza. Mais problemtico do que isto o fato de que a nova legislao no veio acompanhada de um documento que dissesse com clareza quais eram seus objetivos, e de que maneira os diversos dispositivos da Lei contribuiriam para eles. Na prtica, a lei incorporou uma srie de ideias que j vinham sendo discutidas sobretudo no

  • O novo ensino mdio: o difcil caminho frente | 17

    mbito do Conselho de Secretrios de Estado da Educao (Consed), e que foram sendo ajustadas ao longo da tramitao da MP, em funo de manifestaes de diferentes setores dentro e fora do sistema educativo. As decises mais substantivas sobre o que os alunos devero aprender foram adiadas e passadas para o Ministrio da Educao, responsvel pela elaborao das Bases Nacionais Curriculares do Ensino mdio.

    Os debates havidos durante e depois da tramitao da nova legislao mostram grande incerteza sobre como esta nova legislao ser implementada, e que resultados obter. As dvidas incluem, entre outras, a questo do peso relativo e do contedo da parte geral e dos itinerrios formativos; a questo de como as opes sero oferecidas e escolhidas pelos alunos; a questo dos contedos do ensino tcnico e profissional; e a questo de como os resultados das diferentes opes na rea tcnica e acadmica sero avaliados e validados.

    A polmica da formao geral e diferenciao do ensino mdio

    A nova legislao, aparentemente, rompe com o entendimento havido no Brasil nos ltimos anos, e sancionado pelo Conselho Nacional de Educao, de que o ensino mdio deveria ser abrangente, cobrindo 13 ou mais disciplinas obrigatrias, e igual para todos. Esta concepo, curiosamente, combina duas concepes antagnicas. A primeira a viso tradicional do ensino mdio como curso elitista e propedutico, voltado exclusivamente preparao para o ensino superior. A segunda tem origem nas teorias pedaggico-polticas do intelectual marxista italiano Antonio Gramsci, que, escrevendo nos anos 30, criticava a separao que havia na Europa entre o ensino acadmico, destinado aos filhos das classes mdias e altas que se preparavam para as universidades, e o ensino profissional, que preparava os filhos de operrios para as atividades mais prticas e intelectualmente menos demandantes requeridas pelo mercado de trabalho. Esta diviso, segundo ele, perpetuava a hegemonia intelectual das classes mdias e altas sobre a classe operria, situao que s poderia ser revertida se os filhos dos operrios tivessem a mesma educao clssica e geral proporcionada aos filhos da burguesia. A partir de uma perspectiva de esquerda, Gramsci defendia uma

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    pedagogia conservadora, que inclusive se opunha incorporao de componentes da cultura popular e local nos currculos escolares (ENTWISTLE, 1979). Estas teorias foram trazidas ao Brasil por diversos autores de formao marxista, e adotadas pelo Conselho Nacional de Educao.

    Para conciliar a concepo tradicional da educao secundria com a necessidade de abrir espao para a educao profissional, o Conselho Nacional de Educao elaborou uma concepo segundo a qual as dezenas ou centenas de reas diferentes de formao profissional estariam agrupadas em eixos tecnolgicos, dotados, cada um, de uma matriz tecnolgica e um ncleo politcnico comum correspondente a cada eixo tecnolgico em que se situa o curso, que compreende os fundamentos cientficos, sociais, organizacionais, econmicos, polticos, culturais, ambientais, estticos e ticos que aliceram as tecnologias e a contextualizao do mesmo no sistema de produo social (BRASIL, 2012, cap. 2). Os alunos do ensino tcnico deveriam no s estudar esta matriz e este ncleo politcnico como tambm os conhecimentos e as habilidades nas reas de linguagens e cdigos, cincias humanas, matemtica e cincias da natureza, vinculados Educao Bsica, de acordo com as especificidades dos cursos tcnicos. Com isto, o Brasil se tornou o nico pas do mundo em que as exigncias de formao tcnica, ou vocacional, so maiores do que as da educao geral.

    importante dizer que esta noo de que o mundo das profisses e das tcnicas est organizado em matrizes tecnolgicas e ncleos politcnicos uma construo cerebral com pouca ou nenhuma relao com a realidade de como as profisses realmente se estruturam e como as tecnologias se organizam e se desenvolvem. A tecnologia e o conhecimento no se organizam de forma hierrquica, a partir de matrizes, fundamentos ou ncleos politcnicos, mas por processos muito mais abertos e diversificados, que vo incorporando prticas e conhecimentos que so ou no organizados em teorias ou tradies de trabalho mais ou menos estruturadas, e em permanente modificao (GIBBONS et al., 1994). O equvoco deste entendimento adotado pelo Conselho Nacional de Educao no teria maior importncia se no tivesse levado, na prtica, a trs consequncias srias: primeiro, ao tornar o ensino tcnico e profissional to ou mais difcil e complexo do que o ensino mdio geral, j que precisaria incorporar toda esta matriz tecnolgica, e mais o ncleo politcnico, e mais os conhecimentos

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    e habilidades gerais da linguagem, cincias humanas, matemtica e cincias da natureza; e segundo, criao de um agrupamento em grande parte arbitrrio das centenas de profisses listadas pelo Ministrio da Educao em 13 eixos tecnolgicos que tm sido usados em propostas de organizao dos currculos e dos sistemas de avaliao do ensino profissional (BRASIL, 2015).

    A terceira consequncia foi o uso do conceito de politecnia para justificar, em 2008, a transformao dos antigos Centros Federais de Educao Tcnica (Cefets) de nvel mdio em Institutos Federais de Educao, Cincia e Tecnologia de nvel superior, que se propem a oferecer ensino tcnico e mdio de forma integrada tal como postulado pelo CNE a um nmero pequeno e selecionado de estudantes 151 mil, segundo o censo escolar de 2016, em um contingente de oito milhes de estudantes de ensino mdio no pas. Para os professores e funcionrios dos antigos Cefets, foi um ganho importante em termos de carreira e prestgio profissional, j que foram promovidos do nvel mdio para o nvel superior. Sobre os estudantes, no h informaes suficientes para dizer se eles de fato esto efetivamente adquirindo uma formao politcnica ou, como parece ser o caso, esto simplesmente aproveitando a oportunidade de estudar em tempo integral em escolas bem equipadas e financiadas para disputar vagas no ensino superior. De fato, no Exame Nacional de Ensino Mdio (Enem) de 2015, em torno de 32 mil alunos de estabelecimentos federais participaram, obtendo uma mdia de 590 pontos, superior dos estudantes de escolas privadas, 580, e muito acima dos estudantes das escolas estaduais, 490 pontos (tabulao dos microdados do Enem 2015). Alm do privilgio das condies excepcionais de estudo que tiveram, estes estudantes tambm so considerados cotistas, por serem provenientes de escolas pblicas. No se trata, claramente, de uma alternativa de formao para a grande massa de jovens que hoje mal acedem ao ensino mdio e no tm chances de chegar ao ensino superior.

    A adoo de um currculo nico de tipo acadmico, orientado sobretudo para preparao para o Exame Nacional do Ensino Mdio, e as altas exigncias postas sobre a educao profissional, supem que seja possvel recuperar nos trs anos do ensino mdio as competncias que no foram adquiridas at ento, e ainda proporcionar os ambiciosos contedos do currculo tradicional. Esta suposio totalmente irrealista, e o resultado que, ou os cursos baixam as

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    expectativas, reduzindo ao mnimo o que os estudantes precisam fazer para receber o certificado de ensino mdio, ou mantm nveis altos de exigncia para os que vm com mais recursos e se preparam para as universidades, fazendo com que os demais percam o interesse e acabem abandonando os estudos. Alm disto, como os cursos mais exigentes se dedicam sobretudo a preparar os estudantes para o Enem, fica a dvida de se estes cursos realmente do aos alunos uma boa formao ou simplesmente um treinamento para as provas.

