28
Codex - Revista de Estudos Clássicos, ISSN 2176-1779, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 1, pp. 71-98 71 ARTIGO Canções-preces na poesia mélica grega arcaica Prayer-songs in archaic Greek melic poetry Raphael Quinteiro Reishtatter 1 e-mail: [email protected] orcid: http://orcid.org/0000-0002-9851-5322 Giuliana Ragusa 2 e-mail: [email protected] orcid: http://orcid.org/0000-0002-4978-3451 DOI: https://doi.org/10.25187/codex.v8i1.32363 1 Graduando em Letras-Grego na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. 2 Professora Livre-Docente de Língua e Literatura Grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. RESUMO: O presente artigo visa a comentar um conjunto de canções gregas arcaicas, de poetas abarcados nos séculos VII-V a.C., cuja fundamental característica é o endereçamento de súplica e elogio a um deus, comumente chamadas de canções- preces. Em diálogo com a prática de oferecer hinos e preces como elemento de culto aos deuses, essas composições são a expressão poética da interlocução entre os mundos mortal e divino. O corpus ora contemplado é composto por 21 fragmentos de 7 diferentes poetas do gênero, a mélica, e cada canção é estudada sob três aspectos articulados: forma, porque é a forma que distingue a canção-prece das demais composições mélicas; linguagem, porque se trata de análise de poesia; e, enfim, religião, porque as canções-preces estão em constante diálogo com o mito e o culto ao divino. PALAVRAS-CHAVE: canção-prece; hino; prece; mélica grega arcaica e tardo-arcaica ABSTRACT: This article aims at commenting a group of archaic Greek songs (7 th -5 th centuries bce), which presents as its fundamental characteristic the address of prayer and praise to a god, and are thus usually known as prayer-songs. Closely related to the practice of offering hymns and prayers as an element of cult to the gods, these compositions are the poetic expression of communication between mortal and divine worlds. The corpus herein studied presents 21 fragments from 7 different poets of the genre, melic poetry, and each of its songs is commented in view of three articulated aspects: form, because it distinguishes prayer-songs from other melic compositions; language, because we are dealing with poetry; and, finally, religion, because prayer-songs are in constant dialogue with myth and the cult of the divine. KEYWORDS: prayer-song; hymn; prayer; archaic and late archaic Greek melic poetry Recebido em 17/2/2020 Aprovado em 27/5/2020

Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

71

ARTIGO

Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaicaPrayer-songs in archaic Greek melic poetry

Raphael Quinteiro Reishtatter1

e-mail raphaelreishtatteruspbrorcid httporcidorg0000-0002-9851-5322

Giuliana Ragusa2

e-mail gragusauspbrorcid httporcidorg0000-0002-4978-3451

DOI httpsdoiorg1025187codexv8i132363

1 Graduando em Letras-Grego na Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Brasil2 Professora Livre-Docente de Liacutengua e Literatura Grega na Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Brasil

RESUMO O presente artigo visa a comentar um conjunto de canccedilotildees gregas arcaicas de poetas abarcados nos seacuteculos VII-V aC cuja fundamental caracteriacutestica eacute o endereccedilamento de suacuteplica e elogio a um deus comumente chamadas de canccedilotildees-preces Em diaacutelogo com a praacutetica de oferecer hinos e preces como elemento de culto aos deuses essas composiccedilotildees satildeo a expressatildeo poeacutetica da interlocuccedilatildeo entre os mundos mortal e divino O corpus ora contemplado eacute composto por 21 fragmentos de 7 diferentes poetas do gecircnero a meacutelica e cada canccedilatildeo eacute estudada sob trecircs aspectos articulados forma porque eacute a forma que distingue a canccedilatildeo-prece das demais composiccedilotildees meacutelicas linguagem porque se trata de anaacutelise de poesia e enfim religiatildeo porque as canccedilotildees-preces estatildeo em constante diaacutelogo com o mito e o culto ao divino PALAVRAS-CHAVE canccedilatildeo-prece hino prece meacutelica grega arcaica e tardo-arcaica

ABSTRACT This article aims at commenting a group of archaic Greek songs (7th-5th centuries bce) which presents as its fundamental characteristic the address of prayer and praise to a god and are thus usually known as prayer-songs Closely related to the practice of offering hymns and prayers as an element of cult to the gods these compositions are the poetic expression of communication between mortal and divine worlds The corpus herein studied presents 21 fragments from 7 different poets of the genre melic poetry and each of its songs is commented in view of three articulated aspects form because it distinguishes prayer-songs from other melic compositions language because we are dealing with poetry and finally religion because prayer-songs are in constant dialogue with myth and the cult of the divine KEYWORDS prayer-song hymn prayer archaic and late archaic Greek melic poetry

Recebido em 1722020Aprovado em 2752020

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

72

y

No conjunto variado de formas temas e linguagem de um dos gecircneros proeminentes da poesia grega antiga a meacutelica a canccedilatildeo para performance acompanhada pela lira em canto solo ou coral e neste caso com danccedila ndash representada nas canccedilotildees dos enneacutea lyrikoiacute3 os ldquonove liacutericosrdquo mais admirados pelos antigos situados entre o final de 620 aC e os anos de 440 aC destaca-se a prece forma discursiva que desde a Iliacuteada (c 750 aC) se faz presente e se acha em praticamente todos os gecircneros poeacuteticos Dela nos ocupamos aqui em comentaacuterio analiacutetico de canccedilotildees-preces reunidas em um corpus de 21 fragmentos de 7 poetas meacutelicos distintos espalhados no tempo-espaccedilo gregos O termo ldquofragmentordquo aponta para o estado precaacuterio de preservaccedilatildeo das canccedilotildees que sobreviveram graccedilas agraves suas citaccedilotildees em geral parciais nas obras de pensadores antigos ndash fontes de transmissatildeo indireta ndash eou a papiros manuscritos e objetos (ceracircmicas pedras) ndash fontes de transmissatildeo direta ndash materiais destinados a gravaacute-las Tal condiccedilatildeo tem eacute claro implicaccedilotildees importantes do ponto de vista metodoloacutegico exigindo o estudo de ediccedilotildees fontes e um olhar aberto aos elementos da tradiccedilatildeo poeacutetica e de outras dimensotildees que os possam iluminar Quando completos ou quase ndash e poucos o satildeo ndash os fragmentos permitem mais vertical anaacutelise de seus elementos constitutivos O mesmo natildeo vale para aqueles que apresentam grandes lacunas e portanto exigem uma abordagem mais cautelosa e um olhar mais limitado e horizontal

Ressaltamos portanto desde jaacute que o equiliacutebrio na distribuiccedilatildeo dos comentaacuterios dedicados agrave meacutelica ndash e diga-se agrave elegia e ao jambo arcaicos tambeacutem fragmentariamente preservados ndash natildeo eacute possiacutevel o que de modo algum justifica a exclusatildeo de composiccedilotildees menos legiacuteveis dado que podem a despeito disso apoiar a anaacutelise como um todo confirmando a reiteraccedilatildeo de elementos importantes agrave consideraccedilatildeo das canccedilotildees-prece E isso vale para casos mais agudos de precariedade textual com relaccedilatildeo aos quais o objetivo passa entatildeo a ser a busca por indiacutecios e hipoacuteteses e natildeo muito mais do que isso

Pois bem Em se tratando das canccedilotildees-preces podemos visualizar com nitidez a combinaccedilatildeo poesia e religiatildeo que eacute proacutepria de um mundo em que a vida cotidiana a vida poliacutetica a vida cultural a vida cultual estatildeo todas imbricadas e entrelaccediladas de tal maneira que natildeo se coloca a separaccedilatildeo dessas dimensotildees umas das outras Eacute certo poreacutem que o material em que analisamos tal imbricaccedilatildeo pode levar a visotildees diferentes de um mesmo problema como observa Depew (1997 pp 229-230) ao enfocar a prece com base em fontes natildeo-poeacuteticas mas da cultura material grega em que percebe em sua funccedilatildeo e forma ldquoelementos inseparaacuteveis da ocasiatildeo de sua vocalizaccedilatildeordquo relativos ao local ao

3 Assim eacute referido o cacircnone dos nove meacutelicos editados tardiamente em Alexandria na Biblioteca sobretudo pelo erudito Aristoacutefanes de Bizacircncio (c 275-185 aC) Ver Most (1982 pp 78-81) Gerber (1997 pp 1-10) e Budelmann (2009 pp 1-18) Ragusa (2010 pp 26-29 2013 11-12 e 28-33)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

73

modo e agrave natureza do culto A preocupaccedilatildeo com tais elementos seraacute portanto essencial ao estudo da prece em tais bases diversamente do que se daacute nos estudos de preces preservadas em fontes poeacuteticas que avalia Depew (id ibid) centram-se ldquoem consideraccedilotildees de forma e estruturardquo as quais se pautam por praacuteticas tradicionais

De fato nas fontes de natureza poeacutetica o que temos eacute a linguagem eacute o discurso que na Greacutecia predominantemente oral da era arcaica (c 800-480 aC) agrave primeira metade da era claacutessica (c 480-323 aC) mundo da ldquocultura da canccedilatildeordquo4 a composiccedilatildeo eacute geneacuterica isto eacute baseada nas praacuteticas tradicionais dos gecircneros de poesia estes entendidos segundo Carey (2009 p 22) ldquocomo tendecircncias firmadas o suficiente para permitir que afinidades e influecircncias sejam discerniacuteveisrdquo gerando ldquoexpectativas na audiecircnciardquo que os poetas podem dentro da flexibilidade que lhes eacute proacutepria retrabalhar Aquelas praacuteticas orientam ainda o tratamento de certos temas para os quais linguagem e imagens satildeo consolidados e de certas formas como a da prece com seus elementos constantes identificando-a em meio aos gecircneros pelos quais se elabora e se distribui Elementos que ademais fazem-se presentes pela loacutegica que embasa a interlocuccedilatildeo entre um mortal e uma divindade na situaccedilatildeo da prece e que adveacutem da concepccedilatildeo sobre os deuses e seu mundo divino

Ao abordar a prece em seu estudo Gould (2002 p 14) afirma ldquoNatildeo havia um lsquolivro de precersquo na antiguidade claacutessica e natildeo temos textos lituacutergicos mas a literatura grega estaacute plena de preces e a partir delas temos uma clara ideia do modelo linguiacutestico e conceitual nos termos em que os homens se endereccedilavam agrave divindaderdquo Analisando a prece de Crises a Apolo na Iliacuteada (I vv 37-42) que adiante citaremos Kirk (2004 p 57) descreve o ldquopadratildeo religioso regularrdquo da prece a ldquolistagem inicial dos tiacutetulos e associaccedilotildees geograacuteficas do deusrdquo com a qual eacute identificado algo essencial no politeiacutesmo grego ldquoas reivindicaccedilotildees especiais ao favor do deusrdquo com a qual o mortal busca estabelecer um elo e uma relaccedilatildeo de reciprocidade ldquoe finalmente de modo bem sucinto o proacuteprio pedidordquo Gould (id pp 14-15) que se vale do mesmo exemplo e observa os elementos constitutivos essecircncias que Kirk descreve ressalta a importacircncia da noccedilatildeo de khaacuteris na base da formulaccedilatildeo tal como se daacute que suscita o sentido de obrigaccedilatildeo e sentimento de gratidatildeo os quais tambeacutem ldquofazem sentido nas relaccedilotildees entre os homensrdquo (p 15) conclui o estudioso

Falemos pois das canccedilotildees-preces da meacutelica arcaica um tipo de composiccedilatildeo que endereccedilada agrave divindade escolhida estabelece com ela(s) interlocuccedilatildeo direta Formatada em hinos e preces elabora-se como diaacutelogo em que o proacuteprio discurso de quem faz a prece configura-se como oferenda destinada a tornar propiacutecios os ouvidos do destinataacuterio em busca do atendimento do pedido feito da khaacuteris (ldquoreciprocidaderdquo χάρις) divina O apuro esteacutetico-formal dessas composiccedilotildees estaacute pois colocado em funccedilatildeo do deus e de seu elogio e prazer ndash sobretudo no caso dos hinos enfatiza Furley (2007 p 119)

4 Expressatildeo sinteacutetica usada por Herington (1985 p 3) que discorre detidamente sobre a poesia num mundo em que soacute existe de fato como ldquouma performance ao vivo diante de seres humanos vivos sob o solrdquo (p 57)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

74

concebido como presente agrave deidade engendrado como tal por suas ldquopalavras muacutesica passos de danccedila e beleza de seus performers para agradar o ouvido e os olhos do deusrdquo A partir de comentaacuterios acerca da forma do conteuacutedo e da linguagem vamos percorrer o corpus de 21 fragmentos meacutelicos arcaicos refletindo na medida do possiacutevel e nos limites deste artigo sobre suas relaccedilotildees com tradiccedilotildees miacuteticas e praacuteticas cultuais e contemplando na escolha das canccedilotildees-preces algumas menos enfocadas entre noacutes as jaacute mais estudadas ficando em nosso horizonte tais como o ldquoHino a Afroditerdquo (Fr 1 Voigt) e a ldquoOde do oacutestracordquo (Fr 2 Voigt) de Safo5

A seguir estatildeo relacionados os fragmentos do corpus em suas ediccedilotildees de autoridade organizados de acordo com as divindades agraves quais satildeo endereccedilados

Afrodite Safo Frs 33 86 Voigt (1971)Apolo Alceu Fr 307a Voigt Aacutelcman Fr S1 Davies (1991) Simocircnides Fr 519 Page (1962) Terpandro Fr 1 Bergk (1843)Aacutertemis Anacreonte Fr 348 PageDemeacuteter e Perseacutefone Laso Fr 702 PageGraccedilas Safo Frs 53 128 VoigtHera Aacutelcman Fr 60 Davies Safo Fr 17 VoigtMusas Aacutelcman Frs 5 (fr 2 col iii) 8 28 Davies Safo Fr 127 VoigtNinfas Alceu Fr 343 VoigtZeus Alceu Fr 69 Voigt Anacreonte Fr 423 Page Terpandro Fr 698 PageMuacuteltiplos deuses Alceu Fr 129 Voigt

Prece hino meacutelica

Antes de avanccedilarmos aos comentaacuterios e traduccedilotildees do corpus valem algumas palavras sobre o papel de preces e hinos na vida dos gregos antigos suas semelhanccedilas e diferenccedilas formais e funcionais a fim de contextualizar as tradiccedilotildees religiosas e poeacuteticas com as quais essas canccedilotildees-preces dialogam

