184
Canoas da Bahia Uma oferta ergológica João de Pina-Cabral Fotos de Mónica Chan 2006-2012

Canoas da Bahia

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Canoas da Bahia

Canoas da BahiaUma oferta ergológicaJoão de Pina-CabralFotos de Mónica Chan

2006-2012

Page 2: Canoas da Bahia

O canoeiro bota rede, bota rede no mar,O canoeiro bota rede no mar.

Cerca o peixe, bate o remo,Puxa a corda, colhe a rede.O canoeiro puxa a rede do mar.

Vai ter presente pra Chiquito,Tem presente pra Iaiá.Canoeiro puxa a rede do mar.

Louvado seja Deus, ó meu pai.

Dorival Caymmi

Page 3: Canoas da Bahia

Este livro trata das canoas monóxilas feitas de uma madeira amarela – leve mas resistente – que rolam aos milhares pelas águas lisas nosmeandros encantados dos bosques de mangue do Recôncavo e doBaixo Sul da Bahia.

Page 4: Canoas da Bahia

1. Uma floresta sobre o marComeçamos com a apresentação do manguesal – essa floresta que cresce sobre águas marinhas e onde as gentes vão buscar o sustento que lhes dá a liberdade navegando em canoas sobre águas onde o céu constantemente se reflecte.

Page 5: Canoas da Bahia

2. Baiacu, peixe e aldeiaAqui se apresenta Baiacu, a pequena povoação de pescadores escondida na costa interior da Ilha de Itaparica onde Mónica e eu fomos alertados pela primeira vez para todo esse mundo anfíbio do manguesal.

Encontramos as canoas.

Page 6: Canoas da Bahia

3. A lição do Seu OtávioNeste capítulo aprendemoso que é uma canoaseguindo a lição que nos édada pelo experientecarpinteiro, agora pescadormas antes homem de todosos ofícios, o Seu Otávio.Somos apresentados àsvelas, às técnicas de pesca,aos peixes que cada vezmais rareiam.

Page 7: Canoas da Bahia

4. Interlúdio poéticoNas ondas verdes do mar, meu bemEle se foi afogar.Fez sua cama de noivoNo colo de IemanjáÉ doce morrer no mar,Nas ondas verdes do mar.

Page 8: Canoas da Bahia

5. Cajaíba – da árvore à canoaAqui se discute como a árvorese transforma em xaboquenas colinas do cerrado e maistarde se torna em canoa nalinda aldeia de Cajaíba, nointerior do manguesal.Percebemos que o vinhático, amadeira ideal, se está a esgotare que toda uma forma de viverse encontra ameaçada.

Page 9: Canoas da Bahia

6. Seu Romão, o torneadorNas mãos de Romão, o rude xaboque vira uma esbelta canoa através de uma técnica com raízes históricas profundas. O trabalho do torneador revela-se, afinal, uma obra de arte.

Page 10: Canoas da Bahia

7. A vida da canoa – Seu Chiquito As canoas saem doestaleiro pela mão deum negociante, homemsilencioso e criador.Depois fazem sua vida:são vendidas, reparadase alteradas; recebemnomes, assumempersonalidade.

Page 11: Canoas da Bahia

8. Salinas - uma alternativa moderna?

Mas existirá mesmo uma alternativa realista para ovinhático? Seu António, em Salinas da Margarida, achaque o futuro são as suas canoas de fibra de vidro.

Page 12: Canoas da Bahia

9. As canoas como média

Aqui se fala das canoas como extensões da mão do homem – instrumentos de mediação com o mundo.

Page 13: Canoas da Bahia

10. Um ensaio de ergologia Pósfacio metodológico em que se pretende esclarecer a natureza do exercício ergológico como um encadeamento de triangulações.

Page 14: Canoas da Bahia
Page 15: Canoas da Bahia

AgradecimentosMónica Chan – praticamente co-autora. Enquanto eu falava com os

canoeiros, ela tirava fotografias do meio ambiente, das pessoas, do quevíamos, do que fazíamos. Foi a beleza das suas fotos e o seu fascínio pelaviagem que me levaram a pensar neste exercício.

Cecilia McCallum e Edilson Teixeira – anfitriões, amigos da primeira hora,entusiastas.

Araken e Euzedir Vaz Galvão – grandes guias de bahianidade.Luisa Elvira Bellaunde – comentadora atenta e inventiva.Pedro Agostinho da Silva – encorajador distante.Carlos Caroso – grandes sugestões.Minnie Freudenthal e Manuel Ribeiro do Rosário – companheiros que

partilharam o nosso olhar.Vanda Aparecida da Silva – parceira de veredas.Ruth Rosengarten – pela ajuda com a versão inglesa.

… e sobretudo os canoeiros que aí se apresentam, claro. Voltar ao início

Page 16: Canoas da Bahia

1. Uma floresta sobre o mar

Page 17: Canoas da Bahia

Onde as gentes vão buscar o sustento que lhes dá a liberdade, navegandoem canoas sobre águas onde o céu constantemente se reflecte.

Page 18: Canoas da Bahia

Baía de Todos os Santos e Ilha de Itaparica

A Ilha de Itaparica fecha a Baía de Todos os Santos e cria uma sombra deambiguidade entre o mar e a terra por onde se alarga a floresta de mangue.

Fonte:Google M

aps

Page 19: Canoas da Bahia
Page 20: Canoas da Bahia

O canal que passa entre “a Ilha” e a costa firme liga omanguesal do baixo Rio Paraguaçu, que vem lá decima do Mar de Iguape, no interior do Recôncavo,ao manguesal litorâneo que prolonga a Baía para sul.

Baiacu, que vamosconhecer deseguida, ficapara lá dopromontórioà direita.

Page 21: Canoas da Bahia

Na vizinhaMaragojipinho, os famosos fornosde cerâmica – ondese faz boa parte dabonecada turísticaque se vende nosaeroportos do Brasil– são aquecidoscom madeira tiradaao manguesaltransportada decanoa pelostortuosos canais.

Page 22: Canoas da Bahia

Aqui vemos umacanoa acabada dechegar, em frente à casa do forno,com a lenhaarrumadinha à espera de serdescarregadaquando a marésubir mais umpouco e facilitar a tarefa.

Page 23: Canoas da Bahia
Page 24: Canoas da Bahia

Maragojipinho 2005

Page 25: Canoas da Bahia

As casas de sopapo – até os muros das casas sãofeitos com a lama fina do manguesal.

Page 26: Canoas da Bahia
Page 27: Canoas da Bahia
Page 28: Canoas da Bahia

Mais para sul, o mar aberto é barrado pelas Ilhas de Tinharé(Morro de São Paulo) e Boipeba. Para o interior, fica um largoespelho de água salobra, rodeado a toda a volta por manguesaldenso – o Canal de Tinharé. No meio do canal: Cairú.