    Alm dos altos desnveis de formao prvia dos estudantes, existem tambm diferenas de motivao que fazem com que os estudantes tenham mais interesse em, digamos, cincias sociais do que em cincias naturais ou literatura. Ao chegar com 15 anos no ensino mdio, os jovens j vm com uma condio educacional em grande parte consolidada, adquirida em maior ou menor grau desde o ambiente materno e a pr-escola, e muito difcil de alterar; j tm ideias e interesses prprios e diferentes sobre o que gostariam de fazer e ser; e no tm capacidade, mesmo os mais qualificados, de seguir com proveito e em profundidade 13 ou 15 matrias diferentes. O ideal renascentista de uma educao completa em todas as reas do conhecimento, se j era questionvel no passado, completamente anacrnico no sculo 21, com a gigantesca expanso havida da cincia e da tecnologia em todas as reas. Se estes fatos bastam para mostrar a inviabilidade do ensino mdio tradicional, eles no so suficientes, no entanto, para dizer como este novo ensino mdio deve ser organizado.

    Os contedos da formao comum

    Uma parte importante da discusso sobre a nova Lei do Ensino Mdio foi a questo do peso relativo da parte comum e da parte diferenciada no currculo. A opo era entre manter o sistema atual, introduzindo alguma flexibilidade de escolha, ou fazer uma diferenciao efetiva, fazendo com que os estudantes pudessem efetivamente se concentrar, desde o incio, em suas reas opcionais de formao.

    Sem cair nos exageros e no formalismo das resolues do Conselho Nacional de Educao, existem boas razes para defender a importncia de uma educao que proporcione a todos os estudantes do ensino mdio conhecimentos

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    e competncias mais gerais que lhes permitam exercer mais opes ao longo da vida, e no os aprisione em uma capacitao estreita, que pode ser efmera, dada a alta velocidade das mudanas tecnolgicas que vm ocorrendo em todo o mundo; e possvel identificar, na prtica e de forma indutiva, conjuntos de atividades profissionais que compartem as mesmas tecnologias e requerem conhecimentos cientficos semelhantes, e por isto podem ser ensinadas de forma agrupada.

    Existe um forte consenso de que todos os estudantes, independentemente de suas reas de formao, precisam ter o domnio da lngua portuguesa e do raciocnio matemtico, e que a capacitao nestas reas, que precria na grande maioria das escolas de educao fundamental, deve continuar no nvel mdio. Existe tambm consenso que a lngua inglesa, como lngua franca internacional, deve fazer parte do currculo comum. Tambm existe consenso de que a educao mdia deve incluir contedos que desenvolvam e ampliem a cultura cvica dos estudantes, ou seja, sua compreenso sobre as caractersticas e os problemas da sociedade mais ampla em que vivem. Existem duas questes em relao a isto, o relacionamento entre esta parte geral ou comum da formao e os itinerrios formativos, e o tamanho e contedos especficos desta parte comum.

    O ideal que os estudantes desenvolvam sua capacidade de uso da linguagem, da matemtica, do ingls e de cultura cvica no contexto de suas reas de formao, e no de forma separada e em abstrato. Isto, alis, estava previsto na Resoluo do Conselho Nacional de Educao de 2012, ao postular que a formao geral deveria permear o currculo dos cursos tcnicos de nvel mdio, de acordo com as especificidades dos mesmos, como elementos essenciais para a formao e o desenvolvimento profissional do cidado (BRASIL, 2012, art. 13, III). Fazer isto no trivial, e depende muito de como o currculo escolar se organiza. A prtica, no Brasil, tem sido a de organizar uma grade curricular com uma distribuio das matrias pelos horrios ao longo da semana, cada uma com um professor responsvel por um currculo a ser cumprido, ficando por conta do aluno juntar estes assuntos diferentes em sua cabea; e, nos poucos cursos tcnicos que existem, a parte geral e a parte tcnica so dadas de forma separada, frequentemente em turnos distintos, sem nenhum dilogo ou integrao pedaggica e temtica entre si. Esta fragmentao existe na educao brasileira desde o incio da segunda etapa da educao fundamental, no sexto ano, quando os estudantes deixam de ter uma

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    professora nica e passam a ter uma professora por matria, e tem sido apontada como uma das causas da desorientao e perda de interesse que ocorre de forma crescente a partir deste nvel. Este problema poderia ser minorado se houvesse um esforo mais sistemtico de coordenar os contedos das diversas disciplinas, e se cada estudante fosse vinculado a uma orientadora de referncia com quem pudesse conversar sobre a organizao e o planejamento de seus estudos. Em um sistema diversificado de ensino mdio, a coordenao do currculo, incluindo a parte comum, deveria ser de responsabilidade da rea diversificada, que tambm deveria ter a responsabilidade pela orientao individualizada dos alunos. Com isto o ensino de matemtica, por exemplo, poderia ser dado de forma aplicada s questes tpicas da rea de formao, e o mesmo se faria com os contedos de lngua portuguesa, ingls, e s questes de natureza social.

    Este tema, da integrao efetiva entre a parte comum e a parte opcional de formao, no apareceu nas discusses da Medida Provisria, que se concentraram na questo do nmero de horas a serem dedicadas a cada uma das partes e das matrias a serem includas. Na Medida Provisria, a previso era que o tempo mximo para a parte comum seria de 1.200 horas, igual, portanto, ao tempo dos itinerrios de formao. Na verso final, o tempo da parte comum foi ampliado para 1.800 horas, e ainda foi includa a obrigatoriedade do ensino da educao fsica, artes, sociologia e filosofia, que no constavam da MP. A outra inovao da lei em relao Medida Provisria foi a referncia explcita s quatro reas do conhecimento (linguagens, matemtica, cincias da natureza e cincias humanas), uma classificao que data dos parmetros curriculares de 2000, no s como o contedo da Base Nacional Curricular Nacional, mas tambm como os quatro possveis itinerrios formativos, alm da formao tcnica e profissional.

    Estas modificaes significaram um claro retrocesso da lei em relao proposta que vinha sendo discutida no Consed e que serviu de base para a Medida Provisria. A no referncia s artes, educao fsica, sociologia e filosofia na Medida Provisria foi intencional, no porque estes contedos fossem considerados sem importncia, mas porque se buscava voltar concepo original da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que mencionava estes diferentes contedos de forma genrica, mas que foram depois transformados em obrigatoriedade legal pelo Congresso, como resultado da mobilizao das respectivas corporaes

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    profissionais, sobrecarregando e enrijecendo o currculo. A nova lei do ensino mdio eliminou a obrigatoriedade do ensino do espanhol, que havia sido estabelecida pela Lei n. 11.161, de 5/8/2005 (BRASIL, 2005), mas no ousou fazer o mesmo com as demais. A obrigatoriedade da educao fsica consta da Lei n. 10.793, de 1/12/2003 (BRASIL, 2003). A obrigatoriedade do ensino da sociologia e da filosofia em todas as sries do ensino mdio foi estabelecida por lei em 2008, Lei n. 11.684 (BRASIL, 2008), deixando de lado contedos pelo menos to relevantes das cincias sociais como a economia, o direito e a antropologia; e obrigatoriedade do ensino de artes foi criada pela Lei n. 13.278 (BRASIL, 2016). Nada disto foi alterado.

    O resultado foi que os itinerrios formativos, que na verso inicial da MP deveriam ser a parte central do ensino mdio, passaram a ser uma parte menor e secundria. Ainda que sem mencionar, a nova legislao d continuidade ideia, enfatizada no documento dos Parmetros Curriculares de 2000, de que o ensino mdio deve ser parte da educao bsica, a etapa final de uma educao de carter geral, afinada com a contemporaneidade, com a construo de competncias bsicas, que situem o educando como sujeito produtor de conhecimento e participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como sujeito em situao cidado, e no, como ocorre no resto do mundo, uma etapa distinta, de transio entre os estudos gerais e a vida profissional (BRASIL, 2000).