Talvez a principal caracteriacutestica das praacuteticas religiosas do mundo grego seja o caraacuteter puacuteblico do culto aos deuses Durante os procedimentos rituais o grupo de indiviacuteduos busca chamar para si a atenccedilatildeo dos deuses Burkert (1985 p 73) afirma ldquoLibaccedilatildeo sacrifiacutecio ofertas de primeira colheita ndash esses satildeo os atos que definem reverecircncia Todavia cada uma dessas accedilotildees deve ser acompanhada

5 Traduzidos comentados e detidamente analisados por Ragusa (2005 pp 193-232 261-337 2013 pp 100-108) com indicaccedilatildeo da volumosa bibliografia criacutetica O Fr 1 tambeacutem eacute objeto de detida anaacutelise em Andrade (2019 pp 75-139)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

75

pela palavra certardquo6 Por ldquopalavra certardquo entende-se prece e hino compostos e executados de maneira apropriada Furley (2007 p 118) observa que a maneira mais simples de definir preces e hinos eacute esta ldquo[] satildeo esforccedilos de homens e mulheres para se comunicarem com deuses por meio da vozrdquo A definiccedilatildeo eacute uacutetil para deixar claro por que os termos satildeo intercambiaacuteveis em contextos de menor precisatildeo vocabular ambos se referem a meios de estabelecer contato entre os mundos mortal e divino em circunstacircncias cultuais

Portanto a voz entoada cumpre papel fundamental entre os procedimentos eacute preciso (1) estabelecer a comunicaccedilatildeo com o deus (2) conquistar sua benevolecircncia e (3) mantecirc-lo entretido ldquo[] toda a estrateacutegia por traacutes de composiccedilotildees e performances hiacutenicas se dava para atrair a atenccedilatildeo da divindade endereccedilada de modo favoraacutevelrdquo afirma Furley (1995 p 32) Tanto preces quanto hinos cumprem essas funccedilotildees mas com ecircnfases distintas Espera-se que em uma prece o enfoque esteja no pedido Natildeo eacute agrave toa que eukhḗ (εὐχή) palavra que a designa possa tambeacutem se referir a desejo aspiraccedilatildeo Ademais Burkert (id ibid) menciona a forte relaccedilatildeo entre litaiacute (λιταί) e thysiacuteai (θυσίαι) respectivamente entre ldquosuacuteplicasrdquo e ldquosacrifiacuteciosrdquo Preces satildeo a parte verbal de um processo que inclui local ocasiatildeo sacrifiacutecio e libaccedilatildeo como elementos constitutivos que visam agrave anuecircncia divina Comparativamente hinos se preocupam com a celebraccedilatildeo com a demonstraccedilatildeo de reverecircncia por parte da comunidade ldquo[] hinos [] natildeo satildeo preces mas satildeo como sacrifiacutecios e libaccedilotildees oferendas a um deusrdquo (Depew 2000 p 63)

A maneira como os gregos dirigem suacuteplica e elogio aos deuses segue um padratildeo tradicional com exemplos em todos os gecircneros da epopeia agrave trageacutedia Na Iliacuteada (I vv 37-42) apoacutes ser insultado por Agamecircmnon chefe dos aqueus em Troia que recusa o resgate solicitado mediante a devida compensaccedilatildeo pela filha Criseida capturada como espoacutelio de guerra o velho sacerdote de Apolo Crises profere uma prece ao deus a qual enfim citamos

κλῦθί μευ ἀργυρότοξ᾽ ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ᾽ ἐπὶ νηὸν ἔρεψα ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί᾽ ἔκηα ταύρων ἠδ᾽ αἰγῶν τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν7

Ouve-me Arco-Prateado tu que zelas por Crisese pela numinosa Cila e reges Tecircnedos com poderEsminteu se te agradei ao cobrir tua morada

6 Traduccedilatildeo de nossa autoria assim como todas as demais salvo quando indicado o contraacuterio7 West (1998)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 2: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

72

y

No conjunto variado de formas temas e linguagem de um dos gecircneros proeminentes da poesia grega antiga a meacutelica a canccedilatildeo para performance acompanhada pela lira em canto solo ou coral e neste caso com danccedila ndash representada nas canccedilotildees dos enneacutea lyrikoiacute3 os ldquonove liacutericosrdquo mais admirados pelos antigos situados entre o final de 620 aC e os anos de 440 aC destaca-se a prece forma discursiva que desde a Iliacuteada (c 750 aC) se faz presente e se acha em praticamente todos os gecircneros poeacuteticos Dela nos ocupamos aqui em comentaacuterio analiacutetico de canccedilotildees-preces reunidas em um corpus de 21 fragmentos de 7 poetas meacutelicos distintos espalhados no tempo-espaccedilo gregos O termo ldquofragmentordquo aponta para o estado precaacuterio de preservaccedilatildeo das canccedilotildees que sobreviveram graccedilas agraves suas citaccedilotildees em geral parciais nas obras de pensadores antigos ndash fontes de transmissatildeo indireta ndash eou a papiros manuscritos e objetos (ceracircmicas pedras) ndash fontes de transmissatildeo direta ndash materiais destinados a gravaacute-las Tal condiccedilatildeo tem eacute claro implicaccedilotildees importantes do ponto de vista metodoloacutegico exigindo o estudo de ediccedilotildees fontes e um olhar aberto aos elementos da tradiccedilatildeo poeacutetica e de outras dimensotildees que os possam iluminar Quando completos ou quase ndash e poucos o satildeo ndash os fragmentos permitem mais vertical anaacutelise de seus elementos constitutivos O mesmo natildeo vale para aqueles que apresentam grandes lacunas e portanto exigem uma abordagem mais cautelosa e um olhar mais limitado e horizontal

Ressaltamos portanto desde jaacute que o equiliacutebrio na distribuiccedilatildeo dos comentaacuterios dedicados agrave meacutelica ndash e diga-se agrave elegia e ao jambo arcaicos tambeacutem fragmentariamente preservados ndash natildeo eacute possiacutevel o que de modo algum justifica a exclusatildeo de composiccedilotildees menos legiacuteveis dado que podem a despeito disso apoiar a anaacutelise como um todo confirmando a reiteraccedilatildeo de elementos importantes agrave consideraccedilatildeo das canccedilotildees-prece E isso vale para casos mais agudos de precariedade textual com relaccedilatildeo aos quais o objetivo passa entatildeo a ser a busca por indiacutecios e hipoacuteteses e natildeo muito mais do que isso

Pois bem Em se tratando das canccedilotildees-preces podemos visualizar com nitidez a combinaccedilatildeo poesia e religiatildeo que eacute proacutepria de um mundo em que a vida cotidiana a vida poliacutetica a vida cultural a vida cultual estatildeo todas imbricadas e entrelaccediladas de tal maneira que natildeo se coloca a separaccedilatildeo dessas dimensotildees umas das outras Eacute certo poreacutem que o material em que analisamos tal imbricaccedilatildeo pode levar a visotildees diferentes de um mesmo problema como observa Depew (1997 pp 229-230) ao enfocar a prece com base em fontes natildeo-poeacuteticas mas da cultura material grega em que percebe em sua funccedilatildeo e forma ldquoelementos inseparaacuteveis da ocasiatildeo de sua vocalizaccedilatildeordquo relativos ao local ao

3 Assim eacute referido o cacircnone dos nove meacutelicos editados tardiamente em Alexandria na Biblioteca sobretudo pelo erudito Aristoacutefanes de Bizacircncio (c 275-185 aC) Ver Most (1982 pp 78-81) Gerber (1997 pp 1-10) e Budelmann (2009 pp 1-18) Ragusa (2010 pp 26-29 2013 11-12 e 28-33)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

73

modo e agrave natureza do culto A preocupaccedilatildeo com tais elementos seraacute portanto essencial ao estudo da prece em tais bases diversamente do que se daacute nos estudos de preces preservadas em fontes poeacuteticas que avalia Depew (id ibid) centram-se ldquoem consideraccedilotildees de forma e estruturardquo as quais se pautam por praacuteticas tradicionais

De fato nas fontes de natureza poeacutetica o que temos eacute a linguagem eacute o discurso que na Greacutecia predominantemente oral da era arcaica (c 800-480 aC) agrave primeira metade da era claacutessica (c 480-323 aC) mundo da ldquocultura da canccedilatildeordquo4 a composiccedilatildeo eacute geneacuterica isto eacute baseada nas praacuteticas tradicionais dos gecircneros de poesia estes entendidos segundo Carey (2009 p 22) ldquocomo tendecircncias firmadas o suficiente para permitir que afinidades e influecircncias sejam discerniacuteveisrdquo gerando ldquoexpectativas na audiecircnciardquo que os poetas podem dentro da flexibilidade que lhes eacute proacutepria retrabalhar Aquelas praacuteticas orientam ainda o tratamento de certos temas para os quais linguagem e imagens satildeo consolidados e de certas formas como a da prece com seus elementos constantes identificando-a em meio aos gecircneros pelos quais se elabora e se distribui Elementos que ademais fazem-se presentes pela loacutegica que embasa a interlocuccedilatildeo entre um mortal e uma divindade na situaccedilatildeo da prece e que adveacutem da concepccedilatildeo sobre os deuses e seu mundo divino

Ao abordar a prece em seu estudo Gould (2002 p 14) afirma ldquoNatildeo havia um lsquolivro de precersquo na antiguidade claacutessica e natildeo temos textos lituacutergicos mas a literatura grega estaacute plena de preces e a partir delas temos uma clara ideia do modelo linguiacutestico e conceitual nos termos em que os homens se endereccedilavam agrave divindaderdquo Analisando a prece de Crises a Apolo na Iliacuteada (I vv 37-42) que adiante citaremos Kirk (2004 p 57) descreve o ldquopadratildeo religioso regularrdquo da prece a ldquolistagem inicial dos tiacutetulos e associaccedilotildees geograacuteficas do deusrdquo com a qual eacute identificado algo essencial no politeiacutesmo grego ldquoas reivindicaccedilotildees especiais ao favor do deusrdquo com a qual o mortal busca estabelecer um elo e uma relaccedilatildeo de reciprocidade ldquoe finalmente de modo bem sucinto o proacuteprio pedidordquo Gould (id pp 14-15) que se vale do mesmo exemplo e observa os elementos constitutivos essecircncias que Kirk descreve ressalta a importacircncia da noccedilatildeo de khaacuteris na base da formulaccedilatildeo tal como se daacute que suscita o sentido de obrigaccedilatildeo e sentimento de gratidatildeo os quais tambeacutem ldquofazem sentido nas relaccedilotildees entre os homensrdquo (p 15) conclui o estudioso

Falemos pois das canccedilotildees-preces da meacutelica arcaica um tipo de composiccedilatildeo que endereccedilada agrave divindade escolhida estabelece com ela(s) interlocuccedilatildeo direta Formatada em hinos e preces elabora-se como diaacutelogo em que o proacuteprio discurso de quem faz a prece configura-se como oferenda destinada a tornar propiacutecios os ouvidos do destinataacuterio em busca do atendimento do pedido feito da khaacuteris (ldquoreciprocidaderdquo χάρις) divina O apuro esteacutetico-formal dessas composiccedilotildees estaacute pois colocado em funccedilatildeo do deus e de seu elogio e prazer ndash sobretudo no caso dos hinos enfatiza Furley (2007 p 119)

4 Expressatildeo sinteacutetica usada por Herington (1985 p 3) que discorre detidamente sobre a poesia num mundo em que soacute existe de fato como ldquouma performance ao vivo diante de seres humanos vivos sob o solrdquo (p 57)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

74

concebido como presente agrave deidade engendrado como tal por suas ldquopalavras muacutesica passos de danccedila e beleza de seus performers para agradar o ouvido e os olhos do deusrdquo A partir de comentaacuterios acerca da forma do conteuacutedo e da linguagem vamos percorrer o corpus de 21 fragmentos meacutelicos arcaicos refletindo na medida do possiacutevel e nos limites deste artigo sobre suas relaccedilotildees com tradiccedilotildees miacuteticas e praacuteticas cultuais e contemplando na escolha das canccedilotildees-preces algumas menos enfocadas entre noacutes as jaacute mais estudadas ficando em nosso horizonte tais como o ldquoHino a Afroditerdquo (Fr 1 Voigt) e a ldquoOde do oacutestracordquo (Fr 2 Voigt) de Safo5

A seguir estatildeo relacionados os fragmentos do corpus em suas ediccedilotildees de autoridade organizados de acordo com as divindades agraves quais satildeo endereccedilados

Afrodite Safo Frs 33 86 Voigt (1971)Apolo Alceu Fr 307a Voigt Aacutelcman Fr S1 Davies (1991) Simocircnides Fr 519 Page (1962) Terpandro Fr 1 Bergk (1843)Aacutertemis Anacreonte Fr 348 PageDemeacuteter e Perseacutefone Laso Fr 702 PageGraccedilas Safo Frs 53 128 VoigtHera Aacutelcman Fr 60 Davies Safo Fr 17 VoigtMusas Aacutelcman Frs 5 (fr 2 col iii) 8 28 Davies Safo Fr 127 VoigtNinfas Alceu Fr 343 VoigtZeus Alceu Fr 69 Voigt Anacreonte Fr 423 Page Terpandro Fr 698 PageMuacuteltiplos deuses Alceu Fr 129 Voigt

Prece hino meacutelica

Antes de avanccedilarmos aos comentaacuterios e traduccedilotildees do corpus valem algumas palavras sobre o papel de preces e hinos na vida dos gregos antigos suas semelhanccedilas e diferenccedilas formais e funcionais a fim de contextualizar as tradiccedilotildees religiosas e poeacuteticas com as quais essas canccedilotildees-preces dialogam

Talvez a principal caracteriacutestica das praacuteticas religiosas do mundo grego seja o caraacuteter puacuteblico do culto aos deuses Durante os procedimentos rituais o grupo de indiviacuteduos busca chamar para si a atenccedilatildeo dos deuses Burkert (1985 p 73) afirma ldquoLibaccedilatildeo sacrifiacutecio ofertas de primeira colheita ndash esses satildeo os atos que definem reverecircncia Todavia cada uma dessas accedilotildees deve ser acompanhada

5 Traduzidos comentados e detidamente analisados por Ragusa (2005 pp 193-232 261-337 2013 pp 100-108) com indicaccedilatildeo da volumosa bibliografia criacutetica O Fr 1 tambeacutem eacute objeto de detida anaacutelise em Andrade (2019 pp 75-139)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