Page 29: Canoas da Bahia

Cairú

Page 30: Canoas da Bahia

Convento de S. Francisco

Page 31: Canoas da Bahia

Em tempos, o convento de São Franciscode Cairú era a sede de toda esta ampla redede vias aquáticas interiores.

Page 32: Canoas da Bahia

À noite, a partir de uma janela do convento, era possível mandarmensagens luminosas às igrejas de todas as povoações em torno aoCanal de Tinharé, alertando contra perigos iminentes.

Page 33: Canoas da Bahia

Cairú moderno

Page 34: Canoas da Bahia

A região foi um intenso campo de batalha entre índios e brasileiros noséculo XVII; a aldeia ribeirinha de Tapuias, perto de Cairú, é memóriaainda dessas disputas sangrentas (o seu nome sugere as guerras entreTupis, habitantes do meio aquático, e Aimorés, gente da terra vinda docerrado). A escravidão nesta zona foi sobretudo indígena.

Page 35: Canoas da Bahia

São águas quentese calmas sobre asquais cresce afloresta. Em Graciosa, aopôr-do-sol, osbarcos descansam da nova faina:passear turistas.

Page 36: Canoas da Bahia

Mais a sul, a seguir ao complexo hídrico de Camamu e Maraú, omanguesal da costa vai dando lugar a praias abertas e turísticas. Tudoacaba aí por Itacaré, perto já de Ilhéus, onde a foz do Rio das Contas,transportando as águas vindas das encostas da Chapada Diamantina(asseguram-me que já se acabaram os diamantes), ainda sustém um

manguesal jámenos denso,no interior doqual sedeslocam pelodia fora aspopulaçõeslitorâneas nassuas, maisexíguas,canoas.

Page 37: Canoas da Bahia

Área de manguesal do Recôncavo e Baixo Sul da Bahia

Na Bahia estima-se que a área de manguesal seja de cerca de 1.000 km2, distribuídos ao longo de 1.181km de costa, onde os maiores bosques estão entre osmunicípios de Valença e Maraú no baixo sul da Bahia. Na Baía de Todos os Santos, o estuário do Rio Paraguaçu formaimportantes bosques de mangue.

Fonte:Google M

aps

Page 38: Canoas da Bahia

O manguesal é um ecossistema tropical de regiões quentes compluviometria acima de 1200mm/ano. São águas salobras e abrigadas,com substrato lodoso muito rico em matéria orgânica, baixo teor deoxigénio e inundado frequentemente pelas marés.

Page 39: Canoas da Bahia

Os manguesais são verdadeiros berçários: local de protecção,alimentação e reprodução para dois terços das espécies de peixeseconomicamente explorados. Esse ecossistema é responsável peloequilíbrio da cadeia nutricional e manutenção de recursos naturais daszonas costeiras.

Page 40: Canoas da Bahia

A grande quantidade de matéria orgânica produzida no manguesalconstitui um rico alimento energético para diversos componentes da fauna estuarina e marinha, uma vez que durante o processo dedecomposição são colonizados por microrganismos formando a basepara diversas cadeias alimentares.

Page 41: Canoas da Bahia

A canoamonóxila(piroga, dotupi) é oveículo queune e atanão só aspovoaçõescosteirascomotambém aeconomiadas cidadescom aeconomiadas aldeias.

Page 42: Canoas da Bahia
Page 43: Canoas da Bahia

As mulheres circulam no interior da floresta de mangue recolhendo aíparte do alimento diário da família.

Page 44: Canoas da Bahia

Vendendo caranguejoem Valença

Page 45: Canoas da Bahia

Todo este ecosistema costeiro é riquíssimo em pescarias e todo ogénero de agricultura – dendê, coco, piaçaba, caju, manga, cacau, jaca,etc. No próprio manguesal se criam ostras e vários tipos de peixe emviveiros – sobretudo tilápia, um animalzinho vindo dos grandes lagosde África que se dá aqui muito bem.

Viveiros de tilápia,Torrinha

Page 46: Canoas da Bahia

O manguesal é surpreendentemente rico mas, para quem quer sair daágua, bastante inóspito. As “moriçocas” – um mosquito impiedoso –atacam os que se arriscam a sair da canoa na maré baixa. Por isso, aforaas zonas mais altas onde estão as povoações, o melhor mesmo é nãoficar muito longe da canoa.

Page 47: Canoas da Bahia

Em Baiacu, as pessoas identificamtrês tipos de mangue (a árvore queforma o manguesal):

• “vermelho” Rhizophora mangle• “branco” Laguncularia racemosa• “de botão” Conocarpus erectus

Este aqui, o “branco”, de folhamais larga e tenra, é o que ficamais próximo da água aberta; o“de botão” (assim chamado porcausa de umas sementes muitoduras na casca) cresce mais pertoda terra. É possível que haja maistipos que os pescadores nãosabem identificar.

Page 48: Canoas da Bahia

Este é o “vermelho”, que constitui o corpo da floresta e que chega a teruns dez metros de altura sobre a água.

Page 49: Canoas da Bahia

Dele se retira uma laca vermelha que era usada para reforçar as redes,quando estas eram de algodão.

Page 50: Canoas da Bahia

Uma criação de ostras em Torrinha no Canal de Tinharé

Page 51: Canoas da Bahia

Criação de ostras no pontão de Torrinha

Page 52: Canoas da Bahia
Page 53: Canoas da Bahia

Sem as canoas, o manguesal não teria vida humana e, por isso, ospróximos capítulos são dedicados a entender o que é a canoa devinhático, essa maravilhosa invenção.

Page 54: Canoas da Bahia

Quantas mais árvores de vinhático haverá nessas florestas brasileiraspara oferecer os seus interiores suaves e os seus exteriores quaseindestrutíveis às mãos dos homens?

Não sou só eu quem se pergunta: os homensdo manguesal sabemmuito bem que o Ibamanão deixa que se cortemais vinhático e sabemporquê, até por isso assuas mãos se passeiamcom mais doçura sobreesses gigantes esbeltos,transformados emflechas.

Voltar ao início

Page 55: Canoas da Bahia

2. Baiacu, peixe e aldeia

Page 56: Canoas da Bahia

Baiacu é um peixe misterioso que fascina os japoneses.

Lá, o baiacu é uma rara iguaria,que atinge preçosastronómicos e se come emrestaurantes especiais; locaiscujo fascínio resulta tanto dosabor do peixe como do perigode comê-lo. Aí os clientes dãomais uma volta à roda dafortuna, nesse delírio tãoverdadeiramente oriental em

que os prazeres da vida desafiam o descanso da morte.

E, de facto, quem vir o olhar decidido do bichinho, a volúpia da suaboca e os dentinhos marotos, não pode ficar com dúvidas de que algo deestranho por ali passa.