    Na maior parte do mundo, a educao at os 17 ou 18 anos, fora a pr-escola, se divide em trs nveis, o primrio, o secundrio inferior e o secundrio superior. Na classificao internacional da educao adotada pela (UNESCO, 2011), a educao primria, de nvel 1, se destina a prover os estudantes com as habilidades fundamentais em leitura, escrita e matemtica (ou seja, alfabetizao e clculo) e estabelecer uma base slida para aprender e compreender as principais reas do conhecimento e desenvolvimento pessoal e social. No secundrio inferior, nvel 2, o objetivo expandir os conhecimentos e competncias da educao primria, criando os fundamentos para a expanso de oportunidades educacionais ao longo da vida. O secundrio superior de nvel 3, finalmente, se destina a completar o ensino secundrio em preparao para o ensino superior ou fornecer habilidades relevantes para o emprego, ou ambos. Os programas deste nvel oferecem aos estudantes uma instruo mais especializada e aprofundada do que os do nvel

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    anterior. Eles so mais diferenciados, com a disponibilidade de um leque crescente de opes e itinerrios. Os professores so em geral altamente qualificados nos temas ou especializaes que ensinam, particularmente nas sries mais avanadas.

    O Brasil j havia se afastado das melhores prticas internacionais ao fundir a antiga educao primria com o antigo ginsio, criando uma educao fundamental de 8 e depois 9 anos e que na prtica continuou dividida em dois ciclos, unificados somente no papel e na burocracia administrativa. Os parmetros curriculares para o ensino mdio, ao eliminar a possibilidade de opes no ensino mdio, acentuaram este afastamento. O objetivo da nova lei do ensino mdio era reaproximar o Brasil das prticas internacionais, o que se frustrou em grande parte pela ampliao excessiva da parte comum com incluso de matrias obrigatrias, em detrimento do espao para os itinerrios formativos e a formao profissional.

    As reas de conhecimento e os itinerrios formativos

    Ignorando os argumentos em contrrio e sem considerar as experincias de outros pases, a Medida Provisria optou por listar, como itinerrios optativos, a mesma classificao de trs reas de conhecimento adotada nos parmetros nacionais curriculares para o ensino mdio de 2000, e transformada em quatro nos anos seguintes com a separao da matemtica. uma classificao estranha, que junta no mesmo grupo de Linguagens, Cdigos e Suas Tecnologias coisas totalmente distintas como Lngua Portuguesa, Lngua Estrangeira Moderna, Arte, Educao Fsica e Informtica, que requerem formao e opes profissionais totalmente distintas. A rea de Cincias Humanas e suas Tecnologias engloba Filosofia, Geografia, Histria e Sociologia, e ignora a existncia da Economia e do Direito; e a rea de Cincias da Natureza e suas Tecnologias inclua originalmente Fsica, Qumica, Biologia e Matemtica. Como os matemticos no se sentiam confortveis neste grupo, e menos ainda no grupo das linguagens, acabaram conquistando o direito a uma categoria prpria.

    Diversos documentos do Ministrio da Educao, e em especial as Orientaes Educacionais Complementares aos Parmetros Curriculares Nacionais de 2002, PNC+ Ensino Mdio (BRASIL, 2002), tratam de justificar esta classificao e

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    mostram a necessidade da interdisciplinaridade, mas, na prtica, com o currculo organizado por disciplinas estanques, a maneira pela qual elas so classificadas irrelevante. O acrscimo da expresso e suas tecnologias a cada categoria exprime a inteno de juntar a teoria com a prtica, o que praticamente nunca ocorre. A classificao se tornou importante quando foi utilizada, a partir 2009, para organizar as provas do Enem, e a mesma classificao foi mantida agora para os itinerrios formativos na nova lei do ensino mdio.

    Uma comparao com as opes adotadas na Frana para as provas do Baccalaurat, que marcam a concluso do ensino mdio, mostra o equvoco desta classificao. Existem trs tipos de Bac, o geral, que mais acadmico, o tecnolgico e o profissional. O geral se divide em trs linhas, o econmico e social, o literrio e o cientfico; o tecnolgico prepara para a pesquisa cientfica e tecnolgica tanto industrial quanto na rea de servios e administrao, assim como para cursos avanados na rea tecnolgica; e o profissional prepara para carreiras tcnicas menos especializadas.

    A grande virtude do modelo francs que ele est organizado em funo das futuras alternativas de estudo avanado e de insero na vida profissional e no mercado de trabalho, e no de uma classificao arbitrria de reas de conhecimento. No Brasil ainda no se reconhece a distino que existe em todo mundo entre as cincias sociais, que incluem a economia e a sociologia, e as humanidades, que incluem a literatura, a filosofia e as artes. No uma diviso estanque, inclusive pela existncia de diferentes correntes de trabalho dentro das cincias sociais que se aproximam mais das humanidades do que das cincias sociais, mas nem por isto deixa de ser importante, pois aponta para atividades profissionais e intelectuais bem distintas. Esta distino aparece claramente no formato francs, que coloca de um lado a rea econmica e social, e por outro a literria, que inclui lnguas, literatura e artes. A matemtica no aparece na Frana como rea isolada, porque um componente indispensvel de todas as demais, tanto quanto a lngua materna; e na rea de formao profissional existe uma distino clara entre a formao de alto nvel, tecnolgica e aplicada, e a formao profissional mais bsica, vocacional.

    Se, por um lado, a nova legislao do ensino mdio frustra o objetivo de criar verdadeiras opes de formao no ensino mdio, por outro, ela facilita o

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    trabalho das secretarias de educao e das escolas, que podem continuar fazendo basicamente o mesmo que j faziam, alterando simplesmente a carga horria das diversas disciplinas para os alunos. Muito se tem falado, depois da promulgao da nova lei, sobre a situao de um grande nmero de municpios que tm somente uma escola, e que teriam dificuldade em oferecer um currculo com diferentes opes de formao. Isto seria um problema se estas opes significassem uma forte estruturao dos currculos ao redor de temas como artes e literatura, por um lado, e cincias econmicas e sociais, por outro, ou cincias naturais, por exemplo; mas no tem maior dificuldade se o que se pretende simplesmente permitir que os alunos possam dedicar mais horas a determinado conjunto de disciplinas do que a outros.

    Mas uma diversificao efetiva dos currculos no pode consistir simplesmente na escolha de algumas matrias em lugar de outras, embora isto seja um primeiro passo e um avano em relao ao modelo unificado vigente. necessrio que exista, dentro da escola, uma coordenao especfica para cada itinerrio oferecido, que possa zelar pela coerncia do currculo, integrando a parte de formao especfica com a de formao geral, em permanente dilogo com os professores e alunos. Em outras palavras, necessrio ter um ou mais projetos pedaggicos bem estruturados e que sejam mais do que uma simples declarao de intenes. Fazer isto no simples, e por isto mesmo de se esperar que a efetiva implantao de um sistema diferenciado de itinerrios seja um processo relativamente lento e gradual.

    As questes da educao vocacional

    As discusses havidas e a repercusso da reforma do ensino mdio na imprensa deram destaque aos possveis problemas com a diversificao do currculo acadmico, mas quase no tocaram na questo muito mais complicada de como ampliar e incorporar a educao vocacional no novo modelo.3

    3 O termo vocacional melhor do que o tcnico, utilizado no Brasil para designar a educao profissio-nal de nvel mdio, que transmite a ideia falsa de que se trata de uma educao voltada para as tecnologias industriais, quando na realidade abrange todo o conjunto de qualificaes prticas para o mercado de trabalho, em grande parte na rea de servios.

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    Idealmente, os cursos vocacionais deveriam proporcionar ao estudante uma qualificao valorizada no mercado de trabalho, sem descuidar da formao geral, e permitindo que ele possa, se quiser, prosseguir seus estudos em nvel ps-secundrio ou universitrio. A nova legislao resolve o terceiro objetivo, ao integrar o ensino vocacional ao mdio, que deixa de ser um curso complementar; e tenta resolver o segundo, com as limitaes j discutidas, ao estabelecer o requisito de uma base de formao comum. O primeiro objetivo, no entanto, mais difcil de assegurar.