75

pela palavra certardquo6 Por ldquopalavra certardquo entende-se prece e hino compostos e executados de maneira apropriada Furley (2007 p 118) observa que a maneira mais simples de definir preces e hinos eacute esta ldquo[] satildeo esforccedilos de homens e mulheres para se comunicarem com deuses por meio da vozrdquo A definiccedilatildeo eacute uacutetil para deixar claro por que os termos satildeo intercambiaacuteveis em contextos de menor precisatildeo vocabular ambos se referem a meios de estabelecer contato entre os mundos mortal e divino em circunstacircncias cultuais

Portanto a voz entoada cumpre papel fundamental entre os procedimentos eacute preciso (1) estabelecer a comunicaccedilatildeo com o deus (2) conquistar sua benevolecircncia e (3) mantecirc-lo entretido ldquo[] toda a estrateacutegia por traacutes de composiccedilotildees e performances hiacutenicas se dava para atrair a atenccedilatildeo da divindade endereccedilada de modo favoraacutevelrdquo afirma Furley (1995 p 32) Tanto preces quanto hinos cumprem essas funccedilotildees mas com ecircnfases distintas Espera-se que em uma prece o enfoque esteja no pedido Natildeo eacute agrave toa que eukhḗ (εὐχή) palavra que a designa possa tambeacutem se referir a desejo aspiraccedilatildeo Ademais Burkert (id ibid) menciona a forte relaccedilatildeo entre litaiacute (λιταί) e thysiacuteai (θυσίαι) respectivamente entre ldquosuacuteplicasrdquo e ldquosacrifiacuteciosrdquo Preces satildeo a parte verbal de um processo que inclui local ocasiatildeo sacrifiacutecio e libaccedilatildeo como elementos constitutivos que visam agrave anuecircncia divina Comparativamente hinos se preocupam com a celebraccedilatildeo com a demonstraccedilatildeo de reverecircncia por parte da comunidade ldquo[] hinos [] natildeo satildeo preces mas satildeo como sacrifiacutecios e libaccedilotildees oferendas a um deusrdquo (Depew 2000 p 63)

A maneira como os gregos dirigem suacuteplica e elogio aos deuses segue um padratildeo tradicional com exemplos em todos os gecircneros da epopeia agrave trageacutedia Na Iliacuteada (I vv 37-42) apoacutes ser insultado por Agamecircmnon chefe dos aqueus em Troia que recusa o resgate solicitado mediante a devida compensaccedilatildeo pela filha Criseida capturada como espoacutelio de guerra o velho sacerdote de Apolo Crises profere uma prece ao deus a qual enfim citamos

κλῦθί μευ ἀργυρότοξ᾽ ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ᾽ ἐπὶ νηὸν ἔρεψα ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί᾽ ἔκηα ταύρων ἠδ᾽ αἰγῶν τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν7

Ouve-me Arco-Prateado tu que zelas por Crisese pela numinosa Cila e reges Tecircnedos com poderEsminteu se te agradei ao cobrir tua morada

6 Traduccedilatildeo de nossa autoria assim como todas as demais salvo quando indicado o contraacuterio7 West (1998)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 3: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

73

modo e agrave natureza do culto A preocupaccedilatildeo com tais elementos seraacute portanto essencial ao estudo da prece em tais bases diversamente do que se daacute nos estudos de preces preservadas em fontes poeacuteticas que avalia Depew (id ibid) centram-se ldquoem consideraccedilotildees de forma e estruturardquo as quais se pautam por praacuteticas tradicionais

De fato nas fontes de natureza poeacutetica o que temos eacute a linguagem eacute o discurso que na Greacutecia predominantemente oral da era arcaica (c 800-480 aC) agrave primeira metade da era claacutessica (c 480-323 aC) mundo da ldquocultura da canccedilatildeordquo4 a composiccedilatildeo eacute geneacuterica isto eacute baseada nas praacuteticas tradicionais dos gecircneros de poesia estes entendidos segundo Carey (2009 p 22) ldquocomo tendecircncias firmadas o suficiente para permitir que afinidades e influecircncias sejam discerniacuteveisrdquo gerando ldquoexpectativas na audiecircnciardquo que os poetas podem dentro da flexibilidade que lhes eacute proacutepria retrabalhar Aquelas praacuteticas orientam ainda o tratamento de certos temas para os quais linguagem e imagens satildeo consolidados e de certas formas como a da prece com seus elementos constantes identificando-a em meio aos gecircneros pelos quais se elabora e se distribui Elementos que ademais fazem-se presentes pela loacutegica que embasa a interlocuccedilatildeo entre um mortal e uma divindade na situaccedilatildeo da prece e que adveacutem da concepccedilatildeo sobre os deuses e seu mundo divino

Ao abordar a prece em seu estudo Gould (2002 p 14) afirma ldquoNatildeo havia um lsquolivro de precersquo na antiguidade claacutessica e natildeo temos textos lituacutergicos mas a literatura grega estaacute plena de preces e a partir delas temos uma clara ideia do modelo linguiacutestico e conceitual nos termos em que os homens se endereccedilavam agrave divindaderdquo Analisando a prece de Crises a Apolo na Iliacuteada (I vv 37-42) que adiante citaremos Kirk (2004 p 57) descreve o ldquopadratildeo religioso regularrdquo da prece a ldquolistagem inicial dos tiacutetulos e associaccedilotildees geograacuteficas do deusrdquo com a qual eacute identificado algo essencial no politeiacutesmo grego ldquoas reivindicaccedilotildees especiais ao favor do deusrdquo com a qual o mortal busca estabelecer um elo e uma relaccedilatildeo de reciprocidade ldquoe finalmente de modo bem sucinto o proacuteprio pedidordquo Gould (id pp 14-15) que se vale do mesmo exemplo e observa os elementos constitutivos essecircncias que Kirk descreve ressalta a importacircncia da noccedilatildeo de khaacuteris na base da formulaccedilatildeo tal como se daacute que suscita o sentido de obrigaccedilatildeo e sentimento de gratidatildeo os quais tambeacutem ldquofazem sentido nas relaccedilotildees entre os homensrdquo (p 15) conclui o estudioso

Falemos pois das canccedilotildees-preces da meacutelica arcaica um tipo de composiccedilatildeo que endereccedilada agrave divindade escolhida estabelece com ela(s) interlocuccedilatildeo direta Formatada em hinos e preces elabora-se como diaacutelogo em que o proacuteprio discurso de quem faz a prece configura-se como oferenda destinada a tornar propiacutecios os ouvidos do destinataacuterio em busca do atendimento do pedido feito da khaacuteris (ldquoreciprocidaderdquo χάρις) divina O apuro esteacutetico-formal dessas composiccedilotildees estaacute pois colocado em funccedilatildeo do deus e de seu elogio e prazer ndash sobretudo no caso dos hinos enfatiza Furley (2007 p 119)

4 Expressatildeo sinteacutetica usada por Herington (1985 p 3) que discorre detidamente sobre a poesia num mundo em que soacute existe de fato como ldquouma performance ao vivo diante de seres humanos vivos sob o solrdquo (p 57)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

74

concebido como presente agrave deidade engendrado como tal por suas ldquopalavras muacutesica passos de danccedila e beleza de seus performers para agradar o ouvido e os olhos do deusrdquo A partir de comentaacuterios acerca da forma do conteuacutedo e da linguagem vamos percorrer o corpus de 21 fragmentos meacutelicos arcaicos refletindo na medida do possiacutevel e nos limites deste artigo sobre suas relaccedilotildees com tradiccedilotildees miacuteticas e praacuteticas cultuais e contemplando na escolha das canccedilotildees-preces algumas menos enfocadas entre noacutes as jaacute mais estudadas ficando em nosso horizonte tais como o ldquoHino a Afroditerdquo (Fr 1 Voigt) e a ldquoOde do oacutestracordquo (Fr 2 Voigt) de Safo5

A seguir estatildeo relacionados os fragmentos do corpus em suas ediccedilotildees de autoridade organizados de acordo com as divindades agraves quais satildeo endereccedilados

Afrodite Safo Frs 33 86 Voigt (1971)Apolo Alceu Fr 307a Voigt Aacutelcman Fr S1 Davies (1991) Simocircnides Fr 519 Page (1962) Terpandro Fr 1 Bergk (1843)Aacutertemis Anacreonte Fr 348 PageDemeacuteter e Perseacutefone Laso Fr 702 PageGraccedilas Safo Frs 53 128 VoigtHera Aacutelcman Fr 60 Davies Safo Fr 17 VoigtMusas Aacutelcman Frs 5 (fr 2 col iii) 8 28 Davies Safo Fr 127 VoigtNinfas Alceu Fr 343 VoigtZeus Alceu Fr 69 Voigt Anacreonte Fr 423 Page Terpandro Fr 698 PageMuacuteltiplos deuses Alceu Fr 129 Voigt

Prece hino meacutelica

Antes de avanccedilarmos aos comentaacuterios e traduccedilotildees do corpus valem algumas palavras sobre o papel de preces e hinos na vida dos gregos antigos suas semelhanccedilas e diferenccedilas formais e funcionais a fim de contextualizar as tradiccedilotildees religiosas e poeacuteticas com as quais essas canccedilotildees-preces dialogam

Talvez a principal caracteriacutestica das praacuteticas religiosas do mundo grego seja o caraacuteter puacuteblico do culto aos deuses Durante os procedimentos rituais o grupo de indiviacuteduos busca chamar para si a atenccedilatildeo dos deuses Burkert (1985 p 73) afirma ldquoLibaccedilatildeo sacrifiacutecio ofertas de primeira colheita ndash esses satildeo os atos que definem reverecircncia Todavia cada uma dessas accedilotildees deve ser acompanhada

5 Traduzidos comentados e detidamente analisados por Ragusa (2005 pp 193-232 261-337 2013 pp 100-108) com indicaccedilatildeo da volumosa bibliografia criacutetica O Fr 1 tambeacutem eacute objeto de detida anaacutelise em Andrade (2019 pp 75-139)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

75

pela palavra certardquo6 Por ldquopalavra certardquo entende-se prece e hino compostos e executados de maneira apropriada Furley (2007 p 118) observa que a maneira mais simples de definir preces e hinos eacute esta ldquo[] satildeo esforccedilos de homens e mulheres para se comunicarem com deuses por meio da vozrdquo A definiccedilatildeo eacute uacutetil para deixar claro por que os termos satildeo intercambiaacuteveis em contextos de menor precisatildeo vocabular ambos se referem a meios de estabelecer contato entre os mundos mortal e divino em circunstacircncias cultuais

Portanto a voz entoada cumpre papel fundamental entre os procedimentos eacute preciso (1) estabelecer a comunicaccedilatildeo com o deus (2) conquistar sua benevolecircncia e (3) mantecirc-lo entretido ldquo[] toda a estrateacutegia por traacutes de composiccedilotildees e performances hiacutenicas se dava para atrair a atenccedilatildeo da divindade endereccedilada de modo favoraacutevelrdquo afirma Furley (1995 p 32) Tanto preces quanto hinos cumprem essas funccedilotildees mas com ecircnfases distintas Espera-se que em uma prece o enfoque esteja no pedido Natildeo eacute agrave toa que eukhḗ (εὐχή) palavra que a designa possa tambeacutem se referir a desejo aspiraccedilatildeo Ademais Burkert (id ibid) menciona a forte relaccedilatildeo entre litaiacute (λιταί) e thysiacuteai (θυσίαι) respectivamente entre ldquosuacuteplicasrdquo e ldquosacrifiacuteciosrdquo Preces satildeo a parte verbal de um processo que inclui local ocasiatildeo sacrifiacutecio e libaccedilatildeo como elementos constitutivos que visam agrave anuecircncia divina Comparativamente hinos se preocupam com a celebraccedilatildeo com a demonstraccedilatildeo de reverecircncia por parte da comunidade ldquo[] hinos [] natildeo satildeo preces mas satildeo como sacrifiacutecios e libaccedilotildees oferendas a um deusrdquo (Depew 2000 p 63)

A maneira como os gregos dirigem suacuteplica e elogio aos deuses segue um padratildeo tradicional com exemplos em todos os gecircneros da epopeia agrave trageacutedia Na Iliacuteada (I vv 37-42) apoacutes ser insultado por Agamecircmnon chefe dos aqueus em Troia que recusa o resgate solicitado mediante a devida compensaccedilatildeo pela filha Criseida capturada como espoacutelio de guerra o velho sacerdote de Apolo Crises profere uma prece ao deus a qual enfim citamos

κλῦθί μευ ἀργυρότοξ᾽ ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ᾽ ἐπὶ νηὸν ἔρεψα ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί᾽ ἔκηα ταύρων ἠδ᾽ αἰγῶν τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν7

Ouve-me Arco-Prateado tu que zelas por Crisese pela numinosa Cila e reges Tecircnedos com poderEsminteu se te agradei ao cobrir tua morada

6 Traduccedilatildeo de nossa autoria assim como todas as demais salvo quando indicado o contraacuterio7 West (1998)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 4: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

74

concebido como presente agrave deidade engendrado como tal por suas ldquopalavras muacutesica passos de danccedila e beleza de seus performers para agradar o ouvido e os olhos do deusrdquo A partir de comentaacuterios acerca da forma do conteuacutedo e da linguagem vamos percorrer o corpus de 21 fragmentos meacutelicos arcaicos refletindo na medida do possiacutevel e nos limites deste artigo sobre suas relaccedilotildees com tradiccedilotildees miacuteticas e praacuteticas cultuais e contemplando na escolha das canccedilotildees-preces algumas menos enfocadas entre noacutes as jaacute mais estudadas ficando em nosso horizonte tais como o ldquoHino a Afroditerdquo (Fr 1 Voigt) e a ldquoOde do oacutestracordquo (Fr 2 Voigt) de Safo5

A seguir estatildeo relacionados os fragmentos do corpus em suas ediccedilotildees de autoridade organizados de acordo com as divindades agraves quais satildeo endereccedilados

Afrodite Safo Frs 33 86 Voigt (1971)Apolo Alceu Fr 307a Voigt Aacutelcman Fr S1 Davies (1991) Simocircnides Fr 519 Page (1962) Terpandro Fr 1 Bergk (1843)Aacutertemis Anacreonte Fr 348 PageDemeacuteter e Perseacutefone Laso Fr 702 PageGraccedilas Safo Frs 53 128 VoigtHera Aacutelcman Fr 60 Davies Safo Fr 17 VoigtMusas Aacutelcman Frs 5 (fr 2 col iii) 8 28 Davies Safo Fr 127 VoigtNinfas Alceu Fr 343 VoigtZeus Alceu Fr 69 Voigt Anacreonte Fr 423 Page Terpandro Fr 698 PageMuacuteltiplos deuses Alceu Fr 129 Voigt