Page 57: Canoas da Bahia

Nada disso na Bahia. Aí, tudo émais calmo. “Não há perigonenhum,” assegura-nos opescador de Torrinhas, bastasaber cortá-lo.

Claro que sim; basta ter aprática que ele tem; porquequem não tiver, com umpequeno erro de faca, pode bemacabar morto logo depois dedigerir a moqueca. Isso mesmoexemplifica João UbaldoRibeiro no seu Viva o PovoBrasileiro no qual descreve tãomagistralmente estas paragens.

Page 58: Canoas da Bahia

E, de facto, com um golpe só, o pescador retira o pequeno saco escuroonde se esconde o mal. Aí está ele, anichado entre o polegar e o anelarda sua mão direita, ao lado do não menos venenoso fígado, junto com acabeça quase humana do animal. Vai tudo pelo ar num gesto seguro,acabando no meio da corrente. Para nós, fica o pequeno mas saborosofilete que, assegura ele, não tem qualquer perigo. Mas nós, quetambém somos um pouco japoneses, contemplamos o objectocomestível com alguma trepidação gulosa. Aqui perto, ainda no anopassado, morreu uma família inteira, depois de comer uma moqueca.

Page 59: Canoas da Bahia

Ora foi nessemesmoromance deJoão UbaldoRibeiro queprimeiro ouvifalar deBaiacu, umaaldeia depescadoresescondida dolado oeste da

Ilha de Itaparica, virada para o manguesal e a costa, mesmo em frente aSalinas da Margarida. Aqui, a grandeza eloquente da baía sobre a qualse debruça a velha capital, Salvador, dá lugar à quietude quase orientaldas águas fechadas.

Page 60: Canoas da Bahia

A antiga aldeia de Baiacu está situada num ponto alto, a meio da Ilha deItaparica, ligando-se com o mar por vias que hoje estão assoreadas. Aí se passam algumas das cenas mais misteriosas do romance de João UbaldoRibeiro. Foi Araken Vaz Galvão – o sábio amigo de Valença – que nosalertou para o facto da igreja antiga de Baiacu ter sobrevivido, estranhamenteprotegida contra o tempo.

Page 61: Canoas da Bahia

Uma arquitecturavegetal.

Page 62: Canoas da Bahia
Page 63: Canoas da Bahia

A igreja e o cemitério – apesarda aparência inicial – não estãoabandonados!

Arruinados, sim;provavelmente incendiados –não sei sequer quando ou porquem. Mas vivos, porqueocupados pelas almas queencantam os que lá vão rezarpor elas.

Page 64: Canoas da Bahia

A igreja foi preservada, as suas paredes encaixilhadas pelas raízes daárvore sagrada – a gameleira gigante.

Page 65: Canoas da Bahia

A parasita é, literalmente, a razãopara a sobrevivência das paredesque, feitas de tijolo e argamassa, hámuito tempo se teriam dissolvido,derretidas pelas chuvas tropicais,não fosse a força vegetal que assuporta.

Page 66: Canoas da Bahia

O Bom Jesus e umaVirgem quebradaabençoam umnicho por detrás dagameleira sagrada.

Page 67: Canoas da Bahia

O santo padroeiro – o Senhor da Vera Cruz – foi levado para a novaigreja, junto à costa; mas o povo não esqueceu este local. Todos os diasvai lá alguém varrer o chão e as marcas do culto de candomblé estãobem presentes, dando sinais não só da persistência da crença popularnesses mistérios trazidos pelos escravos, como da não menos popularsanha iconoclasta dos “crentes” (evangélicos pentescostais) que hojeabundam na Bahia. Estes dedicam-se sistematicamente a partir assantas estátuas que encontram. Também o padre, sabiamente, deixa lámarcas, no altar improvisado onde diz a missa algumas vezes por ano,por forma a não deixar o local só nas mãos das forças endemoinhadas.

Page 68: Canoas da Bahia
Page 69: Canoas da Bahia

“OMOLU” Senhor da terra. Omolu tem um lado um poucoassustador, por estar associado a doenças como a lepra ou sida.

Omolu dançando num terreiro em Ilhéus Grafitti na Igreja de Baiacu

Page 70: Canoas da Bahia

Omolu, Obaluaê, São Roque –vários aspectos do mesmoprincípio.

Igreja de São Francisco, Salvador Terreiro próximo de Graciosa

Page 71: Canoas da Bahia

A igreja está numpromontório porsobre umapaisagem lacustreonde o dengueprolifera.

Page 72: Canoas da Bahia

Por isso, até, faz todoo sentido apopulação se terdeslocado para acosta, num localonde umareentrância deixa aágua salina entrar,limpando aatmosfera a cadamaré.

Page 73: Canoas da Bahia

Ao lado, um galo de lutaapanha o fresco da tarde –a coragem e ferocidade dobicho elucidam a formacomo o dono gostaria deser.

Page 74: Canoas da Bahia

Quando a água recede, fica disponível o lamaçal de piso duro, quefunciona como suporte para todo o género de actividades domésticas,piscatórias, artesanais, comerciais. A lama, vista de longe, parece insegurae insalubre. Na verdade, para quem a conhece, é uma superfícieadmiravelmente saudável (porque desinfectada pelo sal) e sólida, apesarde viva.

Page 75: Canoas da Bahia

As mulheres trabalham nela o peixe e sobre ela apanham o caranguejocom que fazem algum dinheirito, sempre muito pouco, massobretudo com que vão dando de comer aos seus filhos, quando apesca dos homens não rende. A terra é famosa pelas suas moquecas!

Page 76: Canoas da Bahia
Page 77: Canoas da Bahia

Sobre a lama se secam,estendem e reparam as redes,que são o sustento dospescadores – mesmoquando, tantas vezes, estasnão lhes pertencem…

Page 78: Canoas da Bahia

Os efeitos luminosos do “tendá” sobre a lama, fascinaramMónica, quando lá fomos juntos.

Page 79: Canoas da Bahia

Sobre a lama se secam peixes, quando a safra é demasiado grande parao consumo ou para venda imediata. Aí estão eles, espetadinhos empequenas varas de bambu, secando sobre os talos grandes e resistentesdas folhas de piassaba.

Page 80: Canoas da Bahia

No mercado de Valença.

Page 81: Canoas da Bahia

Sobre a lama também, encontrámos Seu Otáviorestaurando, refazendo, embelezando e aperfeiçoandoesses meios de transporte sem os quais todo este mundoseria inacessível: as canoas de vinhático.

Page 82: Canoas da Bahia

Aí o vemos, trabalhando sobre o seu “gastalho”,moldando com certeiros golpes de enxó uma“caverna” de madeira de louro com a qualsegurará o novo fundo da canoa.

Page 83: Canoas da Bahia

Uma canoa de vinhático pode duraraté 50 ou 70 anos, bem mais do que avida activa do seu dono.

