Candomblé e veganismo - · PDF fileCandomblé e veganismo ... “fundamentos religiosos”, ou ... verifica-se uma cobrança para que Bonfim aprofunde-se na vida religiosa do Candomblé

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    Candombl e veganismo dialogando no Jardim das Folhas Sagradas:

    Jayme R. Lopes Filho1

    Resumo

    No atual contexto, seria at mesmo inocente pensar que as religies seriam iguais s

    praticadas no passado e que sero iguais s do futuro. O mesmo acontece sobre os

    fundamentos religiosos, ou melhor, como so expressados e caracterizados em seus

    cultos. Portanto, entre outros casos, as questes relacionadas ao no sacrifcio e ao no

    uso de animais so pertinentes a aspectos como tempo e espao em que a religio se

    localiza. Jardim das Folhas Sagradas um filme de rica abordagem textual e narrativa, uma

    obra de fico, mas que traz em sua trama central temas diversificados, como: racismo,

    sexualidade, intolerncia religiosa, entre outros. Assim sendo, este trabalho busca

    selecionar, amparado terica e metodologicamente na cincia, um questionamento e

    tambm uma breve reflexo acerca de um tema que ainda tabu at mesmo na sociedade

    abrangente: explorao animal. Desta forma, a teologia das religies afro-brasileiras buscar

    focar o meio pelo qual se visa relacionar a tica da no explorao de animais, veganismo e a

    prxis das religies afro-brasileiras. Gradativamente, entre ambos, as diferentes formas de

    vida e concepes se contatam ao longo da histria do filme.

    Palavras-chave: Candombl; Veganismo; Odu Introduo

    perceptvel e cada dia cresce mais o debate sobre a explorao animal na sociedade

    atual, seja na indstria alimentcia, no vesturio, no entretenimento, na rea da sade etc.

    Pode-se comprovar esses debates e discusses em documentrios, mdias eletrnicas e

    meios de comunicao de massa, sob diversas ticas, como nutrio, tica e meio ambiente

    1 Graduando em Teologia pela Faculdade de Teologia Umbandista. E-mail: [email protected]

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    etc., que que repensam essa prtica; e a sociedade vai aderindo de forma gradativa a

    legislaes de proibio de rodeios e circos com animais; laboratrios abandonam testes em

    animais; grandes marcas de roupas deixam de usar couro em suas peas, entre outros

    exemplos.

    Na sociedade abrangente, independentemente dos motivos, sejam ticos,

    econmicos, avanos tecnolgicos, presso de ativistas, ambientalistas, ou quaisquer outros,

    o fato concreto, atualmente tem ocorrido mudanas significativas nessa rea. E, nesta

    conjuntura, como entender e olhar para as religies de matriz africana, em que o sacrifcio

    animal exerce papel central em diversos rituais? Ademais, fica um questionamento bsico,

    ou seja, como recortar dois temas to abrangentes, para, enfim, propor uma anlise

    teolgica?

    Para trabalhar essa temtica na metodologia de pesquisa bibliogrfica, eis que surgiu

    a possibilidade de analisar uma obra fictcia, mas que, por meio de uma narrativa rica e

    minuciosa, possibilitou evidenciar e detectar alguns pontos centrais da problemtica entre

    ambas as linhas aparentemente divergentes de valores: Candombl e no explorao de

    animais.

    Estes pontos da obra foram selecionados e, posteriormente, problematizados por

    meio de referenciais tericos sobre os temas que foram estudados e analisados, de modo

    que, em muitos casos, relaes ambguas foram encontradas, possibilitando vislumbrar

    convergncias. Pois evidncias so encontradas tanto nos registros de prticas religiosas sem

    sacrifcio, como na anlise acadmica dos discursos filosficos, antropolgicos e sociolgicos

    dessas prticas.

    1 O mito e a arte.

    Ossaim, filho de Nan e irmo de Oxumar, Eu e Obalua, era o senhor das folhas, da

    cincia e das ervas, o orix que conhece o segredo da cura e o mistrio da vida. Todos os

    orixs recorriam a Ossaim para curar qualquer molstia, qualquer mal do corpo. Todos

    dependiam de Ossaim na luta contra a doena. Todos iam casa de Ossaim oferecer seus

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    sacrifcios. Em troca Ossain lhes dava preparados mgicos: banhos, chs, infuses,

    pomadas, ab, beberagens.

    Curava as dores, as feridas, os sangramentos; as disenterias, os inchaos e fraturas; curava

    as pestes, febres, rgos corrompidos; limpava a pele purulenta e o sangue pisado; livrava

    o corpo de todos os males.

    Um dia Xang, que era o deus da justia, julgou que todos os Orixs deveriam

    compartilhar o poder de Ossaim, conhecendo o segredo das ervas e o dom da cura. Xang

    sentenciou que Ossaim, dividisse suas folhas com os outros Orixs. Mas Ossaim negou-se a

    dividir suas folhas com os outros orixs. Xang ento ordenou que Ians soltasse o vento

    e trouxesse ao seu palcio todas as folhas das matas de Ossain para que fossem

    distribudas aos orixs. Ians fez o que Xang determinara. Gerou um furaco que

    derrubou as folhas das plantas e as arrastou pelo ar em direo ao palcio de Xang.