    No novo modelo, formalmente, a opo pelo itinerrio tcnico e profissional, ao invs de um dos itinerrios acadmicos, uma escolha dos estudantes, dentro da oferta disponvel. No entanto, dada a grande valorizao que existe na cultura brasileira do diploma universitrio, e o grande diferencial de renda entre pessoas de educao mdia e superior, a opo pelo itinerrio tcnico acaba funcionando, na grande maioria dos casos, como uma segunda opo para os estudantes que, por suas condies prvias de formao ou de situao econmica, no teriam condies de ingressar no nvel superior. Este no o caso do pequeno nmero de jovens estudantes que conseguem entrar, atravs de exames seletivos, nos poucos cursos tcnicos de tempo integral dos institutos federais ou do Centro Paula Souza, que na verdade se valem do privilgio para se prepararem para os cursos superiores. Mas no para eles que o ensino mdio vocacional precisa se expandir e consolidar. O pblico preferencial para os estudantes do ensino vocacional so os milhes que hoje esto nos cursos mdios de baixa qualidade, nos cursos noturnos e na Educao de Jovens e Adultos (EJA), cujas limitaes, dificuldades e necessidades especficas precisam ser consideradas.

    Uma questo central aqui, amplamente reconhecida, mas raramente tratada de forma explcita, em que medida o ensino vocacional uma maneira de lidar com o grande nmero de pessoas que chegam ao ensino mdio sem as mnimas condies de concluir o currculo propedutico tradicional, seja pela precariedade da formao anterior, ou por necessidade de trabalhar, ou, quase sempre, por uma combinao das duas. A nica alternativa oferecida a estas pessoas no sistema antigo era a chamada Educao de Jovens e Adultos (antigos cursos de madureza), uma maneira compacta de pessoas mais velhas cumprirem o currculo acadmico em menos tempo, cuja eficcia reconhecidamente muito baixa, tanto

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    pelos altos nveis de evaso quanto pela precariedade da formao proporcionada (no Enem de 2016 havia 269 mil candidatos que declararam ter cursado o ensino mdio total ou parcialmente em cursos EJA, e sua mdia de nota foi 470 pontos, muito abaixo da mdia de 514 dos alunos do ensino mdio regular).

    A maneira correta de se lidar com esta enorme diferenciao que existe na populao estudantil oferecer uma ampla variedade de itinerrios formativos, que possam ser adequados aos diferentes nveis de formao e condio de vida, e permitir que avancem a partir da. O exemplo da Frana aponta para o como lidar com esta questo. Primeiro, existe uma clara distino entre cursos tecnolgicos mais complexos e cursos de formao tcnica profissional mais simples. Depois, os cursos tcnicos se do em parceria com o setor produtivo, combinando estudo com experincia prtica; existe uma via de formao centrada na aprendizagem, e a possibilidade de adquirir um certificado de aptido profissional ou um brevet de estudos profissionais intermedirios. Nos Estados Unidos, as high schools oferecem uma ampla variedade de escolhas, de tal maneira que todos terminam com alguma qualificao, mas no necessariamente as mesmas. As competncias mais gerais, que devem ser comuns a todos, se resolvem tanto quanto possvel no secundrio inferior, ou seja, no que corresponde no Brasil ao segundo ciclo do ensino fundamental, ou ento de forma integrada e no contexto das reas de formao diferenciadas. A deciso dos legisladores brasileiros de manter um currculo comum de nvel mdio ocupando a maior parte do tempo dos estudantes, inclusive os das carreiras vocacionais, pode funcionar como uma grave barreira para muitos estudantes para os quais estes contedos, se dados de forma convencional e dissociados de sua rea de formao, continuaro significando uma grande perda de tempo e um mecanismo de reprovao e excluso, como ocorre hoje com o sistema unificado.

    Que tipo de formao, alm da parte comum, deve ser dada aos estudantes nos itinerrios vocacionais? Existe um consenso crescente entre os especialistas que os trabalhos de rotina, braal ou intelectual, est desaparecendo rapidamente pela automao digital e pela inteligncia artificial, e que faz pouco sentido formar pessoas para profisses rotineiras que esto em processo de extino. Cada vez mais, os mercados de trabalho exigem, em uma ponta, pessoas capazes de trabalhar em atividades complexas que requerem alto nvel de formao; ou,

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    na outra, em atividades de relacionamento e servios personalizados, em que predomina a necessidade de competncias emocionais e sociais de autocontrole, motivao, responsabilidade, capacidade de relacionamento social e de trabalhar em equipe, que pressupem, como requisito mnimo, o domnio da lngua culta. Se estas transformaes no mercado de trabalho vo criar uma situao permanente de desemprego para grande parte da populao, ou se, como afirmam os economistas, os empregos tradicionais sero substitudos por novos tipos de emprego e de trabalho, ainda est por ser visto. Hoje, o que se observa no Brasil e em muitos outros pases um forte desemprego que atinge sobretudo s pessoas mais jovens, e que no parece que pode se reverter simplesmente com a reativao e modernizao da economia.

    Este problema do desemprego que atinge com mais fora os mais jovens e os menos educados no pode ser resolvido pela educao vocacional, mas necessrio lidar com ele oferecendo conhecimentos e experincias educacionais e prticas mais ricas, que incluam uma nfase explcita nas competncias emocionais e sociais, dando aos estudantes a flexibilidade para adquirir novas competncias quando necessrio, e se adaptar a um mercado de trabalho cambiante.

    A experincia internacional mostra que os sistemas mais bem-sucedidos de formao vocacional so aqueles em que o componente de aprendizagem prtica mais forte. A aprendizagem consiste no envolvimento direto do estudante na execuo do trabalho em uma empresa, sob a superviso e orientao de um profissional mais experiente. Para que ela possa ocorrer, a empresa tem que estar interessada e envolvida neste trabalho educativo, e atuar em colaborao com as autoridades educacionais para combinar o aprendizado prtico com a formao geral dada no ambiente escolar. A legislao brasileira estabelece a obrigatoriedade de contratao de jovens aprendizes nas empresas de mdio e grande porte, Lei n. 10.097, (BRASIL, 2000), mas, ao mesmo tempo, impede que os menores de 18 anos participem de fato das oficinas e linhas de produo, e atribui ao sistema S a responsabilidade pela formao profissional dos alunos. O resultado na prtica que, ao invs de se constituir em um processo de alta qualificao profissional com participao do setor produtivo, fortemente vinculado ao ensino mdio e mesmo superior, como ocorre em outros pases, o sistema de aprendizagem profissional brasileiro funciona sobretudo como um programa assistencial

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    para um nmero limitado de jovens carentes, cujo resultado do ponto de vista formativo desconhecido, mas provavelmente muito baixo.

    O sistema brasileiro de aprendizagem precisa ser modificado e se expandir, mas este processo ser necessariamente lento e gradual. Existem outras formas menos estruturadas de cooperao com a educao vocacional e o sistema produtivo que podem ser implementadas desde j, com parcerias locais para a identificao de demandas de mo de obra, envolvimento do setor empresarial na definio dos currculos dos cursos, estgios, cesso de equipamentos, e outras formas. A nova legislao permite que pessoas com experincia no mercado de trabalho, mas sem titulao formal, possam se qualificar como professores e instrutores da educao vocacional. Este tipo de colaborao das escolas com o setor produtivo no faz parte da cultura das redes escolares brasileiras, mas pode e deve ser ampliado.

    A questo das certificaes e avaliaes

    Uma questo final relativa ao ensino mdio como um todo, mas que afeta particularmente aos estudantes dos itinerrios vocacionais, como certificar e avaliar os resultados dos cursos. No Brasil no existem exames nacionais de certificao do ensino mdio, como o Bac francs ou o Abitur alemo, e cada escola certifica os alunos que gradua, a partir da autorizao que tm de funcionar como estabelecimento de ensino. Em princpio, as escolas podem continuar a fazer isto no sistema diferenciado, simplesmente registrando, no diploma, o itinerrio formativo seguido pelo estudante. Existe o risco, no entanto, de que este registro se transforme em uma mera formalidade burocrtica, tal como ocorreu com a obrigatoriedade de formao profissional no ensino mdio estabelecida pela legislao de 1971, Lei n. 5.692 (BRASIL, 1971), que acabou sendo revogada por impraticvel. O mais adequado seria que os projetos pedaggicos dos diferentes itinerrios formativos passassem por uma avaliao externa, a partir da qual as escolas ficassem autorizadas a emitir os respectivos certificados de concluso. Para os cursos vocacionais, ou as escolas teriam que obter autorizaes especficas para cada uma das opes que ofeream, ou as certificaes seriam dadas por parceiros

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    que tenham esta competncia reconhecida, como o caso das instituies do sistema S ou, em alguns casos, as respectivas associaes profissionais. Um sistema como este no pode ser implantado da noite para o dia, porque corre o risco de se transformar em mais um dos rituais burocrticos que sobrecarregam inutilmente o sistema escolar do pas. Mas talvez seja possvel criar uma certificao voluntria das escolas que decidam submeter seus programas de formao diferenciada avaliao externa, e incentivos para que isto seja feito.