Depende muito, está claro, de comoela for mantida; se for regularmente“emborcada”, para limpar e secar ofundo. Mas mesmo quando o fundodá de si, completamente perfuradopelo “busano”, lá está Seu Otávio comsuas artes para lhe dar nova vida e,sabe-se lá, até permitir que alguémmais a volte a comprar ao Manuel, onegociante que as vende a crédito, emsuaves mas longas e perigosasprestações.

Page 84: Canoas da Bahia

Furo feito pelotorneador parajulgar da grossurado casco quandofabricou a canoa.

Aí vemos o“busano”, numacanoa emborcada àespera de reparação,acompanhado dasvárias tentativas,por fim baldadas, decontra ele lutar comalcatrão.

Page 85: Canoas da Bahia

O busano, busão, ubiraçoca, estro,tavão ou gusano é uma espécie decaramujo comprido que fura o fundodas embarcações e dos pilares demadeira (shipworm ou TeredoNavalis). É um molusco bivalve masque se estende como uma minhoca.Os barcos do Cristóvão Colomboeram cobertos a cobre para evitar osfuros do busano.

Fonte: Wikipedia

Fonte: John George Wood The Common Objects of the Seashore: including hints for an acquarium London 1866 inurbanneighbours.nypl.org/unwelcome/ref4.html

Page 86: Canoas da Bahia

Emborcadas – secando ao sol.

Page 87: Canoas da Bahia

Sem as canoas, o manguesal seria despovoado. É por meio delas quetoda esta população por lá circula. Hoje em dia, não é do manguesalque se faz a vida – como comprar produtos de consumo com aspequenas quantias que se ganham vendendo peixe? Mas o manguesal éuma linha de segurança que mantém vivo quem não arranja emprego,quem já está farto de se sujeitar a patrões, quem quer criar os filhitos empaz, quem não tem vocação para absolutamente mais nada, quem sedeixa levar pela beleza da vida solitária de pescador.

Page 88: Canoas da Bahia

Desde as canoas mais domésticas, com pouco mais de 6 metros, até àscanoas mais majestosas, de 14 e 16 metros que levam tripulações deseis pescadores, há centenas e centenas, milhares e milhares de troncosde vinhático boiando por essas águas do Baixo Sul e do interior doRecôncavo baiano: florestas inteiras de vinhático.

Lá de dentro sai muitopeixe, muito marisco emuita gente; que, assim,se desloca de um ladopara o outroafanosamente entrepovoações que sãoviradas para a água.

Page 89: Canoas da Bahia

De madrugada, frente a Maragojipe, perguntamos a uma canoa quepassa cheia de homens cobertos com vistosos chapéus: “E vocês, deonde vêm?” Logo vem a resposta pronta: “Vimos lá da roça ondevivemos, fazer o mercado.” Na mesma hora em que eu com eles falava,Mónica tirou esta foto de um homem também com o chapéu da Festade São Bartolomeu partindo para a pesca.

Page 90: Canoas da Bahia

As mulheres usam pirogas, está claro, mas são os homens, sobretudo, queas amam, que as possuem, que a elas se dedicam com o encanto e o amorde quem sabe o que elas valem: essas bóias maravilhosas, com suas formasesbeltas mas prenhes, feitas do melhor que a natureza tem para dar.

Page 91: Canoas da Bahia

“Mulher é marisqueira ;homem pescador”, dizem. Mas os homens também fazemmariscagem e as mulheresmuitas vezes ajudam oshomens na pesca. Não é raro, aquem está na praia, ver ao longeuma canoa no recife com umcasal dentro atarefado na pesca,dando voltas toda a tarde na água. No entanto,mais a sul, em torno ao Canalde Tinharé pelo manguesal a dentro, num dia normal,encontram-se mais homens quemulheres.

Page 92: Canoas da Bahia

O pescador leva peixe para casa e a moqueca dá de comer aos filhos, àmulher, à mãe, às irmãs ... já sabemos que, nesta zona, os arranjosdomésticos dos homens variam muito. Coisa é certa, um homem quenão traz rendimento ... Enfim, todos têm que contribuir.

Em Baiacuas mulherestambémtrabalham,está claro.

Page 93: Canoas da Bahia

Veja-se o bom aspecto do aratu no balde dessa mulher, gulosamentefotografado por Mónica.Quem anda de canoa namaré baixa, vê o aratucurioso, pendurado porentre as raízes do manguemexendo a sua patavermelha de lado para lado.Apanhado pelas mulherespor meio do pau com umfio que a mulher da fotoanterior leva na mão, dámuito que comer.Depois de cozido e descascado (“catado”) – tarefa trabalhosa – dá uma“moqueca” (guizado com óleo de dendê) ou um “ensopado” (guizadosem óleo de dendê) de se chorar por mais.

Page 94: Canoas da Bahia

Moqueca de ameijoas, pirão e tilápia frita.

Page 95: Canoas da Bahia

Ponta Grossa – povoaçãovizinha a Baiacu.As mulheres trabalhamsobretudo com mariscos –ostras, siri, aratu ... O catado éempacotado e congelado paravenda e constitui uma boafonte de rendimento familiar.

Page 96: Canoas da Bahia

Em Cairú, onde os turistas vêm ver o convento, a economiadoméstica estende-se para novas fontes de rendimento.

Voltar ao início

Page 97: Canoas da Bahia

3. A lição de Seu OtávioCarlos Etchevarne,grande arqueólogoda Bahia, diz-me quese encontrou umapiroga datável de hácerca de 1500 anos,enterrada numbanco de areia emMinas Gerais. Querdizer, que a canoaestá cá desde sempre,por assim dizer.

Mas porque se terão encontrado tão poucas, pergunta-se ele?

Page 98: Canoas da Bahia

Eu acho que, se calhar, por elasserem de uma tão inescapávelutilidade: desde o momentoem que os grandes toros sãoesvaziados – hoje, por meio demotoserras, mas antigamentepor fogo – e elas se tornamcanoas; até ao momento emque, muitas décadas depois,partidas, passam a ser bancos emesas; até, finalmente, quandopassada já a formareconhecível de canoa, acabampor aquecer uma noite fria ouajudar a preparar umamoqueca.

Page 99: Canoas da Bahia

Torrinha, Canal de Tinharé.

Page 100: Canoas da Bahia

Como já vimos, eu conheci Seu Otávio em 2006, quando pareifascinado a vê-lo trabalhar na Xpita, fazendo-lhe um fundo novo commadeira de louro talhada a golpe certeiro pela sua enxó. É precisoconhecer a madeira, diz ele, orgulhosamente. “A madeira que temmais variedades no mundo é o louro; com 25 diferentes tipos!”

Aqui o vemosa reajustar oângulo decorte da enxó.