Prece hino meacutelica

Antes de avanccedilarmos aos comentaacuterios e traduccedilotildees do corpus valem algumas palavras sobre o papel de preces e hinos na vida dos gregos antigos suas semelhanccedilas e diferenccedilas formais e funcionais a fim de contextualizar as tradiccedilotildees religiosas e poeacuteticas com as quais essas canccedilotildees-preces dialogam

Talvez a principal caracteriacutestica das praacuteticas religiosas do mundo grego seja o caraacuteter puacuteblico do culto aos deuses Durante os procedimentos rituais o grupo de indiviacuteduos busca chamar para si a atenccedilatildeo dos deuses Burkert (1985 p 73) afirma ldquoLibaccedilatildeo sacrifiacutecio ofertas de primeira colheita ndash esses satildeo os atos que definem reverecircncia Todavia cada uma dessas accedilotildees deve ser acompanhada

5 Traduzidos comentados e detidamente analisados por Ragusa (2005 pp 193-232 261-337 2013 pp 100-108) com indicaccedilatildeo da volumosa bibliografia criacutetica O Fr 1 tambeacutem eacute objeto de detida anaacutelise em Andrade (2019 pp 75-139)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

75

pela palavra certardquo6 Por ldquopalavra certardquo entende-se prece e hino compostos e executados de maneira apropriada Furley (2007 p 118) observa que a maneira mais simples de definir preces e hinos eacute esta ldquo[] satildeo esforccedilos de homens e mulheres para se comunicarem com deuses por meio da vozrdquo A definiccedilatildeo eacute uacutetil para deixar claro por que os termos satildeo intercambiaacuteveis em contextos de menor precisatildeo vocabular ambos se referem a meios de estabelecer contato entre os mundos mortal e divino em circunstacircncias cultuais

Portanto a voz entoada cumpre papel fundamental entre os procedimentos eacute preciso (1) estabelecer a comunicaccedilatildeo com o deus (2) conquistar sua benevolecircncia e (3) mantecirc-lo entretido ldquo[] toda a estrateacutegia por traacutes de composiccedilotildees e performances hiacutenicas se dava para atrair a atenccedilatildeo da divindade endereccedilada de modo favoraacutevelrdquo afirma Furley (1995 p 32) Tanto preces quanto hinos cumprem essas funccedilotildees mas com ecircnfases distintas Espera-se que em uma prece o enfoque esteja no pedido Natildeo eacute agrave toa que eukhḗ (εὐχή) palavra que a designa possa tambeacutem se referir a desejo aspiraccedilatildeo Ademais Burkert (id ibid) menciona a forte relaccedilatildeo entre litaiacute (λιταί) e thysiacuteai (θυσίαι) respectivamente entre ldquosuacuteplicasrdquo e ldquosacrifiacuteciosrdquo Preces satildeo a parte verbal de um processo que inclui local ocasiatildeo sacrifiacutecio e libaccedilatildeo como elementos constitutivos que visam agrave anuecircncia divina Comparativamente hinos se preocupam com a celebraccedilatildeo com a demonstraccedilatildeo de reverecircncia por parte da comunidade ldquo[] hinos [] natildeo satildeo preces mas satildeo como sacrifiacutecios e libaccedilotildees oferendas a um deusrdquo (Depew 2000 p 63)

A maneira como os gregos dirigem suacuteplica e elogio aos deuses segue um padratildeo tradicional com exemplos em todos os gecircneros da epopeia agrave trageacutedia Na Iliacuteada (I vv 37-42) apoacutes ser insultado por Agamecircmnon chefe dos aqueus em Troia que recusa o resgate solicitado mediante a devida compensaccedilatildeo pela filha Criseida capturada como espoacutelio de guerra o velho sacerdote de Apolo Crises profere uma prece ao deus a qual enfim citamos

κλῦθί μευ ἀργυρότοξ᾽ ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ᾽ ἐπὶ νηὸν ἔρεψα ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί᾽ ἔκηα ταύρων ἠδ᾽ αἰγῶν τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν7

Ouve-me Arco-Prateado tu que zelas por Crisese pela numinosa Cila e reges Tecircnedos com poderEsminteu se te agradei ao cobrir tua morada

6 Traduccedilatildeo de nossa autoria assim como todas as demais salvo quando indicado o contraacuterio7 West (1998)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 5: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

75

pela palavra certardquo6 Por ldquopalavra certardquo entende-se prece e hino compostos e executados de maneira apropriada Furley (2007 p 118) observa que a maneira mais simples de definir preces e hinos eacute esta ldquo[] satildeo esforccedilos de homens e mulheres para se comunicarem com deuses por meio da vozrdquo A definiccedilatildeo eacute uacutetil para deixar claro por que os termos satildeo intercambiaacuteveis em contextos de menor precisatildeo vocabular ambos se referem a meios de estabelecer contato entre os mundos mortal e divino em circunstacircncias cultuais

Portanto a voz entoada cumpre papel fundamental entre os procedimentos eacute preciso (1) estabelecer a comunicaccedilatildeo com o deus (2) conquistar sua benevolecircncia e (3) mantecirc-lo entretido ldquo[] toda a estrateacutegia por traacutes de composiccedilotildees e performances hiacutenicas se dava para atrair a atenccedilatildeo da divindade endereccedilada de modo favoraacutevelrdquo afirma Furley (1995 p 32) Tanto preces quanto hinos cumprem essas funccedilotildees mas com ecircnfases distintas Espera-se que em uma prece o enfoque esteja no pedido Natildeo eacute agrave toa que eukhḗ (εὐχή) palavra que a designa possa tambeacutem se referir a desejo aspiraccedilatildeo Ademais Burkert (id ibid) menciona a forte relaccedilatildeo entre litaiacute (λιταί) e thysiacuteai (θυσίαι) respectivamente entre ldquosuacuteplicasrdquo e ldquosacrifiacuteciosrdquo Preces satildeo a parte verbal de um processo que inclui local ocasiatildeo sacrifiacutecio e libaccedilatildeo como elementos constitutivos que visam agrave anuecircncia divina Comparativamente hinos se preocupam com a celebraccedilatildeo com a demonstraccedilatildeo de reverecircncia por parte da comunidade ldquo[] hinos [] natildeo satildeo preces mas satildeo como sacrifiacutecios e libaccedilotildees oferendas a um deusrdquo (Depew 2000 p 63)

A maneira como os gregos dirigem suacuteplica e elogio aos deuses segue um padratildeo tradicional com exemplos em todos os gecircneros da epopeia agrave trageacutedia Na Iliacuteada (I vv 37-42) apoacutes ser insultado por Agamecircmnon chefe dos aqueus em Troia que recusa o resgate solicitado mediante a devida compensaccedilatildeo pela filha Criseida capturada como espoacutelio de guerra o velho sacerdote de Apolo Crises profere uma prece ao deus a qual enfim citamos

κλῦθί μευ ἀργυρότοξ᾽ ὃς Χρύσην ἀμφιβέβηκας Κίλλάν τε ζαθέην Τενέδοιό τε ἶφι ἀνάσσεις Σμινθεῦ εἴ ποτέ τοι χαρίεντ᾽ ἐπὶ νηὸν ἔρεψα ἢ εἰ δή ποτέ τοι κατὰ πίονα μηρί᾽ ἔκηα ταύρων ἠδ᾽ αἰγῶν τὸ δέ μοι κρήηνον ἐέλδωρ τίσειαν Δαναοὶ ἐμὰ δάκρυα σοῖσι βέλεσσιν7

Ouve-me Arco-Prateado tu que zelas por Crisese pela numinosa Cila e reges Tecircnedos com poderEsminteu se te agradei ao cobrir tua morada

6 Traduccedilatildeo de nossa autoria assim como todas as demais salvo quando indicado o contraacuterio7 West (1998)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 6: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

76

ou se uma vez te queimei gordas coxasde touros e cabras realiza-me esta vontadecom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu choro8

Observemos as etapas da prece e suas funccedilotildees retoacutericas Em primeiro lugar a identificaccedilatildeo e invocaccedilatildeo do deus ldquoArco-Prateadordquo (v 37) ldquotu que zelas por Crisesrdquo (v 37) na sequecircncia a parte intermediaacuteria funciona como um atestado de piedade na qual o suplicante precisa convencer o deus de que eacute digno geralmente recorrendo ao passado e demonstrando ser um sujeito pio ldquose te agradei ao cobrir tua moradardquo (v 39) ldquoou se uma vez te queimei gordas coxas de touros e cabrasrdquo (vv 40-1) e enfim o imperativo dirigindo-se ao deus na 2ordf pessoa e sempre contendo o sentido de suacuteplica ldquorealiza-me esta vontaderdquo (v 41) ldquocom tuas setas paguem os dacircnaos pelo meu chorordquo (v 42)

Vejamos mais um exemplo Diante da peste que aflige Tebas o coro traacutegico em Eacutedipo rei (vv 159-166) de Soacutefocles (seacuteculo V aC) canta

πρῶτα σὲ κεκλόμενος θύγατερ Διός ἄμβροτrsquo Ἀθάναγαιάοχόν τrsquo ἀδελφεὰνἌρτεμιν ἃ κυκλόεντrsquo ἀγορᾶς θρόνονεὐκλέα θάσσεικαὶ Φοῖβον ἑκαβόλον ἰὼτρισσοὶ ἀλεξίμοροι προφάνητέ μοιεἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερὀρνυμένας πόλειἠνύσατrsquo ἐκτοπίαν φλόγα πήματος ἔλθετε καὶ νῦν

Conclamo-te primeiro filha de ZeusAtena imortale tua irmatilde terratenenteAacutertemis assentada no iacutenclito tronociacuteclico da praccedilae Febo sagitaacuterio eiamostrai-vos a mim triacuteade mortiacutefugase outrora quando desastre precedentese atirava sobre a cidadeeliminastes a flama do flagelovinde tambeacutem agora9

8 Traduccedilatildeo Werner (2018)9 Traduccedilatildeo Oliveira (2015) com texto grego de Bollack (1990)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 7: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

77

Aqui se nota a mesma estrutura geral da prece de Crises e se constata que uma prece pode ser feita a mesma a mais de um deus Comeccedila-se invocando os deuses com seus nomes acompanhados de epiacutetetos (150-162) em seguida um trecho narrativo atestando que aquilo que seraacute pedido jaacute foi realizado no passado (vv 165-6) e finalmente o imperativo pedindo pela presenccedila divina (v 167) Satildeo portanto trecircs as etapas que compotildeem a precehino invocaccedilatildeo narraccedilatildeo e pedido

Ora o propoacutesito de um hino eacute o deleite do deus uma vez que sua funccedilatildeo eacute de oferta o hino diz Furley (2007 p 119) era um presente ldquoalgo belordquo Isso nos permite afirmar que em geral os hinos tendem a ser como aqui jaacute frisamos trazendo essa fala do estudioso mais esteticamente elaborados se comparados a uma prece sobretudo no que diz respeito agrave etapa intermediaacuteria do discurso na composiccedilatildeo e agrave performance na sua realizaccedilatildeo A esse propoacutesito Furley e Bremer (2001 p 3) comentam

Hinos compartilham muitos dos elementos composicionais caracteriacutesticos das preces haacute o mesmo endereccedilamento direto da deidade o mesmo gesto de suacuteplica e com frequecircncia o mesmo pedido expresso por ajuda ou proteccedilatildeo Uma diferenccedila pode existir ao considerar ambos os elementos composicionais das duas formas e suas diferentes funccedilotildees cultuais Formalmente um hino tende a ser um produto artiacutestico mais bem-acabado do que uma prece tanto em termos de articulaccedilatildeo discursiva e narrativa quanto em termos de performance

Assim sendo quanto aos exemplos anteriores seriam as palavras de Crises uma prece e o canto coral de Eacutedipo rei um hino No primeiro caso a resposta positiva parece soacutelida o pedido do sacerdote de Apolo eacute claro e sua elaboraccedilatildeo sucinta e objetiva No segundo poreacutem haacute controveacutersias embora o canto e a danccedila ndash papel do coro traacutegico ndash sejam proacuteprios dos hinos porque agregam agrave grandiosidade da performance o pedido pela presenccedila dos deuses dado o contexto da ruiacutena de Tebas eacute tambeacutem um apelo sucinto e objetivo pela proteccedilatildeo da cidade

Determinar categoricamente se uma canccedilatildeo eacute hino ou prece parece pois tarefa despropositada Embora as formas jaacute fossem niacutetidas em suas praacuteticas em Homero como vimos na prece de Crises natildeo haacute tratado poeacutetico que normatize a composiccedilatildeo na Greacutecia arcaica e nem poderia haver com a escrita em processo de difusatildeo e a prosa ainda por emergir Isso poreacutem decerto natildeo impede que haja consciecircncia dos gecircneros ndash que pensamos como sugere Carey (2009 p 22) em citaccedilatildeo anteriormente feita ndash das formas da linguagem e de suas tradiccedilotildees como bem argumenta com detalhe e vagar o conhecido artigo de Rossi (1971 pp 69-94) a respeito Tendecircncias e praacuteticas recorrentes estatildeo na base da poesia de tradiccedilatildeo oral na ldquocultura da canccedilatildeordquo grega e satildeo continuamente aproveitadas recortadas e mesmo algo refrescadas pelos poetas que delas se valem Mais do que categorizar as canccedilotildees do corpus o que pretendemos eacute apontar seus aspectos hiacutenicos os traccedilos tiacutepicos de uma prece e a presenccedila ou ausecircncia de elementos cultuais quando verificaacuteveis

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 8: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

78

Haacute uma ressalva a fazer quanto agrave diferenccedila entre hinos cultuais com os quais as canccedilotildees-preces estabelecem diaacutelogo e o corpus de poesia hexameacutetrica conhecido como Hinos homeacutericos os quais compostos em dicccedilatildeo eacutepico-homeacuterica tecircm como propoacutesito provaacutevel funcionar como proecircmio agrave apresentaccedilatildeo de poesia eacutepica10 Ambos os conjuntos dos hinos cultuais e dos Hinos homeacutericos tecircm o deus como tema e em certa medida buscam honraacute-lo com a performance mas enquanto aquele grupo canta diretamente aos deuses este canta sobre eles Os desdobramentos do termo hyacutemnos (ὕμνος) explicam o porquecirc de gecircneros distintos serem chamados pelo mesmo nome Sua acepccedilatildeo mais neutra se refere agrave ldquocanccedilatildeordquo mas Pulleyn (1997 pp 43-4) e Depew (2000 p 69) mencionam em seus respectivos estudos outros trecircs usos qualquer composiccedilatildeo em hexacircmetro qualquer canccedilatildeo dirigida a um deus e um tipo especiacutefico de canccedilatildeo dirigida a um deus