    O mais prximo que existe no Brasil a uma certificao externa do ensino mdio o Exame Nacional do Ensino Mdio, o Enem, que uma prova voluntria, cujo resultado no aparece no registro escolar nem no diploma do estudante, e cujo principal objetivo qualificar o estudante para ingressar nas universidades pblicas, ou obter uma bolsa de estudos ou financiamento para o ensino superior privado. O novo ensino mdio requer substituir o atual Enem por uma avaliao que tome em conta a diversificao do currculo que est sendo implementada. O caminho, para as opes de formao geral, relativamente simples: dividir o atual exame em duas partes, uma mais geral, centrada nas competncias de linguagem e matemtica, e a outra, dividida em exames especficos para os diferentes itinerrios formativos. Para o ensino tcnico e profissional, o que tem sido proposto que fossem realizados treze exames diferentes, correspondentes aos treze eixos tecnolgicos definidos pelo Ministrio da Educao. A grande dificuldade que estes eixos padecem do mesmo problema que a classificao das reas de conhecimento: eles so um agrupamento em arbitrrio, dado que as matrizes tecnolgicas e os ncleos tecnolgicos no existem no mundo real. O eixo de ambiente e sade, por exemplo, inclui tcnicos em equipamentos biomdicos, tcnico em meteorologia e tcnico em prtese dentria; o eixo de desenvolvimento educacional e social inclui tcnico em biblioteconomia e tcnico em traduo e interpretao de Libras, e assim por diante.

    Muitos pases tm lidado com este problema pela criao de um marco nacional de qualificaes (National Qualifications Framework) que definiria em detalhe as competncias requeridas de cada profisso, assim como os mecanismos de certificao para estas competncias. Embora recomendados por organismos como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), estes marcos nacionais tm sido criticados, entre outras coisas, por excesso de detalhe e proliferao de

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    profisses e certificados irrelevantes e no reconhecidos pelo mercado de trabalho (ALLAIS, 2001; WOLF, 2011). J houve no Brasil um esforo inicial de desenvolver um marco de competncias deste tipo, mas parece mais prudente, pelo menos no primeiro momento, identificar algumas reas de maior demanda que comportem ou requeiram uma certificao profissional, a ser feita com a participao de entidades pblicas ou privadas que tenham competncia para isto, e deixar a validao dos demais cursos para os responsveis pela sua implementao, sejam a prpria escola ou instituies parceiras como o Servio Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) ou Servio Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).

    Concluses

    Esta reviso de alguns dos pontos principais da nova lei do ensino mdio no nos transmite muito otimismo sobre o sucesso de sua implementao. Se trata de uma lei tmida, que mantm muitas das preconcepes e preconceitos do sistema anterior, e no abre espao suficientemente amplo para a diferenciao requerida. As questes mais fundamentais dos currculos foram transferidas para as Base Nacional Curricular Comum que dever ser sancionada pelo Conselho Nacional de Educao, cuja tradio at aqui tem sido contrria a um sistema diferenciado. E o governo nada disse sobre a necessidade de alterar o Enem para se adaptar ao novo sistema.

    Independentemente das limitaes da nova lei, existem muitas experincias interessantes de diversificao e de aumento da oferta de educao vocacional que esto ocorrendo, sobretudo no setor privado, que fica geralmente fora do radar do Ministrio da Educao e suas agncias reguladoras. A nova lei precisa ainda ser regulamentada, e existe a possibilidade de que ela seja interpretada de forma ampla, deixando margem s redes escolares para experimentar diferentes modelos de organizao dos cursos em suas diferentes modalidades.

    Em todas as partes do mundo, o ensino mdio complexo, com diferentes trajetrias, diplomas e certificados, no esforo de atender s grandes diferenas dos estudantes e das demandas de qualificaes do mercado de trabalho e do ensino superior. A atual lei brasileira abre uma janela neste sentido, que, ou

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    se mostrar suficiente para permitir que o ensino mdio melhore e crie mais e melhores oportunidades para a populao estudantil, ou vai precisar ser revista em um futuro prximo.

    Referncias

    ALLAIS, Stphanie. National Qualifications Frameworks: whats the evidence of success? In: National Qualifications Frameworks: what's the evidence of success? CES Briefing, University of Edinburgh, 2001.

    BRASIL. Parmetros curriculares nacionais: ensino mdio. Braslia: MEC, 2002.

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    BRASIL. Presidncia da Repblica. Medida Provisria n 746, de 22 de setembro de 2016. Institui a Poltica de Fomento Implementao de Escolas de Ensino Mdio em Tempo Integral, altera a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, e a Lei n 11.494 de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao, e d outras providncias. Dirio Oficial [da] Repblica Federativa do Brasil, Braslia, 23 set. 2016. Disponvel em: . Acesso em: 5 mar. 2017.

    BRASIL. Presidncia da Repblica. Lei n 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o fundo de manuteno e desenvolvimento da educao bsica e de valorizao dos profissionais da educao, a Consolidao das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n 5.452, de 1 de maio de 1943, e o Decreto-Lei n 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei n 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Poltica de Fomento Implementao de Escolas de Ensino Mdio em Tempo Integral. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 17 fev. 2017. Disponvel em: . Acesso em: 5 mar. 2017.

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    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13278.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13278.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv746.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv746.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13415.htm

  • O novo ensino mdio: o difcil caminho frente | 35

    GIBBONS, Michael; LIMOGES, Camille; NOWOTNY, Helga; SCHWARTZMAN, Simon; SCOTT, Peter; TROW, Martin. The new production of knowledge: The dynamics of science and research in contemporary societies: Sage, 1994.

    SCHWARTZMAN, Simon. Educao mdia profissional no Brasil: situao e caminhos. So Paulo: Fundao Santillana, 2016.

    UNESCO. Institute for Statistics. International Standard Classification of Education - ISCED 2011. Montreal: UIS, 2011.

    WOLF, Alison. Review of Vocational Education - The Wolf Report. London: Stationary Office, 2011.

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    ENSINO MDIO: NEM PATINHO FEIO NEM CISNE ?

    Candido Alberto Gomes4 Ivar Csar Oliveira de Vasconcelos5

    Silvia Regina S. Coelho6

    A expanso do ensino mdio nos anos 1990 parecia prenunciar a transformao do patinho feio em cisne, descoberta a sua identidade. A expanso das matrculas no Brasil girou historicamente em torno do ensino fundamental obrigatrio, antes ensino primrio, depois ensino de 1 grau. A fonte especfica do salrio-educao, aliada a outras, financiou prdios, equipamentos, formao continuada de professores e profissionais da educao nesse nvel. Ao tronco relativamente robusto do fundamental, ampliado para oito anos e, depois, para nove, acrescentavam-se a pr-escola e o ensino secundrio. Muitos docentes do

    4 Doutor (Ph.D.) em Educao - University of California, Los Angeles. Professor Catedrtico da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Porto. Contato: [email protected]

    5 Doutor (Ph.D.) em Educao - Universidade Catlica de Braslia. Professor Permanente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao da Universidade Catlica de Braslia e Professor Titular do Instituto de Cincias Sociais e Comunicao da Universidade Paulista. Contato: [email protected]

    6 Doutora em Educao e Mestre em Comunicao Universidade Catlica de Braslia (UCB). Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF). Analista Legislativo Cmara dos Deputados: Contato: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]

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    fundamental eram puxados para um e outro. Esperava-se e muito se trabalha no estabelecimento de uma identidade para o ensino mdio, deixando de ser um satlite ou apndice do fundamental. Para decepo de muitos, o patinho feio no se converteu em cisne, mas num corpo ambguo, com disputas nas arenas da poltica educativa entre diferentes correntes. Desde o surrado ensino propedutico enciclopdico, das suas razes, at uma escola para superar estruturalmente a sociedade capitalista. Da repetio dos preparatrios para a educao superior escola revolucionria, o amplo arco desfigurou ainda mais o patinho e no se revelou cisne. Ao contrrio, criou um hibridismo de solues que talvez tenha desfigurado o ensino mdio. Quanto ao acesso, qualidade e democratizao, constatam-se mltiplas fronteiras de abordagem indispensvel.