Page 101: Canoas da Bahia

Para além da pesca – pesca – com arte de anzol, porque afirma não terpaciência para redes... nem para sócios – Seu Otávio emprega-se areparar os fundos das canoas. Ele não é o único “carpinteiro de canoa”em Baiacu. No ano seguinte, conheci também o seu amigo e vizinho“Tuti”, quelabuta namesma arte e cujaalcunha(“apelido”)deriva donome de umafábrica ondetrabalhou aliperto, noRecôncavo.

Page 102: Canoas da Bahia

Manhã cedinho, Seu Otávio volta da pesca –um vizinho mostra parte doproduto.Aí temos o caramuru –peixe perigoso que tem queser morto com um golpefundo de facão na cabeçaantes de entrar na canoa,porque morde.O primeiro português daBahia recebeu dos índioseste nome, talvez por tersaído do mar com a coresverdeada dos naufragadose ... também por morder?

Page 103: Canoas da Bahia

Um ano depois, um outro pescador mais a sul contou-me que,quando era jovem, um caramuru cortou o dedo dele e mostrou-mea cicatriz. Ele deitou-o no interior da canoa e pôs os pés em cimapara ele não morder. Mas distraiu-se e baixou a mão no interior dacanoa. Aí, o caramuru mordeu e ficou agarrado. Ele ficou assustadoe abanou a mão e o caramuru caiu para a água, levando a ponta dodedo. “É bicho venenoso” – quer dizer, bicho mau.

O caramurufica “maisvalente”quando a marécomeça aencher…

Page 104: Canoas da Bahia

Essa aí é a “grozeira” – a arte de anzóis com queele pesca, sozinho, a meioda noite; atirando à águaum anzol com isca decada vez enquanto acanoa se move no escuro.“A pescaria é coisaingrata. E é sofrido. Umfrio! Mosquito! Lento!Remar com o vento nacara!”

Page 105: Canoas da Bahia

Mais cedo ou mais tarde, todas as canoas precisam de reparos: por um lado,por causa do busano que, de ano em ano, vai entrando na madeira sem que opescador o veja, até que a come por dentro; por outro lado, porque de facto ovinhático tem um vício... mas já lá vamos – não cumpre apressarmo-nos.

Page 106: Canoas da Bahia

O fundo da canoa tinha sido comido pelo busano. O carpinteiro, usandoinstrumentos simplíssimos vai, passo a passo, talhando a madeira para ela sefazer aos buracos e às curvas, para que as “cavernas” se encaixem à perfeição aofundo; segurando com pregos, pelo interior, as novas tábuas.

As peças maisfinas da canoa,os lados, nãotêm menos de 3 cm deespessura. A obra é feitapara durartanto quanto acanoa.

Page 107: Canoas da Bahia

Uma canoa assim, pode ter váriasvidas. Os reparos acumulam-se unsaos outros, não se desfazem ousubstituem até serem eles mesmos acausa do problema.

Esta aqui, estava à espera que Seu Otávio pegasse nela e lhe desseuma terceira vida.

Page 108: Canoas da Bahia

“Uma canoa tem sempre alguma água dentro,” explica Seu Otáviocom calma. Não há problema, porque mesmo quando ela vedamuito bem, ainda assim entra água trazida pelas pessoas, pelospeixes, pelas redes, pelas ondas, pela chuva...

Há mesmo um instrumentosemicircular, que se ajusta aobojo da canoa, para seguraro peixe num lado, de forma a que a água vá escorrendopara o outro e seja possívelvazá-la: a “antepara” ou“cunha”. Aí a vemos, debaixodo banco, puxada para o lado, depois de retirado o peixe.

Page 109: Canoas da Bahia

E, de qualquer forma, uma canoa bóia sempre, mesmo se furada. O problema seria mexê-la, está claro. Mas, por isso, os remendosfazem-se à medida que são necessários e sem pressas. Uns, maispermanentes, são de madeira ajustadinha e calafetada. Outros, se o quehá mais à mão é palha de piaçaba, pois lá terá que ser.

Page 110: Canoas da Bahia

Elas ficam pousadas quietas sobre alama durante a maré vaza ou boiandoao ritmo do vento, quando a marésobe sobre o lamaçal. O banco dafrente, ou um dos furos que seguram ocordame da vela à proa, suportam umaargola de corda ou cadeado, fechadosem torno ao “mourão”. A canoa sobe edesce com a maré presa ao mourãoque, por sinal, é impossível dearrancar, porque está enterrado muitofundo na lama e é feito de umapalmeira fina a que chamam “buri.”

Page 111: Canoas da Bahia

Baiacuvista do mar.

O buri é tão adequado a este fim, que só apodrece por cima, nunca pelofundo. É a parte cortada em cima que absorve a água da chuva,acabando por apodrecer, por isso é cortada em cunha. Assim, osmourões vão-se tornando mais curtos com o tempo, até que é precisoenterrar outros ao lado deles.

Page 112: Canoas da Bahia

Aí está uma cópia aproximada do desenho que o Seu Otávio me fezsobre uma folha que logo deitou fora, obrigando-me a copiar o deletodo amarrotado: “porque não tenho jeito para desenhos”. Meti avermelho os nomes das várias peças que vos apresentarei de seguida.

Page 113: Canoas da Bahia

A canoa tem normalmente dois bancos que são feitos de tábuas furadasa meio. Em cada banco um furo e em cada furo um mastro.Os mastros entram pelobanco e vão prender na“carringa” – furo feito na“almofada”, uma espécie decinta interior, onde amadeira foi menosescavada para ficar maisgrossa. Essa cinta serve,por um lado, para isso e,por outro, para reforçar acanoa a meio – a zonaonde as ondas têm maiorimpacto.

Page 114: Canoas da Bahia

Esse banco era o da Flecha, a canoa de Seu Otávio: “Comprei-a nova,em segunda ou terceira mão, por 3200 Reais, ano passado” (i.e. 2006).Veio de Coqueiros do Paraguaçu, onde os saveiros se acumulam. Aquiestá um ângulo desse povoado, visto por quem desce o Paraguaçu emdirecção ao Mar de Iguape (uma bacia interior no Recôncavo).

Page 115: Canoas da Bahia

Há dois tipos de posição para o mastro: vertical ou inclinado para afrente. Este último é mais eficiente com equipes maiores de homens, jáque leva uma vela maior que permite transportar mais peso – mais redes,mais peixe. Chama-se “vela em pena”. Para a vela se inclinar para afrente, furam-se os buracos desencontrados, de tal forma que o anelinterior fica um pouco para trás por relação ao banco do centro. Mas há canoascom duascarringas sob obanco domeio,permitindoque se lhemeta tantovela verticalcomo em pena.

Page 116: Canoas da Bahia

As velas enroladas e os remos feitos de madeira pesada paranão flutuarem ficam arrumados nos barracões construídossobre plataformas feitas de lama e piaçaba.