Vimos que odes dedicadas agraves deidades como oferta ou como suacuteplica encontram exemplos por toda a poesia grega da epopeia agrave trageacutedia Todavia soacute deixam de ser imitaccedilatildeo representaccedilatildeo narrativa de uma realidade cultual na meacutelica ndash termo derivado de meacutelos (ldquomembro frase musical canccedilatildeordquo μέλος) ndash que eacute o gecircnero poeacutetico arcaico definido sobretudo mas natildeo somente pela ocasiatildeo e performance e pela funccedilatildeo pragmaacutetica que exercem suas espeacutecies variadas o epitalacircmio canccedilatildeo de casamento o treno canccedilatildeo ligada agrave cerimocircnia fuacutenebre o epiniacutecio que celebra vitoacuterias atleacuteticas conquistadas nos Jogos entre outros A canccedilatildeo-prece no entanto eacute uma categoria ampla que por si soacute natildeo indica evento ou circunstacircncia Com efeito abrange toda canccedilatildeo que como vimos eacute composta na forma tradicional de hinos e preces seja para cumprir funccedilatildeo cultual seja para estabelecer intertexto que amplie o caraacuteter poeacutetico em alguma medida

Esclarecido o contexto passamos ao comentaacuterio do corpus

Comentaacuterio analiacutetico do corpus

1 Para Afrodite

11 Safo (c 630-580 aC) Fr 33 Voigt

αἴθrsaquo ἔγω χρυσοστέφανrsaquo Ἀφρόδιτατόνδε τὸν πάλον ltgt λαχοίην

se eu ao menos oacute auricoroada Afroditeeste quinhatildeo obtivesse 11

10 Ver Smyth (1900 xxvii)11 Todas as traduccedilotildees dos fragmentos do corpus satildeo de nossa autoria

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 9: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

79

Citado por fonte de transmissatildeo indireta para ilustrar o uso de aiacutethe como expressatildeo de desejo (ldquose ao menosrdquo v 1) o fragmento eacute um protoacutetipo de suacuteplica proacuteprio dos exemplos em gramaacuteticas Assim a construccedilatildeo aiacutethrsquo [] lakhoiacuteen (vv 1-2) com a forma verbal no vocativo volitivo caracteriza um pedido endereccedilado ao divino ndash traccedilo fundamental de uma prece Nada garante poreacutem que esses versos sejam de fato parte de uma canccedilatildeo-prece porque a poesia antiga natildeo segue foacutermulas riacutegidas As formas e os subgecircneros meacutelicos embora encontrem na tradiccedilatildeo uma referecircncia para a composiccedilatildeo tambeacutem satildeo abertos agrave inovaccedilatildeo e ao diaacutelogo no interior da tradiccedilatildeo poeacutetica ndash a flexibilidade que Carey (2009 p 22) sublinha na sua compreensatildeo dos gecircneros poeacuteticos na Greacutecia arcaica

O epiacuteteto a Afrodite (v 1) khrysosteacutephanos no vocativo eacute parte da expressatildeo que clama pela deusa A coroa ou a guirlanda que adorna corando-a a cabeccedila e o ouro satildeo marcadores comuns do estatuto de divindade mas para ela a imagem de adornos reluzentes tambeacutem destaca sua caracteriacutestica mais ceacutelebre a beleza A deusa eacute afinal na tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica a uacutenica dita ldquoaacuteureardquo pura e simplesmente desde a Iliacuteada (III v 64)12

12 Safo Fr 86 Voigt

]αϰάλα[] αἰγιόχω λα[] Κυθέρηrsquo εὐχομ[ ]ον ἔχοισα θῦμο[νϰλ]ῦθί μrsquo ἄρας αἴ π[οτα ϰἀτέρωτα ]ας προλίποισα ϰ[ ] πεδrsquo ἔμαν ἰώ[ ]ν χαλέπαι[

porta-eacutegide

oacute Citereia eu rogo

com o coraccedilatildeo

ouve tu minhas preces se outrora

ao abandonar

junto a mim

difiacuteceis

O vocativo Kytheacuterērsquo (v 3) ndash designaccedilatildeo comum de Afrodite ndash e o verbo eukhom- (provavelmente euacutekhomai ldquoeu rogordquo v 3) satildeo os primeiros indiacutecios de uma canccedilatildeo-prece A expressatildeo condicional aiacute p[ota kateacuterōta] (ldquose outrorardquo) suplementada ao verso 5 do Fr 86 com base no verso 5 do Fr 1 da poeta introduziria uma narrativa para estabelecimento de viacutenculos pregressos entre

12 Ver a respeito Boedeker (1974 pp 22-3 26 29) e Ragusa (2005 p 179-185) que estuda a imagem aacuteurea de Afrodite justamente a partir do epiacuteteto do Fr 33 khrysosteacutephanrsquo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 10: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

80

suplicante e deidade e provas de piedade Antecedendo a expressatildeo aceita na ediccedilatildeo de autoridade adotada (Voigt 1971) a oraccedilatildeo imperativa [kl]ȳthiacute mrsquoaacuteras (ldquoouve minhas precesrdquo) aleacutem de tiacutepica na interlocuccedilatildeo com os deuses em preces emprega o vocaacutebulo araacute que ldquosignifica prece e voto mas ao mesmo tempo maldiccedilatildeordquo (Burkert 1985 p 73) Estaacute pois expressa no vocabulaacuterio da canccedilatildeo a dupla possibilidade de se pedir pelo favor ou pela destruiccedilatildeo

No mundo grego ldquoo sucesso e a honra de algueacutem estatildeo na maior parte das vezes inextricavelmente ligados agrave humilhaccedilatildeo e destruiccedilatildeo de um outrordquo (Burkert id ibid) Ao se levar em conta a ideia do desejo representada por Afrodite muito elaborado pelos poemas saacuteficos e pela tradiccedilatildeo poeacutetica grega de maneira geral que vecirc eacuteros como uma doenccedila de mente e corpo e a seduccedilatildeo como uma maneira de enganar e subjugar o outro entatildeo toda prece que roga pelo favor no campo do erotismo eacute tambeacutem uma maldiccedilatildeo ao sujeito desejado

2 Para Apolo

21 Alceu (c 630-580 aC) Fr 307(a) Voigt

Ὦναξ Ἄπολλον παῖ μεγάλω Δίοc

Oacute senhor Apolo filho do grande Zeus

O verso eacute um vocativo tiacutepico o deus estaacute nomeado e tem sua descendecircncia marcada Caberia aqui a mesma observaccedilatildeo feita em relaccedilatildeo a Safo Fr 33 (acima 11) natildeo haacute garantias de que o fragmento seja parte de uma canccedilatildeo-prece Todavia Burkert (1985 p 146) referindo-se a um testemunho tardio do retoacuterico Himeacuterio (seacuteculo IV dC Oraccedilatildeo 48 10-11) menciona a canccedilatildeo como o ldquohino de Alceurdquo que ldquodescrevia como Apolo aparece em uma carruagem puxada por cisnesrdquo Hinos estatildeo presentes no corpus meacutelico de Alceu contemporacircneo de Safo e outra fonte antiga o Sobre a muacutesica (14 1135s) de Pseudo-Plutarco usa o termo hyacutemnos para referir uma canccedilatildeo sua a Apolo que seria o Fr 307(a)

22 Aacutelcman (ativo em c 620 aC) Fr S 1 Davies

χρυcοκόμα φιλόμολπε Oacute [deus] auricomado amante do canto e da danccedila

Embora Apolo natildeo esteja aqui nomeado o verso eacute um vocativo elogioso tal qual o do fragmento alcaico Se seu nome aparece antes ou depois do verso em questatildeo natildeo eacute possiacutevel saber e a identificaccedilatildeo do deus depende dos epiacutetetos philoacutemolpe que se refere ao viacutenculo de Apolo com

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 11: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

81

as Musas celebrado na Teogonia (vv 94-97) de Hesiacuteodo (c 700 aC) e portanto com a performance poeacutetica em geral khrysokoacutema reitera o estatuto de divindade e daacute ecircnfase agrave beleza do deus (cf 12) sendo usado na era arcaica para Eros (Anacreonte c 550 aC Fr 358) Dioniso (Hesiacuteodo Teogonia 947) e mais vezes para Apolo13

23 Simocircnides (c 556-464 aC) Fr 519 Page

fr 9 col ii []ε[ ζευστο[ Zeus() πέδεα[ νοςmiddot δεφ[ φοιβοςmiddot ινε[ Febo ἁγιωντεβωμ[ e de sacros altares() κ[ με[ γοναχα[ τασα[

fr 32 [ ]ντο Καρῶν ἀλκίμων [ valentes caacuterios [ἀμ]φὶ ῥέεθρα καλὸν ἔστασαν [ em torno dos riachos firmaram belo [ ] λειμῶναςmiddot ἤδη γὰρ αἰδοῖ[αι prados porque jaacute as respeitaacuteveis[ ] βάρυνον ὠ[δ]ῖνες ἄυσε dores do parto grita [ ]υος ἀθαν[άτ]αςmiddot ἧκε imortais veio [ ]ῦθί μοι ασ[]ωσ ouve()-me

fr 35(b)[ Π]άρνηθος []πὸ ζα[θεοῦ da sacra Parnes[ ]acuteδοις Ἄπολλον Apolo [ ]οιrsquo Ἀθάνας Atena [ ἐν]θάδrsquo εὐμενεῖ φρενὶ [ aqui com bem-disposta mente [ ]αίτιον οὐ πάρειτι ἔαρmiddot [ natildeo se aproxima a primavera [ π]όνον ὑπομίμνομε[ν a labuta suportamos [ ]αν ὀρείδρομον Ἄρτεμιν [ Aacutertemis que corre colinas [ παρ]θενικάνmiddot καὶ σέ ἄναξ ἑκαβ[ virgem e tu senhor que acerta ao longe ()[]ετα ἱέμενοι ἐνοπὰν ἀγανοῖσιν [ proferindo14 voz com gentis [] εὔφαμον ἀπὸ φρενὸς ὁμορρόθο[υ auspicioso da mente de siacutemil fluir

fr 55(a) [ ]τυχαι Λύκιον [ sortes() Liacutecio [ ]σα κάλλιστον υἱόνmiddot ἰη[ beliacutessimo filho iēh()

13 Aleacutem de Alceu ver na meacutelica dos seacuteculos VI-V aC Baquiacutelides (Epiniacutecio 4 v 2) e na trageacutedia do seacuteculo V aC Suplicantes (v 975) de Eacutesquilo e Troianas (v 254) Euriacutepides14 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 12: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

82

[]ξατε Δαλίων θύγατ[ρες filhas dos deacutelios [ ]σὺν εὐσεβεῖmiddot [ com reverecircncia [ ]ντrsquo ἐν τᾶιδε γὰρ δικα[ pois aqui [ ]με πλαξιάλοιrsquo απα[ esmaga-planiacutecies [ acute] αρ μόληιmiddot ποτνια[ ]ῶπιδ[ vem senhora [ ] αείδοντες ὀλβο[][ cantando15 []οις ὕπο μενο[ sob [ ]εφερον[ carregavam()

O Fr 519 de Simocircnides eacute uma pequena compilaccedilatildeo intitulada ldquoFragmentos de epiniacutecios e peatildesrdquo A seleccedilatildeo se ateve aos que do grupo mesmo com difiacutecil legibilidade possuem algum traccedilo proacuteprio do peatilde espeacutecie meacutelica que possui na origem forte elo com o culto de Apolo embora tenha dele se dissociado com o tempo e abarcado outras deidades O nome parece derivar do refratildeo iēh paiaacuten (ἰὴ παιάν) que talvez esteja presente no fr 55 (iē[ v 2) Tal refratildeo sinaliza exclamaccedilatildeo de juacutebilo euforia exortaccedilatildeo e daacute nome ao ldquohino de cura que apazigua a coacutelera de Apolordquo (Burkert 1985 p 145) de agradecimento e celebraccedilatildeo divina (Smyth 1900 pp xxxviii-xxxix) de funccedilatildeo cultual relacionada sobretudo a Apolo ldquoa quem o nome Peatilde geralmente se aplicardquo (Rutherford 2001 p 23) ainda que por vezes assuma funccedilotildees dissociadas do culto do deus (id p 36) atestadas na era claacutessica

Entre os fragmentos acima o nome de Apolo recorre agraves vezes identificado por epiacutetetos conhecidos da tradiccedilatildeo eacutepico-homeacuterica (pho ibos fr 9 col ii v 5 e provavelmente hekaboacutelos fr 35 v 8) outras por elementos menos diretos Karōn (fr 32 v 1) pode estar relacionado ao deus porque a Caacuteria (Aacutesia Menor) abrigava um oraacuteculo apoliacuteneo em Telmesso (Burkert id p 144) O mesmo vale para Lyacutekion (fr 55 v 1) uma vez que a Liacutecia aleacutem de estabelecer relaccedilotildees com a ilha de Delos ndash onde Apolo eacute sabidamente cultuado com proeminecircncia ndash tambeacutem abriga um oraacuteculo do deus em Patara (Burkert id ibid)

Possiacuteveis contextos cultuais estatildeo indicados na expressatildeo hagiōntebōm [ na qual estatildeo aparentemente contidos os termos haacutegios (ldquosacrordquo) e bōmoacutes (ldquoaltarrdquo) no fr 9 (col ii v 6) talvez referentes agrave performance ritual e nos termos rheacuteethra e leimōnas (ldquoriachos correntesrdquo e ldquopradosrdquo no fr 32 (vv 2-3) que satildeo tiacutepicos da descriccedilatildeo de um teacutemenos (τέμενος) isto eacute um local fiacutesico delimitado e por tradiccedilatildeo antiga reservado ao culto de um deus

24 Terpandro (c 650 aC) Fr 1 Bergk

Σοὶ δrsaquo ημεῖς τετράγηρυν ἀποστέρξαντες ἀοιδάνἑπτατόνῳ φόρμιγγι νέους ϰελαδήσομεν ὕμνους