    Este trabalho no pretende sequer resenhar seletivamente a literatura recente sobre o assunto. Numa paisagem difusa e j esmaecida, busca, na medida do possvel, tornar mais ntidos certos traos e dirigir as lentes, ampliando-os e aproximando-os de ns. Isso significa a interveno de critrios seletivos at certo ponto subjetivos.

    DIVISORES DO ENSINO MDIO

    O ensino mdio ou ensino do meio delimita-se entre duas pontas, o ensino fundamental e a educao superior. Haurir identidade nesta circunstncia difcil. Emaranhado de caminhos e no encruzilhada, envolve idade e preparo vitais para seus alunos se posicionarem na estratificao social, o que o situa como arena (de areia) de disputas ideolgicas, vale dizer, de interesses, s vezes sangrentas. No seu acesso, qualidade e democratizao sulcam-se vrios divisores, superpostos e entrecruzados, a reforar privilgio e desprivilgio: os das geraes, dos gneros, dos meios urbano-rural, das etnias, das classes, dos grupos de status e de poder, entre outros mais sutis.

    Inicialmente, a escola, voltada conservao da ordem social, pouco se alterou, enquanto as sociedades e as juventudes tm passado por profundas mudanas. Recorrendo mais uma vez metfora do vinho e dos odres, derrama-se vinho novo num odre velho, aparentemente prestes a romper-se, mas duramente

  • Ensino mdio: nem patinho feio nem cisne ? | 39

    resiliente, pois a escola continua necessria pelo seu carter custodial de crianas e adolescentes e pelo controle de certificados e diplomas, mais ou menos distantes do mundo do trabalho. Instituio da modernidade, a escola se situa no seu bojo, onde as instituies se encontrariam em declnio (DUBET, 2006). Concretizado o direito universal educao, um dos valores axiais da modernidade, a escola passou a receber alunos com diferenas inditas, mal sabendo lidar com elas, acostumada a ser instituio elitista, transmissora de conhecimentos e formadora de carter de alguns, no de todos. Numa sociedade individualista, o sujeito constri sua identidade a partir de mltiplas experincias sociais. Como borboleta, percorre variadas flores sem pousar por muito tempo em cada uma delas. Ento, a escola se torna um palco de articulao destas diversidades, construindo pontes mais ou menos adequadas com os estudantes. Com efeito, Barrre (2011) constata que estes ltimos no se formam apenas pelo currculo formal escolar, mas tambm por meio do currculo dos ptios e pelos das ruas. Nesse complexo aprendizado, o aluno precisa usar mscaras sociais, negociar autonomia entre diversos grupos sociais de pertencimento, desenvolver a sua pluralizao e a sua singularizao, enfim, atender a cdigos de conduta divergentes e at conflitantes, como os da famlia, da escola e dos colegas. Aqueles socialmente menos aquinhoados tm maiores dificuldades, por no contarem com o capital cultural requerido ex ante pela escola. Tendendo ao fracasso no desempenho, reagem com o afastamento e a violncia.

    Giol (2009) sublinha o contraste entre a sociedade individualista e a escola, em que o todo deve sobrepor-se s partes. Com o alargamento das suas funes, a escola tambm tem dificuldades de definir a sua identidade, remetendo substituio da ideia de educao pela de instruo. Aqui cai em nova contradio: por almejar a transmisso cultural, chocam-se a tradio, a que os jovens so avessos, e o interesse pelo presente. Mirando as recompensas futuras, as promessas do diploma como elevador social se chocam hoje com a dilatao da adolescncia e o desemprego juvenil. Pela precarizao, certificados e diplomas constituem smbolos em parte esvaziados dos contedos, enquanto a sua abundncia promove a inflao educacional, ou seja, a necessidade de se diferenciar, alcanando diplomas cada vez mais elevados (DURU-BELLAT, 2006). Crticas recentes acusam a educao superior, particular, comercial e de massa como inflacionadora

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    dos diplomas, em sistemas de estratificao social quase congelados. Com escasso retorno, as famlias das perifeiras urbanas apostariam em outras alternativas, como os astros e estrelas esportivos, da mdia e no trfico (TODD, 2017).

    Em especial no Ocidente, h muito se observa o encurtamento da infncia, pela exposio sobretudo ao sexo e violncia (POSTMAN, 1994). Em classes mais aquinhoadas, a pr-adolescncia se define pela cultura do quarto, espao privado que sua bolha de individualidade, de onde se comunica virtualmente com o exterior (GLEVAREC, 2010). No de estranhar que a adolescncia se antecipe e adie o seu trmino. Em especial no Ocidente, prolonga-se a escolaridade (a escola como instituio custodial e/ou de educao?) e adia-se cada vez mais o ingresso no trabalho e na vida adulta, retendo os jovens no vestbulo da ps-adolescncia (GALLAND, 1991) e da juventude. Em sociedades de instabilidade estvel, faltam empregos e o ingresso no trabalho se tornou um longo e difuso rito de passagem. Permeando tais processos, pulsam as transformaes tecnolgicas e econmicas da globalizao, com baixa gerao de empregos, entre elas a robtica com a inteligncia artificial. Quanto mais longa a escolaridade, mais se requerem diplomas para alcanar menores conquistas ocupacionais e de renda, com o srio risco de mobilidade intergeracional descendente, isto , de os filhos no alcanarem o status socioeconmico dos pais (PEUGNY, 2014). Na perda destes estmulos, no surpresa o desenvolvimento do tdio, aborrecimento ou mal estar na escola. Estudar para qu?

    O QUADRO DEMOGRFICO

    O Brasil vive os ltimos anos do seu bnus demogrfico, estimado pela Cepal-Unesco (2005) para 2005-2020. Este perodo favorvel significa que, em face do declinante nmero de crianas e do ainda reduzido nmero de idosos, cria-se uma folga para, entre outros objetivos, aperfeioar a educao e o preparo da juventude. Em seguida, as crianas tendero a diminuir cada vez mais, ao passo que se incrementar com rapidez o nmero de idosos. Isto lana sobre jovens e adultos maior nus nas relaes de dependncia (VASCONCELOS; GOMES, 2016), alterando a alocao de recursos, em especial para a previdncia social,

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    capaz de gerar, com inerentes conflitos, um fosso entre a previdncia para hoje e a das futuras geraes (CHAUVEL; SCHRDER, 2008), estas j potencialmente prejudicadas. Por isso mesmo, os jovens presentes e futuros precisam ser melhor preparados, a fim de responderem aos novos desafios, inclusive do ponto de vista econmico, de maior produtividade. Caso contrrio, aumentar a pobreza e a distncia entre haves e have nots. Ter o Brasil aproveitado bem este bnus? O bolo da educao, repartido por nmero menor de convidados, foi bem utilizado para elevar a qualidade e a democratizao? Ou simplesmente lanamos mais fermento massa? Os certificados e diplomas representam hoje mais ou menos que ontem? Ou a sua multiplicao e esvaziamento significam que as pessoas tm menores capacidades? Ou a sua pletora leva simplesmente a estreitar os funis, elevando em espiral as exigncias de escolaridade?

    Neste contexto do papel estratgico das juventudes e suas respectivas fragilidades, a demografia estudantil do ensino mdio h anos traz preocupaes. Golgher (2010) estimou, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (Pnad) 2007, que cerca de 75% dos jovens completavam o ensino fundamental regular. Desses 75%, em torno de 12% no ingressavam no ensino mdio regular, ao passo que as perdas deste ltimo representavam aproximadamente 10%. Em outras palavras, a evaso era muito expressiva j antes do ensino mdio. Por seu lado, Neri et al. (2009), com fundamento na mesma Pnad, verificaram que, apesar do alto retorno econmico do ensino mdio, 17,8% dos jovens de 15 a 17 anos estavam fora da escola. Por qu? Falta de interesse (40,3% dos evasores), seguida pela necessidade de renda e trabalho (27,1%).