Page 117: Canoas da Bahia

A vela vertical é o “traquete”,uma vela menor, quasequadrada – tem mais alturaque largura e é mais estreitaem cima que em baixo. Semverga, a vela é aberta pela“espicha” presa obliquamentepor uma corda ao meio domastro. É mais fácil de usar, porque sóexige uma amarração,enquanto que a vela em penaexige duas. Aqui está uma velade traquete, posta a secar portrás de uns “munzuás” –armadilhas para caranguejo.

Page 118: Canoas da Bahia

Velas a secar em Cacha-Pregos.

Page 119: Canoas da Bahia

Algumas canoas só têm uma vela de traquete, que é montadaem vertical no banco do meio. É uma solução fácil para opescador que anda sozinho e que não tem pressa nem grandesdistâncias para atravessar. Aqui está a mesma vela de traquete,um ano depois, preparando-se para mais uma expedição.

Page 120: Canoas da Bahia

Fomos a Ponta Grossa na Flecha para Seu Otáviome mostrar a forma comoele usa a vela de traquete.

“A minha vida é livre,entendeu?”

Page 121: Canoas da Bahia

Velamorcegueira.

Gostam defazer o mastrode pindaiba(Duguetialanceolata St. Hill. – umtipo de árvorede fruto) porser fina eceder, mas sermuitoresistente.

Page 122: Canoas da Bahia

Mais lentas e menos exigentes, digo eu;mas, mesmo assim, é surpreendente avelocidade a que andam.

Este aqui, vislumbrado à distância no canalde Torrinha, perto de Cairú, vinte minutosdepois já estava a aproximar-se de nóssorridente com a sua vela que, por ser feitade expedientes, não era nem menos veloznem menos bela.

A canoa estava pesada com a manta defolha de dendê e fio de piaçaba com que elefaz as armadilhas para o peixe nas coroas(zonas de menor profundidade) destescanais interiores do manguesal.

Page 123: Canoas da Bahia

Duas velas de traquete grandes numa bela canoa de mais de 12 metros passando ao largo do atracadouro de Salinas.

Page 124: Canoas da Bahia

Em Baiacu, na Ilha de Itaparica, esse tipo de pesca é menos frequente,porque as águas são mais fundas. Aí, eles têm distâncias maiores apercorrer, usam redes de nylon e preferem velas em pena, maiores,mais exigentes, para tripulações de 6 e 7 homens. Aqui estão duascanoas, uma com duas velas de traquete a chegar e outra com vela depena, preparando-se para sair.

Page 125: Canoas da Bahia

A vela de pena,com o ângulo davela para cima,montada sobreum mastroinclinado para afrente, cria umadinâmica únicae muitodistintiva, que onome de “pena”capta bem.Aqui está essa dehá bocado,agora tomandovento.

Page 126: Canoas da Bahia

Em repouso, o varal é baixado e a velaenrolada sob ele. É assim que ficam adormir no descanso dalama.

Vejam aí a velaenrolada sob a verga.Notem também que,em cima das redes, estápousada a “espadela” –a tábua que é solta dolado de fora da canoano lado contrário aovento para a estabilizar.

Page 127: Canoas da Bahia

Essa mesma canoa em movimento.

Page 128: Canoas da Bahia

Esta tábua é muitoimportante na navegaçãocom vela em pena, porqueé o que impede a canoa,(cujo fundo é tubular) dedeslizar para o ladoquando empurrada pelovento.Mas não pode ser feita devinhático, porque estebóia e vem ao de cima.Geralmente, é feita deuma madeira mais pesadae mais dura. Esta aqui é de sucupira (Pterodonemarginatus).

Page 129: Canoas da Bahia

A “ustaga” é a corda junto aomastro que levanta a vela, aquifeita de nylon azul.

Seu Otávio, vestido com suacamisa de sorvete Kybom,demonstra como se sobe umavela, puxando pela ustaga – velhapalavra naval de incerta origemfrancesa.

Page 130: Canoas da Bahia

À frente, a vela é amarrada junto ao varal pela cordachamada “caro”. Aqui, porque a canoa está emrepouso, o caro está atado ao bico. (Caro – palavra naval derivada do grego para ‘corno’ e que nos chegou há muitos séculos por via daCatalunha.)

Page 131: Canoas da Bahia

As cordas da vela são seguras a uns buracosfeitos ao jeito do cliente nos lados da canoa.Note-se, porém, como o vinhático é umamadeira resistente; qualquer outra madeiraesgaçaria logo à primeira puxadela da vela.

Page 132: Canoas da Bahia

Mas, mesmo assim, a canoa corre orisco de virar quando o vento estáforte – o fundo é chato e o andarapressado. Então é preciso equilibrá-la. Para isso, os homensdependuram-se dos “barandais”.Notem, por um lado, os nós feitos nacorda para meter as mãos e melhorsegurar durante os longos períodos denavegação; por outro lado, notem queesta canoa tem 4 barandais – isto é,uma tripulação de nunca menos de 6 homens, já que quatro vãopendurados, um vai à frente junto ao“caro” e outro vai à popa a prender a“escuta” e dirigir com o remo.

Page 133: Canoas da Bahia

Também é possível segurar um motor à canoa e ir por aí fora muito maisconfortavelmente. Faz-se mais barulho, está claro; mas, sobretudo,gasta-se dinheiro – que é precisamente o que por lá não há. Ora asobrevivência desta pesca de canoa é sinal de que a economia monetáriatem uma penetração desigual nesta região.Seu Otávio, por exemplo, tem uma“aposentadoria” – esse maior do que todos osoutros sinais de que o Brasil é mesmo umademocracia –, o que significa que pode arrendara sua casinha à senhoria, desde que se sustentecom o que a pesca e a carpintaria lhe forneçam.Por sua vez a senhoria, uma vizinha ali ao lado, usa a renda que ele lhepaga como ele usa o pouco que o Manuel – o comerciante das canoas –lhe dá pelas reparações que faz. Por falta de dinheiro, em Baiacu, quasenão há motores em uso. Mesmo assim, a Flecha já susteve ummotorzito, em mãos de proprietário anterior.

Page 134: Canoas da Bahia

Lá mais para sul, os vizinhos de Seu Chiquito montam ummotor numa canoa.

Page 135: Canoas da Bahia

As marcas das cordas da rede já vão fundas quando finalmente a canoafor paga, se não for revendida antes, como solução de recurso. E lá volta o pescador a depender de uma “canoa de dono”.Coisas da vida! Nãodá para fazer muitoromance. Isto da pescaé uma solução derecurso, não é com issoque uma pessoa vaiganhar dinheiro paramontar casa, educarfilhos, guardar o amorde uma mulher... Os pescadores são tãomóveis como ascanoas.