    Ossain percebeu o que estava acontecendo e gritou: "Eu Uass!".

    "As folhas funcionam!"

    Ossaim ordenou s folhas que voltassem s suas matas e as folhas obedeceram s ordens

    de Ossaim. Quase todas as folhas retornaram para Ossaim. As que j estavam em poder de

    Xang perderam o ax, perderam o poder da cura.

    O orix-rei, que era um orix justo, admitiu a vitria de Ossaim. Entendeu que o poder das

    folhas devia ser exclusivo de Ossaim e que assim devia permanecer atravs dos sculos.

    Ossaim, contudo, deu uma folha para cada orix, deu uma eu para cada um deles. Cada

    folha com seus axs e seus efs, que so as cantigas de encantamento, sem as quais as

    folhas no funcionam. Ossaim distribuiu as folhas aos orixs para que eles no mais o

    invejassem. Eles tambm podiam realizar proezas com as ervas, mas os segredos mais

    profundos ele guardou para si. Ossaim no conta seus segredos para ningum, Ossaim

    nem mesmo fala. Fala por ele seu criado Aroni. Os orixs ficaram gratos a Ossaim e

    sempre o reverenciam quando usam as folhas. (PRANDI, 2001a, p. 153 - 154)

    Aqui percebe-se que no se trata de deuses absolutos, como o Deus cristo. Em vez

    disso, divindades cujos mitos relatam caractersticas mais humanizadas. Dessa forma,

    tornam-se passveis de enganos, contradies, entre outros impulsos. E justia, na

    concepo platnica, era como virtude universal (pertencente a todos) onde cada indivduo

    se pe em seu lugar, contribuindo para a salus populi (BRYCH, 2007). Desta forma, a justia

    ligaria as demais virtudes em prol da harmonia (BRYCH, 2007).

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    Nesta perspectiva, verifica-se que a deciso foi reconsiderada em funo da

    desarmonia criada, logo, pode-se inferir que no houve justia.

    Ainda no incio do filme, h uma cena em que, com a voz de um personagem, que

    mais para frente torna evidente que filho de Xang, em prece, uma cabaa derrubada

    duma rvore pela tempestade, parte-se e libera de seu interior folhas (JARDIM, 2011).

    Referncia ao mito de Ossain e Xang, uma vez que o protagonista do filme um filho de

    Ossain.

    Em sociedades de cultura mtica, tambm chamadas sem-histria,que no conhecem a

    escrita, o tempo circular e se acredita que a vida uma eterna repetio do que j

    aconteceu num passado remoto narrado pelo mito. As religies afro-brasileiras,

    constitudas a partir de tradies africanas trazidas pelos escravos, cultivam at hoje uma

    noo de tempo que muito diferente do nosso tempo (PRANDI, 2001b, p. 1)

    Portanto, a stima arte revive o mito. 2 Conflitos

    A primeira cena escolhida para anlise est relacionada aos primeiros dilogos entre

    o protagonista, Bonfim, filho de Ossain, e o Babalorix Martiniano, filho de Xang, em que

    verifica-se uma cobrana para que Bonfim aprofunde-se na vida religiosa do Candombl.

    Mas Bonfim resiste, pois alega que o Candombl realiza procedimentos dos quais discorda.

    Acredito, no entanto, que esta aproximao feita entre religio e sociedade, antes de ser

    um reducionismo, segue a lio de mile Durkheim de uma maneira muito direta:

    demonstra a relao entre estas duas esferas da vida social, a religio e as relaes sociais.

    Tambm na antropologia ps -Levi-Strauss neste sentido que se procura interpretar

    crenas e ritos. A tenso que descrevo no terreiro entre o cdigo de santo e cdigo

    burocrtico ao interpretar a guerra de orix. A demanda e o conflito que funda a histria

    descrita s possvel ou mesmo necessria porque o ritual e a crena em questo so

    parta desta sociedade particular. (VELHO, 1975, p. 9)

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    Como Velho (1975) explana luz de Durkheim e da antropologia ps-Levi-Strauss,

    pode-se observar relaes entre a esfera religiosa e a esfera da sociedade. Logo, possvel

    que conflitos surjam. O presente estudo aborda o conflito entre a matana, ritual tradicional

    no Candombl, e o veganismo2, modo de viver que exclui qualquer forma de explorao e de

    crueldade para com animais, seja para qual finalidade for3.

    Segundo pesquisa do IBOPE (2012) e dados da empresa de inteligncia de mercado

    IPSOS (2006), crescente e significativo o nmero de adeptos ao vegetarianismo. Assim

    como tambm crescente o nmero de pessoas que se declaram pertencentes s religies

    afro-brasileiras. Desta forma, possvel e compreensvel que tal conflito exista e se torne

    cada vez mais frequente. Destaca-se que nessas relaes h diversidade cultural, ideolgica,

    to presente no cotidiano das pessoas que compem as religies afro-brasileiras, devido a

    uma criticidade maior, o que as faz explorarem menos os animais em seus rituais. Portanto,

    sob este aspecto da diversidade, os terreiros so ambientes pro