    Evidencia-se que a trajetria da educao bsica apresenta uma sucesso de funis, cada vez mais estreitos. Compreende-se o que ocorre no ensino mdio na medida em que se olha para o ensino fundamental: grande parte dos alunos nele retida, por reprovao e abandono, sendo hoje o ponto mais grave no sexto ano. Na fratura entre professor de turma e professor de disciplina, mais ou menos coincidente com o irromper da adolescncia, estabelece-se o que j se chamou de passagem sem rito. Com o atraso do fluxo, ao terminar o ensino fundamental, parte dos estudantes apresenta significativo atraso acumulado, com muita frequncia os no herdeiros de capital cultural. Assim, averso escola soma-se o custo de oportunidade, isto , estudar ou trabalhar, que aumenta a cada

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    ano de idade. Justamente neste desaguadouro o ensino mdio ocupa mais tempo, seja integrado, seja concomitante. Com isto, a retomada dos estudos se torna miragem cada vez mais longnqua (GOMES et al., 2011; 2008).

    Afinal, quem so os que terminam o ensino fundamental e no entram no ensino mdio? A pesquisa longitudinal de discentes do ltimo ano do fundamental em 2008-2009 verificou relaes significativas de associao entre a falta de promoo para o nvel mdio e o pertencimento ao sexo masculino, a matrcula em escolas pblicas, a residncia na Regio Norte ou Nordeste e a distoro idade-srie. Ultrapassado este funil, acompanhando os candidatos para o ensino mdio, as mesmas variveis, notadamente a faixa etria de maiores de 17 anos, encontrou expressivas relaes na coorte de 2009. Os que entraram no ensino mdio regular ainda passaram por um novo filtro, o da primeira srie, em que a perda de alunos continua mais elevada (LIMA; GOMES, 2013). Os que concluram e no terminaram seus estudos da educao bsica foram os socialmente menos aquinhoados, assim como os reprovados e aqueles que abandonam. De fato, com as dificuldades de trabalho e outros fatores, 13,3% no se matricularam no ensino mdio regular, ao passo que apenas 0,8% continuaram os estudos na educao de jovens e adultos (EJA), em especial os mais velhos. Portanto, a idade passa a ser a mscara mais visvel do desfavorecimento social. Tanto que os menores de 15 a 17 anos so muito mais propensos que os demais a seguir o ensino mdio. Nos anos 1990, era imperioso ampliar o acesso ao ensino fundamental, para que o fluxo aumentasse rumo ao mdio. Entretanto, ele mantm graves problemas de reteno a resolver.

    Lima e Gomes (2013) examinaram os caminhos aps a sada do ensino fundamental, no sentido de continuar no ensino mdio regular ou EJA, ou no estudar. Todavia, uma pesquisa qualitativa concluiu que estes caminhos se hierarquizam, notoriamente quando o ensino regular se divide entre diurno e noturno. O caminho socialmente mais interessante o ensino diurno, que acolhe os que predominantemente se situam na faixa etria prpria. o grupo dos jovens, muitos dos quais voltados ao preparo para o vestibular. Os estudantes que precisam trabalhar e tm distoro idade-srie, ou seja, so menos privilegiados socialmente e tm aspiraes de cursar a educao superior, buscam o perodo noturno. Para a modalidade menos promissora, a EJA, se encaminham aqueles

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    que tm mais baixas aspiraes, pois a certificao tem menor prestgio social e, mesmo, constitui um estigma do ponto de vista dos empregadores. Desse modo, o ensino noturno e a EJA representam as trajetrias menos interessantes. Com efeito, ambos so secundarizados nos recursos, tm professores que com frequncia j cumpriram longa jornada diurna e tendem a ocupar as nicas portas da escola que lhes so abertas. Esta protege suas instalaes e recursos para o perodo diurno, supostamente mais cuidadosos. Em outras palavras, a educao mais pobre para os pobres (GOMES; CARNIELLI, 2003; GOMES; CARNIELLI; ASSUNO, 2004), isto , aos perdedores nem as batatas!

    Este trilema ao fim do ensino fundamental, a que se deve acrescentar, depois, a educao profissional, nos ltimos anos pesquisados tm as matrculas continuamente em declnio, sugerindo o agravamento da situao. De 2005 a 2014 pode-se dizer que o total de matrculas do ensino mdio regular teve vagoroso declnio, de 9,301 milhes em 2005 para 8,312 milhes em 2014. E continuam a cair. Numa simetria pervertida, o ensino noturno tem maior incidncia de abandono e de reprovao. Ao que parece, o patinho feio atrai menos candidatos, o que no se deve ao declnio da populao de 15 a 17 anos, relativamente estvel, tendente, porm, a encolher no futuro. No Brasil, apesar de tudo, a taxa lquida de escolarizao na escola mdia (alunos de 15 a 17 anos matriculados sobre o total da populao total da mesma faixa) aumenta de forma lenta: em sete anos passou de 48,0%, em 2007, para 55,1%, em 2013. J se pode dizer que pouco mais da metade dos alunos do nvel mdio tem de 15 a 17 anos, num ritmo lento, sem tocar a fundo os problemas estruturais, com receio de grandes transformaes.

    Por fim, o ltimo caminho o dos mais excludos, os que no trabalham nem estudam. Com trajetria escolar instvel, mais da metade das mes de 15 a 17 anos no tinham concludo o ensino fundamental (LIMA; COELHO; GOMES, 2015). Que oportunidades oferecer a todos estes, j que as do ensino regular no foram apropriadas? Integr-los ou exclu-los socialmente?

    No mbito da escolarizao, a EJA a que requer cores mais dramticas para representar. Suas matrculas tendem a registrar maior declnio no ensino mdio. O fracasso, constitudo pela soma das perdas por abandono e reprovao, muito elevado: no ensino fundamental, em 2010, era de 49,8% e piorou, em 2014

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    passando para 53,7%; no ensino mdio, nos mesmos anos, era respectivamente de 33,3% e 38,3%. O seu valor mdio por aluno o mais baixo, nas alocaes pblicas para o ensino mdio. A sua instabilidade brada no deserto, sem cumprir a misso de segunda oportunidade educacional, pois quem mergulha na EJA tem maior probabilidade de afogar-se que no ensino regular. O Censo de 2010 contou 65 milhes de jovens com 15 anos de idade e mais que no haviam concludo o fundamental, enquanto 22 milhes com 18 anos anos e mais haviam terminado o fundamental, mas no o mdio. Pouco atrativo, com acesso potencial deficiente e alto nvel de fracasso escolar, este um dos campos mais desafiadores da poltica educativa (GOMES; COELHO; LIMA, 2017), enfim a ltima camada do filtro da educao bsica.

    OLHANDO L FORA

    Vrios problemas do Brasil so partilhados com outros pases, como os divisores do ensino mdio e as suas opes e, ainda, a relegao da educao de adultos a segundo plano por sucessivos governos. O ensino mdio ou secundrio passou a requerer maior ateno a partir da expanso democratizante do ensino fundamental, preconizada e realizada pelos objetivos de Educao para Todos, estabelecidos e operacionalizados em 2000. Embora os ritmos interpases variem sensivelmente, a concluso do ensino mdio se impe como condio para maiores possibilidades relativas ao desenvolvimento sustentvel e ao crescimento econmico baseado no conhecimento. Onde o ensino fundamental incrementa, como no Brasil dos anos 1990, tambm aumenta a busca do ensino mdio e por mais professores e instalaes. Pases em desenvolvimento com reduzida taxa de escolaridade lquida neste nvel tendem a ser no menos eficientes e igualitrios. Igualmente, cresce a necessidade de fontes de financiamento, pois os custos do ensino mdio so maiores que os do nvel precedente. Todavia, a escola mdia para uma minoria, elitista e enciclopdica, acha-se deslocada, no impedindo que sua expanso comporte maiores desigualdades, repetio e evaso. Dentre as fontes de financiamento do ensino mdio de massa, criam-se mltiplas alternativas, aproveitando, como no Brasil, a economia de escala em unidades do