Page 136: Canoas da Bahia

Assim foi comSeu Otávio:depois de tercriado 6 filhosem São Roquede Paraguaçu,zangou-se comos amigos esimplesmentepôs-se a andar.Foi para Baiacu,onde conheciagente, porque

era perto – e, portanto, terreno conhecido – mas num sistema rodoviáriodiferente, por isso difícil de acesso. Comprou paz e sossego. Mas saudades … lá isso tem.

Page 137: Canoas da Bahia

E tem havido importantes melhorias ultimamente. O nylon foi uma,porque tornou as redes mais duráveis, mais fáceis de reparar e fazer emuito, mas muito mais duráveis. Tão mais duráveis que, como não segastam, o preço do nylontem vindo a descer, porqueos comerciantes nãoconseguem esgotar o quetêm.Ao mesmo tempo, tornou ascordas mais suaves nas mãos:isso foi uma mudança muitoimportante, porque asantigas eram feitas ou dealgodão – que apodrecia –ou de piaçaba e espetavam-se nas mãos quando corriam – tudo muitodoloroso com perigo de infecção.

Page 138: Canoas da Bahia

Dentro dessa canoa, portanto, é tudoalta tecnologia moderna ao serviço deuma das formas mais artesanais decaça que ainda sobrevivem no nossomundo cada vez mais alterado.

Ora, recentemente, os pescadores dointerior do Recôncavo tiveram maisuma amostra do que pode vir aacontecer. Apareceram na zona dobaixo Paraguaçu milhares de peixesmortos. Como de costume, só elesficaram a perder; porque foramproibidos de vender peixe durante aépoca da Páscoa, quando o preçonormalmente sobe.

Page 139: Canoas da Bahia

Os jornais sugeriram que erauma “maré vermelha”. Nadadisso, diz Seu Otávio, quetrabalhou na construção dogigantesco estaleiro daPetrobrás, assim como naDalquímica, em épocas da suavida em que precisava deganhar dinheiro para a família.Ele sabe muito bem que ascondutas submarinas estãosujeitas a desenvolverem fugas eque por lá passam substânciasaltamente tóxicas – mesmo porbaixo de onde eles apanhamtodo aquele peixe!

Page 140: Canoas da Bahia

No balde do peixe miúdo – pequeno demais para comer, que fica nofim da partilha e serve de isco para o munzuá – Seu Otávio identificoualgumas das principais espécies locais.

BaiacuAramaçá (solha)AgulhaMirimCarapicumCarapebaXangóMassambi (que em grande chamam sardinha).

Page 141: Canoas da Bahia

Falando sobre a crise actual da pesca, Seu Otávio afirma: “Peixe écardume. Acabou o cardume, acabou a fartura”.

Page 142: Canoas da Bahia

As redes são deitadas daseguinte forma:(i) um pescador fica na coroa

(zona de água menos funda) segurando uma ponta da corda,

(ii) a canoa vai-se deslocando e a corda desenrolando – e assim fazendo por fricção aqueles sulcos que vimos na popa;

(iii) depois a canoa vira para o lado direito e vai espalhando a rede;(iv) finda a rede, a canoa vira outra vez para a direita e mais uma vez se

espalha a corda, agora numa direcção mais ou menos paralela à da corda inicial;

(v) por fim, outra vez na coroa, prende-se a ponta da corda e começa-se a tarefa de puxar a rede.

Page 143: Canoas da Bahia

Com sorte, assim se apanha uma“manta” (um cardume de peixe) e sevolta com a canoa pesada para casa.

Nestas operações se usa, por vezes,a “tuleteira” – uma espécie de apoioque se fixa a um lado da canoa ondeestá montado um tulete em pé –que é um pau onde se prende umacorda para fixar o remo e podermexer a canoa a remo.

Aqui vemos o nosso homemexplicando o sistema, recorrendo a um pau qualquer que para aliestava.

Page 144: Canoas da Bahia

E estamos a chegar ao fim da lição. Mas falta ainda algo deimportante, que explica pelo menos parcialmente a actividade de SeuOtávio. É que, de facto, o vinhático tem um vício que é, ao mesmotempo, a razão pela qual ele é escolhido para esta função. Esta árvoretem um tronco largo, forte, direito e de lados cilíndricos com aseguinte característica: o exterior é de madeira leve mas dura, quaseindestrutível, difícil de cortar, mas o interior tem uma madeira mole efácil de ser queimada. Assim, uma vez retirada a tampa de um tronco,por assim dizer, era relativamente fácil queimar o interior sem que acamada exterior (que acabaria por constituir a canoa) se destruísse.Hoje, é tudo feito a golpe de motoserra, jánão é preciso recorrer ao moroso ecomplexo processo ígneo. Por isso, até, aquie ali, ficam os deslizes, os erros da motoserra– como se vê na parte de baixo da pala dapopa desta canoa novinha em folha.

Page 145: Canoas da Bahia

Nas pontas da canoa, o interior dotronco (o “geral” onde a madeira émais mole) acaba por constituir umaparte exterior.

Na proa, à frente, onde o formato embico de pato permite maior grossura,o problema é menor; na popa,porém, onde a pala final é esvaziadapor baixo, o geral fica em contactocom os elementos e, mais tarde oumais cedo, acaba por ceder – já que amadeira de que é feito se esfarelacom alguma facilidade, como onosso carpinteiro exemplificou coma unha nessa mesma canoa aí.

Page 146: Canoas da Bahia

Há truques paraesconder esta fraqueza.

No fim, porém, o“geral” vai sempreacabar por dar de si.Todas as canoas vãoprecisar de umcarpinteiro que asremende.

Vejam como estavelhinha se esfarela logoali na popa, já tendorecebido um remendodo lado direito.

Page 147: Canoas da Bahia

Nisso, então (e tambémnos fundos comidos pelobusano), trabalham oscarpinteiros que, como onosso Otávio, reparamaquelas partes em que anatureza fica a dever.

Não há, afinal, bela semsenão.

Voltar ao início

Page 148: Canoas da Bahia

4. Interlúdio poéticoÉ na água que o canoeiro se move. Ele é homem, ele é pobre, eleprocura o sustento num meio ambiente pródigo mas imprevisível. O canoeiro é um predador com o seu facão na mão, suas camboas naareia, suas redes sempre a puxar. As águas escuras escondem efornecem o sustento do canoeiro.

Page 149: Canoas da Bahia

O pescador entrega a sua sorte àságuas – nas mãos da Mãe d’Água,Iemanjá, Rainha do Mar.

Iemanjá, a sereia que joga com a morte e a vida, surge em toda a parte nestas costas frondosas. Olivença, perto de Ilhéus

Page 150: Canoas da Bahia

Ofertas a Iemanjá (Itapoã, Salvador) – “no sincretismo” NossaSenhora da Conceição.