15 Traduccedilatildeo de verbo participial de sujeito masculino plural que natildeo podemos identificar

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 13: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

83

E a ti noacutes natildeo mais amando a canccedilatildeo de quatro tons com a forminge de sete tons entoaremos novos hinos

O leacutesbio Terpandro conterracircneo de Safo e Alceu e famoso por sua atuaccedilatildeo na rica cena musical da Esparta de seu tempo eacute com frequecircncia visto pelos antigos como pioneiro no uso da lira de sete cordas e isso desde a meacutelica tardo-arcaica de Piacutendaro poeta um pouco mais jovem que Simocircnides No simposiaacutestico Fr 125 (Maehler) a meacutelica pindaacuterica canta Terpandro como inventor do baacuterbitos lira de 7 cordas na sua formataccedilatildeo padratildeo mas natildeo invariaacutevel baacuterbitos

τόν ῥα Τέρπανδρός ποθrsquo ὁ Λέσβιος εὗρεν que um dia Terpandro o leacutesbio inventouπρῶτος ἐν δείπνοισι Λυδῶν primeiro em banquetes dos liacutedios ndashψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος tanger de contra-voz agrave pēktiacutes de alto soar

Pois bem No Fr 1 Terpandro por meio do que seria a nova melodia ndash a da ldquoforminge de sete tonsrdquo (heptatoacutenōi phrominge v 2) ndash oferece neacuteous hyacutemnous (ldquonovos hinosrdquo v 2) a um ldquoturdquo provavelmente divino Em seu comentaacuterio ao exiacuteguo fragmento Campbell (1988 p 219 fr 6 n 1) sugere a possibilidade de que a 2ordf pessoa do singular indicada por soiacute (v 1) seja Apolo referindo-se ao Fr 2 (Page) do citaredo leacutesbio no qual o deus eacute tema e ao testemunho de Ateneu (gramaacutetico seacuteculos II-III dC) que no Banquete dos eruditos (14 635ef) fala da participaccedilatildeo do poeta no festival de Carneia dedicado a Apolo no qual foi o primeiro vencedor

3 Para Aacutertemis

31 Anacreonte (ativo em c 550 aC) Fr 348 Page

γουνοῦμαί σrsquo ἐλαφηβόλεξανθὴ παῖ Διὸς ἀγρίωνδέσποινrsquo Ἄρτεμι θηρῶνmiddotἥ κου νῦν ἐπὶ Ληθαίουδίνηισι θρασυκαρδίων ἀνδρῶν ἐσκατορᾶις πόλινχαίρουσrsquo οὐ γὰρ ἀνημέρουςποιμαίνεις πολιήτας

Abraccedilo-te os joelhos oacute caccediladoraloira filha de Zeus de bestasselvagens senhora Aacutertemistu que agora em algum lugarpelos remoinhos do Leteu olhaspela cidade de varotildees de audazes coraccedilotildeesdeleitando-te pois natildeo satildeo silvestresos cidadatildeos que guardas

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 14: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

84

A uacutenica canccedilatildeo do corpus meacutelico do poeta endereccedilada a Aacutertemis o Fr 348 parece buscar

o favor da deusa em benefiacutecio dos cidadatildeos de Magneacutesia poacutelis grega proacutexima ao rio Leteu (v 5) na

Aacutesia Menor sede de um templo dedicado a Aacutertemis Leucofrina Uma possiacutevel leitura dos versos que se

seguiriam aos preservados da canccedilatildeo-prece seria de que pediriam ajuda a gregos sob domiacutenio persa16

Quanto agrave forma e linguagem observa-se de pronto a identificaccedilatildeo da divindade Em

gounoucircmaiacute srsquo (v 1) o tratamento em 2ordf pessoa do singular e o sentido do verbo jaacute denotam o ato de

suplicar pelo gesto ritual tradicional o suplicante (hikeacutetēs) agarra os joelhos daquele a quem dirige

sua suacuteplica e que natildeo pode deixar de ouvi-la pois estaacute sob a proteccedilatildeo de Zeus Hikeacutesios Os epiacutetetos

identificadores da deusa destacam sua aparecircncia bela ndash xanthē (v 2) ndash a autoridade de sua descendecircncia

ndash paicirc Dioacutes (v 2) ndash e aacuterea de atuaccedilatildeo ela eacute ldquocaccediladorardquo (elaphēboacutele v 1) e ldquode bestas selvagens senhorardquo

(agriacuteōn deacutespoina therōn v 2-3) O uacuteltimo epiacuteteto reelabora o tradicional epiacuteteto de culto ldquosenhora das

ferasrdquo (poacutetnia therōn) atestado na Iliacuteada (XXI v 470) e ainda nas evidecircncias materiais da iconografia

e da arqueologia com ele a deusa natildeo eacute soacute a caccediladora mas a soberana ldquode toda a natureza selvagem

dos peixes das aacuteguas das aves dos ares dos leotildees e dos veados das cabras e dos lebres ela proacutepria eacute

selvagem e sinistra e eacute ateacute retratada com a cabeccedila da Goacutergonardquo (Burkert 1985 p 149)

Uma vez identificado o destinataacuterio divino a canccedilatildeo se volta ao viacutenculo que a deusa possui

com a poacutelis (v 6) buscando tornaacute-la propiacutecia a seus cidadatildeos valentes e ldquonatildeo silvestresrdquo (ou anēmeacuterous

v 7) Aacutertemis zela por eles e os ldquoguardardquo diz a forma verbal poimaiacuteneis (v 8) cujo sentido literal

ldquopastorearrdquo traz a concepccedilatildeo da divindade que atende a um rebanho composto natildeo de animais mas

de seres humanos inseridos na moldura institucional e fisicamente demarcada e regrada da poacutelis os

seus poliḗtas (v 8) A linguagem revela ldquoo motivo poliacutetico do hinordquo movido natildeo apenas por elementos

religiosos e rituais ressaltam Gentili e Catenacci (2007 p 207) E com efeito a deusa que domina

o mundo selvagem se apraz khaiacuterousrsquo(a) (v 7) ndash palavra que sintetiza o intuito das canccedilotildees hiacutenicas ndash

com a natildeo-selvageria (vv 7-8) isto eacute com a civilidade dos que estatildeo sob seus olhos (eskatoracircis v 6)

Talvez Anacreonte se valha dessa imagem para opor os gregos aos persas em momento de crescentes

hostilidades e de expansatildeo do impeacuterio destes sobre a Jocircnia a regiatildeo de ilhas e colocircnias gregas do litoral

centro-sul da Aacutesia Menor na sua perspectiva de um lado o mundo civilizado sob a proteccedilatildeo divina

e do outro o baacuterbaro e animalesco presa da deusa ldquocaccediladora de animaisrdquo

16 Ver Campbell (1988 p 49 notas 7-8) Gentili e Catenacci (2007 pp 207-208)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 15: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

85

4 Para Demeacuteter e Perseacutefone

41 Laso (ativo em c 550 aC) Fr 702 Page

Δάματρα μέλπω Κόραν τε Κλυμένοιrsquo ἄλοχονμελιβόαν ὕμνον ἀναγνέωνΑἰολίδrsquo ἂμ βαρύβρομον ἁρμονίαν

A Demeacuteter canto e a Coacutere17 esposa de Cliacutemeno18ndash a de doce-grito ndash um hino erguendoagrave eoacutelia gravissonante melodia

A canccedilatildeo estaacute citada em contexto de discussatildeo musical como representante da eoacutelia harmoniacutea (v 3) Apesar de perdidas as informaccedilotildees musicais os versos revelam alguns traccedilos importantes o uacutenico verbo finito meacutelpō (ldquocantordquo v 1) denota a celebraccedilatildeo por meio do canto e da danccedila ndash e eacute justamente a celebraccedilatildeo de um deus a funccedilatildeo fundamental do hino assim sendo hyacutemnon (v 2) parece estar sendo usado em seu sentido especializado isto eacute canccedilatildeo dedicada ao elogio divino E enfim notaacutevel eacute a maneira pela qual a fonte se refere ao fragmento ldquoHino a Demeacuteter de Hermiacuteonerdquo indicando aleacutem do reconhecimento das formas pela recepccedilatildeo o provaacutevel viacutenculo a um culto regional na cidade da Argoacutelida tendo em vista que abrigava um santuaacuterio da deusa e era palco de um festival em sua honra19

Embora somente Demeacuteter seja referida no tiacutetulo do fragmento a canccedilatildeo estaacute expressamente endereccedilada tambeacutem agrave sua filha Perseacutefone caracterizada como a ldquoesposa do Cliacutemenordquo de ldquodoce-gritordquo (meliboacutean v 2) talvez referente ao grito que emite quando eacute abduzida por Hades quando junto a amigas colhia flores num prado como gostam de fazer as partheacutenoi ndash as moccedilas puacuteberes ainda natildeo casadas e jaacute natildeo de todo presas agraves matildees ndash assim expostas aos perigos de sua transitoacuteria liberdade Eacute o que reconta em detalhe a principal fonte da narrativa o Hino homeacuterico a Demeacuteter (seacuteculo VI aC) De todo modo ambas estatildeo fortemente relacionadas pela tradiccedilatildeo Burkert (1985 p 159) diz que satildeo ldquocom frequecircncia referidas como as lsquoDuas Deusasrsquo ou ainda como as Demeacuteteresrdquo

5 Para as Caacuterites as Graccedilas

51 Safo Fr 53 Voigt

Βροδοπάχεεc ἄγναι Χάριτεc δεῦτε Δίοc κόραι

Oacute sacras Graccedilas de roacuteseos braccedilos vinde para caacute meninas de Zeus

17 Designaccedilatildeo comum de Perseacutefone ldquoa moccedila a menina a virgemrdquo18 Hades ldquoo famoso o infame o renomadordquo cf Pausacircnias (seacuteculo II dC) Descriccedilatildeo da Greacutecia 235919 Pausacircnias (2354-8)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 16: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

86

O verso parece fazer parte do iniacutecio ou do fim de uma canccedilatildeo dirigida agraves Caacuterites as deusas da khaacuteris (graccedila charme favor gratidatildeo) tendo em vista que a invocaccedilatildeo elogiosa agrave beleza jovem e ao status oliacutempico delas ndash e o pedido pela epifania divina ndash deucircte adveacuterbio tiacutepico de um hino cleacutetico isto eacute que clama pela presenccedila do deus ndash podem ocorrer tanto na abertura da canccedilatildeo quanto em seu encerramento em estrutura circular

Quanto agraves deusas Burkert (1985 p 173) descreve uma ldquoclasse de seres divinos cuja natureza eacute aparecer como um coletivo designados no pluralrdquo eacute o caso por exemplo das Musas das Ninfas e aqui mais especificamente das Graccedilas Essas associaccedilotildees reuacutenem indiviacuteduos semelhantes em idade sexo propoacutesito e ldquoespelham comunidades cultuais reais [] sobretudo quanto a ecircnfase dada agrave danccedila e agrave muacutesicardquo anota (id) Assim como nos fragmentos dedicados agraves Musas a seguir essa invocaccedilatildeo se dirige a um coro divino composto por moccedilas imagem que sugere em larga hipoacutetese os temas eroacuteticos comuns em Safo em especial ao considerar a estreita relaccedilatildeo entre as Graccedilas e Afrodite deusa que rege eacuterōs nos mundos miacutetico poeacutetico cultual e iconograacutefico Afinal a seduccedilatildeo configura-se como reciprocidade a retribuiccedilatildeo do desejo e dos dons oferecidos como corte a resposta reciacuteproca ao charme e graciosidade atraentes

52 Safo Fr 128 Voigt

δεῦτέ νυν ἄβραι Χάριτες καλλίκομοί τε Μοῖσαι

Para caacute agora oacute delicadas Graccedilas e bem-comadas Musas

O verso que compotildee este fragmento eacute endereccedilado natildeo a uma mas a duas associaccedilotildees de divindades Graccedilas e Musas ndash estas as da canccedilatildeo da danccedila da muacutesica jovens e belas moccedilas elas mesmas que evocam o prazer e o sagrado imbricados na essecircncia de suas prerrogativas20 Natildeo por acaso o hesioacutedico hino agraves Musas da Teogonia (vv 1-115) descreve a beleza jovem e atraente das deusas e daacute as Graccedilas e o Desejo (Hiacutemeros) como seus vizinhos

A canccedilatildeo tambeacutem possui os indiacutecios de um hino cleacutetico de temaacutetica decerto eroacutetica o pedido pela presenccedila divina deucircteacute nyn e os vocativos elogiosos aacutebrai e kalliacutekomoiacute para Graccedilas e Musas respectivamente destacam a beleza das deusas a graciosidade de seus corpos ndash a silhueta daquelas e os cabelos destas

20 Optamos por inserir este fragmento na seccedilatildeo das Graccedilas e natildeo das Musas por paralelismo em vista da semelhanccedila com o Fr 53 de Safo (51)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 17: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

87

6 Para Hera

61 Aacutelcman Fr 60 Davies

καὶ τὶν εὔχομαι φέροιcατόνδrsaquo ἑλιχρύcω πυλεῶναχἠρατῶ κυπαίρω

e a ti rezo portandoesta guirlanda de helicrissoe adoraacutevel galanga

No verso 1 o pronome pessoal tiacuten e o verbo euacutekhomai desenham a comunicaccedilatildeo com o divino ritualisticamente projetado no gesto de apresentar o dom da guirlanda agrave deusa que eacute possivelmente Hera21 na 2ordf pessoa do singular ndash indiacutecios formais de uma canccedilatildeo-prece O ofertar do objeto especificado (vv 2-3) eacute um gesto tiacutepico das performances hiacutenicas que buscam conquistar o favor divino No entanto o particiacutepio pheacuteroisa (ldquotrazendordquo v 1) se refere a um sujeito feminino sustentando uma segunda possibilidade o fragmento pode ser natildeo uma canccedilatildeo-prece mas um partecircnio ndash canccedilatildeo para coro de virgens (partheacutenoi) encenada em festival puacuteblico ciacutevico-cultual ndash em que haacute um rito eou uma prece em execuccedilatildeo dramatizada na performance sobretudo em se tratando de Aacutelcman e de sua regiatildeo de atuaccedilatildeo Esparta ndash terra e poeta conhecidos pela valorizaccedilatildeo dos coros femininos Haacute que notar que nos dois fragmentos seguramente advindos de partecircnios que temos Frs 1 e 3 Davies exibem accedilotildees rituais executadas durante a performance ao que parece pelas liacutederes do coro22