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    ensino fundamental (LEWIN; CAILLODS, 2001).Contudo, no se pode esquecer a capacidade de a educao gerar a sua

    prpria demanda: quanto mais avana a escolaridade, maior a necessidade de se diferenciar, subindo a escala em busca da mobilidade social ascendente e da insero no trabalho. Na Amrica Latina, a massificao deste nvel coincidiu com o ajuste econmico e a desindustrializao. Quando o continente voltou a crescer, manteve-se a deteriorao da demanda trabalhista na maior parte dos pases. Logo, as possibilidades de trabalho e ascenso social ficaram muito aqum das expectativas. Por isso, segundo Filmus et al. (2002), o ensino mdio se tornou ao mesmo tempo necessrio e insuficiente: insuficiente porque os no concluintes permanecem quase margem dos empregos de qualidade, em particular no setor moderno, necessrio porque tambm desempenha papel decisivo na definio dos destinos profissionais, porm, dependendo de polticas econmicas de trabalho e sociais. Em outras palavras, a escolaridade indispensvel, mas insuficiente, ao depender de tais polticas. Por isso, o mesmo socilogo (FILMUS, 1996) contrastou a educao de antes como um trampolim e a de hoje como um paraquedas, o que bem expressa a inflao educacional: a corrida ganha maior nmero de voltas medida que avana, sendo necessrio cada vez maior escolaridade para atingir uma posio social.

    A Amrica Latina compartilha tambm outros problemas. Ao ampliar substancialmente o acesso ao ensino mdio, pesam-lhe as sombras do passado elitista e enciclopdico. As tradies se projetam para um alunado muito mais numeroso e mais diversificado, em novos tempos. Como anteriormente referido, se a escola como instituio est em dissintonia com as juventudes de hoje, o ensino mdio em particular causa o mal-estar na escola por carregar tradies e dificultar a integrao dos novos alunos. Para eles, a escola pode revestir-se de inutilidade e ser um remdio amargo para aqueles que precisam do referido certificado, cada vez mais necessrio e cada vez mais insuficiente (FILMUS et al., 2002). Na pluralidade de funes hoje, avulta o divisor entre as tradicionais, no sentido de preparo para o funil da educao superior. Este conflito conduz muitos estudantes a enfrentarem um currculo complexo para o que no pretendem ou no podem alcanar. A proposta de Ansio Teixeira (1936) e outros escolanovistas era superar a contradio entre a escola para os nossos filhos e a escola para os

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    filhos dos outros por meio do ensino mdio formativo, com finalidades em si. Esta seria a sua fisionomia prpria. Contudo, a ousadia da ideia e da lei tem pago um tributo s presses sociais: herdeiros do capital cultural e aspirantes a herdeiros requerem o preparatrio para a educao superior. O mesmo aconteceu com a segunda Lei de Diretrizes e Bases, cujo inspirador foi o ltimo dos escolanovistas, Darcy Ribeiro. Seria o caso de retirar a cortina da dissimulao para ficarem logo patentes os divisores sociais? Parece que foi o procedimento da maioria dos pases europeus, no sentido de abrir dois caminhos, o mais tarde possvel, na educao secundria. Braslavsky (2001) frisou que alguns dos desafios atuais so a necessidade de os currculos combinarem riqueza e flexibilidade e terem suas estruturas mais heterogneas. Currculos compartimentados, em mltiplas disciplinas isoladas, como numerosas gavetas de uma cmoda ou de um histrico contador das finanas indo-portuguesas, perdem o seu sentido nas circunstncias atuais. Enquanto difcil superar a sua rigidez, a formao docente continua a fazer-se de modo fragmentado e hiperespecializado. Se o professor se forma numa frao aprofundada do conhecimento, no de admirar que mantenha fidelidade a ela e procure introduzir nova(s) disciplina(s)ou que associaes e sindicatos mantenham o status quo, diante do medo ao desemprego. A situao se cristaliza, levando ao insucesso abordagens transversais, por reas ou temas. O que no cabe numa gavetinha do contador tende a ser suprfluo e no realizado. Agravando o enciclopedismo, no raro polticos propem novas matrias para atender a problemas momentosos, a fim de no serem considerados omissos. Este e outros casos, geram uma pletora de projetos de lei tornando obrigatria tal e qual disciplina em currculos j sobrecarregados, cabendo ao aluno o nus de integrar os conhecimentos, o que ainda mais difcil aos no herdeiros de capital cultural. Em outros termos, o que a mo direita oferece na expanso da matrcula e na gratuidade subtrado pela mo esquerda por meio de processos sutis, capazes de causar tdio aos herdeiros e at a revolta aos no herdeiros (BOURDIEU; PASSERON, 2014). Por isso, as reformas precisam ser integradas e coerentes: um novo ensino mdio no muda sozinho, para isso precisando da transformao dos currculos, dos professores, da formao dos educadores, de novos textos, tanto grficos como virtuais, de novas instalaes e equipamentos compatveis. Como cada parte do todo tem nvel de resistncia diferente, a falta de orquestrao leva

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    as reformas a constiturem um arremedo, a serem reformas de papel, no raro patrocinadas por governos passageiros, em vez do Estado. O desfile de mudanas intencionadas pelas cpulas, conduzem ao ceticismo de escolas e educadores, na base, pela sua falta de razes. como se se tornassem imunes contra as sucessivas novidades. Esta contradio foi explicada lapidarmente por Ansio Teixeira (1962) em Valores proclamados e valores reais nas instituies escolares brasileiras. Entre as alternativas contemporneas situa-se a teoria da hipocrisia organizacional (BRUNSSON, 2007), segundo a qual, em breves palavras, para assegurar a sua existncia e obter apoio social e financeiro, as organizaes precisam aparentar que fazem o que declaram pretender e fazer.

    Neste olhar para fora e alm do Continente, um assunto crucial a velha contradio entre a educao acadmica e a profissional. Se os objetivos e os estudantes so diversos, difcil evitar trajetrias diferentes, que, sabemos, tm origens sociais diversas e levam a diferentes caminhos ao longo da vida, reduzindo ou amplificando as disparidades sociais. Esta uma das questes da educao comparada. Nossos estudos apontam para divergncias segundo o contexto, sobretudo nacional, mas tambm para convergncias. Entre estas inclui-se o menor prestgio da educao profissional, com a sua carga histrica, destinada aos menos capazes, a rfos e pobres, bem como para internos em estabelecimentos prisionais. Costuma-se esperar milagres deste ramo que parte da rvore da educao, porm a educao profissional carrega o estigma de grupos menos privilegiados. Diante dos plebeus, a educao acadmica, de passado aristocrtico, mais abstrata e nobre. No por acaso Bernstein (1977) distinguiu: 1) o tipo justaposto de currculo, com rgidas fronteiras entre os contedos e entre eles e a vida cotidiana, alm do baixo grau de controle dos professores e alunos sobre ele; 2) o tipo integrado, com estrutura flexvel, fronteiras maleveis entre o que pode e no pode ser ensinado e entre o currculo escolar e a vida prtica. Estruturas rgidas tornam o conhecimento educacional algo pouco comum, a conferir prestgio a quem o possui. tipicamente a educao acadmica. Estruturas flexveis implicam maior trnsito entre a educao e o conhecimento cotidiano, mas so reservadas aos alunos considerados de menor aproveitamento. Aqui se inclui a educao profissional, apesar das mltiplas mudanas das tecnologias, em parte deixando mos, graxa e movimentos programados por

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    decises estratgicas. Diante desta encruzilhada, que fazem os pases? O quadro 1 apresenta os currculos mais comuns na educao secundria: uns separam, outros unem as trajetrias educacionais (GOMES, 2015). Os que dividem as coortes tm pontes e passarelas entre as trajetrias, mas, como toda a educao, espelham basicamente a estratificao social e projetam sua imagem sobre os alunos formados. Aqueles que unem o fazem por variados motivos, um deles, poderoso, a reduo das disparidades sociais, sabendo-se que a educao tem efeitos significativos na conservao ou alterao da estratificao e mobilidade sociais. Os Estados Unidos tendem a manter trs subescolas sob o teto de apenas uma, a escola compreensiva, supostamente democrtica: a primeira