Page 151: Canoas da Bahia

Vejam a canoa usada para salvar António em 1770:“Mercê que fez NossaSenhora da Conceiçãoa António, escravo doMestre de CampoHenrique Moniz que,querendo atravessareste rio na ponte de [...]para a outra banda semsaber nadar, caiu nofundão e a correntesade água o levou porbaixo da ponte até

quase à olaria do Capitão João de Andrade. E, chamando por estaSenhora, da mesma olaria o acudiram e o salvaram, ficando livre demorrer afogado em dias de Agosto de 1770”.

Museu Oscar Niemeyer, Curitiba

Page 152: Canoas da Bahia

Dia 2 de Fevereiro,Dia de festa no mar,Eu quero ser o primeiroPra salvar Iemanjá.Escrevi um bilhete a elaPedindo pra me ajudar.Ela então me respondeu,Que tivesse paciência de esperar.O presente que mandei pra elaDe cravos e rosas vingou.Chegou, chegou, chegouAfinal que o dia dela chegou.

Dorival CaymmiCaribé, MAM, Salvador

Page 153: Canoas da Bahia

Iemanjádevolveuesta flor.Quema teráoferecido?

3 de Fevereiro – Praia do Rio Vermelho, Salvador

Page 154: Canoas da Bahia

Oferta a Iemanjá numa lagoa encantada, Salamina.

Page 155: Canoas da Bahia

Iemanjá e vários Exús – Mercado de São Joaquim.

Page 156: Canoas da Bahia

Canoa dedicada a Iemanjá.

Page 157: Canoas da Bahia

Iemanjá entre outrosorixás.

Terreiro de Mãe Hilsa, Ilhéus 2006

Page 158: Canoas da Bahia

Cachoeira

Page 159: Canoas da Bahia

Eu não tenho onde morar,É por isso que eu moro na areia.

Eu nasci pequenininhoComo todo o mundo nasceu.Todo mundo mora direito,Quem mora torto sou eu.Vivo na beira da praiaCom a sorte que Deus me deu.Maria mora com as outras,Quem paga o quarto sou eu.

Eu não tenho onde morarÉ por isso que eu moro na areia.

Dorival Caymmi

Page 160: Canoas da Bahia

O sonho de uma casa nos muros de uma cela davelha prisão de Valença.

O sonho de uma mulher: Dini – mulher perigosa! –pertencia a Cosme eapelidava-o de Zidane!

Page 161: Canoas da Bahia

Canoas em repouso. Noite de São Bartolomeu em Maragogipe.

Page 162: Canoas da Bahia

Em Coqueiros, no interior doCanal, perto de Cajaíba eCairú, S. Francisco recebe S. Sebastião, no meio de festarija...

Page 163: Canoas da Bahia

A banda de Una, num dia de festa em que ACM (António CarlosMagalhães, já muito velhinho) estava a visitar a cidade.

Page 164: Canoas da Bahia

Festa da Senhora da Boa Morte, Cachoeira. 18 Agosto 2005

Page 165: Canoas da Bahia

Samba de roda pela noite fora.

Page 166: Canoas da Bahia
Page 167: Canoas da Bahia
Page 168: Canoas da Bahia

Durante a semana, na maré baixa, o campo de futebol fica disponívelpara a miudagem.

Page 169: Canoas da Bahia

Milagre

Maurino, Dadá e Zeca, ôEmbarcaram de manhã.Era quarta-feira santa,Dia de pescar e de pescador.Se sabe que muda o tempo,Se sabe que o tempo vira.Aí, o tempo virou.Marino, que é de güentá, güentou.Dadá, que é de labutá, labutou.Zeca, esse nem falou, ô.Era só jogar a rede e puxar,Era só jogar a rede.

Dorival CaymmiOgum Marinho/St.º AntónioSargento

Page 170: Canoas da Bahia

A morte espera-nos ondemenos a prevemos. Dois diasantes de eu o conhecer, SeuRomão teve sede, pegou numavara para tirar um coco. O pau deslizou e a pontaaguçada espetou-se-lhe nopeito – “mais um milímetro”,disse o médico, “e você tinhaido pr’a melhor.” Escapou porum milagre. Quinze diasdepois, lá estava outra vez, de enxó em punho, escavandoa linda madeira cor de limão,com a cicatriz ainda fresca.

Ofertas votivas, Senhor do Bonfim, Salvador

Page 171: Canoas da Bahia
Page 172: Canoas da Bahia
Page 173: Canoas da Bahia
Page 174: Canoas da Bahia

Terreiro de D. Lindinha (Valença) várias imagens da Mãe D’Água e ascores de Ogum Marinho (St.º António).

Page 175: Canoas da Bahia

Cerca o peixe, bate o remoPuxa a corda, colhe a rede.O canoeiro puxa a rede do mar.

Baiacu

Page 176: Canoas da Bahia

Aquilo que eu sintoimpõe-se-meirremediavelmente.Aquilo que existe fora demim impõe-se-me comigual força.Mas as extensões daminha mão em direcçãoao mundo têm umaespecial ambiguidade nasua presença.

São objectos quetransitam entre o meupensamento e o mundo.

Page 177: Canoas da Bahia

Não só me permitem mudar o mundo, como permitem que eu me re-situe face a ele. São, por excelência, o campo dacriatividade e da imaginação.

Pomba Gira. Mercado de S. Joaquim, Salvador

Page 178: Canoas da Bahia
Page 179: Canoas da Bahia

Tal como os carros, as motos, os aviões, as bicicletas; as canoassão objectos que ficam à porta do sonho. Por isso mexem com asnossas emoções.

Page 180: Canoas da Bahia

Não são de lá (como Iemanjá e todas as sereias que osmeus canoeiros – gente séria – diz que nunca viu). São de cá, mas abrem as portas do possível. Por isso sãoinvestidas com um especial fascínio.

Foto

Man

uel R

ibeir

o do

Ros

ário

Page 181: Canoas da Bahia
Page 182: Canoas da Bahia

É doce morrer no mar

É doce morrer no mar,Nas ondas verdes do mar.

A noite que ele não veioFoi de tristeza pra mim.Saveiro voltou sozinho,Triste noite foi pra mim.

É doce morrer no marNas ondas verdes do mar

Saveiro partiu de noite,Madrugada não voltou.O marinheiro bonito,Sereia do mar levou.

É doce morrer no mar,Nas ondas verdes do mar.

Nas ondas verdes do mar, meu bemEle se foi afogar.Fez sua cama de noivoNo colo de Iemanjá.

É doce morrer no marNas ondas verdes do mar

Dorival Caymmi

Ituberá, cachoeira

Page 183: Canoas da Bahia

Senhora da Piedade,Convento de Cairú

Page 184: Canoas da Bahia

Cairú ao por do sol Voltar ao início