62 Safo Fr 17 Voigt

Πλάcιον δη μ[πότνιrsquo Ἦρα cὰ χ[τὰν αράταν Ἀτ[ρέιδαι ϰλῆ-]τοι βαcίληεcἐϰτελέccαντεc μ[πρῶτα μὲν περι[τυίδrsaquo ἀπορμάθεν[τεcοὐϰ ἐδύναντοπρὶν cὲ ϰαὶ Δίrsquo ἀντ[καὶ Θυώναc ἰμε[

21 Em Ateneu (15678a) Pacircnfilo afirma que pyleōn (v 2) eacute o termo usado para se referir agraves guirlandas oferecidas a Hera em Esparta22 Ver traduccedilotildees anotadas e comentaacuterios em Ragusa (2013 pp 40-54)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 18: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

88

νῦν δὲ ϰ[κὰτ τὸ παλ[ἄγνα ϰαὶ ϰα[π]αρθ[ενἀ[μφι[[[[]νιλ[ἔμμενα[ι[]ρ(rsquo) ἀπίϰε[σθαι

Aqui perto veneranda Hera teu a prece os Atridas ilustresreise perfizeram no iniacutecio em torno de para caacute eles tendo partido natildeo conseguiame antes de a ti a Zeus e ao adoraacutevel() filho() de Tione23e agora tal qual no passado()sacro e de moccedilas() em torno ser Hera() vir

A canccedilatildeo aponta para uma ocasiatildeo e fornece elemento decircitico de lugar (plaacutesion v 1) que

junto ao vocativo poacutetnirsquo Hēra (v 2) projeta um hino em contexto cultual Na sequecircncia recorre ao

passado miacutetico referindo-se possivelmente ao episoacutedio no qual os filhos de Atreu isto eacute Menelau e

Agamecircmnon apoacutes o saque a Troia encontraram dificuldades no caminho de volta (Odisseia III vv

130-85) e por isso teriam recorrido aos trecircs deuses Zeus Hera e Dioniso (o filho de Tione v 10)

aos quais havia um santuaacuterio em Pirra cidade leacutesbia Embora soacute Hera seja endereccedilada na 2ordf pessoa

do singular (seacute v 9) a narrativa que envolve os demais deuses levanta a hipoacutetese de que o Fr 17 seja

um hino que clama por viagem segura a exemplo da plausiacutevel prece dos Atridas agrave triacuteade divina

23 Dioniso

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 19: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

89

Nos versos finais apesar das lacunas eacute possiacutevel verificar um movimento de retorno ao tempo presente a partir de nyn degrave (v 11) retomando os elementos decirciticos e as accedilotildees daqueles envolvidos nessa possiacutevel ocasiatildeo cultual ao que parece de partheacutenoi (ldquovirgensrdquo) termo talvez presente no verso 14 (p]arth[en)

7 Para Musas

71 Aacutelcman Fr 5 (fr 2 col ii) Davies

cὲ Μῶ]cα λίccομαι τ[]ῶν μάλιcτα

A ti oacute Musa suplico sobretudo

O verso eacute uma breve invocaccedilatildeo Identifica-se o vocativo [Mō]sa e a forma verbal com que se roga agrave deusa seacute liacutessomai cujo sentido jaacute introduz o contexto de suacuteplica Trata-se de um apelo agrave Musa em favor de uma jovem membro da dinastia Euripocircntida (Campbell 1988 p 391 n 7) de Esparta cidade na qual Aacutelcman atuava

A poesia eacutepica consagrou a invocaccedilatildeo agraves Musas filhas da Memoacuteria pois satildeo elas a fonte de conhecimento da qual bebem os aedos ao cantarem os feitos de deuses e heroacuteis bem como da habilidade poeacutetica Dessa forma se toda canccedilatildeo fragmentaacuteria exige cautela as que buscam o contato com Musas necessitam de atenccedilatildeo ainda maior Invocaacute-las concerne agrave arte da poesia do canto tendo em vista a tradiccedilatildeo que as invoca em proecircmios de canccedilotildees que natildeo satildeo essencialmente hinos ou preces Aacutelcman por exemplo o faz nos versos iniciais do Fr 3 Davies um partecircnio

Assim claro estaacute que a interlocuccedilatildeo com o mundo divino natildeo eacute exclusividade das canccedilotildees-preces ndash mesmo composiccedilotildees natildeo-hiacutenicas possuem em certa medida caracteriacutesticas hiacutenicas por assimilaccedilatildeo das formas

72 Aacutelcman Fr 8 Davies

Μώσαι Μ[ν]αμοσύνα μ[γεισαπ[]σε γέννατο[μα[]ρθναισι τερτ[

Oacute Musas [as quais] Memoacuteria concebeu

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 20: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

90

Tal qual o fragmento anterior este eacute uma invocaccedilatildeo e conforme discutido eacute impossiacutevel determinar com certeza se se trata do iniacutecio de uma canccedilatildeo-prece De todo modo das poucas palavras legiacuteveis destaca-se a genealogia das deusas filhas de Memoacuteria (vv 1-2) elaborada em detalhe no hino hesioacutedico que eacute o proecircmio da Teogonia (vv 1-115)

73 Aacutelcman Fr 28 Davies

Μῶcα Διὸc θύγατερ λίγrsaquo ἀείcομαι ὠρανίαφι

Oacute Musa filha de Zeus em claro tom cantarei oacute Uracircnia

Embora sejam as Musas um coro de divindades geralmente mencionado no plural (cf 51) este verso que tambeacutem eacute uma invocaccedilatildeo refere-se em especiacutefico a uma delas como tambeacutem muitas vezes ocorre chamando-a pelo nome Uracircnia A reverecircncia genealoacutegica Dioacutes thyacutegater o vocativo Mōsa e a forma verbal aeiacutesomai satildeo os traccedilos hiacutenicos da canccedilatildeo cujo liacutempido som eacute destacado em liacutega (ldquoem claro tomrdquo)

74 Safo Fr 127 Voigt

Δεῦρο δηὖτε Μοῖcαι χρύcιον λίποιcαι

Para caacute de novo oacute Musas apoacutes deixar aacuteurea(o)

O adveacuterbio deucircte eacute um termo recorrente nos hinos saacuteficos A poeta o usa com especial destaque em seu Fr 1 o ldquoHino agrave Afroditerdquo para marcar a recorrecircncia da experiecircncia eroacutetica em sua vida ndash ou argumenta Budelmann (2018 p 119) da deusa em suas preces e composiccedilotildees como recurso metapoeacutetico Se construccedilatildeo semelhante eacute formulada aqui com relaccedilatildeo agraves Musas natildeo eacute possiacutevel atestar Satildeo identificaacuteveis somente a forma de vocativo Moicircsai e a marca dos hinos cleacuteticos o adveacuterbio que pede a epifania da deidade deucircro

8 Para Ninfas

81 Alceu Fr 343 Voigt

Νύμφαιc ταὶc Δίος ἐξ αἰγιόχω φαῖcι τετυχμέναιc

Dizem que as Ninfas criadas por Zeus porta-eacutegide

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 21: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

91

Este fragmento de Alceu parece ser dedicado a divindades que satildeo tais quais as Graccedilas e as Musas uma associaccedilatildeo (cf 71) As Ninfas por outro lado estatildeo mais fortemente ligadas agrave natureza

Quanto agrave forma natildeo haacute propriamente uma invocaccedilatildeo mas uma topicalizaccedilatildeo das Ninfas e sua identificaccedilatildeo genealoacutegica sempre elogiosa tendo em vista o destaque para o parentesco com Zeus Por isso a ediccedilatildeo sugere que o verso seja parte do iniacutecio ou do fim da canccedilatildeo abrindo a hipoacutetese de que seja um hino pensa Campbell (1982 p 379)

9 Para Zeus

91 Alceu Fr 69 Voigt

Ζεῦ πάτερ Λῦδοι μὲν ἐπα[cχάλαντεςcυμφόραισι διcχελίοιc cτά[τηραcἄμμrsquo ἔδωκαν αἴ κε δυναίμεθrsquo ἴρ[ἐc πόλιν ἔλθην οὐ πάθοντεc οὐδάμα πὦcλον οὐ[δὲ]ν οὐδὲ γινώcκοντεcmiddot ὀ δrsquo ὠc ἀλώπα[ ποικ[ι]λόφρων εὐμάρεα προλέξα[ιcἤλπ[ε]το λάcην

Oacute Zeus pai os liacutedios sofrendocom as desventuras nossas duas mil moedasnos deram se pudeacutessemos agrave (sacra)cidade chegarbenefiacutecio algum de noacutes sofrendo nemmesmo nos conhecendo Mas ele qual (raposa)de abstrusa mente faacutecil caso predizendoesperava natildeo ser notado

O fragmento eacute de temaacutetica poliacutetica e trata nos primeiros versos de uma alianccedila com os liacutedios ndash habitantes do reino da Liacutedia localizado na Aacutesia Menor e proacuteximo agrave ilha de Lesbos onde estaacute Mitilene cidade natal de Alceu A finalidade dessa alianccedila bem como a identidade da terceira pessoa ldquoele [] de mente intricadardquo (vv 6-7) ndash possiacutevel alvo da canccedilatildeo ndash natildeo se revela no texto mas deve ser Piacutetaco reformador que governava a cidade e com o qual o poeta e guerreiro estabelece uma relaccedilatildeo de fundo antagonismo Por isso o fragmento parece ser a primeira parte de uma canccedilatildeo maior incompleta

Visando ao esclarecimento dessas lacunas recorre-se a dados histoacuterico-biograacuteficos de modo a identificar personagens e melhorar o entendimento das motivaccedilotildees Assim assume-se natildeo soacute que a 3ordf pessoa seja Piacutetaco mas trate do exiacutelio do poeta pelo qual ele seria responsaacutevel (cf 101 Alceu Fr 129) A voz da canccedilatildeo plural representa provavelmente Alceu e seus aliados poliacuteticos exilados que

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 22: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

92

financiados pelos liacutedios recorrem a Zeus para que Piacutetaco seja punido ou mesmo deposto no bojo das intensas rivalidades entre facccedilotildees aristocraacuteticas

A mateacuteria do fragmento essencialmente poliacutetica dialoga com a tradiccedilatildeo miacutetica de maneira natildeo expliacutecita Zeus invocado no verso 1 eacute a divindade que ordena o koacutesmos atraveacutes da justiccedila e que segundo a tradiccedilatildeo hesioacutedica (Teogonia vv 453-506) colocou fim agrave violecircncia de Crono Dessa forma toda disputa pelo controle de uma cidade pode evocar o mito cosmogocircnico traccedilando um paralelismo entre os planos mortal e imortal A imagem de Zeus como a grande figura paterna pai e rei de todos portanto eacute apropriada para aquele que clama por favor poliacutetico

Uma vez que o vocativo Zeucirc paacuteter (v 1) eacute o uacutenico traccedilo formal a tornar possiacutevel a classificaccedilatildeo desse fragmento como canccedilatildeo-prece eacute preciso cautela A predominacircncia de temas seculares de cunho poliacutetico sugere que se trata de uma canccedilatildeo sem intuito cultual que usa a prece como recurso retoacuterico em estreita relaccedilatildeo com a imagem do indiviacuteduo injusticcedilado e ansioso por retribuiccedilatildeo divina tal qual Crises e sua prece a Apolo ndash jaacute mencionados ndash na Iliacuteada

92 Anacreonte Fr 423 Page

κοίμισον δέ Ζεῦ σόλοικον φθόγγον

e faz cessar oacute Zeus o incorreto falar

O verso conteacutem dois elementos caracteriacutesticos da prece o imperativo koiacutemison (ldquofaz cessarrdquo) que marca o pedido endereccedilado ao deus e o vocativo Zeucirc que estabelece contato e identifica a divindade Se esta for a parte final da canccedilatildeo concluindo-a com o pedido o vocativo reforccedila a interlocuccedilatildeo provavelmente estabelecida no iniacutecio

93 Terpandro Fr 698 Page

Ζεῦ πάντων ἀρχά πάντων ἁγήτωρ Ζεῦ σοὶ πέμπω ταύταν ὕμνων ἀρχάν

Oacute Zeus de todos o iniacutecio de todos o liacutederoacute Zeus a ti envio este iniacutecio de [meus] hinos

O termo hyacutemnon (v 2) nos conduz a duas interpretaccedilotildees a primeira mais imediata eacute a de que esses satildeo os versos inaugurais de um hino a Zeus mas uma segunda interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel pois na eacutepoca do poeta a conotaccedilatildeo da palavra tende a ser menos especializada conforme discutimos no iniacutecio deste artigo Logo os versos acima podem ser parte da abertura de uma performance composta por vaacuterios hyacutemnoi em sentido geneacuterico ldquocanccedilotildeesrdquo ndash o plural ademais contribui para essa segunda interpretaccedilatildeo

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 23: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

93

Notaacutevel eacute ainda o uso da ideia da origem do princiacutepio ndash arkhaacute ndash ao mesmo tempo para qualificar Zeus (v 1) e como referecircncia agrave performance da proacutepria canccedilatildeo (v 2) Ao tratar do deus a palavra adquire um sentido de ldquoprimeira autoridaderdquo ou ldquoprimeira posiccedilatildeo de poderrdquo o que eacute adequado para o posto de soberania ocupado por Zeus Verifica-se pois algum grau de refinamento esteacutetico na composiccedilatildeo dos versos ao principal deus dedica-se o ldquoiniacuteciordquo dos hinos e a sequecircncia de assonacircncias e aliteraccedilotildees consolidam na sonoridade o paralelismo do discurso Zeucirc paacutentōn arkhaacute paacutentōn hageacutetōr Zeucirc soigrave peacutempō tauacutetan hyacutemnon aacuterkhaacuten

Ainda que seja necessaacuterio manter-se no campo da hipoacutetese uma vez que o fragmento possui somente dois versos algumas caracteriacutesticas hiacutenicas satildeo claras a invocaccedilatildeo marcada pelo caso vocativo a identificaccedilatildeo do deus por meio de epiacutetetos elogiosos o sentido de oferta contido em soiacute peacutempō (ldquoa ti enviordquo v 2) e finalmente um possiacutevel contexto cultual porque hageacutetōr (v 1) (ldquoliacutederrdquo ldquocheferdquo) pode estar vinculado ao epiacuteteto local de Zeus em Esparta identificado por Xenofonte24 Agḗtōr (Ἀγήτωρ) cujo sentido tambeacutem eacute ldquoliacutederrdquo Ora Clemente de Alexandria (seacuteculo II dC Miscelacircnea vi ii 88) fonte do fragmento ao citaacute-lo diz que esses versos de Terpandro foram cantados ldquocom o acompanhamento da melodia doacutericardquo e tendo em vista o uso do epiacuteteto de Zeus eacute possiacutevel especular que a canccedilatildeo seja de natureza cultual para performance em Esparta

10 Para deuses muacuteltiplos

101 Alceu Fr 129 Voigt

]ράα τόδε Λέcβιοι] εὔδειλον τέμενοc μέγαξῦνον ϰά[τε]ccαν ἐν δὲ βώμοιcἀθανάτων μαϰάρων ἔθηϰανϰἀπωνύμαccαν ἀντίαον Δίαcὲ δrsquo Αἰολήιαν [ϰ]υδαλίμαν θέονπάντων γενέθλαν τὸν δὲ τέρτοντόνδε ϰεμήλιον ὠνύμαcc[α]νΖόννυcον ὠμήcταν ἄ[γι]τrsquo εὔνοονθῦμον cϰέθοντες ἀμμετέρα[c] ἄραcἀϰούcατrsquo ἐϰ δὲ τῶν[δ]ε μόχθωνἀργαλέαc τε φύγαc ῤ[ύεcθεmiddotτὸν ῎Yρραον δὲ πα[ῖδ]α πεδελθέτωϰήνων Ἐ[ρίννυ]c ὤc ποτrsquo ἀπώμνυμεντόμοντεc ἄ[ acute]ννμηδάμα μηδrsquo ἔνα τὼν ἐταίρων

24 Xenofonte (seacuteculos V-IV aC) Constituiccedilatildeo dos lacedemocircnios 132

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 24: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

94

ἀλλrsquo ἢ θάνοντεc γᾶν ἐπιέμμενοικείcεcθrsquo ὐπrsquo ἄνδρων οἲ τότrsquo ἐπιϰacuteηνἤπειτα ϰαϰϰτάνοντεc αὔτοιcδᾶμον ὐπὲξ ἀχέων ῤύεcθαιϰήνων ὀ φύcϰων οὐ διελέξατοπρὸc θῦμον ἀλλὰ βραϊδίωc πόcινἔ]μβαιc ἐπrsquo ὀρϰίοιcι δάπτειτὰν πόλιν ἄμμι δέδ[][]ίαιcοὐ ϰὰν νόμον []ον[ ]acute[]γλαύϰας ἀ[][][γεγρά[Μύρcιλ[ο

este os leacutesbios

insigne recinto sacro grande firmaram a todos e nele altardos imortais venturosos fixarame designaram Zeus Suplicantee tu Eoacutelia25 ilustre deusade todos genitora e este terceiroCervo designaramDioniso crudiacutevoro Vinde Com bem-dispostocoraccedilatildeo nossas precesouvi e das labutase do exiacutelio vexatoacuterio livrai-nosO filho de Hirras ndash que o persigaa Eriacutenia deles pois certa vez juramoscortando nem nunca um dos companheirosMas ou morrendo pela terra recobertosjazer pelos homens que entatildeo ou ainda matando-oso povo de suas penas livrarO buchudo natildeo lhes convenceu o coraccedilatildeo mas frivolamente depois de com peacutespisotear as juras deglutea nossa cidade e natildeo leiglaucas Mirsilo

25 Hera

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 25: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

95

As deidades agraves quais a canccedilatildeo eacute endereccedilada Zeus (v 5) Hera ndash natildeo nomeada mas referida pelos epiacutetetos [k]ydaliacuteman theacuteon (ldquoilustre deusardquo v 6) e paacutentōn geneacutethlan (ldquode todos genitorardquo v 7) ndash e Dioniso (v 9) satildeo as mesmas mencionadas no Fr 17 de Safo Laacute poreacutem somente Hera eacute invocada na 2ordf pessoa e a presenccedila dos demais deuses se daacute pela narrativa miacutetica Aqui os trecircs deuses satildeo endereccedilados diretamente as formas verbais imperativas que lhes dirigem suacuteplica estatildeo na 2ordf pessoa do plural aacutegite (ldquovinderdquo v 9) e akouacutesate (ldquoouvirdquo v 11)

A canccedilatildeo de Alceu se daacute em um teacutemenos (ldquorecintordquo v 2) isto eacute o espaccedilo tradicionalmente dedicado ao culto divino onde haacute bōmoacuteis (ldquoaltarrdquo v 3) tratando-se talvez do ldquogrande santuaacuterio conjunto de Zeus Hera e Dioniso em Pirra outra cidade leacutesbiardquo (Ragusa 2013 p 79) A persona alcaica plural pede para que os deuses invocados ali ouccedilam as suas ldquoprecesrdquo nomeadas em aacuteras (v 10) termo ambivalente que denota tambeacutem a imprecaccedilatildeo (cf 12 Safo Fr 86)

O contexto eacute pois o conflito poliacutetico no qual Alceu e seus aliados estatildeo inseridos o exiacutelio que lhes fora imposto por Piacutetaco o tirano de Mitilene (cf 91 Alceu Fr 69) insultado pela suposta glutonia (v 21) traccedilo que pressupotildee falta de moderaccedilatildeo Aos pares portanto a canccedilatildeo pede pela libertaccedilatildeo (v 12) aos inimigos a perseguiccedilatildeo das Eriacutenias (v 14) ndash as deusas que trazem retribuiccedilatildeo sobretudo mas natildeo soacute aos crimes familiares ndash como resultado da quebra do juramento conjunto Alceu e Piacutetaco antes de rivais eram aliados poliacuteticos26

Consideraccedilotildees finais

Este artigo buscou trazer aos olhos um largo nuacutemero de canccedilotildees-preces pouco estudadas no cenaacuterio acadecircmico brasileiro mesmo pouco conhecidas junto a outras mais sabidas destacando quando o estado de preservaccedilatildeo dos poemas o permitiu seus aspectos literaacuterios formais e miacutetico-cultuais E destacando assim a importacircncia de preces e hinos na sociedade grega que firma a relaccedilatildeo homem-deidade em dimensatildeo puacuteblica Para o homem grego mas sobretudo no periacuteodo arcaico em que se inserem as canccedilotildees-preces abarcadas neste trabalho em que predomina o pensamento miacutetico o mito eacute a linguagem que representa e organiza a experiecircncia sua razatildeo de ser natildeo estaacute no conteuacutedo mas na funccedilatildeo que exerce na comunidade argumenta Burkert (1991 p 18) pois o mito grego no mundo arcaico ldquotem por alvo a realidaderdquo e consiste em ldquocomplexo de narrativas tradicionais [que] proporciona o meio primaacuterio de concatenar experiecircncia e projeto da realidade e de o exprimir em palavras de o comunicar e dominar de ligar o presente ao passado e simultaneamente canalizar expectativas de futurordquo Todavia a ldquonarrativa tradicional estaacute sempre pressuposta como forma verbal no processo do ouvir e do contar de novordquo na performance conclui Burkert (id p 19) Outro estudioso Graf (1996 pp 3-4) afirma

26 Ragusa (2013 p 70)

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 26: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

96

Um mito faz uma declaraccedilatildeo vaacutelida sobre as origens do mundo da sociedade e de suas instituiccedilotildees sobre os deuses e seu relacionamento com os mortais em suma sobre tudo aquilo em que se fundamenta a experiecircncia humana Se mudam as condiccedilotildees um mito se deve sobreviver precisa mudar com elas Sua capacidade de se adaptar a circunstacircncias cambiantes eacute uma medida de sua vitalidade Em culturas orais preacute-literaacuterias tais adaptaccedilotildees satildeo amplamente determinadas Os mitos da Greacutecia antiga exibem essa adaptabilidade

O culto por sua vez eacute o principal meio para entrar em contato com o mundo divino em um contexto puacuteblico nunca privado e introspectivo Portanto a palavra entoada em performances puacuteblicas eacute significativa porque cumpre papel de interlocuccedilatildeo entre os planos mortal e divino Uma canccedilatildeo-prece pode desempenhar essa funccedilatildeo diretamente ou empregar sua forma com propoacutesitos mais artiacutesticos poeacuteticos que de fato cultuais Em se tratando de hinos Macedo (2010 p 23) elabora

De uns o recurso retoacuterico estaacute calcado na praacutetica cultual efetiva de outros o elemento formal ganha precedecircncia na tentativa de recriar a imagem geralmente associada ao gecircnero Em hinos tardios portanto natildeo eacute raro que traccedilos estiliacutesticos sejam tanto mais evidentes mas a verdade eacute que jaacute na era claacutessica existe uma sofisticada manipulaccedilatildeo do gecircnero cujas regras satildeo observadas ou entatildeo deliberadamente infringidas para criar efeitos literaacuterios

Ainda que o estado das canccedilotildees e a falta de informaccedilatildeo circunstancial por vezes torne impossiacutevel que essa avaliaccedilatildeo seja feita ndash distinguir as literaacuterias das cultuais ndash de todo modo o substrato eacute religioso porque a mera interlocuccedilatildeo com a divindade evoca a tradiccedilatildeo cultual muito presente no imaginaacuterio grego Em intensidades e proporccedilotildees variadas as canccedilotildees-preces gregas combinam refinamento poeacutetico formas e temas religiosos

Referecircncias bibliograacuteficas

ANDRADE T B Da C A referencialidade tradicional na poesia de Safo de Lesbos Dissertaccedilatildeo de mestrado Satildeo Paulo FFLCH-USP 2019

BERGK T (ed) Poetae lyrici Graeci Lipsiae B G Teubner 1843BOEDEKER D D Aphroditersquos entry into Greek epic Leiden Brill 1974BUDELMANN F Introducing Greek lyric In __________ (ed) The Cambridge companion to

Greek lyric Cambridge Cambridge University Press 2009 pp 1-18BUDELMANN F (ed) Greek lyric A selection Cambridge Cambridge University Press 2018BURKERT W Greek religion Trad J Raffan Oxford Blackwell 1985 BURKERT W Mito e mitologia Traduccedilatildeo M H da R Pereira Lisboa Ediccedilotildees 70 1991

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 27: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

97

CAMPBELL D (coment ed) Greek lyric poetry London Bristol 1991 [1a ed 1967]CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric I Sappho and Alcaeus Cambridge Harvard University

Press 1994 [1ordf ed 1982] CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric II Anacreon Anacreontea choral lyric from Olympus to

Alcman Cambridge Harvard University Press 1988 CAMPBELL D (ed trad) Greek lyric III Stesichorus Ibycus Simonides and others Cambridge

Harvard University Press 1991CAREY C Genre occasion and performance In BUDELMANN F (ed) The Cambridge

companion to Greek lyric New York Cambridge University Press 2009 pp 21-38DAVIES M (ed) Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I Oxford Clarendon 1991DAVIES M FINGLASS P J (ed coment introd trad introd) Stesichorus the poems

Cambridge Cambridge University Press 2014DEPEW M Reading Greek prayers CA 16 1997 pp 229-258 DEPEW M Enacted and represented dedications genre and Greek hymn In ____ OBBINK D

(eds) Matrices of genre Authors canons and society Cambridge Harvard University Press 2000 pp 59-79

FURLEY W D BREMER J Greek hymns Selected cult songs from the archaic to the Hellenistic period Part One the texts in translation Tuumlrbingen Mohr Siebeck 2001

FURLEY W D Prayers and hymns In OGDEN D (ed) A Companion to Greek religion Oxford Blackwell 2007 pp 117-131

FURLEY W D Praise and persuasion in Greek hymns JHS 115 1995 pp 29-46GENTILI B CATENACCI C (coments introd trads) Polinnia Poesia greca arcaica 3a ed

rev ampl Messina G DrsquoAnna 2007GERBER D L General introduction In ____ (ed) A companion to the Greek lyric poets

Leiden Brill 1997 pp 1-10GOULD J On making sense of Greek religion In EASTERLING P E MUIR J V (eds) Greek

religion and society Cambridge Cambridge University Press 2002 pp 1-33GRAF F Greek mythology an introduction Transl T Marier Baltimore The Johns Hopkins

University Press 1996HERINGTON J Poetry into drama Early tragedy and the Greek poetic tradition Berkeley

University of California Press 1985KIRK G S (coment) The Iliad a commentary Volume I books 1-4 Cambridge Cambridge

University Press 2004MACEDO J M A palavra ofertada Um estudo retoacuterico dos hinos gregos e indianos Campinas

Editora da Unicamp 2010MAEHLER H (ed) Pindarus ndash pars II fragmenta indices Leipzig Teubner 1989MOST G W Greek lyric poets In LUCE T J (ed) Ancient writers Greece and Rome New

York Charles Scribner amp Sons 1982 pp 75-98 OLIVEIRA F R (trad e notas) Rei Eacutedipo Soacutefocles Satildeo Paulo Odysseus 2015PAGE D L (ed) Poetae melici Graeci Oxford Clarendon 1962PULLEYN S Prayer in Greek religion Oxford Clarendon 1997RAGUSA G Fragmentos de uma deusa A representaccedilatildeo de Afrodite na liacuterica de Safo Campinas

Editora da Unicamp 2005 RAGUSA G Lira mito e erotismo Afrodite na poesia meacutelica grega arcaica Campinas Editora da

Unicamp 2010 RAGUSA G (org trad) Lira grega Antologia de poesia arcaica Satildeo Paulo Hedra 2013

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y

Page 28: Canções-preces na poesia mélica grega arcaica

Codex - Revista de Estudos Claacutessicos ISSN 2176-1779 Rio de Janeiro vol 8 n 1 pp 71-98

Raphael Quinteiro Reishtatter amp Giuliana Ragusa mdash Canccedilotildees-preces na poesia meacutelica grega arcaica

98

ROSSI L E I generi letterari e le loro leggi scritte e non scritte nelle letterature classiche BICS 18 1971 pp 69-94

RUTHERFORD I Pindarrsquos paeans A reading of the fragments with a survey of the genre Oxford Oxford University Press 2001

SMYTH H W (ed intro e coment) Greek melic poets New York Biblo and Tannen 1963 [1a ed 1900]

VOIGT E-M Sappho et Alcaeus fragmenta Amsterdam Athenaeum Polak amp Van Gennep 1971

WERNER C (trad) Homero Iliacuteada Satildeo Paulo Ubu Editora 2018WEST M L (ed) Homerus Ilias Vol I Leipzig Saur 1998

y